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PINOKIO
roberto alvim
Roberto Alvim (1973) é dramaturgo, diretor e professor de Artes Cênicas. Escreveu e dirigiu
dezenas de peças, encenadas no Brasil e em países como França, Alemanha, Espanha,
Argentina, Suíça, México e Bélgica. Lecionou Dramaturgia e História do Teatro em instituições
como a Universidade de Córdoba, a ELT - Escola Livre de Teatro (SP), a CAL - Casa das Artes
de Laranjeiras (RJ), a SP Escola de Teatro, além de ministrar oficinas em diversos Estados do
Brasil, a convite do Ministério da Cultura - FUNARTE. Desde 2009 é professor e coordenador do
Núcleo de Dramaturgia do SESI em Curitiba. Foi o primeiro autor brasileiro publicado na mais
importante coleção de dramaturgia contemporânea européia, a Les Solitaires Intempestifs, em
2005. Em 2010, foi o Curador do FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO de São José do Rio
Preto. Foi Curador da Mostra DRAMATURGIAS, realizada no CENTRO CULTURAL BANCO DO
BRASIL (RJ) em 2009. Traduziu as obras de autores contemporâneos como Harold Pinter,
Gregory Motton, Arne Lygre e Richard Maxwell. Foi Diretor Artístico do Teatro Carlos Gomes –
Sala Paraíso (RJ) de 2001 a 2004, e do Teatro Ziembinski – Centro de Referência da
Dramaturgia Contemporânea (RJ) em 2005, onde criou o movimento Nova Dramaturgia Carioca.
Ministrou palestras e workshops em diversas Universidades (como UNI-RIO, USP, UFSC, entre
outras) e Festivais de Literatura e Teatro, no Brasil e no exterior. Colaborou com artigos sobre
dramaturgia contemporânea em revistas como a OUTRESCÈNE, do Theatre National de La
Colline (sediado em Paris), e a SALA PRETA, da USP. Em 2011, foi convidado a lecionar
dramaturgia em Bruxelas, para um grupo de autores europeus de diversas nacionalidades, pela
Cifas – La Bellone (Maison du Spectacle). Em 2012, foi convidado pelo projeto IBERESCENA e
pelo Centro Cultural da Espanha a lecionar dramaturgia para um grupo de autores latino-
americanos em Montevideo (Uruguay), e para um grupo de autores mexicanos em Guadalajara.
Em 2013, foi convidado pelo MINC a lecionar dramaturgia para um grupo de autores alemães,
durante a Feira do Livro de Frankfurt. Desde 2006 reside em São Paulo, onde dirige a
companhia CLUB NOIR, dedicada a encenar obras de dramaturgos contemporâneos. Além de
diversas indicações para os prêmios mais importantes do teatro brasileiro, foi o vencedor do
Prêmio BRAVO! 2009 de Melhor Espetáculo Teatral de São Paulo, por sua encenação da peça O
QUARTO, de Harold Pinter; e ganhou o Prêmio APCA 2012 (Associação Paulista de Críticos de
Arte) e o Prêmio Governador do Estado de São Paulo com sua direção e adaptação de todas as
tragédias de Ésquilo no projeto PEEP CLASSIC ÉSQUILO.
AUTO-RETRATO
Comecei no teatro como ator (e estive em uma série de espetáculos), mas logo fui pra
direção. Dirijo peças desde os 18 anos (completo 20 anos como diretor profissional em
2012); em meus primeiros anos de atividade, encenei A. Strindberg, Boris Vian, J.
Prevert, F. Kafka, Nelson Rodrigues, o Marquês de Sade, H. Pinter, G. Buchner, W.
Gombrowicz, textos inspirados em J. Lacan e na obra de Jean-Luc Godard, R. W.
Fassbinder, J. Baudrillard, entre outros grandes dramaturgos (e romancistas e filósofos,
que eu adaptava eventualmente). Até que, em dado momento, passei a ter dificuldades em
encontrar textos que disessem o que eu queria dizer, e da maneira como eu queria dizer.
Aí comecei a escrever. Isso foi em 1999 (ano de estréia de minha primeira obra como
autor, N.A.D.A. – Nenhuma Afirmação Depois de Agora), e daí em diante passei a dirigir
apenas minhas próprias peças, por um longo período, que vai de 1999 a 2005. Nestes sete
anos, escrevi muito, 16 peças, e todas estrearam no Rio de Janeiro. Algumas delas
também foram montadas em outros países, publicadas em outras línguas.
Comecei com uma dramaturgia desconstruída, fragmentada, fortemente onírica, baseada
em livres associações, repleta de hipóteses arriscadas, de proposições que fugissem ao
senso comum, com grande foco no desvelamento da construção de nossas identidades
sexuais, com um diálogo permanente com a História da Arte, dialogando também com o
momento específico que vivíamos (do ponto de vista político), seguindo uma série de
procedimentos que me interessavam no período, e que me pareciam mais reveladores de
uma lógica de construção da nossa subjetividade contemporânea (que, eu percebia, era
completamente distinta da dinâmica de signos de épocas anteriores). Queria revelar as
questões mais urgentes de nossa época, criar novos arquétipos, apresentar uma visão do
homem contemporâneo em cena, construir obras que dialogassem com o nosso mundo
atual, que não era mais o mundo do século XIX ou do século XX, através de formas
dramatúrgicas novas (que traduzissem novos e insuspeitados discursos). Em dado
momento, no entanto, me senti numa espécie de beco sem saída: comecei a achar que
estava me repetindo, repetindo formas, aprisionado em determinadas estratégias
dramatúrgicas recorrentes em meu trabalho de então, sem saber como avançar a partir
dali. Sentia que meu discurso não encontrava presentificação, concretização, tradução
cênica plena nas formas que eu utilizava. Aí fiz um grande mergulho em procedimentos
realistas: construí 5 peças em diálogo profundo com Ibsen. Tratava-se de uma tentativa de
escrever segundo a lógica deste estilo: tratava-se de perceber se o DRAMA ainda era
possível, se a forma dramática ainda podia dar conta de modo poderoso dos nossos
dilemas contemporâneos. Então escrevi obras norteadas pelo diálogo, com personagens
com nome e sobrenome (isto é, com gêneses completas), com uma trama muito definida,
e nas quais toda a ação se dava através das relações intersubjetivas entre as personagens,
mimetizando comportamentos cotidianos. Este período foi muito influenciado, também,
pela dramaturgia norte-americana realista (em especial, por Arthur Miller e Tennessee
Williams). Estas peças, todas elas psicológicas, sombrias, dramáticas (quase trágicas),
muitas delas de cunho eminentemente político, sociológico, tinham uma forma muito
convencional, atrelada ao estilo realista. Foi quase como uma percepção de que, para
realizar um trabalho realmente abstrato (e novo), eu tinha que passar por uma fase
figurativa, antes. Tinha que aprender a desenhar antes de pintar abstrações, tinha que
aprender a fazer o feijão com arroz antes de partir para a haute cuisine. Foi uma
necessidade imperiosa na época, e eu mergulhei nela completamente.
Aí me mudei pra São Paulo, criei o CLUB NOIR (com a atriz e diretora Juliana Galdino),
e comecei a tentar avançar a partir desse ponto, tentando finalmente descobrir minha
própria voz como autor, descolado de formas e discursos hegemônicos, reconhecíveis,
tentando criar novas estratégias, que traduzissem cenicamente outras possibilidades,
alteridades radicais em cena (para além do que eu tinha conseguido fazer na primeira fase
de meu trabalho). Considero este ano (2006) como o fim da minha fase de formação e o
começo de minha vida adulta como pensador de teatro, diretor e dramaturgo. Voltei a
dirigir obras de outros autores, sempre contemporâneos, nas quais eu percebia a força
revolucionária de escrituras que reconstruíam o mundo no palco segundo outras lógicas,
nos proporcionando ferramentas para redefinirmos (de modo autônomo) nossas vidas,
nossas idéias estabelecidas. E tentei fazer o mesmo no meu trabalho como dramaturgo:
descobrir outros modos de construir o tempo, o espaço, a própria condição humana,
através de manipulações inusuais da linguagem (que traduzissem e, sobretudo,
expandissem minha visão de mundo, que eu procurava desesperadamente descolar do
senso comum). Percebi que forma é conteúdo, e que o teatro é o lugar de construção de
linguagens que criem outras possibilidades para além da linguagem majoritária,
normatizada, hegemônica. Construir linhas de fuga, outras formas de habitarmos a vida,
fissuras, interstícios, brechas nos discursos da cultura, através de manipulações e
invenções da linguagem, através da construção de outras arquiteturas lingüísticas (e
portanto de outras arquiteturas de pensamento, de sensibilidade), através de habitações da
linguagem distintas da forma como a habitamos cotidianamente, culturalmente. O teatro
como campo de experienciação de uma outra possibilidade de vida. Mais que qualquer
discurso panfletário, analítico ou acusatório, compreendi que esta era a verdadeira
maneira de configurar um teatro profundamente político. O grande ato político, o mais
potente, não é retratar o mundo, mas reconstruí-lo completamente, através da
materialização de uma outra humanidade possível, que nos leve a questionar, na base, o
modo como pensamos, sentimos, vivemos.
