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A invenção do campo disciplinar

da Arquitetura: contribuições e
contraposições renascentistasi

Carlos Antônio Leite Brandão

1 Este artigo faz parte de


nossa produção na pesquisa
Carlos Antônio Leite Brandão graduou-se em Arquitetura (UFMG, 1981), "Arquitetura e Humanismo"
especializou-se em Cultura e Arte Barroca (UFOP, 1987) e Filosofia Contemporânea desenvolvida junto ao CNPq.
(UFMG, 1985). Fez mestrado e doutorado também em Filosofia (UFMG, 1987 Resumido e em forma de
e UFMG, 1997, respectivamente) e bolsa doutorado-sandwich na Università degli conferência, foi apresentado
na abertura da disciplina de
Studi di Firenze, estudando o Renascimento e, especialmente, Leon Battista Alberti.
pós-graduação em História da
Desde 1983 é professor de História da Arte e da Arquitetura na Universidade Federal Arquitetura coordenada por
de Minas Gerais. Tem inúmeros trabalhos publicados destacando-se A Formação do Gustavo da Rocha Peixoto na
Homem Moderno Vista Através da Arquitetura e Quid Tum? O Combate da Arte em Lean FAU-UFRJ, em 27 de maio de
Battista Alberti, ambos pela Editora da UFMG. 2004.
CARLOS ANTÔNIO LEITE BRANDÃO

1. Introdução

Todos os conceitos de história e crítica da arte, inclusive do que


seja Arte, consolidam-se na modernidade durante o século XVIII. O
núcleo irredutível desse sistema moderno com que ainda trabalhamos,
mesmo que precariamente, é a definição da Arte enquanto Pintura,
Escultura, Arquitetura, Música e Poesia, ou seja, as "artes maiores", as
quais se separam do artesanato, da ciência e da moral, como se ilustra
na obra de Kant. Pensar a arquitetura como disciplina no Renascimento
é, portanto, estarmos aquém dessa história e divisão disciplinar, em sua
"pré-história". E isso pode nos ser de grande valia num momento, como
neste início do século XXI, onde se esboroam as rígidas demarcações
disciplinares e onde a complexidade dos problemas e das soluções por
ele exigidas - tais como os das cidades, das identidades culturais ou da
violência no mundo contemporâneo - nos colocam a necessidade de
ultrapassarmos a separação entre os vários campos e entre o Belo, o Bem
e a Verdade, ou seja entre a Arte, a Moral e Ciência. 2
No sistema antigo greco-latino, cinvri e ars englobavam tudo
o que hoje chamamos de arte, artesanato e ciência e entendia-se a
Arte como totalmente ensinável e pouco dependente do talento e da
inspiração. O Belo não era distinto do Bem e não se separava do útil e do
propósito pedagógico, sobretudo quanto à educação da juventude, como
lemos em Platão. Em Aristóteles, Cícero, Horádo e Panezio, a beleza
era vista como "decoro" e se associa a uma componente ética formando
a Kaloicayanoc. Ela adquiriu relevância metafísica em Plotino, como
mais tarde em Marsilio Ficino, já no Renascimento. Ao separar as
"artes da necessidade" e as "artes do prazer", Aristóteles prepara a
classificação das artes liberais que Marziano Capella elenca como
sendo a Gramática, a Retórica, a Dialética ou Lógica, a Aritmética,
a Geometria, a Astronomia e a Música. Como se observa, nessas sete
artes liberais estão excluídas as artes figurativas e a arquitetura.
Esse esquema das sete artes liberais é herdado pela Idade Média
e compõe o Trívio e o Quadrívio curriculares. Com o surgimento das
universidades no século XII, Filosofia, Direito e Teologia consolidam-
se como novas matérias junto àquelas liberais. Distinta delas, temos as
sete "artes mecânicas", como definido por Ugo San Vittore: lanificio,
armadura (arquitetura, escultura, pintura aí incluídas como subalternas),
navegação, agricultura, caça, teatro e medicina. Temos, portanto, uma
divisão entre as artes liberais, que dependem do "espírito", e as artes
mecânicas ou servis, que dependem do corpo, da mão. Em muitas
2Sobre isto cf. BRANDÃO,
Carlos Antônio Leite. escolas ensinavam-se a poesia e a música, mas as outras artes figurativas
"Transdisciplinaridade eram aprendidas nas corporações de ofício, fora dos currículos e das
e Humanismo: Além e
Aquém das disciplinas".
"disciplinas". Os manuais que servem para instruí-las são apenas de
Interpretar Arquitetura, Belo caráter técnico e normativo de procedimentos e nunca ligam as artes
Horizonte, 2002, v. 3, n. 5, p.
7-14. Acessado pela intemet:
umas com as outras ou com a filosofia, a ciência ou as "artes liberais".
<www.arq.ufmg.briia>. Dessa forma, não há propriamente uma estrutura ou ciência das artes,

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A INVENÇÃO DO CAMPO DISCIPLINAR DA ARQUITETURA

englobando-as dentro de um sistema disciplinar.


O Renascimento altera este quadro e prepara o surgimento do
sistema moderno das artes na medida em que muda a posição que
elas assumiram até aí e acrescenta novas perspectivas, conteúdos e
significados nos seus estudos. Em particular, ele liga as artes figurativas,
cuja afirmação se dá a partir de Cimabue e Giotto nos séculos XII e
XIII, e a poesia através de uma releitura do utpicturapoiesis, de Horácio.
A meio caminho entre o Medievo e a Idade Moderna, Pintura,
Escultura e Arquitetura aparecem no quattrocento entre as artes liberais
e as artes mecânicas e se ligam intensamente seja entre si, seja com a
literatura, com a ciência e com a cultura clássica, como se exemplifica
magistralmente na produção de Alberti e Leonardo. Essa afirmação
das artes figurativas como "liberais" da-se entre os séculos XIV e XVI
e permite dar-lhes o status mais nobre antes reservado à Retórica, à
Poesia e à Música, associarem-se mais estreitamente com as ciências e
com a matemática e separarem-se do artesanato. É o caso, por exemplo,
de Brunelleschi que distingue sua atividade da do artesão e do canteiro
de obras. Enquanto liberais, as artes figurativas são vistas como artes
mais intelectuais do que mecânicas na medida em que são, como diz
Vasari, "artes do desenho", do que originará o termo "belas artes". E,
como tal, o seu aprendizado desloca-se, lentamente, das oficinas para as
academias. Uma expressão significativa disso é a criação, em 1563, da
Academia de Arte de Florença, separando-se da Associação de Artesãos
e fornecendo um curso regular de instrução que incluía a geometria,
a matemática e a anatomia. Mesmo que ainda não se constitua aí o
moderno sistema das cinco artes, estas se afinam entre si e, ligando-
se à literatura e à ciência, separam-se dos ofícios e dos artesãos. Será
a França do século XVII, a querelle entre os antigos e os modernos,
a emancipação das ciências naturais e a reformulação do conceito de
progresso humano que separarão Arte e Ciência e os campos da beleza,
da verdade e da moral, tal como estabelecido em Kant. Essa separação,
calcada na idéia de progresso e acúmulo de conhecimentos inexistia no
Renascimento, na Idade Média e nos Antigos.'

