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“Não consigo imaginar um teatro que não dê problema, que não abale, que não se

comprometa. Venho de uma geração que estava imersa nisso e não tinha medo
disso. O escândalo do mundo é problema meu e é no palco que posso transportá-lo
para esmagá-lo, para examiná-lo. O teatro só existe no momento: não há nada
antes, nada depois. »

Matthias Langhoff  é um diretor franco- alemã o nascido em 9


de maio de 1941em Zurique , onde seu pai, Wolfgang Langhoff, foi exilado
enquanto fugia do regime nazista. Ele está atualmente estabelecido na França e
naturalizado francês.

Em 1961 , Matthias Langhoff ingressou no Berliner Ensemble , onde produziu


peças de Bertolt Brecht . De 1969 a 1978, trabalhou com Manfred Karge
no Volksbü hne em Berlim Oriental, apresentou La Bataille de Heiner Mü ller lá  ,
depois, a partir de 1978, produziram conjuntamente produçõ es no
Schauspielhaus de Bochum, Á ustria e França. De 1989 a 1991, dirigiu o teatro
Vidy-Lausanne . Na temporada 1992-1993, foi codiretor e acionista do Berliner
Ensemble . A partir de 1993, foi diretor convidado em Frankfurt ,
Paris, Genebra e Berlim.

Radical e despojado na encenaçã o, o seu trabalho testemunha, no entanto, um


rigor implacá vel e um trabalho considerá vel em textos teatrais. Um dos fios
comuns de sua estética consiste em saturar o palco de signos por diversos e
variados meios: fotografias, projeçõ es de filmes, referências a outras obras
teatrais ou cinematográ ficas, brincar com a sala, cená rios e figurinos
extremamente complexos, etc. A maioria de suas produçõ es permanecem
histó ricas.

Seu irmã o mais velho, Thomas Langhoff  (1938-2012), também foi diretor. Sua


filha Anna Langhoff é uma escritora e dramaturga alemã . Seu filho Caspar
Langhoff também é diretor.

https://www.theatre-contemporain.net/montheatre/inscription?urifrom=/
montheatre/bookmark/object/persons/idobject/1730?
setetat=add_bookmark&urifrom=/biographies/Matthias-Langhoff/
Matthias Langhoff reflete em seu teatro a violência que nos cerca. Ele fala da
nossa vida, sem complacência. Guinchante, denunciador, explosivo, ele penetra
no coraçã o da carne. É brutal porque sem ilusã o. Ele mistura a lucidez fria com a
loucura de um carnaval com má scaras trá gicas ou zombeteiras.
Frequentemente cria a cenografia e iluminaçã o de seus espetá culos. A sua tarefa
começa com a criaçã o de um espaço visual e sonoro, depois integra os atores
numa partitura espaço-temporal. Permaneceu por muito tempo associado a
Manfred Karge - um caso bastante ú nico, nos anais do teatro, de uma colaboraçã o
tã o duradoura entre dois diretores.
Tendo entrado muito jovem no Berliner Ensemble (do qual foi co-
director em 1992-93), reteve da sua formaçã o brechtiana as bases essenciais de
uma técnica pautada numa concepçã o do mundo e da sociedade, na produçã o
visível do teatro, a recusa do pathos, a arte da dialética. Seus autores referenciais
sã o os antigos gregos, Shakespeare, Strindberg e Heiner Muller. Ele se apresenta
como um artista, nã o como um doutriná rio. Artesã o teatral, põ e à prova as obras
dramá ticas para as conhecer. Ele energiza suas equipes, capacita seus
funcioná rios. Ele concorda em aperfeiçoar o treinamento dos técnicos, nã o abre
mã o da ética.

Exceto por dezoito meses em Lausanne e dois anos em Berlim, nã o tem local fixo
desde 1985. Entre o Festival d'Avignon, o T.N.P. de Villeurbanne, o Teatro
Nacional de Chaillot, o MC93/Bobigny, o Teatro Nacional de Estrasburgo, o
Teatro Nacional da Bretanha, os Amandiers de Nan Terre, o Odeon, o Ateneu, o
Teatro da Cidade ou a Comédie de Genève, o teatro de Barcelona, o teatro de
Epidauro na Grécia, na Itá lia, em Moscou, mudava constantemente de palco,
técnicos, intérpretes, pú blico. Suas ideias nem sempre foram compreendidas ou
aceitas. Combina rigor e excesso, seriedade e humor. Ele evita a estética
superficial, nã o foge da feiú ra. Ele sacode, ele surpreende. Pensando bem, nada é
de graça. A sua audá cia assenta nos pró prios textos, numa experiência vivida e
numa independência inalterá vel. Muitas vezes duro em seu comportamento
como gerente de equipe, intratá vel e absoluto em seus altos padrõ es de si
mesmo, Langhoff é extremamente aberto e atencioso com os outros. “Matthias
tem duas caras”, disse Bernard Dort que o conhece quase desde os seus
primó rdios, “nã o consigo conciliar a violência que irrompe nos seus
espectá culos, e a suavidade, a simpatia do amigo”.
https://www.avantscenetheatre.com/auteurs/matthias-langhoff
Este imenso artista tem um rigor profundo, um conhecimento vasto, um poder
visioná rio na leitura de textos, um gosto pelo palco na sua materialidade, ao
achado na hora. Ele sabe fazer de tudo, num teatro, Matthias Langhoff, e se a sua
obra se vale do melhor da literatura dramá tica, é indissociá vel de uma
preocupaçã o constante com o espaço.
Nascido em 1941 em Zurique, onde o pai se refugiou para fugir do nazismo,
ingressou no Berliner Ensemble em 1961. Foi aí que conheceu outro grande
espírito, nascido em 1938: Manfred Karge. Por muito tempo, na França,
aplaudimos os espetá culos de “Karge-Langhoff”. Desde o início com o lendá rio
Petit Mahagonny de Bertolt Brecht até A Batalha de Heiner Mü ller, eles forjaram
uma estética e uma ética do teatro que serã o essenciais para a paisagem
europeia. Depois do Berliner, eles trabalharam no Volksbü hne de 1969 a 1978,
depois no Schauspielhaus em Bochum, como na Á ustria ou na França. Nã o
esquecemos, em 1984, O Príncipe de Hombourg, com Gérard Desarthe no papel-
título e Philippe Clévenot no de Grande Eleitor. Apó s a separaçã o amigá vel,
Langhoff liderou o Vidy-Lausanne de 89 a 91, antes de se reunir com o Berliner
Ensemble por algum tempo. Em 1993, ele recuperou sua liberdade e continuou
seu caminho. Quase setenta encenaçõ es: nã o há como resumir tal viagem. Ele
raramente abordava a letra (Don Giovanni, Simon Boccanegra). Dos trá gicos
gregos a Rodrigo García, de Hö lderlin a Strindberg, de Shakespeare a Brendan
Behan, passando por Schnitzler, passando por Beckett, Matthias Langhoff
interessa-se por escritores muito diversos, cujas ressonâ ncias atuais destaca.
Mademoiselle Julie, A Missã o e O Papagaio Verde, apresentados juntos, Macbeth,
Desejo sob os Elms, O Revizor, As Três Irmã s, como escolher? Tudo está
impresso em nó s como um acontecimento, nã o como uma ficçã o. Esta é a arte
deste espírito impressionante, intimidador mas acessível, que conserva as
virtudes de uma criança experiente. Um grande diretor de atores, um poeta que
nã o separa aná lises agudas de intuiçõ es deslumbrantes e artesanato sofisticado
no espaço. (Armelle Heliot)
https://www.larousse.fr/encyclopedie/personnage/Matthias_Langhoff/184696
Depois de se exilar na Suíça, Langhoff mudou-se para França onde obteve a
nacionalidade francesa em 1995. Manteve o seu estilo provocador e dinâ mico
que rompeu com as convençõ es, ligou os clá ssicos à s novidades multiplicando as
referências entre ontem e hoje, recusa o bom gosto cultivando a brutalidade do
jogo e muitas vezes criando ele pró prio cenografias complexas onde os
diferentes níveis, imagens reais e virtuais, as mais heterogéneas. Sua arte
barroca é particularmente adequada para o teatro crítico de Heiner Mü ller (la
Misssion, 1989; Quartett, 2007), para as tragédias de Shakespeare (Richard III
Material Shakespeare, 1995), para o teatro antigo (Les Troyennes, 1997), para
grandes afrescos de Brecht, O'Neill ou Chekhov. Já menos procurado pelos
encenadores franceses, sem dú vida porque as suas produçõ es exigem grandes
orçamentos, Langhoff continua a realizar espetá culos por toda a Europa, fiel a
um princípio de permanente questionamento estético e político. “O verdadeiro
sentido do teatro, afirmou em 2 de março de 1992 em Les É chos, é a
controvérsia. Se o teatro nã o mexe nada na cabeça, para que serve? »

A estética do diretor alemã o Matthias Langhoff é caracterizada pela profusã o no


palco de uma infinidade de estímulos visuais e auditivos que nã o estã o
diretamente relacionados ao enredo da histó ria apresentada. Ruídos, palavras e
mú sica se entrelaçam, se estendem e respondem entre si, convidando o
espectador a um íntimo diá logo reflexivo com o objeto cênico onde nenhuma
chave unívoca de leitura lhe é oferecida. Esse diá logo entre os elementos gera um
discurso dramatú rgico que dá para ouvir o que nã o pode ser dito.

https://www.publico.pt/2009/07/08/culturaipsilon/noticia/matthias-langhoff-
teve-um-pesadelo-236139

Matthias Langhoff teve um pesadelo

Inês Nadais
8 de Julho de 2009, 0:00 actualizado a 11 de Julho de 2009, 0:00
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Quando era pequeno, o filho de Matthias Langhoff acordava de manhã


"satisfeitíssimo" a dizer que "tinha feito" (Matthias Langhoff responde à s nossas
perguntas em francês, por "email", e os franceses nã o "têm" pesadelos: fazem-
nos) "um enorme pesadelo".

Imaginamos Matthias Langhoff a acordar de manhã , satisfeitíssimo (fantasia


nossa: ele nã o poderia estar mais angustiado com o que vê de manhã , quando
acorda, debaixo do prédio onde vive), a dizer o mesmo. "Deus como Paciente -
Assim Falava Isidore Ducasse", o espectá culo construído a partir dos "Cantos de
Maldoror" do Conde de Lautréamont (pseudó nimo de Isidore Ducasse) que a
Compagnie Rumpelpumpel traz ao Festival de Almada nos dias 12 e 13, é um
enorme - e maravilhoso - pesadelo. Visto das noites mal dormidas de Langhoff - e
das escadas da Comédie Française, a grande casa do teatro de repertó rio em
Paris -, o mundo é um lugar terrível: "Para falar do escâ ndalo contemporâ neo, e
apenas do escâ ndalo que eu conheço, acho que 365 ediçõ es do seu jornal nã o
seriam suficientes. Enquanto a injustiça mantiver o nosso mundo no escâ ndalo,
nã o posso mudar de assunto".

Matthias vê o escâ ndalo em todo o lado - debaixo do prédio onde mora, onde há
"um grupo permanente de sem-abrigo cujo discurso, na sua incoerência
alcoolizada", lhe faz "lembrar os velhos contos que dizem sempre a verdade", nas
lojas chics do Boulevard Raspail com o seus sapatos a mil euros que lhe dã o
"vontade de partir os vidros das vitrines", e nas escadas da Comédie Française, o
lugar onde começou a ter pesadelos com "Deus como Paciente". "Um dia", explica
ao Ípsilon, "fui à Comédie Française onde tinha uma reuniã o para discutir um
projecto. Para entrar, fui obrigado a passar pelos pobres que dormem debaixo
das arcadas - e enquanto subia aquela bela escadaria compreendia que Racine e
Molière estã o muito longe de mim". Voltou-se, sentou-se num banco ao lado do
teatro: "Era um belo dia de sol, havia gente a passear, e vi um negro que,
enquanto toda a gente se divertia, esvaziava sem parar os caixotes do lixo e
controlava tudo o que as pessoas deitavam fora, à procura de qualquer coisa que
pudesse meter ao bolso. Tinha a câ mera comigo e filmei. Esse homem é um dos
actores principais deste espectá culo".

O filme que Matthias Langhoff fez nessa tarde é a primeira coisa que vemos em
"Deus como Paciente" - como se o nosso mundo fosse, mais do que um escâ ndalo,
um escâ ndalo espectacular. Os três actores que escolheu para irem com ele em
direcçã o ao abismo - Anne-Lise Heimburger, Frédérique Loliée e André Wilms,
que há poucos anos vimos a deixar a pele, sozinho, em "Eraritjaritjaka", de
Heiner Goebbels, no Porto - só aparecem depois, misturando-se uns com os
outros ("Construí uma histó ria com três personagens de galá xias diferentes
[anjos, prostitutas, vagabundos, marinheiros, loucos, enfermeiras, artistas de
cabaré] que atravessam o passado, o presente e o futuro") e com as imagens do
filme. Nunca sabemos bem quem estamos a ver e quem estamos a ouvir, que
parte da histó ria está à nossa frente em carne viva, e a três dimensõ es, e que
parte da histó ria está à nossa frente apenas como assombraçã o: "Como na minha
cabeça nã o é claro o que pertence ao teatro e o que pertence ao cinema, e como
também nã o é claro se o teatro está no chã o ou em cima do palco, misturei tudo,
como faço sempre. Agora que durmo cada vez menos, é possível que tenha até
misturado de mais", diz-nos. O pesadelo que ele fez a dormir acordado, e que nos
faz passar do cemitério ao naufrá gio e do naufrá gio ao "music-hall", como nesses
apagõ es da consciência que acontecem durante o sono, é um transe, uma
colagem de experiências de vida (uma experiência marcada pelo exílio, por todos
os devastadores traumas da condiçã o alemã , pelo comunismo e, em geral, por
todas as feridas abertas do século XX europeu), de visõ es de Paris, do mundo em
que vivemos - e das coisas que continua a redescobrir "na língua de
Lautréamont".

