Você está na página 1de 95

ANTON1JIA~IQ1à ESCRITOS

~AM MA
18A 30 OOAHOAM MACHADO DE ASSIS

l.t\iliJtba§l(1A9Jl'WJ800S J?t%4tf_~V,·~E
IVIA 30 ciJAW80 . OSWALD DE ANDRADE

aQMMMfi~º .
~i~~
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
VIOMMURO 80JRAO
~~~1~J5AJO L~'Ãiel_~QffoR f·.
BIJ 301RAJO CLARICE LISP,L:CTOR •

~MiMiluE> GU~~.~~OSA
A80R 83ÃRAMIU0 GUIMARÃES ROSA

H>~51~hll8AB ,BASllfl~R_~ MA
BASILIO DA GAMA .

ffi'.l
Livraria Duas Cidades ffi'.l
VÁRIOS ESCRITOS

ANTONIO CANDIDO
LIVROS DO AUTOR

INTRODUÇAO AO MÉTODO CRITICO DE S1LVIO ROMERO,


Revista dos Tribunais 1 São Paulo, 1945. 2.a edição: O Mll'::-
TODO CRITICO DE SILVIO ROMERO, Faculdade de Filo-
sofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Bo- •
Ietim n. 0 266, 1963.
BRIGADA LIGEIRA, Martins, São Paulo ( 1945).
FICÇÃO E CONFISSÃO, Ensaio _sobre a obra de Graciliano Ra-
mos, José Olympio, Rio, 1956.
FORMAÇAO DA LITERATURA BRASILEmA (Momentos de•
cisivos) , 2 vols., Martins, São Paulo, 1959.
O OBSERVADOR LITERÁRIO, Comissão Estadual de Literatura,
São Paulo, 1959.
TESE E ANTíTESE, Ensaios, Companhia Eµitora Nacional, São
Paulo, 1964.
1
os PARCEIROS DO RIO BONITO, Estudo rsobre o caipira pau-
lista e a transformação dos sei:1s meios de vida, Livraria Duas
Cidades, São Paulo,· 4.• ed., 1977.
LITERATURA E SOCIEDADE, Estudos de teoria e história li-
terária, Companhia Editora Nacional,· São Paulo, 1965.
INTRODUCCION A LA LITERATURA DE BRASIL, Monte
Avila Editores, Caracas, 1968.

Em colaboração:

Com Anato! Rosenfeld, Décio de Almeida Prado e Paulo Emílio


Salles Gomes, A PERSONAGEM DE FICÇÃO, Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo,
Boletim n. 0 284, 1963; 2.ª ed. Editora Perspectiva, São Paulo,
1968; 3.• ed., id., 1970.
Com José Adera1do Castel1o, PRESENÇA DA LITERATURA
BRASILEIRA, História e Antologia, 3 vols., Difusão Européia Ln'.] Livraria
do Livro, São Paulo, 1964.
Ln'.] Duas Cidades
Capa de Ana Luisa Escorei

2.ª Edição

EMfLIO MOURA
grande poeta e grande amigo

Todos os díreitos· reservados por


O'.D.C.
LIVRARIA DUAS CIDADES LTDA.
Rua Bento Freitas, 158 - São Paulo
1977
NOTA SOBRE OS ESCRITOS

"Esquema de Machado de Assis", inédito, ~ um texto que


li nas Universidades da Flórida ( Gainesville) e ,Wisconsin
( Madison), respectivamente em abril e maio de 1968. Apro-
veito a oportunidade para agradecer o zelo e a competência
com que o traduziu para o inglês o jovem colega Almir. de
Campos Brunetti, da Universidade de Yale.
"Estouro e libertação" apareceu, refundindo artigos de
1943, no meu livro Brigada ligeira (1945). "Oswald viajante"
foi lido em 1954 numa sessão de homenagem à memória do
grande escritor, saindo mais tarde no Supl.emento literário
d'O Estado de São Paulo ( 1956) e, afinal, no meu livro
O observador literário (1959). "Digressão sentimental sobre
Oswald de Andrade", inédito, foi escrito agora, em 1970, apro-
veitando na 5." parte elementos de uma palestra feita em 1964,
nas comemorações do décimo aniversário da morte.
'.'lnquietudes na poesia de Drummond" foi publicado com
título um pouco diferente ( "Inquietudes na obra de Carlos
Drummond de Andrade") em Cahiers des Amériques Latines,
n.º 1, Paris, 1967.
"No raiar de Clarice Lispector" é a parte que me pareceu
aproveitável do ensaio "Tentativa de renovação", publicado
em Brigada ligeira, depois de ter aparecido sob a forma de dois
artigos na Folha da Manhã (194 3 ) .
"Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa", iné•
dito, é a redação das quatro aulas que dei em 1966 no curso
sobre o cangaço na realidade brasileira, organizado por José
Aderaldo Castello em cujas mãos se encontra desde aquele
ano, e a quem agradeço a licença para inclui-lo aqui, antes de

7
sair no volume da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros
que deve recolher toda a matéria do referido curso. As pági-
nas sobre Guimarães Rosa foram completadas com material td-
mado a uma palestra feita noutro curso, também no ano de 1966,
organizado por Rolando Morei Pinto sobre o autor de Grande
sertão: veredas.
"A dois séculos d'O Uraguai" foi escrito em 1966, para
servir de introdução a uma edição êrítica dirigida por Rolando
ÍNDICE
Morei Pinto, que afinal não se concretizou. Daí certos aspectos
de cunho informativo. É inédito, salvo as páginas finais, pu-
blicadas sob o título "Ritmo do mundo" no Suplemento literá- Nota Sobre os Escritos ..................... . 7
rio de Minas Gerais ( 1968).
As datas depois de cada escrito são as da sua redação. 1 - Esquema de Machado de Assis ....... : ....... . 13
Mário da Silva Brito, a quem agradeço, corrige amavel- 2 - Estouro e Libertação ..... •................ .. 33
mente um lapso de minha memória: a. cena descrita na p. 70
se passou num hotel de. Araxá, não no trem, Informa ainda 3 - Oswald Viajante ....................... : ... 51
que uma frase de Jorge Amado, que suprimi nesta edição, é:
"Mestre Oswald ·e quase· Ilya", referindo-se a Ehrenberg. 4 - Digressão Sentimental Sobre Oswald de Andrade 57
Tendo-a ouvido, eu entendia "ilha" e lhe dera sentido diferente.
•Quero finalmente registrar que a reullião desses ensaios Carta de Rudá de Andrade ................. . 89
em livro se deve ao ..estímulo. do meu amigo José de Souza 5 ·- Inquietudes na Poesia de Dnimmond ; ....... '. . 93
Pinto Júnior.
6 - No Raiar de Clarice Lispector 123

São Paulo, março de 1970 7 - Jagunços Mineiros ..de Cláudfo a. Guimarães Rosa 133
'
8 - A Dois Séculos d'O Uraguai ... : . , . . . . . . . . . . . . 161
Antonio Candido de Mello e Souza
O Uraguai, Canto IV, Versos 22-109 . . . . . . . . . . 183
Apoio Bibliográfico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187
"/ ... / what is the use of a book", thought
Alice, "without pictures or conversations?"
1

ESQUEMA DE MkCHADO DE ASS{S


1

Como o nosso modo de ser ainda é bastante rç,mântico,


temos uma tendência quase invencível para atribuir aos grandes
escritores uma quota pesada e ostensiva de sofrimento e de
drama, pois a vida normal parece incompatível com o gênio.
Dickens desgovernado por uma paixão de maturidade, após
ter sofrido em menino as humilhações com a prisão do pai;
Dostoievski quase fuzilado, atirado na sordidez do presídio
siberiano, sacudido pela moléstia nervosa, jogando na roleta o
dinheiro das despesas de casa; Proust enjaulado no seu quarto
e no seu remorso, sufocado de asma, atolado nas paixões proi-
bidas - são assim as imagens que prendem a nossa imaginação.
Por isso, os críticos que estudaram Machado de Assis
nunca deixaram de inventariar e realçar as causas eventuais de
tormento, social e individual: cor escura, origem humilde, car-
reira difícil, humilhações, doença nervosa.
Mas na verdade os seus sofrimentos não parecem ter ex-
cedido aos ele toda gente, nem a sua vida foi particularmente
árdua. Mestiços de origem humilde foram alguns homens re-
presentativos no nosso Império liberal. Homens que, sendo
da sua cor e tendo começado pobres, acabaram recebendo títu-
los de nobreza e carregando pastas ministeriais. Não exage-
remos, portanto, o tema do gênio versus destirio. Antes, pelo
contrário, conviria assinalar a normalidade exterior e a relativa
facilidade da sua vida pública. Tipógrafo, repórter,, funcionário
modesto, finalmente alto funcionário, a sua carreira foi plácida.
A cor parece não ter sido motivo de desprestígio, e talvez
• só tenha servid_o de contratempo num momento brevemente
superado, quando casou com uma senhora portuguesa. E a

15
sua condição social nunca impediu que fosse íntimo desde cendo até fazer dele um símbolo do que se· considera mais alto
moço dos filhos d~ Conselheiro Nabuco, Sizenando e Joaq,_;im, na inteligência criadora.
rapazes finos e cheios de talento. • •
. Se ~nalisarmos.ª ~ua carreira intelectual, verificaremos que Doutro la~o, se encararmos a sua obra, não dentro do
foi adm!rado e apoiado clesde cedo, e que aos cinqüenta anos panorama estreito da literatura brasileira do tempo, mas .na
era consideradoo maior escritor do país, objeto de uma reverên- corrente geral da literatura dos povos ocidentais, veremos a
cia .~ ~dmiraçãogerais, que nenhum outro rómancista ou poeta · contrapartidairônica e por vezes melancólica do seu ·êxito sem
brasileiro conheceu em vida, antes e depois dele. Apenas Sílvio quebra. Pois sendo um escritor de estatura internacional, per-
Romero emitiu uma nota dissonante, não compreendendo nem maneceu quase totalmente desconhecido fora do Brasil; e como
querendo compreender a sua obra, que escapava à orientação a glória literária depende bastante da irradiação política do
esquemáti~a e maciçamente naturalista do seu espírito. Quan- país, só agora começa a ter um succes d'estime nos Estados
do se cogitou de .fundar a Academia Brasileira de Letras Ma- Unidos, na Inglaterra, nalgum país latino-americano. A glória
chado de Assis foi escolhido para seu mentor e presidente, nac10nal quase hipertrofiada, correspondeu uma desalentadora
posto que ocupou até morrer. Já então era uma espécie de pa- obscuridade internacional.
triarca das letras, antes dos sessenta anos.
Esta circunstânciaparece chocante porque, nos seus contos
Patriarca ( sejamos francos) no· bom e no mau sentido. e romances, sobretudo· entre 1880 e 1900, nós encontramos,
Muito convencional, muito apegado aos forma.lismos,era capaz, disfarçados por curiosos traços arcaisantes, alguns dos temas
sob este aspecto, de ser tão ridículo e mesmo tão mesquinho que seriam característicos da ficção do século XX. O fato de sua
quanto qualquer presidente de Academia. Talvez devido a obra encontrar atualmente certo êxito no Exterior parece mos-
certa timi~ez, foi desde moço inclinado ao espírito de grupo e, trar a capacidade de sobreviver, isto é, de se adaptar ao espírito
sem descuidar as boas relações com o grande número, parece do tempo, significando alguma coisa para as gerações que leram
que se encontrava melhor no círculo fechado dos happy few. Proust e :Kafka, Faulkner e Camus, Joyce· e Borges. Entran-
A Academia surg~u, na última parte da sua ·vida, como um des- do pela conjetura, podemos imaginar o que teria acontecido se
ses grupos fechados onde a sua personalidade encontrava apoio; ela tivesse sido conhecida fora do Brasil num momento -em que
e como dependia dele em grande parte o beneplácito para os os mais famosos praticantes do romance, no universo das
membros novos, ele atuou com uma singular mistura de con- literaturas latinas, eram homens como Anatole France e Paul
formismo social e sentimento , de· clique, admitindo entre os Bourget,. Antonio Fogazzaro e Émile Zola, que, salvo o último,
fu~dadores um moço ainda sem expressão, como Carlos Maga- envelheceram irremediavelmente e nada mais significam para
lhaes de Azeredo, só porque lhe era dedicado e ele o estimava o nosso tempo.
- motivos que o levaram.a .dar ingresso alguns anos depois ;
Das línguas do Ocidente, ~ nossa é a menos conhecida,
Mário de Alencar, ainda mais medíocre. No entanto, barrava
outros de nível igual ou superior, como Emílio de Meneses não e se os países onde é falada pouco representam hoje, em 1900
por motivos de ordem intelectual, mas porque não se codipor- representavam inuito menos no jogo político._ ·Por isso fica-
tavam segundo os padrões convencionais, que ele respeitava na
ram marginais dois romancistas que nela escreveram e que são
vida de relação. iguais aos maiores que então escreviam: Eça de Queirós,_bem
ajustado ao espírito do naturalismo; Machado de. Assis, enig-
Sendo assim, parece não haver dúvida que a sua vida foi mático e bifronte, olhando para o passado e para o futuro,. es-
não apenas sem aventuras, mas relativamente plácida, embora condendo um mundo estranho e original sob a neutralidade .
marcada pelo raro privilégio de ser reconhecido e glorificado itparente.das suas histórias "que todos podiam ler".
como escritor, com um carinho e um preito que foram cres-

16 17
Está claro, pois, que o homem pouco interessa e a obra e reserva. Num momento -em que os naturalistas atiravam
intere~sa muito. Sob o r~p•z alegre e mais tarde o burguês ao público assusta.doa desc~ição minucios~ ·da vida fisio~ógica,
comedido que procurava aJustar.se às manifestações exteriores ele timbrava.nos subentendidos, nas alusoes, nos eufemismos,
que .passou con'.'encionalmentepela vida, respeitando para'se: escrevendo contos e, romances que não chocavam as e~igên-
respeitado, funcionava um escritor poderoso e atormentado cias da moral familiar. A seu respeito, evocava-se Almeida
que recobria os seus livros com a cutícula do respeito human~ Garrett, que foi com efeito um ?os mestres, ~ª.sua escrita -
e das boas maneiras para poder, debaixo defa desmascarar in- cujo leve ranço arcaico paga ? tributo ~o cast1c1s1:-10dos povos
v_estigar,experimentar, descobrir o mundo d; alma, rir d~ so• coloniais. No fim de sua vida, os leitores sublinhavam tam-
ciedade, expor algumas das componentes mais esquisitas da bém o pessimismo, o grande desencanto que çman~ d~s suas
personalidade. Na razão inversa da sua prosa elegante e dis- histórias. O de que não há dúvida é que essas prim_eirasge-
creta, do seu tom ~umorístico e ao mesmo tempo acadêmico, rações encontraram. nele uma "filosofia" bastante ácida para
avultam pa~a o leitor atento as mais desmedidas surpresas, dar impressão de ousadia, mas expressa de um modo elegante
A sua atualidade vem do encanto quase intemporal do seu es- e comedido, que tranqüilizava e fazia da sua leitura uma e~-
tilo e desse universo·.oculto que sugere os abismos prezados periência agradável e sem maior~s cons~qüênc~as. _Poder•Se•l~ •
pela literatura do século XX. E a este propósito é interessante dizer que ele lisonjeava o público mediano, mc!us1".e os cri-
dar um r_epassonas diferentes etapas da sua glória no Brasil, ticos dando-lhes o sentimento de que eram mtehgentes a
para avaliar as suas muitas faces e· o ritmo com que foram preç~ m6dico. O ".eu gosto, ~elas sentenças morais, ,he_rdado
descobertas. dos franceses dos seculos classicos e da leitura da Bibha, le-
và.va•o a compor fórmulas lapidares, que se destacavam d_o
2 contexto e corriam o seu destíno próprio, difundindo uma· idéia
algo fácil de sabedoria. Para a opinião culta ':.u.semi-culta do
Nas obras dos grandes escritores é mais visível a poliva• começo do século, ele aparecia co7;10.uma . espec1e de A:,natole
lência do verbo literário, Elas são grandes porque são extre- France,.local tendo a mesma elegancia felma e menos devas-
mamente ricas de significado, permitindo que cada grupo e sidão de espírito. As antologias não deixavam de escolher
cada época encontrem as suas obsessões e as suas necessidades na sua obra coisas como o "Apólogo" engenhoso e no fundo
de expressão. Por isso, as sucessivas gerações de leitores e banal sobre a agulha e a linha, ou o epis6dio d? almocreve
críticos brasileiros foram encontrando níveis diferentes em nas Memórias Póstumas de Braz Cubas, que, extraido do con•
Machado de Assis, estimando.o por motivos diversos e vendo junto, mostra de maneira apenas aparentemente profunda ·a
nele um grande escritor devido a qualidades por vezes con- força do interesse.
traditórias. O mais curioso é que provavelmente todas essas Este primeiro Machado de Assis, "filosofante': e castiço,
interpretações são justas, porque ao apanhar um ângulo não aparece, por exemplo, em dóis, b?ns estu1os_ pub)icados logo
podem deixar de ao inenos pressentir os outros. depois da sua morte: a conferencia de Ohve1ra ~1ma na Sor-
Logo que ele chegou à maturidade, pela altura dos qua- bonne e o pequeno livro de Alcides Maya, que sahentav_a,para
renta anos, talvez o que primeiro tenha chamado a atenção além da ironia de corte voltaireano: a~ componentes mais com•
foram a sua ironia e o seu estilo, concebido como "boa Iin. plicadas do humor, de tipo inglês. O livro importante de Alf~e-
guagem". Um dependia do outro, está claro, e a palavra que do Pujo!, publicado 110_ fim da Pri~eira Gra':'~e S:1:erra, cri~;
melhor os reúne para a crítica do tempo talvez seja finura. talizou a visão convenc10nalda sua vida e a v1sao filosofante
Ironia fina, estilo refinado, evocando as noções de ponta da sua obra fixando com traços acentuados de mitologia a
aguda e penetrante, de delicadeza e força juntamente. A isto singufar hist6ria do menino pobre que atingiu, como _compen-
se associava uma idéia geral de urbanidade amena, de discrição sação, os pináculos da expressão literária. Pouco depois Graça

18 19
Aranha propôs uma teoria engenhosa do movimento cruzado -versa, utilizar a obra para esclarecer a vida e a per;onalidade.
de Nabuco, descendo da aristocracia ao povo, e de Machado Mas não há dúvida de que foi desses estudos e alguns outros,
de Assis, subindo do povo às atitudes aristocráticas. geralmente precedendo ou sucedendo de pouco as comemora-
Uma nbva maneira de interpretar só apareceriano decênio ções .do centenário do nascimento em 1939, que começou a
de 1930, com a biografia de Lúcia Miguel-Pereira, as análi- compor-se a nossa. visão moderna. Já não era mais o "ironista
ses de Au!(usto Meyer, as hábeis filiações biográficas de Mário ameno", o elegante burilador de sentenças, da convenç~o aca-
M~tos; . E a etapa que poderíamos chamar de propriatnente dêmica; era o criador de um mundo paradoxal, o experim.enta-
ps1colog1ca, quando os críticos . procuravam estabelecer uma dor, o desolado cronista do absurdo.
cor.renterecíproca de compreensão enfre a vida e a -obra, fo- No decênio de 1940 notamos uma inflexão para o lado da
caliz~ndo;~s de acordo com as disciplinas em moda, sobretudo filosofia ( sobretudo cristã) e da sociologia. A primeira quis
a ps1canal~se,a somatologia, a neurologia. Abro um parênte- focalizar em Machado de Asssis, sem impurezas biográficas,
se para d1:er. que não levarei em conta os aspectos ext~erilos mormente o que se poderia chamar de angústia existencial.
dessa tendencia, representados pelos médicos que se apossa- É o caso de um dos seus melhores críticos, Barreto Filho, cujo
ram de ./v!ac!rndode _Assi~':amo de um indefeso cliente póstu- livro é uma das interpretações mais maduras que possuímos
mo, mult1phcando diagnosticas e querendo tirar da sua obra de sua obra. Estes críticos resistiam ao psicologismo e ao bio-
e ~os pouco~ el~1;11ent~sconhecidos de sua vida interpretações grafismo, ao mesmo tempo que procuravam esclarecer de um
CUJOvalor c1ent1Í!COdeve ·ser pequeno. Antes e depois, mas ângulo metafísico. Numa situação nem psicológica nem bio-
sobretudo nesses anos de 1930, a sombra .obsoleta de Lom- gráfica situou-se também Astrojildo Pereira, preo~upado com
bro~o e Max Nordau pairou com roupa nova sobre o grande os aspectos sociais da obra, mas pecando na medida em que
escritor. fazia deste lado o que faziam os biografistas de outro, isto é,
Disso tudo :esulta algo positivo para a crítica: a noção considerando a obra na medida em que desc~evia a sociedade
de que era preciso ler Machado, não com olhos convencio- e, portanto, dissolvendo-a no doc1;1me~toevent1:1al. M_as ~
nais,_não com argúcia acadêmica, mas com_o senso do despro- essa altura já começavam os ensa10s mterpretauvos mais li-
vres e menos ambiciosos, como o de Reger Bastide, que,__ con-
porc10nado e mesmo .o anormal; daquilo que parece raro em
trariando uma velha afirmação, segupdo a qual Machado não
nós à luz da psicologia de superfície, e no entanto compõe as
sentiu a natureza do seu país, mostrou qúe, ao contrário, ele
camadas profundas de que brota o comportamento de cada a percebe com penetração e constância; mas em lugar de 're-
um. Nessa ?ºv~ maneira de ler avulta sem dúvida Augusto presentá-la pelos métodos do descritivismo romântico, incor-
Meyer, que, mspuado na obra de Dostoievski e na . de Piran- pora-a à filigrana da narrativa, como elemento funcional da
dello, foi além da visão humorística e "filosofante", mostran- composição literária. Era com o mesmo espírito que costu-
do que na sua obra havia muito do "homem subterrâneo" do mava dizer aos seus alunos na Universidade de São Paulo que
prfn:ieiro,_e do se: múltiplo, impalpável, do segundo. Ele e o "mais brasileiro" não era Euclides da Cunha - ornamental,
Lucia Miguel-Pereira chamaram a atenção para os fenômenos para inglês ver; mas Machado de Assis, que dava universali-
d': ambigü_idad':que pululam na sua ficção, obrigando a uma dade ao seu país pela exploração, em nosso contexto, dos te-
leitura mais exigente, graças à qual a normalidade e o senso mas essenciais.
das conveniências constituem apenas o disfarce de um univer-
so mais com?licado e por vezes turvo. O que se pode repa- 3
rar de negatlvo, neles e em Mário Matos é a aludida rever-
sibilidade de interpretação, a preocupação 'excessiva de buscar O que primeiro chama a atenção do crítico na ficção de
na vida do autor apoio para o que aparece na obra ou, vice. Machado de Assis é a despreocupação com as modas dominan-
20 21
tes e o ap~rente.~rcaísmo da técnica. Num momento em que A sua técnica consiste essencialmente em sugerir as coi-
Flaubert s1stemat1zaraa teoria do "romance que narra a si sas mais tremendas da maneira mais cândida ( como os ironis-
pr~prio", apagando o narrador atrás da objetividade da nar- tas do século XVIII); ou em estabelecer um contraste . entre
rativa; num- momento em que Zola· preconizava o inventário a normalidade social dos fatos e a sua anormalidade essen-
maciço da realidade, observada nos menores detalhes ele cial· ou em sugerir, sob aparênciado contrário, que o ato excep-
culti_voulivremente_o elíptico, o incompleto, ó fragmentári~, in- cio~al é normal, e anormal seria o ato corriqueiro. Aí está
tervmdo na narrauva com bisbilbotice saborosa lembrando ao o m~tivo da sua modernidade, apesar do seu arcaísmo de
'1e1tor
• ' •de1a estava a sua voz convencional.
que atras ' Era um-a superfície.
forma de manter, na segunda metade do século XIX o tom Não é possível enfeixar numa palestra a análise adequada
caprichoso,de Sterne, que ele prezava·;de efetuar os ;eus sal- de suas· diversas manifestações. Mas posso tentar a apresen-
tos temporais e brincar com o leitor. Era também um eco do tação de alguns casos, para dar u":'a idéia da originali?ade que
"conte philosophique", à maneira de Voltaire, e era sobretudo hoje nos parece existir na obra de Machado d.:' Assis, e, '.'(ue
o seu modo próprio de deixar as coisas meio no ar inclusive foi sendo desvendada lentamente pelas geraçoes de crittcos
criando certas perplexidades não resolvidas. ' acima referidas.
Curiosamente, este arcaísmo parece bruscamente moder..
no, ~epois das tendências de vanguarda do nosso século, que 1 Talvez possamos dizer que um dos problemas fun-
tambem procuram_sugerir o todo pelo fragmento, a estrutura damentais da sua obra· é o dá identidade. Quem sou eu? O
pela elipse, a emoção pela ironia e a grandeza pela banalidade. que sou eu? Em que medida eu só existo por meio dos_ou-
Muitos dos seus contos e alguns dos seus romances parecem tros? Eu sou mais autêntico quando penso ou quando existo?
abertos, sem conclusão necessária, ou permitindo uma dupla Haverá mais de um ser em mim? Eis algumas perguntas que
leit_ura,como ocorre entre os nossos contemporâneos.• E o parecem formar o substrato de muitos dos seus contos e ro-
mais picante é o estilo guindado e algo precioso com que tra- mances. Sob a forma branda, é o problema da divisão do
balha, e que se de um lado pode parecer academismo de .outro ser ou do desdobramento da personalidade, estudado por Au-
sem dúvi?a parece ~ma forma sutil de negaceio, com~ se o nar- gusto Meyer. Sob a forma extrema é o problema dos limites
rador esllvesse rindo um pouco do leitor. Estilo que mantém da razão e da loucura, que desde cedo chamou a atenção dos
uma espécie de imparcialidade, que é a marca pessoal de Ma- críticos, como um dos temas principais de sua obra. •
chado, fazendo parecer duplamente inténsos os casos estranhos O primeiro caso é objeto, por exemplo, do conto_"O Es-
que apresenta com moderação despreocupada. Não é nos apai- pelho", onde surge a velha alegoria da sombra per?tda, cor-
xonados naturalistas do seu tempo, teóricos da objetividade, rente na demonologia e tornada famosa no Romanttsmo pelo
que encontramos o distanciamento estético que reforça a vi- Peter Schlemilh, de Adalbert von Chamisso. Um moço, no-
bração da realidade, mas sim na su~ técnica de espectador. meado Alferes da Guarda Nacional ( a tropa de reserva que no
A partir dessa matriz formal, que se poderia chamar o Brasil imperial se tornou bem cedo um simples pretexto para
"tom machadeano", é que ·podemos compreender a profuride- dar postos e fardas vistosas a pessoas de certa posição), vai
za e a complexi?ade duma obra lúcida e desencantada, que passar uns tempos na fazenda de sua tia. Esta, orgulhosa com
esconde as suas riquezas mais profundas. Como Kafka e como o fato cria uma atmosfera de extrema valorização do posto,
Gide, ao contrário de Dostoievski, Proust ou Faulkner os chama~do-o e fazendo que os escravos o chamem a cada ins-
tormentos do homem e as iniqüidades do mundo apar;cem tante "Senhor Alferes". De tal modo que este traço social
acaba sendo uma c'segunda a.lma", indispensável para a in_te-
nele sob um aspecto nu e sem retórica, agravados pela impar-
cialidade estilística referida acima. gridade psicológica do personagem.
23
22
Dali a .dias a _tia precisa viajar com urgência e deixa a da sua terapia. Não haveria··um só homem· normal, imune às
fazenda a seu cargo. Os escravos aproveitam pata fugir, ele ~ica solicitações das manias, das vaidades,· da falta de P?ndéração?
na solidão mais completa e chega às bordas da dissolução espi- . Analisando-se bem, vê que é o seu caso; e resolve internar-~e,
ritual, desde que não tinha mais o coro laudatório que evocàva só no casarão vazio •do hoSpício, onde morre. mes_esdepois.
o seu posto a cada instante. A tal ponto, que olhando certo E nós perguntamos: quem era louco? Ou seriam todos lou-
dia no espelho vê que a sua imagem aparece quase dissolvida, cos, caso em que ninguém o é? Notemos que este conto e o
borrada e. irreconhecível. Ocorre-lhe então a idéia de vestir a anterior manifestam, no fim do século XIX, o que faria a voga
farda e passar algum tempo todos os dias diante do espelho, de Pirandello a partir do decênio de 1920.
o que o tranqüiliza e lhe restabelece o equilíbrio, pois a sua
figura se projeta de novo claramente, devidamente revestida 2 Outro problema que surge com freqüência na obra de
pelo símbolo social do uniforme. Quer dizer que a integri- Machado de Assis é o da relação entre o fato real e o fato
dade pessoal estava sobretudo na opinião e manifestações dos imaginado, que será um dos ei~os do .gr!nde romance de
outros; na sociedade que o uniforme representa e naquela Marcel Proust e que ambos analisam prmc1palmente com re-
parte do ser que é projeção na e da sociedade. A farda do lação ao •ciúm~. A mesma reversibilidade entre ª. razão e a
Alferes era também a alma do Alferes, uma ·das duas que todo loucura· que torna impossível demarcar as fronteiras e, por-
homem possui, segundo o narrador, porque manifesta o seu tanto defini-las de modo satisfatório, existe entre o que acon-
"ser através dos· outros", sem o que nada somos. É claro teceu'e o que pensamos qu~ a~~nteceu. Um dos ~eus romances,
que a força do conto não vem desta conclusão banal, aliás Dom Casmurro, conta a historia de Bento Sanuago, que, de-
enunciada expressamente pelo autor, conforme é seu hábito pois da morte de seu maior e mais fiel amigo, Escobar, se
em tais casos. Vem da utilização admirável da farda simbólica convence de que ele fora amante de sua m~Iher, Capitu, o
e do espelho monumental no deserto da fazenda abandonada, personagem feminino mais íamos':. do r~ma,n~ista. A mulher
construindo uma espécie de alegoria moderna das divisões da nega, mas Bento junta uma porçao de md1~10s,para _ela_borar
personalidade e da relatividade do ser. a sua convicção, o mais importante dos qµais e a propr1a.se-
Quanto ao problema da loucura, podemos citar o conto melhança de seu filho com o amigo mor_to. Uma _estud_i?sa
"O alienista", elaborado segundo uma estrutura que Forster norte-americana, Helen Caldwell, no livro The Brazzlzan
chamaria "de ampulheta". Um médico funda um hospício Othello of Machado de Assis, levantou a hipótese viável, por-
para os loucos da cidade e vai diagnosticando todas as mani- que bem machadeana, de que na verdade Capit~ n~o traiu o
festações de anormalidade mental qrie observa. Aos poucos marido. Como o livro é narrado por este, na primeira pessoa,
o hospício se enche; dali a tempos já tem a metade da popu- é ·preciso convir que só conhecemos a sua visão das coisas, e
lação; depois quase toda ela, até que o alienist~ sente que_ a que para a furiosa "cristalização" negativa de um 'Ciumento,
verdade, em conseqüência, está no contrário da sua te~ria. é possível até encontrar semelhanças inexistentes, ou que são
Manda então soltar os intern_ados e recolher a pequena mmo- produtos do acaso ( como a de Capitu com a mãe de Sat;cha,
ria de pessoas equilibradas, porque, sendo exceção, esta é que mulher de Escobar circunstância para a qual chamou a nunha
é realmente anormal. A minoria é submetida a 1pn tratamen- atenção, o colega a;,,ericano Alfred Hower) .. Mas o fato é que-,
to de "segunda alma", .para usar os termos do conto prece- dentro do universo machadeano,não importa muito·que a convic-
dente: cada um é tentado. por uma fraqueza, acaba cedendo ção de Bento seja falsa ou verdadeira, porque a .conseqüência é
e se equipara deste modo. à maioria, sendo libertado, até que exatamente a mesma nos dois casOs:imagináriaou real, ela des-
o hospício se esvazia de novo. O alienista percebe então que trói a sua casa e a sua vida. E cOncluímosque neste romance,
os germes de desequilíbrio prosperaram tão facilmente por- como noutras situações dá sua obra, o real pode ser_()que _l)arece
que já estavam latentes em todoS; portanto, o mérito não é a
real.· E -como amizade e o amor parecem mas podem não

24
ser amizade nem amor, a ambigüidade gnosiológica se junta muito bem analisada por Lúcia Miguel,Pereira - o tema da
à ambigüidade psicológica para dissolver os conceitos morais e perfeição, a aspiração ao ato completo, à obra total, que en-
suscitar um mundo escorregadio, onde os contrários se toçam contramos em diversos contos e sobretudo num dos mais belos
e se dissolvem: e pungentes que escreveu: "Um homem célebre".
3 Neste caso, que sentido tem o· ato? Eis outro pro- Trata-se de um compositor de polcas,· Pestana, o mais
blema fundamental em Machado de Assis, que o aproxima famoso do momento, reconhecido e louvado por onde vá, pro-
das preocupações de escritores como o CoI]rad de Lord Jim curado pelos editores, abastado materialmente. No entanto,
ou de The Secref Sharer, e que foi um dos temas centrais do Pestana odeia -as suas polcas que toda a gente canta e executa,
existencialismo literário contemporâneo, em Sartre e Camus, porque o seu desejo é compor uma peça erudita de alta qua-
por exemplo. Serei eu alguma coisa mais do que o ato que lidade, uma sonata, uma missa, como as que admira em
me exprime? Será a vida mais do que uma cadeia de opções? Beethoven ou Mozart. A noite, postado no piano, leva horas
Num dos seus melhores romances, Esaú e ]acó, de retoma, solicitando a inspiração que resiste. Depois de muitos dias,
já no fim da carreira, este problema que pontilha a sua obra começa a sentir algo que prenuncia a visita da deusa e a sua
inteira. Retoma-o sob a forma simbólica da rivalidade perma- emoção aumenta, sente quase as notas desejadas brotando nos
nente de dois irmãos gêmeos, Pedro e Paulo, que representam dedos, atira-se ao teclado e ... compõe mais uma polca! Polcas
invaria','.elmente a alternativa de qualquer ato. Um so faz o e sempre polcas,· cada vez mais brilhantes e populares é o que
contrário do outro, e evidentemente as duas possibilidades são faz até morrer. A alternativa é negada também a ele; s6 lhe
legítimas. O grande problema suscitado é o. da validade do resta fazer como é possível, não como lhe agradaria. Neste
ato e de sua relação com o intuito que o sustém. Através da conto terrível sob a leveza aparente do humor, a impotência
crônica aparentemente corriqueira de uma família da burgue- espiritual do homem clama como do fundo de um ergástulo.
sia carioca no fim do Império e começo da República, surge
a cada instante este debate, que se completa pelo terceiro per-
sonagem-chave, a moça Flora, que ambos os irmãos amam, 5 Surge então a pergunta: se a fantasia funciona como
está claro, mas que, situada entre eles, não sabe como esco- realidade; se não conseguimos agir senão mutilando o nosso
lher. É a ela, como a outras mulheres na obra de Machado eu; se o que há de mais profundo em n6s é no fim de contas
a opinião dos outros; s·e estamos condenados a não atingir o
de Assis, que cabe encarnar a decisão ética, o compromisso
que nos parece realmente valioso, - qual a diferença entre
do ser no ato que não volta atrás, porque uma vez praticado
o bem e o mal, o justo e o injusto, o certo e o errado? Ma-
define e obriga o ser de quem o praticou. Os irmãos agem
chado de Assis passou a vida ilustrando esta pergunta, que é
e optam sem parar, porque são as alternativas opostas; mas modulada de maneira exemplar no primeiro e mais conhecido
ela, que deve identificar-se com uma ou com outra, se sen~ dos seus grandes romances de maturidade: Memórias Póstumas
riria reduzida à metade se o fizesse, e só a posse das duas me- de Brás Cubas. Nele, mesmo a vida é conceituada relativa-
tades a realizaria; isto é impossível, porque seria suprimir a mente, pois é um morto que conta a sua própria história.
pr6pria lei do ato, que é a opção. Simbolicamente, Flora
morre sem escolher. E nós sentimos nela o mesmo sopro de Este sentimento profundo da relatividade total dos atos,
ataraxia que foi a ilusão de Heyst, em Victory, de Joseph da impossibilidade de os conceituar adequadamente, dá lugar
Conrad. ao sentimento do absurdo, do ato sem origem e do juízo sem
fundamento, que é a mola da obra de Kafka e, antes dela, d~
ato gratuito de Gide. Que já ocorria na obra de Dostoievski
4 Parece evidente que o tema da opção se comple,a e percorre discretamente a de Machado de Assis. É o caso do
por uma das obsessões fundamentais de Machado de Assis, co~to "Singular ocorrência", onde aliás podemos encontrar um
26
27
bom exemplo do vitorianismo de Machado, que, não ousando com sobrevivência ·do mais apto. Mas além disso é notória
pôr em Cena uma mulher casada, descreve a situação de: tipo uma conotação mais ampla, que transcende a sátira e vê o
conjugal de uma antiga e discreta "moça de costumes fáceis", homem como um ser devorador em cuja dinâmica·a sobrevi-
que vive com um advogado e se comporta como esposa r~spei~ • vência do mais ·forte é um episódio e um caso particular. Es•
tável e fiel. No· entanto, certo dia ela se en'trega sem razão sa devotação geral e surda tende a transformar o homem
aparente a um vagabundo de rua, depois de o haver provocado. em instrumento do homem, e sob este aspecto a obra de _Machado
O fato é descoberto casualmente pelo advogado, segue-se se articula muito mais do que poderia parecer à primeira vista,
uma ruptura violenta que suscita na moça- um des'espero tão com os c;nceitos de alienação e decorrente reifi~a_çãoda 1:er-
sincero e profundo, que as relações se reatam, com a mesma sonalidade, dominantes no pensamento e na , critica mar;X1sta
dignidade de sentimentos e atitudes de antes. O advogado de nossos dias, e já ilustrados pela. obra dos grandes real!Stas,
morre e ela se conserva fiel à sua memória, como viúva saudosa homens tão diferentes dele quanto Balzac e Zola.
de um grande e único amor.
No romance Quincas Borba, um modesto professor pri-
Por que então. aquele ato inexplicável? Impossível sa- mário, Rubião, herda do. fil6sofo Quincas Borba uma fortun~,
ber. E qual o comportamento que a exprime melhor: a fide- com a condição de cuidar de seu cachorro, ao qual dera o pro-
lidade ou a transgressão? Impossível determinar. Os atos e prio noine. Mas com o dinheir_o,q~e é uma .:spécie de _ouro
os sentimentos estão cercados por um halo de absurdo, de maldito, como na lenda dos N1belungen, Rubia~ herda igual-
gratuidade, que torna difíceis não • apenas as avaliações mo- mente a loucura do amigo. A sua fortuna· se dissolve em os-
rais, mas as inteÍ:pretaçõespsicológicas. Alguns decênios mais tentação e no sustento de parasitas;. mas serve sobretud<;_co-
tarde, Freud mostraria a importância fundamental do lapso mo capital · para as especulaç~es comerci~~s de um .a~;1v1sta
e dos comportamentos considerados ocasionais. ,Eles ocorrem hábil, Cristiano Palha, por cuia mulher, a bela S?fia , R1:-
com freqüência na obra de Machado de Assis, revelando ao bião se apaixona: O amor e a loucura surgem a~m, rom~n~1-
leitor atento o senso profundo das contradições da alma. camente de mãos dadas· mas o tertius gaudens e a amb1çao
econômi~a baixo-contíndo do romance, de que Rubião, se
6 Pessoalmente, • o que mais me atrai nos seus livros torna um' instrumento. No fim, po~re e louco, ele ~arre
é um outro tema, diferente destes: a transformação do ho- abandonado; mas em compensação, como queri~ a filosofia do
mem em objeto do homem, que é uma das maldições ligadas .Humanitismo, Palha e Sofia estão ricos e considerados, dentro
à falta de •liberdade verdadeira, econômica e espiritual. Este da mais perfeita normalidade social. ~s fracos e os P':tos f_o-
tema é um dos demônios familiares da sua obra, desde as ram sutilmente manipulados como coisas e em seguida sao
formas atenuadas do simples egoísmo até os extremos do sa- postos de lado pelo pr6prio mecanismo da. narrativa, que os
dismo e da pilhagem monetária. A ele se liga a famosa teoria cospe de certo modo e se concen;!~ nos tr1;111_fadores,a~aban-
do Humanitismo, elaborada por um dos seus personagens, . o do por deixar no leitor u~a duvi~• sarcas!i~a e cheia de
fil6sofo Joaquim Borba dos Santos, doido e por isso mesmo subentendidos: o nome do livro designa o filosofo ou o ca-
machadeanamentelúcido, figurante secundário em dois roman- chorro, 0 homem ou o animal, que co~dicionaram ambos o
ces, um dos quais traz o seu apelido: Memórias Póstumas de destino de Rubião? Este começa como simples homem, chega
Brás Cubas e Quincas Borba. na sua loucura a Julgar-se imperador e acaba como ,um pobre
Os críticos, sobretudo Barreto Filho, que melhor estudou bicho, fustigado pela fome e a chuva, no mesmo mvel que o
o caso, interpretam o Humanitismo como sátira ao positivismo seu cachorro.
e em geral ao naturalismo filos6fico do século XIX, principal- Há um conto "A causa secreta", onde a relação devo·
mente sob o aspecto da teoria darwiniana da luta pela vida radora de homem ~ homem assume um caráter de paradigma.

28 29
Fortunat~ é um senhor frfo e· rico, que demonstra interesse manipulação de que o rato é o símbolo. "Of mice and men".,
pelo sofrimento, socorrendo feridos, velando doentes com :umà poderíamos dizer com um pouco de humor negro, para indicar
dedicação excepcional. ~asado já de meia idade, é bom ,para que o homem, transformado em. instrumento do homem, cai
a mulher, mas ela mamfesta diante dele um constrangimento praticamente no nível do animal violentado.
que parece medo.
Neste nível é que encontramos o Machado de Assis mais
O casal é amigo de um jovem médico, a quem Fortunato terrível e inais \úcido1.. ~ts~den_c!Q.Jl.!'ê~ _a,.o,~arliza~ií~_c!_~s
re-
co~vence. a . fundar, de sociedade com ele, uma casa de saU.de, lações a _sua mirada r_desm1s_qf1cadg~, Se tIVesse ficado no
CUJOS capitais fornece. Nela, p:i;estaassistência constante aos plano dos aforismos desericariiâdos que fascinavam •as primei-
doentes, com um interesse absorvente que o_ leva a estudar ras gerações· de críticos; ou mesmo no das situações pskoló-
anatomia pela vivissecção de gatos e cachorros. O barulho gicas ambígüas', que depois se tornaram o seu atrativo principal,
de dor que estes fazem abalam os nervos delicados da mulher talvez não tivesse sido mais do que um dos "heróis da deca-
que. pe~e ao médico para obter do marido a cessação das ex'. dência", de que fala Viana Moog. Mas além disso há na sua
periêncrns. Já então o convívio tinha despertado no rapáz obra um interesse mais largo, proveniente do fato de_ haver
uma patxao_calada, pura, certamente correspondida, pela es- incluído discretamente um estranho fio :;_o_c.iaLnuelado seu
posa do amigo. O momento cruciante do conto é a cena onde l'.clltliv.:ismg.Pela sua obra toda há ..QJ!Lfil'Jl!.Q_ptoÍUIJ.d.o, nada
o médico encontra a senhora de Fortunato apavorada e numa 2ocumentá~i~Ldo _status,_.a~-düeioJlOSS~. do movimento
<;>utr~sala, vê es~e torturando um r'ato de maneira esP3ntosa ªªs camadas, da _P,.ç,têgci?_ d_o
__,fü1b.ei.tQ.,Q_g~i:iho,_,<?_jucro,.,2_
e abJeta. Com uma das mãos, segura um cordão atado ao rabo p·restígicç~ã-""'"iobera~iado interesse,.são_molas__ dos _seus perso-
do animal, baixando-o i um prato cheio de álcool infla- ~g"erís·;--aparecendo éni Memórias Póstumas de Brás Culiás;
mado, erguendo-o repetidamente para não matá-lo depressa; avultando em Esaú e Jacó, predominando em Quincas Borba,
com a outra, vai cortando as patas a tesoura. A descrição é sempre transformado em modos de ser e de fazer. E os mai.s
longa e terrível, fora dos hábitos discretos e -sintéticos de Ma- de_sagradáv':!J~,--os ~ mais . terrí~ds dos ___ seus _personagensL,são
chado de Assis. O médico percebe então o tipo de homem homens de corte burguês impecável, .perfeitamente edtrosados
que tem por amigo: alguém que encontra o maior prazer na MS-iiiõreS -da sua classe. Sob este aspecto, é interessante com-.
dor alheia.