O estatuto ontológico, para além da persona cotidiana, presente nas minhas encenações,
também é buscado na minha dramaturgia. O deslocamento para uma instância paralela
(não-cultural), para um universo paralelo que propicie a criação de uma outra experiência
do humano, que procuro como encenador, também é procurado na minha escritura.
Todos os grandes dramaturgos (clássicos e contemporâneos) são exemplos, não modelos.
Percebo a pulsão de ruptura com uma lógica cultural banalmente limitadora e redutora da
condição humana em seus trabalhos, e procuro esta mesma pulsão na construção de
minha obra. Analiso suas estratégias, o modo admirável como tensionam suas obras, mas
não as reproduzo; utilizo-os como exemplos de como a dramaturgia pode ser
revolucionária, pode nos levar a uma renovação completa de nossa noção de sentido, e
tento criar, à minha maneira, com estratégias tão poderosas quanto as deles, a minha
própria instância de deslocamento. São exemplos, volto a dizer, não modelos; mas são
nomes como H. Pinter, G. Motton, S. Kane, Heiner Muller, M. Vinaver, R. Maxwell, V.
Novarina, E. Bond, J. Fosse, J. Orton, Enda Walsh, S. Beckett, Arne Lygre, D. Harrower,
que provam que é possível, sim, reconstruir o mundo inteiro sobre o palco. Entender e
vivenciar a nossa humanidade de outros modos, transfigurando os significados,
configurando outros modos de subjetivação. Para isso, o trabalho de poetas como F.
Hölderlin e Robert Creeley, de romancistas como W. Faulkner, Herta Müller e Antônio
Lobo Antunes, de filósofos como L. Wittgenstein, M. Heidegger, J. Lacan, G. Deleuze e
Jorge Forbes, de pintores como J. Pollock, W. de Kooning, M. Rothko, Barnett Newman,
F. Bacon, Cy Twombly, e de teóricos da arte como David Sylvester, Clement Greenberg,
A. Danto, T. J. Clark, Paulo Sérgio Duarte, Mário Pedrosa, Ronaldo Brito, Paulo
Herkenhoff, Luiz Fernando Ramos (a quem eu devo, é fundamental registrar, alguns dos
conceitos que articulam os pensamentos contidos neste livro (a partir de inúmeras e
febris conversas que tivemos): a ideia de mimeses incognoscíveis; a inversão de mythos e
opsis nas operações do teatro contemporâneo; e a formulação de signos indecidíveis),
Sílvia Fernandes, Angela Leite Lopes e Harold Rosemberg também são estímulos
fundamentais.
As minhas atividades, como diretor, dramaturgo e teórico (e professor de dramaturgia,
além de tradutor de obras de autores contemporâneos), se alimentam todo o tempo,
impulsionando-se mutuamente na direção de caminhos desconhecidos. São linhas de
força que se atritam, me fazendo avançar. Sempre me vi como um diretor mais relevante
que como dramaturgo. Sempre achei que meu trabalho como encenador e teórico era
mais avançado que meu trabalho como autor; agora, com o Pinokio, acho que meu
trabalho como dramaturgo se localiza num lugar mais avançado que meu trabalho como
encenador (e acho que finalmente realiza – e amplia – minhas proposições como teórico),
o que me força, como encenador, a avançar mais, para dar conta dessa dramaturgia.
(Utilizo o termo avançar no sentido da constituição de uma obra que amplie o working
space do teatro e, portanto, que amplie a experiência humana de nosso tempo.)
Dedico este livro a todos aqueles (artistas, teóricos da arte e amantes do teatro) com quem
troquei pensamentos em diálogos crucias para o desenvolvimento destas ideias; aos
atores do Club Noir, que trabalham, efetivamente, na configuração biofísica destes
conceitos, expandindo-os em ato; aos dramaturgos de Curitiba e de São Paulo, que
trabalharam e trabalham comigo, cujas obras me levaram a criar os esteios centrais destes
escritos; e a Juliana Galdino, por me provar diariamente que o impossível pode se
presentificar.
DRAMÁTICAS DO TRANSUMANO
[apontamentos (...)
o teatro não é entretenimento – já existe entretenimento o suficiente
o teatro tampouco é reflexão – existem, hoje, inúmeras instâncias destinadas a
isto
o teatro é, sim, o lugar de experienciarmos o tempo, o espaço e a condição
humana de outros modos, para além da vivência que a cultura nos proporciona
isto, só o teatro pode fazer – este lugar, só o teatro pode instaurar
(O TEATRO COMO ALTERIDADE RADICAL)
- quem é você?
- meu nome é legião
porque eu sou uma multidão
vide a obra de willem de kooning: planos pictóricos que se escavam uns de dentro dos
outros (transparências, bloqueios, insinuações de figuras, obnubilações e desfigurações;
eventos de naturezas distintas (de texturas, cores e constituídos a partir de
procedimentos distintos), EVOCAÇÕES e INVOCAÇÕES, em deslocamentos em diferentes
velocidades)
{como o foco vai para a opsis, o mythos não se impõe como sentido (ou
mecanismo estruturador) da obra (a narrativa existe como o cadáver do pai
que jaz no fundo do oceano, obnubilado pelo mar revolto instaurado pelas
operações formais perpetradas pelo autor)}
problematizar a narrativa é derivação inevitável da problematização do
sujeito, posto que advém da problematização do sentido (a narrativa, como
o sujeito, é um mecanismo de sentido)
5- quando Artaud amaldiçoa a palavra, ele está se referindo a uma palavra clara,
comunicacional, e ansiando por uma fala da transversalidade, que atravesse os
significados, que nos alcance – e nos atravesse – de modo transversal, oblíquo;
15- não é que uma peça comporte também a presença do público, ela é (única e
exclusivamente) esta relação (quem se desloca é o receptor);
21- o inconsciente não é um teatro: é uma usina. por extensão, podemos aferir
que a palavra não é a expressão de algo, mas sim uma usina de imagens,
sensações, significados indecidíveis;
22- o inconsciente tem, portanto, mais relação com produção (Artaud, Deleuze,
Lacan) do que com descoberta (Freud, Jung); tem mais relação com o futuro
(que não existe, e que por isso pode ser inventado) do que com o passado (que
já existe, e que portanto só pode ser descoberto ou interpretado);
24- Artaud e Valère Novarina estão conectados pela influência profunda que
seus trabalhos sofreram das leituras esotéricas, e pela tentativa de recuperação
do uso mágico das palavras. o uso mágico é aquele que não comunica, mas que
desloca, transporta, expande em trânsitos permanentes, em instabilidade de
sensações e de significados. mas desloca para onde? a experiência é autônoma
para cada receptor, e é apenas desencadeada (e não conduzida) pelo artista;
25- o ponto essencial não é a palavra: como na magia, tudo só acontece se a
maneira de falar ativar as palavras. é a fala, não as palavras; é preciso que os
dramaturgos compreendam e lidem com isto, escrevendo uma dramaturgia da
fala;
40- o que precisa ser realmente eficaz não é a narrativa, mas o gráfico de forças
que o autor mobiliza em sua escritura;
41- um teatro de invenção, não de descoberta: não é algo que existe, mas algo
que se inventa;
45- Artaud: que minhas palavras soem como francês ou papuano pouco me
importa. mas se eu cravo uma palavra violenta como um prego quero que ela
supure na frase como uma equimose com cem buracos. supurar: infeccionar a
ordem do corpo, formar pus, expelir pus – conexão direta com a idéia de rizoma
em Deleuze;
46- o texto de teatro deve soar como uma língua desconhecida, estrangeira,
inventada, não-familiar (isto é: poética – penso em Heidegger, em seus ensaios
sobre os poemas de Holderlin), cujos significados rizomáticos (ou purulentos...)