2. Contribuições renascentistas para a "invenção" da disciplina da


arquitetura
3Para um estudo sobre
Se a constituição madura do campo disciplinar da Arquitetura os agrupamentos em que
só ocorrerá no século XVIII quando da consolidação do agrupamento a Arte e a Arquitetura se
encaixaram antes do século
moderno das artes, pensar a Arquitetura como disciplina no XVIII convidamos à leitura
Renascimento só pode ser visto como um momento proto-moderno, do capítulo sobre "O sistema
moderno das artes" em
quando ela não mais se enquadra nos agrupamentos medievais enquanto KRISTELLER, Paul O. Concetti
arte mecânica ou subalterna - na medida em que foi aproximada das rinascimentali deruomo e
artes liberais do espírito e do desenho, como em Vasari - mas ainda altri saggi. Trad. Simoneta
Silvestroni. R/onze: La Nuova
não adquiriu a constituição autônoma que a distinguirá das ciências, Italia, 1978.

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CARLOS ANTÔNIO LEITE BRANDÃO

da moral e das demais artes. Cumpre-nos estudá-la nesse intermezzo e


dar a ver em que medida se altera o local que ela ocupa na cultura e no
saber diante do medievo e quais as contribuições que ela, se examinada
neste novo local cultural, fornece para a nossa produção e seu estatuto
disciplinar na contemporaneidade. Sua "fraca" ancoragem disciplinar
no Renascimento permitiu-lhe avanços e conexões com outros campos
do saber e da cultura responsáveis pela revolução empreendida pelo
quattrocento. Da mesma forma, talvez cumpra-nos, hoje, enfraquecer
um pouco os limites disciplinares de nosso ofício, tal como também
feito por Le Corbusier no Por Uma Arquitetura, de maneira a torná-lo
mais permeável a novas conexões e avanços e a pensar a arquitetura não
como tendo fim em si mesma, mas sendo instrumento de uma vida mais
plena e mais feliz.
Já dissemos que, enquanto "disciplina" o local que a Arquitetura
ocupa no Renascimento é intersticial, entre o medievo e o moderno. Isso
já nos diz que o campo disciplinar da arquitetura não foi propriamente
inventado e intencionalmente proposto, mas construído lentamente. Por
um lado, o Renascimento prepara esse campo; por outro, ele se recusa a
conter a Arquitetura plenamente dentro dele. A Arquitetura do século
XV preparava este campo justamente através do contágio com outros
campos, como as letras e as ciências. "Disciplinar" a Arquitetura dentro
de um campo significaria, portanto, arrefecer seu ímpeto e as causas de
seu novo status e sentido.
Como a Arquitetura vai construindo e delimitando esse campo
disciplinar? Creio que isto ocorre à medida que ela se constitui como ars
libera/is e para isto destaco aqui seis aspectos interligados. O primeiro
deles, já apontado acima, se dá em ela tentar trabalhar conceitos e
procedimentos inspirados na retórica. Mas, aliado a isso, ela será
reconcebida como um produto do "desenho", lineamentis como diz
Alberti no Livro I do De Re Aefficatoria, mais do que como prática
meramente técnica e oficinal. 4 Assim fazendo, ela ganha uma dimensão
intelectual e o arquiteto separa-se do artesão. Para isso, foi fundamental
a codificação da perspectiva de ponto central empreendida por Alberti
4 De modo similar se dá
e Brunelleschi. A perspectiva permite a simulação prévia daquilo que
a redefinição da pintura. será o objeto depois de construído e fornece a imagem de um produto
O De Picture, de Albert, antes de sua realização concreta. Ao simular um objeto prévio, um
diferindo das manualisticas
técnicas como os tratados "pré-objeto", funda-se o "projeto arquitetõnico", fruto da arte do
de C. Cennini e mesmo o de desenho e da maquete, e que serve como instrumento de controle
L. Ghiberti, define as etapas
do procedimento do trabalho para a realização de toda a obra. Assim concebido, o projeto (desenho,
pictórico associando-se à maquete) controla e disciplina a produção prática. Neste sentido, a
matemática e à ótica, de um
lado, e à retórica, de outro. disciplina arquitetõnica começa aí, constituindo modos de controle e
Sobre isto e sobre a Arte e orientação do fazer e do ofício. No século XV, a representação deste
Arquitetura em Albert', cf.
BRANDÃO, Carlos Antônio projeto ainda se limitava à realização de plantas, esboços, maquetes
Leite. Quid Tum? O combate e alguns detalhes. A disseminação do corte ou projeção ortogonal,
da arte em Leon Battista
Alberti. Belo Horizonte:
proposta por Alberti no De Re Aedificatoria e ampliada no século XVI,
Editora da UFMG, 2000. contribui para aumentar este instrumento de controle da prática. O