Parar a ãnormalídade·eSsencial de Fortunato da ''Causa secreta'''
Pouco depois a esposa piora e afinal morre. O marido com a sua perfeita normalidade •social de proprietário abasta-
demonstra uma dedicação extrema, como sempre, mas na •fase do e. sóbrio que vive de rendas e do respeito coletivo. O sen-
final da agonia o que predomina é o seu prazer com o espe- so machade;no dos sigilos da alma se articula em muitos casos
táculo. Na vigília fúnebre, surpreende o médico beijando a com uma compreensão igualmente profunda das estruturas so-
testa do cadáver e compreende tudo num relâmpago de có- ciais, que funcionam em sua obra com a mesma _imanência
lera; mas o amigo rompe num pranto desesperado e Fortunato poderosa que Roger Bastide demonstrou haver no caso da
1
observando sem ser visto, "saboreou tranqüilo essa explosão paisagem, E aos seus alienados no sentido psiquiátrico cor-
de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente respondem certas alienações no sentido social e moral.
longa".
!'!'ão é difíci~ -:er que, além de tudo o que vem no plano *
ostensivo, este sadico transformou virtualmente a mulher e o
amigo num par amoroso inibido pelo escrúpulo, e com isto
sofrendo constantemente; e que ambos se tornam o instru- Este escrito deveria chamar-se "Esquema de um certo
mento supremo do seu prazer monstruoso, da sua· atitude de Machado de Assis", porque descreve sobretudo o escritor sub-
30
31
terrâneo (que Augusto Meyer localizou melhor do ,que nin- 2
guém), visto em diversos planos e referido a tendênciaS pos- .
teriores da literatura. Há outros, inclusive um Machado 'de
Assis bastante anedótico e mesmo trivial, autor de numerosos
contos circunstanciais que não ultrapassam o nível da crônica
nem o caráter de passatempo. É ele que às vezes chega bem ESTOURO E LIBERTAÇÃO
perto de um certo. ar pc;lintra e uma certa afetação constran-
gedora. Mas este, graças a Deus, é menos freqüente do que
um outro aparentado com ele, engraçado e engenhoso, movido
por uma espécie de prazer narrativo que o leva a engendrar
. ocorrências e tecer complicações facilmente solúveis. Este
Machado de •Assis despretencioso e de bom humor constitui
porventura o ponto de referência dos demais, porque dele vem
o tom, ocasional e· reticente, digressivo e coloquial, da maio-
ria dos seu contos ·e romances. Nele se manifesta o amor da
ficção pela ficção, a perícia em tecer histórias, que se ·apro-
xima da gratuidade determinativa do jogo. Deste autor habi-
lidoso e divertido brota o Machado de Assis focalizado aqui,
- numa passagem insensível que vai levando da quase-me-
lancolia da "Noite de Almirante" à dubiedade de "Dona
Paula", daí à indecisão perturbadora de "Dona Benedita", que
sobe à surpresa contundente d' ccA senhora do Galvão", já n_o
portal de uni mundo estranho, - mostrando as transições
quase imperceptíveis que unificam a diversidade do escritor.
Isto é dito para justificar um conselho final: não pro-
curemos na sua obra uma coleção de apólogos nem uma galeria
de tipos singulares. Procuremos sobretudo as situações fic-
cionais que ele inventou: Tanto aquelas onde os destinos e
os acontecimentos se organizam segundo uma espécie de· en-
cantamento gratuito; quanto as putras, ricas de significado em
sua -aparente simplicidade, manifestando, com uma enga-
nadora neutralidade de tom, os conflitos essenciais do homem
consigo· mesmo, com os outros homens, com aS classes e os
grupos. • A visão resultante é poderosa, como esta palestra
não seria capaz sequer de sugerir. O melhor-que posso faze!'
é aconselhar a cada um que esqueça o que eu disse, compen-
diando os críticos, e abra diretamente os livros de· Machado
de Assis.
(1968)

32
Oswald de Andrade é um problema literário. Imagino,
pelas que passa nos contemporâneos, as rasteiras que passará
nos críticos do futuro. Confesso que, na literatura brasileira
atual, poucas obras me terão preocupado tanto quanto a sua;
e os resultados a que cheguei estão longe de satisfazer-me.
Mesmo porque ainda não é o momento de julgar uma ativi-
dade que se anuncia cheia de expectativas promissoras de re-
novação, embora o autor já pertença em boa parte à história
literária. Tudo isso nos leva à necessidade de estabelecer a
seu respeito alguns juízos cuidadosamente formados, e não
oriundos das conversas de café ou da informação apressada.
Com efeito, é desta última forma que tem sido mais ou me-
nos julgado Oswald de Andrade, - numa ironia do destino,
que faz ser pago na mesma moeda o homem que emite, sobre
todos e sobre tudo, opiniões deformadas pela estilização fácil
e para ele irresistível da pilhéria.
:É preciso, antes de mais nada, e em atenção aos estudio-
sos do futuro, destrinçar, nele, o escritor do personagem de
lenda, pois não resta dúvida que há uma mitologia andradina.
Mitologia um tanto cultivada pelo herói e que está acabando
por interferir nos juízos sobre ele, tornando difícil ao crítico
contemporâneo encarar objetivamente a produção destacada do
personagem, que vive gingando em torno dela, no desperdício
de um sarcasmo de meio século. Tenho quase certeza de que
o público conhece de Oswald de Andrade apenas a crônica
romanceada de sua vida, as piadas gloriosas e a fama de ha-
ver escrito uma porção de coisas obscenas. Poucos escritores
haverá, tão deformados pela opinião pública e pela incom-
preensão dos cqnfrades. Em relação à sua obra, os críticos
raramente tentam um esforço de simpatia literária, colocando-

.35
-se acima dos pontos de vista estritamente pessoais. !~pres- de ·algum· modo ainda ligado à primeira. A linha que pro-
sionados com o caráter personalista que ele assume nas suas curamos discernir é, pois,- uma linha interrompida, sendo preciso
relações literárias, agem da mesma forma em relação á ele.
um criterio firme para entendê-Ia. -Antes de mais nada, é ne-
Consideram-no objeto de ataque ou aceitação e correspondem cessário aceitarmos as suas contradições, procurando compre-
deste modo, consciente ou inconscientemente, ao esforço que
ender o seu significado e determinar o progresso dialético que
ele faz para arrastá-los à polêmica, seu terrtno querido. Ora, porventura representarem. Veremos então que os romances
é necessário rejeitar este esquema simplista, e fazer um esforço
de Oswald de Andrade se agrupam nos três momentos de uma
sinceramente objetivo, livre do fermento combativo caracte-
evolução de que a primeira etapa é a Trilogia) a ,segunda o par
rístico da sua personalidade. É o que pretende este ensaio. lviiramar-SerafimJ e 1\IJ.arcozero ,a síntese.
Nele, só abordarei o romancista, deixando de lado os ou-
O primeiro momento corresponde à atitude católica e pós-
tros aspectos de um autor que é também poeta, jornalista,
-parnasiana, assumida pelo autor antes de Vinte-e-Dois e cor-
dramaturgo. Quanto à sua pessoa e à sua atividade moder-
respondente a uma fixação de tal modo forte, que as Suas ca-
nista; quanto ao homem da Antropofagia e o bicho-papão do racterísticas irrompem vigorosamente n'A · escada vermelha,
burguês aterrorizado, deixo-o para os , biógrafos e possíveis
autores de ABC. anos depois, e ainda vão tingir muitas páginas da Revolução
melancólica.
* No segundo, tudo é diferente, desde a linguagem, nua a
-!: * incisiva, toda concentra.da na sátira social, até a despretensão
da atitude literária, que não se preocupa em embelezar a vida.
A obra de ficção de Oswald de Andrade apresenta três Opõe-se ferozmente à primeira, com um tom másculo de re-
faces distintas: a Trilogia do exílio, o par Miramar-Serafim volta, sátira, demolição, subversão de todos os-valores, esbo-
e Marco zero. Melhor diria três etapas, porque elas são justa- ç:ldo nas admiráveis Memórias sentimentais de João Miramar
mente fases de uma evolução dinâmica e Dão raro contraditó- e culminado no fragmento de grande livro que é o Serafim
ria, ao longo da qual, todavia, percebe-se um desenvolvimento Ponte Grande. •
coerente. O leitor ficará desnorteado, no entanto, se te.,ntar Estas duas linhas alcançam a sua síntese em Marco zero}
uma análise explicativa baseada na cronologia das edições. a cuja publicação estamos assistindo. Com efeito, A revolução
Os condenados (primeiro volume da Trilogia) são ·de 1922; melancólica já é um romance de orientação definitiva. Esfa-
o João Miramar, de 24; A estrela de absbzto ( segundo vo- celada a diretriz católica da primeira fase ante a rebeldia inte,
lume da Trilogia), de 27; o Serafim, de 33; A escada ver- gral e anárquica da segunda, a terceira surge como sín~ese so-
melha ( terceiro volume da Trilogia), de 34; A revolução me, cialista. Romance social, A revolução melancólica parte da
lancólica ( pdmeiro volume de Marco zero), de 4 3. É que descrença completa na burguesia e do desejo sistematizado
as capas são enganadoras. Além de dispender • um tempo de se proceder ao seu inventário, a fim de melhor preparar
enorme na escrita, o autor conserva muitos dos seus livros na o caminho para a revolução necessária que há de pô·-Ia abaixo.
gaveta, anos a fio, antes de publicá-los. Mesrrio identificadas E justamente por ser uma síntese traz em si traços sublimados
1
as datas, todavia, permanece a estranheza, porque verificamos das fases anteriores. Ao lado da sátira de Serafim. vemos nela.
que as fases, longe de se sucederem regularmente, se mistu- o rompante gongórico da Trilogia; a falta de autocrítica literá-
ram, - livros da. primeira alternando com os da segunda, ria e psicológica ombreia com a intuição aguda das pessoas; a
um aspecto aparentemente ultrapassado ressurgindo anos de- secura .documentária alterna com a ficção dramatizada, enfática.
pois. João Miramar e Serafim Ponte Grande formam a se- Encarada deste modo, a produção de Oswald de Andra-
gunda fase; no entanto, depois deles vem A escada vermelha, de fica bem mais fácil de ser compreendida e interpretada.
36
37
Vamos examiná~la em detalhe, procedendo em vista dos a~pec- mances ( o que foi indicado para O estrangeiro por Prudente
tos significativos e não da cronologia estrita. de Morais, neto).
Apesar da solução técnica feliz, Os condenados são um
* romance falho como estilo, como criação de personagens, como
expressão de humanidade. Há nele um "gongorismo psicoló-
gico" ( tara que contaminará todos os livros da série) ainda
mais grave do que o gongorismo verbal da escrita. Por "gon-
A trilogia do exílio tem uma história acidentada e cobre gorismo psicológico" quero me referir à tendênçia para àcen-
cerca de vinte anos entre co1Jcepção, escrita e publicação. Em
tuar, em escala fora do comum, os traços psíquicos de um· per-
1922 saiu o primeiro volume, Os condenados, estando pro-
sonagem; os seus gestos, tiradas, atitudes de vida. As pessoas
gramados o segundo e o terceiro, com o& títulos: A estrela de
neste livro são pequenos turbilhões de lugares comuns morais
. absinto e A escada de Jacó. Em 1927 sai A estrela, mas aí
e intelectuais; o processo do autor consiste em acentuar vio-
a programação mudara. A série passa a chamar-se Os ro- lentamente as suas banalíssimas qualidades, afogando-os defi-
mances do e=-:ílioe o terceiro volume, "a sair", vira A ~scada, nitivamente· na retórica. Literatos baudelaireanos, caftens de-
aparecendo fmalmente em 1934 como A escada vermelha. A salmados, flores do vício, velhinhos sofredores, funcionários ri-
evolução dos títulos vale por um , sintoma da evolução das dículos, - todo~ são de uma- coerência espantosa com os tra-
crenças. Em 1941, os três romances foram reunidos num só ços convencionais que os constituem. Feitos de um só bloco,
volume, em edição da Livraria Globo, com o título geral do sem complexidade e sem profundidade, não passam de autô-
primeiro: Os condenados. Neste estudo, usarei as denomina- matos, cada um com a sua etiqueta moral pendurada no pes-
ções das edições originais. coço. Reina um convencionalismo total do ponto de vista
A primeira coisa que chama a atenção em A trilogia é o psicológico. ••
"culto da forma" e o cuidado pela estrutura do livro, denotan- Quanto à concepção de vida, a última página mostra onde
do preocupação com os problemas técnicos. Nota-se n'Os con- a foi buscar Oswald de Andrade. Lemos aí, com efeito, em
denados, antes do mais, uma técnica original de narrativa e maiúsculas: LAUS DEO. A noção cristã do bem e do mal
uma procura constante de estilo. Um esforço ·de "fazer estilo''. devia estar solidamente enraizada nas suas idéias, cuja história
Certa vez, Oswald de Andrade disse numa entrevista ter esboçará mais tarde no prefácio do Serafim, num esquema bri-
lançado a técnica do contrapont0 no romance, o que não me lhante e espirituoso que explica deste modo a sua religio-
parece exato. Seria mais certo dizer, corno já se disse, que sidade:
lançou ostensivamente e em larga escala ( pelo menos no "Acoroçoado por expectativas, aplausos e quireras capi-
Brasil) a técnica cinematográfica. Observa-se n'Os conde- talistas, o meu ser literário atolou diversas vezes na trinchei-
nados menos o processo do contraponto que o da descontinui- ra social reacionária. Logicamente, tinha que ficar católico."
dade cênica, a tentativa de simultaneidade, que obcecou o mo- Seja como for, Os condenados são um livro escrito e pen-
dernismo e teve entre nós em Mário de Andrade o seu teórico sado dentro de uma concepção religiosa do bem e do mal, de
(A escrava que não é Isaura) e um dos seus poetas. Contra- uma luta entre estes dois velhos princípios,• destacados nele
ponto é outra coisa, requerendo na narrativa uma pluralidade com nitidez quase maniqueísta. O mal age através de titula-
de focos de atenção que não existe 110s romances de Oswald res especializados, totalmente maus, como Mauro Glade, en-
de Andrade antes de A revolução me!anrólica. Isto em nada quanto o bem se decanra no poético e desgraçado João do
desmerece a originaliàade e interesse da sua técnica usada mais Carmo. Os outros personagens são campo de luta entre Or-
tarde em larga escala por Plínio Salgado em todos' os seus ro- muzd e Ariman, visto à luz do gongorismo por um católico

38 39
r
1

neopa.rnflsiano, que não sabe, aliás, explorar as possibilidades A escada, que foi de Jacó antes de se.r vermelha, ,resolve
dramáticas deste ·conflito. · . · . ' o problema maniqueu dos anteriores.· ' O .sentimen\o de angús-
• Obcecado pela desarmonia que o mal representa na natu- tia, causado pelas desarmonias da vida, .ro,mpe as barragens
reza, Oswald de Andrade transporta para o romance seguinte, que o prendiam à tradição para se expandir nu~a. revelação
embora ·em grau bastante atenuado, o problema desta enorme definitiva. O bem e o mal nada significam, tomados. em si
contradição moral:· M'ais • adiante,· veremos que a sua obra mesmos, porque não são .categori~s absol.utas·~ É ·necessário
contínua ainda hoje .a •reger-se pelo mesmo sentimento de de- pesquisar as suas causas em termos de .existência· humana.
saju.stamento do· homem, embora- num sentido 'no_v'oe diverso. A tragédia de Alma e de Mauro Glade sublim~-se no drama
de Jorge d'Alvelos, que reconhece o caráter social e relativo de
• A estrela de ~bsinto traz uma capa requintadac!e Bre- tantas ·desarmonias. •
cheret, uma fotografia wildeana do autor e a indicação de que
"foi escrito em São'·Paulo, de -1917 a 1921.· 'Refundido várias "Afi~ai, tudo lhe aparecia bem:'níticÍo. A.'relÍgião e à: arte
vezes, é".iado à publicâçãà em 1927, mas na sua· forma pri- eram tóxicos •para as ·m~ssas proletárias; par_aas massas peque-
mitivâ". :, ., no~burguesas. Ele mesmo se envenenara ·dando à tragédia: ca-
. Ci,mo Os condenados,. termina por uma solução religiosa . pitalista de_·Alm_a uma r:epercussão _falsa e torturante, C]_ueo
. e o mesmo LAUS .PEO, mas do ponto de. vista do estilo o levara ~ tentar b suicídio nà PaláciÔ das Indústrias. Que tinha
sido !0:_ary.
:Beatriz· serÍãO a ·peqllénó-b~trgu~sa• típica, literária e
progresso é grande.•• A escrita perde muito do delírio imagís- viajada_?'_· , • '· ' • ' :
.,J!co, ql_l,füi~ ,grp_tt;sc~,e.·~º~-~..:u.mpouco. 4e nív~I, embora· a psi-
, col◊gia, s,e !,analise ainf/à .maii. . No :,neió dos personagens tre- ' ' '. b )ésliimb;arrienip' do 'comunista neófito'' enche as pági-
mendan:ien1e:'falsos, d.e um corivencióhalisrriode folhetim, ·apa- nas finai;, ~om úmá , ênfase algo ú,gêiiua. • Jdrge d' Alvelbs en-
rec~m '-~en~;•'beffi''feitàs 'e·,aCl~r
e J'~c_01a;
,"páginas're·alm·ente ma- controu::o ..socialismo .quase num ato de fusão ,amorosa, prolon-
~~m~i;_tci:
da 'áii_ti~~·inCJ.Uiet~çãó·. •. ' • ~. • •
gistrais como. forma .e .intensidade erriocíonal. Haja ·vi~ta o
,,_sohho,"de Jorge·'d'Alvelos; onde ·o·•escultor vê ,a si próprio, . , "Sentia-,se ·aiiidc'J,místiÇo,.,.-i~.. a~s.-'comfd~~ ,, co~Ô- 1_(_1P.tiga-
·tfdcificândO a ·arilânté-mórtá·numa· prancha de dissecÇão. .. mente à.,miSsa-.,;_ Mas.~o -material_ismocaminhava ·na, salvação_ do
, M;ais ainda que os personagens do prirriéiio •'Iivl:o, O pro- .. seuserhu11_1ano,:'- 1 • .. : .•r.;'._··,•.i.• •i· •. ·.,··,,r,, _·_:, .,
•••,tagoniSta :deste ..tp.ar:üfesfa·
unia, angústia desesperada ante o pro- É,: tipicamente, uma, . conver~ão, , :ulila :tey,elaç~o·, b~usca,
-· blema··dd rrial, cjtie''o àutOr ainda continua I a identificar· por--meio aparecida. depois ,de anos, e .anos de, trab~lbo •jnterjor,. ajudada
• ''da noção de 'pec·ado.<-E fica um sentimento de· vazio, de in- pela mudança das condições ,d.o meio. ,,, Com deito, ,o ,autor
. com]?,letüde~.'que ·o· fet~or. ·l'éligioso não soluciona.. , d'Os condenados., qt;i_e.term~n.ava, .os: seus,: livros ·F?m. um.
•••., , N' A ~-Í~aJ4
ve:iJ,elhà: finaÍmenie, último da séri~, Oswald Laus Deo e ,procurava a tranqüilidade pela ~ediação da escada
de Andrade redime .o sel! ;estilo, lib_ertanc!o-s~quase por com- dé Jacó, vivia elas graçasdo. café na alta. A sua Caélillac ver-
de ficou·· famoS,a rids· 8.nais do Modernismo., •
pleto do verbalismo. Psicologicamente o fivro 'continua pri-
mário, mas avulta riele • a força· poética, -dom -deste escritor ''.As cotações de Santos chegavam pela ..campainha regular
emotivo; Tendo ··pouco: valor como romance ·como· análise e •do fone assegurando .a gasolina que por , desfastio de cinco
interptei:ação' da conduta, A ·escada possui, ·wdavia, .o ·episódio horas até o. jantar_eu asfaltava. em primeira, segund3:, tei-ceira
da ilha, extraordiriadamente belo, onde · vemos as qualidades màrcha-ré no aprendimento ajardinado de. bangalôs Rua
de poesia e de expansão do eu que fizeram de Oswald de Augusta abaixo." (Mem1rias senti"!entais de· João Miramar).
Andrade, na fas~ -porvéntura mais significativa. da sua carreira, Os muitos terreQ.os'que .possuía. salvaram-no mais tarde
um teórico do primi_tivismO. da pobreza, depois de ·um período. áspero de provações.

40 41
·"A valorização do café foi uma operação imperialista. A isso, unia- libertação muito maior que A trilogia} esb~çada e
poesia Pau Brasil também. Isso tinha que ruir com as cor'. na maior parte escrita antes dela (A escada, tendo sofrido mo-
netas da crise. Como ruiu quase toda a literatura brasileirà dificações profundas até sua publiatção, em 1934).
"de vanguarda", provinciana e suspeita, quando não eXtre- À medida que se ia integrando. !1ªs tentativa~ de renova-
mamente reacionária." ( Prefácio de Serafim Ponte Grande). ção •artística iniciada em Vinte-e-Dms, o romancista dannun-
A sua evolução moral e mental acompanhou a transfor- ziano pela forma e tradicionalista pel~ _ideologia (;efl~xo de
mação social do país, condicionada talvez por ela. A alta vira uma personalidade mergulhada no est~tlcrsmo burgues) ra ven-
florescer um romancista torturado pelo problema do mal, ma- do crescer dentro de si os germes exrgent:~ do •protesto_- A,_o
niqueu parnasiano e místico; a quebra, que o atirou na rua publicar A estrela ~e absinto, em ~9~7, 1a lançara ~avia tres
da amargura, apressou o afloramento do escritor revolucionário, anos a sátira maravilhosa das Memorias, que contradiz grande
"possuído de uma única vontade. Ser, pelo menos, casaca parte das tendências manifestadas naquele livr?._ Parece q".e
de ferro na Revolução Proletária." (Idem) Oswald de Andrade quis respeitar as contrad1çoes que sentia
nele próprio, porque ainda não percebera claramente como re-
A trilogia permanece como inventário dessa fase, mas o
solvê-las. Só em 29 o Serafim estoura, rompendo ~º1:1 o m~m-
seu valor literário é reduzido. É uma tentativa falha de ro-
do onde vivera, e mesmo assim só em 33 será d,,ad<;a publica-
mance, revelando aliás um Oswald de. Andrade diferente da - e' narrada n'A escada com tecmca da fase
lenda, ·- profundamente sério, não raro comovido, roçando, ção; a conversao
por inabilidade, no ridículo de um patético verboso e falso. anterior.
Todavia, sente-se nesse montão de esboços trabalhados uma Portanto de 1920 a 1930 Oswald de Andrade atravessa
personalidade wrte, uma vitalidade romanesca que lhes dá, um período c~ntraditório, cheio de altos e b~ix?~; _procuran~o
num ou outro ponto, qualidade superior. E da mesma maneira encaminhar para o nacionalismo poético um m1st1~1smoque nao
por que o tenebroso, o sinistro mau gosto de Euclides da Cunha 0 satisfazia mais, malhando ambos com a anarquia de um pro-
não matou o seu talento e as suas intuições geniais, o testo ainda incoordenado, invertendo de novo os termos, ba-
gongorismo desvairado de Oswald de Andrade não chegou a ralhando-os adiante. . Podemos dizer que os germes do seu
abafar o escritor vigoroso que sentimos perdido. nessas páginas protesto se encontram na atitude boêmia _da mocidade, a que
medíocres, mas cheias de uma desusada inquietação. se refere no importante prefácio de Serafim:
"A situação revolucionária desta bosta mental sul-america-
* na apresentava-se assim: o contrário do burguês não era o
* * proletário, era o boêmio!"
Este escritor vigoroso aparece claramente no segundo as- Recalcado pelo catolicismo, o protesto estruge em Vin-
pecto da sua obra, isto é, o referido par formado pelas Mem6- te-e-Dois com o rompante iconoclástico da Semana de Arte
rias sentimentais de João Miramar ( 1924) e pelo Serafim Modern; e, sobretudo, as 1.Uemórias. Para ~lguns, esta_ ?_a
Ponte Grande ( 1929; 1933). Ambos são concebidos e escri- obra-prima do autor; sou levado a crer que e a boa opmiao.
tos depois da Semana de Arte Moderna( 1) e representam, por Memórias sentimentais de ] oão Miram ar, além d~ ser u!11
dos maiores livros da nossa literatura, é uma tentativa. se1;1s•
sima de estilo e narrativa, ao mesmo tempo que um primeiro
(1) Afirmação errada quanto ao primeiro, como pude veri- esboço de sátira social. A burguesia endinheirada rod~. pelo
ficar muitos anos depois pelo estudo dos seus manuscritos. Ver, niundo O seu vazio, as suas convenções, numa estenltdade
adiante, neste livro, o escrito intitulado: "Digressão sentimental
sobre Oswald de Andrade". apavorante. Miramar é um humorista pince sans rire que

42 43
"Do meu fundamental . anarquismo jorrava uma /ont/ ~~­
( como se diria naquele tempo) procura kodakar a vida imper-
turbavelmente, por meio de uma linguagem sintética e fulgu- dº o sarcasmo. Servi a burguesia sem nela c:t •".Üb/:
Coiau,/ / este livro. Um documento. Um gra icEo •. 'fº dªa
rante, cheia de soldas arrojadas, de uma concisão lapidar. Gta-
·1 . •.,•-toa
• na maré alta do capita • 1·ismo / • • •/· p1t·1 ' 10
ças a esta· linguagem viva e expressiva, apoiada em elipses e s1e1roa, fº"
subentendidos, Oswald de Andrade consegue quase operar burgnesia. Necrológio do que m. . ,.
uma fusão da prosa com a poesia. Antítese da atitude parnasiana, Serafim se iunltadas dMe-
f d - 0 O resu ta o este
"Empalada na límpida manhã •a Alemanha era uma lito- móriasJ formando ambos a ase a, negaç_~~'A escada vermelha
grafia gutura] quando os corações· meu e de Madô desceram jogo de oposições será Marco zero, md lª . . decisa e na
a nova diretriz se esboça, conquanto e maneira m '
malas em München. Paredes enormes davam comida a por-
tais góticos. Um príncipe da Baviera chegou para as calçadas forma, presa à primeira fase. .
. .. . documento mtelectual,
perfiladas e gordas hurrarem a carruagem que entrou no povo Extremamente s1gm11cat1vo com0 l l f, ·1 sob
por mitrados cavalos sólidos. E um bardo garganteou entre Serafim Ponte Gran_de ~ 1:mlivro falho e :~s::z e:g~o;~dismo
bocks na fumaça sonora das Valquírias." muitos aspectos, cuia tecmca nob ]evjd ad~ Andrade refugia no
"A casa de Higienópolis sossegava preguiças tropicais por estético. Parece às vezes que swa · de aprofun-
entre a basta erva do jardim aquintalado até outra rua com estilo telegráfico e na sínco~a-umT cJ::~ap::~1;;uito de gran-
árvores e sol lembrando a longe Fontairiebleaude minha sogra." dar os problemas de compos1çao. o '
de livro.
"O conde José Chelinini tronava corretores de todos· os
Nele deixando de lado a seriedade d' A tilogia, 0 ª~t~:
tamanhos e prepostos de largas empresas no escritório da Rua d ' ara se encontrar no seu elemento avor1t?:,~ sa
Quinze abandonado por meu abandono amoroso." se perilhe'da Sem o equilíbrio conseguido nas· Memorias sen-
"A tarde suicidava-se como Petrônio." e a P e • d r um estouro ra-
t im e_ntaisde [pº~~eM~:a~:~:r;:tí;i~:s laº\i;iedade capitalista
''Barracões de zinco das docas retas no sol pregaram-s_e 6e1a1seano, e e • d 'l " • d - temas e
como um rótulo no bulício de carregadores e curiosos pois o decadência e pelo seu caráter e cont uencia eC .
em ' d M ' • rbano orno es-
Marta largaria·só noite troplcal." tiques nacionais, uma sorte e 1 acunaz1;1au I • b 1 do
d Trilogia' Aqui o esfusiante ta ento ver a
Nunca mais Oswald de Andrade conseguirá realizar obra tamos Ionge a • ' . I luta e o seu
semelhante. O amor pela construção será síncopa no Serafim} autor é canalizado para a ironia v10 ~nta, quased~ 'rio' ridículo
imagismo aproveitado cama arma e extraor ma •
mau gosto n'A revolução melancólica. Esse livrinho. de cento
e poucas páginas, finalizadas por um perplexo Laus Deo, é o "Chove. Verdadeira neurastenia da natureza."
ponto de equilíbrio _de sua obra, entre a afirmação tradiciona- . "0 fato é que minha vida está ficando um verdadeiro ro-
lista d'Os condenados e d'A estrela de absinto e o rompante mance de Dostoievski." • •
anárquico de Serafim. A primeira, literária de mais; o segun- Podemos avaliar o c:amín h o perc~rr1 •do . se nos lembrar-
do, literário de menos. mos que estas frases do ~iário de, ~eraf1mteriam sido, no tem-
Prosseguindo nessa linha irreverente e combativa, ainda po d'Os condenados, escritas a serio . .•
abafada pelo latim litúrgico ou evangélico das epígrafes e do,
finais, ele irá explodir dali a seis anos no acontecimento·mais
sensacrona] da sua carreira de ficcionista, Serafim Ponte Grande, *
publicado em 33, como vimos, e que ele considera o ponto
de ruptura da sua obra com a burguesia.
45
44
, Finalmente, elaborando as contradições numa tentat;,ivade afasta qualquer veleidade :de aprofundament?._Psicológ\çç. Est~
.s;n_tese,Oswald de Andrade publica o primeiro volume da técnica. miudinha, este proce_ssode composiçao,em .retalhos so
serie Mar_co zero: . A revolução melancólica. O seu apareci- serve para as visões horizontais ,da vida...
mento veio precedido de uma expectativa que se prolongou Mas para _esta se- con&tituir:,é. p:i;ecis9.qu~, o, leitor _.possa
durante ~n_o~,autor e público sentindo que se tratava de um no fim perceber uma ordenação geral, como.. se a- poeira de
teste defm111vo. Todos sentiam confusamente que em Oswald cenas se .organizasse numa visão _de .Conju.ptoque requ~r, .9-a
de Andrade o homem de ação literária superava O escritor e parte do autor, força e habilidades excepcionais. Do, c~ntrá-
que esta ação ha~ia sido sobretudo de presença. Uma .presen- rio, resulta apenas um. panorama de detalhes, sem a umdade
ç~ enor-me, catalizadora, barulhenta, remexedora por excelên- e a amplitude. desejadas, -, o que é de certo modo o. cas?
c1~. Deve-se .ª ~le_ muito do movimento modetnista, de que deste livro onde Oswald de Andrade aparece numa pqs1-
fo1 um dos principais fermentos e um dos coordenadores· e ele ção de equllíbrio instável, que não é fácil definir.
se ~aba f!e.qüe_,uementede haver solicitado vocações ~ pro- Uma das condições de perfeíção de um romanc.e,é o fato
movido afirmaçoes, o que parece exato. Seu entusiasmo icono- de conter certos aspectos fundamentais da sua época. É _Sten-
clasta valeu como poucos para desabafar a literatura brasilei- dhal dando forma à luta do mérito contra os , priYilégios da
ra_de uma série~de anteparos e ilusões; sua crítica irreverente Restauração; é Balzac espelhando a agitação humana, a mobi-
f~1 ~rma_fec!'naa _de derrubada; como agitador a sua impor- lidade horizontal e vertical, que recompunha e , deslo~ava. as
tancia foi primordial. classes na primeira metade do século XIX; são Dosto1evsk~e
A obra, todavia, não correspondia exatamente à fama. Tal- Tolstoi expondo a problemática do homem russo e .o sentido
vez as próprias Memórias e o Serafim estivessem demasiado da •sua história.
presos a condições mo;111entâneas e só adquirissem pleno valor N'A revolução ?Jtelancólica não falta esta condição: s~a
reforçados pelo aparecunento de uma obra definitiva, amadu- matéria é a revolta de 1932, desabafo da g!ande. burguesia
recimento de tudo o que nelas duas, obras de combate e exem- ferida no café, seu centro vital; •um mom~nto ,excepcional de
plo, não passava de inovação e ataque, Daí a expectativa em crise numa classe em desorganização, à cuja volta gir.am, atraí-
t_ornode Mar~o _zero, a mais intensa que tenho presenciado na dos para a sua órbita, os grupos dependentes: colonos, ag,:ega-
hteratur11 brasileira contemporânea. Mas é forçoso convir que dos, domésticos, clientes. Em oposição a ela, tentando liber-
J!-re_v?luçãomelancólica- não resolveu o problema da situação tar-se da sua esfera de domínio, o número reduzido dos que
hter~r1a do -autor, e que e~tamos ainda à espera dos volumes procuram insuflar nos seus dependentes uma consciência de
segumtes para nos pronuncrnrmos. Quanto à técnica deste li- classe esbulhada e uma correspondente atitude de luta_. No s_eu
vro, ptecisamos remontar até antes de 1920 para encontrar flanco crescendo à sombra dos seus interesses e da sua in-
a_sua descoberta pelo autor, - pois ela continua fielmente 0 cúria ' os quistos raciais, insulados pelo particularis~o, ga-
cm':matog:afismo e a síncopa d'Os condenados, prendendo-se nhando a terra pelo canal das colônias rurais. No caso, os ja-
m~ito m~is a estes do_qu~ a Serafim Ponte Grande. Serafim poneses. Quanto ao momento, são as vésperas da revolta,
fo_1um zntermezzo mais smcopado dessa técnica, levada até à quando todos e.stes grupos e todos estes problemas se extre-
elipse, que faz a linguagem adquirir um valor telegráfico. mavam em incompatibilidades -agudas. Como se vê, o material
é o melhor possível; com ele o autor quis fazer romance so-
N~~ ~01;1ance,~e g~ndes proporçõ~s,.,.co~o A revolução
melancolzca, e no tona, nao tanto a defic1encia desta técnica cial como afirma no post-scriptum:
' "Marco zero tende ao afresco social. É uma tentativa de
ª,
qua?to aplicação defic!ente que dela fez Oswald de Andrade'.
romance mural."
O h~ro e um bombardeio de pequenas cenas, muitas das quais
providas da c~m)?~tente chave de ouro, - processo bom para Para falar uma linguagem que lembraria a da prudência,
captar a multiplicidade e a simultaneidade do real, mas que o livro tem muita coisa boa e muito coisa ruim. . . Como

47
46
quase tudo no mundo, - poder-se-á responder. Mas no caso não se encontra em seus rái,idos close ups. Em compensação
a frase não_é usa?ª c?mo simplificação do problema, e sim co- a sua técnica pressupõe um conhecimento por meio do dado
mo expressao mmto Justa da sua complexidade. externo, o detalhe expressivo e pitoresco, - e este aparece
O que há de bom n'A revolução melancólica é de um largamente no livro. O autor possui como poueos o dom da
bom sólido, definitivo, feliz. O que há de mau é também de expressividade pela elipse: uma demão rápida, um traço acen-
um mau·. sólido, infeliz, definitivo. Se houvesse um ritmo tuado, um corte hábil -- e eis um tipo, uma cena, um aspecto
do bom e do mau, se interpenetrando, tudo estaria salvo e tal- significativo ou simbólico. Habilidade perigosa, pela tentação
vez Os';'a_Id de An_dr~~etivesse feito uma obra-prima, - pois de malabarismo verbal e técnico, a que ele nem sempre resiste.
~esenvo1v1mentodialeuco do bani e do péssimo são muitos A sua força em condensar e em revelar por meio do traço
livro_sde Balzac, que vivem justamente da força ordenadora que justo leva-o ao culto da imagem. Sempre o levou, e A tri-
domrna ambos os aspectos, combinando-os. Mas neste romance logia do exílio é uma série sufocada pelo abraço da metáfora.
há um paralelismo irremediável do bom e do mau coexistindo es- No livro de agora, a forma se apresenta muito mais despoja-
t~nq_ues,este atrapalhando aquele e não justificando a sua exis- da, embora o .mau gosto e o primarismode certas imagens ain-
tencia. Faltou ao_ autor .destr~za para enfeixar as linhas que da choquem desagradavelmente.
t!açou e dar ao livro a rntegridade das obras fortemente rea- A metáfora é um caso literário muito sério e o seu valor
lizadas, onde as deficiências se tornam desarmonias normais na expressão é capital, contanto que valha por si, como rea-
1:um_todo comple~o. Daí a antinomia entre concepção e rea- lização formal de uma intenção que encontre nela, e só nda,
lizaça?· O concebido ~ quase grandioso e já ficou dito quanto a sua plenitude. Usada como reforço amplificador, escorrega
, possm de largueza e vigor, enquanto o realizado está longe de rapidamente para muletâ áe estilo, e estilo que precisa de mu-
Ih~ corresp_onder. E é esta antinomia irremediada que su- leta aleijado está.
prime no livro a possibilidade dialética de ultrapassar as fra-
quezas, vencendo-as por meio de um · dese:nvolvimento fe- Certas qualidades, como disse, são definitívas n'A revo-
cundante. lução melancólica e lhe garantem um nível digno em nosso ro-
Quantas vezes não paramos no meio da leitura d'A. revo- mance, como é o caso do aspecto documentário,que possui no
lução_me~anc1l!capara to1nar folego, cansados de esperar uma melhor sentido. O autor penetrou no mecanismo social de
sol~çao hteraria para as perspectivas que o romancista vai uma fase da evolução brasileira e conseguiu trazei" para a lite-
abri1;do a pequen':.s golpes_.. A impressão é de rodada em falso, ratura as suas linhas significativas, mostrando-se criador no
movimento que nao progride., J:s!a·poeira das pinceladinhas, Os- próprio fato de as ter selecionado. Repito, pois, que a esco-
wald de Andrade v_aiIarg~ndo unta de muitas cores, e não pa- lha do tipo de romance correspondente à sua intenção foi acer-
~ece que elas consigam dispor-se conforme o afresco que ele- tada; a realização é que não se manteve à altura.
rnten_to~. Me~mo P,ºr':lue ( l:ª!Rite_de leigo) não creio que o Os personagens, em grande número e de vária espec1e, se.
pontilhismo seJa a tecmca mais rnd1cada para os-murais. ressentem da limitação que a técnica impôs à psicologia: são
Esta é a restrição que penso poder fazer à estrutura mais pitorescos que impressionantes, tendo mais significa-
~'A ,r:voluç!o melancólica e ao seu significado como criação do alegórico do que. humano. Neste romance de tipos, não
hterarrn. S~o de. outra natureza as observações sobre a lingua- há um granP,etipo, salvo talvez a italiana velha - Miguelona.
gem e a psicologia. Mas embora sejam fracos individualmente, os personagens ad-
Est~ continua sumária. Aliás, não é condição essencial quirem maior realce tomados em cohjunto, como aliás devem
Pª:ª o llpo de 3oma~ce ,q':'e ~•wald de Andrade quis fazer, ser num "romance muraP'. Vistos assim, o seu valor simbólico
pois a penetraç~o p~1c_olog1ca e geralmente condicionada por não choca tanto e eles vivem da ciência do relacionamento se-
certo grau de d1scursiv1dade,de desenvolvimento literário, que gundo a qual o autor os movimenta.

48 49
De qualquer modo e embora seja uma realização bastante
deficiente, A revolução melancólica é uma vitória, do pohto 3
de vista da diretriz literária. Ultrapassou o esteticismo desvai-
rado da fase católico-parnasiana, assim como a crítica pura-
mente negativa do período seguinte (porventura melhor, lite-
rariamente falando), lançando-se numa perspectiva sintética de OSWALD VIAJANTE
crítica social construtiva. Com este livro o, autor parece ter
encontrado a solução, esboçada n!A escada vermelha, para as
tendências contraditórias que existiam nele. Ora, harmoniz.ar
tendências contraditórias significa um progresso apreciável, em-
bora a fraqueza deste romance de Oswald de Andrade talvez
possa ser atribuída a corpos estranhos que ainda 'perturbam
a síntese visada. Tenho a impressão de que com o correr do
tempo e dos volumes, Marco zero se tornará uma obra final-
mente à altura do nome de seu autor, caso este consiga solu-
cionar as sobrevivências da fase dannunzjana, forjar um estilo
tão expressivo qu!lnto o das 1Vf.emórlassentimentais de João
Miramar e conseguir, finalmente, aprofundar a psicologia dos
seus personagens.
(1944)
'

Nota bibliográfica dos livros citados:

1 [A trilogia, do exílio] - Os condenados} Monteiro Loba-


to & Cia., São Paulo, 192:&; A estrela de absinto} Editorial Helios
Limitada, Idem, 1927; A escada vermelha, Companhia Editora
Nacional, Idem, 1934.
2 Memórias sentimentais de João Miramar, São Paulo,
1924 (Livraria Editora Independência); Serafim Ponte Grande,
Ariel Editora, Rio de Janeiro, 1933.
3 Marco Zero - 1. A revolução melancólica, Livraria José
Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1943.

50
Num poema famoso, diz Baudelaire que, para o menino,
o mundo é tão vasto quanto a sua imensa curiosidade, quando
o contempla à luz da lâmpada sob a forma de mapas e esrnm-
pas; mas fica pequeno à luz das recordações, quando já vive-
mos o bastante para medir a sua exigüidade em contraste com
as . aspirações do início.

Pour l'enfant, amoureux de cartes et d'estampes,


L'univers est égal de son vaste appétit.
Ah! que Ie monde est grand à Ia clarté des lampes !
Aux yeux du souvenir, que le monde est petit!

Pensando que Oswald de Andrade morreu, isto é,


que partiu, - lembro-me com insistência da função desempe-
nhada em sua vida e obra pelo tema da viagem; função de
sonho e ideal que o irmanam ao menino de Baudelaire,
Para a sua personalidade, sabemos que foi decisiva a ex-
periência da Europa, antes e depois da guerra de 1914. • Na
sua obra, talvez as partes mais vivas e resistentes sejam as que
se ordenam conforme a fascinação do movimento e a experiên-
cia dos lugares. Memórias sentimentais de João Miram ar e
Serafim Ponte Grande se desenrolam em torno do desloca-
mento de personagens entre o Novo e o Velho Mundo, expri-
mindo a posição do homem americano, •que ele viveu com in-
tensidade, ao adquirir consciência da revisão de valores tradi-
cionais em face das novas experiências de arte e de vida.
No João Miramar, em cujo nome está a vocação e a con-
templação do oceano, o narrador se refere a este de modo
simbólico:
"E minha mãe coberta de beijos deixou que eu fosse ver
em Santos o mar dos embarques".