nos atravessam de modo oblíquo – os buracos que estes atravessamentos
abrem em nossa frágil ilusão de ordem supuram; linguagem que promova um
movimento de regressão violenta a um estágio infantil (estado de espanto diante
das coisas), que nos indivíduos possuídos pela sociedade comprime sua força;
49- o que é escrever? é inventar um corpo sem órgãos, ou seja, criar um objeto
polissêmico, não-estrutural, cuja construção seja guiada por acoplamentos do
desejo (seio-boca; pênis-vagina; língua-cu; pé-dentes; mão-barriga; entre
infinitos outros acoplamentos não-normatizados, esquizos) que se instaure como
o inverso do cadastro anatômico do corpo orgânico, é inventar uma coreografia
pictórica, uma dança pulsiva de signos indecidíveis em uma página; Artaud: este
desenho é o esforço que tento neste momento para refazer corpo com ossos
das músicas da alma (note-se o plural: músicas, o que denota a instabilidade e o
trânsito (deslocamentos) permanente entre diferentes instâncias de produção e
recepção de fluxos);
51- cultura é tudo o que nos fazem a nós; arte é o que nós realmente fazemos –
é um testemunho que macula o estado de coisas a nós brutalmente imposto
pela ordem cultural do mundo.
o sujeito que age não percebe que é o modo como ele se estrutura linguisticamente que o faz agir
desta ou daquela maneira. o modo como falamos é o modo como habitamos o mundo (gerando esta
ou aquela qualidade de ação)
se isto não for atacado pelos dramaturgos, os discursos se tornam tão anódinos
quanto qualquer comercial de TV, independente de seus conteúdos
posto que não adianta dizer algo, mas sim habitar o mundo de outros
modos
é a própria linguagem que deve parar de atuar na esfera do dizer e proporcionar
outras habitações, pela criação de outros modos de subjetivação, através de
outras arquiteturas linguísticas
agir com as palavras como age o GÊNESES bíblico
a teoria só faz sentido para aqueles que já acordaram e sentiram o cheirinho do café. (hermann nitsch)
o importante aqui não é nem a compreensão exata destes conceitos, mas sim as
analogias que podemos traçar (algumas delas até baseadas em ruídos e
compreensões equivocadas), e que podem catapultar processos criativos que
proporcionem outras experienciações do tempo e do espaço. o importante aqui é
que estes conceitos operem criativamente; afinal, não estamos construindo, em
nossas peças, teses ou modelos físicos (mais ou menos fiéis) de funcionamento
do real, mas sim inventando outros mundos, habitados por outros modos de vida
o idiota se mantém inseguro a respeito dos vínculos produzidos pelo desejo. não acha
este tipo de vinculação possível ou justa. sente-se agredido na base de sua existência,
que é a busca por respostas definitivas; respostas provisórias, instáveis, mutantes,
polissêmicas, produzem nele extrema ansiedade
não estou professando um credo, mas sim destruindo credos para que
singularidades possam ser inventadas
quando se fala por aí de alteridade, em geral refere-se a diferentes modos de cultura. isto,
francamente, não interessa. refiro-me a outra coisa: a outras formas de habitarmos a vida,
para além da cultura. e, sim, eu estou falando de algo impossível, de algo que não existe -
e que por isso mesmo precisa ser inventado
dramáticas que não se fundamentem mais na idéia acerca do humano com a
qual lidamos desde o renascimento. dramáticas que se proponham não a
espelhar o mundo, mas a inventá-lo: outros mundos, habitados por outras
formas de vida
together AND in contrast... all the thing (the theatre): is all about magic. all about magic...
(magie noir, love, poetry, and the face of god)
é tudo sobre magia. e sobre amor, e sobre poesia (não na tradição do eu lírico
memorialista, mas na transfiguração de toda estabilidade). aí/aqui o invisível se torna
perceptível - obliquamente. transfigurar toda a nossa percepção estabelecida acerca do
que seja o real; é preciso apenas uma mudança no ponto de apoio em que trabalhamos
o susto, o espanto diante da experiência transumana é o mesmo: aqui (no brasil) e lá fora.
o que também dá a certeza de que trata-se de uma outra coisa, que amplia o campo de
trabalho do teatro (e portanto da experiência humana) em veredas desconhecidas até o
momento
na apreciação destas obras há desde raiva indignada até maravilhamento diante do que
chamam de abertura de novas possibilidades para o teatro (e há, de modo geral,
estranheza diante dos sistemas formais não-reconhecíveis). bom sinal, todas estas reações
– não porque se busque a estranheza, mas porque ela é inevitável quando se trabalha com
sistemas formais fundantes, que traduzem e expandem percepções singulares, não-
culturais
o fato é que a sala em que se está, o tempo, o espaço e a percepção que temos de nós
mesmos se alteram completamente ao final das apresentações (e durante, de várias
maneiras, em deslocamentos e instabilidade permanentes). isto é o poder transfigurador
da poesia presentificada em ato radical; isto é o poder destas complexas (e simples, muito
simples, embora nunca fáceis) dramáticas
magie noir é apenas um apelido para a invenção de procedimentos empíricos que bordejem
o abstrato, o inominável, novos moldes arquetípicos, outras estruturas mitológicas - o
impossível feito carne, e a carne feita luz e trevas (desvio para o vermelho, desvio para o
azul)
para mudar o mundo, completamente, só é preciso falantes e palavras - não palavras que
expressem (e portanto compactuem com) sensações e vivências culturais, mas palavras
que, atuando como o gêneses bíblico, criem outros mundos, outras experiências de
habitação da linguagem, distintas da vivência conhecida. aí mudamos o mundo - porque
inventamos a nós mesmos
(só precisamos de falantes, criando tempos, espaços e outras formas de vida, em trânsito
e instabilidade, em habitações linguísticas OUTRAS)
(no fundo, isto é só um outro modo de propor a dúvida de CÉZANNE, que motivou p.
picasso e a. giacometti e w. de kooning (entre muitos, muitos outros artistas) ao longo de
suas trajetórias criadoras)
o teatro não é uma arte conceitual, mas sim um fazimento, algo que só se dá e só se
instaura no ato de fazer (que é sempre muito maior do que qualquer conceito, posto que
não cabe em conceitos...)
os conceitos só podem agir como disparadores de processos criativos de fazimento, que
sempre resultam imprevisíveis e maiores que os conceitos que os originaram
demoiselles d`avignon, de p. picasso: mais de 10 anos sendo motivo de piada, até por parte dos pintores que
eram seus amigos mais próximos. hoje em dia, é vista como uma das obras mais importantes do século XX,
tendo influenciado toda a produção artística da segunda metade do século. um exemplo incrível de arte como
sistema complexo de relações formais, construído no mais amplo diálogo com sistemas anteriores, e que
proporciona uma experiência estética outra, distinta da experiência cultural (conhecida). (nada causa mais
repulsa à mente medíocre que a alteridade; os cães ladram, sempre ladraram, continuarão ladrando...
fé é a percepção (intuitiva) de que sempre existirão coisas que eu não conheço. o espanto
pode estar (e está) na próxima esquina, ou, dito de outro modo, na próxima invenção
- e nós (a humanidade) estamos apenas começando (e não terminando, como querem
alguns)
o ato é um verdadeiro acontecimento. nada mais será como antes depois dele. (j. lacan)
- e o maior, o grande ato, é a fala, posto que cria. a fala que cria
{a coisa, para Lacan, que é diferente da coisa freudiana (das ding), é o próprio estranho)
toda?
desembocar no ISTO
O-objeto é o devir?
é.
mas virá? poderá vir?
eis a questão impossível que exige - HOJE - enfim sua resposta (que será de novo uma
pergunta, mas uma pergunta que até então não havia sido feita)
O-objeto é impossível - até que seja invocado. o objeto-a é impossível também, mas
assim permanece, na medida em que a única operação que pode bordejá-lo, apontar para
ele sem tocá-lo, é a evocação
o objeto-a é a morte, e a morte é impossível. O-objeto é tornar real algo inventado (algo
que não existia, absolutamente), e invocá-lo é ampliar o real (!). operação utópica? talvez
sim, talvez não. eu digo que não, sendo, obviamente, sim
alguns procedimentos:
sobre velocidade:
a- variação na velocidade de deslocamento entre 2 eventos;
b- rítmica interna de cada evento;
c- dimensão do evento (dimensão no sentido de tamanho)
(às vezes estas variações se dão em zonas muito claras, e às vezes em interzonas híbridas,
nebulosas)
riverrun
(lembrando que a arte abstrata russa, revolucionária e política sob qualquer prisma, foi
inteiramente assassinada e banida quando stalin chegou ao poder. falo dos imensos
malevitch e kandinski, por exemplo)
foi mais ou menos o que aconteceu com s. beckett quando sua obra despontou, com a
diferença de que martin esslin conseguiu convencer as pessoas de que beckett era um
escritor humanista (?)
se você não trabalha mais com o mythos, a única maneira de sustentar uma peça em
pé são os diferentes e imprevisíveis e infinitos tipos de deslocamentos; porque o
mythos existe, fundamentalmente, para promover mudança (no caso, na esfera da
narrativa: das personagens, da situação ficcional), e os deslocamentos promovem
mudanças todo o tempo – mas na esfera da opsis. a mudança (elemento central da
arte) se mantém – potencializada ao infinito
1- Quem se desloca?
