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DRAMÁTICAS DO TRANSUMANO

e outros escritos
seguidos de

PINOKIO
roberto alvim

Roberto Alvim (1973) é dramaturgo, diretor e professor de Artes Cênicas. Escreveu e dirigiu
dezenas de peças, encenadas no Brasil e em países como França, Alemanha, Espanha,
Argentina, Suíça, México e Bélgica. Lecionou Dramaturgia e História do Teatro em instituições
como a Universidade de Córdoba, a ELT - Escola Livre de Teatro (SP), a CAL - Casa das Artes
de Laranjeiras (RJ), a SP Escola de Teatro, além de ministrar oficinas em diversos Estados do
Brasil, a convite do Ministério da Cultura - FUNARTE. Desde 2009 é professor e coordenador do
Núcleo de Dramaturgia do SESI em Curitiba. Foi o primeiro autor brasileiro publicado na mais
importante coleção de dramaturgia contemporânea européia, a Les Solitaires Intempestifs, em
2005. Em 2010, foi o Curador do FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO de São José do Rio
Preto. Foi Curador da Mostra DRAMATURGIAS, realizada no CENTRO CULTURAL BANCO DO
BRASIL (RJ) em 2009. Traduziu as obras de autores contemporâneos como Harold Pinter,
Gregory Motton, Arne Lygre e Richard Maxwell. Foi Diretor Artístico do Teatro Carlos Gomes –
Sala Paraíso (RJ) de 2001 a 2004, e do Teatro Ziembinski – Centro de Referência da
Dramaturgia Contemporânea (RJ) em 2005, onde criou o movimento Nova Dramaturgia Carioca.
Ministrou palestras e workshops em diversas Universidades (como UNI-RIO, USP, UFSC, entre
outras) e Festivais de Literatura e Teatro, no Brasil e no exterior. Colaborou com artigos sobre
dramaturgia contemporânea em revistas como a OUTRESCÈNE, do Theatre National de La
Colline (sediado em Paris), e a SALA PRETA, da USP. Em 2011, foi convidado a lecionar
dramaturgia em Bruxelas, para um grupo de autores europeus de diversas nacionalidades, pela
Cifas – La Bellone (Maison du Spectacle). Em 2012, foi convidado pelo projeto IBERESCENA e
pelo Centro Cultural da Espanha a lecionar dramaturgia para um grupo de autores latino-
americanos em Montevideo (Uruguay), e para um grupo de autores mexicanos em Guadalajara.
Em 2013, foi convidado pelo MINC a lecionar dramaturgia para um grupo de autores alemães,
durante a Feira do Livro de Frankfurt. Desde 2006 reside em São Paulo, onde dirige a
companhia CLUB NOIR, dedicada a encenar obras de dramaturgos contemporâneos. Além de
diversas indicações para os prêmios mais importantes do teatro brasileiro, foi o vencedor do
Prêmio BRAVO! 2009 de Melhor Espetáculo Teatral de São Paulo, por sua encenação da peça O
QUARTO, de Harold Pinter; e ganhou o Prêmio APCA 2012 (Associação Paulista de Críticos de
Arte) e o Prêmio Governador do Estado de São Paulo com sua direção e adaptação de todas as
tragédias de Ésquilo no projeto PEEP CLASSIC ÉSQUILO.
AUTO-RETRATO

Comecei no teatro como ator (e estive em uma série de espetáculos), mas logo fui pra
direção. Dirijo peças desde os 18 anos (completo 20 anos como diretor profissional em
2012); em meus primeiros anos de atividade, encenei A. Strindberg, Boris Vian, J.
Prevert, F. Kafka, Nelson Rodrigues, o Marquês de Sade, H. Pinter, G. Buchner, W.
Gombrowicz, textos inspirados em J. Lacan e na obra de Jean-Luc Godard, R. W.
Fassbinder, J. Baudrillard, entre outros grandes dramaturgos (e romancistas e filósofos,
que eu adaptava eventualmente). Até que, em dado momento, passei a ter dificuldades em
encontrar textos que disessem o que eu queria dizer, e da maneira como eu queria dizer.
Aí comecei a escrever. Isso foi em 1999 (ano de estréia de minha primeira obra como
autor, N.A.D.A. – Nenhuma Afirmação Depois de Agora), e daí em diante passei a dirigir
apenas minhas próprias peças, por um longo período, que vai de 1999 a 2005. Nestes sete
anos, escrevi muito, 16 peças, e todas estrearam no Rio de Janeiro. Algumas delas
também foram montadas em outros países, publicadas em outras línguas.
Comecei com uma dramaturgia desconstruída, fragmentada, fortemente onírica, baseada
em livres associações, repleta de hipóteses arriscadas, de proposições que fugissem ao
senso comum, com grande foco no desvelamento da construção de nossas identidades
sexuais, com um diálogo permanente com a História da Arte, dialogando também com o
momento específico que vivíamos (do ponto de vista político), seguindo uma série de
procedimentos que me interessavam no período, e que me pareciam mais reveladores de
uma lógica de construção da nossa subjetividade contemporânea (que, eu percebia, era
completamente distinta da dinâmica de signos de épocas anteriores). Queria revelar as
questões mais urgentes de nossa época, criar novos arquétipos, apresentar uma visão do
homem contemporâneo em cena, construir obras que dialogassem com o nosso mundo
atual, que não era mais o mundo do século XIX ou do século XX, através de formas
dramatúrgicas novas (que traduzissem novos e insuspeitados discursos). Em dado
momento, no entanto, me senti numa espécie de beco sem saída: comecei a achar que
estava me repetindo, repetindo formas, aprisionado em determinadas estratégias
dramatúrgicas recorrentes em meu trabalho de então, sem saber como avançar a partir
dali. Sentia que meu discurso não encontrava presentificação, concretização, tradução
cênica plena nas formas que eu utilizava. Aí fiz um grande mergulho em procedimentos
realistas: construí 5 peças em diálogo profundo com Ibsen. Tratava-se de uma tentativa de
escrever segundo a lógica deste estilo: tratava-se de perceber se o DRAMA ainda era
possível, se a forma dramática ainda podia dar conta de modo poderoso dos nossos
dilemas contemporâneos. Então escrevi obras norteadas pelo diálogo, com personagens
com nome e sobrenome (isto é, com gêneses completas), com uma trama muito definida,
e nas quais toda a ação se dava através das relações intersubjetivas entre as personagens,
mimetizando comportamentos cotidianos. Este período foi muito influenciado, também,
pela dramaturgia norte-americana realista (em especial, por Arthur Miller e Tennessee
Williams). Estas peças, todas elas psicológicas, sombrias, dramáticas (quase trágicas),
muitas delas de cunho eminentemente político, sociológico, tinham uma forma muito
convencional, atrelada ao estilo realista. Foi quase como uma percepção de que, para
realizar um trabalho realmente abstrato (e novo), eu tinha que passar por uma fase
figurativa, antes. Tinha que aprender a desenhar antes de pintar abstrações, tinha que
aprender a fazer o feijão com arroz antes de partir para a haute cuisine. Foi uma
necessidade imperiosa na época, e eu mergulhei nela completamente.
Aí me mudei pra São Paulo, criei o CLUB NOIR (com a atriz e diretora Juliana Galdino),
e comecei a tentar avançar a partir desse ponto, tentando finalmente descobrir minha
própria voz como autor, descolado de formas e discursos hegemônicos, reconhecíveis,
tentando criar novas estratégias, que traduzissem cenicamente outras possibilidades,
alteridades radicais em cena (para além do que eu tinha conseguido fazer na primeira fase
de meu trabalho). Considero este ano (2006) como o fim da minha fase de formação e o
começo de minha vida adulta como pensador de teatro, diretor e dramaturgo. Voltei a
dirigir obras de outros autores, sempre contemporâneos, nas quais eu percebia a força
revolucionária de escrituras que reconstruíam o mundo no palco segundo outras lógicas,
nos proporcionando ferramentas para redefinirmos (de modo autônomo) nossas vidas,
nossas idéias estabelecidas. E tentei fazer o mesmo no meu trabalho como dramaturgo:
descobrir outros modos de construir o tempo, o espaço, a própria condição humana,
através de manipulações inusuais da linguagem (que traduzissem e, sobretudo,
expandissem minha visão de mundo, que eu procurava desesperadamente descolar do
senso comum). Percebi que forma é conteúdo, e que o teatro é o lugar de construção de
linguagens que criem outras possibilidades para além da linguagem majoritária,
normatizada, hegemônica. Construir linhas de fuga, outras formas de habitarmos a vida,
fissuras, interstícios, brechas nos discursos da cultura, através de manipulações e
invenções da linguagem, através da construção de outras arquiteturas lingüísticas (e
portanto de outras arquiteturas de pensamento, de sensibilidade), através de habitações da
linguagem distintas da forma como a habitamos cotidianamente, culturalmente. O teatro
como campo de experienciação de uma outra possibilidade de vida. Mais que qualquer
discurso panfletário, analítico ou acusatório, compreendi que esta era a verdadeira
maneira de configurar um teatro profundamente político. O grande ato político, o mais
potente, não é retratar o mundo, mas reconstruí-lo completamente, através da
materialização de uma outra humanidade possível, que nos leve a questionar, na base, o
modo como pensamos, sentimos, vivemos.
O estatuto ontológico, para além da persona cotidiana, presente nas minhas encenações,
também é buscado na minha dramaturgia. O deslocamento para uma instância paralela
(não-cultural), para um universo paralelo que propicie a criação de uma outra experiência
do humano, que procuro como encenador, também é procurado na minha escritura.
Todos os grandes dramaturgos (clássicos e contemporâneos) são exemplos, não modelos.
Percebo a pulsão de ruptura com uma lógica cultural banalmente limitadora e redutora da
condição humana em seus trabalhos, e procuro esta mesma pulsão na construção de
minha obra. Analiso suas estratégias, o modo admirável como tensionam suas obras, mas
não as reproduzo; utilizo-os como exemplos de como a dramaturgia pode ser
revolucionária, pode nos levar a uma renovação completa de nossa noção de sentido, e
tento criar, à minha maneira, com estratégias tão poderosas quanto as deles, a minha
própria instância de deslocamento. São exemplos, volto a dizer, não modelos; mas são
nomes como H. Pinter, G. Motton, S. Kane, Heiner Muller, M. Vinaver, R. Maxwell, V.
Novarina, E. Bond, J. Fosse, J. Orton, Enda Walsh, S. Beckett, Arne Lygre, D. Harrower,
que provam que é possível, sim, reconstruir o mundo inteiro sobre o palco. Entender e
vivenciar a nossa humanidade de outros modos, transfigurando os significados,
configurando outros modos de subjetivação. Para isso, o trabalho de poetas como F.
Hölderlin e Robert Creeley, de romancistas como W. Faulkner, Herta Müller e Antônio
Lobo Antunes, de filósofos como L. Wittgenstein, M. Heidegger, J. Lacan, G. Deleuze e
Jorge Forbes, de pintores como J. Pollock, W. de Kooning, M. Rothko, Barnett Newman,
F. Bacon, Cy Twombly, e de teóricos da arte como David Sylvester, Clement Greenberg,
A. Danto, T. J. Clark, Paulo Sérgio Duarte, Mário Pedrosa, Ronaldo Brito, Paulo
Herkenhoff, Luiz Fernando Ramos (a quem eu devo, é fundamental registrar, alguns dos
conceitos que articulam os pensamentos contidos neste livro (a partir de inúmeras e
febris conversas que tivemos): a ideia de mimeses incognoscíveis; a inversão de mythos e
opsis nas operações do teatro contemporâneo; e a formulação de signos indecidíveis),
Sílvia Fernandes, Angela Leite Lopes e Harold Rosemberg também são estímulos
fundamentais.
As minhas atividades, como diretor, dramaturgo e teórico (e professor de dramaturgia,
além de tradutor de obras de autores contemporâneos), se alimentam todo o tempo,
impulsionando-se mutuamente na direção de caminhos desconhecidos. São linhas de
força que se atritam, me fazendo avançar. Sempre me vi como um diretor mais relevante
que como dramaturgo. Sempre achei que meu trabalho como encenador e teórico era
mais avançado que meu trabalho como autor; agora, com o Pinokio, acho que meu
trabalho como dramaturgo se localiza num lugar mais avançado que meu trabalho como
encenador (e acho que finalmente realiza – e amplia – minhas proposições como teórico),
o que me força, como encenador, a avançar mais, para dar conta dessa dramaturgia.
(Utilizo o termo avançar no sentido da constituição de uma obra que amplie o working
space do teatro e, portanto, que amplie a experiência humana de nosso tempo.)
Dedico este livro a todos aqueles (artistas, teóricos da arte e amantes do teatro) com quem
troquei pensamentos em diálogos crucias para o desenvolvimento destas ideias; aos
atores do Club Noir, que trabalham, efetivamente, na configuração biofísica destes
conceitos, expandindo-os em ato; aos dramaturgos de Curitiba e de São Paulo, que
trabalharam e trabalham comigo, cujas obras me levaram a criar os esteios centrais destes
escritos; e a Juliana Galdino, por me provar diariamente que o impossível pode se
presentificar.
DRAMÁTICAS DO TRANSUMANO

[apontamentos (...)
o teatro não é entretenimento – já existe entretenimento o suficiente
o teatro tampouco é reflexão – existem, hoje, inúmeras instâncias destinadas a
isto
o teatro é, sim, o lugar de experienciarmos o tempo, o espaço e a condição
humana de outros modos, para além da vivência que a cultura nos proporciona
isto, só o teatro pode fazer – este lugar, só o teatro pode instaurar
(O TEATRO COMO ALTERIDADE RADICAL)

não mais conhece-te a ti mesmo, mas sim inventa-te a ti mesmo (e inventar-se a si


mesmo, aqui, opera no sentido de destruir-se a si mesmo)

DRAMÁTICAS DO HUMANO DRAMÁTICAS DO TRANSUMANO


ordem vertical deslocamentos
orientação paterna cálculo
interacional
verdade certezas provisórias (ficções
performativas)
da impotência à potência da impotência ao
impossível
diálogo monólogos
articulados
raciocinar ressoar
compreender evocar/invocar
estático instável,
híbrido
hierarquia diferenças
radicais
sentido consequências
associativas
sujeito falante
personagem modos de
subjetivação
palavra fala
psicologia arquiteturas
linguísticas
edípica pós-edípica (novos moldes
arquetípicos)
estruturalista acoplamentos
do desejo
disciplina pulsão
descoberta invenção
indivíduo emissor
travessia do fantasma identificação ao sintoma
indecifrável
revelar o passado/diagnosticar o presente inventar o
futuro

transumano é a invenção de desenhos (im)possíveis que propiciam


experienciarmos a vida de outros (e imprevisíveis) modos. é a recusa de
uma idéia, surgida no renascimento (com ecos da grécia do século V aC e
do ethos cristão do século IV dC), que se expandiu (no iluminismo, e
paradoxalmente também no romantismo) e vigorou até o final do século XX
acerca do que seja o humano (e que tem agido como o maior mecanismo
de controle jamais concebido); é a criação de outros modos de
subjetivação, em desenhos instáveis que problematizam de modo radical
uma idéia hegemônica acerca do que seja o sujeito

o TRANS aqui não implica em transcendência, mas sim na invenção de


desenhos transitórios da condição (não)humana, em instabilidade e hibridação
permanentes. a invenção de outros, de infinitos modos de subjetivação,
aparentemente impossíveis, imprevisíveis. significa a criação de novos moldes
arquetípicos, a serem preenchidos por pulsões que teremos que inventar,
expandindo nossa experiência em veredas insuspeitadas

- uma questão estética é SEMPRE uma questão existencial -


toda técnica, ou procedimento, ou operação, está ligada a uma determinada
visão de mundo. neste sentido, empregar uma técnica existente significa
compactuar com (e subordinar-se a) uma visão específica da condição humana.
nenhuma das técnicas existentes no campo da dramaturgia se fundamenta na
transumanidade; todas corroboram e se fundam em uma idéia estratificada de
sujeito. novas visões de mundo pressupõe, inevitavelmente, a invenção de
outras técnicas que as traduzam e, sobretudo, que as expandam em direções
inconcebíveis (para o receptor e para o próprio artista) (por existencial entenda-
se, inevitavelmente, a integralidade do estar no mundo)
o conceito de pós-drama aponta para as transformações que ocorreram nas construções, mas
não para a mudança do solo sobre o qual estas construções se sustentam

a finalidade do teatro é a reinvenção da anatomia humana –


dramáticas (no sentido de sistemas dramatúrgicos) do transumano:
dramaturgia como reinvenção do homem (recusa do SER, aporte no
ESTAR)

- quem é você?
- meu nome é legião
porque eu sou uma multidão

QUEM ESCREVE QUANDO VOCÊ ESCREVE? ...uma escrita que não se dê a


partir de um sujeito estável, mas sim a partir de diferentes modos de
subjetivação (incluindo modos não-humanos), sempre em trânsito...

o deslocamento é o centro de gravidade


deslocamento entre distintas arquiteturas linguísticas, que promovam, cada uma,
habitações distintas da vida
este é o ponto central das dramáticas do
transumano, com todas as reverberações, filosóficas e existenciais, que
inevitavelmente eclodem desta operação

vide a obra de willem de kooning: planos pictóricos que se escavam uns de dentro dos
outros (transparências, bloqueios, insinuações de figuras, obnubilações e desfigurações;
eventos de naturezas distintas (de texturas, cores e constituídos a partir de
procedimentos distintos), EVOCAÇÕES e INVOCAÇÕES, em deslocamentos em diferentes
velocidades)

a- Deslocamentos permanentes, tanto no tempo/espaço quanto nos modos de


subjetivação, construindo miríades de trânsitos em contraste e ruído, produzindo
experienciações singulares e autônomas por parte de cada receptor;
b- Polissemia, através da proposição de signos indecidíveis quanto ao seu
significado último, mas poderosos o bastante para instigar nosso imaginário na
procura por (ou na invenção de) seus infinitos sentidos possíveis;
c- Construção de mimeses cognoscíveis apenas como a instauração de solos
para saltos em direção a mimeses incognoscíveis (a proposição de novas
mitologias, de novos moldes arquetípicos);
d- Outros desenhos da condição humana, que apontam para outras
possibilidades de experienciarmos a vida, através da criação de arquiteturas
linguísticas que transfiguram poeticamente nossa ideia estabelecida acerca do
que seja o real e que nos proporcionam outros modos de habitarmos a
linguagem (e, portanto, a existência);
e- A crença (operacional, aqui) na obra de arte como um sistema complexo de
relações formais, construído no mais amplo diálogo com sistemas anteriores,
que nos proporcione uma experiência estética outra, para além da vivência
proporcionada pela cultura.

{como o foco vai para a opsis, o mythos não se impõe como sentido (ou
mecanismo estruturador) da obra (a narrativa existe como o cadáver do pai
que jaz no fundo do oceano, obnubilado pelo mar revolto instaurado pelas
operações formais perpetradas pelo autor)}
problematizar a narrativa é derivação inevitável da problematização do
sujeito, posto que advém da problematização do sentido (a narrativa, como
o sujeito, é um mecanismo de sentido)

fechados, sem imaginação, impotentes, não-poetas, resta-lhes falar do mundo... não


percebem que, agindo assim, só mantém as coisas exatamente como estão...

1- textos encarnados como pictocoreografias; a instância de exploração


pictocoreográfica incide diretamente sobre a exploração de outras possibilidades
tipográficas (para além das rubricas), vivificando e ampliando o diálogo
dramaturgo – encenador – atores;

2- da dramaturgia estruturalista à dramaturgia como máquinadesejante;

4- se trata de uma dramaturgia da fala (de caráter performativo), e não da


palavra;

5- quando Artaud amaldiçoa a palavra, ele está se referindo a uma palavra clara,
comunicacional, e ansiando por uma fala da transversalidade, que atravesse os
significados, que nos alcance – e nos atravesse – de modo transversal, oblíquo;

10- dois procedimentos: a SEPARAÇÃO (ou o CORTE) entre cultura e arte; e o


ESBURACAMENTO (ou ATRAVESSAMENTO), ligados à instauração de uma
experiência oblíqua, polissêmica, de atravessamento por signos que não podem
ser fechados em significados unívocos;

14- o teatro é o lugar em que o homem se refaz;

15- não é que uma peça comporte também a presença do público, ela é (única e
exclusivamente) esta relação (quem se desloca é o receptor);

21- o inconsciente não é um teatro: é uma usina. por extensão, podemos aferir
que a palavra não é a expressão de algo, mas sim uma usina de imagens,
sensações, significados indecidíveis;

22- o inconsciente tem, portanto, mais relação com produção (Artaud, Deleuze,
Lacan) do que com descoberta (Freud, Jung); tem mais relação com o futuro
(que não existe, e que por isso pode ser inventado) do que com o passado (que
já existe, e que portanto só pode ser descoberto ou interpretado);

24- Artaud e Valère Novarina estão conectados pela influência profunda que
seus trabalhos sofreram das leituras esotéricas, e pela tentativa de recuperação
do uso mágico das palavras. o uso mágico é aquele que não comunica, mas que
desloca, transporta, expande em trânsitos permanentes, em instabilidade de
sensações e de significados. mas desloca para onde? a experiência é autônoma
para cada receptor, e é apenas desencadeada (e não conduzida) pelo artista;
25- o ponto essencial não é a palavra: como na magia, tudo só acontece se a
maneira de falar ativar as palavras. é a fala, não as palavras; é preciso que os
dramaturgos compreendam e lidem com isto, escrevendo uma dramaturgia da
fala;

26- não se trata de entendimento, mas sim de intensidade. produção de


intensidades, produção de diferentes espécies de intensidade;

33- em termos de estratégia de construção dramatúrgica, a produção de


intensidades é absolutamente distinta do sistema acumulativo de Hegel – e isto
afeta profundamente a percepção do tempo;

34- posicionar-se ferozmente contra jogos de linguagem estruturalistas, contra o


conceito de estrutura, na medida em que o avesso da estrutura é o puro estar no
desejo; a dramaturgia como máquinadesejante é potencializada pelo fluxo
esquizo do desejo;

38- o texto dramatúrgico como corpo sem órgãos: DRAMATURGIA SEM


ÓRGÃOS. assim como Artaud se rebelava contra a estabilidade e passividade
do corpo humano, com seus órgãos cumprindo sempre as mesmas funções,
precisamos problematizar os esteios do drama tradicional (personagem, conflito
(sempre que identificamos um conflito, é porque se trata de um conflito
normatizado), trama) e transmutar estes órgãos, revolucionando-lhes os
sentidos e funções para além de instâncias reconhecíveis;

39- alienar os dramaturgos: mas aliená-los do que? do eu cultural, que sempre


age por hábito (por ventriloquia);

40- o que precisa ser realmente eficaz não é a narrativa, mas o gráfico de forças
que o autor mobiliza em sua escritura;

41- um teatro de invenção, não de descoberta: não é algo que existe, mas algo
que se inventa;

43- transformar maldizer (de maledicere, amaldiçoar) em mal dizer: a maldição


torna-se má dicção, e os supliciados pela linguagem comunicacional (não-
poética,
não-transfiguradora dos sentidos culturais) passam a supliciar a língua –
arrancam a pele das palavras, desencobrem (no dizer de Heidegger) as frases
deixando vir à luz sensações e imagens insuspeitadas, dilaceram o corpo
ordenado do pensamento (através da criação de outras arquiteturas linguísticas,
isto é, através da criação de outras habitações da linguagem); abandonam a
linguagem e suas leis para retorcê-las. mal dizer é infligir à língua uma torção:
elogio do aborto do verbo comunicacional; o sagrado (isto é, aquilo que minha
razão não alcança completamente) só pode decantar quando da instauração de
vacúolos comunicacionais (as peças), habitados, porém, por signos tão
poderosos que nos instiguem a procurar por seus significados – ou a inventá-los;

45- Artaud: que minhas palavras soem como francês ou papuano pouco me
importa. mas se eu cravo uma palavra violenta como um prego quero que ela
supure na frase como uma equimose com cem buracos. supurar: infeccionar a
ordem do corpo, formar pus, expelir pus – conexão direta com a idéia de rizoma
em Deleuze;

46- o texto de teatro deve soar como uma língua desconhecida, estrangeira,
inventada, não-familiar (isto é: poética – penso em Heidegger, em seus ensaios
sobre os poemas de Holderlin), cujos significados rizomáticos (ou purulentos...)
nos atravessam de modo oblíquo – os buracos que estes atravessamentos
abrem em nossa frágil ilusão de ordem supuram; linguagem que promova um
movimento de regressão violenta a um estágio infantil (estado de espanto diante
das coisas), que nos indivíduos possuídos pela sociedade comprime sua força;

49- o que é escrever? é inventar um corpo sem órgãos, ou seja, criar um objeto
polissêmico, não-estrutural, cuja construção seja guiada por acoplamentos do
desejo (seio-boca; pênis-vagina; língua-cu; pé-dentes; mão-barriga; entre
infinitos outros acoplamentos não-normatizados, esquizos) que se instaure como
o inverso do cadastro anatômico do corpo orgânico, é inventar uma coreografia
pictórica, uma dança pulsiva de signos indecidíveis em uma página; Artaud: este
desenho é o esforço que tento neste momento para refazer corpo com ossos
das músicas da alma (note-se o plural: músicas, o que denota a instabilidade e o
trânsito (deslocamentos) permanente entre diferentes instâncias de produção e
recepção de fluxos);