O espectáculo do estrondo

É um francês singular - francês de estrangeiro, como o dele (Isidore Ducasse


nasceu no Uruguai, Matthias Langhoff nasceu na Suíça, em 1941, filho de um
encenador comunista que já tinha estado internado em dois campos de
concentraçã o nazis e de uma actriz judia, ambos de nacionalidade alemã ).
"Quando apanho o metro em Paris, quando vejo a energia dessas pessoas, na sua
maioria negras, a energia para continuar até à pró xima estaçã o, e ouço a mistura
de monó logos e de diá logos, sinto-me pró ximo da língua de Ducasse. Nã o é um
falso francês, é um francês diferente do francês. A língua dele funciona por
imagens. Essa maneira de utilizar uma língua - ou de se encontrar numa língua -
é-me familiar. Compreendo o francês do Lautréamont melhor e mais facilmente
do que o francês de autores de origem francesa". Sabe essa língua de cor - leu "Os
Cantos de Maldoror" durante a juventude, "numa bela traduçã o alemã ", e releu-
os mais tarde em francês. "É difícil explicar como fiz a montagem do texto,
porque tenho-o na cabeça. Primeiro imaginei a histó ria das personagens, e
depois fui buscar as palavras. Sabia exactamente onde estavam", esclarece. De
resto, há momentos em que o significado dessas palavras é marginal: "Hoje, a
catá strofe que está diante de nó s chega-nos direitinha do outro lado do Atlâ ntico.
Fiz questã o de levar o grupo a passar um dia no mar, para que, à maneira de
Lautréamont e através do ruído do rebentar das ondas na costa, os actores
compreendessem a mensagem que era preciso fazer passar. Porque é a mú sica
do estrondo dessas vagas que devemos dar a ouvir com Isidores Ducasse",
escreveu no programa que acompanhou a apresentaçã o do espectá culo no
Théâ tre de la Ville, em Paris.

"Deus como Paciente" é o espectá culo desse estrondo - do estrondo que o mundo
faz a partir-se. É dessa energia destrutiva que o teatro de Langhoff se alimenta,
desde os primeiros trabalhos no Berliner Ensemble da fase Brecht, em 1962, até
à s colaboraçõ es com Heiner Mü ller, que foi o seu melhor amigo. Continua a fazer
teatro para se lembrar dele ("Para um homem antigo como eu, é importante
manter o diá logo com um velho amigo") e para sobreviver ao escâ ndalo do
mundo contemporâ neo: "Se fosse tudo perfeito, nã o vejo por que razã o
continuaria a fazer teatro". Como nem tudo é perfeito, precisamos dos pesadelos
dele para sobreviver à experiência de ser europeu depois de duas guerras
mundiais, de uma Shoah, da bomba ató mica e do estalinismo. É um "tesouro
nacional vivo" do teatro europeu, como lhe chamou Bruno Tackels, da revista
"Mouvement", mas sente-se melhor no papel de besta negra (nã o se fixa em lado
nenhum desde 1985, à excepçã o dos 18 meses que passou no Théâ tre Vidy, de
Lausanne, entre 1989 e 1991, e dos dois anos em que co-dirigiu o Berliner
Ensemble, entre 1992 e 1993): "De tempos a tempos, sou obrigado a
institucionalizar-me, mas tenho tempo. Depois de mortos, acabamos todos na
instituiçã o".

https://elpais.com/diario/2007/10/28/cultura/1193522405_850215.html?
event=go&event_log=go&prod=REGCRARTCULT&o=cerrcult
TEATRO
Langhoff traz adaptação de Kafka ao Rio

SÉRGIO DE CARVALHO
especial para a Folha

Nã o fosse a estranha beleza do espetá culo "Île du Salut", o diretor teatral


Matthias Langhoff passaria quase despercebido no "Rio Cena Contemporâ nea".
Langhoff é um dos mais importantes diretores teatrais da atualidade. Dentre
aqueles que iniciaram seu trabalho a partir do contato com a obra do
dramaturgo alemã o Bertolt Brecht (1898-1956) é, quem sabe, o melhor.
Com 56 anos, nascido em Zurique (Suíça) e há dois anos naturalizado francês,
parece realizar sua obra teatral de acordo com aquela idéia brechtiana de que
devemos olhar o estrangeiro como se fosse conhecido e o homem conhecido
como se fosse estrangeiro.
Nã o é à toa seu interesse atual pelo escritor Franz Kafka. "Île du Salut" é uma
adaptaçã o livre do conto "Na Colô nia Penal", de um autor tcheco que escrevia em
alemã o. No centro do palco, em meio à luminosa cenografia de uma ilha tropical,
a má quina da morte. Tudo é estranho e habitual, violento e grotesco.
Dos encenadores políticos deste final de século, Langhoff é o de maior impacto
crítico e visual. Seu olhar é sempre concreto. É um materialista radical. Nesta
entrevista exclusiva à  Folha, ele defende um teatro de escâ ndalo e critica o atual
Berliner Ensemble, grupo fundado por Brecht, no qual realizou sua formaçã o.
Folha - Você é um diretor polêmico na França. Seus últimos espetáculos -
como "Filoctetes" (94) e "Ricardo 3º" (95)- despertaram indignação pelo fato
de utilizarem atores que não falavam bem o francês. Isso é deliberado?
Matthias Langhoff - O idioma francês é muito bonito, meló dico, mas tende a ser
prolixo e abstrato. Eu acredito que os estrangeiros que utilizam o francês tornam
a língua muito mais cheia de vida, mais real, mais concreta. O pensa mento
estrangeiro é muito mais concreto.
Folha - Além disso, você confronta um padrão da cultura teatral francesa, o
bem falar.
Langhoff - E eu trabalho no sentido de fazer parar esse bem falar. Na França,
quando você é ator, você tem de perder todo o seu sotaque natural. É
absolutamente proibido alguém falar de modo natural. E a variedade de sotaques
no país é muito mais rica do que a dessa língua literá ria. Mas essa nã o é a
principal resistência ao meu teatro.
Folha - E qual é?
Langhoff - É quanto ao fato de ele ser mais político e ter menos teoria e menos
construçõ es abstratas do que o normal da tradiçã o francesa. Tudo isso gera
confronto com o pú blico.
Folha - Mas esse confronto não é uma matéria-prima do seu trabalho?
Langhoff - Com certeza. Eu falo de um teatro com a funçã o de organizar o
escâ ndalo pú blico, no sentido de um verdadeiro pensamento de resistência
contra os há bitos existentes. O teatro me parece ser o lugar para organizar este
escâ ndalo.
Folha - Brecht voltou a Berlim de pois do exílio, em 1949. Ele veio para uma
montagem num teatro dirigido, curiosamente, pelo seu pai, o ator Wolfgang
Langhoff. Vo cê, apesar da pouca idade, tem lembranças desse período?
Langhoff - Eu me lembro muito bem. Talvez bem até demais. Foi a minha escola
de vida mais forte. Tudo o que eu penso hoje está liga do a esse momento, depois
da guerra. Digo isso sem nostalgia.
Tive que aprender sobre as rela çõ es entre as pessoas numa cidade destruída,
numa atmosfera de enorme violência. Sempre ligado à necessidade de construir
verdadeiramente um mundo novo. Com todas as contradiçõ es.
Folha - E quanto aos artistas da época?
Langhoff - Tenho lembranças bem precisas de gente como Brecht, Eisler. Gente
que voltava para vir se fechar numa grandiosa utopia. Trabalhavam como lou
cos. Todas as noites estavam jun tos discutindo como construir uma outra
Alemanha.
Folha - Você, após ter deixado o Berliner Ensemble, na década de 60, só
voltou em 92 para a "inten dência coletiva" do grupo. Por que esse colegiado
-com Heiner Müller, Peter Zadek e outros- não deu certo?
Langhoff - Para mim, nã o foi suportá vel encontrar o sistema teatral depois da
reunificaçã o. Pensei que Berlim fosse voltar a ser uma vila multicultural, mas era
ilusã o. A primeira reaçã o depois da queda do muro foi: "nó s somos alemã es
apenas entre nó s". Fiquei triste de deixar Heiner Mü ller, meu amigo, mas eu já
era estrangeiro demais. Nã o podia ficar ali.
Folha - Você chegou ao Brasil uma semana depois da passagem do Berliner
Ensemble. O que pensa do trabalho atual do grupo?
Langhoff - Eu poderia dizer, com todo o respeito, que o Berliner está totalmente
acabado. As pessoas que trabalham lá querem apenas fazer negó cios no mundo
do teatro.
Fizeram esse espetá culo com Heiner Mü ller -"Arturo Ui"- que mesmo tendo
alguns problemas é muito forte, onde Mü ller mostra um possível modo de se ler
Brecht.
Mas ele jamais pô s Brecht de lado. Ele continua com as idéias de Brecht. O
Berliner de Brecht -com toda a sua força e até com sua fraqueza- era um teatro
para o qual a idéia de transformaçã o do mundo era verdadeira. Como uma
pequena empresa capitalista, é ainda mais absurdo do que os outros.

Sonorités de la censure dans le Macbeth de Matthias Langhoff

Eva Bleibtreu
A gente sempre separa os sentidos — esse é o nosso olhar, esse é o nosso ouvido
— mas, na realidade, a divisã o é artificial. [O] texto é mais do que a palavra
falada. A falta de palavras também, o silêncio, ou o movimento pode ser o texto.
Mas isso também deve ser audível.
(Matthias Langhoff, extrato de sua entrevista com Marie-Madeleine Mervant-Roux,
“Sem ouvir não há texto e sem texto não há teatro”, Théâtre(s) en Bretagne , No. 20,
Rennes University Press, 2004 , pág. 13.)
[O arquivo do qual foi feito este estudo é constituído por um conjunto de
gravaçõ es audiovisuais de uma das apresentaçõ es pú blicas de Macbeth dirigida
por Matthias Langhoff, criada no Théâ tre national de Chaillot (sala principal) em
15 de fevereiro de 1990 e exibida até março 21 do mesmo ano.]

2. A aná lise assenta numa abordagem à performance através do som, tal como
me convidou o projeto É CHO, e centra-se no estudo da forma como o realizador
desenvolve um universo sonoro capaz de produzir um discurso dramá tico.
Veremos que é através de uma verdadeira estratificaçã o de sons de diferentes
naturezas (gravaçõ es diversas, mú sica tocada ao vivo, efeitos sonoros
voluntá rios e identificá veis, ruídos aparentemente inó cuos) que o realizador
consegue fazer o espectador sentir o que nã o pode ser dito.

A estética de Matthias Langhoff


3. A abordagem de uma performance por meios auditivos provou ser frutífera no
caso de Matthias Langhoff. Este certamente pensa suas criaçõ es acima de tudo
em seu aspecto sonoro. Ele atribui uma funçã o dramatú rgica importante tanto
aos elementos audíveis – aqueles que facilmente se considerará e perceberá
como espectador (como a mú sica) – quanto aos elementos que também sã o
perceptíveis, mas que sã o rapidamente esquecidos (como o som de nã o atores se
movendo no palco ou o ruído dos objetos que manuseiam). As segundas, que se
poderia considerar decorrentes de uma necessidade física e nã o de uma busca
criativa, sã o na realidade, em sua maioria, providas pela encenaçã o e incumbidas
de uma precisa funçã o dramatú rgica.

O arquivo estudado
Documentos (natureza, tipo de meio, localização)
4. O arquivo estudado provém da parte audiovisual do acervo do Théâ tre
nacional de Chaillot guardado no Arquivo Nacional (transferência 20160438). É
identificado pelo nú mero de chamada 20160438/78 e classificado na secçã o
“Temporada 1989-1990” (20160438/72-20160438/80) do diretó rio dedicado à
direçã o de Jérô me Savary.

5. A mídia analó gica original sã o três cassetes Betacam SP3 PAL Master I, II, III,
de 90 minutos cada. Trata-se de um conjunto de registros audiovisuais de uma
das apresentaçõ es pú blicas do espetá culo. Eles foram produzidos pela direçã o do
Théâ tre de Chaillot. A data nã o é especificada.
6. As cassetes foram digitalizadas pelo Théâ tre national de Chaillot. Disso
resultou 1 DVC DUB (184 minutos), depois, durante a campanha de digitalizaçã o
do INA, 5 DVDs (1ª parte (60', 41'); 1ª parte (60', 40') 2ª parte (66') e 5 digitais
arquivos correspondentes aos DVDs. Esses sã o os arquivos que consultamos
para nossa pesquisa. Os quatro primeiros contêm duas versõ es diferentes da
primeira parte do espetá culo (antes do intervalo): uma versã o produzida a partir
de uma ú nica câ mera, em plano está tico, com som mono, e uma versã o editada
em pó s-produçã o, filmada com vá rias câ meras e incluindo som estéreo.