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A INVENÇÃO DO CAMPO DISCIPLINAR DA ARQUITETURA

corte já ocorria entre os arquitetos alemães, cujas corporações se ligava


mais à dos pedreiros do que as italianas, mais ligadas aos artistas. Mas
é no Renascimento italiano que ele vai ganhar uma importância maior,
distinguir a representação arquitetônica da representação pictórica e
conferir ao desenho uma especificidade própria ao destino construtivo
da Arquitetura. Esta autonomia da dimensão do desenho, sua
complexificação e seu entendimento como instrumento de especulação,
de afinamento com as outras artes e ciências, e de controle da totalidade
da obra a partir de uma arché, de um profissional que controla todas as
fases e aspectos da construção de um edifício, é o segundo ponto a ser
destacado nesta constituição do nosso campo disciplinar.
Um terceiro ponto refere-se à dotação de um corpus teórico e
científico a reger a prática profissional. Na Idade Média, tínhamos
uma manualistica dedicada a estabelecer procedimentos oficinais e
técnicos a serem repetidos. O Renascimento procura conferir uma
linguagem à Arquitetura, regras abertas e capazes de serem impressas,
divulgadas e interpretadas por aqueles que têm acesso aos livros que
as contém. O termo latino disciplina vem do grego gccOrwa (estudo,
ciência, conhecimento) e designa "uma ciência enquanto objeto de
aprendizagem ou de ensinamento". 5 Constituir uma disciplina implica
em definir parâmetros, conceitos, limites, procedimentos reguladores
e um repertório determinado capaz de ser transmitido, aprendido
objetivamente e modificado, tal como ao falarmos nos apropriamos de
um universo linguístico pré-determinado pela tradição mas que usamos
livremente. Eis um aspecto crucial nesses primórdios da fundação do
campo disciplinar da Arquitetura: dar aos escritos, ditos e procedimentos
uma linguagem passível de ser escrita, transmitida e aprendida de modo
universal e não restrito ao canteiro e à oficina. A teoria da arquitetura,
cujo primeiro exemplar moderno creio ser o De Re AedOcatoria, de
Alberti (1452), surge como instrumento de libertação do arquiteto na
medida em que ele pode aprender os grafemas, as palavras, a gramática
e a sintática de sua atividade e dar-lhe a fala própria ao seu estilo. A
teoria foi, portanto, instrumento fundamental para libertar o arquiteto
aprendiz do seu mestre e da mera repetição de procedimentos herdados.
Essa liberdade instituída no século XV se faz também sob o nome,
aparentemente avesso, de "disciplina". Constituir um corpus científico,
e não meramente técnico ou aplicado, para a Arquitetura; dotá-la de
uma linguagem compartilhada por muitos, de pretensões universais
e aberta para ser apropriada de forma diversa pelos que a utilizam,
como em Palladio, foi passo decisivo para estabelecermos um campo
disciplinar próprio. Como nos dois primeiros pontos, também este
aspecto permite à Arquitetura ser considerada de forma mais "abstrata",
mental, científica, e não meramente a reboque das realizações práticas
ou dos parâmetros dos arquitetos. Enquanto "disciplina" ela ganha uma
dimensão autônoma, não limitando-se a homologar as práticas oficinais 5 ABBAGNANO, Nicola.
Dizionario di Filosofia. Milano:
e podendo, inclusive, criticá-las e mudá-las. Ainda segue, a meu modo TEA, 1993. p. 260.

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CARLOS ANTÔNIO LEITE BRANDÃO

de ver, sendo este um dos maiores papéis das escolas, universidades e


teorias da arquitetura: desafiar a prática e não meramente codifica-
la, descrevê-la ou reproduzi-la. Ao dar uma dimensão intelectual
e científica à Arquitetura, a teoria desdobra-se como crítica, como
história e como corpo de saber estabelecido e universal a enformar,
criticar, parametrizar, dar sentido e servir como alteridade para a prática
empírica, e vice-versa.
Chegamos então ao quarto ponto que divisamos como constittíinte
deste momento em que se inicia a construção da Arquitetura enquanto
disciplina. Por dar-se o passado da antigüidade com o qual procura
dialogar para pensar seu próprio presente, a arquitetura renascentista
se pensa dentro de uma tradição e de uma dimensão histórica, a qual
não copia, mas interpreta. Ela constrói seu presente sem pretender
o radicalmente novo e sem copiar o passado, mas dialogando com
ele e diferindo-se dele. Assim, por exemplo, Vitrúvio é retomado e
problematizado, compreendido lá no seu tempo mas que deve ser refeito,
reinterpretado ou mesmo superado e contradito diante das necessidades
do presente ou do exame direto das ruínas antigas que, muitas vezes, não
eram conformes ao que ele escrevera ou até o contraditava. É isto que
distingue o modo com que Alberti o lê e o critica, como se exemplifica
no início do Livro VI do De Re Aedificatoria, e o modo como ele era
visto na Idade Média. Importa-nos, sobretudo, verificar que a nossa
atividade arquitetõnica passou a ser considerada inserida dentro de uma
tradição e de uma história e que isso foi fundamental para estabelecer
o universo disciplinar no qual nossos atos projetuais e construtivos são
inevitavelmente lançados e obrigados a interlocutar.
Onde se materializa esse universo teórico e histórico, essa
linguagem e essa tradição relativos à construção do espaço construído
e com os quais aprendemos, nos libertamos e nos lançamos ao exercer
nosso oficio?, Nas cidades e nos livros. A cidade permite e cria a
linguagem, seja ela escrita, falada ou numérica. Ela é a guardiã da
linguagem, a memória das falas e o arquivo e troca das experiências
e tradições. Ela se constitui como o lugar da memória, da ciência e da
técnica e, portanto, é, por excelência, o território onde as diversas artes,
mecânicas ou liberais, podem se disciplinar. É nas cidades — com sua
vida urbana e seu palimpsesto de ruínas e períodos históricos, correntes
e tradições diversas superpostas ou colocadas lado a lado, passíveis de
serem medidas, comparadas, analisadas, tal como Brunelleschi diante
do Pantheon ou Alberti ao fazer o levantamento do fórum romano do
Descriptio Urbis Romae que temos o amálgama com que a Arquitetura

se constitui enquanto disciplina. Não que as cidades ou ruínas não


existissem antes. O que muda no século XV é aplicar sobre as mesmas
coisas que existiam na Idade Média, tal como o tratado vitruviano ou
os livros de Cícero, um novo olhar, exploratório, filológico, histórico,
hermenêutico, heurístico e prospectivo. As ruínas não são materiais
nostálgicos ou inúteis, mas campos onde exercer nossa capacidade de

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A INVENÇÃO DO CAMPO DISCIPLINAR DA ARQUITETURA

conhecer e recolher as lições com as quais construir o presente e o futuro.