2- O receptor, a sua percepção
(a obra de teatro acontece não no palco, mas na platéia, no espaço mental/sensível de
cada receptor, e acontece de modos diferentes para cada pessoa) (eis o melhor critério
para aferir se uma obra é arte ou não: se todos na platéia riem no mesmo momento, ou
choram no mesmo momento, é porque se trata de uma obra cultural (norteada pelo senso
comum, instauradora de sistemas formais reconhecíveis), que conduz de modo cultural
as percepções, que nos trata a todos como criancinhas – ou como ovelhas sendo tocadas
para o curral. em uma obra de arte, enquanto alguém ri na platéia, outro alguém chora,
e outro alguém empalidece; as reações de cada membro do público serão completamente
distintas, na medida em que não se trata de conduzir as percepções, mas sim de
desencadear processos sensíveis autônomos) (o teatro (como ARTE) não é algo que
harmoniza a sociedade, que nos integra como povo (isto é o que a CULTURA faz); o
teatro (como ARTE) desarmoniza a sociedade, nos desintegra como povo, na medida em
que nos separa de nós mesmos)
...nunca se tratou de dizer coisas com as palavras, mas sim de fazer coisas com elas (ou
de permitir que elas façam coisas conosco). neste sentido, não há limites para os usos da
linguagem, nem há terreno que não possa ser tocado por estes usos
DRAMÁTICAS DO TRANSUMANO parte III
[apontamentos finais (...)
(tudo é em prol da conquista (por cada artista) de uma instância de singularidade, e é, portanto,
contra qualquer ventriloquismo)
a maior parte do teatro que se diz avant-garde hoje apresenta em cena diferentes
modos de cultura (quando o senso comum se refere à diversidade, está se referindo a
diferentes modos de cultura, o que não interessa para o campo da criação estética).
quando me refiro ao OUTRO, não me refiro à cultura chinesa ou à cultura árabe ou à
cultura indiana ou a qualquer sub-cultura, mas sim a alteridades radicais em relação à
cultura – em relação a TODAS as culturas
momento
a
momento
(e cada momento é experienciado de modos distintos)
o indizível (aquilo que não pode ser simbolizado) pode-se fazer perceber pelos jogos de linguagem, mas não pela
palavra (que diz).
novamente: não se trata de usar as palavras para DIZER coisas, mas de usar a forma do texto para FAZER coisas
(ou permitir
que elas façam
coisas conosco)
nove palavras, postas em determinada ordem, nos mostram a face de deus. (d'aprés j.l. borges)
META
MORFO
LOGICUM
conseguir fazer da linguagem um lugar de trânsito das formas, o que não se encontra na
comunicação habitual, em que persiste uma definição unívoca das palavras; lugar de trânsito em que as
palavras já não dizem, mas são usadas em diferentes jogos de linguagem (e cada jogo de linguagem instaura
uma forma de vida). a linguagem como uma espécie de vazio - habitado (provisoriamente) (d'aprés jean
baudrillard)
ao encararmos o mythos deste modo, o cadáver paterno muda todo o tempo em função das
flutuações vertiginosas da opsis. o próprio mythos não permanece estático, mas passa a existir
de modo brutalmente polissêmico - não operando mais como mecanismo de sentido
quando texto e cena não mais se separam, surge um outro teatro, radicalmente
diverso
(estes textos não são textocêntricos; como máquinasdesejantes, exigem que se
copule com eles. são dotados de falos (que nos penetram) e de buracos (que
devemos penetrar))
isto acaba com a celeuma entre "teatro de texto" e "teatro de encenação": o diálogo criativo que estas obras exigem
fazem delas, sempre, obras nas quais todos os envolvidos (dramaturgo, diretor, atores) são criadores ativos (porque não
há outro modo destas dramaturgias existirem em cena)
nenhum homem entra duas vezes no mesmo rio, pois já não é o mesmo rio, nem o mesmo homem.
(heráclito)
nunca houve tanta imagem. é preciso desenhar pontos de fuga (e toda fuga é também um
encontro, toda saída é também a entrada em OUTRO lugar)
que proporcionem habitações da ordem da DIFERENÇA (habitação (pela linguagem)
das coisas (o modo de subjetivação do vento, do acidente, da parede, do
tumor, das larvas que comem a carne do cão vivo, das asas das moscas,
da enchente destruindo a árvore, do pão sendo comido por uma boca sem
dentes, dos animais e dos buracos na terra, e assim infinitamente,
incluindo o que ainda não existe: O-objeto).
(a maior mentira que já nos contaram: uma imagem vale mais que mil palavras... se
eu digo MONTANHA diante de 10 pessoas, cada uma delas cria uma imagem mental de
montanha (são, portanto, 10 montanhas distintas). se eu mostro a imagem de uma montanha, é
a mesma montanha para todas as pessoas que a observam. é
preciso dar AUTONOMIA ao receptor)
a escalada ao cume da arte não-figurativa é difícil e atormentada, mas ainda assim satisfatória. as coisas
habituais vão recuando pouco a pouco, a cada passo que se dá os objetos afundam um pouco mais na distância,
até que, finalmente, o mundo das noções habituais – tudo o que amamos e a que ligamos nossa vida – se apaga
completamente. basta de imagens da realidade, basta de representações ideais – nada além do deserto (a
escuridão!)! - kazimir malevich - manifesto suprematista
um quadro de barnett newman é um anjo. não anuncia nada, é o próprio anúncio. (jean-françois lyotard: o instante,
newman)
(a postura "aberta a tudo" não leva a lugar algum quando a ambição é contribuir efetivamente
com novas poéticas que dêem continuidade (avançando) à história da arte)
artificial
E
habitada
o tempo não é uma medida. ser artista não é contar. (r. m. rilke)
para que se entenda o ponto, é preciso que se perceba a diferença de visões de mundo
(e portanto de ações no mundo) que grita e cala entre estas duas linhas, e é preciso
que se perceba a DIFERENÇA que existe (em termos de habitações da vida e da
linguagem) entre HERÁCLITO e PLATÃO, por exemplo. aí pode-se começar a pensar
sobre a reformulação dos pontos de apoio do pensamento e da existência.
a reflexão tem seu precioso lugar, mas este lugar não pode filtrar ou limitar ou
condicionar o domínio infinito e imprevisível da experienciação (incapaz de ser
traduzido ou discutido pela razão (as duas instâncias não compartilham o
mesmo lugar para poderem reconhecer-se))
habitar o lugar no qual a razão não pode não consegue nem mais
perguntar
no campo da criação artística, ninguém impede ninguém de nada, a não ser o próprio artista.
não, não somos reprodutores, e é justamente contra esta instância (de reprodução de sistemas
formais reconhecíveis) que se grita aqui. ainda que idéias novas não signifiquem nada fora de
uma prática, de um fazimento, haja vista que o teatro não é uma arte conceitual. e sim, é preciso
suportar a imensa ansiedade advinda do fato de que, em processos de criação, não vai se obter
resultados rápidos; quando não suportamos esta ansiedade, fazemos uso de procedimentos
conhecidos e funcionais e clichês. quando a suportamos, criamos a possibilidade de invenção de
sistemas de relações formais fundantes.