O conteúdo do arquivo
7. As gravaçõ es começam seis segundos antes do início da performance
(ouvimos os espectadores conversando entre si, vemos alguns deles sentarem-
se) e terminam um minuto depois da performance (com aplausos, enquanto a
cortina cai). O intervalo nã o está incluído na gravaçã o.
8. O equilíbrio de cores, o brilho e os contrastes sã o padrã o e fornecem uma
imagem correta para o primeiro plano, mas difícil de ler para o segundo plano.
Um fenô meno devido principalmente ao jogo evolutivo da iluminaçã o, com á reas
de sombra e á reas claras.
(Para uma descrição aprofundada da encenação, ver ASLAN (Odette), “Macbeth”,
em Langhoff, textos reunidos e apresentados por Odette Aslan, Paris, CNRS
Éditions, coll. Artes Cênicas, série Pathways to Theatre Creation, vol. 19, 1994, p.
252-271.)
9. As gravaçõ es geralmente oferecem uma tomada geral do set, muitas vezes
visível no fundo do palco, tomada da sala, com algumas tomadas mostrando um
ou mais atores mais de perto.
10. A qualidade do arquivo é muito boa. O espetá culo foi gravado na íntegra.
Abordagem adotada para o estudo de som deste arquivo audiovisual
11. A aná lise ocorreu em vá rias etapas.
12. Uma primeira escuta apenas do som foi acompanhada por anotaçõ es na
forma de escritas, mas também diagramas e desenhos. Nesta fase, nã o houve
nenhuma manipulaçã o além da pausa da gravaçã o. Por isso, queríamos relatar
um primeiro levantamento dos elementos de á udio que nos chamaram a atençã o.
Uma tabela listando os diferentes critérios de descriçã o foi fornecida pelo
projeto ECHO e nos permitiu refinar a escuta (natureza dos sons, intensidade,
localizaçã o espacial dos sons ouvidos).
13. O tempo de escuta foi de cerca de seis horas para o primeiro trecho, que
durou 60 minutos (devido a paradas muito frequentes na gravaçã o para
anotaçõ es importantes) e cerca de três horas para os outros quatro trechos (os
trechos 3 e 4 foram ouvidos apenas parcialmente pois diferem pouco dos trechos
1 e 2 do ponto de vista sonoro; os trechos 2 e 5 foram ouvidos com anotaçõ es
simultâ neas na escuta e gravaçã o ininterrupta).
14. Procedeu-se entã o a uma segunda escuta com descoberta da componente
visual da captaçã o.
15. Por fim, seguiu-se a audiçã o repetida e aná lise de excertos precisos, cada um
com a duraçã o de 3 a 5 minutos, para os quais foram produzidas partituras que
permitiram enumerar as diferentes camadas de sons ouvidos num determinado
momento. A escrita dessas partituras foi improvisada, em grande parte inspirada
na escrita musical.
Observações da primeira audição
16. Os resultados do primeiro inquérito revelaram vá rios elementos. Antes de
mais, neste espectá culo há uma grande presença de elementos sonoros,
diegéticos e extra-diegéticos, com recurso a mú sica ao vivo (instrumentos como
o saxofone, os sinos, a flauta transversal), mú sica gravada (com sons que sã o
menos nítidas que as dos instrumentos ao vivo), efeitos sonoros gravados (sons
de metralhadoras voando a baixa altitude, campainha, telefone, vento, grilos) e
ruídos ou efeitos sonoros feitos ao vivo (batemos numa superfície de madeira
para obter o ruído produzido pela batida na porta do castelo).

17. Há também uma forte presença de passos dos atores. Isso nã o é contínuo.
Alguns movimentos muito ruidosos se destacam mais do que outros.
18. Há muitos ruídos repentinos no set (choques e impactos, objetos caindo,
portas batendo).
19. Como os ruídos no palco eram considerá veis, interessava-me a forma como
esses ruídos atuavam na compreensã o de uma cena e no discurso dramá tico em
geral.
20. Na gravaçã o inicial da primeira audiçã o, um motivo chamou-me a atençã o:
aquele que reconstituía as pulsaçõ es rítmicas ouvidas, traduzidas por um grupo
de três barras verticais mais ou menos espaçadas entre si. Esse motivo surgiu em
dois pontos do espetá culo.
21. Em primeiro lugar, ele aparece na cena do porteiro (Ato II, cena 3), quando
há uma batida na porta (o que está indicado nas indicaçõ es do texto de
Shakespeare). O rei Duncan acaba de ser morto e, ao amanhecer, os senhores
escoceses batem incansavelmente na porta do castelo de Macbeth, esperando
que o porteiro – bêbado – abra a porta para eles. Esta cena foi notavelmente
analisada por Thomas de Quincey em 1823 em um pequeno ensaio famoso
chamado “On the Knocking at the Gate in Macbeth”. Nesse ensaio, de Quincey
explica que esse som tem a funçã o dramá tica de trazer de volta todo o pavor do
assassinato. A direçã o de palco shakespeariana teria, portanto, a funçã o de gerar
um sentimento de pavor no espectador ao utilizar nã o uma ferramenta que
apelasse ao seu entendimento, mas uma ferramenta que apelasse à s suas
sensaçõ es.
22. O motivo das “barras verticais”, ou seja, dos golpes, é entã o retomado numa
segunda cena onde a presença destas já nã o é justificada pelo texto. Esta é a
primeira cena do Ato IV. É essa segunda cena que optamos por analisar
detalhadamente, pois os golpes nã o encontravam explicaçã o no texto e isso era
um viés significativo na encenaçã o.
23. Nesta primeira cena do Ato IV, Macbeth acaba de ascender ao trono e
Banquo, companheiro de Macbeth, se pergunta se este ú ltimo nã o matou ele
mesmo o rei Duncan para tomar seu título. O soliló quio de Banquo é entã o
interrompido pela entrada do casal Macbeth. Os dois homens dialogam de
maneira puramente convencional e entendemos que cada um mantém as
aparências frente ao outro.
Análise de um trecho da encenação pela escuta
24. O clipe sonoro a que nos referimos foi estudado a partir do segundo arquivo
digital denominado “TNC_1990_Macbeth_2.MP4” com duraçã o total de 40
minutos (variando de 3’52” a 4’58”).
25. O trecho abre com o som dos sinos da igreja evocando a coroaçã o de
Macbeth. O dispositivo de palco previa alto-falantes espalhados pela sala no lado
pú blico. O som da campainha da transmissã o banha, portanto, todo o espaço. É
bastante intenso; nã o tapa a voz dos atores mas interfere na escuta da fala do
ator Gilles Privat (intérprete de Banquo).
26. Ao som da campainha junta-se o som de batidas fortes e muito fortes em
grupos de três, que repetem o som das batidas à porta ouvidas durante a cena do
porteiro. Esses golpes sã o diegéticos, pois o personagem de Banquo os ouve e
fica constrangido com eles. À medida que os golpes se repetem, Gilles Privat
pronuncia suas falas acelerando e desacelerando o fluxo ou marcando paradas
no meio das frases, como que para antecipar a chegada dos pró ximos golpes e ser
ouvido apesar do ambiente sonoro hostil.
27. Na segunda parte do trecho, quando Banquo e Macbeth interagem entre si,
Gilles Privat e Olivier Perrier adotam entonaçõ es singulares. Olivier
Perrier/Macbeth deixa suas seçõ es de resposta suspensas e nã o abaixa a voz no
final da frase. Gilles Privat/Banquo entrega sua ú ltima linha em uma ú nica
respiraçã o, quase sem variaçõ es de entonaçã o e com um fluxo que distorce o
fraseado. A fala é como se fosse forçada de ambos os lados. O espectador conhece
entã o o fundo do pensamento de cada um dos dois protagonistas e sabe que se
trata de um discurso cordial apenas nas aparências. O trabalho de dicçã o dos
atores proporcionado pela encenaçã o traduz as questõ es subjacentes à cena.
28. Por fim, um ú ltimo detalhe me chamou a atençã o. Pouco antes de o casal
Macbeth entrar em cena e enquanto o personagem de Banquo está a priori
sozinho, dois ú ltimos golpes sã o dados e ficamos em suspense, em busca do
terceiro que viria completar o motivo terná rio já repetido vá rias vezes. Na
escuta, como o ouvido está acostumado a receber o motivo em três está gios,
quando falta o terceiro tempo, o ouvido continua a procurá -lo e acaba
encontrando-o em um som substituto semelhante. Esse terceiro golpe vindo para
fechar o padrã o é gerado pelo som de um objeto manipulado no palco. A
encenaçã o prevê que Olivier Perrier/Macbeth entre em cena carregando um
grande baú que deixa cair sobre uma cadeira, ao lado do jardim. O barulho
completa os dois golpes anteriores.
29. À escuta, o som dos golpes repetidos e o produzido pelo impacto do baú sã o
da mesma intensidade. Embora de naturezas diferentes, sã o apreciados pelo
ouvido ao mesmo nível.
30. Assim, é Macbeth que fecha o motivo sonoro. Por este gesto voluntá rio e
muito marcado de deixar cair a mala na cadeira, o ator (mas também a
personagem) emite um som semelhante ao das pancadas que até entã o
continuamente oprimiam a fala da personagem de Banquo. Essa opressã o é tanto
mais acentuada quanto esses golpes sã o uma verdadeira agressã o ao ouvido do
espectador. Sentimos fisicamente um choque ao ouvir esse som.
31. O estado emocional descrito por Thomas de Quincey em seu ensaio – o
estado emocional em que nos colocou a cena do porteiro (logo apó s o assassinato
do rei Duncan) – é aqui restaurado por este motivo sonoro das batidas na porta;
Matthias Langhoff reutiliza uma carga emocional muito específica. Nesta segunda
cena em que o padrã o sonoro nã o é justificado pela fá bula, o viés da encenaçã o
parece ser o de criar uma aproximaçã o com a cena anterior, explorando o
sentimento epidérmico e a memó ria auditiva do espectador.

32. Banquo, companheiro de batalha de Macbeth, expressa dú vidas sobre este


ú ltimo e suspeita dele do regicídio atribuído aos filhos do rei Duncan. As batidas
na porta, repetidas de forma fantasmagó rica, respondem à s tentativas do
personagem de falar a verdade – a sua verdade – sobre o rei Macbeth. Ao colocar
suas dú vidas em palavras, o personagem de Banquo é oprimido pelo som de
sinos e batidas. Os elementos sonoros parecem interagir com o personagem e
prolongar através do som a opressã o política que encontrará sua expressã o
má xima no assassinato do personagem nas cenas seguintes.
33. Aqui, a encenaçã o deixa-nos ouvir um prelú dio mortuá rio através da
utilizaçã o de diferentes elementos sonoros carregados de significado e efeitos.
Sã o verdadeiros estímulos nervosos que já na época despertavam no espectador
que era do Quincey, um pavor que ele mesmo se deu ao trabalho de explicar.
Conclusão
34. A estética de Matthias Langhoff é caracterizada pelo desejo de produzir,
utilizando todos os componentes da encenaçã o, um contraponto ao texto, de
forma a revelar todas as suas sutilezas e possibilidades de interpretaçã o.
35. No contexto da cena estudada, os diferentes sons que se entrelaçam com as
falas dos atores atuam como verdadeiros parceiros do jogo e sã o vetores de
sentimentos emocionais específicos. Ao usar o mesmo padrã o duas vezes,
Langhoff tece uma ligaçã o entre duas cenas distintas, oferecendo novas chaves
para a compreensã o da peça. Além disso, sendo o som antes de tudo uma
vibraçã o, o dos golpes opera uma agressã o auditiva e transmite ao espectador
um choque físico concreto. O soliló quio de Banquo é acompanhado por esta
trilha sonora que faz a opressã o ser ouvida e sentida de diversas formas e
simultaneamente. É por meio de todos esses elementos sonoros que a censura de
Macbeth se enfurece.
36. Tomar a dimensã o sonora do arquivo como objeto de estudo em si e fazer da
trilha sonora do espetá culo toda a sua importâ ncia na leitura dramatú rgica da
obra revelou sutilezas da encenaçã o tanto mais interessantes como Matthias
Langhoff trabalhar seus espetá culos com a ideia de que um som vale tanto
quanto uma palavra ou um gesto.
37. Pela assimilaçã o simultâ nea da informaçã o dada pelo texto e dessa expressã o
sonora do nã o-dito, Langhoff produz um discurso dramatú rgico que permite ao
espectador sentir a trama e assimilá -la tanto pela compreensã o ló gica quanto
pela experiência.

APÊNDICES
Outros arquivos disponíveis sobre a apresentaçã o do espetá culo no Théâ tre
national de Chaillot Nesta mostra, há outros arquivos, alguns disponíveis para
consulta, como os cem slides coloridos feitos pelo fotó grafo Daniel Cande
durante o ensaio geral em 1990. As fotografias podem ser consultadas em versã o
digital no site Gallica-BNF8 e guardadas no Departamento de Artes Cênicas (site
Richelieu). Em particular, poderemos apreciar o trabalho de cenografia e os
figurinos com mais detalhes, com reproduçã o de cores precisa. Também está
disponível o cartaz do programa da mostra, cujas duas có pias se encontram no
Arquivo Nacional. Entre os arquivos livremente comunicá veis, descobrem-se
nomeadamente o orçamento de produçã o, a conduta da gestã o, a revista de
imprensa e um conjunto de documentos administrativos.
Partitura sonora produzida para a análise do trecho estudado
As cores indicam a natureza dos sons (azul para o som de um sino, laranja para um
golpe forte dado em uma superfície de madeira). As indicações dos segundos
sinalizam a chegada de um novo evento sonoro. Essas intervenções podem ser de
diversas naturezas: a entrada de um personagem (passos, nova voz, indicação no
texto), movimento no palco (passos muito marcados, variação na localização
espacial da voz), uma sequência musical (ao vivo ou transmitida música), uma
mudança de cena marcada por uma pausa audível (passagem de um ambiente
sonoro para outro), uma linha particularmente elaborada do ponto de vista vocal
(variação no fluxo, entonação e ritmo da dicção) ou mesmo um notável silêncio (há
pouco neste espetáculo). A intensidade vocal dos atores foi restaurada por um
desenho de linha. O ritmo da fala foi restaurado por agrupamentos de traços
correspondentes às diferentes sílabas do texto.

Edipo Tirano

Díptico com os 11 alunos da 70ª promoção da Ensatt e os 14 atores afegãos do Aftaab


Theatre. Criado para o 70º aniversário da ENSATT, em parceria com o Festival
Villeneuve en Scène, o ISTS, o Théâtre de la Renaissance em Oullins e o Théâtre du
Soleil.