A cidade é vista, assim, como objeto histórico, produto da história
humana e não divina, fruto de nossas ações e decisões, território em que
a humanidade se documentou através de obras e no qual eu documento
o meu presente, a capacidade do meu ingegno e da minha ação criadora,
seja como indivíduo seja como corpo social. Essa cidade como
produção e expressão humana, território privilegiado para o comércio
de mercadorias e idéias e para a constituição de um mundo público
no qual eu me liberto, é o local da fala, do diálogo, do aprendizado e
da experiência do humano e do histórico. "O ar das cidades liberta",
dizia-se já na Idade Média. Sem este ar a disciplina da Arquitetura não
poderia surgir. Pois ela é, enquanto teoria e história, criação tipicamente
citadina e só poderia avançar num momento em que a dinâmica urbana,
o homem ativo e o cidadão substituíssem o homem contemplativo e o
servo do mundo feudal. Sem a cidade, não seria possível a constituição
de uma ciência da arquitetura ensinável e universalizável, não seria
possível sua abordagem teórica e sua experiência histórica, não seria
possível sua futura constituição como disciplina.
Mas dissemos que também os livros materializam este universo
teórico e histórico que berça o campo disciplinar da Arquitetura. A
invenção do papel, seja para a imprensa de Gutemberg seja para o
desenho do arquiteto em substituição aos papiros e pergaminhos de
difícil e cara fabricação, foi decisiva para nosso tema. Até aqui, era difícil
e oneroso desenhar projetos pois o suporte material impunha uma série
de limitações desde o tempo até os custos por ele requeridos. Obrigados
a uma extrema economia, as especulações e registros teóricos eram
escassos, a história dos projetos era rasurada para dar espaço a novos
desenhos, a constituição do campo documental era restrita e o próprio
desenvolvimento de abstrações e especulações teóricas ou imaginativas
era proibitivo. Sem a invenção da imprensa e do papel que permitirá a
circulação mais barata dos livros e a libertação do demorado, custoso e
impreciso trabalho dos copistas, a teoria não pode se universalizar e nem
ser acessível ou aprendida fora dos canteiros e oficinas. Na medida em
que a publicação e o acesso a livros ficam facilitados, torna-se possível
esta universalidade e transmissibilidade da linguagem e a constituição
de um público e de interlocutores a compartilharem um determinado
campo do saber. Sem este público e sem esta acessibilidade universal,
um campo disciplinar e uma comunidade científica não restrita aos
muros das universidades e oficinas não poderiam existir. É essa invenção
da imprensa e do papel, seja para o desenho do arquiteto seja para a
produção e divulgação de suas obras de modo mais universal e liberto
do trabalho impreciso e restrito dos copistas, o sexto e último aspecto
que trazemos aqui para pensar o papel do Renascimento na constituição
do campo disciplinar da Arquitetura que futuramente se incluirá no
moderno sistema das artes.

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CARLOS ANTÔNIO LEITE BRANDÃO

3. Contribuições renascentistas para a indisciplina da arte e da


arquitetura

Acima vimos algumas contribuições oferecidas pela Renascença


para a constituição futura do campo disciplinar da Arquitetura, tal
como ela será compreendida no moderno sistema das artes. Contudo,
dissemos que isto não recobre toda a Renascença pois é justamente ao
não definir-se rigidamente dentro de uma determinada fronteira que a
arquitetura do quattrocento deixar-se-á contaminar por outros campos
tais como a ciência, a matemática, a retórica, a literatura clássica, os
studia humanitatis e as demais artes. Nesta última parte de nosso estudo
examinaremos como a invenção na arquitetura do Renascimento se
deu justamente a partir deste contágio e de ser seu campo difuso.
Tomaremos apenas dois autores citados em nossa introdução, Alberti e
Leonardo. No primeiro deles veremos como que a visão do mundo das
letras e a visão do mundo das formas arquitetõnicas se compenetram,
se fecundam e se estruturam em contribuição recíproca. É uma visão
transdisciplinar, que está além ou aquém das próprias disciplinas, o
que permitirá à arquitetura, à gramática do toscano vulgar, ao visível
e ao legível, disciplinarem-se reciprocamente e constituírem um corpus
de saber transmissível e ensinável. Em Leonardo, partiremos de seus
trabalhos mais propriamente técnicos e examinaremos a interrelação
entre arte, ciência e técnica a fecundarem-se reciprocamente e a
mostrarem como a emergência do novo em um determinado campo
ocorre quando dirigimos nossos olhares para fora dele e exercermos
nossa capacidade de tradução interdisciplinar.

3.1. Alberti: gramática e arquitetura

No seu tratado sobre Arquitetura, Alberti tenta compreendê-la


através do leigos, das palavras e das letras. Esse era o maior desafio a
ser vencido: traduzir os campos técnico, funcional, visual e subjetivo da
arquitetura para o mundo das letras, no qual aqueles não poderiam ser
deformados pelas imperfeições dos copistas. Ao fazer essa tradução, a
realidade poliédrica e metamórfica da Arquitetura recebe uma estrutura,
um sentido, uma teoria que, substituindo os manuais técnicos dedicados
a descrever procedimentos, dota a arquitetura de uma "linguagem" e de
uma liberdade antes inexistentes. Tendo suas leis e formas traduzidas
em palavras e letras, a arquitetura tornou-se passível de ser aprendida
por todos de modo livre e independente, não subordinando-se mais à
mera transmissão oficinal do saber do mestre para o aprendiz.
Recorrer às letras e aos studia humanitatis foi necessário para
unificar os vários aspectos referentes ao objeto examinado, formulá-
los e ordená-los segunda uma coerência lógica e conceitual capaz
de providenciar uma terminologia precisa e um método seguro que

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A INVENÇÃO DO CAMPO DISCIPLINAR DA ARQUITETURA

Ornamento para Edifício Público


Secular, de Leon Battista Alberti

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73
CARLOS ANTÔNIO LEITE BRANDÃO

