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Erinaldo Sales
Resumo Abstract
Este trabalho analisa a situação da arquitetura e da This work analyzes the situation of architecture and
poesia no âmbito das chamadas belas-artes a partir poetry in the context of the fine arts from the
das considerações de três filósofos alemães: Immanuel considerations of three German philosophers: Immanuel
Kant, Georg W. F. Hegel e Arthur Schopenhauer. Busca- Kant, Georg W. Hegel and Arthur Schopenhauer. An
se uma tentativa de entendimento de o porquê a attempt is made to understand why poetry is always in
poesia estar sempre numa posição elevada dentro da an elevated position within the hierarchy of the art
hierarquia do sistema das artes e a arquitetura figurar system and architecture is always at the base of this
sempre na base dessa hierarquia. hierarchy.
Palavras-chave: Sistema das artes; arquitetura; poesia; Keywords: System of the arts; architecture; poetry;
belas-artes; filosofia. fine arts, philosophy.
http://dx.doi.org/10.18830/issn.2238362X.n1.2018.6
A palavra grega para arte (τέχνη) e o termo nem todas com o mesmo grau de valorização. Além
equivalente latino (ars) não são relacionados desta divisão, o filósofo Cícero também fez uma divisão
diretamente ao que é chamado nos dias de hoje de das artes em artes grandes (artes maximae), como as
belas-artes. Aqueles dois termos se referiam a todo artes militares e bélicas; média (artes mediocres), que
tipo de atividade humana, desde o artesanato at as são as artes intelectuais, voltadas para a ciência, mas
ciências. Os antigos compreendiam a arte como o também a poesia e a eloquência; e menores (artes
que podia ser ensinado e aprendido. minores), como a pintura, a escultura, a música, a
‘atuação’ e o atletismo. A partir daqui, as artes vão
Em se tomando a perspectiva progressiva da história, passar a ter a rotulação de artes liberais e artes
ou, em outros termos, encontramos por volta do vulgares.
século V a.C uma das primeiras distinções de arte, com
Alcidamente, enfocando certos objetos que serviam Até aqui, temos esses dois tipos de artes: as vulgares
unicamente ao prazer. Tendo sempre algumas artes e as liberais. Platão fez também uma classificação,
(technés) voltadas para o prazer e para a beleza e embora sem muito destaque no que se refere a
outras para o uso prático, essa divisão vai permanecer modificações do que já estava em voga até o
em todo o progresso da história e dos estudos das momento, de maneira que temos dois tipos de artes
artes. em Platão: as produtivas e as imitativas. No entanto,
desde essa época, já há uma valorização da poesia,
Dentro desse aspecto duplo da arte, temos a oposição uma vez que há a inspiração direta das musas, que
entre atividades voltadas para o trabalho manual e eram as entidades a quem se atribuíam a capacidade
aqueles trabalhos que destacam um aspecto elevado de inspirar as criações científicas ou artísticas dentro
do fazer, embora, em geral, essas atividades da mitologia grega, e esse é o entendimento oriundo
englobassem tanto a construção de navios, de armas, de texto clássicos como os atribuídos a Homero.
de estradas, bem como uma escultura, uma pintura
ou mesmo um texto poético. Isso resultou numa Platão dá certo enfoque às artes que são voltadas para
separação inicial entre artes vulgares e humildes e os dois principais sentidos humanos, aqueles que têm
artes recreativas, que tinham por finalidade apenas o a capacidade de apreensão do fazer artístico, que são
deleite, sem um uso prático propriamente. Essa a visão e a audição, de maneira que, para este filósofo,
terminologia, como vimos, foi retomada durante a temos as artes divinas e as artes humanas, ou as artes
Idade Média, que nada mais fez do que dar da produção (a partir do trabalho fabricado) e artes da
continuidade à classificação que era feita no mundo aquisição (que tem a forma de disciplina, ou seja, nada
grego antigo. fabricam). A poesia assume um caráter divino, pois
falava diretamente aos deuses, e dos deuses para o
Outro aspecto importante a se destacar desde já é que homem. Nesse falar dos deuses e das musas, o que
algumas dessas artes ditas recreativas eram voltadas prevalecia era a inspiração do poeta. Quanto à
basicamente para dois sentidos do homem: a visão e arquitetura, ele a categoriza não como uma arte, mas
a audição, sendo desprezados todos os outros sim como um ofício, inserida dentro do conhecimento
sentidos. Do mesmo modo, essa divisão serviu de outras ciências e, por não ter esse caráter de
também para englobar as artes que, de acordo com elevação, de “conversa” com os deuses e as musas,
Cícero, contemplam a realidade com a alma e as artes ela é mais uma manufatura, como a tecelagem, do que
que simplesmente fazem ou empreendem algo. Por uma arte que eleve às virtudes humanas.