50- criar trânsitos imprevisíveis entre FIGURAÇÃO e DESFIGURAÇÃO: por


FIGURAÇÃO entenda-se signos de significado unívoco; por DESFIGURAÇÃO
entenda-se esburacamentos nos significados convencionais;

51- cultura é tudo o que nos fazem a nós; arte é o que nós realmente fazemos –
é um testemunho que macula o estado de coisas a nós brutalmente imposto
pela ordem cultural do mundo.

uma arte só sobrevive na medida em que se reinventa (na medida da reinvenção


permanente de sua linguagem); sempre foi assim na história do teatro, desde
Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Shakespeare, Ibsen, Tchekov, Nelson Rodrigues...
são estes grandes dramaturgos do passado que nos servem de exemplo (e não
de modelos): autores que deram contribuições que resignificaram
completamente a dramaturgia (e a humanidade) em seus períodos de atuação.
não se trata aqui de descobrir o passado, mas sim de inventar o futuro –
ecoando, portanto, o impulso criador de todos os mestres de outrora

esquizofrenia como sistema estético


nosso projeto artístico é o de instaurar experiências estéticas que nos
propiciem desfrutar dos sintomas da esquizofrenia (quando digo nosso me
refiro à multidão que habito)
a esquizofrenia é nossa meta; desfrutar de seus sintomas: nosso projeto
{esquizofrenia: do grego squizo: dividir; e phren: parte do corpo identificada por fazer a ligação
entre o corpo e a alma (literalmente: diafragma) / divisão da mente / dissociação que se percebe
entre si mesmo e quem habita o corpo / o fim do sujeito como UNO}

o sujeito que age não percebe que é o modo como ele se estrutura linguisticamente que o faz agir
desta ou daquela maneira. o modo como falamos é o modo como habitamos o mundo (gerando esta
ou aquela qualidade de ação)

a linguagem precede o sujeito


o sujeito é só um efeito de linguagem

who needs action when you got words


a fala é ação: criação de tempos, de espaços, de modos de subjetivação
a fala é criação de mundos e de modos de habitarmos a vida
uma linguagem é uma forma de vida
(a palavra é ação quando cria mundos, não quando comunica ou expressa)
EU FALO: EU EXISTO

o poder epifânico de criação e recriação perpétua do mundo que as palavras


tem
na medida em que para cada nova arquitetura linguística corresponde uma nova
e imprevisível habitação do mundo (gerando outras formas de ação)

(situar-se contra qualquer forma linguística hegemônica)

se isto não for atacado pelos dramaturgos, os discursos se tornam tão anódinos
quanto qualquer comercial de TV, independente de seus conteúdos
posto que não adianta dizer algo, mas sim habitar o mundo de outros
modos
é a própria linguagem que deve parar de atuar na esfera do dizer e proporcionar
outras habitações, pela criação de outros modos de subjetivação, através de
outras arquiteturas linguísticas
agir com as palavras como age o GÊNESES bíblico
a teoria só faz sentido para aqueles que já acordaram e sentiram o cheirinho do café. (hermann nitsch)

talvez o espaço e o tempo (o modo como os experienciamos) cheguem a


um fim em uma singularidade – esta frase do físico george f. r. ellis e as
analogias que podemos traçar no campo da criação de sistemas
dramatúrgicos...

o importante aqui não é nem a compreensão exata destes conceitos, mas sim as
analogias que podemos traçar (algumas delas até baseadas em ruídos e
compreensões equivocadas), e que podem catapultar processos criativos que
proporcionem outras experienciações do tempo e do espaço. o importante aqui é
que estes conceitos operem criativamente; afinal, não estamos construindo, em
nossas peças, teses ou modelos físicos (mais ou menos fiéis) de funcionamento
do real, mas sim inventando outros mundos, habitados por outros modos de vida

só o que existe é o tempo e o espaço, e o modo como os experienciamos a


partir do desenho específico que fazemos da condição humana
(assuntos são apenas ficções performativas, que empregamos
provisoriamente em cada obra)

habitar a instância do desejo (o que significa destruir a si mesmo), ou passar a vida


obliterando o gozo (o seu e o dos outros...). pois bem, é preciso destruir a si mesmo

(não se pode parar diante de um pollock e procurar o sistema de relações


formais com o qual velasquez trabalhava. se o fizermos, pollock parecerá um
péssimo pintor (o azar, em todo caso, será somente nosso: perderemos a
possibilidade de vivenciarmos a experiência estética proporcionada por pollock))

EXPERIÊNCIA NÃO É ALGO QUE SENTIMOS, É ALGO QUE FAZEMOS

o idiota se mantém inseguro a respeito dos vínculos produzidos pelo desejo. não acha
este tipo de vinculação possível ou justa. sente-se agredido na base de sua existência,
que é a busca por respostas definitivas; respostas provisórias, instáveis, mutantes,
polissêmicas, produzem nele extrema ansiedade

SUBJECT: NOT HUMAN


os idiotas se apegam a ilusão apaziguadora dos discursos e dos "conteúdos", apenas porque
são incapazes de experienciar a potência transfiguradora de um sistema complexo de relações
formais
os idiotas ainda vêem a si mesmos como humanos (segundo uma idéia renascentista acerca do
que seja a condição humana)
o que é valorizado em nossa cultura são obras que DESVELAM (desvelam
camadas do humano, fundamentadas portanto em uma ideia estabelecida
acerca do que seja o homem), e não obras que INVENTAM outras humanidades
(insuspeitadas, imprevisíveis, inaugurais). o que é valorizado em nossa cultura
(e muitos artistas optam hoje por uma espécie de supernaturalismo
pateticamente (e propositalmente, inclusive!) anódino para dar expressão a isto)
são obras que trabalham com o que é intrínseco ao “si mesmo”, e não obras que
instauram e se colocam como algo EXTRÍNSECO ao “si mesmo” (já que este “si
mesmo” é sempre cultural). o que é valorizado em nossa cultura é a maior
habilidade na execução demonstrativa (o que se chama de "interpretação") de
uma ideia conhecida acerca do que seja a condição humana, e não a invenção e
instauração (sempre espantosa, sempre repugnante) de outras habitações do
tempo e do espaço ainda não-experienciadas

não estou professando um credo, mas sim destruindo credos para que
singularidades possam ser inventadas

o teatro é o buraco negro

os trânsitos permanentes de tempo que acontecem nestas dramáticas


resultam em uma espécie de fim do tempo (o tempo como trajetória, o tempo como linha,
o tempo como história). movimentos constantes de criação de tempo/espaço/modos de
subjetivação para acabar com o tempo/espaço submetido a um sujeito estável

e, então, quando o quando já não é mais sentido senão provisoriamente, o


espaço se torna tempo

se o espaço entre os eventos se torna (para uma percepção humana)


praticamente imperceptível (pela vertigem da instabilidade), paradoxalmente,
mesmo em meio a uma série de eventos, teremos uma sensação de não-tempo
– graças aos deslocamentos

(não existe menção à atemporalidade nesta proposição, mas sim à


singularidade. tudo tem relação com o conceito pré-socrático de hapax
(instantaneidade do instante), que precisa ser vivenciado e não discutido)

(a operação de produção de intensidades (na qual A OBRA FUNCIONA


COMO UM PONTO PARADO NO ESPAÇO, MAS QUE MUDA DE
COR O TEMPO TODO), ao contrário do sistema acumulativo (trajetória –
linha – narrativa) hegeliano)
quem, lúcido, se compreenda, se explique, se justifique e domine seus atos,
jamais fará um gesto memorável - e. m. cioran

quando se fala por aí de alteridade, em geral refere-se a diferentes modos de cultura. isto,
francamente, não interessa. refiro-me a outra coisa: a outras formas de habitarmos a vida,
para além da cultura. e, sim, eu estou falando de algo impossível, de algo que não existe -
e que por isso mesmo precisa ser inventado
dramáticas que não se fundamentem mais na idéia acerca do humano com a
qual lidamos desde o renascimento. dramáticas que se proponham não a
espelhar o mundo, mas a inventá-lo: outros mundos, habitados por outras
formas de vida

(é contra a aceitação de uma determinada idéia hegemônica acerca do que seja


a condição humana que eu estou gritando. se isto não muda, não muda nada)

talvez o que estejamos fazendo com nossas dramaturgias seja a indução


de estados esquizofrênicos de consciência - com toda a imensidão de
reverberações que isto implica
não indução; desencadeamento talvez seja um termo mais apropriado

esquizofrenia é só um apelido da alteridade radical;


é só uma indicação polissêmica de outros modos de vida;
é só a vereda movediça do transumano

DRAMÁTICAS DO TRANSUMANO parte II


[mais apontamentos (...)

fala quem tem esperança, e vice-versa. (l. wittgenstein)

together AND in contrast... all the thing (the theatre): is all about magic. all about magic...
(magie noir, love, poetry, and the face of god)

é tudo sobre magia. e sobre amor, e sobre poesia (não na tradição do eu lírico
memorialista, mas na transfiguração de toda estabilidade). aí/aqui o invisível se torna
perceptível - obliquamente. transfigurar toda a nossa percepção estabelecida acerca do
que seja o real; é preciso apenas uma mudança no ponto de apoio em que trabalhamos

o susto, o espanto diante da experiência transumana é o mesmo: aqui (no brasil) e lá fora.
o que também dá a certeza de que trata-se de uma outra coisa, que amplia o campo de
trabalho do teatro (e portanto da experiência humana) em veredas desconhecidas até o
momento

na apreciação destas obras há desde raiva indignada até maravilhamento diante do que
chamam de abertura de novas possibilidades para o teatro (e há, de modo geral,
estranheza diante dos sistemas formais não-reconhecíveis). bom sinal, todas estas reações
– não porque se busque a estranheza, mas porque ela é inevitável quando se trabalha com
sistemas formais fundantes, que traduzem e expandem percepções singulares, não-
culturais

o fato é que a sala em que se está, o tempo, o espaço e a percepção que temos de nós
mesmos se alteram completamente ao final das apresentações (e durante, de várias
maneiras, em deslocamentos e instabilidade permanentes). isto é o poder transfigurador
da poesia presentificada em ato radical; isto é o poder destas complexas (e simples, muito
simples, embora nunca fáceis) dramáticas

transmutação e metamorfose: radicalidade em ato que, um dia, talvez venha a ser


minha glória póstuma. (f. nietzsche) (com ecos de heráclito)

magie noir é apenas um apelido para a invenção de procedimentos empíricos que bordejem
o abstrato, o inominável, novos moldes arquetípicos, outras estruturas mitológicas - o
impossível feito carne, e a carne feita luz e trevas (desvio para o vermelho, desvio para o
azul)

escrever uma peça é criar tipos específicos de INSTABILIDADE

para mudar o mundo, completamente, só é preciso falantes e palavras - não palavras que
expressem (e portanto compactuem com) sensações e vivências culturais, mas palavras
que, atuando como o gêneses bíblico, criem outros mundos, outras experiências de
habitação da linguagem, distintas da vivência conhecida. aí mudamos o mundo - porque
inventamos a nós mesmos
(só precisamos de falantes, criando tempos, espaços e outras formas de vida, em trânsito
e instabilidade, em habitações linguísticas OUTRAS)

vide HERÁCLITO, F. HOLDERLIN, F. NIETZSCHE, F. SCHLEGEL, M.


HEIDEGGER, o último L. WITTGENSTEIN (do investigações filosóficas), G.
DELEUZE, J. LACAN. vide, e continuemos em frente, para o alto e avante! (não se
trata de fazer melhor, mas sim de fazer mais bonito do que os que vieram antes de
nós, justamente por amor a eles e por um respeito profundo às suas obras)
(e não podemos esquecer, nesta estranha linhagem que tracei, de A. ARTAUD, que a parte todas
as leituras estereotipadas de seu trabalho, permanece uma luztreva que nos aponta para o
impossível que podemos, enfim, instaurar no teatro)

é uma linhagem aforística, anti-sistêmica, de ruídos e de produção de pensamento por


OUTRAS vias - experienciais, da ordem dos ecos e das ressonâncias, da ordem de
articulações rizomáticas

(quando digo impossível, o faço com um sorriso de felicidade


haja vista que todas as proposições que nos são mais caras nos levam não da impotência à
potência, mas sim da impotência ao impossível)

em nossas escrituras, O QUE se relaciona com a fonte pulsiva, com o


sinthoma de cada autor; e o COMO se relaciona com invenção. em analogia
com o comportamento da luz no universo: DESVIO PARA O VERMELHO
(para a origem, para o arcaico, para os arquétipos reconhecíveis,
constitutivos, intrínsecos), em tensão permanente e insolúvel com o DESVIO
PARA O AZUL (para o fim, para o futuro que ainda não existe, para os novos
arquétipos que funcionam como moldes a serem preenchidos por pulsões que
teremos que inventar, algo extrínseco ao si mesmo)

(no fundo, isto é só um outro modo de propor a dúvida de CÉZANNE, que motivou p.
picasso e a. giacometti e w. de kooning (entre muitos, muitos outros artistas) ao longo de
suas trajetórias criadoras)

o teatro não é uma arte conceitual, mas sim um fazimento, algo que só se dá e só se
instaura no ato de fazer (que é sempre muito maior do que qualquer conceito, posto que
não cabe em conceitos...)
os conceitos só podem agir como disparadores de processos criativos de fazimento, que
sempre resultam imprevisíveis e maiores que os conceitos que os originaram

demoiselles d`avignon, de p. picasso: mais de 10 anos sendo motivo de piada, até por parte dos pintores que
eram seus amigos mais próximos. hoje em dia, é vista como uma das obras mais importantes do século XX,
tendo influenciado toda a produção artística da segunda metade do século. um exemplo incrível de arte como
sistema complexo de relações formais, construído no mais amplo diálogo com sistemas anteriores, e que
proporciona uma experiência estética outra, distinta da experiência cultural (conhecida). (nada causa mais
repulsa à mente medíocre que a alteridade; os cães ladram, sempre ladraram, continuarão ladrando...

escrever é separar-se de si mesmo


potência de vida pensada e vivida como uma morte múltipla
{subjetividade é o nome de uma ficção moderna, também chamada de EU ou SUJEITO}

fé é a percepção (intuitiva) de que sempre existirão coisas que eu não conheço. o espanto
pode estar (e está) na próxima esquina, ou, dito de outro modo, na próxima invenção
- e nós (a humanidade) estamos apenas começando (e não terminando, como querem
alguns)

o ato é um verdadeiro acontecimento. nada mais será como antes depois dele. (j. lacan)
- e o maior, o grande ato, é a fala, posto que cria. a fala que cria

(o ato é da ordem do disparate, da distração, quase que do acaso...)

lacan, seminário 23, o sinthoma


é aí/aqui/lá que está
a coisa

{a coisa, para Lacan, que é diferente da coisa freudiana (das ding), é o próprio estranho)

toda dramaturgia são satélites circulando o objeto-a(usente)


toda dramaturgia são luas orbitando o que não cessa de não se
inscrever

toda?

agora que sabemos disso?

não que se trate de presentificar o objeto-a, mas sim de invocar O-


objeto:

desembocar no ISTO

eis o futuro (?)


(só O-objeto constitui-se como alteridade radical em relação ao eu ou ao
nós)

O-objeto é o devir?
é.
mas virá? poderá vir?
eis a questão impossível que exige - HOJE - enfim sua resposta (que será de novo uma
pergunta, mas uma pergunta que até então não havia sido feita)

na medida em que o objeto-a é o centro gravitacional das dramáticas do humano,


e O-objeto torna-se a mimeses incognoscível das dramáticas do transumano

O-objeto é impossível - até que seja invocado. o objeto-a é impossível também, mas
assim permanece, na medida em que a única operação que pode bordejá-lo, apontar para
ele sem tocá-lo, é a evocação

o objeto-a é a morte, e a morte é impossível. O-objeto é tornar real algo inventado (algo
que não existia, absolutamente), e invocá-lo é ampliar o real (!). operação utópica? talvez
sim, talvez não. eu digo que não, sendo, obviamente, sim

(mimeses entendida como atualização, não imitação)

analogamente: o buraco negro se comporta como o objeto-a quando estamos FORA


dele,
e como O-objeto quando estamos DENTRO dele

o significante precede e determina o significado


determina, mas não para quem (e, portanto, não em qual sentido)

alguns procedimentos:

- contraste: gerado por 2 (ou mais) eventos de naturezas distintas;

- ruído: gerado por 2 (ou mais) procedimentos que operam de modos


distintos;

- derretimento: pontos instáveis de hibridação entre diferentes arquiteturas


linguísticas (entre diferentes modos de subjetivação);
- deslocamento: movimento (que ocorre no espaço mental/sensível do
receptor) entre diferentes tempos; espaços; modos de subjetivação;
direcionamentos do discurso; usos da linguagem (evocação (trazer à mente,
como uma lembrança, uma memória; referir-se a alguma coisa) e invocação
(presentificar; construir tempo e espaço com as palavras; instaurar, pelas
palavras, algo ou alguém, que não estava ali antes das palavras serem ditas));

- transmutação de sujeito (não há sujeitos estáveis, mas emissores que


habitam provisoriamente, através da linguagem e, sobretudo, NA linguagem);

- figuração (unívoca) e desfiguração (polissêmica), em tensão;

- monólogo dialógico (quantos modos de subjetivação cabem em um único


emissor?).

(é importante perceber que para cada modo de subjetivação corresponde uma


experienciação singular do tempo e do espaço (e não só uma localização
distinta no tempo e no espaço))

(também pode-se definir o derretimento como momentos de contaminação de uma


arquitetura linguística por outra)

as operações citadas são procedimentos que trazem a imprevisibilidade, que


vivificam nossa atenção e conexão com a obra, e que a tensionam (nos
tensionando)

sobre velocidade:
a- variação na velocidade de deslocamento entre 2 eventos;
b- rítmica interna de cada evento;
c- dimensão do evento (dimensão no sentido de tamanho)

sobre variações em cada evento:


- tempo;
- espaço;
- modo de subjetivação (arquitetura linguística);
- direcionamento do discurso.

(às vezes estas variações se dão em zonas muito claras, e às vezes em interzonas híbridas,
nebulosas)

não mais fragmentação OU continuidade, mas sim fragmentação COM (ou


EM) continuidade
(ou em fluxo contínuo)

[isto é, nem a poética grega, nem tampouco a poética medieval}

riverrun

no tópico {variações em cada evento}, deve-se acrescentar:


- lugar a partir do qual se fala (lugar no sentido da lógica da opsis)

é preciso ter fé no poder epifânico da linguagem

no tópico {alguns procedimentos}, acrescente-se:


- monólogos articulados: quando um signo plantado em um evento
monológico floresce com outros sentidos em outro evento monológico

entre {alguns procedimentos}, acrescente-se:


- contração temporal (que pode ou não incluir saltos espaciais);
- dilatação temporal (abertura de bolsões no tempo, e exploração destas
imensas e insuspeitadas searas)

o espaço está sendo criado na medida em que o universo se expande


- o universo se expande na medida em que o espaço é criado)

nos anos 50/60, a guinada do expressionismo abstrato (j. pollock, b. newman, m.


rothko, w. de kooning, entre outros) rumo à liberdade artística foi associada (por
alguns críticos e teóricos da época) ao individualismo de direita. a liberdade
criadora (no sentido da grande libertação do "si mesmo" cultural) da arte abstrata
norte-americana (forjada quase completamente por imigrantes, diga-se de
passagem) foi usada por políticos do período como propaganda (no auge da guerra
fria) contra o comunismo, que tinha sua expressão estética no realismo socialista
(movimento anódino que só encontra espelhamento na arte nazi, com a diferença de
que na rússia os quadros eram povoados por trabalhadores com seus macacões de
operários, enquanto na alemanha nazista eram gigantes nórdicos com roupas de
tirolês tendo a floresta negra ao fundo). foi neste momento que a forma não-
figurativa (efetivamente revolucionária, na medida em que reinventa integralmente
o homem, o mundo, a vida) foi associada à alienação e à burguesia, sob a pecha de
"formalismo". desfazer este nó histórico, este equívoco responsável pela idéia que
temos até hoje acerca do que seja uma arte política, é tarefa imperiosa - e urgente

(lembrando que a arte abstrata russa, revolucionária e política sob qualquer prisma, foi
inteiramente assassinada e banida quando stalin chegou ao poder. falo dos imensos
malevitch e kandinski, por exemplo)

foi mais ou menos o que aconteceu com s. beckett quando sua obra despontou, com a
diferença de que martin esslin conseguiu convencer as pessoas de que beckett era um
escritor humanista (?)

como a arte é exceção (enquanto a cultura é a regra), trata-se sempre de proporcionar


experienciações estéticas (ou seja, sensíveis: da ordem da sensibilidade) que nosso
entendimento existencial desconhece até aquele momento.

às vezes se pôr no espaço


outras vezes espacializar

se pôr no espaço é permitir a decantação biofísica que se dá quando cessa a linguagem.


espacializar é criar espaços outros através da linguagem, NA linguagem, em habitação
da linguagem.

a rã é o paradigma destas dramáticas - híbrido aos saltos

se você não trabalha mais com o mythos, a única maneira de sustentar uma peça em
pé são os diferentes e imprevisíveis e infinitos tipos de deslocamentos; porque o
mythos existe, fundamentalmente, para promover mudança (no caso, na esfera da
narrativa: das personagens, da situação ficcional), e os deslocamentos promovem
mudanças todo o tempo – mas na esfera da opsis. a mudança (elemento central da
arte) se mantém – potencializada ao infinito

a vida é percebida na mudança, nos contrastes (d`aprés spinoza)


não é porque você faz rimas que é um poeta
não adianta seguir o logos dos deslocamentos, se os eventos em si são fracos como
elaboração
(cada evento precisa ter sua qualidade específica, e esta qualidade precisa ser potente em
sua especificidade)
o único modo de aferir a potência de um evento é perceber seu poder de abrir cortes em
nós – cortes que se abrem para acoplarem-se com o evento, para receberem (e
responderem ao) seu fluxo

1- Quem se desloca?
2- O receptor, a sua percepção
(a obra de teatro acontece não no palco, mas na platéia, no espaço mental/sensível de
cada receptor, e acontece de modos diferentes para cada pessoa) (eis o melhor critério
para aferir se uma obra é arte ou não: se todos na platéia riem no mesmo momento, ou
choram no mesmo momento, é porque se trata de uma obra cultural (norteada pelo senso
comum, instauradora de sistemas formais reconhecíveis), que conduz de modo cultural
as percepções, que nos trata a todos como criancinhas – ou como ovelhas sendo tocadas
para o curral. em uma obra de arte, enquanto alguém ri na platéia, outro alguém chora,
e outro alguém empalidece; as reações de cada membro do público serão completamente
distintas, na medida em que não se trata de conduzir as percepções, mas sim de
desencadear processos sensíveis autônomos) (o teatro (como ARTE) não é algo que
harmoniza a sociedade, que nos integra como povo (isto é o que a CULTURA faz); o
teatro (como ARTE) desarmoniza a sociedade, nos desintegra como povo, na medida em
que nos separa de nós mesmos)

são dramaturgias performativas: quando se lê uma destas peças sozinho, em


silêncio, os deslocamentos não se dão plenamente, só apontam ligeiramente (graças
às
diferentes tipografias).
é apenas quando as ouvimos, faladas (ativadas) por atores, que os deslocamentos
podem se dar plenamente, pelas diferentes intensidades e texturas vocais, pelas
diferentes
habitações sensíveis instauradas imprevisivelmente no tempo e no espaço,
momento a momento

...nunca se tratou de dizer coisas com as palavras, mas sim de fazer coisas com elas (ou
de permitir que elas façam coisas conosco). neste sentido, não há limites para os usos da
linguagem, nem há terreno que não possa ser tocado por estes usos
DRAMÁTICAS DO TRANSUMANO parte III
[apontamentos finais (...)