6 ALBERTI, Leon Battista. De não se encontravam em Vitrúvio "uma vez que ele escreveu de modo
Re Aedificatada/L'architettura
(a cura di Renato Bonelli e
incompreensível para nós e é quase como não estivesse escrito nada". 6
Paolo Portoghesi). Texto latino Alberti descreve os elementos das colunas comparando-os com
e trad. Giovanni Orlandi. as formas das letras e vendo-os como litterae esculpidas nas pedras e
Milano: 11 Polifilo, 1966. Livro
VI, I, p. 441. traduzíveis na bidimensionalidade de um "L", de um "C", de um "C"
7 Cf. ALBERTI, Leon
invertido ou de um "S".' Em tais figuras, Alberti imagina encontrar as
Battista. De Re Aedificatozia/ "letras" do alfabeto com que comporá as "frases" da Arquitetura. Sugere-
L'architettura (a cura di se aí um procedimento literário e gramatical para o arquiteto desenvolver
Renato Bonelli e Paolo
Portoghesi). Texto latino a composição das ordens, não apenas por ver as "formas" como "letras",
e trad. Giovanni Orlandi. mas, sobretudo, por procurar encontrar-lhes o alfabeto universal, ao
Milano: 11Polifilo, 1966. Livro
vu, 7, p . 569. qual elas recorrem para "escreverem-se", e interpretar a Arquitetura
como linguagem provida de grafemas e gramá_tica 8. Associando formas
8 Como a goteira e os mútulos,
cuja forma é descrita como arquitetõnicas às letras, seu texto prescinde de desenhos e figuras, de
um "C" ou como um "C incerto rigor e clareza diante do trabalho dos copistas. Seja exigindo
invertido", e as volutas jenucas
cujo perfil é um "S". Cf. que estes escrevam os números por extenso e evitem desenhos, seja
ALBERTI, Leon Battista. De vendo as formas como letras e as letras como formas e instituindo o
Re Aedificatoriall'architettura
(a cura di Renato Bonelli e
alfabeto da modenatura das colunas, Alheai investiga a capacidade de
Paolo Portoghesi). Texto latino as litterae compreenderem a realidade da arquitetura de forma menos
e trad. Giovanni Orlandi.
Milano: II Polifilo, 1966. Livro
equívoca que o "desenho". Assim, ele funda uma "língua edificatória",
Vil, 9, p. 593-597 passim e VII, uma gramática e uma sintaxe capazes de fornecerem
12, p. 623.

' Cf. MOROLLI, Gabriele; ...um código geral de comportamento estético cujas malhas fossem tão
GUZZON, Marco. Leon Battista quanto clúteis, amplas e fecundas de implícitos
rigorosas, claras e explicitas
Alberti: i nomi e le figure, p. desenvolvimentos. [...] Em resumo, Alberti forjava um lingua, deixando
11. Segundo Morolli, talvez
sobrestimando um pouco o maieuticamente aos outros a missão de traduzi-la e multiplicá-la em palavras. 9
poder da palavra em Alberti, o
autor atesta uma "fiducia tutta
umanistica nella parola, nel
Pelas litterae constrói-se uma "lingua". Por esta lingua, o que é
sapiente e potente strumento aparentemente pura forma é subtraído do acidental - seja da imagem
della lingua che, grazie alla
sua versatilità e perfezione, exterior, seja dos copistas ou das interpretações - e insere-se numa
riesce a dare conto di ogni objetividade e universalidade mais precisas e claras do que a frágil
aspetto della realtà, di ogni
branca del sapere (e, quindi,
terminologia Vitruviana. A Arquitetura é, em Alberti, matéria quase
anche dell'architettura), orto-gráfica.
rifuggendo per giunta da
tutti quegli equivoci che le
Simetricamente à visão da arquitetura como escritura, também
ratfigurazioni schematiche as letras serão consideradas como formas e não apenas como elementos
specialmente di edifici, invece, gramaticais servindo à expressão de uma idéia. O melhor exemplo
non riescono il piú delle volte
ad evitara." Cf. MOROLLI, do "modo arquitetõnico" com que as letras são apreciadas por Alberti
GUZZON. Leon Barrista encontramos na Grammatichetta, a primeira gramática do vulgar, escrita
Alberti: i nomi ele figure, p.
10. Sobre esta relação entre o por volta de 1435-1438, e que foi precedida pelo Ordine delle laettere
"ornamento" e a "escritura", pella lingua toschana, pergaminho manuscrito' da Biblioteca Riccardiana,
Damisch salienta que o
ornamento albertiano procede em Florença. Nessas duas obras, Afinai começa a organizar o toscano
de "un ordine strettamente em uso e a dotá-lo da mesma dignidade que se atribuía ao latim,
grafico, se non orto-grafico, e
che appartiene in quanto tale única lingua considerada herdeira do grego e do hebraico, perfeita,
a un livello d'articolazione unitária, imutável e dotada de regularidade tal que poderia ser pensada
anteriore, in termine
ontologici, a quello stesso
gramaticalmente e até confundida com a própria gramática. O mesmo
della parola." DAMLSCH. motivo levou-o a escrever tanto em latim como em vulgar e a organizar
Comporre con Ia pittura, P. concursos literários em vulgar, como o polêmico Certame Coronario, de
190.

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A INVENÇÃO DO CAMPO DISCIPLINAR DA ARQUITETURA

Convergência de quatro, dois e três


arcos sobre o capitel, segundo Leon
Battista Alberti

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CARLOS ANTÔNIO LEITE BRANDÃO

1441. Esse esforço era não apenas artístico ou literário, mas sobretudo
político. Era através do vulgar que os conteúdos humanistas poderiam,
segundo Alberti, alcançar uma penetração menos restrita a um círculo
aristocrático e satisfazer seu propósito exposto no tratado Della
Famiglia, de preferir "ser mais útil e servir a muitos do que a poucos".
Conferir uma gramática ao vulgar é análogo à constituição de uma
linguagem e de uma teoria para a Arquitetura. Tal teoria, como a da
pintura no De Pictura (1435), é concebida como metáfora da gramática
e da retórica pensadas simultaneamente pelo humanista. Um espírito
comum as atravessa e Alberti foi, provavelmente, o primeiro gramático
a estabelecer relações significativas entre a arte da palavra desenvolvida
nos studia bumanitatis e as artes figurativas.
A aproximação e analogia entre a palavra e a imagem, entre as
humanidades, a pintura e a arquitetura, fornece a chave da organização
das letras e suas relações recíprocas, tanto na Ordine delle Lettere quanto
na Grammaticbetta: a forma, a qual inclui também alguns sinais gráficos
indicativos da pronúncia. A Ordine delle lettere apresenta a seguinte
ordem inicial:

n u m
1 s f
c e o
b d v
P g g
a x z
ç ch ghio
10 Por impossibilidade de
representação gráfica, Na Grammaticbetta, a disposição varia apenas na inversão da
salientamos que os h desta terceira e quarta linha e na introdução do b ao lado do v, na quinta.
última linha seguindo o
c e o g, aparecem como Vejamos:
sobrescrito no pergaminho da
Riccardiana para distinguir,
respectivamente, a pronúncia 1
velar surda e velar sonora.
Da mesma forma, o ç desta
linha indica a "africata" c e o
dental surda. Sobre isso e 1 s f
para maiores detalhamentos
da ordenação formal das d b v
letras cf. ALBERTI, Leon
Battista. Grammatichetta e
P g g
altri scritti sul vol gare (a cura
a x z
di Giuseppe Patota). Roma: ch
Salerno, 1996. p. xxv-xxvii e
p. 13 e PATOTA, Giuseppe.
Lingua e linguistica in Leon A ordem adotada vai das letras formalmente mais simples às mais
Battista Alberti. Roma: complexas, segundo as vê o humanista. As letras da primeira linha têm
Bulzoni, 1999. p. 71.
uma haste curta simples (i), com um apêndice à direita (r) ou cortada (t) .
11No manuscrito da As da segunda linha, são as letras formadas pela união de duas ou três
Grammatichetta, só este h
aparece como sobrescrito. hastes curtas (n, u, m). As da terceira linha da Ordine delle lettere são as

76
A INVENÇÃO DO CAMPO DISCIPLINAR DA ARQUITETURA

letras formadas por hastes longas simples (/), com apêndice à esquerda
(s) ou cortada (f), e as da quarta linha são as letras formadas por linhas
curvas totalmente abertas (c), parcialmente abertas (e) e totalmente
fechadas (o). Na Grammatichetta a ordem é aperfeiçoada e Alberti
prefere abrir com 4 s, f a série de letras formadas com hastes longas e
compostas que no texto anterior era interrompida pelas letras em linha
curva. Na quinta linha das duas versões encontramos letras compostas
por semicírculos combinados a hastes longas ou traços ondulados
dirigidos para cima (b, d, v). Quando os semicírculos combinam-se com
hastes e traços dirigidos para baixo temos as letras da sexta linha (p, q,
g). As letras formadas por traços diagonais ocupam a sétima linha (a,
x, z). As duas tabelas concluem com as letras compostas por união ou
compressão de duas outras: ç, ch, gh.
Vimos no De Re Aedificatoria, ao descrever os elementos da
coluna, que o literato aflorara no arquiteto. Prestando atenção ao
aspecto material da escrita, ordenando as letras pela forma e dispondo-
as em colunas e linhas conforme seu parentesco morfológico, vemos
aparecer o artista no literato. Ele vê o signo alfabético não apenas como
índice de um som ou uma idéia mas também como matéria e forma em
que podem ser aplicadas, por exemplo, a geometria, a matemática e a
arquiteturau. Quando Alberti elabora o Sepulcro Rucellai, as letras entram
na arquitetura de forma tão precisa e determinante quanto a arquitetura
entra nas letras. O legível e o visível, a idéia e a forma material, o
mundo do pensamento e o mundo construído, as humanidades e a
Arquitetura compenetram-se de tal modo que fica impossível distinguir
onde termina um campo e começa o outro. Diluídas as fronteiras dos
campos e disciplinas, estes passam a fecundarem-se reciprocamente,
deixarem-se contaminar uns pelos outros e adquirirem novas formas
geradas deste contágio. Contaminada pelas humanidades, a Arquitetura
torna-se outra e é pensada em novas chaves. E essa novidade, repita-
se, surge não pela inspiração das musas ou ex nihilo, mas da "tradução"
-

arquitetõnica da tradição e linguagem próprias a outro universo, como


o das humanidades.
Criticamos aqui, simultaneamente, dois vícios comuns aos
arquitetos e urbanistas de hoje. Em primeiro lugar, exigimos a
"tradução" da lingua e do campo, e não sua importação pura e simples
para dentro do território propriamente arquitetõnico e urbanístico. É
freqüente o vício de importar teorias, linguagens e procedimentos de 12 Como diz Gomi, Albert
acolhe o signo alfabético como
outros campos e trazê-los, sem qualquer tradução, para o mundo da "un'occasione stilizzata di
arquitetura. Isso gera efeitos catastróficos, como confundir a Arquitetura rappresentazione geometrica".
com a promoção de edifícios, imaginados ou realizados, sem qualquer GORNI, Guglielmo. Leon
Battista Alberti ele lettere
compromisso com a realidade construtiva e com os contextos físicos e dell'alfabeto. p. 275-276
sociais. Ou, então, perder o discurso da arquitetura e do urbanismo e apud PATOTA, Giuseppe.
Introduzione. ALBERTI,
substituí-lo pelos discursos do técnico, do economista, do sociólogo, Leon Battista. Grammatichetta
do filósofo, do estatístico, do crítico de arte ou do advogado, por e altri scritti sul vol gare (a
cura di Giuseppe Patota).
exemplo. Essa "importação" é o contrário da operação albertiana pois Roma: Saiamo, 1996. p. avi.

77
CARLOS ANTÔNIO LEITE BRANDÃO

retira-lhe os elementos fundamentais: a exigência da interpretação;


a tradução e apropriação devida e própria a um campo disciplinar
com suas especificidades e tradições que não devem ser abolidas mas
transformadas e enriquecidas, tal com o vulgar pelo contato com o latim
e vice-versa; e o firme propósito de produzir um conhecimento não
apenas novo mas sobretudo útil para a construção de um mundo e de
um homem melhores e mais felizes.
Em segundo lugar, criticamos aqueles que pensam ser a criação o
advento de uma novidade absoluta e completamente original, surgindo
do nada e desvencilhada de qualquer tradição. Parece-nos melhor
fazer o novo surgir de uma operação ao mesmo tempo hermenêutica
e experimental, onde a teoria e a cultura são dominadas amplamente e
onde os vários campos disciplinares são colhidos por um "olhar alado"
e por um pensamento poliédrico, metamórfico, múltiplo, rápido, leve
e interessado tanto em conhecer o mundo e a si mesmo quanto em
transformá-lo, desde sua dimensão espiritual e formal até sua dimensão
mais material e técnica. Pois uma dimensão se compenetra na outra e
tudo está em tudo: as humanidades estão na arquitetura assim como a
arquitetura está nas humanidades. Sem, contudo, se confundirem ou
abdicarem de seus discursos e propriedades. Trata-se, portanto, de uma
compenetração avessa a qualquer promiscuidade.