ter essa “contemplação” da realidade com a alma, a
visão adquire, desde já, um sentido de percepção mais Por sua vez, Aristóteles trata mais do fazer literário do
nobre, mais elevado, algo que será valorizado por que das artes propriamente ditas, enfocando a
quase todos os filósofos antigos e medievais, pois é a classificação das artes miméticas e privilegiando a
partir do sentido da visão, na contemplação de uma dimensão do o trágico como a maior dentre elas. Ainda
pintura por exemplo, que se reconhecerão os as assim, há uma divisão das artes em Aristóteles, quando
virtudes e os vícios dos homens. ele divide os fazeres (entendendo-se aqui as
“técnicas”, as artes) em dois tipos, as que usam a
Aqui é feita uma distinção entre as artes que servem matéria e as que comandam. Além disso, as artes são
para esse deleite, como pintar, modelar e cantar, em classificadas em função da imitação da natureza e da
oposição às artes que têm uma necessidade útil ou complementação da natureza. No entanto, a
prática, como a agricultura e a arquitetura, embora arquitetura ficava de fora da classificação das artes,
sejam, todas elas, perceptíveis pelos sentidos, mas pois não era considerada uma “bela arte”, como o
Fazemos então a seguinte pergunta, para entender a Hegel divide a sua estética em três partes: a primeira
posição da arquitetura em Kant: é possível estuda o ideal em si, a ideia do belo na arte; a segunda
encaixar/alocar a arquitetura, em Kant, num grau baixo estuda o ‘sistema’ das formas particulares, da maneira
das artes? Kant em seus questionamentos sobre a arte como se realiza na história: a simbólica, a clássica e a
está mais voltado para o belo no âmbito estético e romântica. A última escala é o sistema das artes
teleológico. particulares, que classifica o grau de expressão do
ideal: à arquitetura correspondente a arte simbólica;
Para Hegel, a arquitetura é, como a arte da construção, A poesia é a arte mais perfeita para Hegel, a primeira,
o início da arte em geral. A arquitetura constitui o início pois é atribuída à comunidade, ao ânimo e ao sujeito.
da arte, pois é a primeira a dar forma ao inorgânico, A poesia remete à interioridade que está unificada com
sendo anterior à escultura e à pintura. o espírito de maneira imediata. Ela corresponde ao
reino da representação, sendo o seu elemento o mais
Na arquitetura simbólica (a primeira arte rico, pois tem a liberdade de difundir-se pelo todo
historicamente), tem-se o que produz uma particular, sendo o seu conteúdo o espiritual em sua
necessidade para a arte, um tipo de arquitetura “determinidade”, torna-se uma figura livre, um todo,
autônoma, um fim em si mesma, por isso ela é com independência ou determinado com um desejo
simbólica. Dessa forma, esse tipo de arquitetura deve e com uma vontade.
ter um sentido para o espírito por ser uma obra
realizada por homens e, por isso, uma finalidade A poesia não tem uma precisão, ao contrário da
superior. Na arquitetura clássica, diferentemente da pintura, que representa o momento, mesmo que com
simbólica, ela é abstrata e serve fundamentalmente grande precisão. Para Hegel, a poesia é a forma mais
para um fim, cujo tipo de representação principal é o perfeita de arte, porque ela expressa o espírito na sua
templo, ou seja, a arquitetura religiosa. Arquitetura idealidade mais completa, e não a realização do ideal
romântica, à qual pertence a gótica, é a arquitetura da beleza com a conformidade entre o sensível e o
propriamente cristã, pois tem-se, como fundamento, espiritual. Seu material não aparece sensivelmente,
a casa fechada totalmente, excluindo o espírito do mas é trazido na aparição da imaginação. Para o
homem, recorrendo-se o seu ânimo para a devoção e filósofo, a poesia é a arte universal porque não se
afastando-se do mundo exterior. Uma vez que, para realiza por meio de nenhum material, e sim por suas
Hegel, a arte é a expressão do sensível e do divino, bem condições imateriais de se manifestar. Ela se afasta da
como a expressão da liberdade humana, ela deve forma de sensibilidade espiritualizada para se tornar
representar o que é livre em oposição ao que não é arbítrio. Dessa forma, a poesia se torna, para Hegel, a
livre, aquilo que apresenta resistência em relação à arte espiritual por excelência. Ela está mais próxima
Para o filósofo, a única matéria da arquitetura é a luta As arquiteturas, com os aspectos gerais comuns às
entre a gravidade (força) e rigidez. Em oposição, outras artes, apresentam conceitos próprios de beleza.