nenhuma arte se alimenta de si mesma – sem o conhecimento da filosofia, da psicanálise, da


física,
da poesia, da pintura, da linguística, da história da arte, continua-se lidando com as mesmas
ideias e expectativas acerca do que seja uma obra de arte, porque continua-se lidando com as
mesmas ideias e expectativas acerca do que seja a condição humana

heinrich von kleist criou o conceito de marionete, afirmando que esta


deveria substituir os atores. edward gordon craig se apropria desta idéia e diz
que é preciso fechar todos os teatros do mundo e só reabri-los depois de 5 anos
de um novo e intenso treinamento que resignifique a atuação (também no
sentido do ator como super-marionete). recria a origem do teatro: em sua
versão, duas mulheres naufragaram e foram aportar em uma ilha; explorando
esta ilha, depararam-se com um templo, dentro do qual uma gigantesca
marionete se movia – e em seu movimento era possível perceber todos os
arquétipos, todos os tempos e espaços, todas as sensações, toda a história da
humanidade - passado, presente e futuro, no mesmo tempo sem tempo. estas
mulheres, então, conseguem voltar para o continente e lá decidem reproduzir o
que viram, criando o primeiro teatro; mas o que fazem é apenas uma caricatura
grosseira (sem a amplitude espiritual) do que viram na ilha. este é, segundo
craig, o nosso teatro: uma caricatura de algo que se encontra escondido em
segredo numa ilha perdida. m. maeterlink propõe que o teatro seja feito sem
atores, apenas com um palco vazio em que se ouvem vozes, haja vista que os
atores (com suas presenças culturais) maculam, conspurcam o espaço sagrado
do teatro e impedem que uma dimensão ontológica (que é a dimensão própria
da cena) se estabeleça. tadeuz kantor propõe o boneco como paradigma da
atuação: só através de algo morto pode-se tocar a vida.
o que há por trás de todas estas idéias (de kleist, craig, maeterlink e kantor)? o
que há por trás da proposição do conceito de marionete?
o ponto aqui diz respeito a uma certa qualidade de AUSÊNCIA imprescindível
para a atuação. se o ator carrega para o espaço da cena a construção cultural
que chamamos de EU, se ele carrega para a cena esse "si mesmo" cultural (e a
visão achatada de mundo deste "si mesmo" cultural), então, sim, este ator
macula, conspurca o espaço do teatro, ÚNICA seara em que se pode trabalhar
com lógicas distintas da lógica cultural. é preciso alienar os atores (e os
dramaturgos, e os diretores) - mas aliená-los do que? do "si mesmo" cultural,
que só trabalha por hábito, por condicionamento, reverberando
(inadvertidamente) o senso comum, as formas e idéias estabelecidas,
reconhecíveis. não se trata, portanto, de transformar os atores em bonecos que
serão marionetados, mas da conquista desta instância de SEPARAÇÃO (no
dizer de a. artaud: não estou morto, ESTOU SEPARADO). é só nesta ausência
que OUTRAS presenças (não-culturais) podem se instaurar plenamente

(tudo é em prol da conquista (por cada artista) de uma instância de singularidade, e é, portanto,
contra qualquer ventriloquismo)

{o tal vazio citado (que é, na verdade, ausência do si mesmo cultural) permite a


habitação de outros modos de subjetivação;
é equivalente ao rompimento do métron grego, prerrogativa para o aparecimento
do teatro}

a maior parte do teatro que se diz avant-garde hoje apresenta em cena diferentes
modos de cultura (quando o senso comum se refere à diversidade, está se referindo a
diferentes modos de cultura, o que não interessa para o campo da criação estética).
quando me refiro ao OUTRO, não me refiro à cultura chinesa ou à cultura árabe ou à
cultura indiana ou a qualquer sub-cultura, mas sim a alteridades radicais em relação à
cultura – em relação a TODAS as culturas

quem entretém tenta controlar


entretenimento é controle
(neste sentido, entretenimento é o avesso da poesia)

o teatro é aquilo que ele SE TORNA

momento
a
momento
(e cada momento é experienciado de modos distintos)
o indizível (aquilo que não pode ser simbolizado) pode-se fazer perceber pelos jogos de linguagem, mas não pela
palavra (que diz).
novamente: não se trata de usar as palavras para DIZER coisas, mas de usar a forma do texto para FAZER coisas
(ou permitir
que elas façam
coisas conosco)
nove palavras, postas em determinada ordem, nos mostram a face de deus. (d'aprés j.l. borges)

quem produz obras visando entreter pensa unicamente em termos de


condução da percepção do receptor; quem cria poesia, pensa em disparar processos de
experienciação autônomos em direções imprevisíveis (para o receptor e
para o próprio artista).
entretenimento propaga sentidos unívocos;
arte é polissemia.
univocidade:controle
polissemia:liberdade

faz-me o estro dizer formas em novos corpos mudadas. (ovídio,


metamorfoses)

META

MORFO

LOGICUM

conseguir fazer da linguagem um lugar de trânsito das formas, o que não se encontra na
comunicação habitual, em que persiste uma definição unívoca das palavras; lugar de trânsito em que as
palavras já não dizem, mas são usadas em diferentes jogos de linguagem (e cada jogo de linguagem instaura
uma forma de vida). a linguagem como uma espécie de vazio - habitado (provisoriamente) (d'aprés jean
baudrillard)

transmutação e metamorfose instauradas em ato radical

against LTI - Lingua Tertii Imperii

na POÉTICA de aristóteles, o filósofo lista os 6 elementos que compõe a


tragédia, colocando em primeiro lugar o mythos e em último a opsis. trata-se agora de
inverter esta ideia (é importante notar que, até o presente momento, todas as tentativas
de problematizar o mythos se deram de modo inócuo, pelo fato de que se pôs no lugar
da narrativa um eu lírico estático que nos diz suas impressões sobre o mundo. por isso
os deslocamentos aparecem como possibilidade estratégica efetiva - se
problematizamos a narrativa, é porque problematizamos, antes, o sujeito)
refugar o mythos no teatro equivale a refugar a figura na pintura. observemos o que willem de
kooning coloca no lugar da figura em seus quadros: deslocamentos. e percebamos como os
deslocamentos podem se dar de infinitos e insuspeitados (posto que singulares) modos (é só
comparar a obra de de kooning com a de pollock ou com a de mondrian - absolutamente
distintas, mas todas fundadas nos deslocamentos)

o mythos é a figura paterna


que deve existir como um cadáver que jaz no fundo do oceano que é a obra)

lá no fundo teu pai jaz


com seus ossos de coral
nos olhos pérolas traz
pois o seu corpo mortal
foi transformado no mar
em tesouro singular

pollock (em seu diário de guerra): NEGAR, IGNORAR, DESTRUIR


(três ações muito distintas, que operam em diferentes direções)

ao encararmos o mythos deste modo, o cadáver paterno muda todo o tempo em função das
flutuações vertiginosas da opsis. o próprio mythos não permanece estático, mas passa a existir
de modo brutalmente polissêmico - não operando mais como mecanismo de sentido

(opsis: o sistema complexo de relações formais)

quando texto e cena não mais se separam, surge um outro teatro, radicalmente
diverso
(estes textos não são textocêntricos; como máquinasdesejantes, exigem que se
copule com eles. são dotados de falos (que nos penetram) e de buracos (que
devemos penetrar))
isto acaba com a celeuma entre "teatro de texto" e "teatro de encenação": o diálogo criativo que estas obras exigem
fazem delas, sempre, obras nas quais todos os envolvidos (dramaturgo, diretor, atores) são criadores ativos (porque não
há outro modo destas dramaturgias existirem em cena)

antes, nós tínhamos o FATO;


depois, passamos a ter o FATO e diversos PONTOS DE VISTA
distintos acerca dele; na
sequência, o FATO desapareceu e só restaram os PONTOS DE
VISTA; agora,
não temos mais fatos NEM pontos de vista.
trabalhemos, pois, com este estado-de-coisas

- a título de exemplo: h. ibsen; arthur miller; h. pinter; e nós, AGORA


QUANTO TEMPO E ESPAÇO CABEM EM UMA PEQUENA PORÇÃO DE TEMPO E
ESPAÇO?
QUANTOS MODOS DE SUBJETIVAÇÃO CABEM EM UM ÚNICO EMISSOR?

“o infinito é uma qualidade, não uma quantidade.”

a obra de arte nos liberta de nós mesmos

esta libertação cria as condições para uma outra qualidade de ação;


não é escapista, portanto, mas sim propositiva de uma qualidade distinta de ação

CONTRAPOR uma OUTRA experiência


que o nosso entendimento existencial
desconhece
(esqueçamos, portanto, a empatia como estratégia)

a empatia se estabelece na medida em que conhecemos um sujeito; como o fluxo de


informações do passado não é uma opção aqui (haja vista ser uma estratégia
absolutamente vinculada a dramáticas cansadas); como o conhecimento do sujeito não
é mais possível aqui (por uma desconfiança absoluta na possibilidade do auto-
conhecimento - só algo estático pode se dar a conhecer); por conta destes cruciais
motivos, a empatia não é uma possibilidade – o ponto de vinculação com estas obras é
OUTRO - e é por isto que afirmo que trata-se de algo EXTRÍNSECO ao si mesmo

nenhum homem entra duas vezes no mesmo rio, pois já não é o mesmo rio, nem o mesmo homem.
(heráclito)

nunca houve tanta imagem. é preciso desenhar pontos de fuga (e toda fuga é também um
encontro, toda saída é também a entrada em OUTRO lugar)
que proporcionem habitações da ordem da DIFERENÇA (habitação (pela linguagem)
das coisas (o modo de subjetivação do vento, do acidente, da parede, do
tumor, das larvas que comem a carne do cão vivo, das asas das moscas,
da enchente destruindo a árvore, do pão sendo comido por uma boca sem
dentes, dos animais e dos buracos na terra, e assim infinitamente,
incluindo o que ainda não existe: O-objeto).
(a maior mentira que já nos contaram: uma imagem vale mais que mil palavras... se
eu digo MONTANHA diante de 10 pessoas, cada uma delas cria uma imagem mental de
montanha (são, portanto, 10 montanhas distintas). se eu mostro a imagem de uma montanha, é
a mesma montanha para todas as pessoas que a observam. é
preciso dar AUTONOMIA ao receptor)

não confundamos PÓS-HUMANO e TRANSUMANO:

- o PÓS-HUMANO é um DIAGNÓSTICO da condição humana na


contemporaneidade
(a obra de grande parte dos dramaturgos contemporâneos trabalha com o PÓS-
HUMANO, mostrando (expondo) a superficialidade hiperbólica, a ausência de
gravidade oriunda da banalização absoluta, a anodinia alienante, a
incomunicabilidade, a virtualidade e insignificância das relações, a permanente
excitação sem consequências da vida contemporânea);

- o TRANSUMANO é a INVENÇÃO de habitações OUTRAS do tempo, do espaço e


da própria vida; é a invenção de outras formas (insuspeitadas) de
experienciarmos a existência.

(a título de exemplo: blanche dubois é HUMANA; a anodinia contemporânea é


PÓS-HUMANA; ninguém é TRANSUMANO (haja vista que o transumano é
justamente uma problematização radical de nossa idéia de sujeito - não há sujeito
no transumano, independente de sua qualidade específica))

(você já sabe o que tem que saber


porque não tem a ver com o que você sabe
mas com a invenção de outras habitações da vida
insuspeitadas e imprevisíveis
sobretudo para você mesmo)

harold bloom escreveu um livro (shakespeare: a invenção do humano) no qual nos


mostra como shakespeare percebeu que um novo homem estava começando a se
desenhar no renascimento, e como traduziu este novo homem (o sujeito moderno) em
suas obras, não só retratando-o, mas expandindo-o em múltiplas direções e
complexidades, conformando em definitivo a idéia de HUMANO
e a obra de shakespeare é tão imensa que fez sentido até o final do século XX.
estamos hoje em um período similar ao renascimento, e estamos diante da
oportunidade de invenção de outras possibilidades de experiênciação (o que eu chamo
de transumano: outros modos de subjetivação, para além do homem). assim como
shakespeare (não um filósofo, não um cientista, mas um dramaturgo) inventou o
humano,
inventemos (nós) agora o transumano,
que poderá habitar o futuro de modo absolutamente distinto do modus operandi
que utilizamos nos últimos 400 anos

a escalada ao cume da arte não-figurativa é difícil e atormentada, mas ainda assim satisfatória. as coisas
habituais vão recuando pouco a pouco, a cada passo que se dá os objetos afundam um pouco mais na distância,
até que, finalmente, o mundo das noções habituais – tudo o que amamos e a que ligamos nossa vida – se apaga
completamente. basta de imagens da realidade, basta de representações ideais – nada além do deserto (a
escuridão!)! - kazimir malevich - manifesto suprematista

perguntaram ao grande philip guston (criador de uma pictórica


absolutamente singular) acerca do tema de suas obras e seu significado.
guston respondeu que não sabia de onde vinham seus quadros, e que
intuia ser muito importante jamais tornar isto completamente claro, nem
para os outros, nem para si mesmo.
perguntaram ao gênio barnett newman a respeito do tema de suas obras e
seu significado. newman disse que a resposta cabia a cada receptor, mas
que se suas obras fossem realmente vivenciadas, isto significaria o fim da
sociedade como nós a conhecemos.

perguntaram a marcel duchamp sobre o significado de sua maior obra de


arte, "o grande vidro"; a pergunta surgiu pelo fato de que existiam dezenas
de diferentes interpretações, feitas por críticos e pensadores, a respeito
dos significados da "noiva despida por seus celibatários, mesmo" (o outro
nome da coisa). qual é a interpretação certa?, lhe perguntaram. todas elas,
respondeu duchamp.

um quadro de barnett newman é um anjo. não anuncia nada, é o próprio anúncio. (jean-françois lyotard: o instante,
newman)

todos os quadros de barnett newman são iguais? sim.


todos os quadros de barnett newman são absolutamente distintos uns dos outros? sim.

faça um círculo em torno de você - e cave


(limitar as opções significa criar (forçar) as condições para expandir um sistema POR DENTRO (vide
mondrian))

(a postura "aberta a tudo" não leva a lugar algum quando a ambição é contribuir efetivamente
com novas poéticas que dêem continuidade (avançando) à história da arte)

em uma obra de arte


tão importante quanto o que se faz é aquilo que o artista se
RECUSA
a fazer
para alguns observadores, uma lâmpada no chão é só uma lâmpada no chão.
para outros, uma lâmpada no chão é a recusa em utilizar os inúmeros efeitos de luz disponíveis)

a história da arte não é um peso que nos soterra (atitude pós-


moderna) mas uma montanha em cima da qual nós nos posicionamos

UMA TÉCNICA É UMA VISÃO DE MUNDO


tomar emprestada uma técnica significa soterrar em si mesmo a possibilidade de conquistar
uma visão de mundo singular, que propicie uma expansão do working space do teatro

só nobody pode ser everybody


(o que antes pareciam pontos
são agora buracos)
e os buracos foram cavados para que se caia neles
(harold pinter foi acusado, no começo de sua trajetória, de escrever peças repletas de buracos. respondeu:
"só eu sei
o trabalho implicado em cavar estes buracos")

i am not a human being

me permita experienciar intensidades


e não me diga nada
(mas faça tudo isso com palavras)
beyond human

AS PEÇAS EXISTEM COMO ESTRANHAS PAISAGENS EM


IMOBILIDADE-MÓVEL EM TOPOGRAFIAS DE DIFERENTES
INTENSIDADES INSTÁVEIS HABITADAS POR OUTROS
MOLDES ARQUETÍPICOS DESENHADOS EM OUTRAS ARQUITETURAS
LINGUÍSTICAS CONFIGURANDO UMA EXPERIÊNCIAÇÃO DA
ALTERIDADE RADICAL

a forma deve ter sua artificialidade salvaguardada


(arte é a coisa mais artificial que existe)
e deve
ao mesmo tempo
ser habitada (não psicologicamente, mas em termos de sensações)

artificial
E
habitada

(REALMENTE habitada, em sensações e cinestesia)

o tempo não é uma medida. ser artista não é contar. (r. m. rilke)

a inquietação pela inquietação


(é preciso cuidar sempre de sua manutenção)

sócrates, platão, aristóteles, kant, hegel...


e a grande linha paralela, que se coloca em contraponto brutal:
heráclito, schlegel, nietzsche, heidegger, deleuze...

para que se entenda o ponto, é preciso que se perceba a diferença de visões de mundo
(e portanto de ações no mundo) que grita e cala entre estas duas linhas, e é preciso
que se perceba a DIFERENÇA que existe (em termos de habitações da vida e da
linguagem) entre HERÁCLITO e PLATÃO, por exemplo. aí pode-se começar a pensar
sobre a reformulação dos pontos de apoio do pensamento e da existência.

a linguagem nasceu como poesia (polissêmica, e, portanto, proporcionando habitações


poéticas da vida). sócrates, platão e aristóteles forçaram a transformação da linguagem
em prosa (unívoca, comunicacional, para evitar os ruídos que são justamente a beleza
da construção de sentidos múltiplos de modo autônomo por cada receptor/falante).
heráclito filosofa em aforismos e fragmentos, paradoxais e em contradição, sem a
possibilidade de sínteses de qualquer espécie (apenas porque o modo como ele
vivencia a vida já nega esta possibilidade de apequenamento), e os pós-socráticos
começam a erigir (falicamente) SISTEMAS filosóficos que funcionam pela lógica
progressiva e conclusiva (e dialética e à procura da síntese) de todo mecanismo de
sentido (que ainda lida, portanto, com a idéia de "verdade").

a reflexão tem seu precioso lugar, mas este lugar não pode filtrar ou limitar ou
condicionar o domínio infinito e imprevisível da experienciação (incapaz de ser
traduzido ou discutido pela razão (as duas instâncias não compartilham o
mesmo lugar para poderem reconhecer-se))

habitar o lugar no qual a razão não pode não consegue nem mais
perguntar

e enquanto isso o naturalismo/realismo "sincero", "despojado", chegando às raias de um hiper-


naturalismo anódino, infesta os palcos... atores e diretores acreditando que esta é uma forma de
tornar o teatro mais "próximo" do público contemporâneo... as pequenas subjetividades
contemporâneas (subjetividades encarceradoras de qualquer movimento de reinvenção do
humano) expostas sem “espetacularização” em cena - na verdade, apenas anodinia e desejo de
vender uma imagem de sinceridade e singeleza (sem dimensão poética nenhuma) para o
público. quando se olha para a pintura moderna (de iberê camargo ou de jackson pollock ou de
barnett newman ou de cy twombly), ou para a literatura de antonio lobo-antunes ou de herta
muller, quando se olha para a poesia de robert creeley ou de f. holderlin, ou quando se lê
deleuze ou derrida ou lacan, entende-se porque o teatro não pode, na maior parte das vezes, ser
levado a sério no debate artístico. ao mesmo tempo, existe uma parcela (ainda) subterrânea da
produção dramatúrgica contemporânea que está, sim, na ponta, e eu diria que está mais na
ponta que todas as outras artes na contemporaneidade. esta parcela está para vir à tona, nos
próximos anos, em escala internacional. mas a maior parte do que se vê nos palcos ainda é tão
figurativo e hegemônico (hegemônico em essência, no sentido de que não problematiza
NENHUM dos pilares do que entendemos por humanidade).

no campo da criação artística, ninguém impede ninguém de nada, a não ser o próprio artista.
não, não somos reprodutores, e é justamente contra esta instância (de reprodução de sistemas
formais reconhecíveis) que se grita aqui. ainda que idéias novas não signifiquem nada fora de
uma prática, de um fazimento, haja vista que o teatro não é uma arte conceitual. e sim, é preciso
suportar a imensa ansiedade advinda do fato de que, em processos de criação, não vai se obter
resultados rápidos; quando não suportamos esta ansiedade, fazemos uso de procedimentos
conhecidos e funcionais e clichês. quando a suportamos, criamos a possibilidade de invenção de
sistemas de relações formais fundantes.
é verdade que o problema é a compreensão da realidade (do que seja "realidade"). e é verdade
também que o estilo realista vende uma imagem de realidade bem específica, que veio a ser
comprada, inclusive, como sendo “a” realidade, como se o real não fosse construído todo o
tempo por nós (cada real é conformado por um jogo de linguagem específico). neste sentido, o
realismo é um problema; mais ainda a partir do momento em que foi assimilado pelos mass
media, que propagam (vendem) para milhões de pessoas uma determinada idéia acerca do que
seja a humanidade, baseada em sensações catalogadas e modus operandi psíquicos
recorrentes (imagem esta que é comprada, inadvertidamente, até pelo teatro). TODA TÉCNICA
traz consigo uma visão de mundo; se me utilizo de uma técnica, estou veiculando (e vinculado a)
uma visão de mundo, e estou soterrando em mim a possibilidade de conquista de uma visão de
mundo singular, e a possibilidade de invenção de novas técnicas (isto é o que é próprio da
ARTE).
o realismo é baseado no desvelamento, como se houvesse uma VERDADE por baixo de tudo,
verdade esta que, uma vez vindo à tona, libertará (ou desgraçará) a todos (vide ibsen ou
tennessee williams). também é ancorado na idéia de SUJEITO fundada no renascimento, com
ecos da antiguidade clássica grega e do ethos cristão do século IV dC. é um estilo que se pauta
pelo diálogo, como se pudéssemos acreditar no diálogo (sem problematizações). enfim, são
tantos os pontos de ignorância profunda que norteiam este estilo, que só alguém que ignora
toda a revolução dos signos perpetrada pela arte e pela filosofia no século XX pode continuar
levando-o a sério.
mas não é fácil sair-se (escapar-se) de seus fundamentos: mesmo em estéticas ditas pós-
dramáticas, cria-se outros contextos, tudo PARECE ser uma outra coisa, mas o ser humano é
sempre o ser humano realista: hiper-psicológico. e é contra isto, exatamente, que se deve lutar:
contra esta idéia acerca do que seja a vida, e não contra este ou aquele estilo (embora seja
óbvio que o estilo realista nunca será capaz de trabalhar para além do SUJEITO, porque se o
fizer já não será mais realismo).
estas proposições só poderão realmente se abrir quando textos que não trabalham com uma
idéia estagnada de vida forem publicados e encenados, neste nosso século XXI. aí se fisicalizará
outra(s) opção(ões), com a potência de experiências estéticas imprevisíveis, como aconteceu
com o próprio realismo de ibsen e tchekov quando do seu surgimento (insuspeitado naquele
período, final do século XIX/início do século XX).
sem a problematização RADICAL de todos os esteios fundamentais das dramáticas
estabelecidas, quais sejam: a PERSONAGEM (uma determinada idéia de sujeito estável); o
CONFLITO (como ferramenta para gerar mudança, isto é, saltos quantitativos gerando saltos
qualitativos); e a NARRATIVA (que não pode mais existir em primeiro plano, como sentido (e
mecanismo estruturador) da obra, haja vista que a narrativa está para o teatro como a figura está
para a pintura); sem a problematização radical destes esteios, e o soerguimento de obras que se
tensionem em outras bases, fundadas em outros solos, não se avançará um milímetro, porque
se permanecerá no mesmo terreno EXISTENCIAL. promover mudanças na construção dos
edifícios sem mudar o solo sobre o qual estas construções se apoiam é uma falácia, que só
engana a quem não percebe o teatro (e a vida) em profundidade.
não é apenas de multiplicidade do sujeito que se está falando aqui, mas da constituição de
outros modos de subjetivação não-humanos, através de arquiteturas linguísticas OUTRAS. não
tem nada a ver com o sujeito e suas várias facetas em co-habitação psicológica.
é no estilo realista que a tal "imagem e semelhança", o homem como "topo da criação", é mais
forte. porque no realismo TUDO em cena é sobre a vida dos homens. esta hierarquia na qual
uma idéia de humano está no topo, em relação às outras formas de imaginarmos e
experienciarmos a vida... porque são estes outros modos de subjetivação que interessam agora,
e não o homem e seus relacionamentos idiotas.
outras formas de experienciarmos a vida, através de outras formas linguísticas (que promovem
outras HABITAÇÕES), para além dos homens discutindo em sua linguagem hegemônica na sala
de estar...

o mundo visto pelos olhos de um pássaro...

a estes sistemas centrados, os autores opõem sistemas a-centrados, redes de autômatos finitos,
nos quais a comunicação se faz de um vizinho a um vizinho qualquer, onde as hastes ou canais não preexistem,
nos quais os indivíduos são todos intercambiáveis, se definem somente por um estado a tal momento, de tal
maneira que as operações locais coordenam e o resultado final global se sincroniza independente de uma
instância central. (g. deleuze)

para os enunciados como para os desejos, a questão não é nunca reduzir o inconsciente,
interpretá-lo ou fazê-lo significar segundo uma árvore. a questão é 'produzir inconsciente' e, com ele, novos
enunciados, outros desejos: o rizoma é esta produção de inconsciente mesmo. (deleuze)

como detonadores de processos de criação, os conceitos não podem NUNCA ser


sínteses, mas tem que estar sempre POR SE CONCLUIR no ato da escritura em
direções que possam ir além dos conceitos que a dispararam

porque na criação, hoje, é preciso parar com a denúncia das impossibilidades


(sempre narcísica, da ordem da auto-comiseração), e partir para a invenção do
impossível (não se trata de análise acusatória e melancólica e auto-heroizante,
mas da proposição - aparentemente impossível mas EFETIVADA no ato radical da
obra - de habitações do inominável)

não confundamos estas proposições com "abandonar a razão e por no lugar a emoção",
o "sentir", num retorno estúpido ao romantismo. proponho uma problematização
absoluta do sujeito, do "eu", que é o centro no qual se fundamentam tanto o iluminismo
QUANTO o romantismo
tentativas de uma ação poética (transfiguradora do real) que vá além das
posturas iluministas E românticas. a obra de arte não como a expressão de algo
(que eu pensei OU que eu senti), mas como uma USINA apontando para futuros
desconhecidos

arte não é sobre mostrar/demonstrar um conceito,


ou sobre fazer bem alguma coisa (este é o pior tipo de academicismo); arte
é sobretudo a coragem da autoria.

trabalhar para ter-se a coragem de ser o autor da própria morte


realizar o ato mais radical: a utopia feita carne
ou, melhor dizendo: a carne transubstanciada em utopia

pretensioso não é se propôr a habitar todas as COISAS, abandonando o "si


mesmo" para inventar linguisticamente outros modos de subjetivação
(isto não é pretensão; isto é epifânico);
pretensioso, sim, é acreditar que o ser humano ocupa o topo da hierarquia da vida
(reproduzindo o ethos cristão da imagem e semelhança), e que só a perspectiva humana
(mais hegemônica, mais cultural, mais LTI) pode ser interessante (mas interessante para
quem? apenas para a manutenção de um mesmo e modorrento lugar existencial)

{LTI é um conceito de victor klemperer acerca da língua do império (vide também "a linguagem da
montanha", de harold pinter, para entender como impôr uma forma linguística hegemônica significa impôr
uma forma de vida)

às vezes confundimos falta de potência e de idéias com humildade.


não se faz arte sem arrogância, e arrogância significa trazer para si a responsabilidade sobre alguma coisa.
prepotência significa dizer-se capaz de algo sem ter realizado nada de significativo, e isto é simplesmente estupidez e
perda de tempo;
mas arrogância, ARROGÂNCIA é uma qualidade essencial em um artista.

o que é formação de platéia? é produzir espetáculos didáticos, eventos rasos que reproduzem formas e discursos
hegemônicos reconhecíveis, subestimando as pessoas?
não.
formação de platéia é defrontar o receptor com experienciações potentes, transfiguradoras do senso comum, estranhas,
surpreendentes, distintas de qualquer outra vivência em que já se esteve

a idéia de que arte de ponta é só para iniciados é uma imbecilidade. toda arte avançada é excitante, surpreendente.
apostemos na infinita curiosidade humana (curiosidade que nos impulsiona para o desconhecido, para o imprevisível),
em vez de nos resignarmos à castradora impotência conformista)

são os que trabalham com o teatro que dialogam com uma obra a partir de uma série de idéias pré-concebidas acerca de
como deve funcionar um espetáculo. são estes os que tem mais dificuldade na fruição de trabalhos de ponta.