Em 2011, por ocasião do 70º aniversário do Ensatt, confiamos o último dos workshops-
shows do ENSATT a Matthias LANGHOFF, uma importante figura do teatro europeu que
também celebra o seu 70º aniversário.

O projeto que nos propôs consiste em duas vias de dupla criação:

- espetáculo repetido e encenado em Lyon e depois retomado no âmbito do programa


"Escola no Festival" do Festival d'Avignon, em ligação com o Festival "Villeneuve en
scène" de Villeneuve lez Avignon, dedicado aos sem-abrigo.

- um espetáculo em duas versões, francesa e afegã: interpretado pelos 11 atores do 3º


ano do Ensatt, claro, mas também interpretado alternadamente, e na língua dari com
legendas, pela trupe afegã do teatro Aftaab, um empresa formada por Ariane
MNOUCHKHINE durante sua residência em Cabul e cujos 14 membros são alunos da
Ensatt durante o ano letivo 2010/2011.

Um díptico, portanto, franco-afegão, entre Lyon e a Grande Avignon. Um díptico em


torno da figura central de Édipo e uma viagem pelas línguas grega, alemã, afegã e
francesa.

2013

A cena é em Tebas. O antigo rei está morto, assassinado, a cidade está nas garras de
um terrível mal que assola as populações. Édipo lidera a investigação. A ação se passa
na frente russa, o coro grego é o Exército Vermelho. Os soldados cansados saem do
cinema "L'aiglon" como tantos na União Soviética, a rainha Jocasta é uma rainha
rechonchuda do Oriente.

E depois há as crianças. Um deles nos olha e seus olhos nos questionam: por
quê? Langhoff multiplica os anacronismos ao longo desta festa negra e também assina,
como sempre, uma cenografia de um poder violento que é um só corpo com a atuação
aguçada dos muitos atores russos da excelente trupe do Teatro da Juventude de
Saratov, cidade do Volga, famoso por sua vida teatral.
O Saratov Youth Theatre, também chamado de TUZ (pronuncia-se "Tiouz"), fundado em
1918, em plena revolução russa, foi durante muito tempo dirigido por Evgueni Kiselev
(1943-1996) que lhe deu as suas cartas de nobreza. Quando falamos de teatro juvenil,
na verdade queremos dizer teatro da nova geração, de jovens atores profissionais de
todas as idades. Ambicioso para desenvolver intercâmbios com países estrangeiros e
em particular a França. É nesse sentido que os diretores do TUZ (Yuri Osherov e Valéry
Raykov) decidiram convidar Matthias Langhoff. Nascia o projeto tirano Édipo , às
margens do Volga!

A MISSÃO

Kingston, Jamaica. Nos últimos anos da Revolução Francesa, três emissários do


governo – Galloudec, Sasportas e Debuisson – desembarcam com a missão de
organizar uma revolta e contribuir para a abolição da escravatura na ilha. Notícias
surpreendentes frustram seus planos: na França, Napoleão é coroado imperador. O
governo patrocinador é varrido. “Era nossa missão, só tem gosto de papel. » Que
sentido dar ao seu trabalho quando o primeiro impulso desaparece? Em 1989, em
Avignon, Matthias Langhoff criou esta MissãoRomance kafkiano escrito por um de seus
autores favoritos, Heiner Müller. Trinta anos depois, após ter levado sua fria lucidez e
seu trágico carnaval aos quatro cantos do mundo, o imenso diretor alemão se
reencontra com este texto. Convidado em 2008 para Santa Cruz, na Bolívia, conheceu o
fascinante trabalho da trupe Amassunu, que saiu da primeira escola profissional de
teatro do país. Com eles, apesar dos obstáculos, retoma a peça de Heiner Müller. Uma
nova missão começa.

Relatório Langhoff 
Em 1987, Matthias Langhoff, outrora esperado para dirigir a Comédie de Genève,
colocou no papel o que esperava de um teatro de seu tempo. Essas reflexões
constituem o famoso Relatório Langhoff . Marie-José Malis propõe a adaptação. Como
muitos diretores, foi por meio desse texto que ela conheceu a Comédie de
Genève. Lugar sonhado, redesenhado, a Comédia torna-se o emblema de todos os
teatros e o suporte de uma meditação sobre o trabalho, a esperança, a vida que ali se
leva. O texto de Langhoff, polémico, ideal, terá sido um dos marcos da existência deste
teatro, uma provocação amorosa, para que, refundado, se encontre ali ao mais alto
nível. Era hora de voltar!

Muñequita ou jurar morrer com glória é fruto de um encontro e de uma ansiedade .

O encontro aconteceu na cidade de Buenos Aires onde se conheceram Marcial Di


Fonzo Bo e o autor destas poucas linhas, escritas sem muita pressa mas com profunda
alegria. Marcial se propôs a dar forma ao seu novo projeto. Fê-lo, na vasta zona desta
cidade, em encontros com autores que dedicam a maior parte do tempo a escrever
peças de desfecho incerto. Eu era um deles. E o encontro foi como um encontro entre
dois velhos amigos. Humor, algumas refeições, a temperatura dos nossos cafés, piadas
e outras piscadelas - que só dois "porteños", os habitantes de Buenos Aires, podem
perceber - tudo isso foi para nós a prova de que este encontro não tinha sido inútil e
menos ainda por acaso.

Preocupar acorda para a obsessão da Argentina por seus mortos. Toda sociedade tenta
dialogar com seus mortos. É por meio dessa operação que vem da prática do médium
que podemos entrar no passado. O anjo da História atravessa o território do presente,
vira as costas ao passado, o seu corpo avança e o seu olhar aloja-se sobre os
acontecimentos passados. O caminhar do anjo é etéreo: não pousa sobre as coisas,
apenas sobrevoa. Mas aqui, neste país, na Argentina, o anjo parece ter “arrasado” a
História e os corpos que deixa pelo caminho testemunham a violência exercida desde
que esta nação procurou existir como tal. É, portanto, a relação complexa e violenta que
a Argentina mantém com os cadáveres (ou a ausência de corpos) que despertou em
mim essa ansiedade que poderia ser traduzida em algumas imagens e poucas
palavras. As mesmas pessoas que hoje sobrevoam - ou, talvez, "raspam" - esta sala.

Alejandro Tantanian

Quartett

"Buscamos a falha no desenrolar, o outro no retorno do seu semelhante, a gagueira no


silêncio do texto, o buraco na eternidade, a falha pode ser libertadora."
Heiner Müller

Quartett é, junto com Hamlet Machine , a peça mais encenada de Heiner Müller: um


clássico do repertório do teatro europeu moderno. Uma peça virtuosa para dois atores
de renome, uma peça cuja receita está ligada à fama dos atores. Dez anos após a morte
de Müller, seus textos morrem em uma reputação consensual. Alimentam as rodas de
oração dos acadêmicos e estimulam a falta de humor de algumas conferências sobre
literatura. Como a maioria dos textos clássicos, o teatro os celebra regularmente na mais
perfeita ignorância; sempre atento a novos efeitos que já expiraram, preferindo
envelhecer o texto para torná-lo soporífero.
O Quartetode Müller vale a pena redescobrir, é selvagem, jovem e destrutivo,
cruelmente cômico e perturbador no mais alto grau. Ele se encaixa em todos os
aspectos com a continuação de Mademoiselle Julie: dois textos que expõem
descaradamente a estrutura das relações entre os sexos e que tendem a destruir
ilusões. As figuras de Müller, como as de Strindberg, são fragmentárias, ou melhor,
como diz Strindberg, compostas de vários fragmentos. A sua intimidade: o seu amor e a
sua vida sexual transformam-se numa guerra civil, num campo de batalha. As duas
peças põem em jogo um teatro de olhares, de palavras, de contactos. O drama é
projetado na pele dos parceiros. O desejo determina as regras do jogo.Madame de
Merteuil e Valmont são lutadores, como Mademoiselle Julie e seu criado Jean. E
eles' atos de poder no amor. Uma frase deA Fenomenologia do Espírito de Hegel
poderia ser a indicação cênica desses jogos: “A relação entre as duas autoconsciências
é tão determinada que, por combate até a morte, elas fazem uma da outra, individual e
reciprocamente, a prova de seu valor. [Por autoconsciência, devemos entender um
sujeito feminino e um sujeito masculino, conscientes de estar em oposição como mulher
e como homem. ML] Devem liderar esta luta, para elevar a certeza de existir para si a
esta verdade de existir para o outro e para si. Esses textos têm algo irremediavelmente
perverso sobre eles, como toda verdade.
Eles quebram o brinquedo dos outros. Deles emanam impulsos negativos que são
necessários. Eles ajudam o teatro a voltar ao seu lugar político. “Procuramos a falha no
desenrolar, o outro no retorno do seu semelhante, a gagueira no silêncio do texto, o
buraco na eternidade, a falha pode ser libertadora. » (Heiner Müller)
Quartett não é um jogo fora do espaço e do tempo. O tempo e o espaço são definidos
com precisão “Uma sala de estar antes da Revolução Francesa / Um bunker depois da
Terceira Guerra Mundial”. Trata-se, portanto, de lugares privados situados num espaço
temporal definido pelo desenrolar de grandes acontecimentos históricos. Esse espaço e
esse tempo pertencem ao texto e à atuação.Quarteto não faz parte do movimento geral
de despedida da história.vidas da história. Do afastamento da história, como luta contra
a passagem do tempo.
Na obra-prima de Oshima, Empire of the Senses , há uma curta sequência que não
desenvolve o combate sexual dos dois protagonistas. Na rua, o homem passa de
cabeça baixa e com cara de nojo diante de crianças que torcem por uma tropa de
soldados em marcha.
Todas as janelas de todas as casas são enfeitadas com bandeiras japonesas. Sem essa
cena, o filme ficaria reduzido a uma belíssima obra pornográfica.
O projeto Quartett foi planejado em três etapas. Participam: os atores Muriel Mayette e
François Chattot, o decorador e técnico de iluminação teatral Yves Bernard,
A primeira fase durou quatro meses, de 15 de janeiro a 15 de maio. Em uma sala de
ensaios que alugamos, nos encontramos periodicamente para investigar e analisar como
o texto entra em jogo, como uma oficina criativa. Convidamos artistas, estudantes e
cientistas da região para participar do trabalho. Esses convites não foram planejados,
nasceram dia a dia das necessidades e curiosidades despertadas pela
pesquisa. Paralelamente, desenvolveu-se a ideia de uma possível decoração. Também
foi construída uma videomontagem: um Quartett-comentárioque lança luz sobre a luta
dos sexos por meio de imagens, motor e refúgio na história; o desejo de mudar de
sexo; estupro e violência; o masturbador como mensageiro da paz… Esta primeira etapa
terminou com a apresentação, em maio, a uma plateia de profissionais convidados, do
esboço de um espetáculo.
A segunda etapa apresenta o espetáculo (ação, filme, cenário, figurino e luz) durante
cinco apresentações em Paris no Festival d'Automne. O teatro do Conservatório, onde
Muriel Mayette ensina, é um lugar ideal. As apresentações serão públicas e
gratuitas. Eles oferecerão aos programadores franceses ou estrangeiros a oportunidade
de descobrir este trabalho.
A terceira fase, a exploração do espetáculo, pode se estender por várias temporadas. A
cenografia será pensada a pensar na mobilidade, nomeadamente na leveza no
transporte e na facilidade de montagem. Um dos principais interesses é encontrar na
França e fora feiras e empresas que atuam nessa dinâmica. Numa ideia de troca e
parceria, esperamos que a Compagnie Rumpelpumpel, sendo ela própria responsável
pelo seu funcionamento, possa ocasionalmente investir os seus lucros noutras
produções teatrais.

Matthias Langhoff

Descrição de Quartet

1.- Demasiados espelhos. Perto do final, Madame de Merteuil exibe uma panó plia
de espelhos diante de Valmont para que ele "morra no plural". Também
Langhoff, em Valle-Inclá n, multiplica as imagens de Quartett, as pontes, as
associaçõ es laterais. Demasiado em cima: a eterna telinha moderna que vomita
uma torrente redundante e/ou alucinada. Popeye e Betty Boop, Marlene, as
ruas estasiadasda RDA, Marlene, os colaboradores de cabeça raspada para quem
Brassens cantava. Imagens que distraem, que cansam, que borram os espelhos
"abaixo". Abaixo está um crepú sculo americano pintado em madeira, uma van
encalhada no deserto de Mojave (digamos) e um tú mulo aberto. À direita, restos
de um camarote igualmente crepuscular, com cortinas e assentos roxos. Muriel
Mayette é Merteuil, com a dicçã o sublime e verdadeira de uma Madeleine Renaud
sem-abrigo. Em seu primeiro monó logo - "é a minha pele que lembra" - ela
poderia ser Winnie de Happy Days. Valmont pode ser um cadá ver ou um
fantasma. A princípio ouvimos apenas a voz de François Chattot, gravada, como
um eco que se desvanece.