3.2. Leonardo: Arte, Técnica e Ciência

Do entrelaçamento de suas investigações empíricas com as


reflexões sobre textos científicos herdados, surgem as invenções e
desenhos anatômicos, mecânicos, hidráulicos, botânicos e cartográficos
de Leonardo antecipando grandes avanços científicos, tecnológicos
e artísticos, mas que não tiveram grande impacto entre seus
contemporâneos por permanecerem fora de circulação.
Os trabalhos gráficos e técnicos que estudaremos a seguir
mostram como inovações artísticas e arquitetônicas podem originar-se
fora do campo da Arte e da Arquitetura, como, por exemplo, ao desenhar
partes do corpo humano, estudar hidráulica e o movimento dos fluidos
e descrever máquinas em perspectivas explodidas ou axonométricas que
depois serão exportadas para a representação arquitetônica. A ciência
— entendida entre os renascentistas, a grosso modo, como descrição da
natureza exige técnicas representativas inéditas para dar conta dos

novos conteúdos do conhecimento e da nova natureza que se apresenta


ao olhar de Leonardo. Tais técnicas — entendidas como "habilidade" ou
destreza em se fazer algo — acabam por se transferir e configurar novos
símbolos e conteúdos expressivos, renovando a arte.
Os Desenhos de Igrejas (1487-1490) também comportam
um caráter eminentemente abstrato, geométrico e conceitual. Não
se referem a um objeto existente a ser descrito nem a um projeto
determinado encomendado por um cliente. São especulações formais e

78
A INVENÇÃO DO CAMPO DISCIPLINAR DA ARQUITETURA

técnicas acerca da planta central do edifício e da composição volumétrica


da igreja em busca de um ideal de perfeição matemática e simétrica.
Também neles a ênfase está nas linhas e no contorno da edificação e suas
partes principais, comunicando claramente ao espectador os princípios
compositivos que presidem o projeto e evitando-se os elementos mais
propriamente fenomênicos ou afeitos à sensibilidade, tais como as
variações de luz e sombra, que poderiam confundir aquela comunicação.
São também prospectivas de novos espaços para a razão moderna e para
a especulação de outras possibilidades estéticas, técnicas e funcionais
empreendida no Renascimento. Este caráter conceitual e especulativo é
reforçado pela presença de textos descritivos ou especulativos junto aos
desenhos, como ao verificarmos o esboço do desenho de uma máquina,
simulando uma perspectiva axonométrica, semelhante aos Desenhos
de Manivelas, de 1485-1488. Em parte, essa vizinhança se deve às
heranças deixadas pela ausência do papel de desenho, só inventado no
século anterior, o que exige economia e aproveitamento máximo dos
pergaminhos e do trabalho exigido para confeccioná-los. 13 Mas essa
proximidade física entre as representações estética e técnica mostra-nos
como estes dois universos caminhavam juntos e como a concepção da
forma edificada não se desprende do modo e dos trabalhos exigidos para
construí-la.
Os Desenhos de Crânios em Peifil e Corte (1489) são preciosos. O
sombreamento realça profundidade e volume, e as formas internas e
externas de nosso corpo são colocadas em relação e referência recíprocas.
Nesses desenhos, planta, corte, elevação, perspectiva e profundidade
são sintetizados de modo a dar conta da espacialidade interior, da
massa e do volume da caixa craniana. Correlacionam-se as várias
perspectivas e representações do mesmo objeto através de uma técnica
de representação anatômica que depois é transferida, ainda enquanto
técnica, para os desenhos de arquitetura e que, em seguida, atingirá a
própria concepção do espaço arquitetônico. Nesta época, pesquisava-se
intensamente modos de representar a seção e a perspectiva de um interior
redondo e os crânios desenhados por Leonardo lidam justamente com
esta dificuldade. Através da técnica de representação, com os eixos
ortogonais esboçados na "planta" do crânio e com o sombreamento do
desenho, Leonardo consegue a representação bidimensional de uma
realidade tridimensional, de um espaço interior e de um volume esférico
ou elipsoidal que, como veremos, ser-lhe-á utilissimo para descrever
espaços construídos como o das suas igrejas de planta central. O olhar
arquitetônico captura e representa a espacialidade interna e conduz o 13 Sobre a invenção do
papel de desenho no século
olhar do anatomista que descreve a cavidade craniana. A arquitetura, XIV e sua repercussão
como modo de olhar e estrutura em que os objetos e seres passam a nas representações da
arquitetura, cf. ACKER1VIAN,
ser vistos, difere do olhar do pintor naturalista e da arte figurativa. E é James. Origins, imitation,
justamente esta dimensão arquitetônica com que o mundo é visto em conventions: representation
sua varietà e em sua profundidade que distingue o olhar de Leonardo, in the visual arts. Cambridge,
Mass: Massachusetts Institute
seja como artista, seja como cientista. Descrever a natureza exige a of Technology, 2002. p. 27-65.

79
CARLOS ANTÔNIO LEITE BRANDÃO

imaginação e a invenção de novas técnicas representativas as quais


só podem desabrochar quando estão juntos o artista e o cientista; a
habilidade técnica com a capacidade de observar e descrever a natureza.
Quanto mais fiel a esta natureza, mais a imaginação é solicitada para
compor sua representação. Mas Leonardo vai além disso e muda o
próprio trabalho científico: a imaginação e a invenção servem, em
última análise, para que seu trabalho não se limite àquelas observação
e descrição e passe a especular sobre os mecanismos invisíveis da
natureza e do corpo humano, através daquilo que o desenho, e não
a simples observação empírica ou a leitura de tratados, é capaz de
sugerir. No Crânio Cortado, de 1489, reaparecem a mesma técnica
de sombreamento, a mesma correlação interior-exterior, o mesmo
poder sintético e especulativo do desenho. A descrição e a especulação
figurativa e discursiva estão juntas e deixam-nos ver a amplitude mental
em que se move o interesse do pesquisador.
O Desenho para Igreja de Planta Central (1507), prova nos -