é verdade que o problema é a compreensão da realidade (do que seja "realidade"). e é verdade
também que o estilo realista vende uma imagem de realidade bem específica, que veio a ser
comprada, inclusive, como sendo “a” realidade, como se o real não fosse construído todo o
tempo por nós (cada real é conformado por um jogo de linguagem específico). neste sentido, o
realismo é um problema; mais ainda a partir do momento em que foi assimilado pelos mass
media, que propagam (vendem) para milhões de pessoas uma determinada idéia acerca do que
seja a humanidade, baseada em sensações catalogadas e modus operandi psíquicos
recorrentes (imagem esta que é comprada, inadvertidamente, até pelo teatro). TODA TÉCNICA
traz consigo uma visão de mundo; se me utilizo de uma técnica, estou veiculando (e vinculado a)
uma visão de mundo, e estou soterrando em mim a possibilidade de conquista de uma visão de
mundo singular, e a possibilidade de invenção de novas técnicas (isto é o que é próprio da
ARTE).
o realismo é baseado no desvelamento, como se houvesse uma VERDADE por baixo de tudo,
verdade esta que, uma vez vindo à tona, libertará (ou desgraçará) a todos (vide ibsen ou
tennessee williams). também é ancorado na idéia de SUJEITO fundada no renascimento, com
ecos da antiguidade clássica grega e do ethos cristão do século IV dC. é um estilo que se pauta
pelo diálogo, como se pudéssemos acreditar no diálogo (sem problematizações). enfim, são
tantos os pontos de ignorância profunda que norteiam este estilo, que só alguém que ignora
toda a revolução dos signos perpetrada pela arte e pela filosofia no século XX pode continuar
levando-o a sério.
mas não é fácil sair-se (escapar-se) de seus fundamentos: mesmo em estéticas ditas pós-
dramáticas, cria-se outros contextos, tudo PARECE ser uma outra coisa, mas o ser humano é
sempre o ser humano realista: hiper-psicológico. e é contra isto, exatamente, que se deve lutar:
contra esta idéia acerca do que seja a vida, e não contra este ou aquele estilo (embora seja
óbvio que o estilo realista nunca será capaz de trabalhar para além do SUJEITO, porque se o
fizer já não será mais realismo).
estas proposições só poderão realmente se abrir quando textos que não trabalham com uma
idéia estagnada de vida forem publicados e encenados, neste nosso século XXI. aí se fisicalizará
outra(s) opção(ões), com a potência de experiências estéticas imprevisíveis, como aconteceu
com o próprio realismo de ibsen e tchekov quando do seu surgimento (insuspeitado naquele
período, final do século XIX/início do século XX).
sem a problematização RADICAL de todos os esteios fundamentais das dramáticas
estabelecidas, quais sejam: a PERSONAGEM (uma determinada idéia de sujeito estável); o
CONFLITO (como ferramenta para gerar mudança, isto é, saltos quantitativos gerando saltos
qualitativos); e a NARRATIVA (que não pode mais existir em primeiro plano, como sentido (e
mecanismo estruturador) da obra, haja vista que a narrativa está para o teatro como a figura está
para a pintura); sem a problematização radical destes esteios, e o soerguimento de obras que se
tensionem em outras bases, fundadas em outros solos, não se avançará um milímetro, porque
se permanecerá no mesmo terreno EXISTENCIAL. promover mudanças na construção dos
edifícios sem mudar o solo sobre o qual estas construções se apoiam é uma falácia, que só
engana a quem não percebe o teatro (e a vida) em profundidade.
não é apenas de multiplicidade do sujeito que se está falando aqui, mas da constituição de
outros modos de subjetivação não-humanos, através de arquiteturas linguísticas OUTRAS. não
tem nada a ver com o sujeito e suas várias facetas em co-habitação psicológica.
é no estilo realista que a tal "imagem e semelhança", o homem como "topo da criação", é mais
forte. porque no realismo TUDO em cena é sobre a vida dos homens. esta hierarquia na qual
uma idéia de humano está no topo, em relação às outras formas de imaginarmos e
experienciarmos a vida... porque são estes outros modos de subjetivação que interessam agora,
e não o homem e seus relacionamentos idiotas.
outras formas de experienciarmos a vida, através de outras formas linguísticas (que promovem
outras HABITAÇÕES), para além dos homens discutindo em sua linguagem hegemônica na sala
de estar...
a estes sistemas centrados, os autores opõem sistemas a-centrados, redes de autômatos finitos,
nos quais a comunicação se faz de um vizinho a um vizinho qualquer, onde as hastes ou canais não preexistem,
nos quais os indivíduos são todos intercambiáveis, se definem somente por um estado a tal momento, de tal
maneira que as operações locais coordenam e o resultado final global se sincroniza independente de uma
instância central. (g. deleuze)
para os enunciados como para os desejos, a questão não é nunca reduzir o inconsciente,
interpretá-lo ou fazê-lo significar segundo uma árvore. a questão é 'produzir inconsciente' e, com ele, novos
enunciados, outros desejos: o rizoma é esta produção de inconsciente mesmo. (deleuze)
não confundamos estas proposições com "abandonar a razão e por no lugar a emoção",
o "sentir", num retorno estúpido ao romantismo. proponho uma problematização
absoluta do sujeito, do "eu", que é o centro no qual se fundamentam tanto o iluminismo
QUANTO o romantismo
tentativas de uma ação poética (transfiguradora do real) que vá além das
posturas iluministas E românticas. a obra de arte não como a expressão de algo
(que eu pensei OU que eu senti), mas como uma USINA apontando para futuros
desconhecidos
{LTI é um conceito de victor klemperer acerca da língua do império (vide também "a linguagem da
montanha", de harold pinter, para entender como impôr uma forma linguística hegemônica significa impôr
uma forma de vida)
o que é formação de platéia? é produzir espetáculos didáticos, eventos rasos que reproduzem formas e discursos
hegemônicos reconhecíveis, subestimando as pessoas?
não.
formação de platéia é defrontar o receptor com experienciações potentes, transfiguradoras do senso comum, estranhas,
surpreendentes, distintas de qualquer outra vivência em que já se esteve
a idéia de que arte de ponta é só para iniciados é uma imbecilidade. toda arte avançada é excitante, surpreendente.
apostemos na infinita curiosidade humana (curiosidade que nos impulsiona para o desconhecido, para o imprevisível),
em vez de nos resignarmos à castradora impotência conformista)
são os que trabalham com o teatro que dialogam com uma obra a partir de uma série de idéias pré-concebidas acerca de
como deve funcionar um espetáculo. são estes os que tem mais dificuldade na fruição de trabalhos de ponta.
o grande diálogo com obras de arte não é o da compreensão unívoca, mas o de se permitir ser atravessado por elas, de
modo poético. o mais importante é aquilo que minha razão não alcança completamente; este é o terreno das
experiências intensas.
não há nada para aprender com a geração de atores que criou o teatro
moderno no brasil. grandes, imensos atores, mas que sempre trabalharam norteados
por uma idéia específica acerca da condição humana (a idéia de sujeito que temos
desde o renascimento). são grandes atores FIGURATIVOS, que desenvolveram uma
técnica incrível, mas que não dá conta das dramaturgias contemporâneas,
revolucionárias em suas formas e proposições acerca do que seja a experiência
humana. se nos pautarmos em sua (destes atores) forma de atuação, soterraremos a
possibilidade de criação de novos procedimentos técnicos, exigidos por estas
dramáticas, que promovem outros desenhos, outros modos de vermos e habitarmos a
vida, o tempo, o espaço.
penso em c. stanislavski e no fato de que ele e seu grupo de atores tiveram que
inventar um NOVO método de atuação que desse conta de colocar em cena a
dramaturgia de a. tchekov (as convenções do teatro da época destruiriam a dramaturgia
fundante do autor russo).
quando a dramaturgia aponta para lugares inaugurais, é preciso que se crie novas
abordagens em termos de encenação e atuação. as técnicas que até então vigoraram
devem ser esquecidas, completamente, sob o risco de obliterarem a habitação das
novas formas, e de quebrarem a espinha dorsal destas novas poéticas (que exigem a
invenção de novos métodos de atuação a CADA PEÇA).
se tomamos uma obra como a do norueguês jon fosse e trabalhamos com ela de modo
naturalista,
fosse nos parecerá um péssimo autor
(em diversos momentos da história do teatro, a dramaturgia foi o norte que ampliou as
possibilidades da encenação e da atuação em direções insuspeitadas)
(e vivemos, hoje, um destes momentos, através de autores que estão inventando outras
operações, a partir de (e gerando) problematizações brutais dos esteios do drama
tradicional (e mesmo da encenação contemporânea))
(quando eu me refiro a problematizações do drama tradicional, me refiro a
problematizações da experiência humana)
granger: a imaginação criativa não consiste num estado de visão passiva, mas de experiência
ativa. no caso da criação poética, as experiências são essencialmente tentativas de subversão dos
dados ordinários dos sentidos do bom senso.
VER é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta.
[...] é o momento em que se abre o antro escavado pelo que nos olha no que vemos.