Quantas vezes já vi o trabalho de Mü ller? Seis, dez, doze? A ú ltima, de Bob


Wilson, no Odéon, com uma Isabelle Huppert imensurá vel, mas talvez seja na de
Langhoff onde o texto me chegou mais claro, menos uivado, gargarejo ou
desconstruído, como queiram chamar. Com Quartett sempre acontece a mesma
coisa: fico fascinado com a primeira parte, os monó logos de ouro, ouro e merda,
quando os dois sã o "as está tuas de nossos desejos em decomposiçã o", e fico
indescritivelmente entediado quando o papel- começa a peça carrossel, sua
condenaçã o circular, seu huis clos, sua ú nica forma de matar o tempo no
inferno. Langhoff pisca para Strindberg e sua produçã o mítica de Mademoiselle
Julie:la Merteuil (agora com o sarcasmo silenciado de Norma Aleandro) lê  Le
Monde Diplomatiqueem uma poltrona, com os ó culos e o charuto de Mü ller, e
Chattot, um Jean muito elegante, prepara o jantar no tú mulo. Merteuil repreende
Mademoiselle Volanges: uma peruca, um vestido vazio no chã o. A telinha fica
muito pesada: um tigre devora uma zebra, e somos atingidos pela ó pera filmada
(Verdi a todo vapor), tanto que quase cobre as palavras, obra da soberba dupla
de atores. Uma salva de palmas, aliá s, pela maravilhosa traduçã o das legendas, de
Coto Adá nez, ausente do programa. Penú ltima cena memorá vel: Valmont, de
cartola e smoking, Bernard Frank disfarçado de Cavaleiro da Rosa, seduz o
invisível Tourvel no camarote. Depois de um longo aceno de cabeça, tive a sorte
de ver Merteuil/Mayette desdobrando os espelhos antes de servir o veneno
imaginá rio. Como dizem na Comèdie:Bem joue, mais...

Sobre Heiner Müller/ Quarttet

Responder. Ele era meu melhor amigo. Trabalhamos muito juntos.

P. Você nã o teve problemas em viver e trabalhar na Alemanha comunista e ir


para o exterior?

R. Nunca deixei a RDA como refugiado político. Quando saí já estava a trabalhar


no estrangeiro e quando percebi que por questõ es políticas nã o era possível
continuar a viver lá , concordaram em dar-me um visto permanente para que eu
pudesse trabalhar no estrangeiro.

P. Você nã o teve nenhum problema?

R. Nã o. Era uma situaçã o que nã o era bem vista, mas as autoridades da RDA nã o
estavam interessadas em criar mais um má rtir.

P. Você manteve suas relaçõ es com os intelectuais da RDA?

R. Com Mü ller, claro, e com outros amigos. Alguns me viam como um traidor.

P. Como nasceu Quartett?

R. Mü ller recebeu uma reinterpretaçã o de Dangerous Liaisons. Ele adotou o tema


na tradiçã o de Shakespeare, que usava todos os tipos de histó rias para escrever
suas peças. Fiquei surpreso com as referências à sua vida privada e
autobiográ fica.

P. Qual é a principal diferença entre a versã o original e a de Mü ller?

R. O original é uma obra moralista que inclui uma grande crítica à decadência,
aos valores morais da aristocracia da época, tem que ser lida no contexto da
Revoluçã o Francesa. Para Mü ller, os personagens representam algo totalmente
diferente. Eles ainda sã o dois monstros, mas como qualquer um de nó s poderia
ser; ou seja, dois personagens dispostos a ir até as ú ltimas consequências no
combate entre os sexos para encontrar um fundo de verdade. O olhar dele é
muito mais freudiano, mais moderno, e nã o é ideoló gico, nã o tem crítica social.

Borges

Existem encontros incríveis, mas não tão insignificantes assim. O excesso latino de
Rodrigo García teve que enfrentar a grandeza barroca de Matthias Langhoff. A
ligação ? O ator. Desde que conheceu “seu” autor, Marcial Di Fonzo Bo, um dos mais
talentosos de sua geração, dedicou-se de corpo e alma a isso. Para tornar a família
perfeita, ele convidou seu pai teatral, o mais louco e proeminente diretor alemão,
Matthias Langhoff. Sem dúvida, é uma bomba que nasce dessa união. Borges é um
monólogo íntimo de Rodrigo García. Ele fala de seu amor pelo grande poeta argentino,
Jorge Luis Borges. Fala também da vida na Argentina e da necessária ida para a
Espanha. Ele diz e desconstrói: toda estátua deve cair de seu pedestal. Você tem que
matar o pai, profanar a figura mítica para redescobrir o humano, também a si
mesmo. Teatro de urgência, política e arte, mas também teatro de combate, a escrita de
Rodrigo García é chocante. Mas, como diria Nabokov em sua Lolita: "O epíteto
Chocante é apenas sinônimo de incomum, qualquer obra-prima implica de fato uma
criação original cuja própria natureza sempre acarreta um efeito de surpresa mais ou
menos violento".

Apollo Cinema
Matthias Langhoff co-escreveu Cinéma Apollo com Michel Deutsch , uma sequência
vagamente baseada no romance Le Mépris de Alberto Moravia . Uma forma de o
realizador traçar um paralelo entre a condição social e a relação amorosa, e explorar a
profunda intimidade de um homem abandonado. Uma história moderna e trágica no
foyer de um cinema, na hora de um filme...
Esta é a última sessão no cinema Apollo. No foyer, ouvimos a trilha sonora do filme
vinda da sala de forma intermitente. Há pôsteres de filmes e fotos de estrelas nas
paredes. Uma jovem, usando fones de ouvido, senta-se atrás do bar e de uma máquina
de pipoca. Um homem – possivelmente o diretor ou roteirista do filme – sai da sala e
pede uma cerveja à moça do bar. A hora de um filme, o homem conta sua história. Ele
conta como perdeu a mulher que amava, conta o cinema, o amor, o amor à venda,
Homero, a pornografia, a solidão, o desprezo, a traição e a melancolia dos cinquenta
anos... Recuperando o amor e o orgulho de sua esposa , aqui estão as duas obsessões
que habitam Riccardo.
O objetivo desta história é contar como, enquanto eu continuei a amá-la e não julgá-la,
Emilia, ao contrário, descobriu ou pensou ter descoberto alguns dos meus defeitos, me
julgou e, como resultado, deixou de me amar. . Estas são as linhas que abrem Le Mépris
de Moravia, então adaptado ao cinema por Jean-Luc Godard. O romance de Moravia e a
tragédia íntima desse homem imediatamente atraíram Matthias Langhoff. Mas o
encenador gosta de trabalhar com risco: “Não consigo imaginar um teatro que não dê
problema, que não abale, que não se comprometa. Venho de uma geração que estava
imersa nisso e não tinha medo disso. O escândalo do mundo é problema meu e é no
palco que posso transportá-lo para esmagá-lo, para examiná-lo. O teatro só existe no
momento: não há nada antes, nada depois. »

Carta de 23 de abril de Matthias Langhoff a Nicolas Royer, diretor do


Espace des Arts, Scène nationale, Chalon-sur-Saône

…Há quatro semanas, sozinho em minha casa, penso naquilo que me faz falta e
no porquê. De modo estranho, apesar de nã o ir lá quase nunca, penso no parque
Buttes-Chaumont que fica no meu bairro e está agora fechado ao pú blico. Por que
ele me faz falta se nã o o frequento por assim dizer, jamais? Ele me faz falta
porque sinto que ele faz parte da minha vida e que nã o posso imaginar viver aqui
no 19o distrito de Paris sem esse parque. Meu entorno sem ele seria uma espécie
de prisã o ao ar livre. Um parque é um lugar ideal de encontro com a natureza,
com outros seres humanos e cã es. Nã o se está só em um parque, mas ele também
nã o é um lugar de grandes aglomeraçõ es. As pessoas passeiam, leem um livro,
fazem jogging ou respiram o perfume de uma flor. Pode-se atravessá -lo
rapidamente porque é um atalho. Há á reas de jogo para as crianças, pode-se
olhá -las jogarem, pode-se também distanciar-se delas porque se deseja ficar
tranquilo. Ficamos irritados assim que uma pessoa faz baru- lho. Temos
pensamentos límpidos e pensamentos sombrios. Nã o temos necessi- dade de
massas de pessoas que vivem a mesma experiência de parque que nó s. Nele se
pode fazer a experiência das mais variadas relaçõ es com a natureza, com a vida e
consigo mesmo. Pergunta-se por que se deu tal forma à natureza, à vida e a si
mesmo. Perguntamos por que se deu tal forma à natureza, porque ela nã o cresce
como ela quer. Se tivermos sorte, o parque pode despertar o desejo de floresta,
dos grandes espaços e do mar. A visita ao parque é gratuita, mas manter o
parque em bom estado devora muito trabalho e dinheiro. E isso nã o incomoda
ninguém, porque um parque – é evidente, sem fazer qualquer cá lculo de custo e
benefício – faz parte de nossa vida, de nossa riqueza e nã o se pode imaginar
deixar de tê-lo. E nã o é verdade que ele nã o incomoda ninguém. Os refugiados
que vêm para cá para escapar à miséria e à lama e sã o proi- bidos de construir
um abrigo no parque, isso os incomoda. Exatamente, é o nosso parque e tenho
vergonha desse “nosso parque”. Mas apesar de tudo eu sonho com um teatro que
pertenceria à vida como um parque. Um teatro do qual os que procuram refú gio
teriam também direito de me expulsar se nã o lhes oferecessem nada de melhor.

…Sei que a ú nica coisa que escuto de meus mestres, hoje mortos, aqueles de
quem sempre segui os conselhos é: “Nó s fizemos o melhor que pudemos” ou “Se
quiser saber mais, junte-se a nó s”. Mais do que seguir esse conselho bem
intencionado, prefiro repensar na tarefa à qual estavam vinculados e que eles
pediram que fosse continuada. Brecht formulou essa missã o em seu libreto de
ó pera A decisão: “Transforme o mundo, ele tem necessidade disso”. Minha carta
concerne esta exigência de base. Quando sou obrigado a olhar na televisã o os
acontecimentos do mundo dominado pelos ví- rus, a primeira coisa que ouço é a
volta possível em breve à nossa vida de antes. Esse discurso é surdo e cego.
Depois de termos por muito tempo recusado ver e termos evitado as
consequências anunciadas da destruiçã o do meio ambiente, pensa-se agora em
vencer essa pandemia para que tudo continue como antes. Diz-se que tivemos
cada vez mais epidemias virais ao longo das ú ltimas déca- das, o que levou à
epidemia do coronavírus. Pode-se prever que a luta contra a Covid-19 prepara o
terreno para a apariçã o de um pró ximo vírus mais terrível ainda. Destruiçã o do
meio ambiente, pandemia, fome e miséria, guerras e sub- missã o ao dogma do
enriquecimento formam um conjunto que se nutre intrinse- camente até chegar
a uma catá strofe final. Essa catá strofe, que já se aproxima a grande velocidade é
visível no aspecto grotesco de um imbecil, feio, com uma patologia identificá vel
que, em plena pandemia, retira da Organizaçã o Mundial da Saú de US$ 400
milhõ es de contribuiçã o americana e olha sem fazer nada um mundo doente com
um ar enojado, mas inativo. Estou convencido de que apenas uma mudança
radical de nosso modo de vida pode nos salvar. Nesse contexto de morte, a arte
deve manter vivo o sonho de um mundo de justiça. É disso que quero falar na
minha carta, e é para esse sonho, meus amigos, que espero sua ajuda. É nosso
dever nã o permitir um “tarde demais”. É tempo também de reler “O teatro e a
peste”, de Artaud.

(Traduçã o de Maria Lucia de Souza Barros Pupo)

Revista sala preta | Vol. 20 | n. 1 | 2020

Quando a histó ria cíclica nã o se repete...


Jamaica 1794 Alemanha 1979 Bolívia 1987 França 1989 França e Bolívia 2017 .
Todos esses estratos espaço-temporais sã o trazidos de volta ao palco e
sobrepostos na remontagem de Matthias Langhoff da peça de Heiner Mü ller, The
Mission. Originalmente escrito em 1979, ele já o havia encenado para a
celebraçã o do bicentená rio da Revoluçã o Francesa em Avignon. Retoma aqui
com uma trupe boliviana da Escola Nacional de Teatro da Bolívia. A histó ria se
passa na Jamaica, onde emissá rios da Convençã o Francesa sã o enviados para
fomentar uma conspiraçã o contra os britâ nicos e proclamar a aboliçã o da
escravatura.
Como sempre, a obra de Langhoff é, portanto, uma obra de sobreposiçã o, de
superabundâ ncia. Multiplicam-se as camadas de leitura pautadas em referências
culturais e histó ricas de vá rios enquadramentos espaço-temporais, ao ponto de
termos de distribuir ao espectador à entrada da sala uma nota de intençã o
deliberadamente didá ctica e educativa que dá as datas-chave de cada dos
elementos da encenaçã o e ainda uma breve (portanto orientada) cronologia da
histó ria da Bolívia. O alcance social e político da encenaçã o é, portanto,
sublinhado por esta dimensã o educativa de um teatro que deve ser ú til à
sociedade e instruir o seu pú blico.
Essa leitura rica e muito histó rica da peça de Mü ller permite traçar paralelos
entre diferentes situaçõ es: porque a histó ria só interessa se nos permite tirar
liçõ es para o presente, nã o condenar as saídas de caminhos hipotéticos, nem cair
em um pessimismo fatalismo, mas, pelo contrá rio, para evitar as armadilhas e
ciladas que à s vezes nos sã o preparadas.
O teatro, pensa Langhoff, é, portanto, eminentemente político e engajado, objeto
e meio de luta pela libertaçã o de uma classe oprimida, seja ela qual for (escravos
da Jamaica, terceiro estado da França, comunas parisienses, alemã es do Oriente,
bolivianos camponeses e operá rios...). De onde um convite final à comunhã o, ao
banquete que reú ne a tribo e permite à equipa artística partilhar com o seu
pú blico em torno de uma sopa, abrir um debate e, quem sabe, lançar um
movimento que pode sair da sala e fazer parte do mundo contemporâ neo.