53
N~o o mar das ?ndas ou das nereidas: o dos embarques. e realidade, graças a uma sintaxe admiravelmente livre e cons-
Junto a moça conqmstada em Paris, os amores dão luga'r a trutiva. Estilo de viajante, impaciente em face das empresas
imagem não menos significativa: · demoradas; grande criador quando conforma o tema às ilumi-
. "Era filha pubertada du dono do restaurante de olhos nações breves do que ele próprio chamou o seu "estilo tele-
azuis. As pátrias longínquas cresciam no inverno da sala como gráfico".
legumes tardios. E o escuro das escadas subia quedas ao séti- "Fora sempre um fragmentário" - diz do protagonista
mo andar. Sonhamos um livro de viagem". d'A estrela de absinto. "Em torsos quebrados, metades, es-
Viajar para ele é não a,Penas buscar coisas novas mas tudos largados, concentrava, numa predileção alegre e constan-
purgar as lacunas da sua terra: ' te, a força reveladora da sua arte".
. "Iríam~s _em tournée à Europa. E pela tarde lilás do Nestas linhas ( que exprimem muito do que sentia a seu
B01s, ela guiana a nossa Packard 120 H. P. Sairíamos nas fé- próprio respeito) percebemos todo o drama da sua criação,
rias pelos caminhos sem mata-burros nem mamangavas nem ta- posta entre ancestralidades poderosas e impulsos de ,liberda-
turanas e faríamos caridade e ouviríamos a missa dos bons curas de, que nunca se harmonizaram de modo a permitir uma ins-
nas catedrais da Idade Média". piração unânime. Dissociaram-no, pelo contrário, em experiên-
No entanto, estando longe sente que: cias sucessivas, semeando a sua obra de contrastes e mesmo
contradições.
"Nostalgias brasileiras
Este anseio de realizar contra as peias da tradição e da
São moscas _na sopa dos meus itinerários'-'.
educação encontraram na viagem um dos correlativos. N'A f!S-
Isto, é claro, porque a viagem era também um meio de cada vermelha, escreve, revelando impulsos de peregrino:
c?n~ec~r e senti1; o Br~sil, sempre presente, transfigurado pela
d1stanc1a. Por Isso, ha nele pouco dos famosos exiles norte- "O mar libertava de uma certa maneira.-. Obrigava a
-americanos, seus contemporâneos na França; e muito dos estu- gestos, vozes altas, arrojadas empresas".
dantes fluminenses que no decênio de 1830 fundaram em Paris Através do personagem, acha com efeito a libertação, no
a revista Niterói e de lá entenderam melhor o que a nossa lite- admirável entremeio marítimo que é a estadia na Ilha Verde,
ratura precisava. engastado no livro como presença da melhor literatura. Li-
Daí, na sua obra, certa reversibilidade Brasil-Europa, que bertação é o tema do seu livro de viagem por excelência, Sera-
esclarece o sentido da viagem como experiência do espírito 'e fim Ponte Grande, onde a crosta da formação burguesa e con-
do sentimento nacional. Desta reversibilidade poderíamos in- formista é varrida pela utopia da viagem permanente ,e reden-
dicar uma imagem belíssima do João· Miramar no parágrafo tora, ,pela busca da plenitude através da mobilidade.
1

denominado Pas de Calais: A prosa fluida e cintilante deste livro, a sua estrutura ins-
"Pequeno vapor que nos empurrou de Dover sobre rodas tável, o movimento incessante dos personagens que entram e
contínuas no meio da noite: O tombadilho encapotava-se de saem, das terras que surgem e passam, mostram bem claramen-
sombras mas como perdêssemos as luzes inglesas achamos as te a estética transitiva do viajante, que elabora a visão das coi-
luzes de França no mar". sas pela composição divinatória dos fragmentos rapidamente
apreendidos.
A viagem para ele foi isto: translação mágica de um
ponto a outro, cada partida suscitando a revelação de chega- Aí, realiza o desejo de agitação para libertar, ao explo-
das que são descobertas. E o seu estilo, no que tem de genuí- dir a rotina da vida do protagonista por meio da existência
no, é movimento constante: rotação das palavras sobre elas se?1 compromissos a bordo dos navios que, pouc::oa pouco, vão
mesmas; translação à volta da poesia, pela solda entre fantasia samdo da realidade para entrar nos mares do sonho. Todos

54 55
lembram como o livro acaba: uma espec1e de superação total 4
das normas e convenções, numa sociedade lábil e efrante, fOr-.
mada a bordo de EI Durasno, que navega como um fantasma
solto, evitando desembarques na terra firme da tradição. Sob
a forma bocagiana de uma rebelião burlesca dos instintos,
Oswald consegue na verdade encarnar o mito da liberdade in- DIGRESSÃO SENTIMENTAL
tegral pelo movimento incessante, a rejeição ~e qualquer per-
manência.
SOBRE OSWALD DE ANDRADE
"Passaram a fugir o contágio policiado dos portos, pois
que eram a humanidade liberada. Mas como radiogramas re-
clamassem, El Durasno proclamou pelas antenas peste a bordo.
E vestiu avessas ceroulas e esquecidos pijamas para figurar
numa simulada quarentena em- Southampton. Todos os passa-
geiros recusaram a desembarcar. Sem dinheiro, tomaram car-
regamentos a crédito. E largaram de repe_nteante os semá-
foros atônitos. Encostaram nos mangueirais da Bahia. Sem-
pre com peste. Depois em Sidney, Malaca, nas Ilhas Fidji,
em Bacanor, Juan Fernandez e Malabar. Diante de Malta,
Pinto Calçudo arvorou a cruz de Malthus."
É a arrebentação redentora, para libertar. Tão profunda,
que em Oswald nunca deu lugar a retração nem desvio. Um
dos seus últimos trabalhos foi a série de artigos sobre as uto-
pias, em que procura conforto para o nosso tempo, refundin-
do os ideais da sociedade perfeita, ligados às grandes viagens
que inauguram a Idade Moderna. No primeiro volume das suas
memórias entrega-nos as fontes pessoais dos anseios e proble-
mas que dramatizou na ficção, numa viagem interior à busca
das raízes do seu ser inquieto e agitado. É que nele permane-
ceu vivo o amor juvenil pelo sonho, à luz da lâmpada de Bau-
delaire, que faz parecer tão grande o mundo, sob as cores de
uma fantasia que depois cede no adulto, quando se ampliam
em seu detrimento as divisas do real, - mas que são preser-
vadas na mocidade constante dos poetas. Em Oswald, elas
continuaram, mágicas, elásticas, fascinantes. E quando lem-
bramos que está morto, pensamos involuntariamente que par-
tiu para mais uma viagem, buscando novos mundos para a sua
fome antropofágica de sonho e liberdade. Oswald, viajante.
(1954)

56
1 O caso do artigo.

O ensaio "Estouro e libertação" é muito velho, e só


entra aqui porque a voga atual de Oswald de Andrade levou
algumas pessoas a mostrar curiosidade por ele. O seu umco
mérito foi o de ter sido, salvo erro, a primeira e até então mais
longa tentativa de analisar o conjunto da ficção de Oswald.
E tem uma pequena história que talvez interesse, como pretex-
to para falar dele.
Publicado em 1945 no livro Brigada ligeira, fora escrito
em 44, refundindo e ampliando três, ou antes, dois artigos e
meio aparecidos em 43 no meu rodapé semanal de crítica da
Folha da Manhã: "Romance e expectativa" ( 8 de agosto),
"Antes de Marco zero" ( 15 de agosto) e "Marco zero" ( 24
de outubro).
Numa nota final deste livro, informa Oswald que "foi
iniciado em 1933. Os seus primeiros cadernos trazem essa
data. O presente volume foi realizado em 1942". Diga-se de
passagem que nesse ano Oswald precisou de uma secretária
para aprontar os originais em tempo' de apresentá-los a um
concurso ( do qual saiu premiado Jorge Amado com Terras
do sem fim); foi como conheceu e veio a casar com a dedica-
díssima Maria Antonieta de Alkmin, para quem escreveu o
"Câ~tico dos cânticos para flauta e violão" e que cuidou dele
até à morte com zelo perfeito.
Marco zero tinha uma espécie de fama antecipada, pois
toda a gente sabia que estava sendo preparado com a minú-
cia documentária de quem, após ter baseado a sua obra prin-

59
1
11.
1

1\
l,
cipalmente na transposição da própria exper1encia,queria pâ;r um balanço na obra precedente, a fim de situar a' que deveria 'I
11
em primeiro plano a observação da sociedade. Era como se coroá-la.
Oswald sofresse a pressão de um atavismo literário vindo de Os meus dois primeiros artigos, relidos depois de_tanto tem- i!
seu tio Inglês de Sousa, a quem admirava bastante. po, são cheios de erros e têm aquela agressividade ?'ISturada de
Em 1935 a revista Boletim de Ariel publicou dois peque- condescendência que parece tão oportun_aa~s _vmte e cm:o
nos trechos fortes e originais, que foram o meu primeiro con- anos. Oswald tinha razão de sobra para ficar 1mtad_o,mas ':ªº
tato com a sua obra e me induziram a ler Serafim Ponte Grande, 0
demonstrou na dedicatória com que mandou o livro, dali a
meio aos pedaços e com muita risada, numa livraria bem sor- dois meses:
tida de Poços de Caldas. Ambos os trechos descreviam ma-
lucos de rua: um ricaço que se acreditava mendigo, e .uma "POR SER DE JUSTIÇA
quase mendiga que se tomava por mulher de negócios. Con- Ao Antonio Candido
tava-se que esta era baseada numa coitada qlie vagava pela P. Deferimento
zona bancária de São Paulo, com a pasta cheia de transações
imaginárias, como há de lembrar a gente daquele tempo. E o
quando a víamos passar de boina vermelha, resmungando de Oswald de Andrade
cara fechada e a megalomama debaixo .do braço, era como se 9-10-43".
víssemos um personagem solto das páginas onde fora recolhido.
Os trechos tinham uma designação geral: '-'Duas criações
da cidade americana", e um subtítulo entre parênteses: "Apon- O romance me decepcionou, e àquela altura eu já estava
tamentos para Beco do escarro) primeiro volume de um ro- melhor documentado para sentir que ele não superava os pre-
mance cíclico paulista Marco zero". Na seriação final o dito cedentes conforme a expectativa. Escrevi o artigo final, res-
volume passou a ocupar o número .3, e não sei se foi redigido; salvando' o que podia e carregando nas restrições. Oswald
em todo o caso, os trechos não foram aproveitados n'A revo- danou e respondeu com o artigo divertido e contundente r:•
lução melancólica nem em Chão. Não o foi igualmente um produzido a seguir no seu livro Ponta de lança, da -Coleçao
outro, aparecido na mesma revista em 19.38, com o título Mosaico ( Editora Martins).
"Natal no arranha-céu"e a menção: HDo romance Marco zero, Quando veio a oportunidade de c~mpor Brigada ligeira,
em preparo". ( 1 ) . a convite do amigo José de Barros Martms, para a mes~a C~-
No começo do decênio de 40, Oswald fez em sua casa leção, ( 2 ) decidi voltar aos artigos e reuni-los 1:um en~aio mais
mais de uma leitura de capítulos prontos, segundo me contou elaborado, que é "Estouro e lib~rta~~º": O livro s~m no se-
quem ouviu. Nas rodas, falava-se desse romance preparadíssi- gundo semestre de 1945, quando Ja t1nham apar_ec1d~o se-.
mo, anunciado como a realização mais completa do seu autor. gundo volume de Marco zero (Chão), q~e todavia nao estu-
Por isso, quando eu soube que ia finalmente sair, resolvi dar dei e as Poesias reunidas, ambos os quais ele me dera com
dedicatórias normais, embora andássemos meio secos.
(1) A principio Marco zero foi planejado em três volumes:
Beco do escarro (industrialização), Terra de alguns (latifúndio), (2) Encoiltrei outro dia um bilhete de Mário d~ Andrade a
A presença do mar (imperialismo) - como lemos numa riota de
redação do Boletim de Ariel (IV, 6, 1935). Depois foi desdobrado respeito: "Antonio Candido. Estive on!e~ ~o Martin~ e ele _re-
em cinco, publicando-se afinal apenas os dois primeiros: A re- clamou mais uma vez e inquieto os originais de voce. ~ss1m,
volução melancólica (1944), Chão (1945), Beco do escarro, Os ca- depois, fica difícil sair em tempo, não se esqu~ça que_ ~ ~im de
minhos de Hollywood, A presença do mar. ano é tempo de. muita atrapalhada nas tipografias. Mano •

61
60
Lido ag?ra, o-~en.saio me impressionou sobretudo com.o para a sua intimidade, associando-mede Vários modos à sua vida
exe':'plo da 1mpo':_tanc1a.q~e a perspectiva temporal pode as- e à sua obra.
sumir na construçao do JUJZO crlt!co. Pelo fato de em 194'3
Oswa)d estar _vivo e _em plena forma; sobretudo p~lo fato d;
anunciar que_Ia publicar a obra_máxima, todos admitiam que 2 Com o "grupo de Clima".
~ s~a. pr?duçao era_mesmo algo mcompleto, necessitando maior
11;1stificat1va.A nmguém ocorria que já tivesse feito O sufi-
c1ent~_para não haver mais necessidade de obras novas como Foram mutáveis e curiosas as suas relações com os moços
c?ndiçao. do se1;1lugar na literatura. Ele era o autor de Memó- conhecidos naquele tempo como "grupo de Clima", nome da
rias !entzm_ent~zsde João Miramar, Serafim Ponte Grande, Pau revista que redigimos entre 1941 e 1944. Vistas·as coisas com
Braszl,, Przmezro caderno do aluno de poesia; do "Manifesto o recuo do tempo, ocorre-me que talvez nenhum outro gru~o,
antrop?fago" e alguns artigos geniais de polêmica. Todavia, na época, se tenha ocupado tanto com a sua obra, quando es-
eu (nos) esp7rava (mos) por uma confirmação, um coroamen- tava em moda c011siderá-losobretudo um piadista de gênio,
to,,9ue_ele teimava em anunciar como tal! O autor ajudava 0 o que de fato era, sem prejuízo de coisa mais sólida. Naquela
cnt;c~ a errar; e este não percebia que o que viesse viria por altura havia uma espécie de soberania intelectual exercida em
acresc1mo. São Paulo por Mário de Andrade, - instalado diariamente
na mesa de chopp do Bar Franciscano, à rua Líbero l3aclaró;
Uma das constantes do ensaio é de fato a obsessão com e depois da sua morte, em parte por Sérgio Milliet. A volta
"expectativa" e "justificação", produzindo distorção do juízo. deles juntava-se o grosso da vida literária e Oswald ficava meio
Obsei:v?, por e~empl~, como era intenso o meu entusiasmo por à margem; mesmo porque o seu sarcasmo desmanchava de
Memorias se~ttment~zs e Serafim Ponte Grande; mas como o um lado o que o seu enorme encanto pessoal tinha construído
atenuo o mais possivel, porque o melhor ainda deveria estar de outro.
pela f~ente, já que Oswald não dissera a palavra final. . . Vendo
de hoie, é claro, que em matéria de ficção esta palavra estava De nós, quem o conheceu primeiro foi Paulo Emílio
dita com aqueles dois livros. Salles Gomes; logo depois, Décio de Almeida Prado. Isto,
lá por 1935, tempo do Quarteirão (iniciativa cultural de es-
. Mas _voltando aos fatos: o resultado no terreno pessoal querda) e da revista Movimento, que ambos redigiam. Paulo
f01 bem diferente do que eu esperava. Certo dia, no fim de 45 Emílio andava pelos dezoito anos, era muito combativo e cheio
ou começ? de 46, estando eu na Livraria J araguá ( a velha de iniciativas, com certo gosto pelo barulho que depois per-
a ver?a?eua), entra ele, dirige-se a mim e "dizmais ou meno; deu. Num artigo, louvou José Líns do Rêgo em detrimento
que fizera I"?ªIem :eagi: com ·vee1:1êncíacontra o último artigo de Oswald, que replicou abespinhado num "Bilhetinho a
da_Folha. da l':{anha, pois no ensa10 eu mostrara não me haver Paulo Emílio", onde o denominava "piolho da Revolução".
deixado mflu~r por is:o, conservando uma atitu.de objetiva. Como sucederia no futuro a todos nós, as relações com o gran-
Pr~punha ~ntao con?olidar a nossa amizade e declarava que de escritor se pautaram desde então pela mistura de es-
da)i por diante _eu ficava com a liberdade de escrever o que tima e agressividade, dos dois lados.
qmsesse ~ respeito de sua obra, que ele não se molestaria nem Foi Paulo que me apresentou a Oswald e me levou, .no
responderia.
começo de 1940, à velha casa da rua Martiniano de Carvalho,
Este gesto extremamente cortez e generoso mostrava o onde morava com sua mulher Julieta Bárb-;ra, os filhos Rudá,
homem_sem rancor, de alma bem formada, que era Oswald. menino, e Nonê, já chefe de família. Nenê ( Oswald de An-
A pa~tlr de_então e até sua morte, em 54, ele me tratou com drade Filho), que fizera as capas d'A escada vermelha e
0
ma10r carmho, lutando contra a minha bisonhice, levando-me d'O homem e ··o cavalo, tinha um atelier na garage, onde
62 63
íamos admirar o belo Retrato de Rossine Camargo Guarnieri. Emílio, ideador-e organizadordo número: "A sua geração lê
As nossas visitas eram domingo à tarde e se prolongavam ~té desde os três anos. Aos vinte tem Spengler no intestmo. E
à noite, estimuladas pela cortesia calorosa do anfitrião um dos perde cada coisa!'' No número 8 (janeiro de 42) saiu o ar-
mais perfei!os qu~ . conheci. Na saída, íamos inc~rporadcs \ tigo de Ruy .Coelho sobre a nova edição de. Trilogia do exílio,
mostrar a algum visitante de fora, mais abaixo na mesma rua com os três volumes reunidos em um, sob o título do primei-·
uma enorme casa fantástica, que emergia de um buraco e erc~ ro: Os condenados. ( 3 ).
feita em vários planos ligados à rua por passadiços e escadas Por esse tempo eu não freqüentava mais a casa de Os-
com cena~ da hi~tória portuguesa. pintadas nas páredes exter~ wald, onde Ruy era íntimo e muito festejado, sendo dentre
nas e dois .leõesrnhos na entrada principal, que parecia uma nós o que no momento tinha relações mais cordiais com ele.
ponte levadiça jogada sobre o absurdo. O seu artigo era justo, em certos pontos elogioso, noutros res-
D?s que freqüentavam, lembro, além de nós, apenas de tritivo encaixando algumas piadas, das que Oswald gostava
AJ?arecida e P~u!o. Mendes de Almeida, Giuseppe Ungaretti, de faz~r com os outros, mas não de receber. Ele subiu· a serra
Giuseppe Occhiahm, Carlos Lacerda, Vinicius de Moraes. Mas e interrompeu as relações com Ruy, coisa que nunca fez a ne-
vi também Augusto Frederico Schmit e uma vez histórica nhum outro de nós, mesmo quando zangava de fato. Em 4 5
Guilherme de Almeida, no dia em que foi fazer a visita d~ Ruy deixou o Brasil e só voltou em 52. Escusado dizer que
reconciliação, depois de uma briga de -muitos anos. Rudá deu Oswald esqueceu-a turra e falava dele com a maior simpatia.
um show de conhecimentos geográficos inesperados para os Em 43 e 45, como foi dito, saíram os meus artigos e o
seus dez anos, e os dois amigos evoc-aramo caso tumultuoso ensaio; ainda em 45 alguém muito ligado a nós, o pintor
de Landa Kosbach, que vem contado com menos detalhes no Clóvis Graciano, • publicou, na sua rNuintada. Edição. Gaveta
primeiro volume de Um homem sem profissão. as Poesias reunidas. E. aí está porqu~. falo d.e um interesse
Oswald nos tratava bem e ao mesmo tempo fazia troça constante do nos_so-grupo .pela ·sua obra,. -,..
de nós, como era seu hábito, inventando diversas piadas e nos Em 1946· ou 47, numa palestra brilhantíssima e cheia. de
pondo o ,!'Pelido de "chat~~boys", que pegou. "Chato-boys" humor, no Colégio Livre de Estudos Superiores,· à, rua .Gen7-
Eorque, segundo ele, ~-~J~ª-19_s~~-
bem___
~9J!Jp_or.tados,_sé:fíQs_~_ ral Jardim, traçando um panorama d~s movimentos culturais
tes do tempo. Quando fundamos Clima em 1941, por inspi- de São .Paulo .a partir do <Modernismo, Oswald divulgou a sua
ração aeJtlfredo Mesquita, pedimos o artigo de abertura a versão final .sobre nós, indicando nominalmente um por um e
Mário de Andrade ( "Elegia de Abril", recolhido em Aspectos
da literatura brasileira), o que certamente contribuiu para (3) Na verdade,· A: trilogia do exílio só ·existi_~ _como titulo .
a~irrá-lo. Mas_apesar de nós também estarmos sempre dando geral em fase de projeto e, na prática, para 08- 9o_nderia'dos,'·que
bicadas nele, era grande e eu diria quase excepcional no tem- aliás trazem apenas aquela designação na folha de rosto. 'Qú.ando
po o apreço que manifestávamos por ele e sua obra. saiu o segundo volume, A estrela de absinto, o título da série já
era Os ronJ,ances do exílio, abrangendo A escada, "~ sair". Mas
Assim, no número 4 ( setembro de 41), por iniciativa e esta apareceu .sete anos depois como livro independente, sem ~ual-
com uma nota de Ruy Coelho, transcrevemos o admirável ar- quer menção ao ciclo, embora fizesse parte dele inclusivê pelo
aparecimento de· personagens comuns. · Na reedição, Oswald
tigo satírico "Antologia", que ele publicara em 1927 contra reconheceu e consagrou a unidade inicial dos três romances, dan-
o grupo nacionalista da ''Anta,, (Cassiano Ricardo Menotti do à série o nome do primeiro e ao primeiro o de Alma. Isto posto,
dei Picchia, Plínio Salgado, etc.). No número 5 ' ( outubro como designá-los ·sem fazer confusão? Em 1943 ,optei arbitraria-
de 41), pedicado a Fantasia, de Walt Disney, ele foi convidado mente_ pelo titulo do com1:;ço,o que continuo a fazer até.nova.ordem
para efeito de clareza. Do contrário, seria preciso .distinguir a ..
a colaborar mas enviou apenas um excelente bilhete, que foi cada instante Os condenados, romance de 1922. de Oa cond~nados}
posto como abertura, onde nos dizia, dirigindo-se a Paulo série de .1941. •

64 65
louvando com generosidade a contribuição que, segundo ele, sede da secção paulistana. Dos presentes, lembro de-Mário de
cada um tinha trazido a diversos setores da crítica. Mas como Andrade, Sérgio Milliet, Mário Neme, .Abguar Bastos; mas -
não quis desperdiçar a alcunha divertida que forjara; achou -havia alguns outros. De repente entrou Oswald •todo .de bran-·
jeito de encaixá-la, apesar de coletiva, a propósito de apenas co e, ao ver quem estava ali, deu um vago· bom dia geral,·
um, - de certo o único co~ quem não andava de relógio enquanto Mário ficava impassível.
acertado. E disse mais ou menos, a certa altura da enumera-
ção dos grupos literários: "E há também os· chato-boys, re- Começou então ·a informar sobre as suas gestões no Rio,
presentados pelo Sr. Lourival Gomes Machado ... " de onde acabava de chegar trazendo mensagens e novidades:
todos lá estavam entusiasmados, Otávio Tarqu(nio era o pre-
sidente~ urgia nos organizarmos em São Paulo, de cuja secção
toda a gente achava que o presidente deveria ser Mário, "opi-
3 Os dois Andrades. nião com que estou inteiramente de acordo", ajuntou. A troca
de idéias se generalizou e dali a pouco -Mário tomou a pala- •
Um fato comentado naquele tempo era a briga entre . vra, falando também •em geral e para todos, finalizando· mais •
Mário e Oswald de Andrade, ocorrida se não me engano por ou menos assim: "Quanto à idéia apresentada·aqui de que eu
volta de 1929, depois de escaramuças anteriores. Nunca mais devo ser o presidente, quero dizer que não concordo e não
fizeram as pazes, embora tivessem alltes sido o maior amigo aceito." OsWald, tornando a falar, intercalou uma resposta
um do outro, desde o momento em que Oswald descobriu lite- no mesmo tom, insistindo no caso. E por aí foram mais um
rariamente Mário ( que conhecia desde 1917) e viu nele a rea- pouco, nessa conversa indireta, como se o outro não estivesse
lização do que aspirava em matéria de reforma, como deixou presente, - quando a certa altura Oswald soltou uma daque-
patente no famoso artigo "O meu poeta futurista" ( 1921). las suas eXtraordinárias·piadas e nós nos pusemoJ.a rir. Mário
Por que motivo brigaram, nunca perguntei nem eles me dis- tentou manter seriedade e ficar de fora; retesou o corpo, tre-
seram. Sei que houve uma ruptura maior, ficando de um lado meu a boca não agüentou e desandou também num riso amar-
Mário, Paulo Prado, Antônio de Alcftntara Machado; de outro, rado mas ;acudido e intenso. Oswald, que ao fazer .a piada
Oswald, Raul Bopp. olha~a para ele como quem observa o efeito de um g-olpe cal-
Sendo desprovido de rancor e esquecendo facilmente as culado, manifestou o maior prazer, rindo com extraordinária
birras, é natural que Oswald tivesse vontade de se reconciliar jovialidade. E encontrando Paulo Emílio mais tarde, disse-
com o antigo amigo, o que -::sboçoumais de· uma vez por in- -lhe que "as coisas estavam melhorando. .. "
termédio de terceiros. A este propósito, vale mencionar uma A convivência dos dois foi íntima no decênio de 1920;
cena rara, única de que tenho notícia: o encontro dos dois, que não espanta que tivessem idéias comuns, pensando as mes-
presenciei, creio que pela altura de 1943. mas coisas ao mesmo tempo, como se pode ler nas cartas de
Tratava-se de organizar em São Paulo a ABDE (Associa- • Mário a Manuel Bandeira. Mas além das afinidades notórias
ç?o Brasileira de Escritores), cujo núcleo central'.jáestava fun- e das coincidências, é provável que a influência inicial de
c10nando no Rio e que representou a arregimentaçãodos inte- . Oswald ( mais ousado, mais viajado, mais aberto), haja sido
lectuais para o_ combate ao Estado Novo, culminando no Pri- decisiva para levar Mário, tímido e provinciano, ao mergulho
meiro Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em São no Modernismo. E Oswald tinha razão quando via uma ma-
Paulo no mês de janeiro de 1945 e primeira manifestação. pú- nifestação (antecipada) da Antropofagia em Macunaíma, -
blica naquele sentido. •
que admirava fervorosamente e que salva, como o Cura aos
Havia uma pequena reunião no escritório de Plínio Mello, Amadises, na queima geral do prefácio de Serafim Ponte
na rua João Bricola, que depois se tornou por muitos anos a Grande.
66 67
Muitos. pensam que Mário recolheu no seu herói algurria Contava-se que Oswald fazia sobre o antigo amigo ·piadas
coisa do pitoresco e da irreverência de Oswald, sendo certo qt1-e terríveis e divertidas oue cardam mundo. Mas eu só o ouvi
pelo menos um traço pode ser documentado, com apoio num falar dele no plano' intelectual, com discrição e naturalidade,
caso que Mário contou a Sérgio Buarque de Holanda, de quem talvez porque o tempo da virulência tivesse passado quando
o ouvi mais ou menos da seguinte forma. estreitamos relações. Lamento não ter anotado as coisas que
me disse, pois esqueci a maior parte e ·a memória vai defor-
Nos anos de 1920, Oswald encontrou Villa-Lobos na
Europa e ficou surpreso com a deficiência da sua cultura, que mando o resto.
Do seu lado, Mário nunca falava de Oswald e dizia não
o levava a confundir Jules Romains com Romain Rolland e
ter lido nada do que este escrevera depois da briga. Certa
coisas assim. De volta, falou disto no salão de Dona Olívia vez alguém lhe perguntou por que motivo fizera as pazes com
Guedes Penteado, dizendo que o grande compositor nos com- determinado escritor e não as fazia com ele. Resposta: "Ê
prometia lá fora. E entrando pela exageração que o tomava que Fulano eu não respeito, e o Oswald eu respeito". QuanM
quando estava em veia polêmica, terminou afirmando que ele do eu estava preparando o artigo sobre a. expectativa de
nem música sabia e era um ignorantão instintivo. Como ale- Marco zero, disse a Mário que A estrela de absinto era muito
gassem que não tinha autoridade para dizer isto, retrucou mais ruim. "Eu acho muito bom", respondeu com um riso sem
ou menos: graça. Em 1945 ambos participaram do Congresso de Escri-
"- Não sou eu quem diz. O Mário, que entende, falou tores. Mário, assíduo e calado; Oswald, intervindo mais.
que o Villa não sabe harmonia nem contraponto". Numa das sessões, entrou com uma pilha de volumes de Chão,
As pessoas estranharam, lembrando que Mário dissera que acabava de sair, e foi distribuindo a vários congressistas.
sempre o contrário. Oswald então foi mais longe e explicou: A sessão de encerramento, onde foi divulgado o nosso
"- Isto é porque não tem intimidade com vocês. A manifesto pedindo a volta das liberdades, teve 1ugar no Teatro
mim ele diz a verdade". Municipal, que estava atulhado. Oswald fez um discurso fo-
goso, lançando por conta própria, para grande contrariedade
Diante disto a discussão morreu; mas um dos presentes tanto dos liberais quanto dos esquerdistas, o nome do Briga-
não se conformou e telefonou a Mário, cénsurando a sua du: deiro Eduardo Gomes, que por algum tempo deu a impressão
biedade: como é que pensava uma coisa e dizia outra? Ele de ser o candidato de quase todas as oposições, da direita à
protestou, o interlocutor deu os pormenores, ele ficou dana- esquerda. Mas no momento ainda não era para falar nele e
do. Saiu então à busca de Oswald e, encontrando-o por coin- muitos se irritaram com a gaffe. O público, todavia, reagiu
cidência •na rua Quinze, chamou-o às falas. Mas o amigo o entusiasmado e assim Oswald desencadeou a grande ovação
desarmou, retrucando simplesmente, com a limpidez risonha da tarde. Desencadeou também uin pequeno tumulto, ao meter
do seu olhar azul: o pau na sociedade paulistana, glosando um cronista social.
"- Eu menti!" René Thiollier, que ele havia convidado e pouco antes eu
vira cordialmente junto dele, no saguão, levantou-se "indig-
Agora, a transposição. Como todos lembram, Macunaíma nado e protestou, defendendo a sua classe e o seu meio com
se gaba de ter caçado dois veados na Feira do Arouche, mas muita hombridade. Mas teve de sair debaixo de uma furiosa
os frmãos chegam e desmentem, informando que tinham sido vaia, nós berrando como possessos. Oswald cai:rnlizoubem a
dois ratos. Os ouvintes caçoam dele, a dona da pensão o cen- bagunça· e focalizou a sátira no escritor indignado, verdadeiro
sura, toniando satisfações pela invencionice, e ele desarma to- exemplo caído do céu para a sua diatribe.
da a gente, dizendo com a maior candura: Eu, que aplaudira com entusiasmo e ~ceitara toda a sua
"- Eu menti!'' linha, fiquei desapontado quando, na saída, ouvi falar em "pro-

69
vocação" e soube que Monteiro Lobato se havia retirado du, estive uma. ou duas vêzes, creio que para encontrar Jorge
rante o discurso. E mais . ainda quando, em companhia de Amado, talvez em 1944. A. partir .de 1946 freqüentei muito
Paulo Emílio, no saguão, recebi •de Mário de Andrade irrita, as suas três últimas residências ( tirando a chácara em Ribeirão
díssimo, um contravapor em regra. Êle .achava que Üswald Pires, onde esteve durante algum tempo): a cas_ada rua Mon-
não tinha o direito de bancar o censor. da sociedade, como se senhor Passalacqua, o apartamento da rua Ricardo Batista, a
fôsse um varão de Plutarco .. E foi, creio eu, a única vez que referida casa da rua Caravelas, onde morreu em outubro de
o vi expandir,se sóbre o antigo companheiro. 1954, depois de um sofrimento comprido e pavoroso.
Isto aconteceu em fins de janeiro. Dali a um mês Mário Nos últimos anos se desinteressou da ficção, voltando-se
morteu, domingo à noite, sendo enterrado segunda-feira à tarde. para o ensaio filosófico e fl redação das memórias, que infeliz-
Oswald, que estava numa estação de águas com sua mulher mente não pôde acabar. Penso que a virada foi o concurso
Maria Antonieta de Alkmin, tomou o trem de volta têrça,feira que prestamos em 1945, com .mais quatro concorrentes, -para
cedo. No caminho, comprou os jornais da véspera e começou a cadeira de Literatura Brnsileira da Faculdade de Filosofia da
a ler. De repente, lvfaria Antonieta ouve um grito surdo e vê Universidade de São Paulo, do qual saímos livre-docentes. Te-
o marido atirar,se no banco da frente, amarfanhando o jornal nho uma vaga idéia de que Oswald foi estimulado a se apre-
no peito e chorando convulsivamente. Era a notícia da morte sentar por André Dreyfus, Diretor da Faculdade, que já havia
de Mário; e foi ela quem me contou o· fato, mais de uma vez, tentado convencer Mário de Andrade no mesmo sentido, quan-
diante de Oswald. • Chegando a São Paulo, êste deu logo de- do se falou ( 1944) da abertura das inscrições. Mário recusou,
pois uma entrevista homenageando a pessoa e a ·obra do morto. dizendo que não tinha ·formação universitária nem conhe-
Mais tarde, quando se inaugurou no jardim da Biblioteca Mu- cimentos sistemáticos no assunto ( ! ) . E insistiu para que eu
nicipal o busto esculpido por Bruno Giorgi, êle apareceu e as- me apresentasse, dizendo ··que cabia aos novos, de formação uni-
sistiu a tudo, indo depois abr~çar o irmão de Mário, Carlos de versitária-regular, entrar naquela dança. Oswald, o oposto dos
Moraes Andrade. escrúpulos e inibições de Mário, apresentou-se fagueho com
No fim da vida, em 1954, mandou me chamar um domin- uma pequena tese, improvisada e defendida com presen-
go à tarde na casa da rua Caravelas, a última que habitou; que ça de espírito. Não assisti à sua prova didática, sobre o
precisava muito falar comigo. Encontrei-o tomando sol na en- Caramuru. Na escrita, sobre o ponto sorteado para todos nós,
trada de automóvel, com a- boina que não tirava. Disse que "O Modernismo", fez o trabalho mais . sintético: quatro pá-
desejava manifestar o_ SC!,-1jllízo definitivo sôbre Mário, e com ginas ·escritas a tinta verde. Antes da leitura, justificou:
efeito falou bastante da sua obra ( não da sua pessoa). . Do "Acho que a prova de um candidato à cátedra universitária
que lembro com segurança: que a considerava a realização do deve ser curta e bem escrita." E era de fato admirável sob
que sonhara para o Modernismo; que achava Macunaíma uma este ponto de vista. Lembro-me apenas de uma metáfora ful-
obra-prima; que se êle fôra o preparador e o batalhador, sem gurante: "/ .... / a fratura exposta de Lautréamont". Devia
Mário não teria havido Modernismo. E de tudo se despren- ser alguma fixação estilística, pois escrevera num dos trechos
dia uma espécie de consciência serena de ter influenciado o de Marco zero publicados pelo Boletim de Ariel: "/ ... l sen-
companheiro. tiu-se no direito de esgotar o choque interior e passeá-lo coino
uma fratura exposta". •
4 Nos últimos tempos. A partir de 1945 tornou-se cada vez mais um estudioso,
preparando-se para desenvolver o tema da crise da filosofia
Depois da rua Martiniano de Carvalho, se não me enga.r.o ligada ao patriarcalismo, que foi para ele a praga da história
Oswald foi morar num apartamento da rua Aurora, onde só do Ocidente. Matriarcado redentor, utopia, messianismo eram

70 71
os pontos pnnc1pa1s da sua reflexão, - donde a idéia de in~- tes, colegas e amigos de Rudá, fascinados por Oswald: Nor-
crever-se no concurso à Cadeira de Filosofia, na Faculdade man Potter, José . Artur Gianotti, Fausto Castilho. Os dois
mencionada, com a tese Crise da filosofia messiânica (1951 j. últimos •já se encaminhavam para a filosofia e Fausto, sempre
~as :afinal não pôde concorrer, como outros candidatos, por ardoroso, se opunha •ao :(sarampão" existencialista de Oswald,
decisão do Conselho Nacional de Educação ( faltava-lhes curso desenvolvendo, com meu apoio, corretivos de tipo racionalista.
superior .específico da matéria). Eu temia, erradamente, que os •interesses novos repre-
A propósito dos longos e complicados antecedentes deste sentassem um cerro abandono da literatura. Uma vez perM
concurso, aconteceu comigo um caso engraçadíssimo. Era pela guntei-lhe se não ia terminar Marco zero ( de que faltavam três
altura de 1950 e eu insistia com Oswald para não concorter. volumes), e ele respondeu: '
Parecia-me üma situação _muito técnica, para a qual não estava
"- Não. Agora só quero cuidar de filosofia, que é o
preparado e. que poderia comprometê-lo inutilmente .. (eu não mais impottârite. • Filosofia é coisa. séria, requer estudo e cul-
entendia naquele tempo, como bom chato-boy, que um grande tura. Ré>ma·ncequalquer uril· faz, até Fulano", e disse o nome
talento pode valer muito mais dà que algumas toneladas de de um famosci rbmaridsta brasileiro contemporâneo.
professores "tecnicàniente prepara.dos"). Ele prÜtestava, ru:
zendo que a Universiddde deveria se abrir, que era um direito Oesse ··tempo 'daiaffios. ~nSàios reunidoS n'A marcha'.das
• dele, etc. ·"Mas você· não tem cultura filosófica organizada", utopiase a referida tese de concurso, não defendida. Data
dizia eu. "Imagine se r.a defesa da tese Fulano ( um exami- igualmente Sob • as ordens; de mamãe, primeiro volume de
nador potencial, famoso pela truculência) faz perguntas .em Um homem sein profissão· - Memórias e. confissões, publi-
terminülogia que você não domina." "Dê um exeinplo", re- ca?o no ano de sua morte com _prefáci6meu. Não sei até que
trucou ele_. "Não sei'-', disse -eu, "não entendo disto;· rÍlas.anda ponto avançou na redação; mas vi na rui Caravelas um cacfer-
por aí 'urh vocabulário tão arrevezàdo • de •"ser-no-oll.fro", no preto àe formaw grande com boa parte d.o ~egundo volume,
"por-si", "orifício existencial" e não sei mais· o quê." "Mas que aborda o tempo do Modernismo.
dê Um. exemplo", insistiu ele. ·"Bem, só para ilustrar: Se ele Eu insistia para ele .republicar Memórias sentimentais d.e
pergunta pernosticamente: Diga-me V. S. qu,al é a impostação João Miram.ar e· Serafim Ponte Grande, livros quase clandesti-
hodierna da' _probkmática oritológica?" E Oswald; sem· peSta-
1
nos, de tiragem limitada e distribuição nula, porque me. pare-
riejar: "Eu tesporido: V. Excia. está muito atrasado. Em . eia que a visão da sua obra era totalmente deformada por fal-
nossa era de devotação universal o problema rião· é ontqlógico, ta _de conhecimento _do_smelhores escritos. Ele di?ia que sim,
é odontológico." • • •·· · •" exigindo amistosamente que eu fizesse a introdução_para um
As. suas:·leituras se concentraram 'quase_exclusivaffiénte·na volume reunindà os dois; e creio que chegou .a falar a respei-
antropologia, na história_ da cultura e na filosófia; sob!'etudó to ,com:.Antônio Olavo Pereira. Mas uma _coisa o paralisava e
fenomenologia e existencialismo. Lembro-me de ·ter· Vistó··u serve_para mostrár a sua delicadeza de sentimentos; :era ·o se:
seu exemplar do então recente L'Etre et le Néant, de Sarire, guinte tr<;cho do Prefácio de Serafim:
todo anotado; e uma vez· presenciei, depois do almOço na Ri- ":Andava comigo prá -lá, prá cá, tresnoitado e. escro-
cardo Batista; uma conversa dele com Nicola Abbagnanb. Ele, fuloso,. Guilherme de. Almeida, .,_ quem dh-ia? - futura .M-ar-
que não perdia vaza para tapar do melhor modo os buracos quesa de Santos do Pedro I navio!"
da sua informação. filosófica, insistia com o hóspede para lhe ' O leitor de agora talvez não perceba o trocadilho, aludin-
resumir rapidamente as próprias idéias, e o outro se esquivava, do ao fato de Guilherme, depois da revolução ·de ·1932, ter
dizendo que era difícil. . . ficado preso, com outros paulistas, no navio-presídio Pedro I.
Um pouco antes •disto, a casa da rua Monsenhor Passa~ Ora, o poeta desempatara a favor de Oswald, depois de ter
lacqua era freqüentada por um grupo de mocinhos inteligen- votado nele e em mim para o primeiro lugar no concurso de

73
Literatura Brasileira. Oswald, sensibilizado, não queria ma- rua Barão· de Itapetininga ele pusesse em risco a normalidade
goá-la com a divulgação do trecho; mas também nãci. queria
suprimi-lo. E com isto amarra,ua edição. dos· negócios ou, o decoro do finado chá-das-cinco, "Esse su-
jeito· não tem pescoço, tem cachaço", - ouvi de um, que pa-
recia simplesmente tomado pela necessidade de dizer qualquer
coisa desagradável.. "Que luvas de palhaço!" - dizia outro.
5 Devoração-mobilidade. Eram as· que punha de vez em quando, penso que feitas para
esporte de inverno, de tricô, brancas com uns motivos pretos
"Ses yeux dévoraierit tout ce qu'ils regardaient, vistosos. ''Foi Blaise Cendrars qu~m me deu"_,disse ele sor- 1
et quand ses paupiêres se rapprochaient rapidement rindo certa ·vez, na Livraria Jaraguá, onde passava sempre.
comme des mâchoires, elles engloutissaient l'univers
qui se renouvellâit sans cesse par l'opération de celui De um homem assim, pode-se dizer que a existêntia é il
qui courait en imaginant les moindres detaiis des tão importante quanto a Obra. Pelo menos a nós isto parecta :1
mondes en9rmes dont il se repaissait". evidente, porque o víamos intetvir, vituperar, louva: até às
nuvens, xingar até o inferno, aclamar e dep?is destru~r, reme- ii,,
Guillaume Apollinaire, Le Poete Assassiné.
xendo 'sempre com uma paixão em brasa pela hteratura.
