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comprometa. Venho de uma geração que estava imersa nisso e não tinha medo
disso. O escândalo do mundo é problema meu e é no palco que posso transportá-lo
para esmagá-lo, para examiná-lo. O teatro só existe no momento: não há nada
antes, nada depois. »
https://www.theatre-contemporain.net/montheatre/inscription?urifrom=/
montheatre/bookmark/object/persons/idobject/1730?
setetat=add_bookmark&urifrom=/biographies/Matthias-Langhoff/
Matthias Langhoff reflete em seu teatro a violência que nos cerca. Ele fala da
nossa vida, sem complacência. Guinchante, denunciador, explosivo, ele penetra
no coraçã o da carne. É brutal porque sem ilusã o. Ele mistura a lucidez fria com a
loucura de um carnaval com má scaras trá gicas ou zombeteiras.
Frequentemente cria a cenografia e iluminaçã o de seus espetá culos. A sua tarefa
começa com a criaçã o de um espaço visual e sonoro, depois integra os atores
numa partitura espaço-temporal. Permaneceu por muito tempo associado a
Manfred Karge - um caso bastante ú nico, nos anais do teatro, de uma colaboraçã o
tã o duradoura entre dois diretores.
Tendo entrado muito jovem no Berliner Ensemble (do qual foi co-
director em 1992-93), reteve da sua formaçã o brechtiana as bases essenciais de
uma técnica pautada numa concepçã o do mundo e da sociedade, na produçã o
visível do teatro, a recusa do pathos, a arte da dialética. Seus autores referenciais
sã o os antigos gregos, Shakespeare, Strindberg e Heiner Muller. Ele se apresenta
como um artista, nã o como um doutriná rio. Artesã o teatral, põ e à prova as obras
dramá ticas para as conhecer. Ele energiza suas equipes, capacita seus
funcioná rios. Ele concorda em aperfeiçoar o treinamento dos técnicos, nã o abre
mã o da ética.
Exceto por dezoito meses em Lausanne e dois anos em Berlim, nã o tem local fixo
desde 1985. Entre o Festival d'Avignon, o T.N.P. de Villeurbanne, o Teatro
Nacional de Chaillot, o MC93/Bobigny, o Teatro Nacional de Estrasburgo, o
Teatro Nacional da Bretanha, os Amandiers de Nan Terre, o Odeon, o Ateneu, o
Teatro da Cidade ou a Comédie de Genève, o teatro de Barcelona, o teatro de
Epidauro na Grécia, na Itá lia, em Moscou, mudava constantemente de palco,
técnicos, intérpretes, pú blico. Suas ideias nem sempre foram compreendidas ou
aceitas. Combina rigor e excesso, seriedade e humor. Ele evita a estética
superficial, nã o foge da feiú ra. Ele sacode, ele surpreende. Pensando bem, nada é
de graça. A sua audá cia assenta nos pró prios textos, numa experiência vivida e
numa independência inalterá vel. Muitas vezes duro em seu comportamento
como gerente de equipe, intratá vel e absoluto em seus altos padrõ es de si
mesmo, Langhoff é extremamente aberto e atencioso com os outros. “Matthias
tem duas caras”, disse Bernard Dort que o conhece quase desde os seus
primó rdios, “nã o consigo conciliar a violência que irrompe nos seus
espectá culos, e a suavidade, a simpatia do amigo”.
https://www.avantscenetheatre.com/auteurs/matthias-langhoff
Este imenso artista tem um rigor profundo, um conhecimento vasto, um poder
visioná rio na leitura de textos, um gosto pelo palco na sua materialidade, ao
achado na hora. Ele sabe fazer de tudo, num teatro, Matthias Langhoff, e se a sua
obra se vale do melhor da literatura dramá tica, é indissociá vel de uma
preocupaçã o constante com o espaço.
Nascido em 1941 em Zurique, onde o pai se refugiou para fugir do nazismo,
ingressou no Berliner Ensemble em 1961. Foi aí que conheceu outro grande
espírito, nascido em 1938: Manfred Karge. Por muito tempo, na França,
aplaudimos os espetá culos de “Karge-Langhoff”. Desde o início com o lendá rio
Petit Mahagonny de Bertolt Brecht até A Batalha de Heiner Mü ller, eles forjaram
uma estética e uma ética do teatro que serã o essenciais para a paisagem
europeia. Depois do Berliner, eles trabalharam no Volksbü hne de 1969 a 1978,
depois no Schauspielhaus em Bochum, como na Á ustria ou na França. Nã o
esquecemos, em 1984, O Príncipe de Hombourg, com Gérard Desarthe no papel-
título e Philippe Clévenot no de Grande Eleitor. Apó s a separaçã o amigá vel,
Langhoff liderou o Vidy-Lausanne de 89 a 91, antes de se reunir com o Berliner
Ensemble por algum tempo. Em 1993, ele recuperou sua liberdade e continuou
seu caminho. Quase setenta encenaçõ es: nã o há como resumir tal viagem. Ele
raramente abordava a letra (Don Giovanni, Simon Boccanegra). Dos trá gicos
gregos a Rodrigo García, de Hö lderlin a Strindberg, de Shakespeare a Brendan
Behan, passando por Schnitzler, passando por Beckett, Matthias Langhoff
interessa-se por escritores muito diversos, cujas ressonâ ncias atuais destaca.