(georges didi-huberman)
o ponto crucial aqui é: de que sujeito se trata? ou melhor: se nos identificamos com o eu cultural,
condicionado, aí teremos um olhar cultural, condicionado. é preciso se fundar sobre uma habitação que
esteja sempre em instabilidade, suscetível de transformar-se pelo ato de ver
MORFOGÊNESE LINGUÍSTICA DE
MULTIESPÉCIES
{trata-se de um novo classicismo (somos, sim, classicistas, pelo impulso que nos move: o da
criação dos clássicos de hoje, de obras novas que tenham força equivalente aos clássicos): o
esforço aqui não é o de imitar, mas de igualar, com o mesmo peso e densidade, a mesma
complexidade, a mesma grandeza de invenção, a criação maior de outras épocas
(gianni vattimo) {deve-se falar de uma "ontologia fraca" como única possibilidade de sair da metafísica e
pode ser que nisso resida, para o pensamento pós-moderno, a chance de um novo, francamente novo,
começo. existir dentro desta perspectiva diz respeito ao estar em relação com um mundo onde a linguagem
vem considerada não como um conjunto de estruturas fixadas desde sempre, mas ancoradas numa radical
historicidade da própria linguagem. neste sentido vislumbra-se um "ofuscamento" da noção de verdade, por
meio daquilo que se poderia denominar de "devastação do mito de evidência" graças ao "fim da
modernidade", e nos encontramos às voltas com a dissolução da filosofia fundacional, quer dizer, daquela
idéia que seria uma fundação única, última, normativa.}
este SALTO é que é a nossa missão, o nosso DEVER maior, como artistas e
intelectuais
a obra de arte: agindo como se fosse uma coisa preciosa achada ao acaso
fortuita mas irretocável
e com recursos propositalmente escassos, meios e modos tão estritos, buscar o
inesperado: repetir a surpresa de seu acontecimento
escrever é retirar-se. não para sua tenda, mas da sua própria escritura. cair longe da sua linguagem,
emancipá-la ou desampará-la, deixá-la caminhar sozinha e desmunida. abandonar a palavra.
(j. derrida)
há duas interpretações da interpretação, da estrutura, do signo e do jogo. uma busca decifrar, sonha com
a possibilidade de decifrar uma verdade ou uma origem que pudesse escapar ao jogo e à ordem do signo, e vive como
um exílio a necessidade da interpretação. a outra, não mais voltada para o origem, afirma o jogo e tenta ir além do
homem e do humanismo, desse homem visto como o ser que sonhou com a presença plena, com o fundamento seguro,
com a origem e o fim do jogo.
(j. derrida)
(sobre os atores:
sendo que: cada instante soa e é habitado como algo específico (em variações de
contraste com a modelação seguinte)
pensemos esta palavra de holderlin com todo o cuidado: o que significa "salvar"? (...)
"salvar" diz: chegar à essência, a fim de fazê-la aparecer em seu próprio brilho.
(m. heidegger)
menciono estes nomes das artes plásticas, porque é difícil encontrar no campo do
teatro filiações com artistas que trabalharam com abstração, com mimeses
incognoscíveis, com a reinvenção do tempo, do espaço e da humanidade. penso em
luiz roberto galizia, que triscou nesta seara nos anos 70/80, e na obra de gerald thomas
nos anos 80/início dos anos 90, mas apenas de raspão (a ligação de thomas com
procedimentos eminentemente pós-modernos torna difícil citá-lo aqui). não vejo, no
entanto, nenhum problema em encontrar filiações históricas somente no campo da
pintura e da escultura, porque me refiro ao aparecimento de vocabulários
abstracionistas no campo da ARTE brasileira; é suficiente que isto tenha acontecido nos
campos citados, haja vista a dificuldade que o teatro sempre teve de se libertar do
figurativo e da instância de "espelho do mundo"
o que sucede no palco não é uma representação, mas uma relação de conduções e
desencadeamentos (articulações: a consequência da consequência)
a meta essencial não é produzir uma cena digna de ser contemplada, mas usar o palco
como um teatro de operações para a instauração de distintos tipos de intensidades/
instabilidades
[só se escreve escrevendo, assim como só se pinta pintando (vide francis bacon, por exemplo,
descrevendo a criação de seus quadros e o diálogo permanente com a pintura, pincelada a
pincelada ("o verde nunca se comporta da mesma maneira a cada vez que toca a tela", "foi em
resposta a um respingo, produzido ao acaso, que esta imagem foi gerada", etc)]
na frase "o que sucede no palco não é uma representação, mas uma relação de
conduções e desencadeamentos", entenda-se a relação que se instaura, momento a
momento, entre os signos emitidos do palco e o espaço mental/sensível de cada receptor
na platéia
em algum ponto (ou em alguma camada) de toda obra de arte, existe uma asserção (às vezes sussurrada,
outras vezes gritada) de que a vulnerabilidade humana é contrariada pela vitalidade humana
(as obras de arte são, neste sentido, um desafio (arrogante, irado, inconsequente, irresponsável) diante da morte, da doença, da
dor)
"e o que me diz das formidáveis figuras silenciosas de ésquilo?" - ele de repente me disse um dia, a propósito
de nada.
os presságios e ameaças esquilianos, a sensação da imanência de poderes determinantes, estão sempre lá.
eliminar os últimos vestígios de figuração e de cor local (a aclimatação advém do discernimento estético
aliado à indispensável relativização histórica), o clima sugestivo ou rememorativo que ainda encanta, para
chegar a uma presença de teatro decididamente aberta e atual, que de fato ESTALE como corpoestranho
na medula do mundo
o teatro é um enigma
que revela
e esconde
aquilo que é
cada obra de arte força o receptor a encontrar (como no boxe) a sua DISTÂNCIA
ideal para que o diálogo e a relação e a experienciação se dê em potência plena
não confundamos "novidade" (o recurso 3D no cinema) com inovação (o que j. l. godard fez com a imagem
cinematográfica).
(para os atores:
existem:
- valores de modelação temporal (distintos ritmos e andamentos vocais)
- valores de intensidade (distintas tonalidades e texturas vocais)
(mas: para cada UMA projeção, DUAS ou TRÊS expulsões; para cada evento-mimeses-cognoscível,
forçar a percepção em direção a dois ou três eventos-mimeses-incognoscíveis)
este projeto estético é resultado de um diálogo com toda a história da arte, especialmente com
aquela produzida desde o final do século XIX/início do século XX (a aclimatação histórica a que me
referi anteriormente)
a importância de um artista
pode ser medida
pela quantidade de novos signos e procedimentos
introduzidos por ele
em sua arte.
a importância
de um crítico/teórico da arte
pode ser medida
pela quantidade de novos signos e procedimentos (criados por artistas)
detectados e conceituados por ele.
eis o melhor exemplo de como funciona em uma obra a relação entre estes dois pólos:
e o COMO (que diz respeito à invenção - como os tais signos vão se traduzir (em termos de
arquiteturas linguísticas, no caso da dramaturgia) e
EXCELÊNCIA é quando se habita uma técnica de modo tão pleno que ela não
aparece mais como técnica, mas como um estranho modo de estar na vida
tudo isso se liga com o jogo de contrastes (que, como na pintura, se torna um saber obrigatório
nestas dramáticas da opsis; vide os tons quentes (o vermelho) e frios (o azul) de ticiano, e as
infinitas miríades de gradações nas passagens de uns a outros); mas é preciso reaprender
perpetuamente que o teatro é uma construção de dentro para fora (isto é, a partir de vinculações
do desejo geradas pelos signos que vão sendo postos na obra, em habitação da obra, e não a
partir de projetos estruturalistas externos ao ato da escritura ou da enunciação)
por "passagens", leia-se: deslocamentos. e é importante frisar que, diferentemente das cores,
não há valores quentes ou frios nas palavras; elas se tornam quentes ou frias na relação com as
outras palavras
é então que a fala se torna ação, em um nível nunca antes visto na história da
dramaturgia
renovarmos a forma
para que ela
seja novamente
a morada da
arte
as esculturas de richard serra não são produção de imagens (de modo geral, existe um
óbvio desinteresse por toda escultura que resume-se a produzir uma imagem (ou que traz em
primeiro plano a intenção de produção de uma imagem))
do mesmo modo, a pintura de barnett newman ou de jackson pollock não é sobre a produção de
imagens (o modo de operação está mais próximo da invenção de uma língua)
analogamente, o teatro tem muito mais relação com diferentes modelações de tempo e
espaço do que com a produção de imagens (é preciso encobrir as imagens, repito,
posto que imagem e narrativa se relacionam de modo muito, muito próximo)
a experienciação da obra de arte propicia a eclosão, no receptor, de respostas
pessoais (e por vezes inconscientes) para sua vivência contemporânea
"quando você reflete sobre um barnett newman, relembra a sua experiência, não o quadro." (richard serra)
há contrastes e contrastes:
inventar
...OUTROS ESCRITOS (ACERCA DE ESTILO E HETEROTOPIAS E...)
on ne résout pas un problème avec les systèmes de pensée qui l`ont engendré
vamos ao teatro para presenciarmos transmutação de sujeito - e, hoje, é preciso que a
transmutação se dê elevada à uma potência infinita
e em múltiplas direções (em múltiplos DESLOCAMENTOS)
a arte:
uma pequeníssima ilha,
cercada de cultura por todos os lados
(o mar modorrento da cultura)
o paradoxo é que, no mar, você só sente sonolência; é na ilha, caminhando por sua
estranha topografia, que a vertigem se instaura
o mar movimentado entorpece
a ilha estática atordoa
é prazeroso estar com elas; entrar em sintonia com cada uma, aceitá-las e entender que
é bom dar espaço para que existam muito melhor do que isto conhecido como "eu". o
"eu" é a tentativa de corresponder a anseios que não nos pertencem. o "eu" é a agente
penitenciária da alma.