(a coragem de escrever vem de assumir um recorte singular)

o grande diálogo com obras de arte não é o da compreensão unívoca, mas o de se permitir ser atravessado por elas, de
modo poético. o mais importante é aquilo que minha razão não alcança completamente; este é o terreno das
experiências intensas.

todo discurso é apenas o símbolo de uma inflexão


da voz
(herberto helder)

não há nada para aprender com a geração de atores que criou o teatro
moderno no brasil. grandes, imensos atores, mas que sempre trabalharam norteados
por uma idéia específica acerca da condição humana (a idéia de sujeito que temos
desde o renascimento). são grandes atores FIGURATIVOS, que desenvolveram uma
técnica incrível, mas que não dá conta das dramaturgias contemporâneas,
revolucionárias em suas formas e proposições acerca do que seja a experiência
humana. se nos pautarmos em sua (destes atores) forma de atuação, soterraremos a
possibilidade de criação de novos procedimentos técnicos, exigidos por estas
dramáticas, que promovem outros desenhos, outros modos de vermos e habitarmos a
vida, o tempo, o espaço.
penso em c. stanislavski e no fato de que ele e seu grupo de atores tiveram que
inventar um NOVO método de atuação que desse conta de colocar em cena a
dramaturgia de a. tchekov (as convenções do teatro da época destruiriam a dramaturgia
fundante do autor russo).
quando a dramaturgia aponta para lugares inaugurais, é preciso que se crie novas
abordagens em termos de encenação e atuação. as técnicas que até então vigoraram
devem ser esquecidas, completamente, sob o risco de obliterarem a habitação das
novas formas, e de quebrarem a espinha dorsal destas novas poéticas (que exigem a
invenção de novos métodos de atuação a CADA PEÇA).

se tomamos uma obra como a do norueguês jon fosse e trabalhamos com ela de modo
naturalista,
fosse nos parecerá um péssimo autor

(em diversos momentos da história do teatro, a dramaturgia foi o norte que ampliou as
possibilidades da encenação e da atuação em direções insuspeitadas)
(e vivemos, hoje, um destes momentos, através de autores que estão inventando outras
operações, a partir de (e gerando) problematizações brutais dos esteios do drama
tradicional (e mesmo da encenação contemporânea))
(quando eu me refiro a problematizações do drama tradicional, me refiro a
problematizações da experiência humana)

granger: a imaginação criativa não consiste num estado de visão passiva, mas de experiência
ativa. no caso da criação poética, as experiências são essencialmente tentativas de subversão dos
dados ordinários dos sentidos do bom senso.

VER é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta.
[...] é o momento em que se abre o antro escavado pelo que nos olha no que vemos.
(georges didi-huberman)

o ponto crucial aqui é: de que sujeito se trata? ou melhor: se nos identificamos com o eu cultural,
condicionado, aí teremos um olhar cultural, condicionado. é preciso se fundar sobre uma habitação que
esteja sempre em instabilidade, suscetível de transformar-se pelo ato de ver

como quando olhamos para a MEDUSA


,

(paradigma perfeito da obra de arte):

é impossível que não nos transformemos em


OUTRA coisa
o que era aquilo?, ela se perguntou ainda, antes de deixar de ser, para sempre, quem ela
foi um dia.
aquilo, isto, o que é?
o que?

MORFOGÊNESE LINGUÍSTICA DE
MULTIESPÉCIES

NESTE INÍCIO DE SÉCULO XXI


ESTAR IMERSO NA TENTATIVA DE RECRIAR A ESPÉCIE HUMANA NO
TEATRO

{trata-se de um novo classicismo (somos, sim, classicistas, pelo impulso que nos move: o da
criação dos clássicos de hoje, de obras novas que tenham força equivalente aos clássicos): o
esforço aqui não é o de imitar, mas de igualar, com o mesmo peso e densidade, a mesma
complexidade, a mesma grandeza de invenção, a criação maior de outras épocas

(gianni vattimo) {deve-se falar de uma "ontologia fraca" como única possibilidade de sair da metafísica e
pode ser que nisso resida, para o pensamento pós-moderno, a chance de um novo, francamente novo,
começo. existir dentro desta perspectiva diz respeito ao estar em relação com um mundo onde a linguagem
vem considerada não como um conjunto de estruturas fixadas desde sempre, mas ancoradas numa radical
historicidade da própria linguagem. neste sentido vislumbra-se um "ofuscamento" da noção de verdade, por
meio daquilo que se poderia denominar de "devastação do mito de evidência" graças ao "fim da
modernidade", e nos encontramos às voltas com a dissolução da filosofia fundacional, quer dizer, daquela
idéia que seria uma fundação única, última, normativa.}

devastação do MITO da evidência... esta idéia se relaciona com o FIM do FATO

nós projetamos outras (novas) formas de vida

cientistas usam manipulações genéticas

nós usamos manipulações linguísticas

(experiências estéticas novas em termos de sistemas formais complexos podem, SIM,


ser criadas e experienciadas hoje - as esculturas de richard serra, por exemplo, são
uma PROVA disso)
ou nossos discursos (nossas ficções performativas) nos dão potência para
realizarmos o impossível
ou nos castram
em racionalizações que só visam (mesmo que inconscientemente) justificar nosso
fracasso em conquistarmos uma instância de singularidade
quando eu afirmo que algo não pode ser feito (e culpabilizo fatores sobre os quais
obviamente não tenho ingerência), o que realmente está sendo demonstrado é minha falta
de imaginação criativa
se olharmos, por exemplo, para a história da escultura, da antiguidade clássica passando
pelo renascimento e depois por nomes como a. rodin, poderíamos afirmar cretinamente
que não existe a possibilidade de se fazer nada novo neste campo. aí surge um artista
como richard serra, que cria uma experienciação insuspeitada em suas obras, abrindo um
bolsão nunca antes explorado no campo da escultura.
artistas são singularidades, que abrem espaços imprevisíveis.
e sempre haverá artistas, assim como sempre vão surgir experiências estéticas novas.
mas é preciso ambição, vontade. sim.
willem de kooning tinha um projeto: superar picasso. para realizar esta tarefa
(aparentemente impossível), teve que mobilizar forças gigantescas. ele conseguiu?
obviamente

a ação de criação de obras de arte (que transfiguram nossa noção estagnada de


sentido, e que nos permitem renovar, de modo autônomo, nossa sensação de
mundo) e a exposição pública (para experienciação e diálogo) destas obras,
configura uma ação política de consequências imprevisíveis - e é a maior de
todas as ações políticas

a grande ação crítica é PROPOSITIVA, e não acusatória


HOJE, nos interessa muito mais a proposição de outras (novas) formas de vida
presente na obra de valère novarina, do que a denúncia dos mecanismos de
funcionamento do capitalismo presente na obra de b. brecht
(a obra de brecht é um ground, sobre o qual nos apoiamos para SALTAR em
outras direções)

este SALTO é que é a nossa missão, o nosso DEVER maior, como artistas e
intelectuais

AGIR efetivamente na invenção de outras experiências estéticas, isto é ação


propositiva: propositiva de diálogos com a sociedade, diálogos que se dão em outras bases, através
de escrituras que reconstroem o mundo de outras e insuspeitadas maneiras (eis aí o maior milagre
possível em um mundo que faz de tudo para modelar nossas percepções de modo uniforme -
inclusive "criticamente")

TRANSUMANO não é UMA coisa. transumano é o fim de UMA


coisa.

todo devir é uma linha de fuga de um enquadramento antropológico


toda criação é uma fuga (dos homens) do homem e do
sistema de poder que esse padrão pressupõe
(deleuze)

a arte, em sua missão mais elevada, dificilmente é de todo humana.


(glenn gould)

uma presença é sentida ao máximo quando pode, a qualquer momento, ausentar-se.


toda a sabedoria, toda a poesia, será atinar com o grau certo, isto é, incerto, de
definição formal. por certo esta tarefa demanda um corpo pensante, uma vez que não é
produto de saber artesanal, muito menos de programas conceituais...
(ronaldo brito)

a obra de arte: agindo como se fosse uma coisa preciosa achada ao acaso
fortuita mas irretocável
e com recursos propositalmente escassos, meios e modos tão estritos, buscar o
inesperado: repetir a surpresa de seu acontecimento

trata-se de uma experienciação muito próxima da literatura, em seu apelo


(terno) de expansão do imaginário do receptor, mas que se coloca de modo
mais poderoso que a experiência literária por sua estranha modelação
biofísica do tempo/espaço

escrever é retirar-se. não para sua tenda, mas da sua própria escritura. cair longe da sua linguagem,
emancipá-la ou desampará-la, deixá-la caminhar sozinha e desmunida. abandonar a palavra.
(j. derrida)

há duas interpretações da interpretação, da estrutura, do signo e do jogo. uma busca decifrar, sonha com
a possibilidade de decifrar uma verdade ou uma origem que pudesse escapar ao jogo e à ordem do signo, e vive como
um exílio a necessidade da interpretação. a outra, não mais voltada para o origem, afirma o jogo e tenta ir além do
homem e do humanismo, desse homem visto como o ser que sonhou com a presença plena, com o fundamento seguro,
com a origem e o fim do jogo.
(j. derrida)

não estabelecer verdades


mas admitir e valorizar variações
infindas

(sobre os atores:

a presença como metafísica


a enunciação como diferença
não ser vítima de uma idéia hegemônica de tempo
desenhar o(s) tempo(s)
e modelar a(s) matéria(s) do(s) tempo(s)
(MODELAR esta matéria, gerando diferentes fruições do tempo, diferentes tempos em
fatoinstante - e perceber que a DISTÂNCIA ENTRE OS EVENTOS também é parte da
modelação e, como tudo em arte, produz instabilidade e vertigem e perturbação e perda
de foco (no receptor) na medida em que é surpreendente)
(a distância entre os eventos, por vezes, é mais importante em termos de afetação da
percepção temporal (do receptor) que os próprios eventos)

para cada modelação corresponde uma HABITAÇÃO do tempo específico

e se não há distância, há instantaneidade do instante

sendo que: cada instante soa e é habitado como algo específico (em variações de
contraste com a modelação seguinte)

os eventos – independentes ou interligados - ou mesmo existindo em interzonas para


além destas duas possibilidades

ora, onde mora o perigo


é lá que também cresce
o que salva.
(f. holderlin)

pensemos esta palavra de holderlin com todo o cuidado: o que significa "salvar"? (...)
"salvar" diz: chegar à essência, a fim de fazê-la aparecer em seu próprio brilho.
(m. heidegger)

nosso método de trabalho é bem distinto da carnavalização (talvez oposto),


mas encontra relação muito próxima com uma certa cultura plástica brasileira, surgida
nas décadas de 40 e 50, com as conquistas extraordinárias dos pioneiros do projeto
abstrato (os artistas dos grupos RUPTURA e FRENTE), em sua rejeição à pintura
modernista brasileira de caráter figurativo e nacionalista, e com a posterior desinibição
definitiva dos procedimentos abstracionistas nas obras de eduardo sued, por exemplo, e
de seu complemento (no que se refere à construção de uma pictórica, isto é, de um
pensamento autônomo em pintura) que é a obra gigantesca de iberê camargo; na obra
dos grandes franz weissmann e amilcar de castro; e não posso deixar de citar o diálogo
que percebo, hoje, com a obra de célia euvaldo e também com o trabalho de edith derdyk

menciono estes nomes das artes plásticas, porque é difícil encontrar no campo do
teatro filiações com artistas que trabalharam com abstração, com mimeses
incognoscíveis, com a reinvenção do tempo, do espaço e da humanidade. penso em
luiz roberto galizia, que triscou nesta seara nos anos 70/80, e na obra de gerald thomas
nos anos 80/início dos anos 90, mas apenas de raspão (a ligação de thomas com
procedimentos eminentemente pós-modernos torna difícil citá-lo aqui). não vejo, no
entanto, nenhum problema em encontrar filiações históricas somente no campo da
pintura e da escultura, porque me refiro ao aparecimento de vocabulários
abstracionistas no campo da ARTE brasileira; é suficiente que isto tenha acontecido nos
campos citados, haja vista a dificuldade que o teatro sempre teve de se libertar do
figurativo e da instância de "espelho do mundo"

a desestabilidade radical só pode nascer de uma zona ontológica


(nunca de uma zona cultural)
o reconhecimento, aí/aqui, se dá (paradoxalmente) pelo desconhecido

a dramaturgia não é uma teoria, mas uma atividade

o que sucede no palco não é uma representação, mas uma relação de conduções e
desencadeamentos (articulações: a consequência da consequência)

a meta essencial não é produzir uma cena digna de ser contemplada, mas usar o palco
como um teatro de operações para a instauração de distintos tipos de intensidades/
instabilidades

(não falar de trama, mas de funcionamento)

(por exemplo: cy twombly é um fazedor, willem de kooning também)

como um avião que luta para ganhar altura,


para fazer arte, hoje,
é preciso despejar uma boa quantidade de bagagem dispensável

[só se escreve escrevendo, assim como só se pinta pintando (vide francis bacon, por exemplo,
descrevendo a criação de seus quadros e o diálogo permanente com a pintura, pincelada a
pincelada ("o verde nunca se comporta da mesma maneira a cada vez que toca a tela", "foi em
resposta a um respingo, produzido ao acaso, que esta imagem foi gerada", etc)]

são procedimentos não-estruturalistas, que se dão por acoplamentos do desejo, momento a


momento, signo a signo, evento a evento

na frase "o que sucede no palco não é uma representação, mas uma relação de
conduções e desencadeamentos", entenda-se a relação que se instaura, momento a
momento, entre os signos emitidos do palco e o espaço mental/sensível de cada receptor
na platéia

em algum ponto (ou em alguma camada) de toda obra de arte, existe uma asserção (às vezes sussurrada,
outras vezes gritada) de que a vulnerabilidade humana é contrariada pela vitalidade humana
(as obras de arte são, neste sentido, um desafio (arrogante, irado, inconsequente, irresponsável) diante da morte, da doença, da
dor)

"e o que me diz das formidáveis figuras silenciosas de ésquilo?" - ele de repente me disse um dia, a propósito
de nada.
os presságios e ameaças esquilianos, a sensação da imanência de poderes determinantes, estão sempre lá.

(david sylvester, notas sobre francis bacon)


a palavra estava no mundo - e o mundo foi feito por meio dela
(belíssima ficção, altamente performativa (em múltiplas direções))
agir como age o gêneses bíblico (a partir do mesmo lugar - inventando o(s) mundo(s)
através da palavra, NA palavra: em habitação da palavra). mundos que mundificam.
invocação: e a palavra se faz carne

todo artista odeia a natureza (tudo o que é natural)


todo artista odeia a cultura (tudo o que nos identifica como povo e nos une)
(e odiar significa também um tipo muito forte de vínculo)

eliminar os últimos vestígios de figuração e de cor local (a aclimatação advém do discernimento estético
aliado à indispensável relativização histórica), o clima sugestivo ou rememorativo que ainda encanta, para
chegar a uma presença de teatro decididamente aberta e atual, que de fato ESTALE como corpoestranho
na medula do mundo

o teatro é um enigma
que revela
e esconde
aquilo que é

o diálogo do receptor com a obra de arte pressupõe


também e desde o princípio
um auto-diálogo

em que consiste o ser-obra da obra de arte?


ser-obra significa: instalar (instaurar) (estalar, pelo choque de outra instalação) um mundo.
(reflexões a partir das reflexões de m. heidegger, em A ORIGEM DA OBRA DE ARTE)

...poeticamente o homem habita...


(f. holderlin)

nossos corpos, finalmente, estão livres do imperativo do deslocamento


(esta é a diferença entre as grandes navegações do renascimento e as da
contemporaneidade): os deslocamentos no tempo (não mais no espaço, que se
transforma em tempo)

cada obra de arte força o receptor a encontrar (como no boxe) a sua DISTÂNCIA
ideal para que o diálogo e a relação e a experienciação se dê em potência plena

NOVAS OBRAS: NOVAS DISTÂNCIAS


a dilatação do(s) mundo(s)
a redução do(s) tempo(s)
a lógica da poesia
(*aclimatação histórica)

não confundamos "novidade" (o recurso 3D no cinema) com inovação (o que j. l. godard fez com a imagem
cinematográfica).

(para os atores:
existem:
- valores de modelação temporal (distintos ritmos e andamentos vocais)
- valores de intensidade (distintas tonalidades e texturas vocais)

estes valores não se superpõe: ao contrário, as modelações de tempo(s) (que promovem


diferentes modos de ESTAR no mundo) e as habitações de diferentes intensidades,
promovem uma simbiose que constitui a materialidade do trabalho do ator)

a obra de arte nos expulsa dela:


a afirmação da arte como alteridade,

em oposição a tradição do teatro intimista, consonante (de consonância cultural


entre os signos e os receptores).

a obra de arte exige que nos posicionemos sempre fora dela,

no exterior (de nós


mesmos),
dilatando nossa visão

expulsar (como uma barreira) o sujeito para o exterior


E
permitir (como um portal) a projeção de conteúdos inconscientes do receptor (através da
manipulação de signos oriundos de fontes pulsivas e/ou de ausências (lacunas, buracos)
convidativas o suficiente)

(e fazê-lo em interzonas de derretimento e hibridação, em velocidades brutais no tempo e


entretempos)

(mas: para cada UMA projeção, DUAS ou TRÊS expulsões; para cada evento-mimeses-cognoscível,
forçar a percepção em direção a dois ou três eventos-mimeses-incognoscíveis)

este projeto estético é resultado de um diálogo com toda a história da arte, especialmente com
aquela produzida desde o final do século XIX/início do século XX (a aclimatação histórica a que me
referi anteriormente)

cheios incompletos/fragmentados e vazios intrigantes: rede contra a qual o receptor se atira e é


ricocheteado em novo grau de energia (absorve e emite) (c. ishikawa)

não se pratica a abstração para que haja um alheamento do mundo,


mas sim para que haja uma penetração em sua essência.
(wilhem worringer)

e esta essência é metamorfológica

a importância de um artista
pode ser medida
pela quantidade de novos signos e procedimentos
introduzidos por ele
em sua arte.

a importância
de um crítico/teórico da arte
pode ser medida
pela quantidade de novos signos e procedimentos (criados por artistas)
detectados e conceituados por ele.

eis o melhor exemplo de como funciona em uma obra a relação entre estes dois pólos:

O QUE (a escolha dos signos em jogo - escolha necessariamente oriunda do sinthoma/fonte


pulsiva do autor);

e o COMO (que diz respeito à invenção - como os tais signos vão se traduzir (em termos de
arquiteturas linguísticas, no caso da dramaturgia) e

se expandir em direções imprevisíveis para o próprio artista):

os CARRETÉIS de iberê camargo


a excelência no domínio de técnicas inventadas

e o confronto destas técnicas com forças incompreensíveis: o acaso, a intuição, o lance, o


instante

este confronto é a tensão dissonante que caracteriza a estruturação de


todas as grandes poéticas

a arte se diferencia de outros trabalhos por conta da busca pela excelência

a excelência é a alma de uma obra de arte


(algumas tem, outras não)

(a partir de reflexões de roma drummond)

EXCELÊNCIA é quando se habita uma técnica de modo tão pleno que ela não
aparece mais como técnica, mas como um estranho modo de estar na vida

e por ESTRANHO, leia-se:


outro;
da ordem da alteridade, da diferença.

a obra de arte como algo autônomo, um todo unificado e fechado em si


(paradoxalmente, este é o modo de potencializar o diálogo com o mundo: contrapôr mundos (densos) ao mundo, como
pontos de fuga, alternativas da ordem da invenção radical, universos paralelos: lançar mundos no mundo)

um signo (qualquer signo, e mais ainda se for um signo neológico) só vale no


contexto da obra, nas suas relações.
a intensidade de um signo é estabelecida (é valorada) apenas no âmbito de suas relações com
outros signos (e eventos) presentes na obra.
("todo mundo tem palavras, mas só um escritor tem frases" - e frases são palavras postas em
uma DETERMINADA ORDEM, gerando (esta ordem) a qualidade específica de cada evento, e a
intensidade específica de cada signo - dentro do evento, e ainda na relação do evento com os
outros eventos instaurados na obra)

tudo isso se liga com o jogo de contrastes (que, como na pintura, se torna um saber obrigatório
nestas dramáticas da opsis; vide os tons quentes (o vermelho) e frios (o azul) de ticiano, e as
infinitas miríades de gradações nas passagens de uns a outros); mas é preciso reaprender
perpetuamente que o teatro é uma construção de dentro para fora (isto é, a partir de vinculações
do desejo geradas pelos signos que vão sendo postos na obra, em habitação da obra, e não a
partir de projetos estruturalistas externos ao ato da escritura ou da enunciação)
por "passagens", leia-se: deslocamentos. e é importante frisar que, diferentemente das cores,
não há valores quentes ou frios nas palavras; elas se tornam quentes ou frias na relação com as
outras palavras

devemos fazer teatro (ou qualquer outra arte)


não para sermos amados e/ou perdoados e/ou aceitos
mas sim atraídos pela aventura pessoal da invenção de uma poética que
em diálogo com a história da arte (e com a história da humanidade)
amplie a experiência humana em direções até então insuspeitadas
(e imprevisíveis até para nós mesmos)

com o enxugamento instrumental advindo do uso das


pictocoreografias (com a eliminação das rubricas, tudo precisa se dar e se
resolver no âmbito restrito (e, descobre-se então, infinito) da linguagem), atinge-
se um patamar altíssimo de auto-exigências, que exclui qualquer ventriloquia,
fazendo de cada ação escritural uma decisão autoral

é então que a fala se torna ação, em um nível nunca antes visto na história da
dramaturgia

(ventriloquia é quando o artista não toma uma decisão a cada momento de


criação da obra, permitindo que a decisão tenha sido tomada antes dele (por
outros artistas), reproduzindo-a sem agir efetivamente)
decisão é atualização de potência

renovarmos a forma
para que ela
seja novamente
a morada da
arte

optar por encobrir as imagens


e ainda assim (é preciso)
tornar visível o tempo aprisionado no espaço
"é certo que sua arte é feia, mas toda arte profundamente original parece feia a princípio." (clement greenberg, a
respeito de j. pollock, em 1945)

as esculturas de richard serra não são produção de imagens (de modo geral, existe um
óbvio desinteresse por toda escultura que resume-se a produzir uma imagem (ou que traz em
primeiro plano a intenção de produção de uma imagem))

do mesmo modo, a pintura de barnett newman ou de jackson pollock não é sobre a produção de
imagens (o modo de operação está mais próximo da invenção de uma língua)

analogamente, o teatro tem muito mais relação com diferentes modelações de tempo e
espaço do que com a produção de imagens (é preciso encobrir as imagens, repito,
posto que imagem e narrativa se relacionam de modo muito, muito próximo)
a experienciação da obra de arte propicia a eclosão, no receptor, de respostas
pessoais (e por vezes inconscientes) para sua vivência contemporânea