Mademoiselle Julie, A Missã o e O Papagaio Verde, apresentados juntos, Macbeth,
Desejo sob os Elms, O Revizor, As Três Irmã s, como escolher? Tudo está
impresso em nó s como um acontecimento, nã o como uma ficçã o. Esta é a arte
deste espírito impressionante, intimidador mas acessível, que conserva as
virtudes de uma criança experiente. Um grande diretor de atores, um poeta que
nã o separa aná lises agudas de intuiçõ es deslumbrantes e artesanato sofisticado
no espaço. (Armelle Heliot)
https://www.larousse.fr/encyclopedie/personnage/Matthias_Langhoff/184696
Depois de se exilar na Suíça, Langhoff mudou-se para França onde obteve a
nacionalidade francesa em 1995. Manteve o seu estilo provocador e dinâ mico
que rompeu com as convençõ es, ligou os clá ssicos à s novidades multiplicando as
referências entre ontem e hoje, recusa o bom gosto cultivando a brutalidade do
jogo e muitas vezes criando ele pró prio cenografias complexas onde os
diferentes níveis, imagens reais e virtuais, as mais heterogéneas. Sua arte
barroca é particularmente adequada para o teatro crítico de Heiner Mü ller (la
Misssion, 1989; Quartett, 2007), para as tragédias de Shakespeare (Richard III
Material Shakespeare, 1995), para o teatro antigo (Les Troyennes, 1997), para
grandes afrescos de Brecht, O'Neill ou Chekhov. Já menos procurado pelos
encenadores franceses, sem dú vida porque as suas produçõ es exigem grandes
orçamentos, Langhoff continua a realizar espetá culos por toda a Europa, fiel a
um princípio de permanente questionamento estético e político. “O verdadeiro
sentido do teatro, afirmou em 2 de março de 1992 em Les É chos, é a
controvérsia. Se o teatro nã o mexe nada na cabeça, para que serve? »
https://www.publico.pt/2009/07/08/culturaipsilon/noticia/matthias-langhoff-
teve-um-pesadelo-236139
Inês Nadais
8 de Julho de 2009, 0:00 actualizado a 11 de Julho de 2009, 0:00
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Matthias vê o escâ ndalo em todo o lado - debaixo do prédio onde mora, onde há
"um grupo permanente de sem-abrigo cujo discurso, na sua incoerência
alcoolizada", lhe faz "lembrar os velhos contos que dizem sempre a verdade", nas
lojas chics do Boulevard Raspail com o seus sapatos a mil euros que lhe dã o
"vontade de partir os vidros das vitrines", e nas escadas da Comédie Française, o
lugar onde começou a ter pesadelos com "Deus como Paciente". "Um dia", explica
ao Ípsilon, "fui à Comédie Française onde tinha uma reuniã o para discutir um
projecto. Para entrar, fui obrigado a passar pelos pobres que dormem debaixo
das arcadas - e enquanto subia aquela bela escadaria compreendia que Racine e
Molière estã o muito longe de mim". Voltou-se, sentou-se num banco ao lado do
teatro: "Era um belo dia de sol, havia gente a passear, e vi um negro que,
enquanto toda a gente se divertia, esvaziava sem parar os caixotes do lixo e
controlava tudo o que as pessoas deitavam fora, à procura de qualquer coisa que
pudesse meter ao bolso. Tinha a câ mera comigo e filmei. Esse homem é um dos
actores principais deste espectá culo".
O filme que Matthias Langhoff fez nessa tarde é a primeira coisa que vemos em
"Deus como Paciente" - como se o nosso mundo fosse, mais do que um escâ ndalo,
um escâ ndalo espectacular. Os três actores que escolheu para irem com ele em
direcçã o ao abismo - Anne-Lise Heimburger, Frédérique Loliée e André Wilms,
que há poucos anos vimos a deixar a pele, sozinho, em "Eraritjaritjaka", de
Heiner Goebbels, no Porto - só aparecem depois, misturando-se uns com os
outros ("Construí uma histó ria com três personagens de galá xias diferentes
[anjos, prostitutas, vagabundos, marinheiros, loucos, enfermeiras, artistas de
cabaré] que atravessam o passado, o presente e o futuro") e com as imagens do
filme. Nunca sabemos bem quem estamos a ver e quem estamos a ouvir, que
parte da histó ria está à nossa frente em carne viva, e a três dimensõ es, e que
parte da histó ria está à nossa frente apenas como assombraçã o: "Como na minha
cabeça nã o é claro o que pertence ao teatro e o que pertence ao cinema, e como
também nã o é claro se o teatro está no chã o ou em cima do palco, misturei tudo,
como faço sempre. Agora que durmo cada vez menos, é possível que tenha até
misturado de mais", diz-nos. O pesadelo que ele fez a dormir acordado, e que nos
faz passar do cemitério ao naufrá gio e do naufrá gio ao "music-hall", como nesses
apagõ es da consciência que acontecem durante o sono, é um transe, uma
colagem de experiências de vida (uma experiência marcada pelo exílio, por todos
os devastadores traumas da condiçã o alemã , pelo comunismo e, em geral, por
todas as feridas abertas do século XX europeu), de visõ es de Paris, do mundo em
que vivemos - e das coisas que continua a redescobrir "na língua de
Lautréamont".
O espectáculo do estrondo
"Deus como Paciente" é o espectá culo desse estrondo - do estrondo que o mundo
faz a partir-se. É dessa energia destrutiva que o teatro de Langhoff se alimenta,
desde os primeiros trabalhos no Berliner Ensemble da fase Brecht, em 1962, até
à s colaboraçõ es com Heiner Mü ller, que foi o seu melhor amigo. Continua a fazer
teatro para se lembrar dele ("Para um homem antigo como eu, é importante
manter o diá logo com um velho amigo") e para sobreviver ao escâ ndalo do
mundo contemporâ neo: "Se fosse tudo perfeito, nã o vejo por que razã o
continuaria a fazer teatro". Como nem tudo é perfeito, precisamos dos pesadelos
dele para sobreviver à experiência de ser europeu depois de duas guerras
mundiais, de uma Shoah, da bomba ató mica e do estalinismo. É um "tesouro
nacional vivo" do teatro europeu, como lhe chamou Bruno Tackels, da revista
"Mouvement", mas sente-se melhor no papel de besta negra (nã o se fixa em lado
nenhum desde 1985, à excepçã o dos 18 meses que passou no Théâ tre Vidy, de
Lausanne, entre 1989 e 1991, e dos dois anos em que co-dirigiu o Berliner
Ensemble, entre 1992 e 1993): "De tempos a tempos, sou obrigado a
institucionalizar-me, mas tenho tempo. Depois de mortos, acabamos todos na
instituiçã o".
https://elpais.com/diario/2007/10/28/cultura/1193522405_850215.html?
event=go&event_log=go&prod=REGCRARTCULT&o=cerrcult
TEATRO
Langhoff traz adaptação de Kafka ao Rio
SÉRGIO DE CARVALHO
especial para a Folha
Eva Bleibtreu
A gente sempre separa os sentidos — esse é o nosso olhar, esse é o nosso ouvido
— mas, na realidade, a divisã o é artificial. [O] texto é mais do que a palavra
falada. A falta de palavras também, o silêncio, ou o movimento pode ser o texto.
Mas isso também deve ser audível.