"Admito ofensa pessoal", dizia, "mas não admito burrice em
Hoje, sou um pouco mais velho ·do que ele era quando relação à minha obra." De fato, só o vi brigar por divergên-
e conheci, e já mê acostumei a ouvir dos moços as mesmas ·ciás literárias e, nalguns casos, polítkas. É nesta chave que a
perguntas que eu fazia aos mais velhos. As mesmas não. Os sua integridade deve ser definida, Quanto ao resto, mandava
de agora perguntam coisas mais objetivas e mais. ligadas ao as normas e os princípios para o devido lugar.
interesse pela obra, porque hoje é que florescem os verda-
deiros chato-boys. Nós ainda queríamos deslindar o anedotá- Ele era .tão • complexo e ·contraditório,•.. que a única
ri6 que o cercava como garoa singular. • maneira de traçar o seu contorno é tentar simplificações
mais ou menos arbitrárias. Como explicar, de fato, a
"Ê verdade que é irmão de Mário de Andrade e brigou j
coexistência permanente, dentro dele, de um bom e um
com ele?" "É verdade que casou- dez vezes em yárias reli- mau escritor? De' um passadista e um anunciador do fu-
giões?" . "Ê verdade que tem um filho chamado Lança-Perfu- turo? De um discernimento infalível e áreas da mais com-
me Rodo Me_táHco?" "É verdade que roubou uma moça na pleta opacidade? Mas destes choques e outros muitos é que
Escola Normal da Praça?" "Ê verdpde que prega o amor li, se formava '! homem singular, às vezes quase ilhado no. seu
vre?" "É verdade que baleou os estudantes de Direito, num tempo.
tiroteio, do alto de uma escada?" "·É verdade que andou com
a quadrilha do Pulo dos Nove?" Tomemos, como tentativa, apenas dois traços com ge-
neralidade bastante para definir aspectos comuns à sua per-
Nada era verdade, embora nalguns casos houvesse uma sonalidade humana e literária: devoração e mobilidade.
semente real do boato inchado em volta. Mas esse Oswald Devotação é não apenas um pressuposto simbólico da •
lendário e anedótico tem razão de ser: a sua elaboração pelo Anti·opofagía, mas o seu modo pessoal de ser, a sua capa.ci-
público manifesta o que o mundo burguês de uma cidade pro- dade surpreendente de absorver o mundo, triturá-lo para re-
vinciana enxergava de perigoso e negativo para os seus valores compô-lo. Freqüentemente a inteireza da sua visão precisa
artísticos e sociais. , Ele escandalizava pelo fato de existir, ser elaborada pela percepção do leitor, pois no seu discurso
porque a sua personalidade excepcionalmente poderosa atulha- o que ressalta são os fragmentos da moagem de pessoas, fatos
va o meio com a simples presença. Conheci milito senhor bem e valores. Daí a sua atitude constante de preensão, traduzida
posto que. se irritava só de vê-lo, - como se andando pela na curiosidade, na insistência em manter contacto com os ou-
14 75
tros, usá-los de todas as maneiras para os transformar em subs- traços de absorção do mundo ,era justamente supervalorizar
tância de enriquecimento pessoal. A este propósito, lembro tudo o que no momento interessava a sua atenção: gente, idéias
um traço característico da sua fisionomia: os olhos .arregala- ou coisas. E ai dos que atrapalhassem a realização da sua
dos e fixos, a boca aberta.,um fades imobilizado na absorção, curiosidade; que parecessem se interpor entre ele e um vi-
que de repente se desfazia na fuzilada dos risos, trocadilhos e sitante estrangeiro, por exemplo, ou tentar afastá-lo de uma
conceitos. Imaginemos que esta aparência simbolize a aber- reunião, uma cerimônia, um encontro. Frustrado na sua de-
tura sôfrega em relação ao mundo. glutição de experiência, podia ser medonho, - inventando ape-
No comportamento, traços equivalentes, como a mania de lidos, forjando trocadilhos e histórias, atribuind~ os piores cos-
conhecer as pessoas e a insistência cm ver as que conhecia; a tumes a quem o irritara.
rapidez com que enjoava de quem na véspera punha nas nu- Nisto tudo vejo confirmação do traço que estou suge-
vens; a busca ingênua de contacto com os estr-angeírosde pas- rindo: fome de mundo e de gente, de idéias e acontecimen-
sagem; o convívio eni. tantos ambientes diversos; a familiari- tos.• Daí a sua devor-açãonão ser destruidora, em sentido de-
dade com argentários e políticos, manifestando um cândido finitivo pois talvez fosse antes uma estratégia para construir,
arrivismo; mas também com motoristas e tipos da rua, vigâ.- não ap~nas a sua visão, mas um outro mundo, o das utopias
ristas e caboclos, que o divertiam imep.samente e ele ia arma- que sonhou com base no matriarcado.
zenando. Para coroar, o amor à novidade sob qualquer forma: Apesar de muito patriarcal nos gostos e na conduta, o que
idéias, revistas, livros, reuniões, gente nova, crimes. Uma uti- havia de ruim no mundo lhe parecia vir do patriarcalismo,cau-
lização desmesurada de tudo, para chegar a mll conhecimento, sador da propriedade, da sociedade de classes, da exploração·
uma noção, ao menos um aumento de informação, como se qui- do homem, da mutilação dos impulsos. A sua atividade polí-
sesse deglutir o mundo. tica se entroncava neste pressuposto e era uma espécie de téc-
nica devoradora ( aí sim, em sentido arrasador f do mundo bur-
Mas havia a capacidade simétrica de compensar os seres guês oriundo da supremacia imemorial do pai. O seu comu-
e devolver o troco do que extraia, importando muitas vezes
nismo foi profundamente vivido, - comunismo do decênio de
em se dar com o maior desprendimento a idéias, iniciativas, 1930. romântico e libérrimo, significando não apenas anti-
pessoas. Em tais casos, quando mais parecia estar puxando
-capitalismo e anti-imperialismo, mas aceitação da arte moder-
o mundo para si, mais estava saindo de si para ir ao mundo. na, ataque desabrido às coisas estabelecidas, desafogo dos cos-
As manifestações quotidianas disto eram a sua requintada cor- tumes. Foi o tempo do jornal O homem do povo ( 1931) e da
tesia e a sua larga hospitalidade. Muita gente não apenas foi militância intensa com a admirável Patrícia Galvão (-Pagu).
recebida e bem tratada por ele, mas nele se arrimou em mo- Mais tarde adotou a solução de compromisso preconizada por
mentos difíceis, recebendo. ajuda discreta e ignorada por ter- Earl Browder e incorporada à ideologia de Marco zero, ten-
. ceiros. De um rapaz do meu tempo, ouvi que num desses mo- tando· em 1945 fundar uma Ala Progressista, que não chegou
mentos vazios em que a yida parece tirar de um homem qual- a nascer. Afinal, decepcionado por se sentir posto de lado, e
quer possibilidade de sobrenadar, ele se arranjou graças ao querer ser mais do que um instrumento no campo intelectual,
auxílio material. de Oswald. E talvez só ele e eu saibamos disto. desligou-se de qualquer compromisso com o renascido e disci-
Em compensação, era càpaz de dizer as últimas de al- plinado Partido Comunista ( 1945); e acabou, acho que em
guém que incorresse no seu desprazer, alegando que bebera 1950, por candidatar-se a deputado, sem êxito, por um dos
os seus vinhos e comera os seus almoços para depois fazer P. T.; e tal seria que o tivesse, no jogo marcado dos grupos
qualquer coisa que, pelo simples fato de lhe desagradar, clas- políticos, cujos raposões o levaram na conversa.
sificava de felonia horrível. Mas dali a pouco esquecia tudo No fundo, o seu timbre era um certo anarquismo, que
e achava de novo excelente a mesma pessoa, pois um dos seus permite vislumbrar a liberdade· total pela dissolução das amar-

76 77
ras. No prefácio de Serafim ·Ponte Grande afirmou que :o dispersos, . quem sabe peràidos em parte, . porque ele cuidava
seu modo-de-ser inicial, católico e burguês, fora compensado pouco ,da sua obra, não tirava cópia, esquecia de guardar.
por este anarquismo -éspontâneo· de boêmio, que depois tel'l.a Tanto quanto posso determinar, o primei~o dos livros de
superado pela adesão ao marxismo. Engano. Feli~mente nunca ficção que começou a escrever foi o João Miramar, publicado
o superou, porque ele foi o segredo da sua elasticidade e um em 1924, de que há umas três ou quatro versões a partir
dos fatores da sua mobilidade sem fim. de 1916. Mas é certo que aci mesmo tempo ia compondo
E aqui chegamos a este grande princípio da sua persona- Os condenados (1922) e A estrela de absin'Q (1927), E em-
lidade, vida e obra. Quando é boa, a sua composição é mui- bora estes pareçam mais antigos pelo preciosismo,.os processos
tas vezes uma busca de estruturas móveis, pela desarticulação gerais de composição têm um molde comum: estilo ba-
rápida e inesperada dos segmentos, apoiados numa mobiliza- seado no choque ( das imagens, das surpresas, das sonorida-
ção extraordinária do estilo. É. o que. explica a sua escrita des), formando blocos curtos e às vezes simples frases que se
fragmentária, tendendo. a certas formas de obra aberta, na me- vão justapondo de maneira descontínua, numa quebra total
dida em que usa-a elipse, a alusão, o corte, o espaço ,branco, das -seqüências corridas e compactas da tradição realista. São
o choque do absurdo, pressupondo tanto o elemento ausente também comuns o inconformismo em relação à sociedade e
quanto o presente, tanto o implícito. quanto o explícito, obri- uma espécie de trânsito livre entre poesia e prosa. Não obs-
gando a nossa leitura a. uma espécie 'de cinematismo descon- tante .-~ • modificações, estas características permanecerão no
tínuo, que se opõé ao fluxo da composição tradicional. Fre- restante· de sua ficção até 1945, com dois extremos polares:
qüentemente a sua escrita é feita de frases que se projetam . em 1929, Serafim (publicado em 1933) exacerba todos os seus
como antenas móveis, envolvendo, decompondo o objeto at_é processos, picando ao máximo· a composição, variando ver-
pulverizá-lo e recompor uma visão diferente. tiginosamente os tons, chegando quase ao limite da_ desconti-
Também na sua visão da sociedade avulta o senso do que nuidade e da elipse; depois de 1940, Marco zero ( trabalhado
é móvel, a miragem de uma transição necessária ao matriar- a partir de 1933) recupera. muito da escrita contínua e, am-
cado redentor, sob a percussão dos movimentos ideológicos pliando os. blocos narrativo~, amaina a elipse. Mas apesar da
que dissolvem as estruturas. E em sua vida -procurou sem enorme flutuação de qualidade, toda a ficção de Oswald re-
cessar a renovação em todos os campos, para evitar o pecado pousa em essência numa plataforma expressiva comum.
maior da esclerose, da parada que lhe parecia negar a própria A. partir dela se destacam os três grupos de romances:
essência da liberdade e portanto do seu ser. Até o gosto pela ( 1) . A trilogia do exilio •e ( 2) o par Miramar-Serafim, ·cor-
viagem, a variação dos lugares, a mudança de casas e alianças, rendo mais ou menos paralelos; ( 3) Marco zero, portador de
a sucessão dos contactos humanos e uma certa volubilidade, ma- outro timbre e prenunciado por A escada vermelha ( 1934),
nifestavam esta lei da sucessão vertiginosa e reconstituinte. que se afasta do seu grupo.
6 O par ímpar. A Trilogia e o Par, engendrados mais ou menos entre
1915 e 1930, manifestam o mesmo ~tipo de estrutura, mas se
Oswald produziu coisa boa nos escritos de redação con- opõem como o negativo ao positivo de uma fotografia. Entre
tínua e nos de redação descontínua. Pessoalmente prefiro es- as duas séries há um abismo, cuja explicação podemos buscar
tes, que representam a ·sua contribuição mais original sob o numa frase do prefácio de Serafim, datado de 1933 e decisivo
ponto de vista da estrutura e do estilo, concentrando a maior para compreender a obra de Oswald: "Do meu fundamental
soma das suas capacidades de expressão. Aí se enquadram os anarquismo jorrava sempre uma fonte sadia, o sarcasmo".. Aí
poemas, as lvl.emórias sentimentais de ] oão Miramar, o Sera- está o segr1..do.Provável dos seus êxitos e a explicação dos seu~
fim Ponte Grande, muitas notas, artigos, polêmicas que andam desfalecimentos no terreno da ficção: sempre que acertava o

78 79
de arrepiar carreira, o romancista chegou a ~osturar. a sua es-
tom na craveira do sarcasmo, da ironia ou da sátira, •é com'o crita descontínua para refazer blocos narrativos ma10res, que
se ligasse a corrente salvadora que comunica à sua escrita uffi eram contrários à sua visão ficcional e comprometeram a obra.
frêmito diferente; quando desafina naquele tom, ou escreve O intuito cru da documentação derrapa num pitoresco bastante
a sério, a tensãó baixa e, .a despeito dele' usar os mesmos-pro- constrangedor; por exemplo, na falta de medida com que re-
cessos de composição, o texto parece sufocado pela herança da produz implacavélmente a fal~ de caipiras e_ estrangeiros, qua;
retórica decadentista (Trilogia) ou naturalista (Marco zero). se na craveira de Cornélia P1res. E o mais surpreendente e
Mas não se trata de sarcasmo apenas. O tom melhor de Os- que, tomado pelo desejo de seguir a moda, ele dizia a Ruy
wald implica a sua fusão com a poesia, sobretudo pela exten- Coelho em 1941 que não era, como. pensa".am: o autor hum?·
são de processos poéticos a contextos quaisquer. Sarcasmo- rístico de Miramar e Serafim; multo mais importante seria
-poesia, e não sarcasmo-sarcasmo. Marco zero, e embora não tivesse a força deste, .a Trilogia ti-
Outro elemento importante é a dose de experiência pes- nha muita coisa válida, e por isto ia reeditá-la. É o .que e~-
soal que consegue transfigurar nos livros e geralmente os aju- plica a decepção e a mágoa despertados nele pelo artigo reti-
da a chegar a um bom nível. O Par efetua a transposição óti- cencioso de Ruy.
ma dos elementos favoráveis, contendo a experiência pessoal e Em "Estouro e libertação" eu atribuí a insuficiência de
o humorismo; a Trilogia tem menos do primeiro elemento e Marco zero a alguns fatores, de que o mais geral seria a ~n-
pouco do segundo; lviarco zero, quase nada·.do primeiro e muito compatibilidade entre a técnica pontjihista e o, i?tuito ~?c1al
pouco do segundo. : de afresco, - o que está errado. No plano teor1c?, verific~r-
A este propósito, mencionemos de 'novo que 0sw'ald con- ·se-ia o contrário pois a visão de uma larga realidade soc1al
servou de maneira recessiva um veio· -natu'.ralista·que ·estufou pode ser apreendida melhor ª:ravés da 1;1ultiplicidaded': ~enas
no· decênio de 1930, estimulado pela· moda de literatura do- • e tipos apresentados de maneira descontmua, numa especie. de
cumentária e social então predominànte. Por motivos na maio- amostragem por justaposição que revela o todo -com amph_tu-
ria políticos, desejou acertar o pass_o•-_com·-as···~endências•do de e variedade maiores do que seria possível a uma narrativa
momento e mostrar que não -era o ptad1stà,de ,_que falavam,.-o unitária. John dos Passos esfarinhou a vida americana nos
"palhaço. da burguesia" que se penitencia de ·ter sido no.·préfá- múltiplos níveis de enfoque da trilogia U. S. A., e o resultado
cio de Serafim; quis recuar do meio do •picadeiro para as foi tecnicamente bom.
tarefas obscuras e disciplinadas dos "casacas de ·ferro". "As Hoje, relendo Marco zero, noto ~~nos pontilhismo do
artes verdadeiramente políticas e sociais como a pintura -e o que parecia haver; e penso, ao contrar10, que se houves.se
romance voltaram à sua •norlnalidad~, que é_ ~nsinar'.' ---: diz nele maior uso das técnicas descontínuas o panorama social
um personagem de Chão. . .. •. . .. teria ficado mais convincente. O mal de 0swald foi ter f?r·
O efeito •foi negativo, pois o. peso do documento indigeri- çado a .sua natureza artística, sacrificando a composi~ão s1~-
do e da excessiva intenção ideológica atrapalhou Marco zero, copada em benefício das seqüências coesas. .1!1:1 conf!Ito pra-
da mesmá maneira·por que a "écriture artiste" e o decadentis- tico não teórico, entre um modo de ver umtar10 e a descon-
mo haviam atrapalhado a maior parte da Trilogia. ( 4 ) No afã unu'idade técnica, por falta de perícia em harmonizá-los.
Com efeito, as duas partes publicada.s de Marco zero,
mas sobretudo A revolução melanc6lica, são invadidas por um
(4) Certa vez Oswald me disse, num táxi ql.le subia a··Briga- só interesse: o destino da família Formoso, tomada como exem-
deiro Luis_ Antônio (iamos comprar doces italianos' para·' unia
festa em casa dele). que tinha sofrido grande influência dos Ir-· plo dos latifundiários paulistas em crise. Este interesse absor-
mãos Goncourt. Penso que sofreu também a de Fialho de AI.; vente funciona como um eixo inteiriço e faz o resto parecer
meida, não apenas na" agressividade polêmica, mas no· toque im- episódico, contra a vontade do autor, - _que é puxado para
pressionista do estilo; sobretudo certo ritmo de adjetivação.
81
80
sentidos diferentes. Ora sacrificando a v1sao fragmentária em mente o estilo perde muito do seu aspecto de choque, síncopa,
benefício de uma visão unitária; ora recaindo na visão fr8g- elipse,' e tende ao discurso unido, que por sua vez p~rece abalar
mentária, que então aparece como recurso insatisfatório para a confiança do autor nos grandes achados poetlcos, refo~-
realizar um desígnio unitário. E a causa desta trincadura, çando o cunho lógico da exposição contínua. O Oswald di-
que perturba a eficiência do livro no todo e nas partes, deve vinatório enfraquece em proveito de um Oswa!d mais disciplinado
ser de natureza ideológica, resultando da vontade programada e cinzento, corroído pelo "realismo social" pouco ajustado às
de fazer "romance social". O romance em contraponto impli- suas melhores tendências. Raramente estas explodem numa
ca certo sincronismo, que não valoriza o antes nem o depois, erupção de talento criador, e quando isto acontece, rompe no
mas o durante. Falando estritamente, ele não começa e não leitor a alegria de quem encontra um amigo perdido, como
acaba, pois é um corte horizontal que tende no ,limite à si- nestes dois trechos d'A revolução melanc6lica:
multaneidade e procurn mostrar diversos aspectos, que não se
vinculam necessáriamente, e sobretudo não se condicionam re- "Era ~ abertura das zonas novas. Nas cidades não se
ciprocamente. Romance sem causalidade, ou de causalidade sabia se o que se levantava do chão era ouro ou poeira. Os
baralhada, como foi o esquecido Contraponto, de Aldous Huxley, japoneses organizavam-seem meetings amarelos que se trans-
e, depois, tanto livro bom e ruim. formavam em municípios no dia seguinte".
"Perante a massa curvada de fiéis, o padre cresceu, .de-
Mas em Marco zero o pressuposto básico, a razão de cada morou os braços em cruz, a Custódia alta como um canhão de
fato, é o processo histórico, impondo uma representação da bombardeio. Homens e mulheres dobravam-se de joelhos, ante
continuidade vertical, isto é, uma dimensão temporal que pesa tanta fumaça e tanto silêncio; A campainha ressoou como o
na constituição da narrativa e se baseia no antes ( as caus-as) tambor nas horas perigosas do circo. Deus executava o Salto
e no depois ( as conseqüências), atrapalhando a intenção esté-
da Morte".
tica de elaborar a descontinuidade horizontal do corte na so-
ciedade. Por outras palavras, a coerência diacrônica perturba Chão é mais bem feito, não no sentido do melhor Oswald,
a visão sincrônica, que era o forte de Oswald quando não es- mas do Oswald rotinizado. A .segunda maneira estava amadu-
tava dominado pelo peso de um exigente princípio ordenador: recendo, o predomínio da composição contínua estava m~is acen-
a concepção marxista do processo histórico, implicada no tipo tuado, e Oswald, um pouco mais longe dele mesmo.
de realismo social que adotou por convicção e militincia inte- Nesta segunda parte de Marco zero domina a descriç~o-
lectual depois de 1930, e que noutros escritores inspirou obras -julgamento da sociedade paulista, diminuindo ~ais, a!nda a m-
de alta qualidade. venção estilística em proveito de um aumento s1metr1codo d.e-
bate ideológico. Esquematicamente, dirfamos que nos melhores
No plano teórico, é expressiva esta interferência da livros de Oswald o que sobressai é a maneira; mas aqui, é a
ideologia na composição, levando o autor a violentar· os seus
pendores mais originais e mosti;andocomo é importante a cor- matéria.
relação funcional dos dois planos. Em tais condições, seria preciso matéria original, idéias in-
teressantes e pessoais como as dos debates imensos d'A mon-
Num caso como este, e devido ao mencionado conflito, tanha mágica, de Thomas Mann, que fascinava Oswald. Mas
a construção pessoalíssima de Oswald, mal aplicada, perde al- os raisonneurs bisonhos de Chão exprimem implacavelmente os
cance e chega a parecer composição apressada ou incapacidade lugares comuns da esquerda daquele tempo. O enfoque da so-
de integrar os fragmentos. Tanto assim que em Marco zero ciedade é corriqueiro, parecendo recobrir tudo com uma gela-
a descontinuidade, mesmo reduzida, é por vezes fator de con- tina indiferenciada de caricatura. Italianos, japoneses, integra-
fusão, deixando o leitor meio perdido entre personagens e listas francesas banqueiros, criados, adolescentes, são exata-
fatos que não consegue identificar nem relacionar. Paralela- mente' o que eram, para a visão mais banaI. E como a maneira .

82 83
se desfigura ou rotmtza, o nível só pode cair, em comparação tura brasileira desde a Colônia: a descrição do choque de cul-
com os bons livros do autor. Ao contrário deles, Chão não ul- turas, sistematizada pela primeira vez nos poemas de Basílio
trapassa o nível de uma "crônica paulista", apresentando ana- da Gama e Santa Rita Durão. O Modernismo deu o seu cunho
logias, que o tempo acentuou, com a trilogia de Plínio Salgado, próprio a este tema, que de certo modo se bifurcou num ga-
certamente influenciada, quanto à composição, pelos primeiros lho ornamental, grandiloqüente e patrioteiro com o Verde-ama-
livros de Oswald, como indicou Prudente de Moraes, neto. relismo e todas as perversões nacionalistas decorrentes; e num
Portanto, mais de vinte e cinco anos depois do meu en- galho crítico, sarcástico e irreverente, cuja expressão maior foi
saio, continuo achando que a suà obra de ficção permanece so- a Antropofagia ( englobando Macunaíma). É curioso assinalar
bretudo graças ao par admirável. Naquele tempo, Miramar o motivo subsidiário do imigrante, encarnação moderna do en-
parecia melhor porque ainda fazíamos crítica de olhos postos contro de culturas, formulado em Canaã e versado no Moder-
numa concepção tradicional da unidade de composição, o prin- nismo nas duas linhas mencionadas, - com O estrangeiro, de
cípio estabelecido por Arist6teles como condição de escrita vá- Plínio Salgado, e os contos de Antônio Aldntara Machado.
lida. Mas o que veio depois fez ver mais claramente o caráter (Mais tarde, Oswald o retomaria em .Marco zero de maneira
avançado de Oswald como agressor deste princípio e precursor nada antropofágica).
de formas ainda mais drásticas de descontinuidade estilística. "/ ... / o movimento antropofágico / ... / ofereceu ao
Aceito o reparo de Haroldo de Campos, bem aparelhado para Brasil dois presentes régios: Macunaima, de Mário de Andra-
ver estas coisas, ·e reconsidero o meu -juízo. A leitura de Se- de, e Cobra Nr.rato, de Raul Bopp", - escreveu Oswald certa
rafim não permite dizer que é inferior a Miramar ou, como vez. Ele e Mário ( mas não Bopp, que entrou por outro filão)
me parecia, um "fragmento de grande livro". É um grande exploraram com originalidade o tema básico do encontro cultu-
livro em toda a sua força, mais radical do que Miramar, levan- ral, manipulando o primitivismo de maneiras diferentes. Em
do ao máximo as qualidades de escrita e visão do real que fazem Macunaíma, não apenas pela exploração do mundo primitivo,
de Oswald um supremo renovador. mas pela escavação do sub-solo da cultura urbana, reinterpretan-
Com efeito, Miramar ainda é comparativamentemais bem do-a em termos primitivos. Em Serafim, pelo tratamento do
comportado, na medida em que preserva certa unidade de tom homem urbano brasileiro como uma espécie de primitivo va
- admirável, seja dito. Mas Serafim opera uma "mistura mui- era técnica, que afinal se dissolve no mito.
to excelente de chás", como diria Manuel Bandeira, jus-
tapondo diversas soluções estilísticas, saltando de um tom para Os dois livros se baseiam em duas viagens, que os tor-
outro, cortando os fios e quebrando os rumos. É a devotação nam complementares apesar de tão diferentes: viagem de Ma-
e a motilidade em grau máximo, comportando uma carga cunaíma, do Amazonas a São Paulo, com retorno à placenta
maior de sarcasmo e agressão, culminados na apoteose da liber- mitol6gica; viagem de Serafim, de São Paulo à Europa e ao
dade absoluta. Oriente turístico, com o mergulho final do navio E/ Durasno
Em "Estouro e libertação" chamei Serafim de Macunaíma nas águas do mito. E estas viagens-de-choque, propiciadoras
urbano. Acho que com razão, pois apesar de faltar-lhe a di- da devotação de culturas, refletem os dois autores: Mário, que
mensão etnográfica e mitológica, há nele uma espécie de trans- nunca saiu do Brasil e teve a sua experiência fundamental na
posição do primitivismo antropofágico para a escala da cultura famosa excursão ao Amazonas, narrada em O turista aprendiz:
burguesa. Oswald, que _ fez pelo menos quatro estadias longas na
Europa.
É difícil dizer no que consiste exatamente a Antropofagia,
que Oswald nunca formulou, embora tenha deixado elementos Ambos os livros promovem uma revisão de valores me-
suficientes para vermos embaixo dos aforismos alguns princí- diante o choque de dois momentos culturais. Mundo primitivo
pios virtuais, que a integram numa linha constante da !itera- e amazônico dos arquétipos, em Macunaíma, revisto na _escala

84 85
1
'

urbana .. Mundo burguês de Serafim, atirado contra a dimensão Miramar ( apelido literário que Oswald se pusera naquele
cosmopolita da Europa, que nos orienta e fascina, e ante a qual tempo). Pesquisa difícil, intercalada pelos fracassos parciais
somos primitivos. Os dois momentos, em cada caso, colidem, da Trilogia e sucedida pelo refluxo neo-natur,alista de Marco
e a visão se constrói por um pressuposto de síntese devoradora. •zero, no qual, da maneira pessoalíssima do autor apenas sobre-
Oswald explode o núcleo do nosso universo sincrético e dispõe nadam alguns admiráveis salvados de naufrágio. Quem deseja
os cacos numa admirável fantasmagoria do real. cortar amarrascom a rotina deve mesmo arriscaraltos e baixos·
o que espanta -em Oswald são ,aqueles,não estes, pois é extra~
Lembremos, ainda, que este primitivismo - definido por ordinário que tenha prodnzido duas obras-primas, distendendo
um personagem de Chão como a busca do homem natural atra- um arco que parecia ter chegado ao máximo com a primeira.
vés do "mau selvagem'', não do "bom" - importava nós dois
autores numa espécie de agressividade vistosa, que desmancha Teria havido alguma influência ponderável sobre a fórmu-
a linha burguesa do decoro e da medida. É um outro tipo de la salvadora de injetar sarcasmo, tirar poesia de qualquer con-
choque, significando a quebra do equilíbrio machadeano e o texto, ajustar uma visão descontínua à composição descontínua?
advento de certas formas de excesso. como o grotesco, o eró- ~le mesmo alude vagamente a Blaise Cendrars, de modo nega•
tico, o obsceno, que antes só apareciam de maneira recalcada tlvo e sem pormenorizar nada ( Prefácio de Serafim); mas um
em nossa literatura, useira noutros excessos: o sentimental o livro como Le Formose, que poderia ter atuado sobre a versão
patético, o grandiloqüente. - ' final de Miramar. foi publicado no mesmo ano. Kodak, ante-
Talvez tenha Sido a diretriz primitivista que acentuou em rior a 1920, poderia ter sugerido alguma coisa da poesia de
Mário e Oswald o gosto rabelaiseano pelo palavrão e a obsce- Pau Brasil ( 1925), mas não de Miramar. Há, é claro, o bom-
nidade libertadora, que na obra de ambos tem um máximo de bardeio inicial de Marinetti; mas haja ou não sugestões, foi
concentração em 1928-29, justamente em Macunaima e Se- sem dúvida com um máximo de originalidade e um enorme es-
rafim Ponte Grande, em seguimento à busca dos traços popu-
forço ( verificável pela sucessão das versões manuscritas) que
• lares e indígenas, de 1925 a 1927, em Pau Brasil e Clã do Oswald forjou a sua maneira.
Jaboti, tudo girando à volta de um eixo virtual, o "Manifesto Serafim já encontrou a base constituída por Miramar; e
antropófago", de 1928. talvez tenha sofrido alguma influência da primeira parte de
Neste caso, a obscenidade não seria obscenidade, mas o Le Poete Assassiné, de Guillaume Apollinaire ( 1916), que
fruto de uma defasagem entre os padrões do homem civilizado Oswald certamente leu. Há traços comuns, como o dicionário
e a candura com que o primitivo menciona as coisas naturais. de Pinto Calçudo, quem sabe estimulado pelo do "Auteur Dra-
Nos cronistas, etnógrafos e folcloristas, os modernos viam refe- matique", embora a fonte comum possa ser o remoto Diction-
rências diretas às funções orgânicas, a sério e de brincadeira. naire des Idées Reçues, de Flaubert. Apollinaire joga com
Daí a reinterpretação que fizeram, trazendo este elemento pa- uma certa modulação humorística de estilos, - do acadêmi-
ra contextos civilizados, onde funciona como contusão e rup• co ao pré-surrealista- que servia para as grandes brincadeiras
tura, numa espécie de alegre satanismo. anti-convencionaisdos modernistas e que, atingindo uma espécie
de contraste absoluto na "Carta às Icamiabas" de Macunaíma
Mas volteÍnos ao fio da meada, sintetizando· na fórmula culmina em Serafim num virtuosismo e uma v;riedade que nã~
seguinte a caracterização do melhor Oswald: conheço em nenhum outro escritor.
Máximo de descontinuidade + máximo de sarcasmo-poe- (1970)
sia= máximo de expressividade.
Serafim culmina a pesquisa iniciada com as notas de via-
gem à Europa em 1912 e, a partir de 1916, os cadernos de
87
86
CARTA DE RUDÁ DE ANDRADE

Tendo lido os ongmais do estudo precedente, Rudá de


Andrade enviou a seguinte carta, que aborda aspectos funda-
mentais da personalidade de seu pai e vai aqui reproduzida ( sal-
vo umas linhas de caráter pessoal) com a sua autorização:

"São Paulo, 9 de agosto de 1970


Prezado Candido,
Acabo de ler seu trabalho "Digressão sentimental sobre·
Oswald de Andrade". / ... /
Creio que a obra de Oswald não pode ser estudada des-
vinculada de sua vida. Nesse sentido você aborda pontos fun-
damentais para o conhec_imentodo escritor e a respeito disso
quero dizer-lhe aigo, apesar de sentir certa insegurançaao en-
trar nesse terreno., pois a imagem que tenho do comportame~-
to intelectual de Oswald é às vezes formada de impressões pro-
vavelmente distorcidas por problemas sentimentais. Além
disso, o quadro é delineado por recordações fragmentárias de
uma infância muito irregular.
Entretanto, a lembrança do éotidiano vivido com ele na
intimidade e o relacionamento de tantos pequenos fatos, le-
va-me a valorizar um aspecto psicol6gico de que você tem
conhecimento} mas· ao qual talvez não dê a importância que
creio merecer. Trata-se da mágoa que Oswald tinha por não
ser reconhecido no nível que merecia.
Tenho a impressão de que freqüentemente seu compor-
tamento era movido por certa frustração, certa insatisfação e
pela falta de estímulo. Isso teve i~fluência relevante, princi-
palmente nos anos 40, e, quem sabe, até suq morte. A falta

89
desse apoio enfraquecia-lhe a visao histórica de sua própria nacional. Valia-se deles para receber a confirmação de sua ca-
importdncia. Isto levava-o a abandonar os maiores obietivos: pacidade intelectual e da validade de suas idéias. Não era uma
intelectuais, para buscar a confirmação da importdncia de sua. questão de simples vaidade, mas uma necessidadepara um cria-
obra e sua vida (para ele e para os outros). Não sei se dei- dor de vanguarda semi-isolado; precisava desse aferimento para
xava transparecer isso fora da intimidade familiar •e nem sei prosseguir. Pude notar bem esse ,fato quando Albert Cam;,s
se é uma simples suposição minha. Mas penso assim devido ésteve aqui. Fui com os dois a lguape, em época de romaria.
aos constantes desabafos indiretos e certa tristeza permanente Era Oswald querendo mostrar o Brasil de sua visão. Mostrava
nas pausas de suas batalhas e dos seus momentos criadores. com o mesmo entusiasmo um romeiro carregando enorme pedra
Se era "quase ilha", era-o_também por abandono ( consideran- ou um colono ;apon§s de Registro. Falava sobre o (:há da re-
do sua personalidade famélica por múltiplo convivia e relacio- gião, sobre um ex-voto, ou explicava a destruição do palmito
namento social). O distanciamento intelectual a que foi sub- litordneo, procurando revelar sua intelig§ncia e sua visão do
metido pela incompreensão histórica do momento - reflexo mundo. E Camus admirava-o; ficava às vezes fascinado e rea-
do provincianismo de então - interferiu na sua obra e na gia, discutia. Oswald apresentava-se ao mesmo tempo em q11e
sua vida. apresentava suas idéias - no momento a tese antropofágica.
No fundo ele se ;ulgava "inculado a tudo o que se fazia de Não pode imaginar, Candido, como foi para ele estimulante a
moderno no Brasil, a tudo o que "iogava" para frente. E tinha compreensão de Camus e o interesse que demonstrou em divul-
certa razão, pozs.est(!va sempre atento, -procurando participar gar pela Gallimard as suas idéias sobre "a crise da filosofia mes-
de tudo através da pol§mica ou do estimulo que dava genero- siânica".
samente. Eram suas maneiras de abordagem e participação. Provavelmente voe§ conhece melhor que eu a história de
Assim sendo, e sabendo que sempre podia contribuir em alRo sua vida e avalia a importdncia que pode ter tido esse clima de
com sua intelig§ncia, tudo o que se fazia distanciado dele cau- insegurança, provavelmente oculto para a maifJ.riadas pessoas.
sava-lhe certo mal-estar. Não aceitava bem o fato de grupos Parece-me importante analisar suas ações a partir desse pres-
ou pessoas que estavam construindo não o procurarem ·ou dele suposto que estou valorizando. Inclusive, ve;o esse elemento
se afastarem. · Pior ainda quando iam "procurar" outros inte- como um dos passiveis dados que poderiam responde, à sua in-
lectuàis que não estavam "afinados" com ele. dagação a respeito do afastamento de Mário de Andrade.
Esse seu descontentamento frutificava em certas distorções Nessa linha de pensamento, parece-me que certa mágoa
intelectuais que, primariamente, transpareciam no valor que oculta que poderia ter, não seria para com Mário, mas ~im co_m
dava ( fora da opinião real que tinha) às suas vinculações com o meio intelectual que na época poderia merecer constderaçao.
instituições e pessoas consagradas. Presenciei constantes e in- Ele não aceitava o tratamento inferior, queria e necessitava
sistentes refer§ncias ( freqüentemente feitas a mim) sobre sua obter o mesmo respeito e atenção. E merecia.
amizade com os grandes nomes da intelectualidade francesa; sua
sempre lembrada confer§ncia proferida na Sorbone; sua vontade Em suma, Oswald não procurava a glorificação, mas não
em tornar-se professor universitário; até mesmo certa satisfa- podia viver sem o reconhecimento de seu trabalho. Era um
ção em ver seus ensaios publicados no jornal "O Estado de homem -historicame11teimportante, mas precisava sempre ter
S. Paulo"; sua alegria, em face à perspectiva de ir lecionar na certeza disso, para continuar a contribuir no seu m_elhorrit"!o
Universidade de Upsala; a pregação continua sobre sua partici- e melhor linha; digamos, a linha "Par". Mas as czrcunstânczas
colocavam essa linha em segundo plano. Eram poucos os es·
pação nas raízes das várias modalidades artísticas do modernis- L
timulos.
mo brasileiro.
Ele não conseguia trabalhar :bem isoladamente, de fora para
A vontade de reco~statar seu valor transparecia muito na dentro. Considerava-se peça fundamental do processo intelec-
ansiedade de comunicar-se com intelectuais de prestigio inter• tt1al brasileiro. Tudo o que se fazia para este progresso
90 91
o emocionava. No fim de sua vida, em 54, levei-o à; 5
2.' Bienal. Era no Ibirapuera de Niemeyer, da oficializaçãode-'
finitiva da arquitetura e da arte moderna que daria Brasilia.•
Estávamos naquela tarde praticamente sós, sob as arrojadas es-
truturas de concreto e cercados de arte abstrata. Oswald sen-
tia-se como um dos principais autores daquela conquista. Ele INQUIETUDES NA POESIA DE DRUMMOND
chorou. Era como se tivesse vencido uma longa batalha. Sen-
tia-se apoiado e com a razão. Era algo que acontecia•na sua
cidadezinha provinciana, depois de uma vida de trabalho. •

Abraços,
Rudá".

"/ ... / le souci d'intervenir, d'opérer sur Ia matiere


même du language en obligeant les mots à livrer leur
vie secrete et à trahir le mystérieux cornmerce qu'ils
entretiennent en dehors de leur sens."
André Breton

92
1
1

Os dois primeiros livros de Carlos Drummond de Andra-


de são construídos em torno de um certo reconhecimento do
fato. O sentimento, os acontecimentos, o espetáculo material
e espiritual do mundo são tratados como se o poeta se limi-
tasse a registrá-los, embora o faça da maneira anti-convencional
preconizada pelo Modernismo. Este tratamento, mesmo quan-
do ins6lito, garantiria a validade do fato como objeto poético
bastante em si, nivelando fraternalmenteo Eu e o mundo como
assuntos de poesia.
Trinta anos depois, no último livro, LiçãÕ.de Coisas, volta
o mesmo jogo com o assunto, - mas· agora misturado a um
jogo de maior requinte com a palavra. Em um e outro mo-
mento, o poeta parece relativamente sereno do ponto de vista
estético em face da sua matéria, na medida em que não põe
em dúvida ( ao menos de maneira ostensiva) a integridade do
seu ser, a sua ligação com o mundo, a legitimidade da sua
criação.
Mas de permeio, digamos entre 1935 e 1959, há nele uma
espécie de desconfiança aguda em relação ao que diz e faz.
Se aborda o ser, imediatamente lhe ocorre que seria mais vá'
lido tratar do mundo; se aborda o mundo, que melhor fora
limitar-se ao moda de ser. E a poesia pàrece desfazer-se como
registro para tornar-se um processo, justificado na medida em
que institui um objeto novo, elaborado à custa da desfigura-
ção, ou mesmo destruição ritual do ser e do mundo, para re•
fazê-los no plano estético. Mas este distanciamento em rela-
ção ao objeto da criação agrava a dúvida e conduz outra vez o
poeta a abordar o ser e o mundo no estado pri-poético de ma-

95
teria! bruto, que talvez pudesse ter mantido em primeiro plano,
conservando o ato criador na categoria de mero registro otl
A força poética de Drummond vem um pouco dessa fa\.
notação. ta de naturalidade, que distingue a sua obra, por exemplo,
da de Manuel Bandeira. O modo espontâneo com que este
Tais perplexidades se organizam a partir de Sentimento fala de si, dos seus hábitos, amores, família, amigos, transfor-
do Mundo e José, títulos que indicam a polaridade da sua obra mando qualquer assunto em poesia pelo simples fato de tocá-lo,
madura: de um lado, a preocupação com os problemas sociais; talvez fosse uma aspiração profunda de Drummond, para quem
de outro, com os problemas individuais, ambos referido3 ao o eu é uma espécie de pecado poético inevitável, em que
problema decisivo da expressão, que efetua a sua síntese. O precisa incorrer para criar, mas que o horroriza à medida q11e
bloco central da obra de Drummond é, pois, regido por in- o atrai. O constrangimento ( que pod~ria tê-lo encurralauo
quietudes poéticas que prevêem umas das outras, cruzam-se e, no silêncio) só é vencido pela necessidade de tentar a expres-
parecendo derivar de um egotismo profundo, têm como conse- são libertadora, através da matéria indesejada.
qüência uma espécie de exposição mitológica da personalidade.
Não é de certo por gosto que o poeta morde esse fruto
Isto parece contraditório, a respeito de um poeta que su- azedo. Na sua obra há indicações de que lhe agradaria recupe-
blinha a própria secura e recato, .levando a pensar numa _oh:• rar uma relativa euforia modernista, perdida depois de Breio
reticente em face de tudo que pareça dado pessoal, conf1ssao das Almas. Há, mesmo, a vontade tão freqü"entenos artistas
ou crônica de experiência vivida. Mas é o oposto que ~e :7eri- de ver o mundo· e ils pessoas nos momentos de suspensão-da
fica. Há nela uma -constante invasão de elementos sub1et1vos,
pena e da angústia; momentos de "lux~, cal11_:a e deleite", 1es-
e seria mesmo possível dizer que toda a sua parte mais signifi- critos por um grande torturado. M,as isso nao parece passivei
cativa depende das metamorfoses ou das projeções em vários
aos homens, tão inexplicáveis, num poema seu, aos olhos tran-
rumos de uma subjetividade tirânica, não importa saber até que qüilos do boi que os observa da sua pastagem se':' problemas.
ponto autobiográfica. ( 1 ) Frágeis, agitados, constituídos de pouca substân,eia, preocupa-
Tirânica e patética, pois cada grão de egoc~ntrismo é com- dos por coisas incompreenSíveis, incapazes de viver ,em comu-
prado pelo poeta com uma taxa de remorso e Incerteza que o nhão com a natureza, ficam tristes e, por isso, cruéis. Aderirido
leva a querer escapar do eu, sentir e ~onhec;r o. outro, situar- metaforicamente à visão do bicho, o poeta os Vê qu-ase càmo
-se no mundo, a fim de aplacar as verugens mtenores. A poe- excrecências da ordem natúral, •qúe não percebem, pois a in-
sia da família e a poesia social, muito importantes na sua obr~, quietação os dobra sobre si mesmos: '
decorreriam de um mecanismo tão individual quanto a poesia
de confissão e auto-análise, enrolando-se tanto quanto elas num Coitados, dir-se-ia que não escutam
eu absorvente. nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o q~e é visivel
Trata-se de um problema de identidade ou identificação do e comum a cada um de nós no es]?aço.
ser de que decorre o movimento criador da sua obra na fase
("Um boi vê os homens" - CE) (2)
ap~ntada, •dando-lhe um peso de inquietude que a faz ,asc!lar
entre o eu, o mundo e a arte, sempre descontente e contrafeita.

(2) Depois do título de cada poema •citado, vem a sigla do ·_li-


( 1) Note-se que Drummond usa várias vezes o seu nome, vroou coletânea a que pertence, a saber: AP - Alguma Poesia;
Carlos, para indicar o personagem dos poemas, prática: bastante BA - Brejo das Almas; SM - Sentimento do Mundo~· J -._José;
rara que nele talvez ·seja devida ao exemplo de Mário de An- RP - Rosa do Povo; NP - Novos Poemas,· CE - Claro Enigma;
drade. Ver: "Í>oema de sete faces" - AP; "O passarinho dela" FA - Fazendeiro do Ar; VB - Viola de Bolso; VBE - Viola
- BA; "Não se mate" - BA; "Carrego comigo" - RP; "Os de bolso novamente encordoada; VPL - Vida passada a limpo;
últimos dias" - RP. LC - Lição de coisas.

96 97
Essa incapacidade de aderir à vida, acentuando as barreiras Elas desenvolvem uma meditação da idade madura sobre a in-
entre nós e ela, define o eu geralmente expresso pela primei- satisfação do indivíduo consigo mesmo, a nostalgia de um outro
ra pessoa nos versos de Drummond. Os homens que turbaih eu que não pode ser e a perplexidade que leva a explorar o
a contemplação do boi são, como aqueie eu, "enrodilhados", arsenal da memória, a fim de elaborar com ela uma expressão
"tortos", ((retorcidos", - para usar os epítetos com que o que, sendo uma espécie de vida alternativa, justificasse a exis-
poeta designa a inadequação e, em conseqüência, o movimento tência falhada, criando uma ordem fácil, uma regularidade que
de volta sobre si. ela não conheceu.