"quando você reflete sobre um barnett newman, relembra a sua experiência, não o quadro." (richard serra)

APLICAR "MENOS É MAIS" NO TEMPO

há contrastes e contrastes:

contrastes gritantes (em w. de kooning)


e contrastes minimamente perceptíveis (em ad reinhardt)

os contrastes entre vermelho e azul,


e os contrastes entre diferentes tons de branco

a sabedoria que provém do desencantamento não favorece o florescimento da


arte; a arte prospera na inocência

tudo desliza. (f. holderlin)

o papel do artista é passar adiante o que lhe chega


ele não existe para servir nem para mandar
mas para transmitir

toda grande obra de arte instaura


um extremo deleite com a existência
e um desespero cruciante
em raras intensidades de ambivalência
...sempre armados
da beleza mais lancinante que
pudermos

inventar
...OUTROS ESCRITOS (ACERCA DE ESTILO E HETEROTOPIAS E...)

toda fuga é também um encontro


toda saída é também a entrada em OUTRO lugar

qual o contrário de morte?


alguém dirá: vida
não
o contrário de morte é nascimento
cada evento linguístico é um nascimento para uma outra habitação da vida e é também a
morte da habitação anterior

está tudo aqui, nesta equação de deleuze:


n-1
(subtrair o um para que o infinito possa viver. o problema é que NÓS queremos viver o
infinito, quando o infinito só poderá se instaurar se NÓS sairmos de cena)

on ne résout pas un problème avec les systèmes de pensée qui l`ont engendré
vamos ao teatro para presenciarmos transmutação de sujeito - e, hoje, é preciso que a
transmutação se dê elevada à uma potência infinita
e em múltiplas direções (em múltiplos DESLOCAMENTOS)

a arte:
uma pequeníssima ilha,
cercada de cultura por todos os lados
(o mar modorrento da cultura)
o paradoxo é que, no mar, você só sente sonolência; é na ilha, caminhando por sua
estranha topografia, que a vertigem se instaura
o mar movimentado entorpece
a ilha estática atordoa

o teatro surgiu (historicamente: me refiro ao século VI aC, na grécia) como


possibilidade de ir-se além do métron (da medida cotidiana, da identidade cultural).
é triste constatar que a maior parte do teatro tenha se tornado uma reiteração do métron;
estabelece-se, assim, justamente uma negação da grande, da imensa possibilidade que
justifica mesmo o aparecimento do teatro na história humana.
o teatro existe para instaurar um lugar de habitação no qual possamos estar além (de
modos distintos) de nossas identidades culturais, não mais vinculados a elas; as
identidades culturais, portanto, não devem figurar no jogo teatral (exceto quando
aparecem (brevemente) como contraste em relação a outras instâncias existenciais
desconhecidas).
o teatro é alteridade radical (alteridade em relação à toda cultura).
quer saber se é o que está posto em uma obra é arte ou não? é só se perguntar: isto existe
no mundo? se a resposta for sim, então não é arte.

e toda a recusa da idéia de HUMANO está ligada à percepção de que o HUMANO se


tornou algo cultural
daí a súplica por criarmos TRANSUMANIDADES

quando digo DRAMÁTICAS, o faço me referindo à idéia de sistemas


cênicos, do mesmo modo como se diz PICTÓRICAS em relação a obra de pintores
(desenvolvimento de pensamentos autônomos em pintura).

sim, operamos na subtração - mas subtração do que?


subtração do PODER
subtração dos elementos e mecanismos estáveis do PODER estabelecido
mecanismos estes que se instauram
mesmo que inadvertidamente
quando utilizamos
mil refletores, mil figurinos, narrativas unívocas, sujeitos estáveis, sensações catalogadas,
linguagem hegemônica, conflitos normatizados (e, portanto, normatizantes),
gestualidades e entonações cotidianas, signos e articulações e discursos e formas da
cultura...

nem linhas ou imagens, nem formas ou composições ou representações, nem visões ou


impulsos, nem símbolos ou empastamentos, nem decorações ou coloridos ou retratos,
nem prazeres nem dores, nem acidentes ou readymades, nem idéias, nem atributos. tudo
voltado para a irredutibilidade, irreprodutibilidade, imperceptibilidade. nada
"utilizável", "manipulável", "vendável", "negociável", "colecionável", "controlável".
(ad reinhardt)

um trabalho em arte que vá na contracorrente de todas as facilidades (da


ordem da significação por semelhança) e profusões de ícones em que se transformou a
visualidade contemporânea. as obras são, em si mesmas, uma educação pela cena,
mudando completamente o olhar daqueles que com elas entrarem em contato.

o que nos mantém trabalhando é


apenas a determinada convicção
(sem qualquer garantia)
no teatro como invenção de mundos e de outras formas de vida
isto é
o teatro como fim do mundo e de si mesmo
não é “fim de tudo”; é fim de uma certa idéia (castradora, cerceadora) acerca do que seja
o MUNDO e o SI MESMO
...e todo fim é também um começo

é prazeroso estar com elas; entrar em sintonia com cada uma, aceitá-las e entender que
é bom dar espaço para que existam muito melhor do que isto conhecido como "eu". o
"eu" é a tentativa de corresponder a anseios que não nos pertencem. o "eu" é a agente
penitenciária da alma.
(dione carlos)

enquanto nossa civilização estiver introjetada em nós


agindo como mecanismo estrutural sem que sequer percebamos
será sempre impossível o desenho de formas de vida
que configurem alteridades em relação à nós mesmos

o caso é apenas perceber que ter este ou aquele pensamento tem a ver com
criar esta ou aquela obra. o pensamento de um artista não é uma verdade que está ditando
ao mundo (sobre "como fazer arte"); é uma extensão de SUA obra, apenas isso. e nenhum
pensamento, assim como nenhuma obra, compreende a totalidade das possibilidades; mas
cada pensamento gera e é gerado por um tipo específico e singular de obra: a obra
daquele artista. e é algo importantíssimo, posto que é a verdade de uma vida. apenas isso/
tudo isso.

arte é a coragem da autoria


autoria significa escolha
escolha implica na perda de muitas possibilidades
para a exploração em profundidade de alguns poucos pontos

(se mondrian não tivesse permanecido na exploração das (aparentemente parcas)


possibilidades pictóricas de pintar exclusivamente com linhas negras verticais e
horizontais, e com apenas 3 cores (vermelho, azul e amarelo), não teríamos sua obra (que
ampliou a experiência da pintura em direções imprevisíveis naquele momento). mondrian
fez sua escolha (sempre um recorte limitado, como toda escolha), e ampliou o seu sistema
POR DENTRO)

criar e habitar um sistema cênico


(um "estilo", no grande sentido do termo: uma forma singular)
significa
se ENCLAUSURAR em um espaço INCOMENSURÁVEL

a experiência da transumanidade problematiza a base


não só do teatro
mas de toda(s) a(s) cultura(s)

é a funcionalidade específica das formas


que define
o estilo
(não pensar em termos de TRAMA ou PERSONAGEM (ou seja, de toda ordem de
continuidade), mas sim em termos de FUNCIONALIDADE de um sistema complexo de
relações formais (pensa em trama quem ainda acredita em sentido, em significado para a
vida; e pensa em personagem quem ainda acredita em sujeito (esta grande ilusão
castradora...))
na atuação, no que se refere à fala e ao modo de abordagem do texto, há um trânsito entre
2 instâncias:
- borrões de sensação;
- desencobrimento das palavras (que expõe a materialidade do texto).

o fim da dimensão simbólica


é
o fim da sublimação

a instauração da pura transitividade rítmica das formas


é
o puro ato da fricção sexual
(investimento libidinal profundo, para além da sublimação, o que decreta também o fim
do sexo como fetiche e o fim da cena como "teatro" pulsivo)

os figurinos negros
evocam/invocam
as letras impressas no papel branco
(a brancura do espaço da cena) (posto que cores sempre referenciam o mundo...)

os deslocamentos
situados unicamente no campo linguístico
(e a fala não é sublimação, posto que não expressa, mas cria)
visam cada vez mais a ausência do gesto:

a forma
ao se extinguir
nos relega a -
o quê?

se o sujeito é instável
(no limite máximo da instabilidade, que macula inexoravelmente a própria noção de
sujeito)
então não há mundo
então não há solo sob os nossos pés

as palavras tem poder


sim
todo o poder

mas seu poder é da ordem da


transitoriedade

uma palavra tem pleno poder no momento em que é proferida


mas no momento da instauração de outra palavra
se apaga completamente a invocação/evocação até então vigente

a transitividade das formas instauradas:

traço
e
apagamento
(eternamente, no tempo sem tempo que se constitui aí/lá/aqui)

digamos deste modo:


a ideia que temos de EU
é uma ficção performativa
muito útil para jogarmos o jogo de linguagem específico
que chamamos de "mundo" (ou de "realidade")
mas completamente limitadora e castradora
se tomada como "verdade" única e definitiva (e definidora) acerca da vida humana

não é loucura pensar assim; loucura, alienação total, é pensar em si mesmo como sendo
uma identidade culturalmente definida.

não tenho de me submeter à minha própria existência.


sou livre de meu nascimento, posso ser livre de minha morte.
nunca houve verdadeira liberdade além dessa.
(j. baudrillard)

instaurar o disparate, a forma mais alta de pensamento. alta porque livre de


tudo, alta porque liberta de todas os fundamentos do pensar. pensamento que não é
pensamento, mas fricção (e voltamos ao sexo, sem sublimação: ao sexo, mesmo). mais
que pensamento, exige nosso pensar em resposta, provoca/instiga o pensar, porque não se
fecha, porque não é sistemático. e proporciona uma qualidade de pensar que é
surpreendente para todos nós, posto que não é um filtro para o "real", mas a invenção de
outros reais, insuspeitados; é movimento para frente (invenção), não para trás (análise)

quanto mal fizeram platão, aristóteles, kant, hegel... não por suas idéias, mas pela
FORMA de suas idéias. estabeleceram um tipo de PADRÃO para o pensamento, uma
ESTRUTURA SISTEMÁTICA que se introjetou em nós (na humanidade) como
arquitetura linguística da ordem do fundamento, e que nos aprisiona e cerceia de modo
terrível até hoje
a obra de arte como ENIGMA INSTÁVEL (não é algo indecifrável, mas algo indecidível
quanto ao seu sentido último)

2 coisas fundamentais:

1- é preciso fé no poder absoluto da linguagem


(a palavra como força ordenadora do real criado - e recriado, permanentemente - na cena)

2- uma peça se sustenta na tensão


(e esta tensão é criada por:
1-contrastes (entre eventos de natureza distinta);
2-ruídos (entre procedimentos distintos);
3-deslocamentos
(deslocamentos que se dão entre diferentes:
1-tempos;
2-espaços;
3-modos de subjetivação (isto é, arquiteturas linguísticas);
4-direcionamentos do discurso;
5-lugar (na lógica da opsis) de onde se fala).

a tensão se dava pelos quiprocós da trama; agora, ela é instaurada pelas operações no
sistema complexo de relações formais

é muito importante que não "concordemos" em tudo


porque fundamentos distintos geram trabalhos singulares
pollock, de kooning, rothko
eram amigos
e tinham visões autônomas acerca da arte
isto gerou obras que são como diferentes países estéticos/existenciais
ampliando o working space da pintura

mas o que é realmente importante


não são as ideias (conceitos e discursos não constroem arte, apenas podem disparar
processos de fazimento que sempre resultam maiores que os conceitos que os originaram)
o que é realmente importante são as obras
sua singularidade, sua diferença
sua dissonância em relação a TODAS as formas e discursos hegemônicos
não se pode opôr, em arte, um conceito a outro (isto é um procedimento que se faz em
ciência, onde descobre-se um modelo mais fidedigno de funcionamento do real que faz o
modelo anterior se tornar ultrapassado); cada lastro conceitual fundamenta um tipo
específico de trabalho (e é gerado por um tipo específico de lugar existencial/estético).
não podemos dizer que as operações de barnett newman estão "certas" e as de ad
reinhardt estão "erradas". porque arte não tem a ver com a "verdade", não tem a ver com
a construção de modelos mais ou menos fidedignos de funcionamento do real; arte tem a
ver com a INVENÇÃO de outras lógicas de funcionamento do tempo, do espaço e da
condição humana.

arte tem a ver com a AMPLIAÇÃO do real, com a invenção de outros reais, com a
transfiguração das ideias estabelecidas acerca da vida, com a reinvenção do homem

e cada obra de arte PRECISA proporcionar uma experiência estética singular, distinta da
experiência estética produzida por outros artistas. para isso, é crucial que os artistas
trabalhem com visões de mundo distintas. é isto o que permite a eclosão de uma geração
de artistas potentes: diferentes recortes, todos parciais, mas que desdobram (em infinitas
variações em um campo de ação propositalmente reduzido pelo artista - vide mondrian)
diferentes sistemas de relações formais, diferentes interesses, diferentes estéticas

em uma tarde, em montevideo, encontramos na hora do almoço uma


psicóloga amiga de uma das autoras que faziam um workshop comigo
por conta de nossas conversas, a autora lhe perguntou: é possível a criação de novos
moldes arquetípicos?
e a psicóloga respondeu, enfaticamente: "não. não é possível. arquétipos já estão dados, já
estão estabelecidos."
(a ciência, de modo geral, não inventa, apenas lida construindo modelos de como
funciona o que já existe)
pois bem - é claro que é impossível - até que o façamos no campo de um sistema formal
insuspeitado, da ordem da invenção
aí ampliamos o real, forçamos seus limites: a criação de novos moldes arquetípicos (o
que chamo de invocar O-objeto), a serem preenchidos por pulsões que ainda não existem,
mas que teremos que (seremos instigados a) INVENTAR diante da presentificação destes
novos moldes

em arte
hoje
não se trata de
evocar o objeto-a(usente)
mas sim de
invocar O-objeto

presentificar
através da linguagem
mas sobretudo NA linguagem
o impossível
(isto é: o que não existe)

precisão aleatória

semelhança entre peças de teatro e haute cuisine:


pequenas porções
e
sensações intensas (em instabilidade)

(artistas que fazem peças longas confundem (propositalmente, claro, pois este é seu
projeto estético) arte e vida. as duas instâncias, para mim, são distintas, e meu projeto é o
de abrir, rachar o tempo - quanto tempo cabe em um minuto?)
ou, dito de melhor modo: quantos TEMPOS cabem em um minuto?

fazer obras de arte


não é uma questão de esforço
ou de disciplina
(esforço e disciplina só reforçam o "si mesmo", e o "si mesmo" não pode criar obras de
arte, mas apenas produtos culturais (isto é, obras que são como reproduções de decisões
estéticas tomadas anteriormente por outros artistas, fazendo de nós bonecos de
ventríloquo))

para fazer obras de arte


é preciso
sim
estar atento
displicentemente atento
para perceber
o acaso
(que não mostra nem diz
mas indica
em instantes imprevisíveis
epifânicos)

da vinci disse
que a arte
é cosa mentale
van gogh disse
em uma carta a theo
que era movido por forças que não controlava

os dois estavam certos

arte é
elaboração
e
lance pulsivo
AO MESMO TEMPO

(às vezes o artista coloca a mão (isto é, constrói deliberadamente)


e outras vezes
tira a mão
e deixa que a obra se escreva por si mesma)

a questão mais grave para os atores


é que
eles sempre se fundamentam em QUEM está falando
quando deveriam
focar
em
O QUE está sendo falado
(a questão não é quem fala: uma personagem ou você (o ator, outra personagem...)
a questão é que se trata de uma FRASE)
o ponto é que não existe um QUEM fala: a linguagem precede o sujeito, e o sujeito é só
um efeito da linguagem. se ocorre esta mudança de ponto de apoio (abandonando a ilusão
do sujeito e afirmando que é a arquitetura linguística que determina todo o nosso modo
de habitar e agir na vida), as questões que anteriormente se apresentaram se tornam
irrelevantes, periféricas, derivativas, ou seja: falsas questões. uma FRASE é uma
ARQUITETURA LINGUÍSTICA, ou seja, um modo de subjetivação, ou seja, uma forma
inteira de vida.
e nos instantes (em cena) em que não se fala, está-se focado apenas em CONSTRUIR a
obra (indo-se de um lugar para outro, por exemplo, segundo uma marcação - e a
qualidade deste andar tem a ver com a funcionalidade dele, não com arrastar-se uma
personagem). ou seja: fala significa presença (enquanto dura a fala; presença cuja
qualidade será determinada pela arquitetura linguística da frase); e não-fala significa
ausência (ausência que expõe o processo de construção da obra).

nunca se tratou de
o que "eu quero fazer da obra"
mas sim do que a obra
vai fazer comigo

e para isso é preciso abrir espaços


para que a coisa/obra possa respirar
e caminhar sozinha

(uma obra de arte é sempre imprevisível


sobretudo
para o artista que a criou)

mais que utopias da ilusão,


obras de arte como HETEROTOPIAS de compensação:

que DESIGNAM a negociação constante com os términos fixos

que só se REFLETEM em relação recíproca e variação perpétua

que se MULTIPLICAM em uma aberta confrontação ao dogma

heterotopias como fator:


1-produtivo (anti-antiarte)
2-crítico (inevitavelmente, pela instauração de suas densidades outras em contraponto ao
mundo)
3-de ação radical (grande, imenso radicalismo possível em um momento que nega
(sabiamente) a validez das utopias)

a utopia (em arte/política)


é um não-lugar que se tornou lugar-comum
que não-teve-lugar devido a inflexibilidade de suas regras
herdadas do mesmo-lugar contra o qual lutava
regras que só poderiam ser aplicadas a lugar-nenhum
derivando a utopia em sem-lugar

(o avesso da heterotopia é o lugar-comum)

a utopia é um não-lugar que peca (e pecou terrivelmente ao longo do século


XX, até sua desfunção emblemática na última década do século passado) por querer
aplicar suas regras ao mesmo-lugar; o que salvaguarda as heterotopias é sua aplicação
estética, como instauração de experienciações estéticas, como fator-produtivo de obras de
arte (peças de teatro), que se dão como lugares-outros (habitados por outras formas de
vida, configurando desenhos insuspeitados e instáveis do tempo-espaço-
condição(não)humana); instaurações biofísicas multidimensionais sobre um palco:
apenas-tudo-isso

uma peça de teatro


mais que qualquer outra coisa
é a instauração
de um
LUGAR
(uma heterotopia)

isto potencializa a modelação de tempo/espaço específica, e elimina a possibilidade do


teatro se dar como espelho do mundo (que é o lugar-comum)

posto um lugar-outro, habitá-lo com outras formas de vida (haja vista que um ser humano
não pode sobreviver em marte)

as heterotopias são instáveis sempre, posto que o que caracteriza tanto as


utopias quanto o lugar-comum é a estabilidade

a instabilidade se dá de infinitos e surpreendentes e imprevisíveis modos, enquanto a


estabilidade se pretende permanentemente estável

neste sentido, toda heterotopia tem uma dívida com heráclito


melhor: uma vinculação com a percepção heraclítica

vejamos a seguinte sentença, e pensemos a respeito:


"conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana
seja apenas outra alma humana." (c. g. jung)

o grande problema desta frase é que se pressupõe que saibamos o que seja uma alma
humana
e uma alma humana é algo repleto de infinitas possibilidades de estar na vida, que se
desdobra e deve se desdobrar infinitamente, de infinitos modos (im)possíveis

uma técnica é uma alma humana (um modo de habitar a vida)


outra técnica resultará em outra alma humana (outro modo de habitar a vida)

nada que valha a pena é intrínseco (o que introjetamos é sempre cultural)


tudo que nos é estranho, extrínseco, da ordem da alteridade, significa outra/nova
possibilidade
se estamos vivos, estamos nos reinventando instante a instante
(se encaramos a natureza humana como algo dado, estabelecido, então perdemos a grande
possibilidade de habitar infinitos e imprevisíveis e insuspeitados pontos de fuga,
momento a momento)

a frase acima (do citado psicanalista) é conformista e conformadora em sua configuração

a alma humana é só uma ideia


em permanente mutação

não se trata de NEGAÇÃO


(anti-arte, anti-teatro, não... isso é como uma piada velha, e não se pode contar uma
mesma piada duas vezes)
mas sim de PROPOSIÇÃO

trata-se de construir OBRAS DE ARTE (sim!)


mas obras que se fundam em OUTROS SOLOS
solos insuspeitados
radicalmente outros

(fazemos TEATRO, mas nossa ideia acerca do que seja o humano é OUTRA – e é por
isso que nosso teatro assume outras formas)

Post Scriptum
repetir é um dom do estilo
(m. de barros)
(e o estilo é como a singularidade: uma conquista de cada artista

a questão mais grave para os atores


é que eles (em geral) se fundamentam em QUEM está falando
quando deveriam
focar
em
O QUE está sendo falado
(a questão não é quem fala: uma personagem ou você (o ator, ou seja: outra
personagem...)
a questão é que se trata de uma FRASE: uma forma específica de vida)

o mais importante é falar a frase; a contaminação se dará, se falamos ouvindo.


CONTAMINAÇÃO, durante o ato da fala, pela frase (gerando uma HABITAÇÃO)

porque o ponto é que não existe um QUEM fala: a linguagem precede


o sujeito, e o sujeito é só um efeito da linguagem. se ocorre esta mudança de
ponto de apoio (abandonando a ilusão do sujeito e afirmando que é a arquitetura
linguística que determina todo o nosso modo de habitar e agir na vida), as
questões que anteriormente se apresentaram se tornam irrelevantes, periféricas,
derivativas: falsas questões. uma FRASE é uma ARQUITETURA LINGUÍSTICA,
ou seja, um modo de subjetivação, ou seja, uma forma inteira de vida.

e nos instantes (em cena) em que não se fala, é preciso que se esteja focado
em CONSTRUIR a obra (quando se vai de um lugar para outro, por exemplo,
segundo uma marca: a qualidade deste andar tem a ver com a funcionalidade
dele na opsis, não com arrastar-se uma personagem). fala significa presença
(enquanto dura a fala; presença cuja qualidade será determinada pela
arquitetura linguística da frase); não-fala significa ausência (ausência que expõe
o processo de construção da obra)

as melhores máquinas são as que não servem para nada, mas que ainda assim funcionam

construir uma singular amarração do nó (borromeano – vide lacan);


o resto (reprodução de amarrações-outras, produzidas por sinthomas-outros) é
fantasia
a relatividade da simultaneidade
é a idéia de que
depende do observador
se dois eventos ocorrem
ao mesmo tempo ou não
se lançarmos dois foguetes simultaneamente
um de Marte e outro de Saturno
um determinado observador
viajando pelo espaço
pode dizer que eles foram lançados ao mesmo tempo
enquanto outro observador
viajando de outra forma
poderia dizer que o que está em Marte saiu antes
e ainda um outro (viajando em distinta velocidade e observando de um outro
ponto) diria que foi o de Saturno que saiu primeiro

isto se dá pela forma como diferentes pontos de vista se tornam distorcidos uns
em relação aos outros na relatividade especial

aqui, podemos ir além da ideia de pontos-de-vista: pensemos em diferentes


HABITAÇÕES da vida (aí não se trata apenas de um passeio intelectual entre
diferentes pontos-de-vista, mas da experienciação de deslocamentos entre
distintos lugares existenciais)

uma singularidade toroidal


está necessariamente cercada
por dois horizontes de eventos

me refiro aqui a um buraco negro de kerr: uma singularidade toroidal, um anel de


giro aberto por seu próprio impulso. há então dois horizontes de eventos: um
interior (cognoscível) e outro exterior (incognoscível), e uma elipsóide chamada
de ERGOSFERA, dentro da qual o espaço-tempo gira com o buraco negro.

os teoremas da incompletude de Gödel


não são estritamente científicos
mas sim um conjunto de teoremas matemáticos
definitivamente relevantes para as formas e caminhos do pensamento e da
criação

teoremas da incompletude de Gödel


ou teoremas da indecidibilidade
demonstrados em 1931 por Kurt Gödel:
qualquer teoria axiomática recursivamente enumerável e capaz de expressar
algumas verdades básicas de aritmética não pode ser, ao mesmo tempo,
completa e consistente.
uma teoria, recursivamente enumerável e capaz de expressar verdades básicas
da aritmética e alguns enunciados da teoria da prova, pode provar sua própria
consistência se, e somente se, for inconsistente.