(Matthias Langhoff, extrato de sua entrevista com Marie-Madeleine Mervant-Roux,
“Sem ouvir não há texto e sem texto não há teatro”, Théâtre(s) en Bretagne , No. 20,
Rennes University Press, 2004 , pág. 13.)
[O arquivo do qual foi feito este estudo é constituído por um conjunto de
gravaçõ es audiovisuais de uma das apresentaçõ es pú blicas de Macbeth dirigida
por Matthias Langhoff, criada no Théâ tre national de Chaillot (sala principal) em
15 de fevereiro de 1990 e exibida até março 21 do mesmo ano.]
2. A aná lise assenta numa abordagem à performance através do som, tal como
me convidou o projeto É CHO, e centra-se no estudo da forma como o realizador
desenvolve um universo sonoro capaz de produzir um discurso dramá tico.
Veremos que é através de uma verdadeira estratificaçã o de sons de diferentes
naturezas (gravaçõ es diversas, mú sica tocada ao vivo, efeitos sonoros
voluntá rios e identificá veis, ruídos aparentemente inó cuos) que o realizador
consegue fazer o espectador sentir o que nã o pode ser dito.
O arquivo estudado
Documentos (natureza, tipo de meio, localização)
4. O arquivo estudado provém da parte audiovisual do acervo do Théâ tre
nacional de Chaillot guardado no Arquivo Nacional (transferência 20160438). É
identificado pelo nú mero de chamada 20160438/78 e classificado na secçã o
“Temporada 1989-1990” (20160438/72-20160438/80) do diretó rio dedicado à
direçã o de Jérô me Savary.
5. A mídia analó gica original sã o três cassetes Betacam SP3 PAL Master I, II, III,
de 90 minutos cada. Trata-se de um conjunto de registros audiovisuais de uma
das apresentaçõ es pú blicas do espetá culo. Eles foram produzidos pela direçã o do
Théâ tre de Chaillot. A data nã o é especificada.
6. As cassetes foram digitalizadas pelo Théâ tre national de Chaillot. Disso
resultou 1 DVC DUB (184 minutos), depois, durante a campanha de digitalizaçã o
do INA, 5 DVDs (1ª parte (60', 41'); 1ª parte (60', 40') 2ª parte (66') e 5 digitais
arquivos correspondentes aos DVDs. Esses sã o os arquivos que consultamos
para nossa pesquisa. Os quatro primeiros contêm duas versõ es diferentes da
primeira parte do espetá culo (antes do intervalo): uma versã o produzida a partir
de uma ú nica câ mera, em plano está tico, com som mono, e uma versã o editada
em pó s-produçã o, filmada com vá rias câ meras e incluindo som estéreo.
O conteúdo do arquivo
7. As gravaçõ es começam seis segundos antes do início da performance
(ouvimos os espectadores conversando entre si, vemos alguns deles sentarem-
se) e terminam um minuto depois da performance (com aplausos, enquanto a
cortina cai). O intervalo nã o está incluído na gravaçã o.
8. O equilíbrio de cores, o brilho e os contrastes sã o padrã o e fornecem uma
imagem correta para o primeiro plano, mas difícil de ler para o segundo plano.
Um fenô meno devido principalmente ao jogo evolutivo da iluminaçã o, com á reas
de sombra e á reas claras.
(Para uma descrição aprofundada da encenação, ver ASLAN (Odette), “Macbeth”,
em Langhoff, textos reunidos e apresentados por Odette Aslan, Paris, CNRS
Éditions, coll. Artes Cênicas, série Pathways to Theatre Creation, vol. 19, 1994, p.
252-271.)
9. As gravaçõ es geralmente oferecem uma tomada geral do set, muitas vezes
visível no fundo do palco, tomada da sala, com algumas tomadas mostrando um
ou mais atores mais de perto.
10. A qualidade do arquivo é muito boa. O espetá culo foi gravado na íntegra.
Abordagem adotada para o estudo de som deste arquivo audiovisual
11. A aná lise ocorreu em vá rias etapas.
12. Uma primeira escuta apenas do som foi acompanhada por anotaçõ es na
forma de escritas, mas também diagramas e desenhos. Nesta fase, nã o houve
nenhuma manipulaçã o além da pausa da gravaçã o. Por isso, queríamos relatar
um primeiro levantamento dos elementos de á udio que nos chamaram a atençã o.
Uma tabela listando os diferentes critérios de descriçã o foi fornecida pelo
projeto ECHO e nos permitiu refinar a escuta (natureza dos sons, intensidade,
localizaçã o espacial dos sons ouvidos).
13. O tempo de escuta foi de cerca de seis horas para o primeiro trecho, que
durou 60 minutos (devido a paradas muito frequentes na gravaçã o para
anotaçõ es importantes) e cerca de três horas para os outros quatro trechos (os
trechos 3 e 4 foram ouvidos apenas parcialmente pois diferem pouco dos trechos
1 e 2 do ponto de vista sonoro; os trechos 2 e 5 foram ouvidos com anotaçõ es
simultâ neas na escuta e gravaçã o ininterrupta).
14. Procedeu-se entã o a uma segunda escuta com descoberta da componente
visual da captaçã o.
15. Por fim, seguiu-se a audiçã o repetida e aná lise de excertos precisos, cada um
com a duraçã o de 3 a 5 minutos, para os quais foram produzidas partituras que
permitiram enumerar as diferentes camadas de sons ouvidos num determinado
momento. A escrita dessas partituras foi improvisada, em grande parte inspirada
na escrita musical.
Observações da primeira audição
16. Os resultados do primeiro inquérito revelaram vá rios elementos. Antes de
mais, neste espectá culo há uma grande presença de elementos sonoros,
diegéticos e extra-diegéticos, com recurso a mú sica ao vivo (instrumentos como
o saxofone, os sinos, a flauta transversal), mú sica gravada (com sons que sã o
menos nítidas que as dos instrumentos ao vivo), efeitos sonoros gravados (sons
de metralhadoras voando a baixa altitude, campainha, telefone, vento, grilos) e
ruídos ou efeitos sonoros feitos ao vivo (batemos numa superfície de madeira
para obter o ruído produzido pela batida na porta do castelo).
17. Há também uma forte presença de passos dos atores. Isso nã o é contínuo.
Alguns movimentos muito ruidosos se destacam mais do que outros.
18. Há muitos ruídos repentinos no set (choques e impactos, objetos caindo,
portas batendo).