O pró prio quadro narrativo é perturbado, misturando diagramas de dramaturgia


de diferentes horizontes, borrando a cronologia: a peça, em sua pró pria escrita,
recusa a simplicidade de uma leitura maniqueísta das coisas. Os três
personagens se deparam com um impasse, quando suas tentativas de revolta
fracassam e eles descobrem que a missã o foi cancelada, pois os líderes que os
confiaram foram substituídos por Napoleã o, mas eles nã o têm uma reaçã o
simples e ú nica: três caminhos diferentes se abrem para eles, enforcamento,
traiçã o ou gangrena, e o autor nã o julga os mecanismos humanos e sensíveis que
os empurram para lá .
Ao mesmo tempo, o palco é invadido por uma multiplicidade de suportes e
elementos cênicos (vídeo, texto projetado, legendas, cenas silenciosas, cenas de
teatro, etc.), afogando a atençã o consciente do espectador e obrigando-o a se
soltar, a deixar-se afundar pouco a pouco numa forma de aceitaçã o deste
transbordar. Em frente, aliá s, os pró prios atores devem concordar em se soltar,
em escorregar (literalmente!) à s vezes em um espaço cénico concebido como
uma espessa má quina de brincar, mobiliado com alçapõ es e roldanas, que muitas
vezes perturba e embaraça os atores que dele fazem parte: palco muito inclinado,
2 planos sucessivos, mú sicos apertados, atores com mudanças muito rá pidas,
maquinaria do cená rio à vista...
Esta recusa da facilidade traça assim um fio condutor desta encenaçã o densa e
intensa, da qual o espectador sai consciente de nã o ter seguramente apreendido
todas as alusõ es, todas as leituras e apreendido todos os motivos, mas também
de ter compreendido que acaba de presenciar uma grande encenaçã o de um
grande texto.
Louise Rulh

Langhoff não renuncia

Três emissá rios da Repú blica de 1792 devem provocar uma revolta de escravos
na Jamaica, entã o sob o jugo da monarquia inglesa. Galloudec se apresenta como
um camponês que odeia 89 da Bretanha, Sasportas, como um escravo fugindo da
Revoluçã o Negra do Haiti para permanecer escravo, Debuisson, como filho de
proprietá rios de escravos. As má scaras grudarã o na pele ou cairã o. Enquanto
isso, Bonaparte toma o poder. Devemos continuar a missã o?

A peça de Mü ller, publicada em 1979, começa pelo final: Galloudec morrendo,

Sasportas enforcado, Debuisson vivo. Se o que se segue é uma anamnese, o

subtítulo ‒ “Memó ria de uma revoluçã o” ‒ é parcialmente enganoso. Uma

memó ria oculta de que o passado também foi um presente. Aqui, nã o se trata de

enterrar o passado uma segunda vez, mas de revivê-lo. “Os mortos lutarã o

quando os vivos já nã o puderem”, anuncia Sasportas perante a demissã o de

Debuisson. Nã o é tã o fá cil livrar-se do espectro revolucioná rio que assombra a

Europa e o mundo oprimido. Ele tem uma vida difícil. A melancolia de Mü ller está

prenhe de uma raiva política que irriga a encenaçã o de Langhoff em seus

melhores momentos.
A necessidade a que este espectá culo é constrangido e nos constrange, na sua

mestria e na sua pouca falta de jeito, é produzida por uma montagem de

elementos heterogéneos, desde a sua génese: o alemã o Langhoff dá uma nova

versã o ‒ depois da de 1989 (!) em Avignon ‒ a partir do texto do dramaturgo da

RDA que escreveu sob vigilâ ncia, texto em que retomava a fracassada difusã o da

revoluçã o francesa nas Antilhas escravistas, tudo isto com atores da Escola

Nacional de Teatro Santa Cruz de la Sierra , na Bolívia de Evo Morales. As

imagens cênicas colidem com temporalidades: tendas de refugiados sob o metrô

aéreo de Paris e texto de Marat, cavalos vadios entre carros e lixo de cidades

bolivianas, o assassinato de um traficante de escravos e a execuçã o de um refém

pelo Daesh, a versã o marselhesa de Gainsbourg e o nacional hino bicentená rio

versã o Mitterrandien, filme pornográ fico e a matança de um animal, um escravo

em uma jaula na praia e um imenso transatlâ ntico avançando, a cabeça

guilhotinada de Robespierre e uma bola de futebol, os cadá veres de Sasportas e

Galloudec em seu caixã o e exibiçã o de comunardos executados... Como costuma

acontecer com Langhoff, a imagem do palco nã o governa centralmente o olhar do

espectador, mas difrata em todas as direçõ es: muitas coisas estã o acontecendo

ao mesmo tempo ‒ ao longe, em primeiro plano, nas laterais , acima, abaixo ‒ , o

topo frá gil e vacilante evoca uma jangada meio destruída da Medusa. Cabe ao

espectador escolher, conectar ou separar os constituintes cênicos.

Como costuma acontecer com Langhoff, em nenhum momento esquecemos que

este espectá culo é fruto de trabalho, de labuta, como qualquer outro: os

directores estã o sentados atrá s da sua consola do lado do jardim, uma actriz

maquia-se de preto num canto da frente do palco, os atores transformam o palco

à vista, um cozinheiro cozinha uma sopa que será oferecida aos espectadores no
final... Nã o é todos os dias que se serve um sopã o na orquestra dos Célestins, um

dos teatros de estilo italiano mais antigos da França. Festival Sens Interdits

obriga, foi colocaçã o gratuita e preço acessível. O cheiro da sopa se espalha por

duas horas, transporta você para a Bolívia com mais certeza do que um

documentá rio. Lembro que para Hamlet-Cabaret (2009) do mesmo Langhoff, o

piso nã o estruturado do Odéon foi tratado com Carlsberg, cervejas

dinamarquesas… Como costuma acontecer com Langhoff, o espetá culo finalizado

contém o rastro visível dos ensaios e de todo o trabalho de pesquisa realizado a

montante. Assim, um poema de Mü ller muito antes de sua peça se cruza com

uma evocaçã o da contista Anna Seghers que inspirou o dramaturgo. Acima de

tudo, uma citaçã o de Walter Benjamin funciona como um pró logo: “Há uma

pintura de Klee chamada Angelus Novus. Ele retrata um anjo que parece prestes

a se afastar de algo que está olhando. Seus olhos estã o arregalados, sua boca

aberta, suas asas estendidas. É assim que o Anjo da Histó ria deve ser. Seu rosto

está voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos nos aparece, ele vê

apenas uma ú nica catá strofe, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas

e as joga a seus pés. Ele gostaria de demorar, acordar os mortos e reunir o que foi

desmembrado. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se prende em suas

asas, com tanta violência que o anjo nã o pode mais fechá -las. Esta tempestade o

empurra irresistivelmente para o futuro ao qual ele vira as costas, enquanto o

monte de ruínas à sua frente se eleva ao céu. Essa tempestade é o que chamamos

de progresso.” (Teses sobre o conceito de histó ria, 1940).

A obra de Klee estava diante de nó s. O pró logo é respondido por um epílogo: o

espetá culo termina com o vídeo de um trabalhador imigrante que vasculha as

latas de lixo - nos dois sentidos da expressã o - em um parque urbano, enquanto


ouvimos uma peça de mú sica clá ssica que entra em tensã o irô nica com a

imagem. Este final dispensa comentá rios alegó ricos. Mas me lembro da figura

desaparecida do trapeiro parisiense em meados do século XIX, com quem

Baudelaire, depois Benjamin se identificaram: aquele que vasculha a Histó ria,

recolhe o que a marcha do Progresso esmaga em seu caminho, homens e objetos

descartá veis deixados para trá s pela “Revoluçã o” industrial, vestígios da velha

Paris sobrevivendo à sua haussmannizaçã o, à s vitrines e à circulaçã o do capital.

Parodiando os anúncios, outro vídeo mostrava comediantes e moradores de Santa

Cruz de la Sierra se encarregando dessa passagem que martelava a mesma frase: “A

REVOLUÇÃO É A MÁSCARA DA MORTE A MORTE É A MÁSCARA DA REVOLUÇÃO”.

Nesse quiasma, a morte é cercada pela revolução. Os habitantes repetem a frase

sem entendê-la, procuram compreendê-la, vivenciá-la, recusam-na categoricamente,

encobrem-na categoricamente... Outro quiasma explosivo: “A tua máscara,

Sasportas, é a tua cara. Meu rosto é minha máscara. Ou como Debuisson escolhe

trair a causa no exato momento em que Sasportas se casa com ele de frente.

Debuisson esconde-se convenientemente por detrás da sua falsa identidade de

traficante de escravos onde o rosto de Sasportas se funde com a sua máscara negra

‒ penso desta vez em Combat de negros e Cães, escrito, representado e publicado

nestes mesmos anos 1978 -1983, a Léone que assusta seu rosto para reproduzir o

signo tribal do rosto de Alboury, à amizade entre Müller e Koltès. Eles apoiam onde

dói: o encontro parcialmente perdido entre revolução burguesa e antiescravidão,

marxismo e descolonização, vermelho e negro, comunismo europeu e “Terceiro

Mundo”… Qual é o tratamento midiá tico e político de Evo Morales na França?

Certamente nã o se trata de torná -lo santo. Mü ller e Langhoff nã o sã o hagió grafos.

O rosto do ator que interpreta Debuisson nã o é diferente do de Morales. No


entanto, Mü ller e Langhoff escavam o que a historiografia oficial enterrou ou

caricaturava. O riso dos Debuissons ainda ressoa diante da esperança dos

Sasportas: “Nã o falaremos mais do seu general, já esqueci o nome dele, quando o

nome do libertador do Haiti estiver em todos os livros escolares. A memó ria é

uma luta contra a Histó ria, reescrita pelos vencedores. A memó ria revolucioná ria

é revivida apenas pelas lutas do presente. É menos uma histó ria do que uma

dramaturgia, menos um teatro do que uma performance onde o teatro aperta o

corpo e a garganta.

As legendas em francês que traduzem o espanhol sã o como se desenhadas com

giz sobre um painel de madeira. Os momentos decisivos do espetá culo

acontecem, sem dú vida, quando o texto de Mü ller é ouvido em sua plenitude, em

toda a sua nitidez, abrindo espaço de repente, silenciando a cacofonia ambiente,

cruzando linguagens, fazendo-se ouvir justamente no contexto daquilo que

poderia abafar a escuta e interromper sua renascimento, em sua poesia mordaz e

sua implacá vel vigilâ ncia política: “É mais fá cil falar de uma revoluçã o perdida

quando se está de boca cheia. O sangue, coagulado em medalhas de estanho.


Os camponeses nã o tinham outra soluçã o, nã o. E talvez eles estivessem certos,
nã o. O comércio está florescendo. Quanto aos do Haiti, agora estamos dando a
eles sua terra para comer. Era a repú blica dos negros. A liberdade conduz o povo
à s barricadas, e quando os mortos acordam ela veste um uniforme. Vou lhe
contar um segredo: ela também é uma puta. E posso até rir disso. Hahaha. »

O diretor franco-alemão Matthias Langhoff dirige La Mission , de Heiner


Müller . Uma criação esclarecedora sobre o mundo e suas revoluções.
Em 1983, em entrevista ao semaná rio alemã o Der Spiegel, ao ser questionado
pelo jornalista: “Você já inventou um tema dramático? O autor e dramaturgo
alemã o Heiner Mü ller (1929-1995) respondeu: “Acho que não, não . Cada novo
texto está relacionado a vários textos anteriores de outros autores; também muda
a maneira como olhamos para eles. Meu ofício com temas e textos antigos é
também um ofício com um “depois”. É, se quiserem, um diálogo com os mortos .
Matthias Langhoff e seu diálogo constante com Heiner Müller
Diá logo com os mortos, tomando padrõ es emprestados, olhando o passado para
compreender o presente: no cerne da escrita de Heiner Mü ller, essas questõ es
também perpassam a obra de Matthias Langhoff. Normal, talvez, quando
sabemos que os dois homens colaboraram e mantiveram a mesma relaçã o
comprometida e crítica com o seu país, a RDA. E se Matthias Langhoff – que tem
revivido regularmente as mesmas obras – retoma um texto, é para revelar a
permanência de certas questõ es. La Mission foi encenada pela primeira vez em
1989 – criada algumas semanas antes da queda do Muro, a peça foi revivida
depois, e pode-se imaginar as ressonâ ncias que deve ter tido entã o .Hoje, é com a
equipe de Amassunu, trupe permanente da Escola Nacional de Teatro de Santa
Cruz de la Sierra, na Bolívia, que ele a remonta, assumindo e deslocando alguns
de seus desafios.
Com o subtítulo Memórias de uma Revolução, a peça – escrita em 1978 – narra o
fracasso de uma tentativa de abolir a escravidã o nas Índias Ocidentais, na esteira
da Revoluçã o Francesa. Em 1794, três homens, Debuisson (descendente de uma
família de traficantes de escravos), Galloudec (camponês bretã o) e Sasportas (ex-
escravo negro) foram enviados em nome da Repú blica Francesa à s Índias
Ocidentais para organizar a revolta dos escravos contra o poder inglês. Mas o
golpe militar de Napoleã o Bonaparte pô s fim à sua missã o. Enquanto Sasportas e
Galloudec decidem continuar lutando, Debuisson desiste.
Relações de classe implacáveis
A peça é construída em um flashback : começa com a entrega de uma carta por
um marinheiro a Debuisson, cena durante a qual ele fica sabendo do fracasso e
da morte de seus camaradas. Recusando-se a princípio, por medo de uma
armadilha, a reconhecer sua identidade, Debuisson acabou aceitando a
missiva. Ele entã o mergulha em suas memó rias, e a peça passa por esse período,
terminando com o abandono de Debuisson. Iniciando no tempo posterior – o da
contrarrevoluçã o e do endurecimento político – e inserindo a histó ria na dupla
negaçã o de Debuisson – aquele, introdutó rio, dos amigos que morreram na
frente do marinheiro; isso, por fim, de seus ideais – a peça é a histó ria de um
fracasso e de uma desilusã o. Um olhar desiludido onde as trajetó rias individuais
dos personagens expressam a implacabilidade das relaçõ es de classe. O ú nico
sobrevivente é de origem burguesa,
Obra densa e complexa, concebida como um puzzle, do qual cabe ao espectador
recolher e organizar as peças, La Missioné enriquecido por Matthias Langhoff
com outras referências, outras palavras. Uma profusã o de textos, imagens, signos
invadem o palco, referindo-se, de passagem, à sociedade em que vivemos
hoje. Quando o pú blico se acomoda na sala, os personagens já estã o ocupados em
um palco com muitos alçados e ocupados por diversos quadros e objetos. Esses
mú ltiplos lugares de jogo ressoam com o entrelaçamento e ediçã o de imagens
que vã o rolar em uma tela – clipes de canais de entretenimento, trechos de
noticiá rios de televisã o, imagens documentais feitas durante a estada de
Matthias Langhoff na Bolívia, etc. Esses espaços também designam os diferentes
tempos histó ricos e as vá rias posiçõ es políticas que se sucedem, se justapõ em,
assim como, num quadro, a bandeira republicana, que virou cortina de boate, fica
ao lado de uma pintura representando Napoleã o. Deste redemoinho habilmente
composto nasce uma sensaçã o de saturaçã o e distanciamento.
Este distanciamento mantém um estado de alerta e cria um estado particular de
acolhimento – entre a atençã o sustentada, a densidade emocional e a
impossibilidade de apreender tudo. Esses processos podem desconcertar,
adiar. A presença contínua de signos pode cansar, dificultar a compreensã o do
todo, assim como semear armadilhas para a interpretaçã o dos atores – nem
todos conseguem, nesse joguinho, sair dele. Mas este gesto, voluntá rio, permite
uma outra recepçã o, um trabalho por sedimentaçã o que se infundirá no subsolo,
por muito tempo.