sempre haverá declarações que são indecidíveis


o que significa que não podem ser provadas ou refutadas
devido à inevitável natureza auto-referencial de qualquer sistema

os teoremas indicam que não há nenhum grande sistema matemático capaz de


provar ou não todas as instruções

isto pode ser pensado como a forma matemática da declaração


eu sempre minto

o principal ponto dos teoremas da incompletude de Gödel é que todos os


sistemas (lógicos ou estéticos ou...) demonstram que não podem ser provados
ou
refutados

não INDECIFRÁVEL, mas INDECIDÍVEL

algo indecifrável não permite resposta; algo indecidível permite várias respostas
(mas nenhuma em definitivo)

uma peça de teatro


como ERGOSFERA
aí/lá/aqui
o espaço-tempo gira
se desloca
com o buraco negro (que é a obra)
singularidade na qual o giro se abre por seu próprio impulso
(pelas operações formais da opsis)

estas analogias são importantes para que desloquemos nosso ponto-de-apoio


na criação de obras de teatro; para que abandonemos uma postura
antropocêntrica e nos fundamentemos em uma instância mais profunda, que se
liga à natureza da existência das coisas todas
profundo, ou seja: que ressoa de modo autônomo em múltiplas direções

aí até mesmo o MUNDO DOS HOMENS se transforma, porque nossa


perspectiva existencial se transforma, por gravitação inevitável, produto de uma
(não)compreensão mais profunda
mais profunda, ou melhor dizendo: mais perigosa

mais que presente constante, eliminar a própria idéia de tempo. isto não tem
nada a ver com atemporalidade, nem tampouco com qualquer coisa que já tenha
sido nomeada. e é preciso que esta experiência inominável seja efetivamente
instaurada pelas operações de um sistema de relações formais (eis o desafio:
inventar meios empíricos de bordejar – em ato estético instaurado biofisicamente
– o abstrato)

as mudanças
são encontros
de mundos
que se movem
(ericson pires)

(aplique-se
isto
ao teatro)

a coisa toda (a criação de obras de arte em teatro)


encontra analogia matemática/física
na mistura entre:

O TEOREMA DA INCOMPLETUDE DE GÖDEL


e
O BURACO NEGRO TOROIDAL DE KERR

traçando analogias que podem desencadear processos criativos


múltiplos (finalmente) e singulares (sempre) na invenção de obras de arte em
teatro:

em termos filosóficos, podemos falar em HETEROTOPIAS


em termos matemáticos, podemos falar em ERGOSFERAS

as pictocoreografias de hoje
encontram sua origem no primeiro livro impresso na história (incunabulum)
hypnerotomachia poliphili (século XV)
assim como a poesia
está na origem da linguagem
(vide a polissemia das línguas antigas)

para se trabalhar com síntese em arte


(e síntese significa elegância e profundidade
é preciso que em cada frase haja vinte frases
é preciso que um trecho de meia lauda tenha a amplidão de cinco laudas
mas condensadas de modo mais elegante e ainda assim plenamente potente
(ou seja: eficaz)

no buraco negro toroidal


(e vide a leitura lacaniana do toro: estranha organização do furo)
há DOIS horizontes de eventos
(como em toda grande obra de arte:
um horizonte de eventos cognoscíveis
e outro de eventos incognoscíveis)

na singularidade da ergosfera
girando pelo próprio impulso do buraco
os encontros são mudanças
: choques entre mundos

por mundo
entenda-se
uma arquitetura linguística
(não é possível existir de outro modo
a não ser que inventemos outras arquiteturas linguísticas)

uma arquitetura linguística (ou uma linguagem, no dizer de wittgenstein)


instaura uma habitação (no dizer de holderlin e heidegger)
da vida

outra arquitetura linguística


instaura
outra possibilidade de habitarmos a vida

minha pátria é minha língua


pois bem, é preciso inventar outras línguas
não só novas palavras
mas sobretudo outras (não)estruturações linguísticas
distintas da estruturação linguística hegemônica global
(que faz com que todos nós, hoje, à parte idiossincrasias locais, estejamos na
vida (existencialmente) do mesmo modo (fundamentalmente): seja na bélgica
seja no uruguai)

esta estruturação linguística hegemônica está introjetada em nós


há pelo menos 2.500 anos (é a base de nossa ideia de civilização)

radicalidade em ato: e se o teatro é o campo do ato mais radical: a reinvenção


do homem: e se o homem (nossa ideia inteira acerca do humano) é produto de
uma estruturação linguística específica: então o ato mais radical é o da invenção
de outras linguagens
nesta heterotopia/ergosfera (o teatro)
que se caracteriza
(ao contrário da utopia e do lugar-comum)
pela instabilidade permanente
mas nunca previsível

imprevisível porque o encontro com outro(s) mundo(s) é sempre


insuspeitado
o desconhecido, o impossível
não se pode prever

não existe OUTRO enquanto se está em nosso mundo


aqui
no lugar-comum linguístico
(e não importa que se fale francês ou inglês ou português ou alemão...)
não há outro
só há o mesmo
(a mesma estruturação linguística/de pensamento/de sensibilidade)

a heterotopia
o lugar-outro
outro(s) modo(s) de subjetivação
: outro(s) lugar(es) linguístico(s)

(não se trata de dizer coisas diferentes


mas sim de criar diferentes usos da linguagem)
o(s) caminho(s) para a(s) dramaturgia(s) contemporânea(s)
passam pela junção entre:

-distintas (inventadas) arquiteturas linguísticas (distintos modos de subjetivação


(outros))
e
-pictocoreografias (dança pulsiva de signos em uma página)

a potência imprevisível desta junção (ou melhor: desta articulação, em infinitas


articulações (im)possíveis)

qualquer coisa que valha a pena


é aparentemente impossível de ser instaurada

até que o façamos


pela instauração experiencial desta impossibilidade
o que chamamos de real
se amplia

é impossível apenas porque ainda não existe; porque é desconhecido; é


impossível, portanto precisa ser inventado

em arte
o impossível não pode ser evocado (não se encontra no território da memória)
não é algo que está ausente, mas algo que não existe

o impossível
precisa ser
invocado

(precisa se presentificar, se instaurar, cristalino em sua alteridade em relação a


tudo o que é conhecido)

insuspeitadamente cristalino...

só se pode falar de ÉTICA em relação a um ponto:


é preciso assumir a responsabilidade sobre nosso inconsciente
(é preciso encarar o inconsciente como usina; é preciso produzir inconsciente)
às vezes projetamos conteúdos inconscientes (somos guiados por nossa fonte
pulsiva)
às vezes produzimos inconsciente (inventamos pulsões, para preencher novos
moldes arquetípicos instaurados em nossas obras)

ética e estética
dialogam o tempo todo em nós
redesenhando a si mesmas (e a nós)
em conversações nas quais seus limites são forçados
ampliando nossa experiência existencial
em veredas imprevisíveis

quando o vazio decanta


então a morte se coloca como pano-de-fundo perpétuo de nossas ações
(visão do mundo da perspectiva da eternidade – no dizer de spinoza)
e isto (esta experienciação)
detona processos de criação nos quais ética e estética
enfim
se tornam instâncias indissociáveis

os imbecis que acusam certas obras de formalismo...


ora, toda forma instaura um conteúdo, e todo conteúdo só existe na habitação
de uma forma
(estes cretinos pensam em obras conteudísticas, como se estas obras não
tivessem uma forma específica – o ponto aqui é que preferem a forma que
instaura determinados conteúdos, e rechaçam outras formas que desenham
outros conteúdos que não lhes interessam na difusão de seus dogmas idiotas)
estas criaturas agem como se fosse possível pensar num ponto fora do
espaço...
forma e conteúdo são instâncias indissociáveis
a forma de uma peça é seu próprio conteúdo
e, numa grande obra, não é possível sequer dizer do que ela trata, porque o que
a obra diz só pode ser instaurado naquela forma específica, criada por seu autor

quando digo grande obra, me refiro a obras de arte da ordem da


invenção, que ampliam a experiência humana. e quanto maior (neste sentido) a
dramaturgia, maior será a exigência de uma resposta igualmente criadora por
parte de diretores e atores, na medida em que uma grande obra é sempre uma
máquinadesejante, cheia de falos e buracos, que exige, para se instaurar, um
diálogo da ordem do desejo e da ampliação da dimensão artística e existencial
de todos os envolvidos

toda grande dramaturgia


extingue instantaneamente a discussão (extremamente superficial, em voga nos
80 e 90)
acerca de textocentrismo X teatro de imagens
na medida em que
os próprios textos
NÃO são textocêntricos

texto como CORPO SEM ORGÃOS, texto como MÁQUINADESEJANTE

a experiência estética (da ordem da alteridade) é algo que só a obra


de arte pode proporcionar
não tem nada a ver com as outras qualidades de experienciação que temos na
vida (como tomar LSD ou contemplar o pôr do sol, por exemplo)
se você não entende o conceito de experiência estética, não devia nem estar
atuando no campo da arte

porque a experiência estética é proporcionada por sistemas complexos de


relações formais, sempre singulares, ou seja: por obras de arte (vide a definição
de experiência estética de clement greenberg)

o problema ao mesmo tempo político, ético, social e filosófico que


hoje se nos coloca não é o de tentar liberar o indivíduo do Estado e de suas
instituições, mas de nos liberar, a nós, do tipo de individualização que a eles se
vincula. devemos promover novas formas de subjetividade.
(foucault)

e isto só pode se dar quando nos livrarmos da linguagem hegemônica,


introjetada em nós como única forma possível de estar no mundo. novos
modos de subjetivação significam novas arquiteturas linguísticas, que promovam
outras habitações da vida.

artaud chamava de possuídos àqueles de nós que introjetaram as formas e


discursos hegemônicos da cultura. exorcismo é como artaud chamava o
processo de SEPARAÇÃO da cultura

é preciso se atrever
para além da verdade

às vezes trabalhamos com a CONTRAÇÃO do tempo


outras vezes, com sua DILATAÇÃO

paint it black:
a morte como pano-de-fundo perpétuo
a instância ontológica
o lugar existencial do gêneses
para além do sujeito culturalmente definido
contra toda(s) a(s) cultura(s)
contra (inclusive) a própria natureza

black
é o fim do mundo
(de uma idéia estabelecida acerca do que seja a vida)
é a libertação do si mesmo é
a separação de nós mesmos

e todo fim é também um novo (outro) começo


e todo começo
é imprevisível

e eu digo
AMÉM
para o desconhecido
(e SÓ para o desconhecido)

para qualquer um de nós


(para qualquer um minimamente são)
o que pode interessar
é apenas aquilo
que não se conhece

black como ausência


ausência do conhecido (a(s) cultura(s), o si mesmo)
para que o OUTRO
a alteridade radical
O-objeto
possa se instaurar
em presença plena
estranha presença...

uma autêntica revolução não visa apenas a mudar o mundo, mas,


antes, a mudar a experiência do tempo.
(giorgio agamben)

é o modo como nos estruturamos linguisticamente que nos faz experienciarmos


o tempo (ou seja: habitarmos a vida) de uma determinada maneira (em
consonância com esta estruturação linguística). é na reinvenção (em múltiplas e
infinitas direções) da linguagem que poderemos estar no tempo de outro(s)
modo(s); habitarmos a vida de novas (outras) maneiras; nos libertarmos de nós
mesmos (de nossa identidade culturalmente definida)

hoje
a vanguarda não só é possível
(na medida em que sempre vão surgir experiências estéticas novas (outras)
impossíveis de serem previstas antes de seu surgimento)
como seu conceito se liga de modo incontornável
à própria possibilidade da arte
(como invenção de sistemas complexos de relações formais
que ampliem a experiência humana para além da vivência proporcionada pela
cultura)

assim
avant-garde
e
arte
são
conceitos
indissociáveis

não se trata de perguntar por que?


(esta é a atitude de quem ainda crê em respostas definitivas)
mas sim de aprender a conviver com a instabilidade
com a mutabilidade das coisas (e de nós mesmos)
com a hibridação
com o derretimento
com as incertezas
a hipótese de um sujeito unitário talvez não seja necessária. talvez
seja igualmente permitido admitir uma multiplicidade de sujeitos, cuja interação e
luta entre si estejam na base do nosso pensamento e, em geral, da nossa
consciência.
(nietzsche)

pois é exatamente contra – radicalmente – a ideia de sujeito uno que eu luto


aqui, no campo da criação dramatúrgica

a própria noção de personagem está (invariavelmente) ligada à ideia que nós


temos acerca do sujeito
ou isso é atacado (porque compreendemos que trata-se de uma ilusão, e mais:
que trata-se do maior mecanismo de controle jamais concebido, e que está
introjetado na base do modo como estamos na vida)
ou só faremos variações na forma de construir nossos edifícios estéticos, mas
continuaremos a edificá-los sobre o mesmo solo: uma ideia estabelecida acerca
do seja o humano

e é preciso até ir mais além


além da própria ideia de sujeito (ou de sujeitos em co-habitação em uma
consciência)
é preciso chegarmos à ideia (não especulativa, mas instaurada em ato radical)
de modos de subjetivação

modos de subjetivação
de coisas (da rocha, da parede, do vidro, do vento, da montanha...)
de animais/seres vivos não humanos (do cão, do pássaro, do verme, da carne
em putrefação, da árvore...)
de eventos (do acidente, do crime, do ataque, do pão sendo mastigado, da
morte...)
e (mais mais além)
modos de subjetivação
do que ainda
não
existe (O-objeto)

trocar o conceito de PERSONAGEM pela ideia (catapultadora de


outros/novos caminhos de criação) de MODOS DE SUBJETIVAÇÃO, sempre em
trânsitos, instabilidade, deslocamentos;
substituir PSICOLOGIA por ARQUITETURAS LINGUÍSTICAS;
substituir SUJEITO por FALANTE (na medida em que é o modo como eu falo
que me faz existir (habitar a existência) desta ou daquela maneira)

no teatro
instaurar um outro lugar
distinto da produção de imagens
(imago: do latim imagem, mito, a representação de uma ideia, a correlação entre
um objeto e o seu significado)
em contra-fluxo a toda espécie de espetacularização
posto que não é sobre a mise-en-scène (chega de tanta mise-en-scène!)
mas sobre o OUVINTE
(é pelos ouvidos que nos separamos de nós mesmos, graças a liberdade da
linguagem)

(é que meus olhos estão cansados, demasiadamente:


é tudo espetáculo
é tudo imagem
é tudo cor...)

como manter a vida da forma (recusando as estratégias da mise-en-scène/


produção de imagens)?

(vide os retângulos vivos de barnett newman)

é sobre o OUVINTE
(aí tem-se a liberdade
a autonomia
o não-dirigismo

o resto
é stalinismo...)

3 elementos:
o invisível (campo propício para invocações)
o efêmero (que se apaga permanentemente)
o imaterial (presença e ausência conjugadas)

toda arte
é calcada na falta
não no que se reconhece
mas no que nos falta
(mesmo que não saibamos)
a obra só ocupa a sensibilidade do ouvinte
se o ator não oblitera esta ocupação

e isto não tem nada a ver com anodinia ou com "não fazer nada"
mas com uma presença plena
instaurada pelo ator
presença que não tem relação com a identidade cultural do sujeito
mas sim
com
presença
como alteridade

o que nós chamamos de real é só um jogo de linguagem específico, que


jogamos de modo cúmplice no mundo cotidiano. neste sentido, o que chamamos
de real é uma instância ficcional. e porque tudo é ficção, o que fazemos no
teatro é a instauração de outro(s) real(is) possível(is), que funciona(m) segundo
outras regras (outro(s) jogo(s) de linguagem, distinto(s) do jogo de linguagem
que apelidamos de realidade)

uma partitura de mozart, quando vista no papel, não parece ser muita
coisa. quando tocada (isto é, quando atualizada em ato), COISAS efetivamente
acontecem (deslocamentos). a dramaturgia não é literatura; não deve funcionar
no papel, mas apenas quando ativada pela fala; só se expande e se instaura
biofisicamente, no espaço entre a boca e o ouvido

o ato criador
em que inventamos e habitamos outros modos de subjetivação

não permitamos
que este ato
seja atrapalhado
por
nossas identidades
o pensamento mora na forma.

cada pensamento
só pode ser efetivamente pensado
(em sua potência plena)
na medida em que habite
sua forma específica
(o trabalho em arte consiste na invenção desta FORMA INEVITÁVEL)

tudo o que nos afeta e modifica brutalmente nosso estar no mundo (e


TODAS as obras de arte o fazem, por sua reverberação poética em nossas
sensibilidades), terá reverberações políticas inevitáveis (na medida em que afeta
e redesenha nossas relações com os outros, com o mundo). o problema é que
confundimos as coisas, e achamos que "política" significa política partidária...
{ser artista já significa tomar partido: contra todas as formas e discursos
hegemônicos, em prol da ampliação da experiência humana em direções
insuspeitadas, imprevisíveis, para além da vivência normatizada (e
normatizadora) que a cultura nos proporciona. isto é o que é PRÓPRIO do
campo da criação de OBRAS DE ARTE (e não de produtos culturais, ou de
discursos unívocos – como os discursos partidários propagandistas a que me
referi)

toda ARTE é política – e de um modo inevitavelmente transgressor dos sentidos


estabelecidos, inevitavelmente destruidor de toda normatização. só que qualquer
espécie de DIRIGISMO (isto é, qualquer instância não-poética, não-polissêmica)
torna a obra não mais arte, mas sim propaganda. e isto é política PARTIDÁRIA,
isto é: que visa uma revolução PRÉ-CONCEBIDA, isto é: que visa tirar um
partido do poder para colocar outro no lugar, isto é: que visa
CONVENCIMENTO. aí o que fazemos não tem relação com a grande
possibilidade revolucionária da arte, que é a de proporcionar uma reinvenção do
estar no mundo, que se dá de modo autônomo para cada receptor

através da arte
NA própria arte (no instante de seu fazimento - radicalidade em ato)
inventar algo que não é o universal nem tampouco uma identidade
mas novos/outros modos de subjetivação
plurais instáveis em trânsitos
não-humanos
: furos buracos - EM GIRO
encontrar a singularidade
é desestruturar todas as formas do universal
singularidade
é a constituição da obra
como
alteridade radical

A CONQUISTA DA SINGULARIDADE*
(*texto escrito por ocasião da curadoria do FIT - Festival Internacional de Teatro
de São José do Rio Preto, 10 ª edição, realizada pelo autor)

Neste ano de 2010, o FIT, norteado por um restrito conceito curatorial, não se
posiciona como “uma vitrine do melhor da produção das artes cênicas”. De
modo absolutamente distinto nesta edição, o Festival de São José do Rio Preto
se coloca, resolutamente, como um espaço que não se baliza apenas pela
qualidade dos espetáculos – mas sim, e sobretudo, por sua SINGULARIDADE.

Trata-se de um panorama de obras (ou de artistas, haja vista que foram


selecionados criadores que já há algum tempo desenham trajetórias de
PENSAMENTO EM ARTE) que recusam as estratégias de construção da cultura
de massa (ou mesmo da alta cultura) e constituem-se como ALTERIDADES
RADICAIS, em sua criação de Poéticas fundantes.

Teatros que não se configuram como um ESPELHO DO MUNDO, mas que se


instauram como tapetes, TECELAGENS: redes de fios (engendrados por novos
modos de subjetivação, afetos, sensações, imagens, construções inomináveis –
posto que se localizam fora da cartografia reconhecível da cultura) que apontam
para novas possibilidades de compreendermos e experienciarmos O TEMPO, O
ESPAÇO, A LINGUAGEM, A CONDIÇÃO HUMANA. Não nos reconheceremos –
nem a nós, nem ao nosso mundo – nestes palcos; o que veremos aqui são
outras possibilidades: outros mundos, outras humanidades.

Situam-se, estas obras, no CAMPO DA ARTE: são sistemas complexos de


relações formais, construídos no mais amplo contexto de sistemas anteriores,
que visam AMPLIAR A EXPERIÊNCIA HUMANA através de vivências estéticas
que não podem ser proporcionadas pelo campo da cultura. Estes sistemas (que
agem por contaminação) constituem-se como Poéticas (jogos de linguagem,
cujas regras não reproduzem, aqui, jogos reconhecíveis), criados por artistas
que, com isto, respondem com originalidade ao seu entorno. Seu norte é a
singularidade, isto é, a conquista de uma percepção autônoma de mundo, que
se traduz (e se expande) em arquiteturas estéticas que não reproduzem
estratégias hegemônicas (culturais) de construção.

Uma obra de arte procura (sempre) ampliar a experiência humana de seu


tempo. Para tanto, é preciso recusar as formas convencionais (ou ao menos
problematizá-las) e partir para a descoberta e construção de outros sistemas,
que articulem experiências distintas da experiência conhecida. O trabalho em
arte é, assim, uma contrapartida dialética às formações culturais de massa. A
CULTURA é o senso comum, as idéias que compartilhamos acerca da condição
humana; a ARTE recusa estas noções, e busca proporcionar experiências
estéticas que expandam o modo como percebemos a nós mesmos e ao mundo.

Uma obra de arte está sempre descolada das formas e discursos hegemônicos;
para criar arte, portanto, é preciso trabalhar por muito tempo em processos de
limpeza, de descolamento, imprescindíveis para que uma outra experiência
possa ser descoberta. (E é preciso suportar a imensa ansiedade advinda da
impossibilidade de se alcançar resultados rápidos em processos desta
natureza...)

Quando um criador se coloca (como em todos os casos, aqui, ainda que em


graus variados) diante da tarefa de realizar algo no campo da arte, tem
necessariamente que se opor às estratégias usuais de construção empregadas
em seu tempo e se lançar à criação de novas Poéticas. Se não o fizer, estará
agindo (por vezes ingenuamente) no campo da cultura – o que o coloca,
inadvertidamente ou não, como um instrumento ideológico, mais uma
engrenagem em nossos mecanismos sociais de controle (cada vez mais sutis,
ardilosos, sub-reptícios). Neste sentido, o conceito deste Festival, longe de
apontar para idiossincrasias ou hermetismos autocentrados, possui um
incontornável alcance POLÍTICO.

Por tudo isto, não será fácil o diálogo com estas obras: nada causa mais repulsa
e incômodo ao senso comum que a presença da alteridade. A alteridade instaura
outra possibilidade do humano – o que é intolerável (mais ainda em nossa era
de comunidade global). Como defesa, tendemos a reagir dando a elas, na falta
de outro rótulo (posto que não há, ao menos no surgimento da alteridade), a
designação genérica de estranho. Mas ser estranho não é um valor em si
mesmo. É preciso que esta estranheza advenha da instauração de conjuntos de
operações (complexas, ou simples, nunca fáceis...) que, articuladas, promovam
transubstanciações dos sentidos e revolução dos signos.

As obras aqui apresentadas definitivamente não se submetem à visão acerca da


condição humana que os discursos e formas culturais hegemônicas vem
propagando. Vislumbram (e fazem ver) a parcela de vida que ainda não foi
sufocada pela tempestade de imagens e barulho da contemporaneidade.
Trabalham com SENSAÇÕES QUE NÃO TÊM NOME, posto que estão fora (e
além) do catálogo de emoções e vivências humanas recorrentes no campo da
produção cultural *. Constroem Poéticas que não ecoam comodamente
nenhuma das formas banalmente limitadoras, tragicamente redutoras da
condição humana que ora pululam. Estes teatros são, assim, um contrafluxo à
cultura contemporânea. E é preciso resguardar a sobrevivência da arte numa
sociedade de massa.

A SINGULARIDADE É O TEMA PERPÉTUO DA CONSTITUIÇÃO DE OBRAS


DE ARTE. Liberdade de expressão não é nada sem liberdade de impressão: só
quem CONQUISTA (e eis aqui árdua, dificílima tarefa – é preciso um esforço
perpétuo para que um indivíduo se descole da condição de boneco de
ventríloquo) a condição de perceber o mundo a partir de um lugar liberto das
amarras da convenção (de toda e qualquer espécie), pode expressar-se de
modo realmente autônomo (e é preciso reiterar: a gravitação inevitável das
proposições estéticas oriundas de instâncias desta natureza são, em primeiro e
último plano, políticas). Nestes teatros, procura-se conquistar uma forma
singular de perceber e construir a experiência humana em cena. E procura-se,
também, criar um campo experiencial que propicie a cada espectador A
RENOVAÇÃO, DE MODO AUTÔNOMO, DE SUA SENSAÇÃO DE MUNDO.

O que os artistas aqui reunidos fazem é atacar – em sua base – o modo como
percebemos/construímos o mundo. Através de proposições de outros modos de
constituição da subjetividade, de manipulações inusuais do tempo, do espaço,
da linguagem, a própria maneira como pensamos (e portanto todo o nosso modo
de configurarmos e nos relacionarmos com o mundo) é afetada. Criam assim –
através de estratégias formais que para cada artista se processam de modo e
com intenções diferentes –, criam assim Poéticas que nos proporcionam novas
ferramentas para compreendermos (e até redefinirmos) nossas vidas. Nestes
artistas não há mais dicotomia entre forma e conteúdo: A FORMA DAS PEÇAS
É O SEU CONTEÚDO. O palco se torna não mais um território de ilusão, mas
de CONSTRUÇÃO DE POÉTICAS, onde novas realidades são construídas e
desconstruídas (haja vista que o que chamamos de realidade é também um jogo
de linguagem específico), e onde ESTE PROCESSO É APRESENTADO PELO
ARTISTA AO PÚBLICO. Não se trata aqui da vida como ela é, mas das coisas
como elas realmente são. Trata-se de construir espécies de objetos – as obras:
réplicas ao mundo, e de igual densidade. O sentido convencional do teatro sofre
um golpe: a obra não trata mais de reproduzir de modo mais ou menos
deformado o real, mas se torna uma MEDITAÇÃO SOBRE O REAL. Sobre o
modo como percebemos – e CONSTRUÍMOS – o real.