encontra-se na “série das belas artes”, está o drama A arquitetura, como estética de uma arte específica, é
(uma das categorias da poesia), pois este conduz ao determinada pelo que lhe é peculiar, ou seja, seus
conhecimento das mais importantes ideias. materiais e funções. A estética moderna estabeleceu
uma distinção categórica entre a arte e o artesanato
Nessa teoria das belas-artes de Schopenhauer, a ou ofício. Em seu início, as formas básicas da
poesia – ou as artes poéticas –, assim como as artes arquitetura e da escultura são idênticas, ou seja, na
plásticas, têm o objetivo de manifestar as Ideias, que medida em que a escultura aspira à
são os graus de objetivação da vontade. Essas Ideias monumentalidade, e na medida em que a arquitetura
são intuitivas, e, na poesia, a comunicação feita por aspira à significação simbólica e durabilidade, as duas
palavras é somente o conceito abstrato. Dessa forma, artes fazem uso comum do mesmo material: a pedra,
a poesia tem em seu domínio a vantagem de dotando-a de idênticos valores práticos.
comunicar Ideias em função da universalidade do
material de que dispõe. Opera os meios de que a Não podemos esquecer, contudo, a persistência da
linguagem possibilita para atingir na mente do leitor arquitetura, desde o início dos questionamentos de
a Ideia, o que confere na poesia o lugar do gênio para classificação a partir do século XVIII, em manter-se
Schopehauer. Por tornar ao leitor uma ideia inteligível evidente dentro do âmbito das artes e a sua
em função da objetividade que lhe confere a permanência como problema sendo reiteradamente
linguagem. Dessa forma, a poesia tem o poder de recuperado. Como escreveu Marta Llorente:
mover a imaginação por meio das palavras.
De algún modo, la arquitectura es, de
todas las artes definidas en el momento
Não há outra obra que não a poesia para conseguir
central del XVIII, la única en demorar su
realizar a manifestação da Ideia, e esta corresponde
crisis definitiva. Todas las artes han
ao grau mais elevado da objetividade da Vontade,
trazado ya sus episodios finales, la
como dito anteriormente, e a poesia é a única que
música ha cuestionado ya no sólo la
consegue comunicar as Ideias de maneira universal,
armonía sino la pertinencia de una
com esse caráter de universalidade e com um imenso tradición elitista, culta, y se ha vuelto
domínio de extensão. O objetivo da poesia, então, é hacia sus orígenes en las
elevar ao grau mais alto da objetividade da Vontade a manifestaciones espontáneas o hacia el
sua manifestação. Ela serve para a comunicação da mero ruido, incluso hacia el silencio; la
Ideia, feita também pelas ações do homem, e são pintura ha abandonado radicalmente el
1
LLORENTE Marta. In RODRÍGUEZ acompanhadas por pensamentos e afetos. soporte del plano ilusorio, derribando el
Carmen (Edición): Introducción a realismo matérico de la escultura,
la arquitectura: Conceptos Dessa forma, enquanto a história se manifesta e se invadiendo los espacios reales e incluso
fundamentales, 2000, p. 87. fundamenta na observação, fornecendo a ideia estableciéndose en el transcurso del
Disponível em: particular, fugidia e hipotética, a poesia oferece a tiempo a través de las exploraciones de
https:/ / dyaunet.files.wordpress.c verdade geral da Ideia, reforçando uma soberania da su acontecer, se ha disuelto en ellas; y la
om/ 201 6/ 07/ g- poesia quando comparada a outras manifestações literatura se fatiga elaborando el
introduccic3b3nalaarquitecturaco artísticas ou de conhecimento ou até mesmo de outras continuo escenario de su propia muerte y
nceptosfundamentales.pdf. áreas de conhecimento. disolución.1
Acesso em: 1 7 mar 201 5.