Que lugar para o homem na história?


Porque com esta informaçã o profusa, por vezes contraditó ria, é um retrato do
mundo que Matthias Langhoff realiza. Onde o realizador regressa, repete o que o
anima: a interrogaçã o sobre o lugar do homem na histó ria, as possíveis liçõ es a
tirar dela, o sentimento de reiteraçã o. Isso passa por textos, como este trecho de
Anna Seghers, escritora alemã cuja obra The Light on the Gibbet inspirou Mü ller
para The Mission . Isso passa por imagens, como a do cavalo, animal aristocrá tico
por excelência, e da errâ ncia em meio urbano, abandonados à sua pró pria
sorte. Trata-se da repetiçã o na introduçã o do espetá culo de um texto de Walter
Benjamin sobre o Angelus Novus, pintura de Paul Klee. Transmitida em trilha
sonora, lida por Heiner Mü ller em alemã o, projetada em francês em vídeo,
retomada em espanhol pelos atores, a aná lise de Benjamin nos convida a
desconfiar do otimismo do progresso e a seguir em frente com uma aguda
consciência do passado. Essa aná lise de Benjamin ressoa com La Mission, peça
cuja aná lise poderia ser aplicada a todas as revoluçõ es.
Porque se esta Missão é a ocasiã o para Matthias Langhoff continuar a dialogar
com Mü ller, a sua obra, a questionar a situaçã o da França como da Europa, ela
nasceu também do encontro com um teatro, um país. Ao encenar a peça com a
equipe Amassunu, o diretor oferece uma versã o boliviana. As referências a este
país marcado por uma revoluçã o em 1952, depois uma contrarrevoluçã o de
1964 a 1983, atualmente dominado pelo neoliberalismo e pela economia da
produçã o de drogas, colorem toda a criaçã o. O amontoamento de referências
suscita assim ressonâ ncias estimulantes, que se estendem à vontade de uma
época e de um territó rio a outro.

O diretor franco-alemão Matthias Langhoff assina uma versão boliviana


de La Mission. Impõe uma leitura decididamente engajada e
descentralizada da peça de Heiner Müller.

Matthias Langhoff , que já encenou La Mission em 1989 - data duplamente


histó rica do bicentená rio da Revoluçã o Francesa e da queda do Muro de Berlim -
atesta mais uma vez a chocante universalidade das palavras de
Heiner Müller . Se o grande dramaturgo da Alemanha Oriental relata a viagem de
três emissá rios do governo que partiram para a Jamaica para liderar a revolta
escrava contra os ingleses no final do século XVIII, é para questionar o legado de
um ideal revolucionário.entre seus contemporâ neos no final dos anos 1970 na
RDA. A ideia de que hoje a peça será encenada por atores bolivianos da trupe
Amassunu, da primeira escola nacional de teatro do país, fundada em 2004 por
Marcos Malavia, nã o deixa de despertar interesse. Isso permite uma outra
abordagem, uma outra compreensão , de um assunto difícil que, apesar de
uma restituiçã o à s vezes confusa ou demonstrativa no espaço, é revitalizado por
sua total recontextualizaçã o. A revolução não tem pátria.
Langhoff trabalha em contato com a realidade e sua encenaçã o testemunha um
encontro real com a Bolívia, seu territó rio e sua populaçã o. Ele reú ne
documentos de arquivo relevantes e testemunhos capturados in situ , ou seja, na
rua, lojas, terrenos baldios e acampamentos nos arredores de Santa Cruz de la
Sierra, mas também no 19º arrondissement de Paris, onde os migrantes sã o
caçados por o CRS. A peça confronta as dificuldades vividas pelo país em sua
tentativa de emancipação. A ex-colô nia exangue, mas rebelde, conhece uma
histó ria de constante instabilidade, intercalada, por vá rias décadas, por duras
lutas operá rias contra a ditadura e o poder militar.
A precariedade transpira no quartel escolhido como pano de fundo. Numa
encosta em declive, vive uma pequena comunidade como uma civilizaçã o à
deriva. Uma mulher nã o sai do lugar e prepara uma refeiçã o fumegante e
perfumada. Comemos, bebemos, dançamos, para afastar o destino e nos sentir
vivos. Composto e díspar, o todo carece de legibilidade, mas permanece
deslumbrantemente cru : erotismo, violência, gangrena ganham terreno sem
provocaçã o.

Da Revoluçã o Francesa, resta apenas um legado degradado: uma pin-up com


formas generosamente curvas sob a inscriçã o "Revolution Club" aparece em uma
bandeira tricolor, um homem barrigudo convoca um banho de sangue ao
esvaziar uma garrafa de vinho. a cabeça, os mesmos juncos entre as coxas
quentes do anjo do desespero representado aqui como uma prostituta... A peça é
feita de desejo e desencanto misturados. A missã o é tanto a histó ria de uma
esperança incrível quanto de um fracasso retumbante, a da revoluçã o como
revoluçõ es onde a liberdade esperada nã o impede a escravidã o de durar.

***

Há poucos dias, em Vallegrande, no sul da Bolívia, onde Che Guevara foi


executado, o presidente Evo Morales, ex-sindicalista camponês, comemorou o
quinquagésimo aniversá rio do desaparecimento do revolucioná rio cubano. Ele
disse: “A melhor forma de homenagear o Che é continuar sua luta anti-
imperialista. »
Heiner Müller em Santa Cruz
Morales, apó s uma revisã o da Constituiçã o, conseguiu concorrer novamente à s
eleiçõ es presidenciais. Ele foi amplamente eleito, tornando-se um dos
presidentes democrá ticos mais antigos do mundo. Isso nã o ocorre sem
problemas, ou negó cios e disputas. A Bolívia é um pequeno país de dez milhõ es
de habitantes, dos quais mais da metade, como o pró prio presidente, pertence a
numerosas tribos ameríndias (o país tem 37 línguas oficiais). É em Santa Cruz, a
segunda cidade do país depois de La Paz, que Mathias Langhoff foi palco este ano
de A Missão de Heiner Mü ller. O espetá culo chega à França. Esta peça, "é
realmente feita para a Bolívia", diz Matthias Langhoff.
O ex-diretor alemã o e naturalizado francês conhece bem Marcos Malavia, diretor
da escola nacional de teatro de Santa Cruz, e os Amassunu, trupe permanente ali
formada. Em 2008, Malavia viu na ENSATT (a escola de teatro de Lyon), o
trabalho realizado por Langhoff com os alunos em torno de Mauser por Heiner
Mü ller e o convidou para vir treinar seus alunos na Bolívia. Em Santa Cruz,
Matthias Langhoff encenou esses atores muito jovens em outro texto de
Mü ller: Shore-Material-Medea-Paisagem Abandonada com Argonautas . Alguns
desses atores sã o agora professores na escola e os encontramos com os mais
jovens nesta versã o boliviana de A missão .
Uma versã o bem diferente do que Langhoff propô s em 1989 quando encenou
esta peça, como um díptico com Le Perroquet vert de Arthur Schnitzler (peça que
termina com a queda da Bastilha), ano do bicentená rio da Revoluçã o Francesa. A
estréia aconteceu… em 14 de julho no Festival d'Avignon. Produzido pelo
Théâ tre de Vidy-Lausanne (do qual Langhoff era o diretor), o espetá culo, depois
de Avignon, havia sido apresentado em Paris no Théâ tre de la Ville, em Bruxelas,
em Lyon. Em seguida, encontramos no set atores que Matthias Langhoff
encontraria mais tarde, como François Chattot, Martine Schambacher, Christiane
Cohendy, Gilles Privat ou Serge Merlin.
A revolta dos escravos
A Missão retrata três revolucioná rios, Galloudec, Sasportas e Debuisson, enviados
à Jamaica em 1794 pela Convençã o para organizar a revolta dos escravos contra
a dominaçã o britâ nica. Enquanto eles se deparam com uma realidade complexa,
na França a Revoluçã o vai da traiçã o à derrota, Napoleã o chega aos negó cios e
logo é coroado imperador. A missã o nã o faz mais sentido e, além disso, falhou em
grande parte. O que fazer ? Três homens, três posiçõ es. Um trai; o segundo,
recusando o compromisso, acabará morrendo de gangrena; o terceiro morre
enforcado, sua vida talvez encontrando sentido nesta morte permanente.
A traiçã o (do ideal, dos amigos) ocupa um grande espaço na sala em torno de um
elevador, uma referência a um elemento biográ fico de que fala Mü ller em Guerras
sem Batalha (L'Arche). O ponto de partida de Mü ller é uma histó ria de Anna
Seghers. Vinte anos antes de escrever La Mission , ele havia dedicado a ela um
poema, Motif chez AS , que ecoa a histó ria e termina com estas palavras: “No
tempo da traiçã o / As paisagens sã o lindas”. Este poema (publicado em Poèmes
1943-1945 , ediçõ es Christian Bourgois) é citado na versã o que nos chega de
Santa Cruz.
A Missão é uma peça aberta e fragmentada que inverte a cronologia. Comentando
esta obra, Mü ller diz: “Sempre me interessaram as estruturas narrativas dos
sonhos, a ausência de conexã o, a neutralizaçã o das relaçõ es causais. Os
contrastes criam uma aceleraçã o. Toda a dificuldade da escrita, é atingir a
qualidade dos seus pró prios sonhos e também a independência da
interpretaçã o. » 
De uma versão para outra
Como sempre, Matthias Langhoff acrescenta elementos que nã o estã o na
peça. Assim, dois dos revolucioná rios aparecem como mortos da Comuna de
Paris, deitados em seus caixõ es abertos, como visto em algumas fotos.
Matthias Langhoff: “Em 1989, nã o havia nenhuma referência à Comuna em meu
programa. Nesta nova versã o, insiro também dois textos de Walter Benjamin
[incluindo um lido pelo pró prio Mü ller que vemos em uma tela], textos escritos
pelos índios, essa enormidade oculta da América do Sul Sul, etc. Para os atores
bolivianos, minha curiosidade deu a eles a chance de redescobrir sua pró pria
histó ria. A Bolívia é o ú nico país da América Latina onde os ameríndios sã o
dominantes. E Morales ajuda a encontrar suas origens. Para nó s na Europa, a
Bolívia é Bolívar. Eu me senti muito mais livre lá , em Santa Cruz. Inclusive na
minha leitura do texto de Mü ller. Eu estava respirando. »
Mü ller encenou duas vezes The Mission . A primeira vez, em 1980, no terceiro
andar do Volksbü hne, entã o em Berlim Oriental; a segunda, dois anos depois, no
Ocidente, no Bochum Theatre. Ele julgou a versã o dada no Oriente como “atual” e
descobriu que a segunda no Ocidente era “uma histó ria estranha”.
ML: “Para a RDA, era uma peça sobre o stalinismo; Napoleã o era Stalin. Em
Bochum foi maravilhoso. A Jamaica era representada por uma pantera negra
viva. Em um tú nel de gaiola, ela passou pela platéia. Mas a pantera é um animal
muito sensível, ela chegou no escuro entre a primeira cena e a segunda, e como
estava com muito medo, atravessou o tú nel a toda velocidade, ninguém a viu e
todos se perguntaram o que queria dizer desse tú nel. Em 1989, na França, na
época do bicentená rio da Revoluçã o, vimos o jogo do lado dos franceses e a
traiçã o. Na Bolívia, tudo está fora do lugar. »
E nã o podemos mais ver a sala do lado dos escravos. Vamos ouvir Sasportas:
“Os mortos lutarã o quando os vivos nã o puderem. Cada batida do coraçã o da
revoluçã o voltará a crescer carne em seus ossos, sangue em suas veias, vida em
sua morte. A revolta dos mortos será a guerra das paisagens, nossas armas as
florestas, as montanhas, os mares, os desertos do mundo. Serei floresta,
montanha, mar, deserto. Eu, é a Á frica. Eu, é a Á sia. As duas Américas sou
eu. (traduçã o de Jean Jourdheuil e Heinz Schwarzinger, Les Editions de Minuit).
cavalo e homem
Um dos textos de Walter Benjamin acrescentado por Langhoff é seu comentá rio
sobre o quadro Angelus Novus de Klee (pintura que Benjamin havia adquirido)
constituindo a nona tese de seu ensaio Sobre o conceito de história . O anjo da
histó ria tem "o rosto voltado para o passado", mas "uma tempestade sopra do
paraíso" que o impede de fechar as asas, a tempestade o empurra para o futuro
"ao qual ele vira as costas, porém até 'em o céu diante dele as ruínas se
acumulam'.
ML: “Este texto de Benjamin foi um texto central para nó s, Heiner Mü ller,
Manfred Karge e para mim. O anjo é otimista ou pessimista? Comecei a conversar
sobre isso com os bolivianos. Eles nã o sabiam o que era a Europa. »
Em 1988, Karge e Langhoff encenaram La Bataille de Heiner Mü ller no
Volskbü hne em Berlim Oriental (a primeira intrusã o de Mü ller na França: esse
show aconteceria no Gérard Philipe Theatre em Saint-Denis). Eles trabalham
neste teatro em Berlim Oriental há nove anos.
ML: “Mü ller é proclamado nosso autor contemporâ neo. O teatro dispensou nó s
dois, mas La Bataille ficou cinco anos no repertó rio sem que nossos dois nomes
aparecessem: havia se tornado um espetá culo sem diretor. Mas no final foi bom
ter a imprensa oficial e os políticos contra nó s porque era uma garantia para o
pú blico de que algo estava acontecendo. »
Talvez seja o equivalente a isso que Matthias Langhoff procurou na Bolívia. “Nã o
é um país fá cil. A vida cotidiana me lembrou a RDA. Nada é dado. Você tem que
conseguir as coisas para viver. Da janela de seu quarto em Santa Cruz ele viu um
cavalo. “Eu o via todos os dias. Ele nã o sabia por que estava ali. Ele comeu
qualquer coisa. Eu estava procurando uma utilidade para este cavalo e disse a
mim mesmo: ele nã o entende mais do que eu. »
O silêncio dos diretores
Esse cavalo, que vemos no espetá culo, faz parte das sequências filmadas
projetadas em uma tela erguida do lado esquerdo do palco. Do lado direito, cena
dentro da cena, tendo na cortina uma musa revolucioná ria de curvas generosas
emprestada dos quadrinhos e de Matisse. Langhoff montou uma montagem de
imagens em movimento combinando aquelas que ele filmou com outras
roubadas da internet ou encontradas em uma gaveta. Heiner Mü ller entra em
cena e lê um texto de Benjamin. “Heiner era um grande leitor, ele adorava
leituras pú blicas como Karl Kraus antes dele. Seu modelo nessa á rea foi Ezra
Pound. Ele a amava como escritora e era fascinado pelas gravaçõ es de
Pound. Quanto ao cavalo, sua presença evoca um poema do jovem Brecht (1919)
inspirado nos Irmã os Grimm e musicado por Hans Eisler, “Oh Fallada, o cavalo
perdido”, cantada lindamente pela atriz boliviana que interpreta
Sasportas. Todas as mostras de Langhoff também sã o cadernos.