Todos os diferentes países existenciais desta mostra (composta por 12 peças


nacionais e 6 produções internacionais) trabalham com a parcela de vivência
humana que não tem nome – algo EXTRÍNSECO ao si mesmo cultural. Abre-se
então, na visitação destes lugares (e um mundo novo precisa ser vivenciado
antes de ser analisado...), insuspeitados campos do humano.

É no sacrifício destruidor da boa articulação que vemos surgir a forma


contemporânea da beleza. Uma beleza que não se constitui pelos antigos
valores estéticos, mas que se desvela e se encontra na elegância com a qual
uma determinada realidade se presentifica, forçando nossa visão e, assim,
tornando-se novamente digna de nossa atenção.

Estas Poéticas situam-se no campo da diferença, não no campo da semelhança.


O prazer ligado à recepção destas obras é resultado da destruição e dissolução
que elas causam ao sentido cultural da vida.
As rupturas e disjunções não são mais admitidas pelo discurso da arte – mas o
fato é que existem experiências que são novas...

Não se trata, neste Festival, de consagrar uma determinada sensibilidade, mas


sim de criar outras possibilidades. Obras que sejam INTERRUPTORES em
nosso grande circuito comunicacional – tarefa imperiosa, urgente, emergencial
em um mundo em que a COMUNICAÇÃO é tão intensa que quase não abre
brechas para que possamos respirar.

“Quando se trata de pensar, quanto maior é a obra realizada, quanto mais rica é,
nesta obra, o impensado, isto é o que através desta obra e só dela vem para nós
como nunca ainda até então pensado.”
M. Heidegger

Nestes teatros, as distinções categóricas se dissipam – sem que isto signifique o


estabelecimento estéril de sínteses, ao contrário. Nestes lugares, as barreiras
que separam vida e morte, passado e presente, masculino e feminino, mundo
interno e mundo externo, estas barreiras desmoronam através do deslocamento
e ampliação da noção de sentido: o que interessa nestas obras é que elas
trazem o ENIGMA, e o enigma se irmana à vida (posto que um enigma é uma
enunciação sem enunciado; uma resposta dada sem que se saiba qual foi a
pergunta).

Os teatros que serão mostrados (para visitação, experienciação e diálogo) no


FIT – Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto neste ano de
2010, enfim, propõem um OUTRO espaço/tempo – no qual todas as categóricas
distinções que empregamos na cotidianeidade, todo sentido unívoco, toda
síntese, tudo o que nos une e harmoniza – tudo isto rui. São obras de vocação
desarmonizadora... Aqui, nestas searas originais, nestas veredas não
mapeadas, estas obras se expandem e, como que escavando, abrem universos
insuspeitados – e o povoam com uma outra humanidade.
(*) Atualmente, mesmo com nossos telescópios mais poderosos, só temos
acesso a uma parcela mínima do Universo físico. Analogamente, podemos
pensar que só conhecemos uma parcela mínima da experiência humana. A esta
parcela conhecida, demos nomes tais como ciúme, inveja, amor, ódio, raiva,
ternura, medo, desejo, carinho, amizade, compaixão, etc... A cultura trabalha
com estes sentimentos, com estas sensações nomeadas e identificáveis. A arte
deve trabalhar com a infinita parcela de experiência humana que ainda não foi
catalogados; deve desencobrir (ou criar) experiências humanas que ainda não
tem nome: POÉTICAS DO INOMINÁVEL.

O DESASTRE NA ESCURIDÃO*
(Construção de Poéticas do Inominável)

(*texto escrito para a revista SALA PRETA, da USP – Universidade de São


Paulo, 10 ª edição, por ocasião do dossiê TRÍPTICO Richard Maxwell,
espetáculo encenado pela companhia Club Noir em 2010)

Uma linguagem é uma forma de vida.

L. Wittgenstein

1- A linguagem é pensamento; e o pensamento é o modo como configuramos o


mundo. Quando determinados autores focam seu interesse na linguagem, o que
eles fazem é atacar – em sua base – o modo como percebemos/construímos o
mundo. Ao abordar a linguagem, desconstruí-la ou reconstruí-la de maneira
inusual (através de arquiteturas linguísticas que propõe habitações distintas da
vivência cultural hegemônica: outros modos de subjetivação), é a própria
maneira como pensamos (e portanto todo o modo de nos relacionarmos com o
mundo) que é afetada. Criam assim – através de uma manipulação formal da
linguagem, que para cada autor se dá de modo diferente e com intenções
diferentes –, criam assim POÉTICAS que nos proporcionam novas ferramentas
para compreendermos (e até redefinirmos) nossas vidas. Ferramentas que
podem nos proporcionar uma RENOVAÇÃO DA NOSSA SENSAÇÃO DE
MUNDO. E o único modo de fazê-lo não é através de um discurso – pois se o
discurso é expresso de forma reconhecível, se torna tão anódino quanto
qualquer comercial de TV. Nestes autores não há mais dicotomia entre forma e
conteúdo: A FORMA DA PEÇA É O SEU CONTEÚDO. O palco se torna não
mais um território de ilusão, mas de CONSTRUÇÃO DE POÉTICAS, onde novas
realidades são construídas e desconstruídas (haja vista que a própria realidade
é um jogo de linguagem com regras específicas), e onde ESSE PROCESSO É
APRESENTADO PELO AUTOR AO PÚBLICO. (Problema: como atuar nestes
textos, se nossos atores vêm quase indistintamente de uma escola figurativa de
interpretação? Não se trata aqui da vida como ela é, mas das coisas como elas
realmente são.) O teatro não trata mais de reproduzir de modo mais ou menos
deformado o real, mas se torna uma MEDITAÇÃO SOBRE O REAL. Sobre o
modo como percebemos – e CONSTRUÍMOS, PELA LINGUAGEM – o real.

2- Em relação aos atores: evitar, sobretudo, o PLEONASMO entre o que se


acredita ser o sentido de uma frase e uma entonação/gestualidade naturalista.

3- Há algumas linhas de força na prolífica obra de Richard Maxwell (mais de 30


textos escritos e encenados até o momento), ou algumas ferramentas, ou
algumas estratégias que são usadas pelo autor com alguma recorrência. Entre
elas poderia-se apontar: o uso do silêncio, que revela a nudez e o isolamento
das subjetividades (ou da enxurrada verbal, que só desencadeia um silêncio
mais profundo); o não-dito, a suspensão (lembrando que o não-dito pode ser
expresso através do silêncio ou até mesmo das palavras, quando estas
obliteram um discurso que as perpassa); o uso de recursos épicos como forma
de distanciamento ou, paradoxalmente, de mergulho na subjetividade das
personagens (as músicas cantadas pelas personagens em quase todas as suas
peças); um rigor absoluto no uso das palavras (que são o tijolo fundamental da
construção de sua poética – a PALAVRA, e não a IMAGEM); a ausência quase
total de rubricas (o que implica em amplas tomadas de decisão por parte do
encenador e dos atores); a permanente ambigüidade a respeito do que é real e
do que não é, ou melhor, A PERCEPÇÃO DE QUE O REAL (ASSIM COMO O
TEMPO E O ESPAÇO) É SEMPRE UMA CONSTRUÇÃO E NÃO UMA
EXPERIÊNCIA AUTÔNOMA QUE PARTILHAMOS; e a musicalidade rítmica do
texto. Muitas vezes a MÚSICA das palavras chega ao ponto de quase substituir
a própria idéia de TRAMA (esteio do drama tradicional).

4- As ferramentas citadas são introduzidas na dramaturgia (algumas apenas


insinuadas) por autores como Harold Pinter e Samuel Beckett a partir de
meados do século XX. Mas Richard Maxwell não se coloca numa condição de
ruptura; ao contrário, se localiza como parte de uma tradição, a qual cabe a ele
desdobrar em insuspeitadas veredas. (Recordo-me de Jon Fosse, que se diz
ligado inexoravelmente a uma tradição de autores trágicos que remonta à
origem grega. Ou de Sarah Kane, que sempre falou de seu amor por Pinter e
Brecht e da influência deles sobre ela.) Se não dialogamos com o passado, se
não o visitamos, o que nos resta é a mudez (Umberto Eco). É nítido que um
autor como Maxwell só escreve o que escreve hoje porque Beckett escreveu o
que escreveu durante sua vida; mas percebo também que a obra de Maxwell
traz um uso destas ferramentas que é muito pessoal, muito autoral, e que é
novo, porque amplia esse uso, abrindo e habitando outro espaço/tempo
existencial. Como o norueguês Arne Lygre, que toma estratégias de B. Brecht e
faz um uso completamente novo delas – com intenções e resultados
absolutamente distintos dos de Brecht. Jon Fosse é uma das vozes mais
inovadoras do teatro contemporâneo, e é um autor atrelado à tradição, que usa
todas as ferramentas citadas acima, mas de um modo como nenhum outro autor
sonhou ou ousou usar. São outros tempos, as respostas dos autores são outras,
ainda que algumas conquistas formais do século XX perdurem no trabalho dos
novos dramaturgos – mas de modo ampliado ou deslocado ou radicalizado ou
resignificado, o que nos leva a lugares desconhecidos. Lugares onde nem
Beckett nem Brecht nem Pinter nos tinham levado.

5- Criar outros jogos de linguagem – distintos da poética figurativa (isto é,


naturalista/realista), que talvez já não tenha muito mais para nos ensinar ou
esclarecer sobre as relações humanas. (O caso é que o jogo figurativo parece
gasto, devido à sua vasta apropriação pelos mass media). Uma questão estética
é sempre uma questão existencial; neste sentido, a construção de outras
poéticas significa a proposição de outras possibilidades de experienciarmos a
condição humana.
6- A narrativa, aqui, NÃO É O SENTIDO das peças.

7- O fundamental é entendermos a História da Arte não como um percurso


evolutivo (o que sempre redunda em becos sem saída, em esterilidade), mas
como uma TRAJETÓRIA DE CONSTRUÇÃO DE POÉTICAS, que respondem
ao espaço-tempo de cada autor. Uma POÉTICA é um JOGO DE LINGUAGEM.
Construir uma poética é estabelecer as REGRAS do jogo – jogo este que,
necessariamente, atua no sentido de ampliar a experiência humana, para além
da experiência que a instância da cultura nos proporciona.

8- A questão figurativa (poética naturalista/realista) é perigosa porque pretende


reinar até sobre o próprio fato-teatro (isto é, sobre o teatro como lugar de
construção de jogos de linguagem), impondo a narrativa como sentido
estruturador da obra. Para trabalhar com a figura (personagem) num contexto
figurativo, é necessário criar uma estrutura rigorosa e limitadora o bastante para
promover uma espécie de isolamento (penso nas personagens do pintor Francis
Bacon, figurativas mas habitando um espaço que não se estrutura em
consonância com elas). É uma força que vem não das personagens, mas de
fora, uma força externa, estrutural. É assim que o fato-teatro se impõe, e o
figurativo pode ser visitado sem reinar.

9- A figura assim isolada (do contexto figurativo) torna-se um ÍCONE.

10- Existe uma LÓGICA DA SENSAÇÃO (penso no ensaio de G. Deleuze sobre


Francis Bacon) – e é com ela que trabalhamos.

11- Operar a partir de dois pontos terminais (a obra de arte é perpassada pela
tensão oriunda da luta permanente entre representar o mundo, ou estabelecer a
autonomia da obra):

A DÚVIDA DE CÉZANNE
(figuração x abstração)
e
A DESCONSTRUÇÃO MINIMAL
(reduzir ao mínimo, como estratégia, os elementos com os quais se trabalha).

12- Ao nada do absurdo,


do desespero,
e também ao nada da incomunicabilidade,
contrapor uma outra experiência
que o nosso entendimento existencial
desconhece.

13- Porque não estamos aqui na esfera da psicologia, ou na esfera dos


arquétipos, ou na esfera dos sentimentos nomeáveis (sínteses de toda e
qualquer espécie); estamos trabalhando com a parcela de vivência humana que
não tem nome – algo EXTRÍNSECO ao si mesmo cultural.

14- Trabalhar com a produção de diferentes espécies de intensidade, que se


sucedem em elipses de tempo/espaço muito mais próximas da lógica da poesia
que da lógica da prosa.

15- Aos atores: ao contrário de uma postura afirmativa, encontrar sua presença
na ausência, e na ausência sua presença (aparente “simplicidade” (na verdade:
REDUÇÃO conquistada) produto de uma abordagem de alta complexidade
técnica – vide o trânsito entre diferentes usos da linguagem presentes no NÓ
BORROMEANO de J. Lacan, base de nosso trabalho com a voz).

16- Minha relação com os atores é como a de Carlos Zílio com a cor siena – e a
deles com a cena é como a de Cy Twombly com a tela (construção de traços,
borrões e apagamentos – vide R. Barthes em seu ensaio sobre o pintor).

17- Pensar um sistema dramático estrito a partir de dados fundamentais constitui


a verificação e reconstituição dessa cena através daqueles mesmos dados que,
no limite, decretaram sua morte (não se trata de pós-dramático, mas da
configuração de uma DRAMÁTICA fundada em esteios muito distintos daqueles
que pautaram o drama clássico).

18- Reduzir ao nada ou quase nada é a atitude metodológica de estar na


posição de ter a cena toda como um dado externo integral, e objetivada; o
oposto do artista moderno que ainda estava dentro da obra e era parte
indissociável dela.
A cena se torna, de maneira irremediável, algo visto de fora, até, e
principalmente, pelo artista contemporâneo (ator e diretor). É ele que deve tentar
INCORPORÁ-LA nesse EXÍLIO MÚTUO.

19- A obra de arte nos livra de nós mesmos.

20- A cena se dá (em TRÍPTICO) sob a forma de DESLOCAMENTOS, e não


mais de OPOSIÇÕES. Trânsitos, em permanente instabilidade, entre diferentes
usos da linguagem.

21- Se você segue a natureza, não será de forma alguma capaz de subjugar o
trágico em sua arte.
Piet Mondrian

22- Não é tão azul quanto pensávamos. Para ser azul não deve haver
perguntas.
Wallace Stevens

23- A singularidade é o tema perpétuo da constituição de obras de arte, uma


singularidade que está além do alcance humano. Em suma, a cena é um atalho
para o inatingível.

24- A geometria devora a sua metafísica.


Barnett Newman

25- O que instiga o nosso interesse é a angústia de Cézanne – eis a lição de


Cézanne.
Pablo Picasso

26- Até que ponto se pode ir dentro de rigorosas limitações auto-impostas? Até
que ponto se pode reduzir e, ainda assim, fazer a cena viver (vide os retângulos
vivos de Barnett Newman)?
Três explicações para estas formas aparentemente perversas (em sua redução
quase sadomasoquista):

A- Ao se posicionar contra a “total liberdade” do teatro contemporâneo, opta-se


por disciplinar-se, buscando variações (mínimas, mas suficientes) no âmbito de
uma linguagem estritamente confinada;

B- Ao cultivar uma obra cuja absurdidade cheira a anti-arte, dá-se margem ao


nascimento de uma arte que é, sobretudo, anti-anti-arte;

C- Forçar o receptor a se deter e a se concentrar para ver o que quer que seja
na obra. Ao se opôr à atividade aberta-a-tudo do teatro contemporâneo, que
funciona como um estimulante para as fantasias do espectador, presenteia-se o
público com um artefato espaço-temporal do qual ele nada obterá a não ser que
esteja disposto a olhar exaustivamente para algo extrínseco a si.

27- O nível de esforço artístico necessário para produzir tal redução...


(Porque não se trata apenas de reduzir, mas de manter a VIDA da FORMA –
caso contrário tudo se torna simplório e anódino.)

28- Were all the stars to dissapear or die


I should learn to look at an empty sky
And feel its total dark sublime.
W. H. Auden

29- Perguntar-se sobre a FORMA DO TEMPO.

30- ARTE COMO ARTE (um teatro de operações – vide a obra de Ad Reinhardt).

31- Como os românticos (que primeiro declararam a independência dos artistas),


ver a arte como manifestação essencial da liberdade humana – mas, ao
contrário do romantismo, definir essa liberdade como libertação de si e do fluxo
do dia-a-dia (isto é, da cultura).
32- A definição de arte como a construção de um complexo sistema de relações
formais, criado no mais amplo contexto de construções anteriores.

33- Um trabalho de arte encontra seu lugar na sequência, ao mesmo tempo


antes e depois, de outros trabalhos de arte. Todo grande trabalho de arte nos
força a rever/reavaliar todos os trabalhos de arte anteriores.

34- A voz constrói PLANOS: avança (para fora do palco); recua (para dentro
dele); cria transparências através das quais podemos vislumbrar algum aspecto;
bloqueia completamente nosso acesso; estimula nosso imaginário, nos
permitindo ver em nosso espaço mental; nos trás de volta para o aqui-agora da
sala de espetáculos. A voz: música que cria diferentes planos, produzindo uma
espécie de efeito estereofônico (estereofonia que não é apenas sonora, mas que
transita por esferas sensoriais, imagéticas, conceituais). Criadora de véus
translúcidos e de sólidas barreiras; criadora de texturas e vibrações que enchem
o espaço de sensações inomináveis; criadora de realidades ostensivamente
ficcionais e de fatos-linguagem. Trânsito permanente entre evocação e
invocação. Nem nos confina inteiramente à frieza da superfície, e nem recua
todo tempo para trás dela, mas escava planos que saem uns de dentro dos
outros.

35- A sensação nunca aparece ANTES; ela está inteiramente contida na fala,
quando da sua emissão (isto oblitera a abordagem psicológica).

36- Corpo e voz são campos estéticos autônomos um em relação ao outro,


entidades não-associadas. É assim que devem ser encarados e trabalhados
pelo ator (evitando o pleonasmo: o vetor uni-direcionado, ilustrativo, didático,
sublinhado. Deste modo é possível que tudo se mantenha na esfera da
sugestão).

37- Conceito de imobilidade-móvel: apesar da aparente imobilidade física dos


atores, o movimento entre estes planos vocais – que se dá no tempo e não no
espaço – é um dos fundamentos desta Dramática. A originalidade do
procedimento é nossa contribuição para a ampliação do working space do
teatro.

38- Imóveis no espaço, estamos muito velozes no tempo (vide a Teoria da


Relatividade de A. Einstein).

39- As diferenças (mínimas mudanças) ressaltam justamente porque há pouca


coisa, tão pouca que cada agora, aqui, isto e aquilo torna-se muito.

40- Fazer do mínimo sinal um acontecimento.

41- O teatro é hoje um dos únicos lugares em que podemos tocar o que a razão
não alcança completamente. No vazio da cena, no silêncio visível da ausência,
algo decanta. Vamos ao teatro para tocar o que decanta no vazio.

42- No contexto de um teatro barulhento e gestual, nós colocamos os


receptores face a face com uma espécie imprevista de silêncio paralisado,
devastado.

43- O branco, a imobilidade, o silêncio, a inexpressividade, não são


provocações, mas uma herança poética que vem, entre outros, de Mallarmé.

44- É preciso que haja sempre uma ambivalência entre ground e motif (entre
mythos e opsis).

45- Temos que enxergar a parcela de experiência humana (isto é, de vida) que
ainda não foi sufocada pela tempestade de imagens e barulho da
contemporaneidade. Temos que elaborar uma experiência estética que não ecoe
ingenuamente nenhum dos discursos hegemônicos da cultura.
Nunca houve tanto som e imagem. Há que se construir o silêncio e o vazio: não
o silêncio e o vazio estéreis, anódinos. Construir a forma hodierna do silêncio e
do vazio, seu insuspeitável desenho no espaço e no tempo; desenhar linhas de
fuga.
Este teatro, embora seja também um contra-fluxo à cultura contemporânea, se
sintoniza com a abstração crescente da vida hodierna e, particularmente, da vida
urbana. O termo-chave de Anthony Giddens para esta abstração (ou alienação)
é desencaixe.

46- Nada causa mais repulsa e incômodo ao senso comum que o conceito de
alteridade. A alteridade instaura outra experiência do humano – o que é
intolerável (mais do que nunca em nossa era de comunidade global), e dá-se a
isto, na falta de outro rótulo (posto que não há, ao menos no surgimento da
alteridade), a designação genérica de estranho.
Ser estranho (diferente do senso comum, isto é, elaborado de modo distinto das
estratégias de construção empregadas pela cultura de massa) não é um valor
em si mesmo. É preciso que esta estranheza advenha da instauração de uma
Poética: um sistema complexo de relações formais que, articuladas, promovam
uma outra experiência do humano (sempre uma ampliação, haja vista ser uma
contra-partida dialética à cultura).

47- Não é a narrativa que queremos mostrar, mas a semente da narrativa: o


gráfico específico de forças mobilizadas pelo autor em sua escritura. Para
encenarmos uma obra, dialogamos não com a forma final das peças, mas com a
pulsão (o sintoma indecifrável) que levou o dramaturgo a escrevê-la. Não
procuramos responder à pergunta que o autor formula, mas procuramos, sim,
fazer a mesma pergunta.

48- A narrativa é um método de sentido. Como todo método, trás consigo uma
ideologia – ao se impôr, impõe também uma determinada imagem do humano.
Essa imagem é, desde há muito, hegemônica. Aceitá-la significa aceitar que a
vida humana consiste em uma determinada coisa – e é contra esta norma que
nosso teatro se coloca.

49- Há uma conjunção entre palavra e tempo – que transforma o espaço em


tempo.

O tempo é espaço.
Rainer Maria Rilke

50- A palavra como rizoma.


O movimento como rizoma.
O rizoma é uma semente que cresce em várias direções – e cresce no solo
preparado do espaço sensível/mental de quem vê (receptor) e de quem faz ver
(ator).

51- Para bordejar o abstrato, paradoxalmente, é preciso ser absolutamente


concreto. Tentar tocá-lo diretamente só leva à fantasia (e por fantasia entenda-
se a ilusão do auto-engano).

52- Promover um deslocamento radical: do eixo interno (situação ficcional) para


o eixo externo (emissão de signos para o receptor). O ponto central, então, é o
da transmissão de signos – rizomáticos, purulentos (no dizer de Artaud),
indecidíveis (no dizer de Luiz Fernando Ramos) quanto ao seu significado
último; mas poderosos o suficiente para nos instigar a procurarmos por seus
significados – ou para inventá-los. E se o ponto é a transmissão, o ator torna-se
invisível, desaparece – e esta qualidade de presença é mais autêntica (vide a
obra de Alberto Giacometti), porque é mais próxima da Dasein (no emprego de
M. Heidegger) e mais distante da máscara (isto é, da cultura, do sujeito cultural).
Este procedimento, aliado à escuridão da cena (que oblitera os rostos dos
atores), confere às figuras um estatuto ontológico.
Abre-se, então, um insuspeitado e infinito campo do humano, explorado pela
arte e nunca tocado no âmbito da cultura (que só trabalha com o sujeito definido
na modernidade como único modo de subjetivação possível).

53- O teatro deve ter a chance de tocar o infinito contido nas palavras (operação
de desencobrimento do texto, no dizer de M. Heidegger).
No teatro o que importa não é dizer (bem ou mal) o texto, mas trabalhar para
que o texto faça ver, para que as palavras nos transportem, nos desloquem,
instaurem uma qualidade de experiência da ordem do enigma (sempre
polissêmico).

54- Existir em uma interzona: um espaço/tempo em comunicação com zonas


conhecidas, mas que é fundamentalmente uma seara desconhecida.

55- A luz é, ao mesmo tempo, presente e impalpável.


(Neste sentido, sua especificidade coloca-se como paradigma para a atuação –
matéria e imaterialidade conjugadas.)
Em TRÍPTICO foi criada uma dramaturgia da luz, através de três operações
fundamentais:

A- Transubstanciação do lugar comum, pelo uso insuspeitado das lâmpadas


fluorecentes (em diálogo com a obra de Dan Flavin). Estas lâmpadas, de
fabricação industrial, compradas em qualquer loja, são o símbolo máximo de
nossa sociedade anódina e impessoal, mas aqui são usadas de modo a afetar a
percepção dos receptores (e dos atores), instaurando estranhas atmosferas que
remetem a (mas deformam sensivelmente) seu uso cotidiano;

B- Escuridão, penumbra quase permanente, que confere dimensão ontológica


às figuras no palco (instância abstrata), privando-nos de enxergar seus rostos, e
nos permitindo assim projetar uma série de conteúdos inconscientes sobre as
personagens, instaurando um perpétuo estado de incerteza;

C- Focos muito fechados, que iluminam apenas os rostos dos atores, e que se
alternam abruptamente com a escuridão penumbrosa das silhuetas, alterando a
percepção (nosso olhar tem dificuldade de focar por conta destes trânsitos
violentos), conferindo às figuras, momentaneamente, a condição de sujeitos
(instância figurativa).