As inquietudes que tentaremàs descrever manifestam o Sentimos então um problema angustioso: se o alvo da
estado-de-espírito desse "eu todo retorcido,:,, que fora anun- poesia é o próprio eu, pode esta impura matéria privada tor-
ciado por "um anjo torto,, e. sem saber estabelecer comunica- nar-Se na sua contingência, objeto de interesse ou contempla-
ção real, fica "torto no seu canto'>, "torcendo-se calado", com ção, ;álido para os outros? A pergunta reaparece periodica-
seus "pensamentos curvos" e o seu "desejo torto", capaz de
1 mente na obra de Drummond. Aqui, desenvolve-se do modo
amar apenas de "maneira torcida". ( 3 ). Na obra de Drummond, •seguinte: o eu . que poderia ter sido não foi. O passado, .tra-
essa torção é um tema) menos no sentido tradicional de assun- zido pela memória afetiva, oferece farrapos de seres contidos
to, do que no sentido específico da moderna psicologia literá- virtualmente·no eu inicial, que se tornou, dentre tantos outros
ria: um núcleo emocional a cuj-avolta: se organiza a experiên- possíveis apenas o eu insatisfatório que é. Ora, o passado é
cia •poética. algo ambíguo, sendo ao mesmo tempo a vida que . se consu-
mou ( impedindo outras formas de vida) e o conhecimento da
2 vida, que permite pensar outra vida mais pie?•: É portanto
com os fragmentos proporcionados pela memoria que se tor-
Para sentir as inquietudes que este tema condiciona basta na possível construir uma visão coesa, que criaria u1:1arazã_?-
abrir um livro como Rosa do Povo, onde as suas modalidades -de-ser unificada redimindo as limitações e dando 1mpressao
explodem, fundindo as perspectivas sociais de Sentimento do de uma realidad~ mais plena. Esta razão-de-ser poderia con-
Mundo e as perspectivas mais pessoais de José, - que pare- sistir na elaboraçãoda .obra de arte, que se apresenta como uni-
cem duas séries convergentes, formando esta culminância lírica. dade alcançada a partir da variedade e justifica a vi1a insatis,-
Tomemos, para fixar as ,idéias, o poema "Versos à boca da fatória, o sofrimento, a decepção e a morte que aproxima:
noite" - RP: Que confusão de coisas ao crepúsculo!
Sinto que o tempo sobre mim abate Que riqueza! sem préstimo, é verdade.
sua ·mão pesada. Bom seria captá-las e compô-las
num todo sábio, posto que sensível:

A este encadeamento opressor de oclusivas, atuando com Uma ordem, uma 1uz, uma alegria
a dureza do inevitável, seguem dezesseis estrofes de quatro baixando sõbre o peito despojado.
versos, com um verso final ( como se se tratasse·de terça-rima). E já não era o furor dos vinte anos
nem a renúncia às coisas que elegeu,
mas a penetração no lenho dócil,
(3) "Um eu todo retorcido" é o titulo geral com que o poeta um mergulho em piscina, sem esforço,
reuniu na Antologia Poética~ por ele organizada, os poemas de um achado sem dor, uma fusão,
análise da personalidade. As demais expressões se encontram tal uma inteligência do universo
nos poemas seguintes: "Poemas de sete faces" - AP; "Segre-
do" ..._ BA; "O boi" - J; "Canto esponjoso" - NP; ºCarta" - CE. comprada em sal, em rugas e cabelo.

98 99
Este poema foi escrito exatamente na fase em que o aut~r, da sua obra. ( 5 ) Em compensação, pode dar lugar à exuma-
procurando superar o lirismo individualista, praticou um lirh- ção do passado, transformando a memória numa forma de vida
mo social e mesmo político de grande eficácia. É pois a fàse ou de ressurreição dum pretérito nela sepultado, como indica
em que questionou com maior ânsia a exploração da subjetivi- o movimento de redenção pela poesia, assinalado ·em "Versos
dade. Terá o artista o direito de impor aos outros a sua emo- à boca da noite". E assim vemos a· sua obra constituir-se na
ção, os pormenores da sua vida? O "sentimento do mundo" medida em que opera a fusão dos motivos de morte e criação
não exige a renúncia ao universo individual das lembranças do ( negação e afirmação).
passado e das emoções do presente? Terão elas justificativa
Não, todavia, sem passar por formas ainda mais drásticas
se o poeta souber ordená-las numa estrutura que ofereça aos
outros uma visão do mundo, permitindo-lhes organizar a sua do sentimento de culpa, indo ao limite da negação do ser, ex-
própria? Tais problemas passam em "Versos à boca da noite", pressa pelo tema da auto-mutilação. ( 6 ). Esta parece atenuada
ligando mais dois temas ao da insatisfação consigo mesmo: o no humorismo ácido a respeito da queda de dentes e cabelos
( em "Dentaduras duplas" - SM, por exemplo); mas alcança
da validade da poesia pessoal e o da natureza do verbo poético.
uma agressividade inquietadora em certos símbolos, como o
braço decepado de "Movimento da espada" - RP ou a
mão suja:
3 Minha mão está suja.
Preciso cortá-Ia.
Não adianta lavar.
Na obra de Drummond a inquietude com o eu vai desde A água está podre.
as formas ligeiras do humor até à auto-negação pelo sentimen- Nem ensaboar.
to de culpa, - que nela é fundamental como tipo de identifi- O sabão é ruim:
cação da personalidade, manifestando-se por meio de traços A mão está suja,
suja há muitos anos.
duma saliência baudelaireana: 1

C1A mão suja" - J)


Tenho horror, tenho pena de mim mesmo
e tenho muitos outros sentimentos
violentos. Na sua impureza sem remédio, a "mão incurável" polui
("Estrambote melancólico" - FA) o ser, impede o contacto com o semelhante e cria a ânsia de pu-
rificação. Ao "sujo vil", o
As manifestações indiretas são talvez mais expressivas, triste sujo
como a freqüência das alusões à náusea, à sujeira, ou o mer- feito de doença
gulho em estados angustiosos de sonho, sufocação e, no caso· e de mortal desgosto
na pele enfarada,
extremo, sepultamento, chegando ao sentimento da iriumação
em vida. ( 4 ) Este tema, que se poderia chamar de empareda- opõe-se o "cristal ou dia:tnante",em que
mento, manifesta uma opréssão do ser que chega a assumir
a forma de morte antecipada, - visível na fase mais recente
( 5) Ver, por exemplo, "Fraga e sombra" - CE; "Eterno"
FA; o já citado "Elegia".
(4) Ver os poemas: "Noturno oprimido" -J; "Passagem da (6) Ver: "Dentaduras duplas" -- SM; 11A mão suja" - J;
noite" - RP; "Uma hora e mais outra" - RP; "O poeta escolhe "Nosso tempo" - RP; "Uma· hora e mais outra" ~ RP; "Movi-
o seu túmulo" - RP; "0 enterrado vivo" - FA; "Elegia" - FA. mento da espada" .....:...
RP; "Indicações" - RP.

100 101
por. maior contraste 4
quisera tornã-la.
A consciência crispada, revelando constrangimento da per-
Opõe-se, principalmente, a limpeza natural das coisas, a nor sonalidade, leva o poeta a investigar a máquina retorcida da
malidade das relações: alma; mas também a considerar a sua relação com o outro, no
amor, na família, na sociedade. E as relações humanas lhe pa-
uma simples mâo branca, recem dispor-se num mundo igualmente torto.
mão simples de homem, Talvez fosse excesso· de fantasia dizer que as próprias con-
que se pode pegar
e levar à boca dições de inteligência do mundo - o tempo e o espaço -
ou prender à nossa acompanham a deformação do eu retorcido, em notações como:
num desses momentos "ondas de éter / curvas, curvas", "curva de um jardim", "curva
em que dois se confessam da noite", "adunca pescaria", "curva perigosa dos cinqüenta",
sem dizer palavra ...
"curva desta escada", "linha curva que se estende". (7) Mas
não há dúvida que para o poeta o mundo social é torto de ini-
Deste estado de ânimo resulta um destaque da mão-cons- qüidade e incompreensão. Seja uma deformação essencial, seja
ciência, que na última estrofe aparece moralmente separada do uma deformação circunstancial ( o poeta parece oscilar entre as
corpo, quase autônôma como num quadro surrealista, permi-
tindo a imagem final da substituição, do advento de outra,
sintética e limpa na sua artificialidade:
duas possibilidades), o fato é que ela se articula com ~ .defor-
mação do indivíduo, condicionando-a e sendo cond1c10nada
por ela.
l
Inútil reter Esta "reciprocidade de perspectivas"., par~. falar como os
. a ignóbil mão suja sociólogos, aparece, desde -as manifestações iniciais e ainda in-
posta sobre a mesa. decisas do tema do mundo torto, em dois motivos tratados
Depressa cortá-Ia, freqüentemente com humorismo: o obstáculo e o desencontro.
fazê-Ia em pedaços
e jogá-la ao mar. Para o jovem poeta de Alguma Poesia, para o poeta mais
Com o tempo, a esperança maduro de Brejo das Almas, a sociedade oferece obstáculos que
o sew:1 maquinismos, impedem a plenitude dos atos e dos sentimentos, como no poe-
outra mão vir<:',
pura, - transparente ma que se tornou paradigma, "No meio do caminho" - AP:
colar-se a meu braço.
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
A redenção pela mutilação de um eu insatisfatório apa- tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
rece em tonalidade sangrenta e triunfal no citado "Movimento
da espada", onde o sacrifício do eu culposo condiciona o aces-
so à solidariedade, que é a. humanidade verdadeira. A leitura optativa a partir do terceiro verso ( que se abre
para os dois lados; sendo fim do segundo ou começo do quar-
Estamos quites, irmão vingador.
Desceu a espada e cortou o braço.
Cá está ele, molhado em rubro. (7) Respectivamente: "Um homem e seu carnaval" - BA;
Dói o ombro, mas sobre o ombro "Versos à boca da· noite" - RP; "O lutador" - J; "Domicilio"
tua justiça resplandece. - FA; "0 quarto em desordem" - FA; "Escada" --- FA:
"Nudez" - VPL.

102 1,03
to), confirma que o meio do caminho é bloqueado topografi- se estende a todos os níveis, todos os lugares, todos os grupos,
camente pela pedra antes e depois, e que os obstáculos se en- para terminar na paralisia geral da morte:
cadeiam sem fim. Da barreira que formam, vem de um lado
a restrição que o mundo opõe ao eu e é -uma das forças que o depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
levam a torcer; de outro lado, o desentendimento entre os ho-
mens, cada um "torto no seu canto" ("Segredo" - BA). Já
no primeiro livro, ainda em tonalidade humorística, o poema Mais tarde, o poeta chegará a representar um mundo fa-
"Quadrilha" - AP fala de amores· não correspondidos que se bulosamente construído com o temor, que Se torna matéria das
encadeiam numa série aberta sem reciprocidade: coisas e dos sentimentos, lei das ações e ordem do universo:

João amava Teresa que amava Raimundo E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili Vestimos panos de medo.
que não amava ninguém. De medo, vermelhos rios
vadeamos.
( ... )
Noutros poemas vemos relações mecamcas manifestando-
-se por exemplo na visita burguesa convenCional, episódio •de
Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
i
1
uma rotina sem alma, de que ninguém gosta mas da qual nin- medrosos caules, repuxos, •
guém escapa ( "Sociedade" - AP). '· ruas só de medo e calma.
( ... )
O obstáculo e o desencontro caracterizamuma espec1e de Nossos filhos tão felizes . . ,
mundo avesso, onde os atos não têm sentido ou se processam Fiéis herdeiros do medo,
eles povoam a cidade.
ao contrário, como no símbolo perverso de uffi Papai Noel que Depois da cidade o mundo.
entra pelo fundo da casa e furta os brinquedos das crianças Depois do· mundo as estrelas
adormecidas ( "Papai Noel às avessas" - AP). dançando o baile do medo.

Desde o início, pois, era visível- na poesia de Drummond ("O medoP - RP)
a idéia de que, para usar a expressão de um personagem de
Eça, de Queirós, vivemos num "mundo muito mal feito". Est::1 A consciência social, e dela uma espécie de militancia atra-
idéia vai aumentando, até que do mundo avesso do obstáculo vés da poesia, surgem. para o poeta como possibilidade de res-
e do, desentendimento surja a· idéia social do "mundo caduco", gatar a consciência do estado de emparedamento e a existên-
feito de instituições superadas que geram o desajuste e a ini- cia da situação de pavor. No importante poema "A flor e a
qüidade, devido aos quais. os homens se entodilham na solidão, náusea" - RP, a condição individual e a condição social pe-
na incomunicabilidade e no egoísmo. A sufocação do ser, que S11msobre a personalidade e fazem-na sentir-se responsável pelo
vimos sob as formas do emparedamento e da mutilação no mundo mal feito, enquanto ligada a uma classe opressora. O
plano individual, aparece no plano social como medo, - moti- ideal surge como força de redenção e, sob a forma tradicional
vo importante na tomada de consciência do poeta em sua ma- de uma flor, rompe as camadas que aprisionam. Apesar da
turidade. O medo paralisa, sepulta os homens no isolamento, distorsão do ser, dos obstáculos do mundo, da incomunicabili-
impede a queda das barreiras e conserva o mundo caduco. dade, a poesia .se arremessa para a frente ·numa conquista, con-
"Congresso internacional do medo" - SM, construído se~ fundida na mesma metáfora que a revolução:
gundo o mesmo processo de saturação da palavra-chave em- Utna flor nasceu na rua!
pregado em "No meio do caminho", descreve essa paralisia que Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

104 105
Uma flor ainda desbotada
ilude a policia, rompe o asfalto. problemas do mundo, manifestando-os numa espécie de ação
Façam completo silêncio, paralisem os negócios, pelo testemunho, ou de testemunho como forma de .ação atra-
garanto que uma flor nasceu. vés da poesia, que compensa momentaneamente as fixações in~
Sua cor não se percebe. dividualistas do "eu todo retorcido". •
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros. Tenho apenas duas mãos
:E:feia. Mas é real_mente uma flor. e o sentimento do ·mundo,
mas estou cheio de escravos,
Sento-me no chão da capital do pais às cinco horas da tarde minhas lembranças escorrem
e lentamente passo a mão nessa forma insegura. e o corpo transige
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se. na confluência do amor.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas erri pânico.
( "Sentimento do mundo" - SM)
:E:feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
A idéia de escravo ( de homem privado dos meios de hu-
Essa função redentora da poesia, a~sociada a uma concep- manizar-se) combina-se com a idéia de rua, praça, cidade ( isto
ção socialista, ocorre. em sua obra a partir de 1935 e avulta é, o espaço social em que se define a sua alienação) e ambas
a partir de 1942, como participação e empenho político. Era convergem na idéia de "mundo caduco", "Elegia 1938" - SM
o tempo da luta contra o fascismo, da guerra de Espanha e, a - mundo cujas normas não têm_ mais razão de ser. O poeta
seguir, da Guerra Mundial, - conjunto de circunstâncias que reage a esta série de constatações que- alimentam a tomada de
favoreceram em todo O mundo o incremento da literatura par- consciência de Sentimento do Aftmdo, recusando os temas do
ticipante. As convicções de Drummond se exprimem com ni- lirismo tradicional e dispondo-se a partilhar, pelo espírito da
tidez suscitando poemas admiráveis, alusivos tanto aos princí- fabricação prodigiosa de um mundo novo anunciado pelos ;con-
pios, simbolicamente tratados, quanto aos acontecimentos, que tecimentos, que descreve em poemas admiráveis, utilizando
ele consegue integrar em estruturas poéticas de maneira eficaz, símbolos como as mãos dadas, a aurora, a flor urbana os ma-
quase única no meio da aluvião de versos perecíveis que então tizes de vermelho, o sangue redentor, o operário que 'anda so-
se fizeram. bre o mar, manifestando uma era de prodígios.
Mas do ponto de vista deste ensaio, a sua poesia social Assim, pode rever a escala da personalidade em relação
não é devida apenas à convicção, pois decorre sobretudo das in- ao mundo; e desta verificação resulta acréscimo de compreen-
quietudes que o assaltam. O sentimento de insuficiência do são do eu e do mundo, inclusive da relação entre ambos, - o
eu, entregue a si mesmo, leva-o a querer completar-se pela ade- que dará nova amplitude ·à sua poesia. Na fase mais .estrita-
são ao próximo, substituindo os problemas pessoais pelos pro- mente social ( a de Rosa do Povo), notamos, por exemplo, que
blemas de todos. a inquietude pessoal, ao mesmo tempo que se aprofunda, se
No livro Sentimento do Mundo, a mão, que simboliza a amplia pela consciência do Hmundo caduco", pois o sentimento
consciência, aparece de inkio como algo que se completa, se individual de culpa encontra, senão consolo, ao menos uma
estende para o semelhante e deseja redimi-lo. Como o poeta certa justificativa na culpa da sociedade, que a equilibra e
traz o outro no próprio ser carregado de tradições mortas, a l talvez em parte a explique. O burguês sensível se interpreta
redenção do outro seria como a redenção dele próprio, justi- em função do meio que o formou e do qual, queira ou não
ficado por essa adesão a algo exterior que ultrapassa a sua hu- é solidáriá. ("As.sim nos criam burgueses", diz o poema "Ü
manidade limitada. A poesia consistiria em trazer em si os medo). O dese10 de transformar o mundo, pois, é também
uma esperança de promover a modificação do próprio ser, de
106
107
encontrar uma desculpa para si mesmo. E talvez esta perspec:- na malha das circunstâncias e, deste modo, deu lugar a uma
tiva de redenção simultanea explique a eficácia da poesia sochl forma peculiar de poesia social, não mais no sentido político,
de Drummond, na medida em que ( Otto Maria Carpeaux já mas como discernimento da condição humana em certos dramas
o disse faz tempo) ela é um movimento coeso do ser no mun- corriqueiros da sociedade moderna.
do, não um assunto, mediante o qual um vê o outro. O seu
cantar se torna realmente geral porque é, ao mesmo tempo, A poesia fugiu dos livros, está agora nos jornais.
profundamente particular. (
1
'Carta a Stalingrado" - .RP)
Isto não aplaca a inquietude, - mas favorece a noção de
que o eu estrangulado é em parte conseqüência, produto das Este verso manifesta a faculdade de extrair do aconteci-
circunstâncias; se assim for, o eu torto do poeta é igualmente mento ainda quente uma vibração profunda que o liberta do
uma espécie de subjetividade de todos, ou de muitos, no mun- transitório, inscrevendo-o no campo da expressão. Ê o que faz
do torto. Mesmo que não contribua .para redimir o persona- Drummond, não apenas com os sucessos espetaculares da guer-
gem que fala na primeira pessoa, a destruição do velho "mun- ra e da luta social, mas com a morte do entregador de leite ba-
do caduco" poderia arrastar consigo as condições que· geram leado pelo dono da casa, que o tomou por um ladrão ( "Morte
consciências estranguladas, como a sua. do leiteiro" - RP); com o anúncio que pede notícias da moça
Então, meu coração também pode crescer. desaparecida ( "Desaparecimento de Luísa Pôrto" - RP); so-
Entre o amor e o fogo, bretudo com o homem da grande cidade que vai cumpriado
entre a vida e o fogo, maquinalmente as obrigações do dia para morrer à nç,ite, na
meu coração cresce dez metros e explode. máquina que o arrebatou ( "Morte no _avião"-. RP).
- ó vida futura! nós te criaremos.
("Mundo grande" - SM) Sob este aspecto, a sua poesia difere da de outros moder-
nistas, inclusive Mário de Andrade, que tentam fixar o quoti-
O advento da sociedade justa seria uma espécie de "toque diano a fim de obterem um ''momento poético" suficiente em
si mesmo; ele, ao contrário, procede a uma fecundação e a
real", como, num sonêto contido e obscuro de W. H. Auden,
uma extensão do fato, para chegar a uma espécie de discreta
o contacto milagroso dos reis taumaturgos, curando as dores e
mutilações do tempo. E nós vemos que a destruição do "mun- epopéia da vida contemporânea. Isto talvez se ligue à capaci-
dade de injetar fantasia nas coisas banais, - à maneira do
do caduco" é não apenas convicção política, mas um modo _de jovem que, no poema "Sentimental" - AP, escreve o nome
manifestar o grande problema da "terra gasta", que T. S. Eliot
da namorada com as letras de macarrão da sopa; e também
propôs logo após a Primeira Guerra Mundial e tem nutrido
ao sexto sentido que o faz traduzir a anedota na linguagem do
muito da arte contemporânea até às formas mais agudas
mito e do sonho, como a "Canção da moça fantasma de Belo
do desespero por esterilidade - na poesia, no romance, no
Horizonte" - SM, inspirada numa hi,storieta macabra muito
teatro e no cinema. corrente a certa altura.
A poesia social de Drummond deve ainda a sua eficáci~
a uma espécie de alargamento do gosto pelo quotidiano, que foi
sempre um dos fulcros da sua obra e inclusive explica a sua 5
qualidade de excelente cronista em prosa. Ora, a experiência l
política permitiu transfigurar o quotidiano através do aprofun- Aliás, é através do sonho que o poeta nos introduz numa
damento da consciência do outro. Superando o que há de pi- outra grande manifestação de sua inquietude: a busca do pas-
toresco e por vezes anedótico na fixação da vida de todo o sado, através da família e da paisagem natal.
dia, ela aguçou a capacidade de apreender o destino individual

108 109
No deserto de Itabira Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava
a sombra de meu pai que rebentava daquelas páginas.
tomou-me pela mão.
Tanto tempo perdido. A hipérbole do segundo verso mostra que o álbum é ao
Porém nada dizia.
Não era dia nem noite. mesmo tempo um jazigo, e a ambigüidade se prolonga pela ação
Suspiro? Vôo de pâssaro? dos vermes na estrofe seguinte, resultando o sentimento que
Porém nada dizia. os antepassados possuem uma humanidade que permanece viva,
("Viagem lla familia" - J) apesar da destruição corporal. Entre eles e o poeta se esboça
aqui um primeiro frêmito misterioso, comunicahdo .a vida com
Este poema abre um ciclo anunciado por alguns poemas a morte, o descendente com o ascendente, de modo a estabele-
anteriores e desenvolvidos paralelamente à poesia social, pro- cer um sistema de relações e antecipações que a poesia ulterior
longando-se todavia depois dela, num ritm~ de obsessão_cres- desenvolverá.
cente. E é sem dúvida curioso que o ma10r poeta social da A obsessão com os mortos apareceráno poema "Os rostos
nossa literatura contemporânea seja, ao mesmo tempo, o gran- imóveis" - J, do livro seguinte. Ao mesmo tempo se deli-
de cantor da família como grupo e tradição. Isto nos leva a neia a figura do pai ( que será a obsessão máxima deste ciclo)
pensar que talvez ~~te _cido represente ·na sua o~ra um_encon- no poema "Edifício Esplendor" - J, expandindo-se e combi- u
tro entre as suas 1nqu1etudes,a pessoal e a social, p01s a fa- nando-se ao tema da cidade natal, já manifestado anteriormen-
mília pode ser explicação do indivíduo por alguma coisa q1;e te em "Viagem na família". .
o supera e contém. Além disso, se observarmos a cronologia A partir daí o tema do pai avulta como fixação, de sen-
de sua obra verificaremos que é precisamente o aguçamento tido ao mesmo tempo psicológico e social, - tanto mais quan-
dos temas cle inquietude pessoal e o aparecimento dos temas to nessa fase a mãe só aparece episodicamente duas vezes, trans-
sociais que o levam à sua peculiaríssima poesia familiar, tão ferindo-se a sua função para a casa ou a cidade. É tão viva
diversa, por exemplo, da convivência lírica de Manuel Bandeira esta presença de cunho patriarcal, que uma balada como "Caso
com a memória dos avós, pais e parentes mortos. do vestido" - RP, completamente desligada das lembranças
No primeiro livro, o poema inicial, já citado, define o individuais e da poesia familiar, chega a parecer uma espécie
modo-de-ser constrangido, de alguém que "um anjo torto" de núcleo desse poderoso complexo. Das brumas de um· liris-
mandou "ser gauche na vida"; já o seguinte introduz a famí- mo quase folclórico, surge nela o patriarca devorador que es-
lia, apresentada num pequeno quadro evocativo, um daqueles maga os seus e impõe a própria veleidade como lei moral.
cromos tradicionais que os modernistas gostavam de refazer Os outros poemas em que aparece o pai, diretamente referido
na chave do humorismo, do prosaísmo ou do paradoxo ( "In- como o do poeta, lembram uma espécie de esconjuro, de rito
fância" - BA). Mas apenas no terceiro livro surge uma es- póstumo, feito para ao mesmo tempo aplacar, humanizar e com-
pécie de premonição da sua futura poesia familiar, no poema preender este modelo extremo. Tanto mais quanto, a certa
"Os mortos de sobrecasaca"- SM: altura, o pai individualizado vai cedendo lugar à realidade
Havia a um canto da sala um âlbum de fotografias intoleráveis, maior que lhe dá razão-de-ser e para a qual ia como que arras-
alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, tando o filho, - isto é, o grupo familiar, dominado pelos an-
em que todos se debruçavam cestrais, fundido na casa, na cidade, na província, na realidade
na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca. dum passado que parece íntegro à distância e compensa o ser
dividido no mundo dividido. Esta busca é um dos alvos do
Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes
e roeu as pâginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. poeta, embora não deixe de ser paradoxal para quem dissera:

111
110
o não-ser, que até então avultava na poesia de Drummond, fe-
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente. chando o circuito do indivíduo e das suas origens:
( "Mãos dadas" - SM)
ô desejado
ó poeta de uma poesia que se furta e expande
Todavia, é deste e outros paradoxos que se nutre a sua à maneira de um lago de pez e residuos letais . ..
obra: a obsessão simultftnea de passado e presente, individual És nosso fim natural e somos o teu adubo,
e coletivo, igualitarismo e aristocracia. Sem o conhecimento tua explicação e tua mais singela virtude . ..
Pois carecia que um de nós nos recusasse
do passado ele não se situa no presente; a família define e ex- para melhor servir-nos. Face a face
plica o modo-de-ser, como a casa demarca e completa o indiví- te contemplamos, e é teu esse primeiro
duo no meio d~s outros: e úmido beijo em nossa boca de barro e sarro.

Uma parede marca a rua


e a casa. É toda proteção,
docilidade, afago.. Uma parede 6
se encosta em nós, e ao vacilante ajuda,
ao tonto, ao cego. Do outro lado é a noite, Já ficou dito que todas essas inquietações (material sobre
o medo imemorial, os inspetores
da penitenciária, os caçadores, os vulpinos. que trabalha o poeta) adquirem validade objetiva pelo fato de
Mas a casa é um amor. Qu~ paz. nos móveis. se vincularem a uma outra: a meditação constante e por vezes
("Onde há pouco falávamos" - RP) não menos angustiada sobre a poesia.
A natureza e situação do ser, o problema do homem retor-
Sob este aspecto, o poema capital é "Os bens e o san- cido e enrodilhado, que tenta projetar-se no mundo igualmente
gue" - CE, que estabelece a ligação entre o passado da famí- torto, é grave pela paralisia que pode trazer, anulando a exis-
lia e o presente do indivíduo, através da forma altamente sig- tência. O movimento, isto é, a vida, estaria numa espécie de
nificativa de um testamento. Os antepassados fazem certos certeza estética, relativa à. natureza do canto que redime; e
negócios qu_e destruirão expressamente o patrimônio familiar, que, no próprio fato de manifestar o problema por _intermédio
para assim conformarem o destino do neto. "Versos à boca de uma estrutura coerente, erige-se em objeto, - alheio ao poe-
da noite" estabeleciam a hipótese condicional de um outro eu ta, autônomo na sua possibilidade de fixar a atenção e fazer
que poderia ter sido, e cuja existência ficara como pura vir- vibrar o leitor, que é o outro, inatingível no comércio da vida.
tualidade no mundo da infancia, entre "os ídolos de rosto car- Por isso, "Versos à boca da noite" termina por uma espécie
regado", isto é, os· maiores e seus valores; a partir dos quais de desejo de realizar algo completo em si, que fosse uma reali-
a vida se desenrolou. Em· "Os• bens e o sangue",-parece con- zação nos dois sentidos: o psicológico e o artesanal. Por meio
firmar-se que outro modo-de-ser teria sido impossível, pois o do objeto poético instituído, o eu do poeta se dissolve como
que existe já fora predeterminado desde sempre na própria na- psicologia, desfigurado pela transposição criadora, a fim de
tureza da família que o gerou. O extraordinário poder do grupo propiciar um sistema expressivo, do qual foi apenas a semente.
familiar consistiria em excluir qualquer outro modo-de-ser para Mas ao longo da obra de Drummond, não observamos a
o descendente; consistiria numa imanência todo-poderosa que certeza estética, nem mesmo a esperança disto, e sim a dúvida,
lhe traça bitolas e explica por que ele precisa dela para com- a procura, o debate. A sua poesia é em boa parte uma indaga-
preender a si mesmo~na sua natureza e nas suas relações. Re- • ção sobre o problema da poesia, e é natural que esta indagação
ciprocamente, o seu destino completa e explica o da família, encontre uma espécie de divisor de águas em Sentimento do
que também não poderia ter sido outro. No citado poema, a ,\fundo que também aqui marca os seus caminhos novos.
I
peroração coral dos antepassados fecha o debate sobre o ser e
113
112
No livro inicial; domina a idéia de que a poesia vem, de adequada, mas de saber se ela se justifica por um outro senti-
fora, é dada sobretudo pela natureza do objeto poético, :se- do, que a contém e ocasiona uma expressão válida por si. O
gundo a reconsideração do mundo graças à qual os modernis- tema da inquietação transporta-se para o domínio estético, e
tas romperam com as convenções acadêmicas. Drummond co- os assuntos mais consagrados ( o amor, a polis} o milagre, a
meça por integrar-se nesta orientação,-fazendo o valor da poe- redenção) parecem evenrualmente nulos como fontes do poe-
sia confundir-se com o sentimento poético e reduzindo em con- ma, que daqui a- pouco encontrará justificativa, para o poeta,
seqüênciao poema a um simples condutor: não como referência a um objeto, mas como expressão que se
torna ela própria uma espécie de objeto.
Gastei uma hora pensàndo um verso
que a pena não quis escrever.
No entanto ele está cá dentro A poesia é incomunicável.
e não quer sair. Fique torto no seu canto.
Mas a poesia deste momento Não ame.
inunda minha vida inteira.
Ouço dizer que há tiroteio
("Poesia" - AP) ao alcance do nosso corpo.
ln a revolução? o amor?
Não diga nada.
A poesia parece ( para usar uma. definição sua dessa fase)
"acontecer,, sob o estímulo do assunto, de tal maneira que lhe Tudo é possivel, só eu impossivel.
é coextensiva; faz-se pelo simples registro da emoção ou da O mar ,transborda de peixes.
Há horriens que andam no mar
percepção: como se andassem na rua.
Não conte.
Nenhum desejo neste domingo
nenhum problema nesta vida Suponha que Um anjo de fogo
o mundo parou de repente varresse a face da terra
os homens ficaram calados e os homens sacrificados
domingo sem fim nem começo. pedissem perdão.
Não peça.
A mão que escreve este poema
não sabe que está escrevendo Neste poema, o "homem torto" manifesta o problema da
mas é possivel que se soubesse
nem ligasse. incomunicabilidade, tanto no plano da existência quanto no da
criação. A pllrtir daí observaremos uma dissociação re)ativa
("Poema que aconteceu" - AP)
dos dois planos, e o poeta aborda o problema da poesia de
modo especial, numa posição que poderíamos chamar mallar-
No poema "Explicação" - AP, a atividade poética chega meana por que vê no ato poético uma luta com a palavra,
a parecer uma espécie de desabafo que se justifica pelo prazer, para ; qual se deslocam a sua dúvida e a sua inquietação de
o alívio ou a atividade que proporciona. artista. É o que vem proposto de modo claro n' HQ luta-
Essa indiscriminação começa a ser posta em dúvida no dor" - J, cujo início parece, pelo ritmo e a entrada no assun-
pequeno poema "Segredo" - BA, do segundo livro, em que to, uma espécie de transposição irônica do hino escolar que
a legitimidade da poesia é bruscamente questionada, - como abria o Segundo Livro de Leitura de Tomás Galhardo, usual
se o poeta descobrisse que os temas não importam em si mes- na geração de Drummond:
mos, destaca<;losda palavra que os traz ao mundo do poema. Lutar com palavras
E que, portanto, não se trata apenas de encontrar a notação- é a luta mais vã.

114 115
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como um javali.
secos e arrasadores de "Segredo". Mas o poema gira sobre si
e, numa segunda parte, expande a teoria do combate inútil
mas inevitável d' "O lutador". A poesia está escondida, agar-
1
l
!

rada nas palavras; o trabalho poético permitirá arranjá-las de


Não me julgo louco. tal maneira que elas a libertem, pois a poesia não é a arte do
Se fosse, teria
poder de encantá-Ias. objeto, como pareceria ao jovem autor de Alguma Poesia,
Mas lúcido e frio, mas do nome do objeto, para, constituir uma realidade nova.
apareço e tento Com serena lucidez, o poeta renuncia à luta algo espetacular
apanhar algumas e à sua própria veleidade, a fim de que esta possa renascer
para meu sustento
num dia de vida. como palavra-poética:
Penetra surdamente no reino das palavras.
As palavras parecem entidades rebeldes e múltiplas, que Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
o poeta procura atrair, mas que fogem sempre, quer ele as Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intacta.
acaricie, quer as maltrate. Ê uma luta desigual e inglória, con- Ei-los, sós e mudos em estado de dicionário.
tra objetos imponderáveis que se desfazem ao contacto, mas
que fascinam, e aos quais o poeta não' consegue renunciar. De
tal modo que, terní.inado o dia e o "inútil duelo", "a luta pros- Este é o momento de mais profunda consciência estética
segue / nas ruas do sono". em sua obra, o momento da clarividência em face de rudo que
normalmente o angustia. Momento em que pôde suscitar uma
O drama desta pesquisa se desenrola de maneira mais com- aventura mitológica da criação, encarnando na palavra a ima-
pleta em "Procura da poesia", de Rosa do Povo, cujos cin- nência que a rege. E é tal o fervor, que um verso cofio o úl-
qüenta e oito versos debatem o problema dos assuntos, para timo do trecho citado ( "Ei-los, sós e mudos em estado de di-
concluírem que em si eles nada são, o que é tanto mais signi- cionário"), arraigado nos hábitos humorísticos do Modernis-
ficativo quanto a poeta vivia naquela altura a descoberta e a mo brasileiro, é aqui, todavia, severo e descarnado, com uma
prática apaixonada da poesia social: verdade que faz a imagem parecer expressão direta. E esta
entrada no mistério possui uma gravidade ritual que lembra a
Não faças versos sobre acontecimentos. penetração em certos espaços mágicos e soienes de Murilo
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela a vida é um sol estático, Mendes como o d' "Os amantes submarinos" ( As meta-
não aquece nem ilumina. morfoses):
As afinidades, os aniversár:os, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo, Esta noite eu te encontro nas solidões de coral
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão Onde a força da vida nos trouxe pela mão.
[lítica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes. Haveria paradoxo em negar preliminarmente os assuntos,
Não me reveles teus sentimentos, para concluir que o objeto da poesia é a manipulação da pa-
que se prevalecem do equivoco e tentam a longa viagem. lavra? Esta, nada mais sendo que a indicação das coisas, dos
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia. sentimentos, das idéias, dos seres, não existe separada da sua
representação; mas para o poeta tudo existe antes de mais nada
A partir daí, o movimento negativo prossegue num cres- como palavra. Para ele, a experiência não é autêntica em si,
cendo que faz prever a mesma conclusão dos pequenos versos mas na medida em que pode ser refeita no universo do verbo.

116 117
A idéia só existe como palavra, porque só recebe vida isto é imediata da estrutura em que podem ser ordenados. E nós
significado, graças à escolha de uma palavra que a d~signa ~ percebemôs que a germinação do poema como um todo é que
à posição desta na estrutura do poema. O trabalho poético o guia nessa aventui:a órfica:
produz uma espécie de volta ou refluxo da palavra sobre a Convive com teus poemas antes de escrevê-los.
idéia, que então ganha uma segunda natureza uma segunda in- Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
teligibilidade. Tanto assim, que o poema é
geralmente feito Esperá que cada um se realize e consume
com o lugar-commn, - a velha pena, a velha alegria, a ve- com seu poder de palavra
lha perplexidade do homem. No entanto, quando o lemos ele e seu. poder de silêncio.
parece novo, e só numa segunda fase identificamos os objetos
d~ sempre~ ele en~ão completa a sua tarefa, ao parecer um enun- O poema é, para além das palavras, uma conquista do
ciado multo mais claro e renovador daquilo que sentía- inexprimível que elas não contêm e diante do qual devem ca-
mos e fazíamos. Nas mãos do poeta o lugar-comum se torna pitular, - mas· que pode manifestar-se como sugestão miste-
revelação, graças à palavra na qual se encarnou. riosa nas ressonâncias que elas despert-am, Uma vez combinadas
adequadamente; e que, indo perder-se nas áreas de silêncio
O trabalho necessário a isto é grande parte do que que as cercam e se insinuam entre elas, são uina propriedade do
chamamos inspiração. Consiste na capacidade de manipular as poema no seu todo. A obsessão mallarmeana da palavra como
palavras neutras, Hem e·stado de dicionário" ( que podem servir v!olação de um estado absoluto, que seria a não-palavra, a pá-
para compor uma frase técnica, uma indicação prática ou um gina branca, mas que ao mesmo tempo é nosso único recurso
verso) e quebrar o seu . estado de neu.tralidade pelo discerni- para evitar o naufrágio no nada, - se insinua neste poema de-
mento. do sentido. que adquirem quando combinadas, segundo cisivo e explica o recolhimento, a cautela com que o poeta se-
uma smtaxe especial. Inicialmente, é preciso rejeitar os siste- gue na busca do equilíbrio precário e maravilhoso, o arranjo
mas convencionais, que limitam e mesmo esterilizam a descober- da estrutura poética, que só pode ser obtido ao -fim de um em-
ta dos sentidos possíveis. Daí a decisão de um poema anterior: penho de toda a personalidade:
Não rimarei a palavra sono Não forces o poema a desprender-se do limbo.
com a incorrespondente palavra outono. Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Rimarei com a palavra carne Não adules o poema: Aceita-o
ou qualquer outra, que todas me convêm. como ele aceita sua forma definitiva e concentrada
As palavras não nascem amarradas, no espaço.
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis. A "forma no espaço", a configuração objetiva que encer-
("Considerações do poema" -:- RP) ra o sentido global para que cada palavra contribuiu pela sua
posição, depende dessa paciência, complemento da luta inicial
Trata-se da decisão de usar a palavra com o senso das descrita em "O lutador". Como entidades isoladas, as palavras
suas relações umas com as outras, pois a arte do poeta é por espreitam o poeta e podem armar-lhe tocaias. Ele então as
excelência a de ordenar estruturas; o tipo escolhido para asso- propicia, renunciando ao sentimento bruto, à grafia espontâ-
ciar os vocábulos ( talvez o "desenho no céu livre") é que nea da emoção, que arrisca confundi-las num jorro indiscrimi-
transforma o lugar-comum em revelação. Em "Procura da nado; elas capitulam e deixam-se colher na rede que as organi-
poesia", a penetração no reino das palavras consiste nessa ati- zará na unidade total do poema. Obra difícil e perigosa, pois
vidade, e o poeta se refere logo a seguir, não aos vocábulos, essa exploração depende da sabedoria do po~ta, único juiz no
que são um momento da pesquisa criadora, mas à percepção ato de arranjá-las:

118 119
Chega -mais perto e contempla as palavras.
Caâa uma negação da própria poesia. E surgem versos de um niilismo
tem mil faces secretas sob a face neutra mais afiado que nunca:
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrivel, que lhe deres: ( Poesia, sobre os principias
Trouxeste a chave? e os vagos dons do univers.o:
em teu regaço incestuoso,
o bel~ câncer do verso.
Obra, além do mais, frágil e relativa, pois as palavras ("Brinde no banquete das Musas" - FA)
estão prontas a cada instante para escapar ao comando e se
recolherem à ausência de significado poético, ao limbo do quo-
tidiano, onde são veículos sem dignidade especial. Ou então Estas indicações ( outras poderiam ser feitas) servem para
a permanecerem no universo inicial do sonho e do inconscien- definir o caráter limitado do presente ensaio. Trata-se de uma
te, onde prosseguia, n' "O lutador", o combate infrutífero do análise sobretudo descritiva, na medida que identifica alguns
poeta, que elas podem olhar como a quem falhou, a quem não ,temas e investiga a sua ocorrência. Ao mesmo tempo é vo-
soube dispô-las na unidade expressiva. O gelo do malogro, na luntariame~te parcial: abrange apenas certo número de' temas,
fímbria entre a deliberação e o acaso, passa nos versos finais para analisá-los numa fase da obra do poeta, pressupondo que
formem um todo e que esta fase seja decisiva. Além disso, sen- 1
deste poema, um dos mais admiráveis da literatura contem- 1
porânea: , do uma investigação temática, baseada na psicologia que circula '
nos poemas, deixa de lado a análise formal que, a com-
Repara: pletaria e à qual pretende ser uma espécie de introdução
ermas de melodia e conceito, necessária.
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono, Na obra de Drummond, a força dos problemas é tão inten-
rolam num rio dificil e se transformam em desprezo. sa que o poema parece crescer e organizar-se em torno deles,
como arquitetura que os projeta. Daí o relevo que assumem e
a necessidade de identificá-los, através do sistema simbólico
7 formado por eles. A partir deles, por exemplo, é que podemos
compreender um dos aspectos fundamentais de sua arte, a vio-
lência, - que, partindo do prosaísmo e do anedótico nos pri-
A obra de Drummond apresenta outros aspectos e, a partir
meiros livros, se acentua ao ponto de exteriorizar a compulsão
de Claro Enigma, uma inflexão dos que acabam de ser indi- interna, num verdadeiro choque contra a leitor. À maneira de
cados. Assim, por exemplo, a crispação se atenua ou subli- Graciliano Ramos no romance, Drummond, na poesia, não pro-
ma, permitindo no último livro, Lição de Coisas, certa recupe- cura ser agradável, nem no que diz, nem na maneira por que
ração do humorismo inicial e um interesse renovado pela ane-
o diz:
dota e o fato corrente, - tratados com relativa gratuidade.
Talvez seja mais importante a transformação das inquietu- Eu quero escrever um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
des, gerando certa serenidade expressa não apenas pelo signi- Eu quero pintar um soneto escuro,
ficado da mensagem, mas pela regularidade crescente da for- seco, abafado, difícil de ler.
ma, a que o poeta parece tender como fator de equilíbrio na
visão do mundo. Entretanto, essa serenidade é também fruto Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
de uma aceitação do nada, - da morte progressiva na existên- E que no seu maligno ar imaturo,
cia de cada dia; da dissolução do objeto no ato poético até à ao mesmo tempo saiba ser, não sei.·.

120 121
Este meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de faier sofrer, 6
tendão de Vênus sob o pedicuro.

Ninguém o lembrará: tiro no muro,


cão mijando no caos, enquanto· Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender. NO RAIAR DE CLARICE LISPECTOR
("Oficina irritada'! - CE)

Talvez seja esta uma das causas que dão ao seu verso o
aspecto seco e anti-melódico. Mas é preciso considerar também
que a sua maestria é ·menos a de um versificador que a de um
criador de imagens, expressões e seqüências, que se vinculam
ao poder obscuro dos te:mas e geram diretamente a coerência
total do poema, relegando quase para segundo plano o verso
como uma unidade autônoma. Ele reduz de fato esta autono-
mia, submetendo-o a cortes que o bloqueiam, a ritmos que o
destroncam, a distensões que o afogam em unidades mais am-
pfas. Quando adota formas pré-fabricadas, em que o verso de-
ve necessariamente sobressair, como o soneto, parece escorre-
gar para certa frieza. Na verdade, com ele e Murilo Mendes
o Modernismo brasileiro atingiu a superação do verso, permi-
tindo manipular a expressão num espaço sem barreiras, onde
o fluido mágico da poesia depende da figura total do poema,
livremente construído, que ele entreviu na descida ao mundo
das palavras.