(dione carlos)
o caso é apenas perceber que ter este ou aquele pensamento tem a ver com
criar esta ou aquela obra. o pensamento de um artista não é uma verdade que está ditando
ao mundo (sobre "como fazer arte"); é uma extensão de SUA obra, apenas isso. e nenhum
pensamento, assim como nenhuma obra, compreende a totalidade das possibilidades; mas
cada pensamento gera e é gerado por um tipo específico e singular de obra: a obra
daquele artista. e é algo importantíssimo, posto que é a verdade de uma vida. apenas isso/
tudo isso.
os figurinos negros
evocam/invocam
as letras impressas no papel branco
(a brancura do espaço da cena) (posto que cores sempre referenciam o mundo...)
os deslocamentos
situados unicamente no campo linguístico
(e a fala não é sublimação, posto que não expressa, mas cria)
visam cada vez mais a ausência do gesto:
a forma
ao se extinguir
nos relega a -
o quê?
se o sujeito é instável
(no limite máximo da instabilidade, que macula inexoravelmente a própria noção de
sujeito)
então não há mundo
então não há solo sob os nossos pés
traço
e
apagamento
(eternamente, no tempo sem tempo que se constitui aí/lá/aqui)
não é loucura pensar assim; loucura, alienação total, é pensar em si mesmo como sendo
uma identidade culturalmente definida.
quanto mal fizeram platão, aristóteles, kant, hegel... não por suas idéias, mas pela
FORMA de suas idéias. estabeleceram um tipo de PADRÃO para o pensamento, uma
ESTRUTURA SISTEMÁTICA que se introjetou em nós (na humanidade) como
arquitetura linguística da ordem do fundamento, e que nos aprisiona e cerceia de modo
terrível até hoje
a obra de arte como ENIGMA INSTÁVEL (não é algo indecifrável, mas algo indecidível
quanto ao seu sentido último)
2 coisas fundamentais:
a tensão se dava pelos quiprocós da trama; agora, ela é instaurada pelas operações no
sistema complexo de relações formais
arte tem a ver com a AMPLIAÇÃO do real, com a invenção de outros reais, com a
transfiguração das ideias estabelecidas acerca da vida, com a reinvenção do homem
e cada obra de arte PRECISA proporcionar uma experiência estética singular, distinta da
experiência estética produzida por outros artistas. para isso, é crucial que os artistas
trabalhem com visões de mundo distintas. é isto o que permite a eclosão de uma geração
de artistas potentes: diferentes recortes, todos parciais, mas que desdobram (em infinitas
variações em um campo de ação propositalmente reduzido pelo artista - vide mondrian)
diferentes sistemas de relações formais, diferentes interesses, diferentes estéticas
em arte
hoje
não se trata de
evocar o objeto-a(usente)
mas sim de
invocar O-objeto
presentificar
através da linguagem
mas sobretudo NA linguagem
o impossível
(isto é: o que não existe)
precisão aleatória
(artistas que fazem peças longas confundem (propositalmente, claro, pois este é seu
projeto estético) arte e vida. as duas instâncias, para mim, são distintas, e meu projeto é o
de abrir, rachar o tempo - quanto tempo cabe em um minuto?)
ou, dito de melhor modo: quantos TEMPOS cabem em um minuto?
da vinci disse
que a arte
é cosa mentale
van gogh disse
em uma carta a theo
que era movido por forças que não controlava
arte é
elaboração
e
lance pulsivo
AO MESMO TEMPO
nunca se tratou de
o que "eu quero fazer da obra"
mas sim do que a obra
vai fazer comigo
posto um lugar-outro, habitá-lo com outras formas de vida (haja vista que um ser humano
não pode sobreviver em marte)
o grande problema desta frase é que se pressupõe que saibamos o que seja uma alma
humana
e uma alma humana é algo repleto de infinitas possibilidades de estar na vida, que se
desdobra e deve se desdobrar infinitamente, de infinitos modos (im)possíveis
(fazemos TEATRO, mas nossa ideia acerca do que seja o humano é OUTRA – e é por
isso que nosso teatro assume outras formas)
Post Scriptum
repetir é um dom do estilo
(m. de barros)
(e o estilo é como a singularidade: uma conquista de cada artista
e nos instantes (em cena) em que não se fala, é preciso que se esteja focado
em CONSTRUIR a obra (quando se vai de um lugar para outro, por exemplo,
segundo uma marca: a qualidade deste andar tem a ver com a funcionalidade
dele na opsis, não com arrastar-se uma personagem). fala significa presença
(enquanto dura a fala; presença cuja qualidade será determinada pela
arquitetura linguística da frase); não-fala significa ausência (ausência que expõe
o processo de construção da obra)
as melhores máquinas são as que não servem para nada, mas que ainda assim funcionam
isto se dá pela forma como diferentes pontos de vista se tornam distorcidos uns
em relação aos outros na relatividade especial
algo indecifrável não permite resposta; algo indecidível permite várias respostas
(mas nenhuma em definitivo)
mais que presente constante, eliminar a própria idéia de tempo. isto não tem
nada a ver com atemporalidade, nem tampouco com qualquer coisa que já tenha
sido nomeada. e é preciso que esta experiência inominável seja efetivamente
instaurada pelas operações de um sistema de relações formais (eis o desafio:
inventar meios empíricos de bordejar – em ato estético instaurado biofisicamente
– o abstrato)
as mudanças
são encontros
de mundos
que se movem
(ericson pires)
(aplique-se
isto
ao teatro)
as pictocoreografias de hoje
encontram sua origem no primeiro livro impresso na história (incunabulum)
hypnerotomachia poliphili (século XV)
assim como a poesia
está na origem da linguagem
(vide a polissemia das línguas antigas)
na singularidade da ergosfera
girando pelo próprio impulso do buraco
os encontros são mudanças
: choques entre mundos
por mundo
entenda-se
uma arquitetura linguística
(não é possível existir de outro modo
a não ser que inventemos outras arquiteturas linguísticas)
a heterotopia
o lugar-outro
outro(s) modo(s) de subjetivação
: outro(s) lugar(es) linguístico(s)
aí
pela instauração experiencial desta impossibilidade
o que chamamos de real
se amplia
em arte
o impossível não pode ser evocado (não se encontra no território da memória)
não é algo que está ausente, mas algo que não existe
o impossível
precisa ser
invocado
insuspeitadamente cristalino...
ética e estética
dialogam o tempo todo em nós
redesenhando a si mesmas (e a nós)
em conversações nas quais seus limites são forçados
ampliando nossa experiência existencial
em veredas imprevisíveis
é preciso se atrever
para além da verdade
paint it black:
a morte como pano-de-fundo perpétuo
a instância ontológica
o lugar existencial do gêneses
para além do sujeito culturalmente definido
contra toda(s) a(s) cultura(s)
contra (inclusive) a própria natureza
black
é o fim do mundo
(de uma idéia estabelecida acerca do que seja a vida)
é a libertação do si mesmo é
a separação de nós mesmos
e eu digo
AMÉM
para o desconhecido
(e SÓ para o desconhecido)
hoje
a vanguarda não só é possível
(na medida em que sempre vão surgir experiências estéticas novas (outras)
impossíveis de serem previstas antes de seu surgimento)
como seu conceito se liga de modo incontornável
à própria possibilidade da arte
(como invenção de sistemas complexos de relações formais
que ampliem a experiência humana para além da vivência proporcionada pela
cultura)
assim
avant-garde
e
arte
são
conceitos
indissociáveis
modos de subjetivação
de coisas (da rocha, da parede, do vidro, do vento, da montanha...)
de animais/seres vivos não humanos (do cão, do pássaro, do verme, da carne
em putrefação, da árvore...)
de eventos (do acidente, do crime, do ataque, do pão sendo mastigado, da
morte...)
e (mais mais além)
modos de subjetivação
do que ainda
não
existe (O-objeto)
no teatro
instaurar um outro lugar
distinto da produção de imagens
(imago: do latim imagem, mito, a representação de uma ideia, a correlação entre
um objeto e o seu significado)
em contra-fluxo a toda espécie de espetacularização
posto que não é sobre a mise-en-scène (chega de tanta mise-en-scène!)
mas sobre o OUVINTE
(é pelos ouvidos que nos separamos de nós mesmos, graças a liberdade da
linguagem)
é sobre o OUVINTE
(aí tem-se a liberdade
a autonomia
o não-dirigismo
o resto
é stalinismo...)