56- O dark dark dark


They all go into the dark
T.S. Eliot

It is dark disaster
That brings the light
Blanchot

57- É no sacrifício destruidor da boa articulação que vemos surgir a forma


contemporânea da beleza. Uma estranha beleza, que não se constitui pelos
valores estéticos hegemônicos, mas que encontra-se na elegância com a qual
uma determinada realidade se presentifica, forçando a nossa visão e, assim,
tornando-se novamente digna de nossa atenção.

58- E se não há pathos, algo emerge de mais potente: a própria linguagem.

59- A palavra significa por diferença.


A imagem significa por semelhança.
Quando evitamos qualquer procedimento cultural (mesmo no campo da
gestualidade, por exemplo, ou da ordenação estrutural da obra), é por que
queremos permanecer no terreno da diferença em relação ao mundo –
recusando a apresentação de modos de cultura no palco e fazendo da
experiência estética uma experiência poética, no sentido da transubstanciação
dos sentidos e da revolução dos signos. Vem daí a dificuldade de diálogo que a
obra estabelece com percepções acostumadas à facilidade das imagens
ilustrativas.

60- Quando Barnett Newman traça sua linha (zip) no plano, está mais próximo
da palavra que da imagem: significa por diferença, não por semelhança. Aí sua
arte se aproxima mais da literatura – e, na literatura, da poesia (sua epifania) –
do que de uma produção de imagens.
A imagem pertence ao espaço. A poesia pertence ao tempo.

61- Trata-se de um teatro que dialoga com a poesia (em sua supremacia do
significante e em sua enunciação do significado como um torvelinho labiríntico,
assim como em sua instável construção elíptica do tempo, do espaço e do
sujeito – penso em F. Holderlin e em Robert Creeley).
O prazer ligado à poesia é resultado da destruição e dissolução que ela causa
ao sentido cultural das palavras.

62- É na linguagem, diz M. Heidegger, que se cumpre a relação humana com o


ser/estar, isto é, na linguagem se cumpre nossa Ek-sistenz. Para Heidegger, o
modo de ser mais alto é a Ek-sistenz, que sua perspectiva ontológica define não
como um mero fato de existir, mas como nossa essencial relação com o ser/
estar. Na linguagem, portanto, realiza-se/inventa-se o homem. Linguagem não é
apenas mero instrumento de comunicação, mas o estabelecimento específico de
nosso estar no mundo, desta ou daquela ou de infinitas outras maneiras.

63- É a distinção entre o peso pré-fabricado da história e a experiência direta


que evoca em mim a necessidade de fazer coisas que nunca antes foram feitas.
Richard Serra

64- Artistas com quem nos mantemos em permanente conversação:

Willem de Kooning – deslocamentos entre planos pictóricos, tensão entre


abstração e figuração;

Mark Rothko – sensações crepusculares (arte ontológica);

Barnett Newman – trabalhar no campo do inominável (operar como o Gêneses


bíblico);

Ad Reinhardt – arte como algo extrínseco ao si mesmo cultural;

Cy Twombly – intensa ambivalência entre todos o elementos da obra (a


originalidade consiste em um agudo discernimento do quão pouco um artista
pode fazer no decorrer da criação de uma obra de arte).
65- Ora, onde mora o perigo
É lá que também cresce
O que salva.
F. Holderlin

66- EU FALO: EU EXISTO


(A célebre fórmula de J. Lacan. É o modo como eu falo que define o modo como
eu existo. Cada arquitetura linguística define um modo de habitarmos o mundo.)

67- O espaço está vazio para que possa estar pleno de linguagem.

68- A grande ação realizada aqui é a fala: é ela que constrói e desconstrói o
espaço; que promove transportes instáveis no tempo; que evoca e invoca; é
através da fala, na fala, que a presença habita distintos modos de subjetivação.
E é em todas as problemáticas ligadas a este ato (que não se relaciona com
expressão, mas sim com invenção) que a obra se situa, se desdobra, se
expande – em direções sempre impossíveis.

69- Não se trata, nesta obra, de entendimento (compreensão unívoca da


narrativa, objetificação do sujeito e esclarecimento acerca de suas motivações),
mas sim de produção e experienciação de intensidades desestabilizadoras.
Produção de intensidades: produção de diferentes espécies de intensidade; em
termos de estratégia de construção cênica, a produção de intensidades é o
avesso do sistema acumulativo de Hegel: trata-se, aqui, da construção e
apagamento imprevisíveis de linhas de fuga; isso altera profundamente nossa
percepção do tempo.

70- O que veremos aqui são outras possibilidades, ligadas ao fim da ideia
moderna de sujeito e ao surgimento de uma outra lógica de funcionamento para
a humanidade em nossos dias.

- ADENDO (escrito em complemento a este texto, após a publicação original):

beleza significa o aporte no estar (não no ser): a beleza se instaura (estala)


quando habitamos a instabilidade do estar, que é sempre própria da poesia
o enigma do estar mora no fato de ocultar em uma só presença a identidade (o
um) e a diferença (o outro)
a beleza se revela no contraste e na tensão

a luz é o domínio do sujeito específico (o um)


a escuridão é o domínio do outro (o abstrato ontológico)

na penumbra, no crepúsculo, um e outro lutam por instantes, há trânsito


permanente (e eventuais hibridações)
as peças são breves porque breve é o luscofusco
a escuridão confere estatuto ontológico à figura (instância do outro)
a luz lhe confere especificidade (instância do um)

nosso sistema dramático promove trânsitos por entre estas instâncias


este trânsito se alastra pela forma como se habita a linguagem, traduzindo-se
cenicamente em modos distintos de emissão da fala

quando o significado fica em primeiro plano, o significante fica como que


transparente, é esquecido; aí surge o contexto ficcional e toda a idéia de
subjetividade (o domínio do um, que é sempre o mesmo, nunca o outro)
quando o significante fica em primeiro plano, a linguagem se impõe como coisa,
e o significado sofre uma transubstanciação, tornando-se polissêmico - eis o
habitar poético, o domínio do outro

a imobilidade se dá porque favorece o tempo, que estrutura o homem: o


passado como domínio do um, e o presente (o instante, sua instantaneidade)
como domínio do outro
o movimento se dá, assim, não no espaço mas no tempo

o silêncio, terceira instância, é a morte, sua presença, por decantação, que


existe como pano-de-fundo perpétuo de todas as ações
não é, o silêncio, território da subjetividade (dos movimentos interiores), mas sim
da cessação da linguagem, da ausência

esta ausência é percebida em potência, nesta dramática, em função da


presença (linguagem/fala), uma presença na ausência (cessação da fala/
linguagem), uma ausência em presença (biofísica)

a morte pode, enfim, ser percebida (experienciada) como pano-de-fundo


perpétuo (a vida, vivenciada a partir da perspectiva da eternidade)

NOVAS MITOLOGIAS*

(*texto escrito para o programa da peça PINOKIO, em março de 2011)

QUANTO TEMPO E ESPAÇO CABEM EM UMA PEQUENA PORÇÃO DE


TEMPO E ESPAÇO? QUANTOS MODOS DE SUBJETIVAÇÃO CABEM EM UM
ÚNICO EMISSOR? A tentativa de responder a estas perguntas configura a
estratégia dramatúrgica aqui instaurada. É deste modo que construímos uma
obra que promove MIRÍADES DE DESLOCAMENTOS (de tempo, de espaço, de
modos de subjetivação) a cada frase. Uma peça muito mais próxima da lógica
da poesia que da lógica da prosa. Os neologismos (e arquiteturas lingüísticas
inusuais) presentes no texto apontam para outras formas de habitarmos a
linguagem, para a criação de significantes que expandem e instigam nosso
imaginário na invenção de novos significados (inexistentes até então); são
potência, liberdade e arbítrio, possibilitando a redefinição de nossa estrutura de
pensamento, de sensibilidade, reconstruindo nosso modo de vermos a nós
mesmos e de nos relacionarmos e estarmos no mundo. E, em termos temáticos,
corroboram para a construção de uma NOVA MITOLOGIA, de uma OUTRA
HUMANIDADE, através do desenho de CRIATURAS-LINGUAGEM que se
constituem como alteridades radicais: NOVOS MOLDES ARQUETÍPICOS. Um
texto no qual a linguagem transita todo o tempo entre as instâncias da
EVOCAÇÃO e da INVOCAÇÃO. Trata-se, aqui, de um teatro que recusa o
CONHECE-TE A TI MESMO e que propõe um CONSTRÓI-TE A TI MESMO. A
cena não é um ESPELHO no qual nos reconheceremos, mas uma TECELAGEM
norteada por outras possibilidades de vir-a-ser, para além do homem cultural,
normatizado, estático, conformado. Tudo tem a ver com forças inconscientes,
invenção, desejo (a dramaturgia como máquina desejante) e HIBRIDAÇÕES,
em PERMANENTE INSTABILIDADE E MUTAÇÃO.
O grande desafio para a dramaturgia, hoje, é problematizar a idéia de trama,
de conflito, de personagem (esteios do drama tradicional, ligados
ideologicamente a uma visão hegemônica acerca da condição humana), e,
promovendo o desenvolvimento de uma obra com outras bases, conseguir fazer
com que ela se tensione, crie ruídos, deslocamentos, desdobramentos, em
suma: fique de pé, proporcionando uma experiência estética inaugural que
amplie nossas vivências.

PINOKIO dá continuidade à busca da companhia CLUB NOIR pela criação


de alteridades radicais em cena. O título faz menção à fábula de Carlo Collodi,
na qual um boneco transforma-se em ser humano. Aqui, seres humanos
metamorfoseiam-se em uma espécie de transumanidade. A ação se dá em um
mundo inteiramente inventado, habitado por criaturas que existem através de
outras lógicas lingüísticas, propondo a instauração de mitos imprevisíveis.

dêitico: elemento que tem por objetivo localizar o fato no tempo/espaço, mas
sem defini-lo.

Em PINOKIO, os dêiticos da experiência (eu, aqui, agora, lá) desembocam


sobre os pronomes ela (o dêitico sexuado), você (o dêitico do direcionamento),
e finalmente aportam não no pronome nós (o dêitico da comunidade), mas sim
no isto (o indicador do objeto, isto é, da alteridade).
Parte significativa das operações estéticas perpetradas nesta DRAMÁTICA DO
TRANSUMANO se dá por meio da manipulação de dêiticos.
pinokio
por roberto alvim – 2010

“Lá no fundo teu pai jaz


com seus ossos de coral
nos olhos pérolas traz
pois o seu corpo mortal
foi transformado no mar
em tesouro singular.”
A Tempestade, W. Shakespeare

figuras
A MULHER VELHA
O HOMEM VELHO
O MENINO
A MULHER DE AZUL
O GRILO FALANTE
A AGENTE DA LEI
em um salão vazio

escuridão
O GRILO FALANTE.

no princípio
um boneco

veioseivasmadeira

do jardim
a madeira
e o vento lá fora


o céu
raízes no céu
vazio
e as raízes
raízes no céu no ventre as raízes
do céu

no princípio um

do jardim um eco
e a vertigem
vertigem

perguntas?
A MULHER VELHA.
só o que falta
é undar-se à máquina
quer ele unar tudo

urdir-me à máquina
ele disse
quero untir-me

pode a máquina só
satisfanar no dreno
vastos bolsões vastos
drenando drenindo

à máquina
unzar-me
ele disse

O HOMEM VELHO.
lá sentado
em sua terra lugarnenhum
nenhum lugar seus planos
para ninguém
em ritorno não + há
nada atrás nadanada + paratrás?
nãonada
mas em frente + nafrente ou fora
FORA
+
porque de onde se vê nada para ver
mas fora
talvez

A MULHER VELHA.
mas sulcando sapados
talvez
crescendo em satélites saposdesatélites
de girinosbaleias
em outrosoutros códices
linhas de outras fugas
crescendo
ou paisagens outras
do corpo da mente da alma
paisagens novas do espíritocorpo
mas em outro
qual? ela disse
outro

O HOMEM VELHO.
o fim de algo
é também
um começo?

O MENINO.

você está lá
a casa
sua minha casa a casa que é dele minha sua vocêeu estou lá aqui
ele está você sempre esteve eu sempre aqui na casa lá
que é dele minha casa sua nasceu nela cresceu ela cresceu com ele em você
neleemmim esta casa
onde estamos
agora

canos dutos tubulações

escoam os restos de você detritos restos meus seus restos dele escoam pelos canos
intestinos vísceras tubulações da casa o esgoto água encanada saliva e suor e restos e
detritos seu ventre
OLHE EM VOLTA

sala
quartos
paredes pode ver?
ele pode
eu posso?
infiltrações nas paredes estrias na pele da casa em sua pele minha crescendo como rugas
o tempo? eu digo o tempo ele responde

e o porão

rãs no porão

sapos vivem lá

vivemmorrem procriam aqui nas poças do porão as ovas girinos se alimentando da


umidade que + cresce se expande musgotecido + se espalha é o tempo que passa você diz
que cresce ele fala dentro da casa eu respondo a chave?
vocêeuele
pergunta da casa a chave?
mas é só que
que não há
não há chave
só agora você só agora
percebe compreende você
que não há chave não veio com a casa não chave? não há só agora eu compreende? está
trancadoele eu compreendo
dentro
vocêvocê
compreendeu?
mesmo?

porque a casa enfim


porque a casa finalmente a casa porque
é o corpo
celacorpo
cubículo
carne lacrada prisão da pele os órgãos algemas
para sempre e para
sempre? você pergunta ainda
mas você pergunta
de dentro
como se corpomuro celacubículoroto infiltrações tubos vísceras cárcere testículos veias e
um ovário a pele correntes e não há
saída possível não há casacelacorpo + o tempo
saída?

o tempo
e a casa
e não há

ou não havia
ou não havia saída
do corpo do tempo fuga possível nãonão há saída
ou não havia
ou não havia
fuga do corpo saída possível nãonão
não havia
fuga
saída

até agora
A MULHER DE AZUL.

o parque é negro
daqui
um parque todo negro as árvores
é porque são escuras as árvores
olhando daqui

no rio escuro à beira o corpo do peixe no rio escuro tem na boca o gosto da boca no
hospital é só impressão?
os pés e pernas e doem que as pernas mas sem gritos estão inchadas?
gritando também as mãos e os olhos e a cabeça a minha não é engraçado? porque
está crescendo ou?

está crescendo é só impressão?


não é engraçado?
por causa da dor é só?
a cabeça minha uma impressão?

não venta mais

não

o tumor está dentro lá acordado em silêncio


o tumor está a salvo aqui dentro mesmo quando venta
nunca dorme o tumor que cresce sempre a salvo na cabeça crescendo em silêncio
o tumor trabalha enquanto uma mulher de azul passaatravessa o parque
o parque negro como o tumor que cresce
sem gritos
olhando daqui

isso tudo aconteceu ANTES


escuridão
O GRILO FALANTE.
farpa
pedaço soltosolto
uma lasca daquilo solto
lascafarpa
solta daquilo

e agora

O MENINO.
debaixo
embaixo daquela vê? nessa ponte
na ponte e debaixo dela
lusco fusco

reboco que cai ali assim sentadinho na terra os grilos


animaizinhos as formigas todas elas uma rã também
estes todos animaizinhos
capturados aqui embaixo
ele na terra sou eu sentadinho ali
agora bichos de estimação é para mim
meus bichos meus pra estimação é uma rã?
duas formigas quatro o grilo aleijado é que falta só uma
uma perna é uma só?
aleijados comem grama
dou pra eles a grama é pedacinhos
suficiente não vão morrer de fome é assim?
não comigo agora eu dou não é assim?
a comida
da ponte embaixo
cai a água do teto goteiras é pura em gotas caindo são goteira de beber
pingando aqui
embaixo
e nos pés
é o rio
barulho nos pés
correndo devagar acalma sempre desde que dá pra ouvir

o barulho
é o rio
correndosempre

mamãe?

é bem de comer peixe eu


é tudo bem de comer eles não sentem
eles não esses peixes nenhuma não é?
os peixes
nenhuma dor

papai?

não é assim?

lusco fusco

escuta

olha

olhaolha paimãegrilorã
é alguém?

alguma coisa um alguém?


uma coisa
é alguémcoisa
EI?

alguma coisa
está vindo
pra cá
A MULHER VELHA.
se com rurbôtos
do espelho + não
rostes de purcados
por onte vertens
em vãos de chão só
no alto nada de não +
RUR EM PEDAÇOS MAS UNANDO
sem temponão mas encarnado
em aço carne encarnado
um corpo

A MULHER DE AZUL.
só?

O HOMEM VELHO.
casulo ainda

A MULHER VELHA.
as rostes em ordas
conspurcados é metamorfose
falanges em corpoquimeras
corpo da rã o corpo do sapo
a baleiamorcego
girinos de larva

A MULHER DE AZUL.
é de um corpo só que fala?

A MULHER VELHA.
eu a larva
ou elevocê

O HOMEM VELHO.
ou menino?

A MULHER DE AZUL.
não

A MULHER VELHA.
o menino a larva?

O MENINO.
na ponte aqui

A MULHER VELHA.
é o menino?

O MENINO.
na ponte embaixo alguém está vindo coisaalguém

A MULHER VELHA.
O MENINO

O MENINO.
coisaalguém láaqui

O HOMEM VELHO.
larva ova

O MENINO.
pra cá?

A MULHER DE AZUL.
NÃO

( )

O GRILO FALANTE.
que nãonão é
maldição? não

mas graça + benção

mentealmaexcrescência
a alma?
verruga um cancro a mente do corpo
porque o tumor cerebral é é é
comocomo convite
o convitetumor do outro um começo

a cabeça?
excrescência
VERRUGA

A MULHER VELHA.
eu então
sua mãe eu
mamãeelaeu
ele seu pai papaiali
agora
aqui

O HOMEM VELHO.
o homem velho caminha pelas ruas dentro
pelas ruas caminhou mas agora nas de dentro caminha
ele vê a mulherdeazul uma mendiga? perguntava ainda vivedorme no parque
corroída a mulherdeazul ele vê se corrói por estar ali
não no parque mas dentro
presa
uma prisioneira
em seu corpo o próprio presa da doença ela grita corroída por estar dentroprisioneira
o homem velho caminha pelas ruas de dentro ao seu lado a mulher velha vê também
é a mendiga? ela pergunta
e ele repara depois ela sorri
a mulher velha vendo também ele repara
a mulher velha sorri

um sorriso

MENINO.
EI?

A MULHER VELHA.
sou eu

MENINO.
mamãe?

A MULHER VELHA.
e ela sorri

filho?

e elaeu sorrindo finalmente enfim sorri agora


meu filho

o que você vê?

MENINO.
o menino olha
olhaolha
e vê
é o amor?

no fim?

eu vejo mamãe eu
o amor

mas ouço gritos os gritos da queda antes


vejo a fumaça nas torres antes
os óculos dos velhos quebrados por botas os velhos mulheres crianças caídas cercadas
vejo a doença nas ruas os vidros
partidos
das vitrines EXPULSOS todos os homens expulsos

e vejo o amor

no fim

toda a sua glória em sua do amor toda


perfeita

A MULHER VELHA.
me dê sua mão
feche os seus olhos

A MULHER VELHA / O MENINO (acompanhando A MULHER VELHA num


sussurro).
MOSTRAI-ME SENHOR A VOSSA FACE

E O SENHOR RESPONDERÁ

EIS A ALIANÇA

A GRAÇA

A IMAGEM EIS A SEMELHANÇA

ENFIM RESTAURADA

EIS

AQUI
A FACE DE DEUS

escuridão
A MULHER DE AZUL.
de onde vem a dor?
ela grita
de onde vem?
grita ela sozinha no parque
porque não pode perceber
compreender ela não nenhum de nós ninguém até agora
que a dor não vem da doença não
que a doença é o caminho para além da dor
e ela grita sem percebercompreender
que o tumor é um bebê
que pare um corpo
sem cabeça

O HOMEM VELHO.
ele Adão
A MULHER VELHA.
ela Eva

O HOMEM VELHO.
este lugar
este tempo
o paraíso
reencontrado
redescoberto

A MULHER VELHA.
construído
inventado

entra A AGENTE DA LEI


caminha
pára
hesita
caminha
hesita
pára
caminha hesitante para o que vê

A AGENTE DA LEI.
Um corredor imundo. Comecei a andar devagar, muito devagar, comecei a me aproximar
devagar da porta pesada de madeira que estava aberta, entreaberta, eu podia ver agora. E
cada passo era dor porque minha pele estava gelada, porque um frio terrível fazia doer
cada osso do meu corpo, cada músculo. Difícil respirar, o coração quase explodindo. Era
medo. Era terror. Porque havia alguma coisa atrás da porta. Mas havia também o dever, a
Lei, e eu empurrei e empurrei a mim mesma e entrei. E o que havia estava lá.

O que estava lá tinha a ver com aço e carne, nervos e motores, expostos. Sangue e óleo,
circulando em tubos infinitos. Pedaços acoplados, em cicatrizes, ligados uns aos outros,
os pedaços, costurados, nascendo, brotando uns dos outros, glândulas e metal, músculos,
tendões, circuitos. Mas não uma cabeça, não, cabeça não, nenhum rosto, só partes. De um
corpo. Uma criança? E os tubos, os fios, e o sangue, espécie de sangue, negro, sangue
negro, óleo e sangue, circulando nos tubos, pelos canos, misturados em dutos.

E o que estava lá, aqui, diante de mim, à frente, tinha a ver com imortalidade também. E
sexo. Orgasmos? Não – sexo. Eternamente.
É um menino?

O GRILO FALANTE.
efeito fantasma
perder um membro braço perna língua
sentir o membro mesmo depois de perdido
e se você sente o pedaço
então o pedaço perdido decepado separado
então o pedaço a parte
também SENTE
VOCÊ

A AGENTE DA LEI.
Uma máquina?

A MULHER DE AZUL.
porque não era o corpo a prisão
o corpo? não
a prisão era a alma ela compreende finalmente antes de morrer
e o tumor um bebê ela compreende um instante antes de morrer
parindo o corpo novo
sem cabeça

A MULHER VELHA.
o corpo
em corpo hibridado três dias em fim
glorioso o corpoanfíbio surgindo do mar eterno
sobe à terra desce dos céus espíritoemcorpo
encarnado glorioso

A AGENTE DA LEI.
O que era aquilo?, ela se perguntou ainda, antes de deixar de ser, para sempre, quem ela
foi um dia.
Aquilo, isto, o que é?
O QUE?

O GRILO FALANTE.
no princípio do princípio
é o que eu sou agora
O HOMEM VELHO.
tantas mortes para uma única vida plena em eternidade
tantos cadáveres para um único último corpo

A MULHER VELHA.
ressuscitado
glorioso

cai de joelhos A AGENTE DA LEI

A AGENTE DA LEI.
meu amor
escuridão
fim
PINOKIO - Crítica de Christiane Riera (publicada no jornal Folha de São Paulo,
maio de 2011)

O diretor e dramaturgo Roberto Alvim tem sido celebrado como um dos autores
mais inovadores e arrojados à frente do Club Noir, criado em parceria com a
atriz Juliana Galdino.
Sua mais recente montagem, "Pinokio", inspirada em "Pinóquio", de Carlo
Collodi (1826-1890), vem reiterar esses títulos.
Do original, há pouco sobre o boneco que fabrica histórias, cujo drama está em
padecer na transição do estado puramente material para a dimensão espiritual.
O ganho de vida traz o imponderável, algo moralmente confuso e angustiante.
Diferentemente do clássico, o espetáculo apresenta seres humanos com a
mesma angústia de se encontrar em processo de mutação. Em via contrária,
aqui o espírito inquieto sofre com suas fusões em matéria.
Alvim elimina naturalismo e narrativas para criar rascunhos do que podemos vir
a ser: "Uma coisa é alguém coisa".
A batalha é travada com um texto cheio de neologismos e palavras deslocadas
que servem para inquietar, não para explicar. Trama e conflito cedem lugar a
ruídos e sussurros, que carregam o tema do hibridismo entre corpos e
máquinas.
"Restos dele escoam pelos canos intestinos vísceras tubulações da casa."
No palco, atores imóveis estão sujeitos à iluminação que os transforma. Luz
branca resulta em troncos sombreados. Focos isolados revelam rostos
pasmados. Por último, um vermelho insistente parece mergulhá-los em
impalpável perigo.
Personagens são vozes aprisionadas e manifestas em timbres distintos. Do
ponderoso tom de Juliana Galdino ao melancólico de Rodrigo Pavon, cria-se
uma escala de ressonância acústica variada, segundo as diversas
profundidades em que se posicionam no palco.
Com isso, a sensação é de instabilidade no espaço.
"Pinokio" é poesia cênica radical. Propõe a combinação de som e imagem como
uma experiência sinestésica, mesmo que sacrifique facilidade na recepção do
texto.
Se o hermetismo é veículo para reproduzir a aflição de um nebuloso mundo em
transição, também afasta o espectador de tal fruição, ao oferecer pouquíssimos
fios em que se agarrar na travessia por esse labirinto.
No final, olhares perplexos do público. Alguns inconformados com a obscuridade
da proposta. Aqueles que aceitaram o tormento em lidar com um universo
desconhecido refizeram a trajetória de um Pinóquio: "Um eco e a vertigem.
Perguntas?".

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