(1965)

122
Parece certo que o inicio de uma verdadeira reforma do
ensamento literário tem de começar pelo forjamento de uma
expressão a equada; mas no Brasil notamos um certo confor-
mísmo estilístico. As tentativas modernas, que parécerãin
Õravatas tão arrojadas aos tímidos amantes do Serviço de Trftn-
sito Literário, é forçoso convir que não passaram de uma .limi-
tada amplitude. Dentro dela, cada um se exprimiu mais ou
menos saborosamente, conforme o seu talento, mas ninguém
aprofundou a expressão literária. Isto é, ninguém disse mais
e melhor do que Machado de Assis e Aluísio Azevedo. A qua-
lidade que impressionou foi o vigor, - a desenvoltura com
que, por exemplo, os romancistas do decênio de 1930 lidaram
com os vocábulos e as construções, adaptando uns e outros ao
seu temperamento literário expansivo. Quase· ninguém, toda-
via, chegou a dar uma demonstração de verdadeira força
mental, não física ou emocional. (Talvez Antônio de Alcãrí-
taraNlachado, se não tivesse morrido, - pensam sem base
sólida os nostálgicos.) Possivelmente, os únicos que fizeram
algo realmente de valor foram Mário de Andrade, com Ma-
cunaíma, e Oswald de Andrade, com Memórias sentimentais
de ] oão Miramar. Noutro sentido, Ciro dos Anjos andou por
perto, assim como Graciliano Ramos. Os demais deram belos
exemplos de vigor e sensibilidade. Nada me agrada mais do
que ler Fogo Morto ou Terras do sem fim, o que já fiz repeti-
dfls vezes. Mas a contribuição do pensamento, que faz a ver-
dadeira obra durável; que distingue a confissão de Stavroguin
dos gritos pungentes de Helen Grace Carlisle, fazendo da pri-
meira uma criação superior do espírito, em contraposição ao
1
rumor de entranhas dos segundos ( 1); qne distingue o velório

(1) Helen Grace Carlisle foi autora de um retumbante


best•seller dos anos Trinta, Mother's Ory} que se apresentava

125
de Luigi Murica da admirável pr1sao de Vitorino Papa-Rabo, deito choque ao ler o romance diferente que é Perto do cora-
porque o primeiro se enquadra numa visão geral da sociec ção selvagem, de Clarice Lispector, escritora até '1/lUicomple-
dade e da existência, enquanto esta é apenas um retalho de hu 0 tamente desconhecida para mim.
manidade transposto pela arte ( 2); - esta contribuição do Com efeito este romance é uma,. tentativa impressionan-
pensamento, eu a procuro em vão nos mestres do nosso ro- te para levar a' nossa língua ca.JJhes:trãa domínios pouco ex-
mance atual, aliás semelhantes nisto à maioria dos seus colegas plorados forçando-a a "ãda!Jtar-sea um pensamento cheio de
norte-americanos e europeus. mistério: para o qual séÍÍtiffiOS;que a ficção não é um exer-
Talvez se pudesse dizer, para concluir, que numa litera- cício ou uma aventura afetiva, mas um instrumento real do
t1;1ra,enquanto não se estabelecer um movimento de pa~1?--~ª!'..,aefe- ~o, capaz de nos fazer penetrar em alguns dos laliirintos
t1yalll~nte_o_material verbal; enquanto não se passar -da afeti- foais retorcidos da mente.
vidade_e_d_Lob.s.er:v.açãopara a síntese de ambos, que se proce~- "Todos os homens que estão fazendo um grande nome em
sa_11a_j_11!_eli11ência,
- nãp sera possível encará-lacloângiilodas arte / .. './ fazem-no porque evitam o inesperado; porque se
produções feifas para permanecer. Enquanto não for pensa- especializam em pôr as suas obras no mes1no-~nca1~ que as
da convenientemente, uma língua não estará apta para coisa outras, de modo que o público sabe imediatamente onde tem
alguma de definitivo, nem dará azo a nada mais s6lido do que o nariz" - dizia certo crítico de arte a Jolyon Forsyte Junior;
a literatura periférica, ou seja, . a que dá voltas em torno de e aconselhando-o a abandonar as suas veleidades pessoais pata
um problema essencial sem conseguir pôr a mão nele. Para entrar na rotina, acrescentou estas palavras sábias: "e isto é
que a literatura brasileira se torne grande, é preciso que o pen- tanto mais fácil para o senhor quanto não há uma originalidade
samento afine a língua e a língua sugira o pensamento por ela muito acentuada no seu estilo" (3).
afinado. Uma corrente dupla, de que saem as obras-primas e Assim, na bitola comum da arte, o melh<?rpara o artista
sem a qual dificilmente se chega a uma visão profunda e vasta seria sofrear os seus ímpetos originais e procurar uma relativa
da vida dentro da literatura. - eminência dentro de uma rotina mediana, mas honesta e s6lida.
Nos romances que se publicam- todos os dias entre nós, O pr6prio Galsworthy talvez possa ser dado como exemplo
podemos dizer sem medo que não encontramos a verdadeira do que põe na boca do seu personagem.
exploração vocabular, a verdadeira aventura da expressão. Por No entaflto, mesmo na craveira ordinária do talento, há
ffiaio:tés que Sejaffi, os nossos romancistas se_~cqntent».m._,
_ç:qfl:) quem procure uma via mais acentuadamente sua, preferindo o
posições já· adquiridas, pensando naturalmente que o impulso
risco da aposta à comodidade do ramerrão. É o caso de Clarice
generoso· que os anima supre a rudeza .do materiaL Raramen- Lispector, que nos deu um romance de tom mais ou menos
te é dado encontrar um escritor que, como o 0swald de An-
raro em nossa literatura moderna, já qualificada de "ingenua-
drade de João Miramar, ou o Mário de Andrade de Macunaíma,
mente naturalista" por um crítico de valor, em frase que me
procura estender o- domínio da palavra sobre regiões mais
complexas e-mais inexprimíveis, ou fazer da ficção uma forma parece exagerada. Poder-se-ia dizer com mais justeza que os
de conhecimento do mundo e das idéias. Por isso, tive verda- escritores brasileiros se contentam ~m geral_com_p.!.9_<;.e.~~p_]_já
usadoJ;, e que apenas um ou outro ·se arrisca a tentativas mais
ousadas.
como documento real e deste modo impressionou todos os que gos-
tam da sub-literatura sentimental.
(2) Luigi Murica é personagem de Pane é vino, de Ignazio (3) Trata-se do personagem central do romance de John Gals-
Silone, que enLão supervalodzavamos. Hoje, eu diria o r:ont!'ário, worthy, The Man of Property, primeir_o da trilogia The Forsyto
considerando José Lins bem superior. Saga.

126 127
Se não valesse por outros motivos, o livro de Clarice
Lispector valeria como tentativa, e é como tal que deve~os de aproximação. O seu campo ainda é a alma, são ainda as
julgá-lo, porque nele a realização é nitidamente inferior ao pazxoes. Os seus processos e a sua indiscriminaçãorepelem,
propósito. Original nã to será. A crítica de todavia, a idéia de análise. São antes uma tentativa de escla-
influências me-mete-rer.t elo ue tem e 1 1c1 e recimento através da identificação do escritor com o problema,
Sobretudo de relativa e pouco concludente. Em re açao a erto mais do que uma relação bilateral de sujeito-objeto.
d.Q_ coraçao selvagem, se deixarmop1e::lado às pussíyeis fontes
É desta maneira que Clarice Lispector procura situar o
gs_t.tange1rasde inspira.ção,_.permanece_o
fato de que, dentro da seu romance. O seu ritmo é um ritmo de procura, de pene-
nossa literatura, é perjormance da· melhor qualidade.
' tração que permite uma tensão psicológica poucas vezes alcan-
A autora ( ao que parece uma jovem estreante) colocou çada em nossa literatura contemporânea. ~-~9~~.?ul~s_ s_~o
seriamente o problema do estilo e da expressão. Sobretudo obrjgados a perder o _seu sentido .~r_re_11t,e,
para se amoldarem
desta. Sentiu que existe uma certa densidade. afetiva e inte- its. necessidãdes-ae uma -expressão sutil e tensa, de tal modo
lectual que não é possível exprimir se não procurarmos q_~ que a língua adquire o· mesmo caráter dramático que o entre-
os q1:1adro~ da_ rotina e criar imagens novas, novos torneios, cho. A narrativa se desenvolve a princípio em dois planos, al-
assÕciaçõesdiferêntes das comuns e mais fundamente sentidas. ternando a vida atual com a infância da protagonista. A sua
A descoberta do quotidiano é uma aventura sempre possível, e] existência presente, aliás, possui uma atualidade bastante es-
o seu milagre, uma-transfiguraçãoque abre caminho para mun~ tranha, a ponto de não sabermos se a narrativa se refere a algo
dos novos. As telefonistas de Proust, transformadas em divin- já passado ou em vias de acontecer. Todos esses processos,
dades fatais; o corvo de Poe; os objetos de Hoffman; o san- que sentimos conscientes e escolhidos, correspondem à atmos-
duíche de Harpo Marx - são outros tantos meios de protes- fera do livro, que parece dar menos importância às condições
tar contra o ramerrão, o hábito, a deformação profissional cau- de espaço e tempo do que a certos problemas-intemporais en-
sada pelos sentidos mecanizaCfos. Clarice Lispector aceita a carnados pelos personagens. O tempo cronológico perde a
provocação das coisas ã sua s€nsibilidade e procura criar um razão de ser, ante a intemporalidade da ação, que foge dele
mundo partindo das suas próprias emoções, da sua própria ca- num ritmo caprichoso de duração interior.
pacidade de interpretação. Para ela, como para outros, a meta Talvez devamos procurar no capítulo chamado "O banho"
é, evidentemente, buscar o sentido da vida, penetrar no misté- o melhor ponto de apoio para compreender Joana, personagem
rio que cerca o homem. Como os outros, ela nada consegue, central. Ali descobrimos que a menina é diferente: porque,
a não ser esse timbre que revela as obras de exceção e que é a ·-, a tia não sabe nem ela própria. O que se sabe ê7ustamente o que
melhor marca do espírito sobre a resistência das coisas. ~
1,
ela diz à tia: "Eu posso tudo". Diante de Joana não há bar•
Antigamente, chamavam-se de análise os romances mais reiras nem impecílhos que a façam desviar do seu destino; este,
ou menos psicológicos, que procuravam estudar as paixões - quase uma missão, consiste em procurar acercar-se cada vez
as famosas paixões da literatura clássica, - dissecando os es- mais do "selvagem coração da vida". O coração selvagem pode
tados de alma e procurando revelar o mecanismo do espírito. ser um céu e pode ser um inferno. Como nunca o atingimos,
Hoje o nome convém a um número bem menor de obras. Os é sempre um inferno especial, onde o suplício máximo fosse o
romances são mais universalistas, e as delimitações que os cla's- de Tântalo; e com efeito este romance é uma variação
sificavam perderam mmto como sentido e como jurisdição. Aos sobre o suplício de Tântalo. Joana passeia pela vida e sofre,
livros que procuram esclarecer mais a essência do que a exis- sempre obsecada por ãlgoque não atinge. Move-se perenemen-
tência, mais o ser do que o estar, com um tempo mais acen- te entre aquelas "formas vãs e as aparências",de que o poeta
tuadamente psicológico, talvez seja melhor chamar romances julgou se ter libertado; e, como ele, apenas entrevê a zona má-
gica onde tudo se transmuda e a convenção dos sentidos· cede
128
129
outros vivem mais do que ela, porque são_capazes de_ se :s•
quecerem. Na sua consciência aguçada existe uma frieza m·
lugar à visão essencial da vida. "Eu posso tudo". A pol:lre
compatível com o fluxo normal da existência, e é por is:". q~e
Joana nada pode, como todos nós. Mas possui uma virtude
que nem a todos é dada: recusar violentamente a lição das apa- ela cede o marido tão facilmente e reconhece a ~tl_l:~1:::'~
maior da mulher-da-voz e de Lídia. Vitalmente, e uma fraca.
rências e lutar por um estado inefável, onde a suprema felici-
~ à sua frente se abrem as campinas que os outros não vêem;
dade é o supremo poder, porque no coração selvagem da vida abre-se uma noção de plenitude pela auto-realização, que
pode-se tudo o que se quer, quando se sabe querer.
vai lhe permitir (quando?) a vitalidade ~efinitiva de um cava-
Em pequena, Joana recusava admitir que as galinhas fos- lo novo, perto do coração selvagem da vida.
sem somente o que lhe diziam que elas eram, e que ela pró-
Deste estofo são feitas as grandes obras. O livro de Cla-
pria via que eram. Como todos os de sua estirpe, - insatis-
feitos e obstinados aventureiros dentro do próprio eu - Joa- rice Lispector certarilente não o é, mas poucos como ele têm,
ultimamente, permitido respirar numa atmosfera que se apro•
na reputava bem desprezíveis os argumentos dos sentidos, aos
xima da grandeza. E isto, em boa parte, porque_a sua a:uto-
quais sobre)1!!!lhaa visão mágica da existência. O seu drama
ra soube criar o estilo conveniente para o que :mha .ª d1z:_r •
é o dei Tântalo/ sempr_e_pensand_o
__tgcar o _alvo e sentindo-o sem- Soube transformar em valores as palavras nas quais mmtos nao
pre fugitivo. Com- a diferença que para Tântalo isso era con-
vêm mais do que sons ou sinais. ~ int~nsid_adecom ~ue sabe
dição de desespero, enquanto que para ela nisto residia a pró- escrever e a rara capacidade da vida mtenor poderao fazer
pria razão de ser da vida e, portanto, a sua glória, a sua esplên- dest,a jovem escritora um dos valores mais sólidos ~' s~bretudo,
dida unicidade. única. Joana pode ser considerada uma pessoa mais originais da nossa literatura, porque esta pr1me1ra expe•
má no sentido em que segue a 1tica_da unicidade, "Eu posso riência já é uma nobre realização.
tudo." Tudo para ela é possíve desde que signifique a reali-
dade do seu eu. Os outros nada valem e não importam. Im- (1943)
porta o seu corpo, que ela mira amorosamente na banheira;
a sua alma, que ela sente latejar no escuro do mundo. Em
torno dela, o silêncio, porque ela é a única e, portanto, só.
Acima dela, o coração selvagem da vida, do qual apenas se
aproximam os solitários, que encontram a suprema felicidade
no supremo antagonismo com o mundo.
Mas, como a vida, o romance de Clarice Lispector é um
romance de relação. Ê impossível a glória apenas entrevista
do isolamento, porque a ela só têm acesso os anormais, que
são os desadaptados por excelência. Portanto, Joana vive em
contacto com os seus semelhantes, e antes de mais ninguém
com o seu marido. De certo ponto em diante o livro deixa
de ser o casulo da protagonista para entrar por outros desti•
nos a dentro. O seu esplêndido isolamento, a sua força d..::
exceção, que aterroriza a tia, se vê obrigada a medir forças com
a vida e sofrer as limitações que esta impõe. Joana perde algo
da supremacia. que nela vimos, mas a sua unicidade ,a leva a
despojar-se de todos os que nela interferem para buscar de novo
a solidão. Uma constatação se impõe e ela a sente fatal: os
131
130
7

JAGUNÇOS MINEIROS
DE CLÁUDIO A GUIMARÃES ROSA

"Minas Gerais de assombros e anedotas . .. "


Mário de Andrade
A violência habitual como forma de comportamento ou
meio de vida, ocorre no Bra~·1 rave e diversos ..tjpossociais,
.de que o mais conhecido é o cangacei da região nordestma,
devido a circunstâncias já a o tadas ste curso. Mas o va-
lentão armado, atuando isoladamente ou em bando, é fenômeno
geral em todas as áreas onde a pressão da lei não se faz sentir,
e onde a ordem privada desempenha funções que em princípio
caberiam ao poder público.
Como estas áreas são geralmente menos atingidas pela
influência imediata da civilização urbana, é natural que o regio-
nalismo literário, que as descreve, tenha abordado desde cedo
o jagunço e o bandido. Com efeito, o nosso regionalismo nas-
ceu ligado à descrição da tropelia, da violência' grupal e indi-
vidual, normais de certo modo nas sociedades rústicas do pas-
sado. Além disso, é preciso mencionar uma influência exter~
na: o prestígio do fora-da-lei na literatura romintfra, desde
Karl Moor, o famoso personagem do drama Os bandidos, de
Schiller, que se erigiu quase em arquétipo da imaginação.
N'As fatalidades de dois iovens (1856), de Teixeira e
Sousa, aparece um bando de salteadores dos quais emerge como
figurante decisivo um "bandido de alma nobre". O indio
Afonso ( 1873 ), de Bernardo Guimarães, é a hist6ria de um
matador e assaltante que aterroriza o sertão. N'O Cabeleira
( 1876), Franklin Távora romanceia a vida do famoso canga-
ceiro pernambucano conhecido por esta alcunha, enquanto em
dois outros romances narra episódios da Guerra dos Mascates,
feita por bandos de valentões e capangas. Se for verdade que
O forasteiro, de Joaquim Manuel de Macedo, publicado em
1855, estava pronto desde 1838, como alega o autor, seria
cronologicamente o primeiro romance brasileiro; e como é um
tecido de assaltos e tropelias, o gênero teria começado entre
n6s pela exploração literária da violência na zona rural.

13.5
Estamos, disse, em uns países novos,
Onde a polícia não tem ainda entrado,

. entendendo-se por "polícia", num sentido mais amplo que o


Dos Estados do Brasil, Minas Gerais é o mais diversifi-
de hoje, a presença das norm?s ,s?ci~)s e o polimen!o d~ civi-
cado, constituindo uma espécie de passagem, tanto entre ~forte lização. No "Fundamento h1stor1co , o P?eta havia d110 de
e Sul quanto entre Leste e Oeste. Na sua parte setentrional, . maneira mais incisiva: "Bem se pode considerar o estado em
a natureza e os tipos humanos confundem-se com os da Bahia que se achariam as Minas por todo este tempo, em que só o-
sertaneja; na parte meridional, equipara-se a São Paulo e ao despotismo e a liberdade dos facinorosos punham e revoga-
Rio de Janeiro; para o lado poente, faz corpo com a paisagem vam as leis a seu arbítrio".
social e física de Goiás. No meio dessas áreas centrífugas, a
região das minas manifesta o que ele tem de mais original e O poema canta a vitória da ordem pública sobre. este es-
se associou desde o início a um cunho urbano inexistente em tado de coisas, mas deixa ver que o movu:1ento se fazia, tanto
outras áreas do interior do Brasil antes do século XIX. do lado oficial, quanto do lado dos caudilhos rebeldes e __dos
francos desordeiros, por meio da ação dos valentões! frequen-
É natural, portanto, que essa variedade de regiões favo- temente formando bandos a serviço dos chefes locais, precur-
reça muitos tipos de banditismo e violência endêmica. Have- sores dos coronéis dos nossos dias. É o caso dos três irmãos
ria mesmo certas modalidades que se poderiam qualificar de pro- Pereiras, que se põem às ordens de Albuquerque, num trecho
priamente mineiras, como é o· caso dos contrabandistasde ouro onde vemos configurar-se o coronelismo e o sistema de ca-
e pedras preciosas do século XVIII, criando problemas gra- pangagem:
ves de repressão; ou, ainda, o dos salteadores do Caminho
das Minas, tornando perigosa esta via comercial que ligava o Aqui _dos três Pereiras o esperava
interior ao Rio, e contra os quais lutou com êxito o Alferes O nóbre ajuntamento e protestava
Joaquim José da Silva Xavier. Um livro de história escrito Cada um em seu nome, que faria
com relevo literário, as Memórias do distrito diamantino ( 1868), Cair por terra a infame rebeldia:
de Joaquim Felício dos Santos, narra casos de famosas Que de amigos, patricios e parentes
Tinha a seu mando prontas e obedientes
quadrilhas de burladores do fisco, mostrando tipos pitorescos Muitas esquadras, que traria ao lado.
de salteadores que deram o que fazer aos dragões e à justiça.
Nesse tempo do seu fastígio, Minas Gerais foi uma área Depois desta visão do século XVIII por um autor que
de violência e fraude, a partir da anomia _dos primeiros anos nele viveu, ainda próximo do turbulento período descrito, en-
do século XVIII, disciplinada pouco a • pouco pela ordem contramos em Bernardo Guimarães uma visão retrospectiva de
pública. Esta circunstância _aparecêna literatura desde aque- homem da século XIX, nos romances históricos Maurfcio ou
le período, como se pc,de ver no Vila Rica, de Cláu1io Manuel Os paulistas em São João d'E/-Rei ( 1877) e O bandido do
da Costa, terminado provavelmente em 1773, que e no fundo Rio das Mortes ( 1904), sua continuação, publicada postuma-
a primeira descrição dos bandos de jagunços e seus conflitos, mente. Aí não temos jaguncismo propriamente dito, mas ban-
às ordens de mandões tão poderosos quanto Manuel Nunes dos de antecipados patriotas contra portugueses; e, por estra-
Viana, que, no final do poema, presta obediência ao Governa- nho que pareça, nenhuma figura típica de bandido, p_oisa de-
dor Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho. Este, a signação do segundo romance se aplica ao protagomsta fora-
certa altura, assim descreve o revolto far-west que lhe deram gido, Maurício, que, perseguido e derrotado pelos emboabas,
para organizar: mete-se no mato com seus fiéis, configurando-se çomo o fora-
-da-lei tão caro ao Romantismo. Mas em toda a narrativa

136 137
nem predisposição e, a seguir, cumpre pena .ou se põe à mar-
surge a organização da violência e .o recrutamento dos marg:i-
gem da sociedade. Neste sentido, são margimis em potência
nais ( índios avulsos, escravos foragidos), assim como o meca-
nismo do choque entre as facções. ó pobre mascate Xixi Piriá, do romance Vila dos Confins, ~e
Mário Palmério, ou o passante anônimo de um conto das His-
Os livros de Bernardo se passam pela altura do •anp tórias do carimbamba de Amadeu de Queirós. Ambos, parando
de 1706 e seguintes; o poema de Cláudio, em 1710-1711. Um numa venda para de;cansar, encontram o destino sob a forma
autor dos nossos dias, Eduardo Frieira, escreveu um roman- de valentões que os querem obrigar a beber cachaça, e que são
ce bastante vivo, O mameluco Boaventura (1929), que se levados a matar.
passa em 1720, no qual podemos ler a reconstituição de c~rtos
tipos de mandonismo e jaguncismo, como no trecho segumte: O índio Afonso, no romance de igual nome, de Bernardo
Guimarães, mata para vingar a honra da irmã e, de trabalha-
"Dez ou doze cavaleiros armados vinham a largo trote dor honrado que era, torna-se bandido perverso, que o roman-
pela estrada do Ribeirão do Carmo / ... / À frente da caval- cista justifica pelas condições do meio. Num conto de Afonso
gada marchava Fernão Boaventura, jovem e rico m~stiço.. Mon- Atinas, "Pedro Barqueiro" ( 1895 ), o salteador deste nome
tava belo torclilho, ajaezado com sela de marroqmm, xa1rel de é um escravo fugido e age só, ao mesmo tempo que "outros
pele de onça e bolsão de veludo verde bordado a retroz. Tra- terríveis bandidos que infestaram as regiões banhadas pelos
zia nos coldres sendas pistolas aparelhadas de prata. Um ca-
rios Urucuia, Sono e Prêto", como lemos noutro conto de vio-
boclão de figura adusta e terrível vinha cavalgando ao seu lado.
Os restantes eram negros e cabras espingardeiros." lência e morte pelo crime, "A esteireira" ( 1894). Lamente-
-se, de passagem, que o drama do escravo foragido ainda não
Mas se este fazendeiro autoritário se impõe com o seu tenha inspirado produções ficcionais à sua altura. Pouco há
bando de capangas doutro lado há um representante da lei, que mencionar além de obra tão secundária q\Janto ·"Uma his-
o Alferes de Dragões, que utilizava para seus desígnios pes- tória de quilombolas", novela de Bernardo Guimarães, incluí-
soais os comandados, como se fossem valentões a soldo; reci- da nas Lendas e romances (1871). São aventuras rocambo.
procamente, o próprio Governador Conde de Ass~~ar manda lescas pondo em cena um quilombo cujos integrantes assal-
equipar quinhentos homens como tropa de auxiliares, para
tam .; roubam para seu sustento, e onde podemos ver o jogo
combater o levante de Pitangui. Assim, entrevemos que no
da autoridade de um zambi, o chefe.
mundo da violência então como agora, há pouca variação de
método entre transg'ressorese defensores da lei. E mais: que Em "Pedro Barqueiro", ocorre ao lado do bandido indi-
o indivíduo de prestígio, armado e acolitado, pode representar vidual a violência exercida pelo guarda-costas, que é a forma
uma forma primária de controle, adaptada às regiões sem peia branda do jaguncismo, como decorrência da organização .de
e às épocas de formação. poder dos fazendeiros. "Meu patrão era avalentoado, temido "
Perguntemos agora de que maneira surgem os tipos de e tinha sempre em casa uns vinte capangas, rapaziada de ponta
transgressores, tanto o bandido ( salteador e assassino), quan- de dedo". O mandonismo transforma às vezes o empregado
to o jagunço, que pode ser mandatário isolado de crime,~ ,,e fiel em jagunço, utilizado para as lutas políticas, as querelas
violências, ou o capanga, o guarda-costa, que serve um re- de interesse econômico ou as formas sertanejas de policiamento,
gulo" ( como se dizia), integrando o seu bando de ~sseclas. como acontece neste conto, onde o fazendeiro, menosprezando
Outras obras permitirão ver alguma coisa do problema, Já agora o valentia do Barqueiro, manda para prendê-lo dois rapaz_es,
no século XIX e no nosso. que de fato o subjugam à traição: "Para o Pedro Barqueiro
bastam estes meninos! /disse/ apontando-me e ao Pascoal
De um motivo mínimo, na sua futilidade inesperada, pode com o indica4or; não preciso bulir com os meus peitos-largos",
surgir o criminoso e, daí, o profissional do crime. Um dos mais - isto é, os capangas mais qualificados da sua guarda.
típicos é a briga ocasional, em que alguém mata sem vontade
139
138
Tiveram papel importante nos conflitos c1v1s do tempo vada que faz as vezes de ordem pública. De qualquer forma,
do Império e nas lutas de facções locais do tempo da Repúbli- não se consideram jagunços os ladrões de gado, os contraban-
ca Velha todas essas modalidades de violentos, desde o bandi- distas, os bandidos independentes. Embora haja flutuação do
do propriamente dito até o camarada obediente. Noutro conto termo a idéia de jaguncismo está ligada à idéia de ptéstação
de Afonso Arinos, "Joaquim Mironga» ( 1895), o vaqueiro de se:viço, de mandante e mandatário, sendo típica nas situa-
devotado se torna automaticamente guarda-costas armado, ções de luta política, disputa de familias ou grupos.
pronto para combater,· o que foi o caso em -.momentos como É preciso ainda dizer que banditismo sempre exerceu bas-
as "guerras bravas da era de quarenta e dois", - a revolu- tante atrativo sobre a sensibilidade popular, o que explica não
ção liberal de Minas, durante a qual Mironga, empregado de apenas o seu papel como fonte inspiradol'ade causas e modas
um chimango, afronta um bando de caramurus, que, não obs- de viola, mas a relativa abundância da sub-literatura a respeito.
tante representarem a legalidade, são por ele qualificados de Assinalo como amostra, tomada à zona onde· fui criado,
jagunços. Todos sabem que algumas lutas civis chegaram a folhetos do tipo de Crimes e criminosos de minha terrra ( 1900),
destacar em primeiro 'plano os criminosos que bandeavam de de Domício Sertanejo (pseudônimo), ou a série impressa
um lado ou de outro, como se deu na Balaiada, no Maranbão. em São Sebastião do Paraíso, Os contratadores da morte
Lembremos agora o romance de estréia de um autor que ( 1916-17), do jornalista e romancista Antônio Celestino, que
depois ficou famoso noutros rumos: Maleita ( 1934 ), de Lúcio combinou realidade e fantasia para dar um cunho ficcional a
Cardoso. Livro, júvenil e mal feito, interessa pela força pito- acontecimentos que impressionaramos contemporâneos.
resca das situações, inspiradas em casos narrados na família,
pois sabemos que o pai do autor foi um dos pioneiros da cida- *
de de Pitapora, na margem do São Francisco, cenário do ro- * *
mance. O narrador é mandado em 1893 ao que era então um
pequeno aglomerado de casebres, para instalar um porto co- Feito este prólogo, entremos no estudo de dois escritores
mercial. Enquanto a vila se constitui sob o seu impulso, assis- recentes de valor bastante desigual, que deram ao tema do
timos à passagem da mais compieta falta. de normas a uma or- jaguncismo mineiro um realce que nunca possuíra: João Gui-
dem relativa, estabelecida por meio da violência. O crime marães Rosa e Mário Palmério.
oriundo da pura anomia, o uso do tronco e do chicote, a to- Antes, indiquemos um livro pouco conhecido, que ajuda
caia, a resistência dos primitivos ocupantes do lugar - for- a compreender certos aspectos do segundo autor e, de modo
mam a trama do quotidiano. Mas quando se consegue configu- geral; a situação do jagunço no interior de Minas, nos fins do
rar a vila, com autoridades e instituições, o coronel da redon- s·éculo XIX e primeiros anos deste: Guapé, Reminiscências
deza intervém com seus Jagunços e força a saída do. narrador. ( 1933), de Passos Maia, que foi médico em quatro cidades da
Percebemos então que a ordem que vai suceder à anomia pri- zona Sudoeste daquele Estado, e depois político e senador.
mordial se baseará no jaguncismo dos mandões; e o romance Lá, vemos eleições feitas com ameaça de bandos rivais, o con-
traçou um quadro largo das mais diversas formas de violência trato de jagunços pata tais fins, a constituição rápida de ban-
por assim dizer constitucional. dos armados pelos motivos mais diversos, a incidência do ban-
Dessas narrativas ( que revistamos pouco literariamente ditismo propriamente dito, os meios brutais que se usavam
com ânimo documentário), depreendemos que o nome de ja- para liquidar ladrões e assassinos. Um dos casos que narra é
gunço pode ser dado tanto ao valentão assalariado e ao cama- exemplar pela variedade de aspectos da violência, desde o as-
rada em armas, quanto ao próprio mandante que os utiliza pata salto para roubar até a solidariedade que, em reação,· se orga-
fins de transgressão consciente, ou para impor a ordem pri- niza para a .defesa e a repressão.

140 141
Deu-se o caso que um velho fazendeiro de Santa Rita de
C~ssia, leitor assíduo da história do Imperador Carlos Ma~no, estimadíssima na cidade, que por acaso acompanharaseu amigo
fo1 assaltado em s_uafa,~enda por quatro ladrões e, ferido •por Manuel Medeiros, muito benquisto também naquele meio. O
eles, começou a gritar: - Valha-me meu Roldão!· Valha-me alferes retirou-se, incontinenti, para Cássia; onde extrai balas do
meu Oliveiras! A mim, meus pare's de França!" Os assai~ pescoço e do joelho de dois soldados seus, feridos nessa ocasião.
tantes fugiram depois do saque e a vítima pôde mandar aviso Na mesma noite, porém, ele voltou com toda a temeridade e,
à cidade. -:1correramo seu genro, acompanhado por um amigo, tocando um clarim no alto da Penha, afugentou os que ainda que-
o Dr. Maia e seu empregado,. o delegado e o único sol- riam reagir. Serenados os ânimos, a cidade entrou numa fase de
dado do destacamento, - mostrando a total insuficiência dos franca ordem".
. meios legais. Por isso mesmo, a pequena comitiva recebeu no Aí está, para quem leu o romance, o arcabouço da cena
cami?ho o reforço de um fazendeiro pacífico e brando, mas que culminante: o massacre dos chefes políticos de Santana. do Bo-
reunm os camaradas para a emergência, - e aí vemos como queirão, no edifício do Forum, pelo truculento delegado mi-
a ordem privada se p,reparapara usar a violência contra a vio- litar capitão Eucaristo Rosa, - desfecho de uma atmosfera
lência. de expectativa e tensão muito bem preparada.
Chapadão do Bugre começa pela história de um destino indi- •
Acudido e salvo a ferido, reuniram-se imediatamente às vidual para se alargar pouco a pouco, em decorrência das vicis-
ordens do delegado cento e tantos homens armados, vindos das
situdes que o envolvem e que se enquadram num panorama
fazendas; mas não conseguiram encontrar os ladrões. Em con-
bem traçado do coronelismo mineiro sob as suas formas mais
seqüência, o genro manda numa expedição punitiva jagunços
drásticas, - as que suscitam, organizam e disciplinam o crime
trei~ados, q~e mataram dois dali a pouco e o terceiro logo a como instrumento de dominação política. No desenvolvimento
seguir. Mais tarde, um dos jagunços, o famoso Paulistinha,
do entedo, surgem diversos fatores do jagunci~mo, pois o pre-
matou o quarto assaltante no Paraguai, com dezessete facadas.
texto de tudo é o dentista prático José de Arimatéia, homem
Estava cumprido o ritual da justiça sertaneja sob a forma de
pacato que, traído pela noiva com o filho do patrão e protetor,
vingança privada. A sua expressão simbólica foram as orelhas mata-o, foge e se torna jagunço eficiente do coroneIAmericão
dos quatro bandido~, que os jagunços iam trazendo como p·ro- Barbosa.
va da tarefa cumprida e o Dr. Maia pôde ver num vidro azul.
Por causa de José de Arimatéia é morto um velho fazen-
Neste mesmo livro, encontramos referência a um aconte- deiro que o criara, os capangas do coronel se espalham por
cimento de larga repercussão no Sudoeste de Minas que se as toda a parte, os crimes puxam os crimes; e é afinal também
aparências não enganam, Mário Palmério aproveitad com~ fato por causa dele, agente de uma derradeira e sangrenta missão
central do seu romance Chapadão do Bugre (1966). Eis as de extermínio, que o delegado militar resolve, depois de algu-
palavras de Passos Maia: mas violências prévias, a violência final da matança, a macha-
"Passos era então /1912/ uma cidade completamente tran- dinha e tiro, dos mandões que o empregavam.
qüila e ordeira, sem que o vírus da jagunçada lhe envenenasse Mas apesar desta moldura individual, deste caso de "amor
as fontes de vida. Uns dois anos antes. da minha ida para lá e sangue" gerando a ferocidade, para o leitor interessado no
o alferes Isidoro de Lima, sob pretexto de um inquérito, atrai~ jaguncismo importa sobretudo o panorama social de Santana
ao Forum o coronel Manuel Lemos de Medeiros, presidente do Boqueirão, - nome que deve cobrir uma espécie de síntese
da Câmara, o coletor municipal José Miranda, o dentista An- ficcional de diversas localidades do Sudoeste de Minas e do
tenor e vários homens de destaque na política local. No con- Triângulo Mineiro. Aqui, o autor faz a descrição pitoresca
flito do alferes com eles, foram mortos os três nomeados aci- e algo caricatural dos costumes sertanejos, mormente a política
ma, escapando milagrosamente o coronel Jorge Davis, pessoa de campanário, que já tratara com bastante graça no romance
anterior, Vila dos Confins.
142
143
A parte mais interessante de Chapadão do Bugre mostra tana do Boqueirão, o destacamento é enviado e o comandante
de que maneira se instala e procura eternizar-se a ordem social tem •poderes plenos, que anulam os das demais autoridades
torcida dos coronéis de Santana e vilas vizinhas, tendo por estaduais e municipais, porque a •Situação local andara ligada
b_asea imposição do arbítrio e por instrumento o que se pode- a um político oposto ao governante do momento:
r1a chamar exploração do trabalho criminoso do jagunço in- "Havia principiado a má sorte no momento em que se em-
dividual. possara no Governo do Estado o Dr. Figueiredo de Mendonça.
Trata-se da ordem a princípio necessária na fase de des- O homem nem bem esquentara lugar, já dava início à vingança
b_:ava1:1e~to,pois assegura através. das instân~ias privadas, que contra os amigos do Dr. Ataulfo Machado - os que
sao prme1palmente os grupos familiares e suas clientelas um fun- se tiriham oposto, na Convenção do Partido, à aprovação· do
~i~namento sucedâneo de instituições que o poder púbÍico ainda nome do Dr. Figueiredo como candidato ao Governo".
e 1~c~pazde assegurar. A seguir, esta ordem se torna apenas Em face da situação assim configurada, o romancista des-
arb1tr10,mantendo o 'parasitismodos grupos dominantes e im• creve duas reações sintomáticas. A primeira é a do velho co-
pedindo o progresso. A violência se organiza de tal modo, que ronel Americão, imbuído da idéia que o mandonismo hereditá-
o conselheiro do chefe político coronel Americão Barbosa o rio de sua família construíra Santana e lhe dera prosperidade,
engenhoso guarda-livros Clodulfo de Oliveira, tem a idéia' de sendo, assim, útil e legítimo. Em conseqüência, o ato do Go-
arregimentar os jagunços num verdadeiro sindicato do crime verno, mandando tropa especial e exercendo fiscalização sobre
( que já fôra literariamente explorado n'Os contratadores da o jogo, a prostituição, a empreita de crimes ( fontes de renda
morte, de Antôni~ Celestino, referido mais alto), fornecen- dos mandões locais), é uma forma de ingratidão, que só po-
do matadores aos interessados em toda a redondeza, mediante deria ter como resultado a mudança das alavancas para as mãos
pagamento. É o que confessa ao capitão Eucaristo, depois de dos adversários. Ele tem a idéia mais ou menos definida de
atemorizado, espancado e quase mergulhado de cabeça para que a sua é a única ordem viável, com a consc-iênciatranqüila
baixo numa barrica de excrementos. Neste passo, vemos a dos velhos mandões, para os quais "em política só há um cri-
identificação dos cabos eleitorais aos jagunços, que funcionam me: perder eleições" ( frase verídica de um coronel de zona
desde as formas mais atenuadas da persuasão até o assassínio. próxima ao Chapadão do Bugre).
(Vejam-se as curiosas páginas 195-197.) A segunda reação é a do oficial Eucaristo Rosa, que, pos-
. No livro Guapê, Passos Maia conta que não apenas se fa. suído pelo sentido quase esportivo do caçador, cuja finalidade
z1am as eleições com base em intimidações, para as quais eram é a destruição da caça, termina elevando a sua brutalidade ao
usados fací;1oras ou meros correligionários avalentoados,. mas nível dos princípios e nutrindo uma espécie de revolta de ho-
q_uese podia alugar gente especializada para tais ocasiões. As- mem justo contra os burladores da lei. No seu espírito bronco,
sim, a propósito das lutas políticas em Dores da Boa Espe- trata-se de mostrar quem pode mais: mas como a justificativa
rança, pela _altura de 1901 ou 1902, fala das tropelias de "um dos seus atos é a infração do adversário, ele mistura selvageria
troço de Jagunços, contratados em Passos para a eleição". e senso de justiça, com um fervor que o poderá levar a deso-
Diante desse estado de coisas, Chapadão do Bugre faz bedecer aos superiores civis. Ao agir deste modo, quem sabe
ver como o poder central do Estado, dependente dos coronéis • adota a únic8cforma possível de opor a ordem pública à ordem
graças ao mecanismo do voto localmente acaudilhado exerc~ privada, na dialética espúria da vida sertaneja. Não esqueça-
uma ação, antes de usufruto político do que de rest;ição do mos: Passos Maia diz que depois do massacre do Forum a ci-
coronelismo. As restrições que há são meras perseguições a dade de Passos entrou em fase de tranqüilidade e progresso ...
um _grupo incômodo ou adverso, em benefício de outro, que Em Chapadão do Bugre há muita prolixidade inútil e certo
deseia o seu lugar para agir do mesmo modo. No caso de San- exibicionismo de estilo, que prejudicam sobremodo a primeira

144 145
parte, Mas quando entra na segunda e passa de José de Ari- para o símbolo e o mistério, apesar da sua rigorosa pre-
matéia para a cidade de Santana, a narrativa corre bem mais cisão, •o jagunço oscila entre o cavaleiro e o bandido, tudo
segura. E se há defeitos de composição, na estrutura geral se unindo no fecho de abóbada que é a mulher-homem Dia-
a criação de Mário Palmério é boa, repousando num método dorim, cujo nome se forma ele próprio por um deslizamento
de contraponto evidenciado pela própria alternância dos ca-· imperceptível e reversível entre masculino e feminino, justi-
pítulos temporalmente afastados, que se unem · ao desfecho.
ficado pelos hábitos fonéticos do homem rural: Deodoro i> Dia-
Este contraponto envolve trê_sordens de realidade. De dora ·,= Diadorinho a= Diadorim a= Diadorinha ,= ( Deodo-
um lado, o jagunço individual, com· o seu destino e as suas rina) a= Diadora. ,= Deodora.
motivações, que o levam a transformar-seem peça do meca-
nismo dos coronéis, como é o caso de José de Arímatéia, em Para compreender esse jagunço fluido e ambíguo, come-
cuja psicologia somos convidados a penetrar. De outro lado cemos pelo plano elementar, que o prende ao universo das re-
,.
os corone1s, com o. seu destino grupal, o prestígio e· a pros-' lações correntes. Como se forma ele no sertão? As causas são
peridade de suas famílias, levando ao comportamento político, diversas e vêm arroladas num trecho magnífico:
à formação das clientelas, ao parasitismo em relação ao Esta- "Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para
do. Entre ambos, a força pública, que corta o fio dos destinos o concertar consertado. Mas ·cada um ·só vê e entende as coi-
individuais e procu~a abalar o sólido féixe de interesses de gru- sas dum seu modo. Montante, o mais supro, mais sério -
po. Como critério para a ação de todos, o romancista põe foi Medeiro Vaz. Que um homem antigo ... Seu Joãozinho
em cena alguns atos de jaguncismo, que mostram ao leitor· a Bem-Bem, o mais bravo de todos, ninguém nunca pôde decifrar
-função do jagunço na sociedade rústica, desde as motivações como ele por dentro consistia. J oca Ramiro - grande homem
psicológicas até a inserção na vida coletiva.
príncipe! - era político. Zé-Bebelo quis se_r político, mas
Assim, temos em Chapadão do Bugre uma visão realista teve . e não teve sorte: raposa que demorou. Sô Candelário
e pitoresca do jaguncismo, integrado. em seu contexto social e se _endiabrou, por pensar que estava com doença má. Titão
·em seus aspectos pessoais, com a descrição completa da for- Passos era o pelo preço de amigos: só por via deles, de suas
mação, atuação e sentido da ação individual .do jagunço, no mesmas amizades, foi que tão alto se ajagunçou. Antônio Dó
quadro dos interesses do mandonismo. E com isto deixamos - severo bandido. Mas por metade; grande maior metade
para trás o aspecto documeritário, que nos vem norteando,. que seja. Andalécio, no fundo um homem-de-bem, estouvado,
porque vamos agora entrar nou1ro. mundo. raivoso em sua toda justiça. RicardãD", mesmo, queria era ser
rico em paz: para isso guerreava. Só o Hermógenes foi que
* nasceu formado tigre, e assassim".