19. Como os ruídos no palco eram considerá veis, interessava-me a forma como
esses ruídos atuavam na compreensã o de uma cena e no discurso dramá tico em
geral.
20. Na gravaçã o inicial da primeira audiçã o, um motivo chamou-me a atençã o:
aquele que reconstituía as pulsaçõ es rítmicas ouvidas, traduzidas por um grupo
de três barras verticais mais ou menos espaçadas entre si. Esse motivo surgiu em
dois pontos do espetá culo.
21. Em primeiro lugar, ele aparece na cena do porteiro (Ato II, cena 3), quando
há uma batida na porta (o que está indicado nas indicaçõ es do texto de
Shakespeare). O rei Duncan acaba de ser morto e, ao amanhecer, os senhores
escoceses batem incansavelmente na porta do castelo de Macbeth, esperando
que o porteiro – bêbado – abra a porta para eles. Esta cena foi notavelmente
analisada por Thomas de Quincey em 1823 em um pequeno ensaio famoso
chamado “On the Knocking at the Gate in Macbeth”. Nesse ensaio, de Quincey
explica que esse som tem a funçã o dramá tica de trazer de volta todo o pavor do
assassinato. A direçã o de palco shakespeariana teria, portanto, a funçã o de gerar
um sentimento de pavor no espectador ao utilizar nã o uma ferramenta que
apelasse ao seu entendimento, mas uma ferramenta que apelasse à s suas
sensaçõ es.
22. O motivo das “barras verticais”, ou seja, dos golpes, é entã o retomado numa
segunda cena onde a presença destas já nã o é justificada pelo texto. Esta é a
primeira cena do Ato IV. É essa segunda cena que optamos por analisar
detalhadamente, pois os golpes nã o encontravam explicaçã o no texto e isso era
um viés significativo na encenaçã o.
23. Nesta primeira cena do Ato IV, Macbeth acaba de ascender ao trono e
Banquo, companheiro de Macbeth, se pergunta se este ú ltimo nã o matou ele
mesmo o rei Duncan para tomar seu título. O soliló quio de Banquo é entã o
interrompido pela entrada do casal Macbeth. Os dois homens dialogam de
maneira puramente convencional e entendemos que cada um mantém as
aparências frente ao outro.
Análise de um trecho da encenação pela escuta
24. O clipe sonoro a que nos referimos foi estudado a partir do segundo arquivo
digital denominado “TNC_1990_Macbeth_2.MP4” com duraçã o total de 40
minutos (variando de 3’52” a 4’58”).
25. O trecho abre com o som dos sinos da igreja evocando a coroaçã o de
Macbeth. O dispositivo de palco previa alto-falantes espalhados pela sala no lado
pú blico. O som da campainha da transmissã o banha, portanto, todo o espaço. É
bastante intenso; nã o tapa a voz dos atores mas interfere na escuta da fala do
ator Gilles Privat (intérprete de Banquo).
26. Ao som da campainha junta-se o som de batidas fortes e muito fortes em
grupos de três, que repetem o som das batidas à porta ouvidas durante a cena do
porteiro. Esses golpes sã o diegéticos, pois o personagem de Banquo os ouve e
fica constrangido com eles. À medida que os golpes se repetem, Gilles Privat
pronuncia suas falas acelerando e desacelerando o fluxo ou marcando paradas
no meio das frases, como que para antecipar a chegada dos pró ximos golpes e ser
ouvido apesar do ambiente sonoro hostil.
27. Na segunda parte do trecho, quando Banquo e Macbeth interagem entre si,
Gilles Privat e Olivier Perrier adotam entonaçõ es singulares. Olivier
Perrier/Macbeth deixa suas seçõ es de resposta suspensas e nã o abaixa a voz no
final da frase. Gilles Privat/Banquo entrega sua ú ltima linha em uma ú nica
respiraçã o, quase sem variaçõ es de entonaçã o e com um fluxo que distorce o
fraseado. A fala é como se fosse forçada de ambos os lados. O espectador conhece
entã o o fundo do pensamento de cada um dos dois protagonistas e sabe que se
trata de um discurso cordial apenas nas aparências. O trabalho de dicçã o dos
atores proporcionado pela encenaçã o traduz as questõ es subjacentes à cena.
28. Por fim, um ú ltimo detalhe me chamou a atençã o. Pouco antes de o casal
Macbeth entrar em cena e enquanto o personagem de Banquo está a priori
sozinho, dois ú ltimos golpes sã o dados e ficamos em suspense, em busca do
terceiro que viria completar o motivo terná rio já repetido vá rias vezes. Na
escuta, como o ouvido está acostumado a receber o motivo em três está gios,
quando falta o terceiro tempo, o ouvido continua a procurá -lo e acaba
encontrando-o em um som substituto semelhante. Esse terceiro golpe vindo para
fechar o padrã o é gerado pelo som de um objeto manipulado no palco. A
encenaçã o prevê que Olivier Perrier/Macbeth entre em cena carregando um
grande baú que deixa cair sobre uma cadeira, ao lado do jardim. O barulho
completa os dois golpes anteriores.
29. À escuta, o som dos golpes repetidos e o produzido pelo impacto do baú sã o
da mesma intensidade. Embora de naturezas diferentes, sã o apreciados pelo
ouvido ao mesmo nível.
30. Assim, é Macbeth que fecha o motivo sonoro. Por este gesto voluntá rio e
muito marcado de deixar cair a mala na cadeira, o ator (mas também a
personagem) emite um som semelhante ao das pancadas que até entã o
continuamente oprimiam a fala da personagem de Banquo. Essa opressã o é tanto
mais acentuada quanto esses golpes sã o uma verdadeira agressã o ao ouvido do
espectador. Sentimos fisicamente um choque ao ouvir esse som.
31. O estado emocional descrito por Thomas de Quincey em seu ensaio – o
estado emocional em que nos colocou a cena do porteiro (logo apó s o assassinato
do rei Duncan) – é aqui restaurado por este motivo sonoro das batidas na porta;
Matthias Langhoff reutiliza uma carga emocional muito específica. Nesta segunda
cena em que o padrã o sonoro nã o é justificado pela fá bula, o viés da encenaçã o
parece ser o de criar uma aproximaçã o com a cena anterior, explorando o
sentimento epidérmico e a memó ria auditiva do espectador.