A arquitetura, ao elaborar os seus princípios estéticos, A comparação das artes torna-se problemática
torna-se, ao lado da música, uma das artes mais quando se deixa de fora do sistema os elementos
particulares, pois expressa a sua necessidade de rigorosos que as caracterizam, por isso a comparação
forma, por meio da geometria, em substituição aos de artes quase opostas, do ponto de vista funcional e
critérios das demais artes plásticas. Além disso, está prático, como a poesia e a arquitetura, adquire mais
também muito próxima dos pressupostos científicos, uma conotação de embate do que uma reciprocidade
ao tratar dos meios funcionais de utilização, por isso entre elas. Notamos, dessa forma, que a hierarquia
Separar as artes a partir dos aspectos materiais e BAYER, Raymond. História da Estética. Lisboa: Editorial
espirituais também não se sustenta, por indiciar uma Estampa, 1995.
separação dita metafísica, que acompanha a evolução
do ser humano ao longo da sua trajetória existencial. CURTIUS, E. R. Literatura Europeia e Idade Média latina.
Assim, a poesia, para muitos filósofos, como vimos, HUCITEC/Edusp, 1996
está associada sempre ao aspecto espiritual, ligados
e associados também ao gênio, como se este HEGEL, G. W. F. A Arquitetura. Tradução, introdução e
recebesse uma “inspiração divina”, sem entenderem notas de Oliver Tolle. São Paulo: Edusp, 2008.
que o arquiteto, ao conceber uma obra de arte
arquitetônica, também obtém, de alguma maneira, ___________. Filosofía del arte o Estética (verano de
essa ‘inspiração’, esse daimon, na qual se apresenta, 1826). Apuntes de Friedrich Carl Hermann Victor Von
ainda, uma distinção entre corpo e alma. Assim, Hegel Kehler. Universidade Autónoma de Madrid, Abada
se equivoca ao colocar a arquitetura na base de uma Editores, 2006.
hierarquia das artes, como se esta fosse a mais
degradada das artes e a mais material porque não há ___________. Cursos de Estética IV. São Paulo: Edusp,
representação do espírito nas obras de artes 2004.
arquitetônicas. Ele não levou em consideração, por
exemplo, os significados simbólicos mais cruciais que ___________. Lecciones sobre la estética. España:
cada uma delas representam. A poesia, para Hegel, é Mestas, 2003.
posta como arte soberana e universal, mas também
se equivocou ao considerar os aspectos limitantes que ___________. Cursos de Estética I. A idéia do belo
ela apresenta, como questões regionais de língua e artístico. 2º ed, São Paulo: Edusp, 2001.
cultura, ao contrário de outras manifestações
artísticas, como a música, a pintura, a escultura ou ___________. Cursos de Estética II. O desenvolvimento
mesmo a dança, que não necessitam da linguagem do ideal nas formas do belo artístico. 2º ed, São Paulo:
verbal para se manifestarem e serem entendidas. Edusp, 2001.
Começamos nosso questionamento a partir das ___________. Cursos de Estética III. O sistema das artes
considerações de Hegel em estabelecer uma particulares. São Paulo: Edusp, 2001.
hierarquia das artes, dentro de seu sistema, e tentamos
mostrar que, não somente Hegel, mas Kant e KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade de Julgar.
Schopenhauer (além de muitos outros filósofos) Tradução de Daniela Botelho B. Guedes. São Paulo:
mantém, em aspectos gerais, a mesma estrutura de Editora Ícone, 2009.
___________. Sobre a inspiração poética (Íon) & Sobre ___________. Fragmentos sobre a história da filosofia.
a mentira (Hípias Menor). Porto Alegre, RS: L&PM, 2007. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
___________. Critão, Menão, Hípias Maior e outros. ___________. Metafísica do belo. São Paulo: Editora
EDUFPA, 2007. UNESP, 2003.
___________. Hípias Maior. Lisboa: Edições 70, 2000. ___________. Sobre a visão e as cores. São Paulo: Nova
Alexandria, 2003.
___________. Diálogos. O banquete. Fédon, Sofista,
Político. Editora Abril Cultural, 1972, pág. 27. Coleção ___________. O mundo como vontade e representação.
Os Pensadores. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.
___________. A República. Introdução, tradução e SHINER, Larry. La invención del arte. Espanha: Paidos,
notas de Maria Helena da Rocha Pereira. 9ª edição. 2004.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s/d.
SOURIAU, E. A correspondência das artes: elementos
PLOTINO. Enéadas III-IV. Introducciones, traducciones de estética comparada. São Paulo: Cultrix/EDUSP,
y notas de Jesús Igal. Espanha: Editorial Gredos, 1985. 1983.