* * No tipo especial de mundo, que é o sertão, cada um tem
os seus motivos e ninguém nasce bandido, salvo o traidor Her-
De fato, em Grande sertão:· veredas •ocorre algo diame~ mógenes, - grincjllÍ!l...,!legati.v.o_do_wJ!l.,_gn.q_11do-se
ao ªDÍP
·tralmente oposto. Não se trata de livro realista nem pitores• Diadorim, até uma luta onde :ambos se desttoem,-par:a-:Eicar...
co, _emborapitoresco e realismo nele ·se encontrem a cada pas- na . ãlma d_o_p_J:.QtagQQista-narradornem o mal nem,_ _o_h_eni.,
·so; mas de um livro carregado de valores simbólicos, ~;,_:_(ês maS•o seu ~-e.ido inextricáv~Casos superiores são homens
dados da realidade hs1ca e sm:ili) constituem..ponto_de._Qartida. éomo Joca Ramiro, rico e político, ou Medeiros Vaz, fazendeiro
Esta circunstância parece decorrer do princípio que rege a sua de família antiga que, ante a desordem e a brutalidade
e~t~~tura e que, nou~o ensaio, ~enominei princípio de rever-J >,,/_ do sertão, queimou sua casa, espalhou as cinzas e, "relimpo
s1b1hdade. Em funçao dele, assim como. a geograha desliza -\/' de tudo, escorrido dono .de si, montou em ginete, com cachos
146 No0 "~ U'->i,.ek- 147

/
1~
('
""-t..<0
1
J_.. k..<,,.._._"' ,V-.. ;t;:J\ ...(~ ~/¼.. '-< o
u·<j; ,-'\.
~'-¼' H,,.__.
~ ~ \~,
<9 '' ~'r", ~ ~ ~,
..(... e{,_ ~vv
/r-j"-"~
e,,, u·"'- d,_, 4 ~
.._1
1
d'armas. reuniu chusma de gente corajada, rapaziagem dps riasa do Sucruiú, sabe manipular de tal maneira o bando de "-o"-".
campos, e saiu por esse mundo em roda, para impor justiça". Zé-Bebelo, que este, a certo momento, vai deixando os assun- 1- -1
Quer dizer que, naqueíe sertão, o jaguncismo pode ser uITla tos épicos de assaltos, cidades tomadas, feitos de armas, para ~e~"-'> ~
~arma de estabelecer e fazer observar normas, o que torna o se acomodar nas conversas sobre agriculturae pecuária. E sêa
Rabão, longe de se intimidar com o bando, parece ir formando t,(,"-,.<Jl,
f .
Jagunço um tipo especial de homem violento e, por um lado
o afasta do bandido. ' a tenção de-reduzir todos os seus componentes a trabalhadores e¼ h_r
Por isso é que, sendo as condutas tão relativas e o mun- de enxada, encangados para cavar a sua terra e plantar '¼
do tão cheio de _reversibilidade, não há barreiras marcando a o seu feijão. "Eu, disse - me digo: que um homem assim ,{A. I\J.Q. _
separação. Q mesmo homem pode ser hoje soldado e amanhã sêo Habão, era para se querer longe da gente; ou, pois, então, r, 1
jagunço, ou o contrário, assim como o vérsádl-ZTiebelo co- logo se exigisse e deportasse. Do contrário, não tinha sin- ...._, ...--clt.,
"'~
meça Como saneador do Norte contra o jaguncismo, em nome cero jeito possível: porque ele era de raça tão persistente, iu\ ~"-"-<.
da lei e do governo; vira jagunço e continua não obstante -agin- no diverso da nossa, que somente a estância dele, em frente,
do como se estivesse na mesma tarefa patriótica; termina fa- já media, conferia e reprovava."
zendeiro de novo e planeja tornar-se homem da cidade, - tu- Outro fazendeiro esperto, o Zabudo, ~ Timóteo Regi-
do em função _de uma certa utopia política de modificação do mildiano da Silva - que tinha um "jeito estúrdio e ladino de
mundo sertane10. segundo o qual ele prosperaria quase ritual- olhar a gente", hospeda o bando, todo cheio de mesuras, mas
mente, ao mesmo tempo que a terra. Daí o curioso sincretis- leva sempre a melhor, engoda Riobaldo, e "por pouco não GQQ,___ tJ.
mo da sua linguagem e dos seus conceitos, logicamente contra- pediu dinheiro meu emprestado" ( diz este). Diante dessas ~ ""'-t
ditórios na própria composição da fr-ase: "Se eu alcançasse, fortalezas do lucro e da ordem, sentimos vagamente que ser ~1..--..,
entrava para a política, mas pedia ao grande Jaca Ramiro que jagunço é mais reto, quando mais não fosse porque o jagun- O. ~
encaminhasse seus brabos cabr-aspara votarem Cl?J. mim, para ço vive no perigo. Tanto -assim,que se há fazendeiros que ex- r"'" .,J
deputado / ... /" "/ ... / v6s nossos jagunços do Norte são
civilizados de calibre / ... /"
ploram para seus fins o jaguncismo, há pelo menos um, o IA.-. '°........ ~ 'f

~
severo Medeiro Vaz, que assume papel mais digno, ao queimar
O jagunço é, portanto, aquele que, no sertão, adota uma simbolicamente o que o prendia na terra e adotar a con- ol.__,,,,_._,
certa conduta de guerra e aventura compatível com o meio, <liçãode jagunço como forma de viver, como modo de conce- ct,,,, ,
embora se revista de atributos contrários a isto; mas não é ber a vida perigosa que pode ser uma busca dos valores, do .•"'!1 '"-1 -
necessariamente pior do que os outros, que adotam condutas bem e do mal no sertão. C"" •
de paz, atuam teoricamente por meios legais como o voto, e
se opõem à barbárie enquanto civilizados. Ao contrário, pare- Daí sermos levados a dizer que há em Guimarães Rosa
ce freqüentemente que o .risco e a disciplina dão ao jagunço um "ser jagunço" como forma de existência, como reali~ação
uma espécie de dignidade não encontrada em fazendeiros "es- ~gJg_no ,munf\o,.do__~~ggo. Sem E!;:eJmzoêfoS<lemais as-
tadonhos", solertes aproveitadores da situação, que o empr"e:' pectos, inclusive os_ rigQtQ§~l)lente_,,,.d9-c11wS..PÊt10_s,_
este me pa-
gam para seus fins ou o exploram par-a maior luzimento da recelmportante como chave de interpretaç~o.---Ele· encarna·ãs
máquina econômica. formas mais plenas da contradiÇãono mundõ-sêrtão e não sig-
É interessante notar, a propósito, que quando ambos en- nifica necessariamentedeformação, pois este mundo, como vem
tram em contacto, o risco ( ao contrário do que seria normal) • descrito no livro, traz imanente no bojo, ou difusas na
é todo do jagunço, não do homem de ordem. Este constitui aparência, certas formas de comportamento que são baralhadas
uma ameaça à natureza do jagunço, um perigo de reduzi-lo a e parciais nos outros homens, mas que no jagunço são levadas
peça de engrenagem, destruindo a sua condição de aventura e a termo e se tornam coerentes. O jagun~o atualiza, dá vida a
liberdade. O estranho sêa Rabão, proprietário na zona miste-
flt-),( ~•~ HTz,,,1,·1-cz. -<A,A.\r, r,.Jvn ri-,___
,_ o
~
essas possibilidades atrofiadas do ser, porque o sertão assim
1.-,'.:), \'-'OZ.
c.,.1,-., u ~+e "-'-
148 ~<,,•o.l,• )"-fL'i149J_,_,
vv, ~ "1"0 <- o4._ L'v"\ ',;A-)~ : o ií'-~ "'- ~ Uh t>, ~) ,;lo w. ,.,,.....
J•c/\;,'.o l ~, 'vV~ "-,:,_:,
rf,.. ~~~.. 'óN-•,.rk"
IN
) c,... ""'--"~ ct......lt ..; 1
o ~-i-z:i;.,.- o/.wi,r-. i ,h, V,..~ ;_
~~.
~e. E o mesmo homem que e Jagunço, como vimos na ti- tor genial, dos poucos que agüentam esse qualificativo em
·pologia citada mais alto, seria outra coisa noutro mufldo. nossa lite:,atura, Guimarãe~ Rosa sa~~a e refina ? docnmen- ~ ,
"A paz no Céu ainda hoje em dia, para esse companheiro, Marce- JQ, que nao obstante conhece exaustivamente e cuia força su: ~ . .,,_
lino Pampa, que de certo dava para grande homem-de-bem, gestiva guarda intacta, por meio da sublimação estética. Por
caso se tivesse nascido em grande cidade". isso, não basta procurar nele em que medíC!a a ficção vale .,,,,,..lr,vo
Talvez por isso o escritor situe o seu jagunço, em Grande como \!ansposição dos .~s; mas também em que medida e,(.() t-'h:,
sertão: veredas, num tipo de espaço completamente diverso o comportamento ,do jagunço aearece como um_11!,<2,do de}xis- oi..~
do habitual em tais tipos de ficção. Aqui, não aparecem di- '7vf,N,.;;;, ai,. tência como forma de ser no munclo, enxarcando ~e_
retamente na ação, e .t?E~EE~S- referencias, os polític~~ ..-9.lJ.e ~ social de preocupações meta 1s1cas.
manob_ram_oJagunço, nem os soldados que o perseguem. Rio- ('-<>l..:"½.1' o,.\olo(r., • A este respeito, um teste fácil. Quantos de 'nós se re- /- ./.
1
6ãfc!o conta momêntos difíceis de choque com a força públi- ' conhecem no José de Arimatéia, de Mário Palmério, ou no fiel 1V-.IA.~
ca, faz referências a oficiais, - Capitão Alcides Amaral, Ca- ¾ ~ ·:~ "('-'"'¼vaqueiro Joaquim Mironga, de Afonso Arinos, - tipos acei- ( cJ.,...i;
pitão Melo Franco, Tenente Plínio, Tenente Rosalvo; mas o .t, táveis literariamente? Provavelmente, ninguém. No entanto, ,_
soldado nunca entra como presença numa determinada ação, todos nós somos Riobaldo, guwranscende o cunho particular} 4-'Al
não tem consistência de figurante concreto e existe quase co- do documento para encarnar os problemas comuns da nüs~a t)A,.,_i \
mo cenário. Do ..mesmo modo, aludeaos "grandes", os chefões lüímanida,de, num sertão que é também o nosso espaço de vida. lJ-<Au/,,

"da nossa amizade", os manipuladores de votos, dispensado- Se "o sertão é o mundo", como diz ele a certa altura do livro,
res de prebendas, donos de vastas propriedades, sem que eles não é menos certo gne a jagunço somos nós.
jamais apareçam diretamente: Sêo Sul de Oliveira, Doutor Mi-
rabé\ de Melo, o velho Nico Estácio. Também não aparecem *
as cidades, grandes ou _P.eguenªs, centroSctas hegemonias pol1- * *
tlcas, ponto C!eap010-Claação e repressão, a não ser por alusão As raízes do jagunço de Guimarães Rosa Ja ·se encontram
·r.emota e quase lendária: Paracatu, São Romão, Januária, em seu primeiro livro no conto "Hora e vez de Augusto Ma-
Pirapora, Montes Claros, Diamantina, São João do Príncipe. traga". Nele, começamos por uma. entrada mais ou menos
O. único arraial que comparece, o do Paredão, está vazio, aban- corriqueira no •jaguncismo literário. Há o valentão que age
donado pela população, pronto para servir de moldura ou ce- }.)elogosto ·de se impor, com os seus capangas,.e é o caso do
nário para o duelo culminante entre o Bem e o Mal. protagonista, Nhé\ Augusto das Pindaíbas, ou Estêves, ou Ma-
Suprimidas essas dimensões, que são normais no trata- traga; há o chefete local, com os capangas mais bem discipli-
mento do jaguncismo .em nossa ficção e constituem a própria nados, como o Major Consilva; há o grande bando de jagunços
substância de livros como Chapadão do Bugre, segundo vimos, com o seu chefe jagunço, seu Joãosinho Bem-Bem. Espancado,
~ta-o_sertão, trªº-~lormado_em_espaço~priv.ilegiado--e-único, torturado, marcado a ferro e deixado por morto, Nhé\ Au,
para.._qu_enç_le_.~~i~ta o jagunço. Aqui, ocorrem quase apenas gusto é salvo por. um casal de ve;lhos e, mais ou Jnenos sa_r~do,
jãgunçOs,agrúPàd9S ..em 'bãndç,S~nprmes vlverld◊-effiCOntãctô ruma ,com eles para o Norte, à 1;:mscade salvação da alma,
cõni'-<>.úirõ~_,jagunços,__ob.edece.ndo_a_chtle,s_jagunços,-lllo:-.= tomando uma decisão pitoresca e tocante: "Eu vou para o.
aO-se conforme ldfilLé..ticade jagunços, num mundo separado 1. céu, e vou mesmo, por bem ou por mãl. . . E a minha vez
do resto do mundQ_de~as as cidades e suas leis, de tal . há ~e chegar. . . Prá o céu eu . vou, nem que seja a por-
forma que, depois de emb,ikdos....iiã...lêitura,s6 )l.Q.LUl!l..l'.sl.01:ço rete! . .. "
d.".. reflexão p.odemo$_p.i,nsai:_._eJlL.-termos__hist6ricos ou so- No Norte, vive uma segunda vida, trabalhando como um
ciológicos, como até aqui tínhamos feito nestas aulas. Escri- burro, vivendo para ajudar os outros, limpando a alma pela
150 1.51
faina do corpo, como ·uma espec1e dé São Cristóvão da .roça. inir o jaguncismo, - como ocorrerá também em ·Grande sertão
Um dia, o famoso bando de Joãosinho Bem-Bem passa pelo com o comportamento de Riobaldo. Ser jagunço torna-se,
seu bairro e ele o hospeda, deslumbrado pelo aparato violento, além de uma condição normal no mundo-sertão ( onde "a
mas resistindo à tentação de seguir com de, segundo o convite vontade se. forma· mais forte que. poder do lugar"), uma opção
do chefe. Não será jagunço para não comprometer o plano de comportamento, definindo um certo modo de ser na-
de salvação. No entanto,. vem uma certa estação das águas; quele espaço. Daí a violência produzir resultados diferentes
com a força da terra, nasce de novo em Nhô- Augusto a força dos que esperamos na dimensão documentária e sociológica, -
da vida e ele vai embora, refazendo para o Sul o caminho de tornando-se, por exemplo, instrumento da redenção. "Prá o
fuga ao mundo, até encontrar de novo o bando, por acaso, céu eu vou, nem que seja a porrete!" - dizia Nhô Augusto
num povoado. O chefe, que o estima e percebe o ho_memde Matraga; ·e acabou indo a tiro e a faca, num paradoxo que o
briga que ali está, oferece de novo . um lugar entre os seus faz parecer triunfante, com o corpo furado de bala.
homens; agora, em ~ubstituição a um dos rapazes, q~e foi
morto e cujas armas, arrumadas num canto, tentam Nho Au-
gusto. Ele se domina e rejeita mais uma vez, quando tem
* *
notícia da vingança que vai ser exercida contra a família de
um velho, cujo filho matara o dito -jagunço. Como Joãosi-
nho Bem-Bem recusa atender as súplicas do pai, este, pas- Em Grande sertão: veredas fica mais claro este aspecto
sando bruscamente à fúria da maldição, invoca a intervenção do jaguncismo como modo.de-ser e_ reajuste da personalidade,
divina contra o poder do mal: '!...fun de~.OP.etar
...J,U1D..-plano_sup.eriar. De fato, a vrngança
"- Pois então, satanaz, eu chamo a força de Deus prá
contra o bando traidor de Hermógenes e Ricardão só pode
ajudar minha fraqueza no ferro da tua força maldita! ... " \~-~~.,_ld..,
', ser efetuada quando Riobaldo, novo chefe do bando que re-
presenta o lado justo das coisas no sertão, passa por um pro-
No silêncio que se faz, a voz de Nhô Augusto, que toma lo..,_ e_ cesso de mudanca da personªlidade, simbolizada no_p.ai;J;g_cmn
as armas do jagunço assassinado, entra em cena como respo'i- .o diabo, que completlULJ:iq.tteza_da-situação,-Ínstalanrla-otam-
ta à invocação do velho. E nós sentimos com ele a alegria que .,.,.JL bém no ter.@o do mal. Nessa perspectiva, os atos do
marca essas conjunções raríssimas, onde o exercício das velei- jagunço não são mais uma simples função, como é o caso do
dades mais egoístas se torna milagrosamente ato de redenção guarda-costas ou do sicário, que, nos livros revistados antes,
do egoísmo e dádiva de si mesmo. A oportunidade, a "hora e agem a mandado, com finalidade precisa que, ao ser atingida,
vez" de Nhô Augusto, consiste em lazer _o__bem~~- com isto_ esgota o significado do ato. Aqui, ao contrário, Guimarães
à'ssegurar a salvação da alma, por meiõ=aavíõlência destrui- Rosa parece ter querido mostrar que o ato decorre, antes de
dora, do ato de jagunço matador que ele reprimira duramente mais nada, de um .modo peculiar de ser e se torna uma cons---,
ãTuentao, com medo de perdê:la. O tiroteio e o cluelo-afãcii, trução da personalidade no mundo-sertão. Daí a universali- /
durante o uai mata Joãosinho Bem-Bem e é ar ele morto dade que assume; e daí, abalando por indução a personalidade
como em G sertao ermo enes e n·ad.Q,:i:im
}..,--fil!!g~ do leitor, tocar Profundamente a todos nós.
ao mo o de um prêmio de Deus. O pacto deixa ver de maneira mais clara o enxerto de um
Neste conto, vemos de que maneira pode emergir da si- jagunço simbólico no jggunço comu_l!l, e a sua função trans-
tuação comum de jaguncismo um sentido-voltado para o sím- formadora é nítida no· cuidado com que o autor baralha brus-
1,Q!Q.No momento em que se fez jagunço, Nhô Augusto sobe camente as condições normais do espaço. O bando, sob a
em vez de cair, pois está adotando uma forma justa de co~- chefia de Zé-Bebelo ( homem habitualmente eficaz e preciso),
portamento, cujo resultado fjnal é paradoxalmente.,-S.J.J.W:.1- se extravia na vastidão dos gerais e acaba por entrar numa
l 52 S,,..,bLi,-.,,_'f' rJ..... ~'t"-;1s~ ·""'- .t-,.,._e,,•v\,,J"'-~ 153
<.:h'-<-- ee,,, i,,,,.. e.. d,:, ,,__,__e.._ - v--1 "' ~ 4
., t.,,,aL.,_
0
z. {,,<--t,-A, e.,!) -
'r
~h.
e.,"' "' L,,.,_ \[> ,•..---1\
1

1 ~
•. I
~

s V-.~ ~ ,1-. \"" \"\.-.:_.,~'--'t--lc o ""' tr""


0
"{\ - _, ,, " ' " , \ 1 ,'
'dY "-'Y'--'r'U - .) - ~' .ll • '4 'v \ J l) • ,4_, "'~- \"\ "''",r,.c.,.,__
CI.M.•f 1.-...

Á. l.; \J"½., ~ ~>'"'-'.) '-';, v-. <:.- e,wt'A,, , i ...-,,h l .__ !'l,o ~--\d..,
,,,_, -<-ip--,-~•.,l,_ 'f;:._, ~e..,._ oi-, ir'-".:)"'-"'O-:,,,.,_. <- ~ '""--\X-""'~,
espécie de~espaço lendário, sem .marc_Q§_g~,.Qg!:áficos,
sem nomes ! desejo - significa a instalação de Riobak!o num destino de
certos, povoado por uma gente estranha que _parece saída ]agunq0-<J_m, ..,mpera o jagunçp. Isto se concretiza pela destrui-
d<;fundo dos tempos e, sobretudo, dominada pela doença, - • ção de Hermógenes, cuja natureza é a do jagunço que não se
m1asma· que exprime materialmente a contaminação da alma. abre para qualquer transcendência, pois encontra no jaguncis-
É aí, no coração dessa "terra gasta", que ocorre a cena equí- mo-profissão a realização integral do seu ser comprometido
voca do trato com o diabo, na encruzilhada das Veredas Mor- - com a prática do mal, que ele encarna no livro, não como mo-
tas que, em seguida, desaparece do mundo, acentuando o ca- @ento dialétiço ( aq modo de Riobaldo), mas como finalidade
ráter simb61ico daquelas paragens. Com efeito, procurando-as que traz em si a sua justificaüva. "Só o Hermógenes nasceu
mais tarde, depois de egresso ,do estado de jaguncismo, Riobaldo formado tigre, e assassim"._
fica sabendo que por ali havia Veredas Altas, não Veredas
Mortas, -
"'-r ¼ ,lo.(},.,., Se tomarmos Riobaldo como referênda à sua missão, en-
' tenderemos melhor, não apenas o seu êxito, facultado pelo
O segundo traço do jagunço como modq-de,set...é a alte- -e, 0 pacto, mas a sua passividade, depois deste. Encastelado no
ração do comportamento de Riobaldo depois do pacto, S6 \ -,,e,\,,u. novo modo-de-ser, dele emana uma espécie de força que pro-
então pôde realizar o seu alvo de vingador, mas de maneira o,.,,.
.. J vv' move a eficácia da ação, como se o ato fosse produzido por
estranha, PQis-não-age_dit.eJaro~p.te
1
uma misteriosa energia espiritual.
1 e só esboça atos não cum-
"'--"''-('"""'".

pridos, ordena sem fazer ele pr6prio e, atinai, apenas presencia. Depois do pacto, Riobaldo ( como Zé-Bebelo, quando se
O seu último gesto pessoal e· forte consistiu em arreba- encaminhava involuntariamente para as Veredas Mortas) dei,
tar a chefia do bando a Zé-Bebelo e matar dois reriitentes xa-se ir a uma espécie de peregrinação caprichosa pelo mun-
que se opunham. Daí por diante manifesta uma conduta que do, cujo único lance organizado, a travessia do Liso do Sussua:-
~ita entre a brutalidade. gratulta e a omISsâo final, embora, rão, apenas executa um plano de Diadorim, que abrangia tam•
no conJunto, a~egure-a-virórfaéfüftra os traidores. ·bém o assalto subseqüente à fazenda de Herm6genes, na
Isto talvez possa ser considerado como um sinal a mais . Bahia, onde raptam sua mulher. Isto . feito, Herm6genes e
do seu jaguncismo peculia Riobaldo seria um mstrumento i Ricardão, que pareciam sovertidos no espaço_.do se~tão, e que
1 •dois grandes chefes; -Medeiro Vaz e Zé-Bebelo, não consegui-
.! orças gu ranscendem, e na.da mais ·faz do- que ajustãr
o ser à craveira que permite realizar a. sua missão: fazer o ram sequer localizar, vêm eles pr6prios à busca do bando vin-
bem através do mal, nutrindo com as_ operações do 6êlío _um gador para:libertar a prisioneira; invertendo a situação da nar-
rativa, graças ao pacto, agora é o mundo . que vem a
ruiior desesperado e imenso. De fato, a sua conduta, inclusive
o ingresso no jaguncismo, é determinada pelos motivos de Riobaldo,
Diadorim, .não os· seus próprios. Diadorim,• andrógino e terrí- . Na batalha decisiva do Tamanduá-tão, este divide -e en-·
vel como os anjos, primeiro trouxe-o para o bando; depois, caminha seus homens para o combate, mas permanece parado
contaminou-o com o seu projeto de vingança. - E ele o assu- durante tod._4-aação, na linha de inatividade criadora que ado-
me com tal integridade, que o pr6prio Diadorim rejeita huma- tou. "Sertão é onde o pensamento da gente se forma mais
namente a mudança de ser trazida pelo pacto, de que .fora forte que o poder do lugar." O seu ficou tão poderoso, des-
a causa e a razão, mas que lhe mostra o outro lado do amigo. de a opção do trato satânico, que o mundo se ordena segundo
( "Daí, de repente, quem mandav~ em mim já eram os meus ele. "Conservei em punho- o meu revólver, mas cruzei os
avessos".) Riobaldo, de sua parte, observa com perfeita razão: braços. Fechei os olhos / ... / O que eu tinha, que era a
"Uai, Diadorim, pois você mesmo não , é, que • é o dono· minha parte, era isso: eu comandar / ... / S6 comandei o
da empreita?'' Diadorim, cuja estrutura de ambigüidades é mundo, que desmanchando todos estavam. Que comandar é
¼ifuilia.-é_pQJ:_sua-v.eZ-instrumento,-p0is-0-<õumpr,imento-de-seu s6 assim: ficar quieto e ter mais coragem." O tiro final, éom

155
154
que mata o vencido Ricardão, depois de acabada a luta, é : e se reforçam mutuamente. O narrador tinge a narrativa por
mero complemento dos atos que outros praticaram. uma constante redução ao presente, fazendo com que o passa-
No último lance, o combate no arraial do Paredão nem , do seja aferido mcessantemente a cor da sua angústia de ago·
ra, isto -é, do momento rápido em que recompõe a vida,
mais comanda. Atira como um jagunço comum, do al~o do
com a ciência do bem e do mal que lhe foi dada pela experiên-
sobrado, enquanto o essencial é feito pelos outros, - seja
cia que viveu. O passado, que é toda a massa do que
o duelo em que Diadorim e Hermógenes se matam, seja o
narra, reduz-se deste modo, paradoxalmente, a um apêndice do
reforço decisivo trazido por João Goanhá, Ele foi, sobretudo,
presente. .O mundo é visto numa totalidade impressionante,
aquele por quem as coisas impossíveis ficaram ossíveis,
na qual ser jagunço foi a condicão...pata--<a0mpteende.LosvárÍl).S
- porque jogou a a ma para ser 1a un o num entido i e- Tados da vida vistos agora por quem foi ja un o. Primeira
___rentJque levou todos os outros a se tornarem figurantes de pessoa conduzin o a uma presen 1zaçao o passaao, a uma si-
m rama_q!/e .transcende o jaguncismo hahituat Podemos,
assim, repetir que há em Guimarães Rosa uma antologia ra·· multaneidade temporal que aprofunda o significado de cada coi-
sa, - parece a condição formal básica de Grande sertão:
zf culiar do jagunço que sem prejg@, e mesmo por causa os
aspectos sociológicos muito vivos, parece o traço mais carac-
veredas,
letfsti_s~--ª-9--s_g_u_tJm..~~,i:s.õ::Jj_ç_Ç.!Q!ljl
Por· isso o seUjagtinçó Do ângulo do estilo, ser jagunço e ver como jagunço cons-
dÍferê dos que apare.cemnoutros livros· brasileiros·,e não es- titui portanto uma espécie de subterfúgio, ou de malícia do
panta que, desde o aparecimento de Grande sertão, tenha sido romancista, Subterfúgio para esclarecer o mundo brutal do ser-
encarado por alguns críticos como forma de paladino, a ser tão através da consciência dos próprios agentes da brutalidade;
aproximado da ficção medieval. malícia que estabelece um compromisso e quase uma cumpli-
Isto significa que Guimarães Rosa tomou um tipo huma- cidade, segundo a qual o leitor esposa ,a visão do jagunço, por-
que ela oferece uma chave adequada para entrar no mundo-
no tradicional em nossa ficção e, desbastando as sf!US-elemen-
-sertão. Mas sobretudo porque, através da voz do narrador,
tos contingentes, transeortou-o, alé.nulo-<locumento, até à esfera
on e •os os lifêfiíríos passam epresentar os problemas co- é como se o próprio leitor estivesse denominando o mundo, de
maneira mais cabal do que seria possível aos seus hábitos men-
muns d umam a e, desprendendo-se do molde histórico
tais. Assim como na ação o jagunço Riobaldo põe termo ao
e social de gue partiram. estado de jsguncisrno elos gemis ( isto é, ser jagunço é poder
Em Grande sertão: veredas, esta operação de alta estéti- fazer frente a tais problemas), no conhecimento o ângulo de
9!. foi possível devido a certos procedimentos ligados ao foco visão do jagunço ( de Riobaldo que foi jagunço) é uma espé-
narrativo, que por sua vez comanda uma expressividade má- cie de posição privilegiada para penetrar na compreensão pro-
xima da linguagem utilizada. Trata-se, com efeito, de ver o funda do bem e do mal, na trama complicada da vida. A as-
mundo através dum ângulo de jagunJo resultando um mundo túcia da narrativa corresponde à astúcia do mundo, ao desen-
visto como mundõ-âe-Jagu.QÇ.O. .&1.uno onde, sendo a violên- contro dos acontecimentos, que excitam e engodam a capa-
cia norma de conâuta, as coisas são encaradas nos seus extre- cidade de entendê-los. "Contar é muito dificultoso. Não pe-
mos e as contradições se mostram com maior força. No espaço los anos que já passaram. Mas pela astúcia que têm certas
fechado do sertão a vida ganha aspectos projetados pela coisas passadas - de fazer balancê, de se remexerem dos lu-
maneira de ser de Riobaldo, que descobre ou redescobre o gares".
mundo em função da sua angústia e do seu dilaceramento. A
narrativa na primeira pessoa favorece a solidariedade entre am- A fluidez do real leva o espírito a ir além da aparência,
bos, ao estabelecer uma paridade entre o dilaceramento do nar- buscando "nã_oo caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a
rador e o dilaceramento do mundo, que se condicionam outra-coisa". E leva a dois movimentos contrários, que com-

156 "- "'-tlv\.A',f, ;t;:..,...,f'-•,1c.p ~ ~k i1-.-_ o--'-"'v._u7c..:iJ


C¼..- C-t,v--:,l.i -e. '-"<e -:e.'1---J.i
"4.. cJ,..J,.,_ ,1_
1
,.._<Y(.
0-0,,
~)
1

e. ~ "'--,__ °'- ,r ~ ;;:, oi-, à-'- "à~ ~ '-'- cr' '


põe1;1uma visão diversificada e ambígua: reconhecer a com• elevada li.categoria de objeto estético. Hoje, o mundo do São
ple~1dade dos f~tos, que o estado de jagunço •permitiu •e~- Francisco mineuo, dos campos gerais, dos chapadões e várzeas,
penm_e~tar atraves do absurdo e do mal; tentar esclarecê-Jo·s existe •na sensibilidade de todos e mostra a unidade do sertão
e defm1-los num sistem? simples, que deixe evidente o que são brasileiro, irmanando a fisionomia social de zonas que imagi-
º. bem. _e o mal, o Justo e o injusto, tão misturados na návamos separadas. .
vida v1v1da, e que o ex-jagunço vê ( e nos faz ver) melhor,
por ter estado de ambos os lados e poder relacioná-los de mo- De certo já não é mais visível por lá a realidade do jagun-
do conveniente: "/ ... / era nessas· boas horas que eu virava cismo, como a descreveu e transfigurou Grande sertão: ve-
para a banda da direita, por dormir meu sensato sono por cima redas. Em todo o caso, é bastante recente para ser colhida de
dos estados escuros". maneira qµase direta pelo romancista. Os jovens de agora
não supõem que, ainda há bem pouco, a umas duas ou. três

C~m efeito, experiência do mal, que o jwnça bíci4f, · centenas de quilômetros das suas salas de aula, passavam-se
deste livro possm, aguça o sentimento das complicações•inso: coisas e movia•se gente como as que narra a 'literatura evo-
lúveis do mundo, da impossibilidade de esclarecê-las. Mas cada nestas palestras. E acho que não cmnpriria nelas a mi-
aguça ao mesmo tempo o desejo de ver claro de lutar contra a nha tarefa se, entrando um pouco no ca~po das recordações,
a~bígüidade; e mesmo sem poder isolar em' seu lugar respec• não .desse o meu próprio testemunho a respeito. •
);vo as forças opost_as,este esforço é à dignidade da lucidez:
/. •·. / eu ca~eço de que o bom seja bom e o ruim ruim, que Na minha infância, no Sudoeste de Minas, ainda. vi pelo
dum lado esteJa o pre_,o e do outro o branco, que o feio fique menos um bando de jagunços passar sob o .comando•desempe-
bem apartado do bomto e a alegria da tristeza! Quero os to- nado de um coronel facínora, chefe de uma vila pr6xima,
dos pastos demarcados. . . Como é que posso com este mun- mandante de infinitas mortes, dono de uma fazenda fortifica-
do? A vida é ingrata no meio de si; mas transtraz a esperan- da e cheia de subterrâneos, cujo nome é hoje m0tivo de lendas.
ça mesmo no meio do fel do desespero. Ao que este mundo Vi também •passar deitado numa escada, carregada por sol-
é muito misturado. .. ,, • dados ao modo de maca, recoberto pbt um lençol manchado
de sangue, o corpo baleado de um jagunço adolescente,-que ma:
Conseqüência ex~rema é qúe, em frenté dessa írremediá• tava para cumprir as ordens de outro coronel, seu pa-
veJ: mistura, ~sse "mundo à revelia", como diz Zé-Bebelo, drinho, como compete ao afilhado obediente. Já não vi mais
mmtas veies é pelo avesso ue se che a ao direito: "/ ... / no os tiroteios que vinte anos antes faziam da nossa cidade um
cen_tro q ser a , o que é oideira às vezes po e ser a razão centro famoso pela turbulência. Mas ainda vi jagunços de re'
mais certa e de mais juízo!,: E no plana da ooa'1uta, "querer nome, empreiteiros de morte ou simples valentões guarda-
~ bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo . ·-costas, nas suas bestas arreadas, na flama dos seus pelegos
se querendo o mal, por principiar". Em tal mundo ser jagiíii= de cor, dos seus bastas prateados e dos seus dentes de ouro.
ço pode formar a base para ver melhor. ' E que, no entanto, sorriam com bondade aos meninos e até os
passeavam no santo.antônio, para·depois morrerem com o corpo
crivado de balas, nas tocaias da polícia ou dos adversários.
• •
Noutra cidade, mais ao Sul, fui ,contemporâneo de atroa·
cidades cometidas por bandos armados, num município pr6xi 0

Recaindo no documento, observemos que o livro de Gui- mo, aproveitando as confusões de uma revolução para ajuste
marães Rosa é eticulosamente Jantado na reali ade física, de contas entre políticos. E passei pelo menos uma noite es-
histórica e social do arte . e inas, que_e e revelou à sensI• perando o assalto· iminente que prometiam ao nosso, enquarito
-bilidade ctoleitor brasileiro como nova província, antes não meu ·pai~ só e desarmado, mas muito calmo; recusava sair de

158 159
casa, apesar de visado. Afinal não vieram, e ele foi, a u~s !
8
duzentos quilômetros de distância, buscar para a defesa da cida-
de carabinas cedidas por um oficial cujo nome vem refr-
rido por Riobaldo, em Grande sertão: veredas.
j
Creio que esta minúscula experiência pessoal do fim -do A DOIS SÉCULOS D'O URAGUAI
jaguncismo no Sul de Minas, no decênio de 1920, talvez ajude
os moços a sentirem o ritmo das _pmdanças em nosso tempo
e o interesse com que falei do assunto.
(1966)

Serás lido, U:raguai. Cubra os .meus olhos


Embora um dia a escura noité eterna.
Tu vive e goza a Iüz serena e pura.
Canto V.
Nota - Agradeço a Paulo de Mello Carvalho a comunicação
de relatos inéditos e velhos jornais de Cássia, MG, que mostrei
aos estudantes durante o curso, ilustrando com a realidade os
níveis da elabor.ação literária. Agradeço igualmente ao Dr. Raul
de Azevedo Barros, da mesma cidade e profundo conhecedor da
história local, a oportunidade de consultar documentos e ler os
raríssimos opúsculos de Antônio Celestino.

160
1

No meio de tanta obra clássica de leitura penosa, O Ura-


guai se distingue pelo prazer que ainda causa, duzentos anos
depois de publicado. A sua ação rápida, variada, pondo em
cena personagens incisivos ou comoventes, embora sumários,
desprende uma sedução que nos envolve pelas formas e os
ritmos. Em pleno século XVIII, o seu verso melodioso trans-
cende a experiência dos contemporâneos e anuncia as boas
tonalidades de Gonçalves Dias.
Vale a pena relê-lo, portanto, como têm feito várias ge-
rações, mas sem preconceito nem solenidade, incompatíveis
com a sua beleza discreta. Basílio da Gama,· apesar do que
veremos a respeito das causas d'O Uraguai, nada tem de es-
critor oficial, esteticamente falando; nada de acadêmico e se-
guidor das regras. Acadêmicos podem ser Cláudio, ·Durão ou
até Gonzaga. Ele e Silva Alvarenga, companheiro e amigo, de
modo nenhum. Imagine-se pois que o poema é um romance
de aventuras exóticas, só que narrado em verso, numa lingua-
gem tornada lígeirainente inatual pela pátína do tempo, o que
lhe dá o mesmo encanto dos velhos móveis e objetos. Roman-
ce de aventuras no qual índios empenachados de azul e ouro,
de vermelho e preto, lutam com tropas coloniais fardadas de
branco e vermelho, de amarelo e azul, num balanceio que fas-
cina os olhos da imaginação e sugere ao espírito o balanceio
de culturas e gêneros de vida. Basta fazermos um pequeno
esforço de adaptação com o ouvido e nos habituarmos a al-
gumas diferenças de vocabulário e sintaxe, e estaremos pron-
tos para a história sempre atual dos povos de cultura diferente,
que não se entendem e traduzem o desentendimento pelo con-
flito, que lesa os sentimentos individuais e a existência dos
grupos.

163
2 tico, também em latim e também sobre aspectos da economia
brasileira (publicado em 1781); outros jesuítas tinham escrito
Sabemos pouco da vida de José Basílio da Gama Vilas na mesma língua poemas análogos, como Prudêncio do Amaral
Boas, e a maioria do que sabemos é devida a um inimigo, ·o sobre o açúcar ( composto no começo do século XVIII, pu-
Padre Lourenço Kaulen; autor da Resposta apologética ao poe- blicado em 1780).
ma intitulado Uraguai, desagravo aliás muito justo à sua Ordem. Ocorrem duas idéias: que o poema de Basílio talvez haja
Nasceu em 1741 na então Capitania das Minas Gerais, sido a 'justificativa da eleição à Arcádia ou uma prova ulterior
numa fazenda do arraial de São José do Rio das Mortes, hoje de competência; e que pertença a uma atmosfera de inspiração
cidade de Tiradentes em homenagem a outro filho ilustre. O jesuítica, não sendo desprezível a hip6tese que José Rodrigues
sobrenome Gama vinha do avô materno de sua mãe, oficial de Melo tenha, se não ajudado substancialmente, ao menos
que militou na Colônia do Sacramento. O pai, Capitão-Mor orientado o antigo aluno. Esta conjetura, que propus no meu
Manuel da Costa Vilas Boas, português, parece ter morrido livro Formação da literatura brasileira, foi admitida recente-
cedo, deixando os seus em grande aperto. Segundo VarnhJ- mente por Rubens Borba de Moraes, na inestimável Bibliogra-
gen, um amigo da família materna e futuro personagem d'O Ura- fia brasileira do período colonial, o que a reforça singularmen-
guai} o Brigadeiro Alpoim, encaminhou e protegeu Basílio no te. Mas há outras coisas.
Rio, onde estudava -para jesuíta no Colégio da Ordem quando Como a vida de Basílio é mal conhecida e ainda não se
esta foi expulsa dos domínios portugueses, sendo os seus mem- esclareceram problemas de autoria e data em relação a poemas
bros desnacionalizados e ficando livres de qualquer sanção os que lhe são atribuídos, ficamos sem saber o que pensar de
que se desligassem ( 1759). Se quisesse, o rapaz poderia ter pelo menos um, composto durante a residência na Itália, a
ido completar a carreira noutro país: mas segundo Kaulen, "Ode ao Rei D. José,., onde há versos que·pareCem ataque
preferiu continuar no Rio e voltar à vida civil para terminar aos jesuítas. Seria isto um indício de que já estaria ideando
os estudos num Seminário ( provavelmente o de São José), de contra eles um poema sobre a questão das Missões, como ale-
onde teria sido expulso por causa de uma sátira. Se assim foi, garia mais tarde? Talvez fossem deste tipo os motivos do
há de ter sido por muito pouco tempo, pois em 1760 já estava conflito a que alude Kaulen, ao dizer que acabou brigado com
em Roma com os antigo~eligionários. Lá ficou até 1767 eles por causa de uma sátira - a segunda a produzir tal conse-
e foi admitido em 63 à rcádia Romana ( único brasileiro neste qüência na sua vida. Ter-se-ia então retirado para Nápoles e
caso) com o nome pastora e Termindo Sipílio. de lá para o Rio, onde é certo que o encontramos em 1767.
Como conseguiu isto um moço sem nome nem obra? É São deste ano a '·'Ode ao Conde da Cunha", o soneto à
ponderável o que diz o Padre Kaulen: os jesuítas, que o aco- nau Serpente e outro, magistral, "A uma Senhora" ("Já, Mar-
lheram e protegeram, tê-lo-iam recomendado e eventualmente . fisa cruel, me não· maltrata"), revelando que a estadia tia Itá-
auxiliado a se habilitar. A este respeito, notemos duas cir- lia amadurecera o seu talento: O Uraguai, que brotará de re- •
cunstâncias, cujo relacionamento pode ser significativo. Pri- pente dali a dois anos, é cheio de reminiscências dos poetas
m_eira: existe um belo -manuscrito- inédito que pertenceu aos italianos, além de terminar com uma dedicatória ·que alude
Condes della Staffa, depois ao diplomata Ari Pavão e hoje é ao cumprimento de obrigação ou promessa a um Mireu, en-
propriedade do escritor e erudito Rub_ens Borba _de Moraes: tão recentemente falecido, que não é outro senão o próprio
Brasiliensis Aurifodinae, etc., poema didático em latim sobre presidente da Arcádia Romana, Michele Giuseppe Morei, como
a extração do ouro em Minas. Segunda: por aquele tempo averiguou Joaquim Norberto. Adm!lo que também ·seja ele
morava em Roma o Padre jesuíta José Rodrigues de Melo, o "Velho honrado" que aparece num belo "Canto" ao Mar-
antigo professor de Basílio no Rio e autor de um poema didá- quês de Pombal ( composto entre 1770 e 1777) e que Basí-
164 165
nios ultramarinos das duas monarquias, etc., publiçado em
lio di.z tê-lo sagrado poeta "junto ao Tibre".. Quereria dize~·
1757 por ordem do Ministro e reimpresso várias _vezes, s1 ou
que era grato porque Morei. lhe dera apoio, admitindo-o à Ar,-
incluído em outras obras. Nos seus aspectos mais ostensivos,
cádia; ou, mais do que isto, porque o orientara int~lectual-
0 poema serve aos mesmos fins de propàgan1~ que o. pa~l<;-
mente? O f~to é que .este "Canto", bem como a dedicatória
to e isto sugere que, naquela altura, o poeta Ja estava 1dent1fi-
final d'O Uraguai, poderiam dar a idéia de que os mentores
cado ao grupo de colaboradores do poderoso homem de
não foram apenas os jesuítas; e que seria verdadeira a alegação
Estado.
de que vinha remoendo a obra desde a Itália, se é que não a
teria já esboçado. Isto explicaria à rapidez com que aparen- Em 1771 recebeu uma prova de consideração: a carta de
temente foi concebido, redigido e publicado o poema ( alguns nobreza, que lhe permitia complacentemente usar o brasão do
meses). Explicaria, ainda, a sua composição defeituosa, a descobridor do caminho da fndia, a cuja família se ligava de
mistura· de versos perecíveis com outros de beleza durável. algum modo por um dos bisavós, - o remoto oficial pai d:,
Quem sabe surgiu de maneira dramática em 1768 um estímu- mãe da mãe. Em 1772 publica a má adaptação da Declama-
lo para utilizar e terminar o projeto em amadurecimento, por ção trágica, poema didático sobre a técnica da represen!ação
motivos urgentes de oportunidade? teatral de autoria do francês Dorat, que andou por Lisboa
naquele tempo. Em 1774 é nomeado Oficial da Secretaria do
Em 1768, com efeito, as autoridades do Rio mandaram Reino, cargo de certa importância que ocup~u até à n:iorte. . E
Basílio preso para Lisboa, por causa de uma lei recente ( de um trecho das Recordações do comerciante e mdustnal
28 de agosto de 1767) que estabelecia penalidades para as franco-português Jácome Ratton prova que era pessoa de con-
pessoas de algum modo ligadas aos jesuítas. Às que tinham fiança:
mantido .com eles comunicação pessoal, ou escrita, impunham-
-se oito anos de degredo para Angola, podendo a pena ser "Admirava toda a gente que sendo o CoI1pe de. Oeiras um
mais forte conforme o caso. O fato de ter vivido em Roma homem de tanto juízo, acompanhasse quase sempre, nos seus
com os membros da Companhia, quem sabe prosseguindo os passeios pela cidade, com Csic) pessoas de pouca instrução e
estudos clericais, deve tê-lo tornado mais suspeito, explicando talento, como era, por exemplo, o Padre Frei Manuel ,de ~en-
a severidade com que o trataram pouco depois de chegar, quan- donça, Geral dos Bernardos; e notando eu isto a Jose Bas1ho,
do foi ptêso e a seguir libertado com ordem de degredo autor do poema Uraguai, oficial da Secretaria, ele me tornou
perpétuo para aquela Colônia. No entanto, livrou-se graças ao que o Conde se servia daqueles indivíduos como de almofadas
poema que fez sobre o casamento de uma filha do Ministro para seu encosto, que lhe não interrompiam as suas medi~ações
Conde de Oeiras, futuro Marquês de Pombal, que arranjou o sobre matérias de importância, de que quase s·empre se
perdão e talvez tenha feito amizade com ele desde logo. Se- achava ocupado o seu pensamento:· e que ao m~smo' tempo o
gundo Teófilo Braga, neste ano. de 68 já era amigo de Filinto livravam •de importunas, durante as suas digressões; porque
nunca o Conde lhe ditava melhor as coisas dó que nas noites
Elísio e participou com uns sonetos· satíricos na briga contra
os próceres da Arcádia Lusitana. precedida dos passeios com o dito Padre".