APÊNDICES
Outros arquivos disponíveis sobre a apresentaçã o do espetá culo no Théâ tre
national de Chaillot Nesta mostra, há outros arquivos, alguns disponíveis para
consulta, como os cem slides coloridos feitos pelo fotó grafo Daniel Cande
durante o ensaio geral em 1990. As fotografias podem ser consultadas em versã o
digital no site Gallica-BNF8 e guardadas no Departamento de Artes Cênicas (site
Richelieu). Em particular, poderemos apreciar o trabalho de cenografia e os
figurinos com mais detalhes, com reproduçã o de cores precisa. Também está
disponível o cartaz do programa da mostra, cujas duas có pias se encontram no
Arquivo Nacional. Entre os arquivos livremente comunicá veis, descobrem-se
nomeadamente o orçamento de produçã o, a conduta da gestã o, a revista de
imprensa e um conjunto de documentos administrativos.
Partitura sonora produzida para a análise do trecho estudado
As cores indicam a natureza dos sons (azul para o som de um sino, laranja para um
golpe forte dado em uma superfície de madeira). As indicações dos segundos
sinalizam a chegada de um novo evento sonoro. Essas intervenções podem ser de
diversas naturezas: a entrada de um personagem (passos, nova voz, indicação no
texto), movimento no palco (passos muito marcados, variação na localização
espacial da voz), uma sequência musical (ao vivo ou transmitida música), uma
mudança de cena marcada por uma pausa audível (passagem de um ambiente
sonoro para outro), uma linha particularmente elaborada do ponto de vista vocal
(variação no fluxo, entonação e ritmo da dicção) ou mesmo um notável silêncio (há
pouco neste espetáculo). A intensidade vocal dos atores foi restaurada por um
desenho de linha. O ritmo da fala foi restaurado por agrupamentos de traços
correspondentes às diferentes sílabas do texto.
Edipo Tirano
Em 2011, por ocasião do 70º aniversário do Ensatt, confiamos o último dos workshops-
shows do ENSATT a Matthias LANGHOFF, uma importante figura do teatro europeu que
também celebra o seu 70º aniversário.
2013
A cena é em Tebas. O antigo rei está morto, assassinado, a cidade está nas garras de
um terrível mal que assola as populações. Édipo lidera a investigação. A ação se passa
na frente russa, o coro grego é o Exército Vermelho. Os soldados cansados saem do
cinema "L'aiglon" como tantos na União Soviética, a rainha Jocasta é uma rainha
rechonchuda do Oriente.
E depois há as crianças. Um deles nos olha e seus olhos nos questionam: por
quê? Langhoff multiplica os anacronismos ao longo desta festa negra e também assina,
como sempre, uma cenografia de um poder violento que é um só corpo com a atuação
aguçada dos muitos atores russos da excelente trupe do Teatro da Juventude de
Saratov, cidade do Volga, famoso por sua vida teatral.
O Saratov Youth Theatre, também chamado de TUZ (pronuncia-se "Tiouz"), fundado em
1918, em plena revolução russa, foi durante muito tempo dirigido por Evgueni Kiselev
(1943-1996) que lhe deu as suas cartas de nobreza. Quando falamos de teatro juvenil,
na verdade queremos dizer teatro da nova geração, de jovens atores profissionais de
todas as idades. Ambicioso para desenvolver intercâmbios com países estrangeiros e
em particular a França. É nesse sentido que os diretores do TUZ (Yuri Osherov e Valéry
Raykov) decidiram convidar Matthias Langhoff. Nascia o projeto tirano Édipo , às
margens do Volga!
A MISSÃO
Relatório Langhoff
Em 1987, Matthias Langhoff, outrora esperado para dirigir a Comédie de Genève,
colocou no papel o que esperava de um teatro de seu tempo. Essas reflexões
constituem o famoso Relatório Langhoff . Marie-José Malis propõe a adaptação. Como
muitos diretores, foi por meio desse texto que ela conheceu a Comédie de
Genève. Lugar sonhado, redesenhado, a Comédia torna-se o emblema de todos os
teatros e o suporte de uma meditação sobre o trabalho, a esperança, a vida que ali se
leva. O texto de Langhoff, polémico, ideal, terá sido um dos marcos da existência deste
teatro, uma provocação amorosa, para que, refundado, se encontre ali ao mais alto
nível. Era hora de voltar!
Preocupar acorda para a obsessão da Argentina por seus mortos. Toda sociedade tenta
dialogar com seus mortos. É por meio dessa operação que vem da prática do médium
que podemos entrar no passado. O anjo da História atravessa o território do presente,
vira as costas ao passado, o seu corpo avança e o seu olhar aloja-se sobre os
acontecimentos passados. O caminhar do anjo é etéreo: não pousa sobre as coisas,
apenas sobrevoa. Mas aqui, neste país, na Argentina, o anjo parece ter “arrasado” a
História e os corpos que deixa pelo caminho testemunham a violência exercida desde
que esta nação procurou existir como tal. É, portanto, a relação complexa e violenta que
a Argentina mantém com os cadáveres (ou a ausência de corpos) que despertou em
mim essa ansiedade que poderia ser traduzida em algumas imagens e poucas
palavras. As mesmas pessoas que hoje sobrevoam - ou, talvez, "raspam" - esta sala.
Alejandro Tantanian
Quartett
Matthias Langhoff
Descrição de Quartet
1.- Demasiados espelhos. Perto do final, Madame de Merteuil exibe uma panó plia
de espelhos diante de Valmont para que ele "morra no plural". Também
Langhoff, em Valle-Inclá n, multiplica as imagens de Quartett, as pontes, as
associaçõ es laterais. Demasiado em cima: a eterna telinha moderna que vomita
uma torrente redundante e/ou alucinada. Popeye e Betty Boop, Marlene, as
ruas estasiadasda RDA, Marlene, os colaboradores de cabeça raspada para quem
Brassens cantava. Imagens que distraem, que cansam, que borram os espelhos
"abaixo". Abaixo está um crepú sculo americano pintado em madeira, uma van
encalhada no deserto de Mojave (digamos) e um tú mulo aberto. À direita, restos
de um camarote igualmente crepuscular, com cortinas e assentos roxos. Muriel
Mayette é Merteuil, com a dicçã o sublime e verdadeira de uma Madeleine Renaud
sem-abrigo. Em seu primeiro monó logo - "é a minha pele que lembra" - ela
poderia ser Winnie de Happy Days. Valmont pode ser um cadá ver ou um
fantasma. A princípio ouvimos apenas a voz de François Chattot, gravada, como
um eco que se desvanece.