como todas essas técnicas, inclusive aqueles dois eixos ortogonais


que estruturam a planta e a representação do espaço circular, são
transferidos e aplicados ao universo espacial no qual se desdobram
interesses equivalentes. O olhar arquitetõnico que se aplicara à anatomia
encontra aqui o objeto apropriado para realçar a volumetria e unidade
da edificação, e não seus elementos planos ou lineares; correlacionar
planta, elevação, corte e perspectiva dentro de uma representação
única; e descrever de forma privilegiada a espacialidade interior e a
massa do edifício. A bidimensionalidade do desenho passa a dar conta
da tridimensionalidade do real. Novas técnicas de representação são
exigidas por um conteúdo e interesse novos a pautarem a descrição
produzida por Leonardo. E, depois de formuladas como técnicas novas
da representação do edifício, passam a atingir a própria produção da
arquitetura, concebendo-a em termos de massa e volume. Prefacia-se
aqui a arquitetura monumental que dominará o século XVI substituindo
a arquitetura mais linear, plana e aérea, construída com base na repetição
de módulos, como a que caracterizara o século XV e, especialmente,
Brunelleschi.
Concluímos, portanto, que de um campo e uma intenção extra-
artística, como a do anatomista e botânico, tal como os concebemos
hoje, podem surgir novas técnicas, representações e conteúdos
artísticos. Reciprocamente, o olhar do artista pode fecundar os objetos
científicos, inquiri-los através do desenho como em Leonardo, e dar
origem a conteúdos e possibilidades que antes permaneciam ocultas. A
representação torna-se, assim, verdadeira "apresentação" de algo inédito,
de um mundo novo e de um conhecimento novo do mundo. Como bem
conclui James Ackerman em seu estudo sobre os desenhos de Leonardo,
se perguntássemos se sua visão do mundo era artística ou científica
nem ele próprio saberia responder. Essa distinção, que se firmará no
século XVII, sobretudo francês, era-lhe estranha pois Arte e Ciência

80
A INVENÇÃO DO CAMPO DISCIPLINAR DA ARQUITETURA

Regulagem de rios através de represas.


Leonardo, Codex Atlanticus.

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81
CARLOS ANTÔNIO LEITE BRANDÃO

transitavam num mesmo caminho que ainda não se bifurcara.


Um desenho convulso se insinua no trabalho técnico do Projeto
para Dique realizado por Leonardo em 1502. A atenção do "engenheiro"
não se centra propriamente no dique, mas no redemoinho formado pela
água diante daquilo que a barra. É um trabalho técnico, mas também
um estudo sobre o movimento dos fluidos. Também no Projeto de Canal
Ligando Florença ao Mar (1504), o trabalho não é apenas técnico. Feito
em sanguínea, ele se conclui num desenho quase abstrato, como as
manchas da pop-arte, sem uma mímesis ou uma descrição apurada do
projeto. São canais, mas também são nervuras, veias e linhas convulsas e
espiraladas que formam uma rede. Tal analogia não é gratuita: o próprio
Leonardo pensa nossas veias como rios e vice-versa.
Nos Estudos Hidráulicos (1507-1509), toda a atenção reside na
mesma hecatombe do movimento e na representação da passagem dos
torvelinhos líquidos que exigem também um desenho espiralado e uma
técnica convulsa. São as mesmas espirais turbulentas desenhadas e vistas
em gatos, dragões e homens em movimento. O olhar de Leonardo vê o
fluxo constante de imagens e seres em suas diversidades caóticas às quais
o espírito está exposto e cuja representação melhor se dá no desenho
do que numa razão que se pretenda'universal e de posse de verdades
fixas inabaláveis. Suscetível ao fenômeno do mundo, o espírito de
Leonardo se expõe lépido e sem peso, suspendendo os poderes do juízo
e passando a confiar na sua percepção do mundo. Essa "crença irrestrita
no mundo" é o ponto de partida de sua ciência e de sua arte, conduzida
pela idéia de um espírito que move e se modifica continuamente e não
pela de um espírito que se mantém como um puro e caduco pensar
metódico: também aqui Alberti prenuncia Leonardo. E também, talvez,
o ceticismo de Montaigne.
O desenho inferior desses Estudos Hidráulicos é quase
irreconhecível. São como manchas superpostas e imaginadas no
movimento da água feitas para compreender e "apresentar" o movimento
e o comportamento dos fluidos. Contudo, eles já apresentam o motivo, a
técnica e os mesmos movimentos que comporão o caos do Armagedon,
com o qual se preocupa Leonardo ao final de sua vida. O Caos, de 1513,
é preparado no trabalhos técnicos em que se estudava aquele movimento
dos fluidos. Nestes, se engravida o expressionismo e a subjetividade
trágica daquele desenho. A visão do Armagedon é a visão do artista
tf
prospetivada" na técnica, na hidráulica, na ciência e na descrição da
natureza. Como dissemos, nem o próprio Leonardo saberia dizer se
o cientista precede o artista ou se o artista precede o cientista. Arte,
técnica e ciência são um corpo só: é rio e veia ao mesmo tempo; é dique,
redemoinho e caos num espaço só.
Aplicando a habilidade técnica à ciência, Leonardo faz com que
esta ultrapasse seu discurso descritivo ou explicativo para conferir-lhe
um caráter especulativo, experimental e técnico. Aplicando a experiência
concreta da natureza, ou sua observação qualificada pela experiência

82
A INVENÇÃO DO CAMPO DISCIPLINAR DA ARQUITETURA

possível, Leonardo faz a Arte superar a imitação dos antigos, e mesmo


contemporâneos, e a obediência a preceitos manualísticos herdados
das oficinas. Com ele, como em Alberti, a Arte se torna modo de
conhecimento novo do mundo e construção de mundos possíveis,
captura de uma realidade mais humana do que divina e produção, não
apenas de um artefato ou objeto, mas do próprio espírito que deverá
habitar e percorrer, de modo lépido e sem peso, estes novos mundos
possíveis e os diversos campos disciplinares constituídos ou em vias de
se constituírem, como em nossos tempos.

BIBLIOGRAFIA

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KRISTELLER, Paul O. Concetti rinascimentali dell'uomo e altri saggi. Trad. Simoneta
Silvestroni. Firenze: La Nuova Italia, 1978.
MOROLLI, Gabriele; GUZZON, Marco. Lean Battista Alberti: i nomi e le figure.
Firenze: Alinea, 1995.
PATOTA, Giuseppe. Lingua e linguistica in Leon Battista Alberti. Roma: Bulzoni,
1999.

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