Em 1769 foram publicados o dito poema, Epitalâmio da Este trecho precioso, por ser o único testemunho direto
Excelentíssima Senhora Vona Maria Amália e O Uraguai, - este, sobre a vida de Basílio na esfera oficial, mostra-o como cola-
borador de toda a hora ·e pessoa. tão íntima, que a ele se diri-
segundo Kaulen, por encomenda de Pombal e usando 1ados
giam os que desejavam explicações sobre a conduta do Minis-
fornecidos por ele.. O certo é que aproveita nas partes rnfor.
tro. E devia ser escritor cotado, pois freqüentava a sociedade
mativas nas nOta_s'. e nos juízos políticos, o opúsculo antijesuí-
reunida em torno dos Príncipes do Brasil ( futuros D. Maria I
tico Relação abreviada da República que os religiosos iesuitas
e D. Pedro III), segundo testemunhos recolhidos indiretamen-
das Províncias de Portugal e Espanha e,tabeleceram nns dom/.-

166 167
te pelo Marquês de Resende ( que menciono conforme . Caeta~ em· que morreu;·-aos cinqüenta e quatro anos completos ou por
no Beirão). comoletar.
Pelo que sabemos, o valimento continuou até à queda de
Pombal, em 1777. Nessa altura, os incensadores da véspera, 3
inclusive os poetas, se desencadearam contra o estadista em
desgraça, mas Basílio teve a decência de não participar da fa-
mosa "Viradeira" e_ permanecer fiel. ao protetor, em cuja de- O assunto d'O Uraguai é a luta da tropa aliada, espa-
nhola e portuguesa, contra os índios aldeados nas Missões je-
fesa escreveu pelo menos dois sonetos, que, embora tenham
suíticas do -atual Rio Grande do Sul, que recus·avàm acatar as -
ficado inéditos, podem ter corrido manuscritos, como era uso.
decisões do Tratado de Madrid (.1750). Este determinara uma
A tradição da família Pombal reconheceu a firmeza dos seus troca de territ6rios: os portugueses sairiam da Colônia do
sentimentos, pois em 1862 o quarto Marquês disse ao Visconde Sacramento, hoje parte da República do Uruguai, cedendo-a
de Nogueira da Gama que Basílio tinha sido um "grande amigo" aos espanhóis a troco d8. ·área ocupada por aquelas missões,
Je seu bisavô,. - como se lê num documento coligido por Joa- chamadas os Sete Povos, na margem leste do rio Uruguai. Os
quim Norberto e aproveitado por José Veríssimo na sua edição. aldeados, não quer.endo tornar-se súditos portugueses e com
Antes ou depois da "Viradeira", traduzira uma peça de certeza inspirados por jesuítas, pediram prazo para . mudar.
Voltaire, Maomé ou O fanatismo, de que há notícia numa dela- Não tendo mudado, as duas potências entraram em acordo para
ção contra Filinto Elísio em 1779, referida por Te6filo Braga. os desalojar à força, começando as operações em 1754. Como
Mas não consta que tenha sido prejudicado pela mudança de pode acontecer em guerras coloniais, o desespero dos nativos
governo; como aliás não foram pombalinos muito mais impor- con~eguiu por algum tempo ameaçar a supremacia do invasor;
tantes, haja vista o Ministro Martinho de Melo e Castro. Ao a primeira campanha não deu resultado e foi preciso- uma se-
contrário, informações ( é verdade ,que pouco seguras) do Mar- gunda, em 1756, que é .a descrita no poema. Os índios fo-
quês de Resende mostram-no, em 1779 e primeiros· anos do ram desbaratados, as aldeias foram tomadas com destruição e
decênio seguinte, freqüentando recepções da nobreza e meimo morticínio, mas sem êxito de:finitivo. Gomes Freire de Andra-
do Palácio •Real, em companhia de Gonzaga, Sousa Caldas, da, Governador do Rio e Minas, Comissário .da Demar-
Durão e outros. cação do lado português, achou perigoso largar a Colônia do
Sacramento por uma região tão irrequieta e se retirou, levando
Dali em diante pouca éoisa escreveu, ao. me~os de que se milhares de aldeados consigo e deixando as reduções feridas,
tenha· conhecimento. Em 1791 publicou o poema Quitúbia, mas não extintas. No povo, ficou um traumatismo expresso
sobre .·os feitos de UJTIchefe africano em guerrilhas coloniais, - pela exaltação lendária do càcique José Tiaraiú ( o Cepé
obra péssima, mas que. revela a· constância de _seu int~resse d'O Uraguai), transformado em São· Sepé, cantad,o num roman-
pela, situação cultural e política dos povos primitivos coloni- ce popular colhido por Simões Lopes Neto, recentemente trans;
ü1elos. No mt::smo~entido deve ser interpretado o soneto em formado por Érico Veríssimo em personagem de O tempo e
louvor -a Tupaç Ama:t'u, composto provavelmente· pela altura o vento.
de 1780, ano em que se levantou .contra os. espanhóis esse ma-
logrado revoltoso peruano, pretériso descendente dos Incas. As Missões cio Rio Grande s6 foram incorporadas defini-
tivamente aos domínios portugueses em 1801. Mais tarde, em
Tendo recebido algumas honrarias, normais para funcio- 1828, o que delas restava foi arrasado pelo caudilho uruguaio
nário do seu nível, como o título de escudeiro da Casa Real Frutuoso Rivera. Onze anos antes, a mesma selvageria fora
em 1787 e, em· 1790, a condecoração de São Tiago, foi eleito cometida pelos brasileiros, sob o comando do general Chagas
s6cio correspondente da Academia das Ciências em 1795, ano Santos, contra as Missões da Argentina, que não entram no
168 169
poema ( e se situavam, é claro, na margem oeste • do ;rio
Uruguai). ordem, a obediência aos •reis e o interesse pelos pobres aldeà-
dos. Veja-se uma tentativa comovente de analisar o problema
Basílio hipertrofia um acontecimento militar de pouco re- na peça Assim na terra como no du, de Fritz Hochwalder.
lêvo, que, apesar do trabalho que deve ter dado, pela :distan- O Uraguai ·pertence a esse momento complexo e, como é
cia a falta de comunicações e abastecimentos, dificilmente o caso no· aceso da polêmica, assume posição injusta. Mas é
co~stituiria matéria épica. No tempo em que se desenrolaram preciso ver mais coisa na sua estrutura, distinguindo além do
os fatos descritos ele era ou ia ser aluno e noviço dos jesuítas ataque ao jesuíta a defesa do pombalismo e o encantamento plás-
no Rio: além di;so, era amigo da família do brigadeiro Al- tico pelas formas do mundo aínericano, inclusive a sim-
poim, que participou da campanha junto com dois filhos. As, patia pelo índio. Estas e outras camadas se cruzam e recru-
sim, teria podido informar-se de ambos os lados e estabelecer zam em torno do argumento propriamente dito, centralizado
o seu juízo. Embora publicasse o poema por interesse, para pela figura do herói, Gomes Freire de Andrada, o melhor go-
ganhar a boa vontade de Pombal, já vimos ser possível que vernante do Brasil no período colonial, que como prêmio da
o viesse ruminando e mesmo esboçándo. Seja como for, a sua atuação nos negócios e lutas do Sul recebeu o título de
circunstância de ter esposado os aspectos mais crus· da propa- Conde de Bobadela.
ganda anti-jesuítica, depois de ter sido quase jesuíta ele pró-
prio, tem feito muita gente, além do Padre Kaulen, acusá-lo O Canto I descreve a junção das tropas aliadas; Gomes
de ingratidão e falta de caráter. Freire conta ao colega espanhol a renitência dos padres e a
campanha anterior, em que ÍOi'a obrigado a ret!rar pela ench:n-
Embora isto nada tenha a ver com a qualidade da obra, te do rio. São bonitos os trechos sobre o desfile dos batalhoes
lembremos que em verdade até hoje não há opinião firmada e o mundo coberto de água.
sobre o caso das Missões e, em geral, da ação dos jesuítas na
política do tempo. Sabe-se que eles criaram lá uma ordem pa- No Canto II ó exército avança e, ao aproximar-se do ini-
migo· dois caciques, Cepé e Cacambo, procuram Gomes Freire
ternalista e igualitária, que permitia manter os índios em tute-
la e estabelecer um regime de produção que garantia a vida comd embaixadores. No belo diálogo, as duas partes expõem
econômica das comunidades. Situação, de qualquer forma, bem . as suas razões e nós sentimos a tristeza do choque. de- culturas
e interesses. Trava-se o combate, cujo movimento é admiráve.l,
melhor para estas do que .a exploração .desalmada, predatória
terminando caril a derrota:e retirada dos índios. •
e arrasadora dos colonos espanhóis e portugueses.
• No Canto III Cacambo, inspirado por um sonho, ateia
No entanto, este estado de coisas rep~esentava liffiitação fogo à· vegetação re:sequida em volta do acampament? ~liado e
à soberania dos dois países e aparente inclusão de um impé- foge para a sua aldeia, onde o Padre Balda ( que ex1st1':; mas
rio dentro do império coisa inviável econômica e politicamente. foi desfigurado pelo poeta) o faz prender e matar, a fim de
Além do mais, os je;uítas, com a sua tendência a influir nos poder dar ao filho sacrílego, Baldeta, a sua posição e a ·sua es-
príncipes e poderosos através da instrução e d~ cura de altnas, ~i- posa Lindóia. Por artes ·de uma nigromante, esta tem uma
nham-se tornado antipáticos tanto aos estadistas do absolutis- visã~ do terremoto de Lisboa, maquinações dos jesuítas e ex-
mo ilustrado .quanto aos .intelectuais partidários das idéias pulsão da sua Ordem, ficando assim vingado o marido.
rlovas. Em conseqüência, houve contra eles no século XVIII
um movimento que sem dúvida representava -posição renova• No Canto IV ( o mais belo), as tropas avançam por uma
dora embora as convicções sinceras ( de um Verney, por exem- região alta e nevoenta, iluminada de repente pelo sol, enquanto
plo)' se misturassem a baixos interesses políticos e eco- na aldeia os índios se dispõem em formação vistosa para o ca-
nômicos. Do lado dos inacianos das Missões a situação era samento de Baldeta e Lindóia. Mas esta vai a um bosque pró-
ximo e se deixa picar por uma cobra. venenosa, no epi-
ambígua e difícil, pois estavam dilacerados entre a política da sua
sódio mais famoso e citado do poema. Entrementes se anun-
170
171
eia a chegada dos brancos e todos fogem, mandando os padres Al~uns exemplos. Na realidade, como narra o poema,
incendiar antes as casas e a igreja, onde Gomes Freire entra Cepé fo1 morto num entrevera pelo governador de Montevidéu
consternado. José Joaquim de Vfana ( antepassado do escritor uruguaio }a-
O Canto V é o pior de todos e visívelmente acabado -às vier ~e Viana). Dias depois (10 de fevereiro de 1756) ocor-
pressas, tendei como assunto principal a pintura alegórica no reu a batalha de Caibaté, onde foi derrotado outro famoso ca-
teto da igreja, alusiva ao domínio universal da Companhia e cique, Nicolau Languiru, ou Nheenguiru, e praticamente li-
os seus alegados crimes e prepotências. A seguir Gomes Freire qüidada a resistência organizada dos índios. Ora, no Canto II Ba-
vai surpreender o inimigo na aldeia seguinte, há uma breve sílio fundiu as ·duas ações e os dois chefes, de modo não apenas a
cena· burlesca em torno do Irmão Patusca e o poema termina concentraro interesse, mas a poder substituir um dos caciques
abruptamente com uma peroração admirável, que redime a por um personagem semi-fictício, Cacambo, que absorveu a fun-
frouxidão de estrutura, assunto e linguagem do último canto. ção histórica dos outros dois e empurrou Cepé para o
Embora tenha dado a O Uraguai uns disfarces de epopéia, segundo plano. Cacambo existiu, mas não teve relevo algum.,
quase tudo o afasta do gênero: o assunto, reduzido e atual, que- e o que sabemos dele, através de Lourenço Kaulen, é que foi
brando a norma da distância épica; o tamanho pequeno, incom- preso pelos companheiros sob acusação de conluio com os por-
patível com as regras; a presença da sátira e do burlesco, tugueses. Ao contrário do que se lê no poema, quem o salvou
que são a própria -negação destas e aproximariam a obra do poe- da morte foi o Padre Balda, cujo papel no caso é invertido
pelo poeta.
ma herói-cômico, isto é, a anti-epopéia deliberada.
Será então um poema narrati_vode assunto entre épico e ,Ora, justamente a falta de relevo de Cacambo permitiu
político, banhado por um lirismo terno ou heróico que permite o enxerto, na sua vaga forma, do índio-homem· natural, bon-
ver com simpatia a vida do índio brasileiro. Assim, Basílio doso e puro, que Bàsílio neceSsitava como paradigma no pri-
forjou u111instrumento novo, adaptado ao assunto contempo- meiro plano da ação, e a quem deu como complemento\a inven-
râneo, de natureza um püuco jornalística, denotando uma mo- tada Lindóia, compondo assim o foco de maior interesse.
dernidade que assegurou a sua duração, enquanto um poema Outro exemplo é, no Canto IV, o morro que o -poeta usa
convencional e pesado como ·o Caramuru só agrada aos espe- como uma espécie de mirante, para ver o mundo segundo um
cialistas de história literária. A sua sorte foi ter de compor ritmo de· impressões sensoriais que analisaremos daqui a pou-
rapidamente e não possuir fôlego épico, podendo escapar ao co. Na verdade, trata-se-do Monte .Grande, o maior-obstáculo
jugo ainda então pesado de certas regras da Poética. para chegar ao âmago das reduções jesuíticas, galgado median-
Uma das suas virtudes foi o equilíbrio entre os detalhes te um esforço considerável de engenharia militar, que foi dos
históricos e a elaboração .ficcional. No corpo do poema, man- poucos feitos realmente importantes da campanha, devendo_pois
teve o essencial da matéria informativa como garantia do- figurar no poema laudatório. No entanto, Basílio descaracte-
cumentária-e elemento de ligação;--mas ém tudo· o que é poeti- rizou-o como episódio decisivo de estratégia, para sublimá'.lo
camente decisivo, submeteu-a a uin processo-de descaracteriiação como momento poético inominado. •
criadora, - •misturando personagens reais .e fictícios, suprimin- Estes ,exemplos mostram de que maneira penetrava intui-
do sistematicamente os ·topônimos, fundindo acontecimentos, tivamente no que havia de mais rendoso na sua matéria, - e a
mudando o significado dos fatos e das ações. Em conseqüên- este respeito vale a pena mencionar a .opção que o fez escolher,
.cia, O concreto real passa para segundo plano,· embora perma-. entre os caudilhos da tragédia das Missões, José Tiaraiú
neça como data virtual .do poema, enquanto s_obressaio con- (Cepé) em lugar de Nicolau Nheenguiru. No ano de 1769
creto poético; e assim o caráter contingente da obra de circuns- este apresentava todos os elementos para chamar a -atenção de
tância foi superado pela durabilidade dos produtos imaginários. um homem culto: fora o comandante.geral dos índios· resis-

172 173
tentes, dirigindo nesta qualidade a batalha. suprema· mais ain- Mas se utilizarmos este modo de ver para analisar a estru-
da, tinha certa notoriedade na Europa, pois havia sido transfor- tura,. veremos que ele funciona como um eixo excêntrico e faz
mado, com base nalgum equívoco inicial, no lendário Nicolau I º. p~e~a 1esconjuntar-se_aos solavancos, - pois as partes prin-
Rei do Paraguai e Imperador dos Mamelucos ( isto é, d~ c1pa1s s,?1am o material em prosa ou os trechos poetica-
mente p10res, o que é um contra-senso. A análise adequada
São Paulo). Em 1757 saíra o péssimo romance Histoire de
mostra d~ fato que ? material da polêmica anti-jesuítica é sem-
Nicolas I, fabricação ordinária de um anônimo, contando pà-
p_re esteticamente ruim, tendendo a adquirir significado perifé-
tranbas que nada tinham a ver com o pobre Nhe~nguiru, mas
rico. Ora surge em intercalações sem poesia nem grandeza
que _deram ao seu nome um halo de notoriedade. Entretanto,
movido pelo discernimento poético, Basílio preferiu o mais quando não são as tolas palhaçadas do Irmão 'Patusca· ora s~
separa do corpo narrativo para formar notas em prosa,' onde se
obscuro Sepé ( ou Cepé, como escreve), que fora subordinado
do outro, mas ia caminhando surdamente na imaginação po- concent:a o, chumbo grosso, tirado das publicações pombali-
nas; afinal e o mau Canto V, verdadeira extensão das notas,
pular rumo à canonização espontânea, à glória dos "romances", colocado estruturalmente do lado de fora. Seja isto devido ou
a uma existência mitológica que chegou aos nossos dias.
não à falta de convicção profunda e à frialdade do trabalho de
encomenda, o certo é que o senso poético fez Basílio constran-
gido com o que não acendesse a sua imaginação.
4 P_ortanto, se encararmos o poema objetivamente, e não
como ilustração de um desígnio externo, a polêmica anti-jesuítica
Tudo indica, portanto, um encontro peculiar do poeta fica secundária e surge um outro eixo, que. funciona como prin-
com o assunto, levando a um deslocamento de foco. Havia cípio estrutural: o mencionado encontro de culturas,. definido
um general português a celebrar, havia os jesuítas a denegrir; no Canto II pelo debate entre Gomes Freire e 0s dois caciques
e havia um elemento que servia de pretexto, o índio. Foi este Cepé. e Cacambo. • '
q.ue acabou vindo a primeiro plano e salvando o poema. São estes que falam com a razão natural e mesmo a razão
pura e simples, enquanto aquele ( apesar da dignidade com-
Mostrá-lo como vítima dos padres seria normal e aumen- passiva de que é revestido pelo poeta) argumenta com as con-
taria o efeito da polêmica; o poeta não deixa de fazer isto. veniências da razão de Estado. A posição dos índios resulta
Mas vai adiante e o mostra como vítlma de uma situação mais mais forte, mesmo logicamente, significando talvez que no fun-
complexa, na qual os intuitos declarados viram do avesso, na do o poeta estava menos interessado no invasor e no padre que
medida em que o militar invasor acaba se equiparando virtual- na ordem natural do mundo americano, verdadeiro mo-
mente ao jesuíta como agen.te de perturbação da ordem natural. delo da ordem racional para os ilustrados do século XVIII.
• Se lermos O Uraguai de acordo com aqueles intuitos ele !'!ão tendo a forte convicção religiosa nem a rígida visão histó-
será _principalmenteuma _verrinaruiti-jesuíticá,na qual o herói, rica de, ~urão, Basíli? se deixou envolver hricamente pela be-
Gomes Freire, •não •p'assa de pretexto. Foi assim que o poeta leza plastlca e o desuno melancólico dos guaranis missioneiros
apresentou a sua obra, foi assiin que apareceu ao público. Ain- suspirando com o valente Cacambo: '
da assim foi tomada. pelos jesuítas, que contra-atacarammor- Ah! não debalde
mente na Resposta apologética; mais tarde, foi assim que a en- Estendeu entre nós a natureza
cararam Capistrano de Abteu e outros na sua trilha. Mesmo Tcdo esse plano espaço imenso de águas.
José Veríssimo, que a defende, é assim que a considera. Em
Uma escarpa, um deserto, montanhas inacessíveis mas so-
suma,· todos se colocaram numa. posição estritamente partidária
bretudo o mar; sempre foram obstáculos utilizados pel~s autores
e focalizaram o seu aspecto mais contingente.
175
174
de ut?pia'. para subtrair os seus mundos perfeitos à brutalidade leiros de Tatu-Guaçu, cobertos de "peles de monstros os segu-
da H1st6r1a. Quem os transpõe fere de morte a ordem ideal. ros peitos", ecoam os "fortes dragões de duros peitos", coman-
como teriam feito ~s jesuítas mas, sobretudo, os soldados por'. dados por Almeida; o "tropel dos magnânimos cavalos", no
t?gueses e espanh~1s _(paradoxalmente numa verrina anti-jesuí- passo cadenciado dos esquadrões, se desmancha do outro lado
tlca, a ordem do md10 parece ter permanecido sob o alegado no "tropel confuso de cavalaria"; se de uma parte "se eleva
engodo dos _Padres, no qual tanto insiste o poeta). E há uma aos céus a curva e grave bomba", de outra as setas "arrebatam
nota de maior força nos argumentos dos caciques do que nos - Ao verde papagaio o curvo bico, - voando pelo ar". As-
de Gomes Freire: sim, através de todo o poema, o contraponto passa do nível
. . . o vosso mundo dos princípios ao dos antagonismos, e deste ao pormenor dos atos
Se nele um resto houver de humanidade e das coisas.
Julgará entre nós; se defendemos '
Tu a injust1.ça, e nós, o Deus, e a Pátria:- O sentimento da beleza deve ter influenciado a posição
de Basílio da Gama, que intuiu no mundo indígena uma rique-
. O Ur"gu~i é belo e mal composto. Uma obra pode ter za de formas, uma novidade de aspectos que o levaram a pre-
mais d~ um eixo de ordenação e freqüentemente extrair disso feri-lo às pompas habituais do mundo civilizado ou à secura
ª. sua r19-ueza. Mas neste ·caso a dualidade, mesmo que tenha monocrômica do jesuíta. O Uraguai é um poema onde o que
sido. de_l1berada,foi nociva,, ~esultando um poema cuja har- mais prende a atenção é um jogo de linhas, ritmos e mati-
moma e perturbada pela ma Integração do material a hesita- zes, com uma gratuidade brilhante que empurra para segundo
ção dos propósitos e, portanto, a falta de coerência: Noutras plano certas discursividades da argumentação. Como nos qua-
palavras, a possibilidade de duas leituras nada tem de mau em dros bem pintados, tudo nele é cor, volume, movimento vir-
si, pois_é !re~üentemente, no plano da estrutura, manifestação tual, antes de ser soldado ou índio, ribeiro ou morro.
da polivalenc1a da expressão literária. É, todavia, negativa É significativo a este respeito o fato (já_mencionado) de
quando representa desconexão e uma leitura atrapalha a outra não haver no corpo do poema nomes de lugares nem de aci-
como pode acontecer n'O Uraguai. ' dentes ( que abundarão de maneira indiscreta no Quitúbia);
Por isso, a que permite uma visão mais de acordo com mas, topograficamentc vagos, "o campo armado", um "arreba-
os melhores momentos do poema é, conforme foi sugerido a tado e caudaloso rio", "uma larga, - Vantajosa colina", "a
que desloca o eixo da verrina para o encontro de culturas b~se doce pátria", uma "escalvada montanha" e assim por diante.
da _civilizaç?obrasileira, que seria elaborado no Caramur~ com O sertão gaúcho das Missões é dissolvido na imprecisão e pode
maior amplitude! mas com menos graça, tornando os dois poe- mais facilmente tornar-se espaço poético arbitrário, encarnando
mas ~omentos importantes na tomada de consciência do Brasil quase simbolicamente os quatro elementos do mundo, matéria
pela literatura e lançando as bases do indianismo. Basílio da predileta da imaginação de Basílio, ao lado da cor e do movi-
G~m~, mais dramático e menos convencional, veria no processo mento que são seus atributos. Sob certos aspectos, O Uraguai
prmc1~a!mente os elementos .de choque: Durão, compreensivo é uma tessitura de terra, água, fogo e ar.
e conciliador, a acomodação das raças e dos costumes. O elemento sólido é aparente no peso estático das imagens
~ste pri~çí?_ioestrutur_a~se manifesta não apenas na for- e descrições que amarrama nossa imaginação a vá.rios morros,
mulaçao das 1de1as e na ÍISlonomia geral do poema, mas em um dOs quais "a terra oprime"; às baixadas cobertas de capim
certas. con~t~n:es da c3mposição, _q>moa técnica de contrapon- e taquara seca; às encostas verdes de bucólica; ao bosque cer-
to. Os ofic1a1sse opoem aos caciques; os pelotões fardados de rado e escuro onde morre Lindóia. São ainda mais evidentes
azul e amarelo se opõem aos guerreiros guaranis enfeitados as que provêm do sentimento da água, movendo o mundo a
de penas amarelas e azuis; ao uniforme vermelho d~s granadei- cada instante, - na enchente que eleva aos galhos o acam-
ros responde a plumagem rubra dos tapes de Caitetu; os cava- pamento português; nos rios grossos que se opõem ao branco

176 177

;I
11
1

li
e, "dando um Jeito à urna", acolhem paternalmente o índio
autóctone; nos olhos dágua da serra; nas lagoas encaniçadas! da construído em tórno das •impressões sensot1a1s,q~e não apenas
planície. constituem a percepção do mundo, mas são o elemento estético
que determina a estrutura ao se tornar elemento de compc:,sição.
O movimento se acentua:e sutiliza com o fogo, que é o Tais percepções são visuaiS e estabelecem uma seqüência 01;de
instrumento de Cacamho contra o acampamento, vingando o o poeta deixa insensivelmente a tropa portuguesa, chegada· ao
efeito daquele que as granadas espalham; arma dos padres pa- alto da montanha e como observador ideal, segue com os ver-
ra talar aldeias e dar um cunho de auto da fé ao suplício da sos O turno do olh;r, à. maneira de uma filmagem panorâmica,
velha Tanajura; recurso dos agricultores para fertilizar; maté- até chegar ao outro lado, •a aldeia guarani, onde assistimos à
ria de sonho, quer no brandão punitivo de Cepé, quer na có- parada em honra do casamento de Lindóia com o ridículo
lera do céu contra Lisboa. Baldeta.
Desprendendo-se da aparência, a imaginação fica impon- Lendo o ttecho com atenção verificamos que a sua estru-
derável e ascensional com o ar, que no poema pode ser a zona tura é constituída por uma suces;ão de quatro moyimentos, ou
onde as nuvens escondem ou revelam a face das coisas; a le- quatro 9ndas de impressões visuais, cada qual mais ampla que
vitação contida nas excursões do olhar, que descortina o hori- a anterior, formando pulsações sempre mais carregadas de colo-
zonte; a "regiãOdo vento", onde moram os "leves passarinhos"; rido, a parti~ da ausência inicial de cor.
o lugar ideal da inspiração, "espaço azul, onde não chega Quatro versos ( de "Pisaram finalmente" a "?ão pertur-
o raio"; ou, mais· simplesmente, aquele onde se arqueiam as ba o vento") formam a primeira pulsação, que registra a che-
balas calculadas por Alpoim e as setas que obedecem à mera gada ao alto do morro e assinala a grande altura deste, trans-
intuição. Misturados, com~inados, os quatro elementos estão formando-o num posto ideal de observação. A segunda •P.uls~-
por toda a parte, embora o poeta manifeste preferência pela ção abrange sete versos ( mais o.u menos o ~obr? da prm~ei-
água e o fogo, princípios purificadores nos quais se irmanam ra), que descrevem um mundo cmzento, at)ter1or·as revelaçoes
contraditoriamente a ternura melancólica e as paixões abrasa- da luz, coberto pela •
doras que movem o poema.
. . . tarda e fria névoa, escura e densa,
É preciso não esquecer que este começa pela água e de
certo modo acaba pelo fogo ( se considerarmos que o importu- verso que termina o segmento. Bruscamente " sol ro~re .e
no Canto V é uma espécie de apêndice): água da enchente cria as· cores •naturais, desvendando <?. mundo numa sequencia
que detém Gomes Freire na primeira expedição; fogo com que ampla de matizes atenuados, que se harmonizam com o cinza
os jesuítas procuram detê-lo, na segunda. anterior:
. A presença dos quatro elementos denota um fascínio pelas Mas quando o Sol de lâ do eterno e fixo
formas naturais, pela realidade exterior do mundo, que é re- Purpúreo encosto do dourado assento,
Co'a a criadora mão desfaz e corre
composto como sistema de percepções no verso de Basílio. Por O véu cinzento de ondeadas nuvens,
exemplo, um trecho do Canto IV, que vai do verso 22 ( "Pisa- Que alegre cena para os olhos!
ram finalmente os altos riscos") ao verso 109 ("Peles de
monstros os seguros peitos"). ( 1 ) A designação dos coloridos não é feita; são descritos _os
Estamos no prelúdio dos fatos decisivos, que serão a que- aspectos da paisagem vista do alto da montanha, em notaçoes
da das aldeias missioneiras e a morte de Lindóia. O trecho é como "longas campinas", "engraçados outeiros", "fundos va•
Ies", "arvoredos copadas e confusos", qtle pressupõem uma
(1) Transcrito· em apêndice a este. estudo.
gama de tonalidades e são pintados bruscamente pela cor, quan-
do esta explode numa imagem de síntese ( grifo meu):
178
179
Verde teatro, onde se admira movimento, gerado pela sua modulação; mas que o movifilen-
Quanto produziu a supérflua natureza.
to, por sua vez, revela a cor, ao associá-la, em crescendo, do
cinza neutro à explosão de vermelhos, azuis, amarelos, verde1,
Por isso, quando lemos: passando pela tonalidade fria das paisagens vistas de longe.
. . . longas campinas retalhadas Se decompusermos o todo na singularidade de cada verso,
De trêmulos ribeiros, claras fontes ou seqüência de versos, constataremos que também estes são
E lagos cristalinos, onde molha
As leves asas o lascivo yento. plásticcs, graças a valores sutis de vogais e consoantes ou, ai1;-
da à combinação de uma ·maioria de versos com cesura mais
imediatamente enxergamos o verde cortado de tons prateados. ou' menos .fixa a outros de cesura variável. Daí a diversidade
que o poeta nos quer sugerir. Apenas uma cor mais quente e a fluidez desse verso solto que podemos quase ver, como se
no ocre das lavouras que assinalam o trabalho: fosse um arabesco, ao mesmo tempo que ouvimos a sua musi-
calidade contida. O jogo dos enjambements, que por vezes
A terra sofredora de cultura se sucedem imediatamente, formando seqüências longas, e da
Mostra o rasgado seio.
pontuação que represa o fluxo sonoro para deixá-lo espraiar-se
adiante - mantém o espírito num movimento continuado e o
Mas a vista flutua no espaço, cqntinua a avançar no pa- faz esp~sar as formas do mundo. Tais -recursos produzem os
norama revelado pelo sol e bate em manchas claras, - pri- arabescos referidos como nesta pequena unidade formada por
meiro o gado, depois as casas da aldeia. Acaba aí o terceiro quatro versos e ~eia, que podemos reoidenar irregularmente
segmento, que tem 22 versos, isto é, três vezes o an-
assim:
terior, e começa o quarto, formado pela pulsação mais ampla,
de 55 versos, a começar de: A terra sofredora de cultura mostra o _r.asgado seio,
Ajuntavam-se os índios entretanto E as várias. plantas
Dando as mãos entre si
No lugar mais vizinho. Tecem compridas ruas,
Por onde a vista saudosa se estende e perde.
Numa mudança de posição preparada imperceptivelmente
pelo caminhar da vista, que foi trazendo consigo o observador, Quando as tropas de Caitetu são descritas, é como se em
ao qual nos identificamos, deixamos as tropas aliadas que con- lugar de decassílabos fossem três versos irregulares .de dez, onze
templam o mundo missioneiro e vamos cair no meio deste, nu e catorze, cortados de repente por um curto, de seis:
praça central da aldeia; e nos identificamos de tal modo aos
guaranis que aí estão, que, mais tarde, quando Gomes Freire Não muito fortes são os que ele conduz,
Mas ~ão tão dextras no exercício da frecha,
chegar com a tropa, seremos assaltados pela mesma surpresa Que arrebatam ao verde papagaio o curvo bico,
que eles. As ondas de amplitude crescente nos puseram no pró- Voando pelo ar.
prio movimento da quarta pulsação, no torvelinho do desfile
e seu gritante jogo de cores, que turbilhonam na descrição das Note-se aqui um belo efeito conson~n~al,·o que ali~s é
plumas, tintas, ornatos, animais, graças à maestria do verso. freqüente no poema, denotando relação _muma _entre.o sigm-
Estamos organicamente integrados no movimento dos bandos fícado e a sonoridade: a ação dos frecheiros, evidenciada pelo
descritos que não olhamos mais de longe, e sim na proximida- encurvamento sugerido no sintagma "curvo bico" e no verbo
de absoluta a que nos trouxe o movimento da parábola visual. "voar" que evocam a curvatura do arco, o vôo da ave e a
Trata-se, pois, de uma construção feita pela fusão da cor trajetó;ia da seta, com apoio de tudo no fonema "v". Em dis-
e do movimento. Pode-se mesmo dizer que a cor é a lei do posição normal:

180 181
. . . que arrebatam
Ao verde papagaio o curvo bico,
Voando pelo ar.

Basílio da Gama é chamado várias vezes "papagaio do


Brasil" pelo indignado Lourenço Kaulen, para dizer que é um
mentiroso tagarela, repetidor maquinal dos ditames de Sebas-
tião José de Carvalho. Aceitemos .a. ofensa, que é um modo O Uraguai, Canto IV, versos 22-109.
europeu de caçoar desse caipira irrequieto do Rio das Mortes;
mas _não pensemos em psitacismo, e sim na capacidade de (Para facilitar o relacionamento com ~ _a~álise,_vão ·
adaptação e na plumagem brilhante do nosso irmão pássaro. aqui separadas por números as quatro d1v1soesfe1tas.)
Assim, a imagem agressiva se transforma em símbolo propício,
através do qual sentimos certas qualidades do poeta, grande 1 ( 4 versos)
artífice que percebeu o diálogo das culturas, do ângulo ame-
ricano. Por isso identificou-se à realidade física da terra e do Pisaram finalmente os altos riscos
índio; e indo muito além dos intuitos _ostensivos da campanha De escalvada montanha, que os infernos
anti-jesuítica, transformou-os em significados capazes de . levar Co'o peso oprime e a testa altiva esconde
à mentalidade dos homens cultos da Europa o peso específico Na região, que não perturba o vento.
do mundo natural, estraçalhado pela ambição colonizadora.
2 (7 versos)
(1966)
5 Qual vê quem foge à terra pouco a pouco
Ir crescendo o horizonte, que se encurva,
Até que com os céus o mar confina,
Nem tem à vista mais que o ar e as ondas:
Assim quem olha do escarpado cume •
10 ·Não vê mais do que o céu, que o mais lhe encobre
A tarda e fria névoa, escura e densa.

3 ( 22 ;versos)

Mas quando o sol de lá do eterno e fii,o


Purpúreo encosto do dourado assento,
Co'a criadora mão desfaz, e corre
15 O véu cinzento de ondeadas nuvens,
Que alegre cena para os olhos! Podem
Daquela altura, por espaço imenso,
Ver as longas campinas retalhadas
De trêmulos ribeiros, claras fontes,

183
182
20 E lagos cristalinos, onde molha 55 A Cepé no lugar; inda em mem6ria
As leves asas o lascivo vento, Do não vingado irmão, que tanto amava,
Engraçados outeiros, fundos vales, Leva negros penachos na cabeça.
E arvoredos copadas e confusos, São vermelhas as outras penas todas,
Verde teatro, onde se admira quanto
Cor que Cepé usara sempre em guerra.
25 Produziu a supérflua natureza.
60 Vão com ele os seus tapes, que se afrontam,
A terra sofredora de cultura
Mostra o rasgado seio; e as várias plantas E que têm por injúria morrer velhos.
Dando as mãos entre si, tecem ·compridas Segue-se Caitetu de régio sangue,
Ruas, por onde a vista saudosa E de Lind6ia irmão. Não muito fortes
30 Se estende e perde. O vagaroso gado São os que ele conduz; mas são tão dextras
Mal se move no rnmpo, e se divisam 65 No exercício da frecha, que arrebatam
Por entre as sombras da verdura, ao longe, Ao verde papagaio· o curvo bico
As casas branquejando e os altos templos. Voando pelo. ar. Nem dos seus tiros
O peixe prateado está seguro
No fundo do ribeiro. Vinham logo
70 Alegres guaranis de amável gesto.
4 (55 versos) Esta foi de Cacambo a esquadra antiga;
Penas de cor do céu trazem vestidas
AjuntavamMseos índios entretanto Com cintas amarelas: e Baldeia
35 No lugar mais vizinho, onde o bom Padre Desvanecido a bela esquadra ordena
Queria dar Lind6ia por esposa 75 No seu Jardim: até o meio a lança
Ao seu Baldeia, e segurar-lhe o posto Pintada de vermelho, e a testa, e o corpo
E a régia autoridade de Cacambo. Todo coberto de amarelas plumas.
Estão patentes as douradas portas Pendente a rica espada de Cacambo;
40 Do grande templo, e na vizinha praça E pelos peitos ao través lançada
Se vão dispondo de uma, e de outra banda 80 Por cima do ombro esquerdo a verde faixa,
As vistosas esquadras diferentes. De donde ao lado oposto a aljava desce.
Co'a chata frente de urucu tingida, Num cavalo da cor da noite escura
Vinha o índio Cobé disforme e feio, Entrou na grande praça derradeiro
45 Que sustenta na mão pesada maça Tatu Guaçu feroz, e vem guiando
Com que abate no campo os inimigos 85 Tropel confuso de cavalaria,
Como abate a seara o rijo vento. Que combate desordenadamente.
Traz consigo os selvagens da montanha, Trazem lanças nas mãos, e lhes defendem
Que comem os seus mortos; nem consentem Peles de monstros os seguros peitos.
50 Que jamais lhes esconda a dura terra
No seu avaro sejo e frio corpo
Do doce pai ou suspirado amigo.
Foi segundo, que de si fez mostra, ( Edição fac-similar da Academia)
O mancebo Pind6, que sucedera

184 18.5
APOIO BIBLIOGRAFICO

José Basilio da Gama, O Uraguai, Edição fac-similar com intro-


duCão de Afrãnio Peixoto; notas. de Rodolfo Garcia: e Osval-
do Braga, Rio de Janeiro, Academia Brasileira, 1941.
Obras poéticas de José Basílio da Gama, Precedidas de uma bio-
grafia critica e estudo literãrio do poeta por José Verissimo,
Rio de Janeiro-Paris, Livraria Garnier, 1920 s. f.

Amaral, Prudêncio, e José Rodrigues de Melo, Geórgicas bra-


sileiras (Cantos sobre as coisas rústicas do-Brasil), Versão
em linguagem de João Gualberto Ferreira dos Santos Reis,
Biografias e notas de Regina Pirajá da Silva, Rio de Janeiro,
Academia Brasileira, 1941,
Beirão, Caetano, D. Maria I 1717-1792, Subsíãios para a reVIsao
da história do seu reinado, 3.ª ed., Lisboa, Empresa Nacional
de Publicidade, 194.4.
Braga,- Teófilo, FiUnto Elísio e os dissidentes da Arcádia, Porto.
Lello & Irmão, 1901.
Candido, Antonio, Formação da literatura brasileira ( Momentos
decisivos), 2 vols., 3.ª ed., São Paulo, Martins, 1969, vol. 1.0 •
Histoire de Nicola.s I, Roy du Paraguai, et Empereur des Mamelus,
A Saint Paul, 1756, Edição fac-similar, anotações de Rubens
Borba de Moraes e Augusto Meyer, Rio, Livraria Editora
Zélia Valverde, 1944,
( Kaulen, Lourenço), Reposta ( sic) apologética ao poema intitu-
lado o "Uraguai", Lugano, 1786.
Lima, Henrique de Campos Ferreira, "José Basílio da Gama, al-
guns novos subsídios para a sua biografia", Brasília, vol. II,
Coimbra, 1943, p. 15-3_2.
Lugon, C., La République ·Communiste Chrétienne des Guaranis,
0

Paris, :©ditions Ouvrieres, 1949.

187
Meyer, Augusto, "Nota sobre Lendas do Sul", em J. Simões Lopes
Neto, Contos gauchescos e Lendas do Sul, Edi~ão critica, etc ..
Porto Alegre, Bditora t.Hobo, 1950, p. 262-273. O "Lunar, de
Sepé" se ·encontra às p. 347-353.
Idem, Guia do folclore gaúcho, Rio, Gráfica Editora Aurora,
Ltda., 1951.
Pihheiro, José Feliciano Fernandes, Anais .da Província de Sáo
Pedro, Rio de Janeiro, Imprens_a Nacional, 1946,
Pôrto, Aurélio, História das missões orientais do Uruguai, vol. I,
Rio de Janeiro, Publicações do Serviço do Patrimônio His-
tórico e Artístico Nacional, n. 0 9, 1943.
Ratton,' Jácome, Recordações sobre· ocorrências do seu tempo, de
maio de 1141 a sétembro de 1810, 2.ª edição, ed. por J. M.
Teixeira de Carvalho, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1920.
Silva; José de Seabra da, Dedução cronológica e analítica, etc.,
Parte primeira, Lisboa, na Oficina de Miguel Manescal da
Costa, 1768, 2 vols. (sobretudo a "Petição de recurso", vol. II).
Idem, Provas da ·Parte primeira da Dedução cronológica, etc.,
ibidem (sobretudo a "Relação abreviada da república que os
religiosos jesuítas das Províncias de Portugal e Espanha es-
tabeleceram nos domínios ultramarinos das duas monar-
quias", etc.).
Silva, Joaquim Norberto de Sousa, "Notícia" e "Notas" em Obras
poéticas de Inácio José de Alvarenga Peixoto, Rio de Janeiro,
Garnier, 1865.
Varnhagen, Francisco Adolfo de, "Notícia de José Basílio da
Gama", 1Í1picos brasileiros, 1845, p. 387-398.
Viegas, Artur (Padre Ant,unes Vieira), O poeta Santa Rita DuM
~~xef~~~:~?s:s L~~\~f~~asd' 1~t-s~:uar~~a 19~4.do seu século,

Este livro foi impresso pela


SÍMBOLO S.A. INDÚSTRIAS GRÂFICAS
Rua General Flores, 518 522 525
Telefone 221 5833
São Paulo
188 Com filmes fornecidos pela editora

Você também pode gostar