R. Nã o. Era uma situaçã o que nã o era bem vista, mas as autoridades da RDA nã o
estavam interessadas em criar mais um má rtir.
P. Como nasceu Quartett?
R. O original é uma obra moralista que inclui uma grande crítica à decadência,
aos valores morais da aristocracia da época, tem que ser lida no contexto da
Revoluçã o Francesa. Para Mü ller, os personagens representam algo totalmente
diferente. Eles ainda sã o dois monstros, mas como qualquer um de nó s poderia
ser; ou seja, dois personagens dispostos a ir até as ú ltimas consequências no
combate entre os sexos para encontrar um fundo de verdade. O olhar dele é
muito mais freudiano, mais moderno, e nã o é ideoló gico, nã o tem crítica social.
Borges
Existem encontros incríveis, mas não tão insignificantes assim. O excesso latino de
Rodrigo García teve que enfrentar a grandeza barroca de Matthias Langhoff. A
ligação ? O ator. Desde que conheceu “seu” autor, Marcial Di Fonzo Bo, um dos mais
talentosos de sua geração, dedicou-se de corpo e alma a isso. Para tornar a família
perfeita, ele convidou seu pai teatral, o mais louco e proeminente diretor alemão,
Matthias Langhoff. Sem dúvida, é uma bomba que nasce dessa união. Borges é um
monólogo íntimo de Rodrigo García. Ele fala de seu amor pelo grande poeta argentino,
Jorge Luis Borges. Fala também da vida na Argentina e da necessária ida para a
Espanha. Ele diz e desconstrói: toda estátua deve cair de seu pedestal. Você tem que
matar o pai, profanar a figura mítica para redescobrir o humano, também a si
mesmo. Teatro de urgência, política e arte, mas também teatro de combate, a escrita de
Rodrigo García é chocante. Mas, como diria Nabokov em sua Lolita: "O epíteto
Chocante é apenas sinônimo de incomum, qualquer obra-prima implica de fato uma
criação original cuja própria natureza sempre acarreta um efeito de surpresa mais ou
menos violento".
Apollo Cinema
Matthias Langhoff co-escreveu Cinéma Apollo com Michel Deutsch , uma sequência
vagamente baseada no romance Le Mépris de Alberto Moravia . Uma forma de o
realizador traçar um paralelo entre a condição social e a relação amorosa, e explorar a
profunda intimidade de um homem abandonado. Uma história moderna e trágica no
foyer de um cinema, na hora de um filme...
Esta é a última sessão no cinema Apollo. No foyer, ouvimos a trilha sonora do filme
vinda da sala de forma intermitente. Há pôsteres de filmes e fotos de estrelas nas
paredes. Uma jovem, usando fones de ouvido, senta-se atrás do bar e de uma máquina
de pipoca. Um homem – possivelmente o diretor ou roteirista do filme – sai da sala e
pede uma cerveja à moça do bar. A hora de um filme, o homem conta sua história. Ele
conta como perdeu a mulher que amava, conta o cinema, o amor, o amor à venda,
Homero, a pornografia, a solidão, o desprezo, a traição e a melancolia dos cinquenta
anos... Recuperando o amor e o orgulho de sua esposa , aqui estão as duas obsessões
que habitam Riccardo.
O objetivo desta história é contar como, enquanto eu continuei a amá-la e não julgá-la,
Emilia, ao contrário, descobriu ou pensou ter descoberto alguns dos meus defeitos, me
julgou e, como resultado, deixou de me amar. . Estas são as linhas que abrem Le Mépris
de Moravia, então adaptado ao cinema por Jean-Luc Godard. O romance de Moravia e a
tragédia íntima desse homem imediatamente atraíram Matthias Langhoff. Mas o
encenador gosta de trabalhar com risco: “Não consigo imaginar um teatro que não dê
problema, que não abale, que não se comprometa. Venho de uma geração que estava
imersa nisso e não tinha medo disso. O escândalo do mundo é problema meu e é no
palco que posso transportá-lo para esmagá-lo, para examiná-lo. O teatro só existe no
momento: não há nada antes, nada depois. »
…Há quatro semanas, sozinho em minha casa, penso naquilo que me faz falta e
no porquê. De modo estranho, apesar de nã o ir lá quase nunca, penso no parque
Buttes-Chaumont que fica no meu bairro e está agora fechado ao pú blico. Por que
ele me faz falta se nã o o frequento por assim dizer, jamais? Ele me faz falta
porque sinto que ele faz parte da minha vida e que nã o posso imaginar viver aqui
no 19o distrito de Paris sem esse parque. Meu entorno sem ele seria uma espécie
de prisã o ao ar livre. Um parque é um lugar ideal de encontro com a natureza,
com outros seres humanos e cã es. Nã o se está só em um parque, mas ele também
nã o é um lugar de grandes aglomeraçõ es. As pessoas passeiam, leem um livro,
fazem jogging ou respiram o perfume de uma flor. Pode-se atravessá -lo
rapidamente porque é um atalho. Há á reas de jogo para as crianças, pode-se
olhá -las jogarem, pode-se também distanciar-se delas porque se deseja ficar
tranquilo. Ficamos irritados assim que uma pessoa faz baru- lho. Temos
pensamentos límpidos e pensamentos sombrios. Nã o temos necessi- dade de
massas de pessoas que vivem a mesma experiência de parque que nó s. Nele se
pode fazer a experiência das mais variadas relaçõ es com a natureza, com a vida e
consigo mesmo. Pergunta-se por que se deu tal forma à natureza, à vida e a si
mesmo. Perguntamos por que se deu tal forma à natureza, porque ela nã o cresce
como ela quer. Se tivermos sorte, o parque pode despertar o desejo de floresta,
dos grandes espaços e do mar. A visita ao parque é gratuita, mas manter o
parque em bom estado devora muito trabalho e dinheiro. E isso nã o incomoda
ninguém, porque um parque – é evidente, sem fazer qualquer cá lculo de custo e
benefício – faz parte de nossa vida, de nossa riqueza e nã o se pode imaginar
deixar de tê-lo. E nã o é verdade que ele nã o incomoda ninguém. Os refugiados
que vêm para cá para escapar à miséria e à lama e sã o proi- bidos de construir
um abrigo no parque, isso os incomoda. Exatamente, é o nosso parque e tenho
vergonha desse “nosso parque”. Mas apesar de tudo eu sonho com um teatro que
pertenceria à vida como um parque. Um teatro do qual os que procuram refú gio
teriam também direito de me expulsar se nã o lhes oferecessem nada de melhor.