O diretor gostaria que, quase trinta anos depois do Bicentená rio, A Missão
Boliviana voltasse ao caminho dos teatros que haviam sediado o espetá culo em
1989. Boa ideia. Langhoff escreveu aos diretores dos vá rios lugares. “Ninguém
me respondeu, exceto um, o diretor do Théâ tre de la Ville, Demarcy-Mota, que
disse sim a uma coproduçã o. Mas, depois, sem que ninguém me avisasse
pessoalmente, soube que na verdade o Théâ tre de la Ville estava desistindo de
receber La MissionBoliviano. Funciona assim agora. Nosso teatro na França é
como nossa política: é o mesmo pessoal. É um fenô meno europeu. Nã o é que eles
nã o me queiram, é que eles nã o querem nada. A Europa está se
destruindo. Discute, discute e pronto. Teatro é assim. Na Bolívia, o que eu fazia
fazia sentido e me dava ideias. »
Voltar para Aubervilliers
No entanto, uma turnê foi montada com lugares amigá veis: o CDN de Caen
dirigido por Marcial Di Fonzo Bo, o Théâ tre de l'Union dirigido por Jean Lambert
Wild, o CDN de Besançon dirigido por Célie Pauthe, o festival Sens interdict em
Lyon de Patrick Penot e, para começar, o Théâ tre de la Commune em
Aubervilliers dirigido por Marie-José Malis.
“Você sempre tem que pensar onde você joga. Nã o estar no 'festival de
exportaçã o'”, diz Langhoff. O Théâ tre de la Commune em Aubervilliers é, para
ele, um velho conhecido. Em 1972, neste teatro entã o dirigido pelo seu fundador
Gabriel Garran, Matthias Langhoff encenou Le Commerce de pain de Brecht com
um elenco francês.
ML: “O papel principal foi interpretado por um jovem ator argelino que vivia em
Aubervilliers. Todas as noites, as três primeiras filas eram ocupadas por
argelinos do seu séquito, da sua família, dos seus vizinhos. O prefeito de
Aubervilliers era entã o Jack Ralite. Hoje quero que os atores bolivianos o
conheçam. Que Ralite explique a eles como o Théâ tre de la Commune nasceu em
uma cidade onde nã o havia nada. Como em Santa Cruz. Aubervilliers entã o era
um pouco como Santa Cruz. »
Como ele dirigiu os atores bolivianos?
ML: “Nó s nã o dirigimos os atores. O diretor vem com suas experiências de vida e
trabalho. Ele só pode criar a partir de si mesmo enquanto descobre as pessoas
que estã o lá . Ele só pode fazer isso vir deles, caso contrá rio, os atores ficam à
margem. Por questõ es de meios, em Santa Cruz os atores fazem principalmente
teatro de rua e na trupe todos fazem um pouco de tudo. É um mundo muito
diferente. Um dos problemas que encontramos é que na Bolívia nã o há oficinas
de cená rio. A construçã o ali feita nã o era transportá vel. A CENOGRAFIA foi
refeita aqui para a turnê francesa em grande parte graças ao CDN Limoges que
tem bons workshops. É fá cil fazer cenografias estú pidas de papelã o como vemos
tantas delas, é feito rapidamente. É o trabalho que custa. Lá foi necessá rio
construir um piso em forma de onda. A miséria do teatro hoje é que estamos
constantemente pensando em reduzir o trabalho e que custa menos. Nã o é à toa
estar em Aubervilliers no teatro fundado por Gabriel Garran, por
"Gaby". Naquela época, os shows, mesmo os piores, tinham significado. Hoje, o
diretor de La Colline vai ao Odéon: que diferença isso faz? Nada. É como na
política. Há muitos talentos no teatro em França mas como podem fazer neste
sistema onde defendemos um teatro essencialmente decorativo...? Talvez seja a
idade, estou menos interessado nos outros, estou mais interessado em
escrever. Existem alguns atores como François Chattot, Gilles Privat, Charlie
Nelson que me inspiram. Com eles poderei escalarForça do Hábito de Thomas
Bernhard, mas nã o estou me movendo. »
Fadiga?
ML: “… ir ao mercado de Santa Cruz, ver as pessoas, pedir que digam alguma
coisa, que me deixa feliz, que me anima a trabalhar. Ontem à noite, o embaixador
boliviano que assistiu ao espetá culo ficou surpreso ao ver jovens bolivianos
defendendo o teatro dessa forma. Este espetá culo é deles. Nã o assisti
ontem. Voluntariamente. É uma disciplina. Quando o pú blico chega, o diretor tem
que se afastar. Encontre uma distâ ncia para ver melhor o show. Esqueço
relativamente rá pido e quando voltar a vê-lo, vou redescobri-lo. Veja o que está
faltando e entã o desapareça. O diretor é como um encanador, ele conserta e vai
embora. O que desempenha um grande papel para esta missão, é assim que os
atores bolivianos se reú nem. Antes do show, eles se encontram em uma sala e o
ator mais velho, aquele que faz Debuisson, a atriz que faz Sasportas e aquele que
faz Antoine, conversam com os demais. É o retorno à tribo onde é natural que os
mais fortes tenham a autoridade, cabe a eles dizer. Eles nã o têm um problema de
ego. »
(palavras de Matthias Langhoff recolhidas com Marion Canelas)
Théâtre de la Commune d'Aubervilliers
Berliner Ensemble

 1963  :
 Le Petit Mahagonny ( Mahagonny Songspiel ) de Bertolt Brecht
 A compra de cobre de Bertolt Brecht
 1967  : The Bread Trade por Bertolt Brecht
 1969  : Sete contra Tebas de É squilo

Volksbühne Berlin

 A Floresta de Alexandre Ostrovski
 The Brigands, de Friedrich von Schiller
 Otelo de William Shakespeare
 1972  : Le Commerce de pain de Bertolt Brecht , Théâ tre de la Commune
 1973  : O Pato Selvagem de Henrik Ibsen
 1975  :
 A batalha e o trator de Heiner Mü ller
 Cidadão Geral de Goethe
 1976  : A Floresta de Alexander Ostrovski , Schauspielhaus Zurique
 1978  : O Príncipe de Homburg por Heinrich von
Kleist e Fatzerfragment apó s Bertolt Brecht , Schauspielhaus Hamburgo
 1978  : Prometheus acorrentado por Eschylus , Théâ tre de Carouge
 1979  : King Lear de William Shakespeare , Rotterdam

Schauspielhaus em Bochum

 1980  : Caro Georges por Thomas Brasch


 1980  : Woyzeck por Georg Bü chner
 Clavigo de Johann Wolfgang von Goethe
 The Cherry Orchard de Anton Tchekhov
 Leite em pó de Howard Brenton

 1983  : Mercedes por Thomas Brasch , Schauspielhaus Zurique


 1984  :
 La Cerisaie de Anton Tchekhov , encenada com Manfred
Karge , Comédie de Genève , TNP Villeurbanne , Festival d'Avignon
 Le Prince de Hombourg de Heinrich von Kleist , encenado
com Manfred Karge , TNP Villeurbanne , Festival d'Avignon
 1985  :
 O massacre de Thomas Hü rlimann , Schauspielhaus Zurique
 Chuva de cobras de Per Olov Enquist , Teatro Nacional de
Estrasburgo , Teatro Vidy-Lausanne
 1986  :
 Rei Lear, de William Shakespeare , Théâ tre National de
Strasbourg , MC93 Bobigny
 Prawda de Howard Brenton e David Hare , Schauspielhaus
Hamburgo
 1987  :
 Última fita de Samuel Beckett , MC93 Bobigny
 Si de là si loin Textos de Samuel Beckett , Federico García
Lorca e Friedrich Hö lderlin e Eugene O'Neill , MC93 Bobigny
 1988  :
 Édipo, Tirano de Só focles , Burgtheater Viena
 Mademoiselle Julie de August Strindberg , Comédie de Genève

Teatro Vidy-Lausanne

 1989  : A missão de Heiner Mü ller e Au parroquet vert de Arthur


Schnitzler , Festival d'Avignon
 1990  :
 Macbeth de William Shakespeare , Théâ tre National de Chaillot
 A Duquesa de Malfi, de John Webster , City Theatre
 Herzstück (Heart Piece) de Heiner Mü ller (criaçã o francesa)
 1991  :
 The Silver Cup of Sean O'Casey , City Theatre
 Um refém de Brendan Behan
 Don Giovanni de Mozart , Grand Théâ tre Genebra
 Édipo, Tirano de Só focles , Festival de Tardor, Barcelona
 1992  : Le Désir sous les elmes de Eugène O'Neill , Théâ tre National de
Bretagne

 1993  : Simon Boccanegra de Giuseppe Verdi , ó pera de Frankfurt


 1994  :
 As Três Irmãs de Anton Tchekhov , Teatro da Cidade
 Philoctète de Heiner Mü ller , Teatro Nacional da Bretanha
 1995  :
 Richard III Material-Shakespeare de William Shakespeare , Festival
d'Avignon , Théâ tre Gérard Philipe , Théâ tre national de Bretagne
 A Dança da Morte de August Strindberg , Comédie-Française
 1996  : A Ilha da Salvação apó s a Colônia Penitenciária de Franz
Kafka , Teatro Nacional da Bretanha , Théâ tre de la Ville
 1998  : Trojans after Euripides , National Theatre of Brittany , Nanterre-
Amandiers Theatre
 1999  :
 Le Revizor de Nicolas Gogol , Teatro Nacional da Bretanha , Teatro
Nanterre-Amandiers
 Les Trachiniennes apó s Só focles , Ezra Pound , Thomas
Brasch , Deutsches Theater Berlin
 2000  : Prometeu acorrentado por É squilo
 2002  :
 Lenz, Léonce e Léna depois de Georg Bü chner , Comédie-Française
 O Inspetor do Governo por Gogol , Gênova
 Borges de Rodrigo Garcia , Annecy
 2003  : Muñequita ou Jura morrer com glória por Alejandro
Tantanian , Teatro Nacional de Toulouse Midi-Pyrénées
 2004  : Últimas Notícias de Mataderos baseadas em Borge de Rodrigo
García , O Menino Proletário de Osvaldo Lamborghini , Muñequita ou Jura
Morrer com Glória de Alejandro Tantanian , Teatro Nanterre-Amandiers
 2006  : Dona Rosita a Bacharel, ou a Língua das Flores de Federico Garcia
Lorca , Théâ tre Nanterre-Amandiers , Théâ tre du Nord
 2008  : Un Hamlet-Cabaret de Matthias Langhoff apó s William
Shakespeare , Théâ tre Dijon-Bourgogne , Odéon-Théâ tre de
l'Europe em 2009
 2010:
 The Quartet , Moscou
 O Inspetor do Governo de Nicolas Gogol
 2011: Sófocles. Édipo, o tirano , o Teatro Infantil Acadêmico “YP Kisselov”
de Saratov , baseado na tragédia de Só focles Édipo Rei

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