…Sei que a ú nica coisa que escuto de meus mestres, hoje mortos, aqueles de
quem sempre segui os conselhos é: “Nó s fizemos o melhor que pudemos” ou “Se
quiser saber mais, junte-se a nó s”. Mais do que seguir esse conselho bem
intencionado, prefiro repensar na tarefa à qual estavam vinculados e que eles
pediram que fosse continuada. Brecht formulou essa missã o em seu libreto de
ó pera A decisão: “Transforme o mundo, ele tem necessidade disso”. Minha carta
concerne esta exigência de base. Quando sou obrigado a olhar na televisã o os
acontecimentos do mundo dominado pelos ví- rus, a primeira coisa que ouço é a
volta possível em breve à nossa vida de antes. Esse discurso é surdo e cego.
Depois de termos por muito tempo recusado ver e termos evitado as
consequências anunciadas da destruiçã o do meio ambiente, pensa-se agora em
vencer essa pandemia para que tudo continue como antes. Diz-se que tivemos
cada vez mais epidemias virais ao longo das ú ltimas déca- das, o que levou à
epidemia do coronavírus. Pode-se prever que a luta contra a Covid-19 prepara o
terreno para a apariçã o de um pró ximo vírus mais terrível ainda. Destruiçã o do
meio ambiente, pandemia, fome e miséria, guerras e sub- missã o ao dogma do
enriquecimento formam um conjunto que se nutre intrinse- camente até chegar
a uma catá strofe final. Essa catá strofe, que já se aproxima a grande velocidade é
visível no aspecto grotesco de um imbecil, feio, com uma patologia identificá vel
que, em plena pandemia, retira da Organizaçã o Mundial da Saú de US$ 400
milhõ es de contribuiçã o americana e olha sem fazer nada um mundo doente com
um ar enojado, mas inativo. Estou convencido de que apenas uma mudança
radical de nosso modo de vida pode nos salvar. Nesse contexto de morte, a arte
deve manter vivo o sonho de um mundo de justiça. É disso que quero falar na
minha carta, e é para esse sonho, meus amigos, que espero sua ajuda. É nosso
dever nã o permitir um “tarde demais”. É tempo também de reler “O teatro e a
peste”, de Artaud.
Três emissá rios da Repú blica de 1792 devem provocar uma revolta de escravos
na Jamaica, entã o sob o jugo da monarquia inglesa. Galloudec se apresenta como
um camponês que odeia 89 da Bretanha, Sasportas, como um escravo fugindo da
Revoluçã o Negra do Haiti para permanecer escravo, Debuisson, como filho de
proprietá rios de escravos. As má scaras grudarã o na pele ou cairã o. Enquanto
isso, Bonaparte toma o poder. Devemos continuar a missã o?
memó ria oculta de que o passado também foi um presente. Aqui, nã o se trata de
enterrar o passado uma segunda vez, mas de revivê-lo. “Os mortos lutarã o
Europa e o mundo oprimido. Ele tem uma vida difícil. A melancolia de Mü ller está
melhores momentos.
A necessidade a que este espectá culo é constrangido e nos constrange, na sua
RDA que escreveu sob vigilâ ncia, texto em que retomava a fracassada difusã o da
revoluçã o francesa nas Antilhas escravistas, tudo isto com atores da Escola
aéreo de Paris e texto de Marat, cavalos vadios entre carros e lixo de cidades
espectador, mas difrata em todas as direçõ es: muitas coisas estã o acontecendo
topo frá gil e vacilante evoca uma jangada meio destruída da Medusa. Cabe ao
directores estã o sentados atrá s da sua consola do lado do jardim, uma actriz
à vista, um cozinheiro cozinha uma sopa que será oferecida aos espectadores no
final... Nã o é todos os dias que se serve um sopã o na orquestra dos Célestins, um
dos teatros de estilo italiano mais antigos da França. Festival Sens Interdits
obriga, foi colocaçã o gratuita e preço acessível. O cheiro da sopa se espalha por
duas horas, transporta você para a Bolívia com mais certeza do que um
montante. Assim, um poema de Mü ller muito antes de sua peça se cruza com
tudo, uma citaçã o de Walter Benjamin funciona como um pró logo: “Há uma
pintura de Klee chamada Angelus Novus. Ele retrata um anjo que parece prestes
a se afastar de algo que está olhando. Seus olhos estã o arregalados, sua boca
aberta, suas asas estendidas. É assim que o Anjo da Histó ria deve ser. Seu rosto
está voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos nos aparece, ele vê
apenas uma ú nica catá strofe, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas
e as joga a seus pés. Ele gostaria de demorar, acordar os mortos e reunir o que foi
asas, com tanta violência que o anjo nã o pode mais fechá -las. Esta tempestade o
monte de ruínas à sua frente se eleva ao céu. Essa tempestade é o que chamamos
imagem. Este final dispensa comentá rios alegó ricos. Mas me lembro da figura
descartá veis deixados para trá s pela “Revoluçã o” industrial, vestígios da velha
Sasportas, é a tua cara. Meu rosto é minha máscara. Ou como Debuisson escolhe
trair a causa no exato momento em que Sasportas se casa com ele de frente.
traficante de escravos onde o rosto de Sasportas se funde com a sua máscara negra
nestes mesmos anos 1978 -1983, a Léone que assusta seu rosto para reproduzir o
signo tribal do rosto de Alboury, à amizade entre Müller e Koltès. Eles apoiam onde
Sasportas: “Nã o falaremos mais do seu general, já esqueci o nome dele, quando o
uma luta contra a Histó ria, reescrita pelos vencedores. A memó ria revolucioná ria
é revivida apenas pelas lutas do presente. É menos uma histó ria do que uma
corpo e a garganta.
sua implacá vel vigilâ ncia política: “É mais fá cil falar de uma revoluçã o perdida
***
O diretor gostaria que, quase trinta anos depois do Bicentená rio, A Missão
Boliviana voltasse ao caminho dos teatros que haviam sediado o espetá culo em
1989. Boa ideia. Langhoff escreveu aos diretores dos vá rios lugares. “Ninguém
me respondeu, exceto um, o diretor do Théâ tre de la Ville, Demarcy-Mota, que
disse sim a uma coproduçã o. Mas, depois, sem que ninguém me avisasse
pessoalmente, soube que na verdade o Théâ tre de la Ville estava desistindo de
receber La MissionBoliviano. Funciona assim agora. Nosso teatro na França é
como nossa política: é o mesmo pessoal. É um fenô meno europeu. Nã o é que eles
nã o me queiram, é que eles nã o querem nada. A Europa está se
destruindo. Discute, discute e pronto. Teatro é assim. Na Bolívia, o que eu fazia
fazia sentido e me dava ideias. »
Voltar para Aubervilliers
No entanto, uma turnê foi montada com lugares amigá veis: o CDN de Caen
dirigido por Marcial Di Fonzo Bo, o Théâ tre de l'Union dirigido por Jean Lambert
Wild, o CDN de Besançon dirigido por Célie Pauthe, o festival Sens interdict em
Lyon de Patrick Penot e, para começar, o Théâ tre de la Commune em
Aubervilliers dirigido por Marie-José Malis.
“Você sempre tem que pensar onde você joga. Nã o estar no 'festival de
exportaçã o'”, diz Langhoff. O Théâ tre de la Commune em Aubervilliers é, para
ele, um velho conhecido. Em 1972, neste teatro entã o dirigido pelo seu fundador
Gabriel Garran, Matthias Langhoff encenou Le Commerce de pain de Brecht com
um elenco francês.
ML: “O papel principal foi interpretado por um jovem ator argelino que vivia em
Aubervilliers. Todas as noites, as três primeiras filas eram ocupadas por
argelinos do seu séquito, da sua família, dos seus vizinhos. O prefeito de
Aubervilliers era entã o Jack Ralite. Hoje quero que os atores bolivianos o
conheçam. Que Ralite explique a eles como o Théâ tre de la Commune nasceu em
uma cidade onde nã o havia nada. Como em Santa Cruz. Aubervilliers entã o era
um pouco como Santa Cruz. »
Como ele dirigiu os atores bolivianos?
ML: “Nó s nã o dirigimos os atores. O diretor vem com suas experiências de vida e
trabalho. Ele só pode criar a partir de si mesmo enquanto descobre as pessoas
que estã o lá . Ele só pode fazer isso vir deles, caso contrá rio, os atores ficam à
margem. Por questõ es de meios, em Santa Cruz os atores fazem principalmente
teatro de rua e na trupe todos fazem um pouco de tudo. É um mundo muito
diferente. Um dos problemas que encontramos é que na Bolívia nã o há oficinas
de cená rio. A construçã o ali feita nã o era transportá vel. A CENOGRAFIA foi
refeita aqui para a turnê francesa em grande parte graças ao CDN Limoges que
tem bons workshops. É fá cil fazer cenografias estú pidas de papelã o como vemos
tantas delas, é feito rapidamente. É o trabalho que custa. Lá foi necessá rio
construir um piso em forma de onda. A miséria do teatro hoje é que estamos
constantemente pensando em reduzir o trabalho e que custa menos. Nã o é à toa
estar em Aubervilliers no teatro fundado por Gabriel Garran, por
"Gaby". Naquela época, os shows, mesmo os piores, tinham significado. Hoje, o
diretor de La Colline vai ao Odéon: que diferença isso faz? Nada. É como na
política. Há muitos talentos no teatro em França mas como podem fazer neste
sistema onde defendemos um teatro essencialmente decorativo...? Talvez seja a
idade, estou menos interessado nos outros, estou mais interessado em
escrever. Existem alguns atores como François Chattot, Gilles Privat, Charlie
Nelson que me inspiram. Com eles poderei escalarForça do Hábito de Thomas
Bernhard, mas nã o estou me movendo. »
Fadiga?
ML: “… ir ao mercado de Santa Cruz, ver as pessoas, pedir que digam alguma
coisa, que me deixa feliz, que me anima a trabalhar. Ontem à noite, o embaixador
boliviano que assistiu ao espetá culo ficou surpreso ao ver jovens bolivianos
defendendo o teatro dessa forma. Este espetá culo é deles. Nã o assisti
ontem. Voluntariamente. É uma disciplina. Quando o pú blico chega, o diretor tem
que se afastar. Encontre uma distâ ncia para ver melhor o show. Esqueço
relativamente rá pido e quando voltar a vê-lo, vou redescobri-lo. Veja o que está
faltando e entã o desapareça. O diretor é como um encanador, ele conserta e vai
embora. O que desempenha um grande papel para esta missão, é assim que os
atores bolivianos se reú nem. Antes do show, eles se encontram em uma sala e o
ator mais velho, aquele que faz Debuisson, a atriz que faz Sasportas e aquele que
faz Antoine, conversam com os demais. É o retorno à tribo onde é natural que os
mais fortes tenham a autoridade, cabe a eles dizer. Eles nã o têm um problema de
ego. »
(palavras de Matthias Langhoff recolhidas com Marion Canelas)
Théâtre de la Commune d'Aubervilliers
Berliner Ensemble
1963 :
Le Petit Mahagonny ( Mahagonny Songspiel ) de Bertolt Brecht
A compra de cobre de Bertolt Brecht
1967 : The Bread Trade por Bertolt Brecht
1969 : Sete contra Tebas de É squilo
Volksbühne Berlin
A Floresta de Alexandre Ostrovski
The Brigands, de Friedrich von Schiller
Otelo de William Shakespeare
1972 : Le Commerce de pain de Bertolt Brecht , Théâ tre de la Commune
1973 : O Pato Selvagem de Henrik Ibsen
1975 :
A batalha e o trator de Heiner Mü ller
Cidadão Geral de Goethe
1976 : A Floresta de Alexander Ostrovski , Schauspielhaus Zurique
1978 : O Príncipe de Homburg por Heinrich von
Kleist e Fatzerfragment apó s Bertolt Brecht , Schauspielhaus Hamburgo
1978 : Prometheus acorrentado por Eschylus , Théâ tre de Carouge
1979 : King Lear de William Shakespeare , Rotterdam
Schauspielhaus em Bochum
Teatro Vidy-Lausanne