3 elementos:
o invisível (campo propício para invocações)
o efêmero (que se apaga permanentemente)
o imaterial (presença e ausência conjugadas)
toda arte
é calcada na falta
não no que se reconhece
mas no que nos falta
(mesmo que não saibamos)
a obra só ocupa a sensibilidade do ouvinte
se o ator não oblitera esta ocupação
e isto não tem nada a ver com anodinia ou com "não fazer nada"
mas com uma presença plena
instaurada pelo ator
presença que não tem relação com a identidade cultural do sujeito
mas sim
com
presença
como alteridade
uma partitura de mozart, quando vista no papel, não parece ser muita
coisa. quando tocada (isto é, quando atualizada em ato), COISAS efetivamente
acontecem (deslocamentos). a dramaturgia não é literatura; não deve funcionar
no papel, mas apenas quando ativada pela fala; só se expande e se instaura
biofisicamente, no espaço entre a boca e o ouvido
o ato criador
em que inventamos e habitamos outros modos de subjetivação
não permitamos
que este ato
seja atrapalhado
por
nossas identidades
o pensamento mora na forma.
cada pensamento
só pode ser efetivamente pensado
(em sua potência plena)
na medida em que habite
sua forma específica
(o trabalho em arte consiste na invenção desta FORMA INEVITÁVEL)
através da arte
NA própria arte (no instante de seu fazimento - radicalidade em ato)
inventar algo que não é o universal nem tampouco uma identidade
mas novos/outros modos de subjetivação
plurais instáveis em trânsitos
não-humanos
: furos buracos - EM GIRO
encontrar a singularidade
é desestruturar todas as formas do universal
singularidade
é a constituição da obra
como
alteridade radical
A CONQUISTA DA SINGULARIDADE*
(*texto escrito por ocasião da curadoria do FIT - Festival Internacional de Teatro
de São José do Rio Preto, 10 ª edição, realizada pelo autor)
Neste ano de 2010, o FIT, norteado por um restrito conceito curatorial, não se
posiciona como “uma vitrine do melhor da produção das artes cênicas”. De
modo absolutamente distinto nesta edição, o Festival de São José do Rio Preto
se coloca, resolutamente, como um espaço que não se baliza apenas pela
qualidade dos espetáculos – mas sim, e sobretudo, por sua SINGULARIDADE.
Uma obra de arte está sempre descolada das formas e discursos hegemônicos;
para criar arte, portanto, é preciso trabalhar por muito tempo em processos de
limpeza, de descolamento, imprescindíveis para que uma outra experiência
possa ser descoberta. (E é preciso suportar a imensa ansiedade advinda da
impossibilidade de se alcançar resultados rápidos em processos desta
natureza...)
Por tudo isto, não será fácil o diálogo com estas obras: nada causa mais repulsa
e incômodo ao senso comum que a presença da alteridade. A alteridade instaura
outra possibilidade do humano – o que é intolerável (mais ainda em nossa era
de comunidade global). Como defesa, tendemos a reagir dando a elas, na falta
de outro rótulo (posto que não há, ao menos no surgimento da alteridade), a
designação genérica de estranho. Mas ser estranho não é um valor em si
mesmo. É preciso que esta estranheza advenha da instauração de conjuntos de
operações (complexas, ou simples, nunca fáceis...) que, articuladas, promovam
transubstanciações dos sentidos e revolução dos signos.
O que os artistas aqui reunidos fazem é atacar – em sua base – o modo como
percebemos/construímos o mundo. Através de proposições de outros modos de
constituição da subjetividade, de manipulações inusuais do tempo, do espaço,
da linguagem, a própria maneira como pensamos (e portanto todo o nosso modo
de configurarmos e nos relacionarmos com o mundo) é afetada. Criam assim –
através de estratégias formais que para cada artista se processam de modo e
com intenções diferentes –, criam assim Poéticas que nos proporcionam novas
ferramentas para compreendermos (e até redefinirmos) nossas vidas. Nestes
artistas não há mais dicotomia entre forma e conteúdo: A FORMA DAS PEÇAS
É O SEU CONTEÚDO. O palco se torna não mais um território de ilusão, mas
de CONSTRUÇÃO DE POÉTICAS, onde novas realidades são construídas e
desconstruídas (haja vista que o que chamamos de realidade é também um jogo
de linguagem específico), e onde ESTE PROCESSO É APRESENTADO PELO
ARTISTA AO PÚBLICO. Não se trata aqui da vida como ela é, mas das coisas
como elas realmente são. Trata-se de construir espécies de objetos – as obras:
réplicas ao mundo, e de igual densidade. O sentido convencional do teatro sofre
um golpe: a obra não trata mais de reproduzir de modo mais ou menos
deformado o real, mas se torna uma MEDITAÇÃO SOBRE O REAL. Sobre o
modo como percebemos – e CONSTRUÍMOS – o real.
“Quando se trata de pensar, quanto maior é a obra realizada, quanto mais rica é,
nesta obra, o impensado, isto é o que através desta obra e só dela vem para nós
como nunca ainda até então pensado.”
M. Heidegger
O DESASTRE NA ESCURIDÃO*
(Construção de Poéticas do Inominável)
L. Wittgenstein
11- Operar a partir de dois pontos terminais (a obra de arte é perpassada pela
tensão oriunda da luta permanente entre representar o mundo, ou estabelecer a
autonomia da obra):
A DÚVIDA DE CÉZANNE
(figuração x abstração)
e
A DESCONSTRUÇÃO MINIMAL
(reduzir ao mínimo, como estratégia, os elementos com os quais se trabalha).
15- Aos atores: ao contrário de uma postura afirmativa, encontrar sua presença
na ausência, e na ausência sua presença (aparente “simplicidade” (na verdade:
REDUÇÃO conquistada) produto de uma abordagem de alta complexidade
técnica – vide o trânsito entre diferentes usos da linguagem presentes no NÓ
BORROMEANO de J. Lacan, base de nosso trabalho com a voz).
16- Minha relação com os atores é como a de Carlos Zílio com a cor siena – e a
deles com a cena é como a de Cy Twombly com a tela (construção de traços,
borrões e apagamentos – vide R. Barthes em seu ensaio sobre o pintor).
21- Se você segue a natureza, não será de forma alguma capaz de subjugar o
trágico em sua arte.
Piet Mondrian
22- Não é tão azul quanto pensávamos. Para ser azul não deve haver
perguntas.
Wallace Stevens
26- Até que ponto se pode ir dentro de rigorosas limitações auto-impostas? Até
que ponto se pode reduzir e, ainda assim, fazer a cena viver (vide os retângulos
vivos de Barnett Newman)?
Três explicações para estas formas aparentemente perversas (em sua redução
quase sadomasoquista):
C- Forçar o receptor a se deter e a se concentrar para ver o que quer que seja
na obra. Ao se opôr à atividade aberta-a-tudo do teatro contemporâneo, que
funciona como um estimulante para as fantasias do espectador, presenteia-se o
público com um artefato espaço-temporal do qual ele nada obterá a não ser que
esteja disposto a olhar exaustivamente para algo extrínseco a si.
30- ARTE COMO ARTE (um teatro de operações – vide a obra de Ad Reinhardt).
34- A voz constrói PLANOS: avança (para fora do palco); recua (para dentro
dele); cria transparências através das quais podemos vislumbrar algum aspecto;
bloqueia completamente nosso acesso; estimula nosso imaginário, nos
permitindo ver em nosso espaço mental; nos trás de volta para o aqui-agora da
sala de espetáculos. A voz: música que cria diferentes planos, produzindo uma
espécie de efeito estereofônico (estereofonia que não é apenas sonora, mas que
transita por esferas sensoriais, imagéticas, conceituais). Criadora de véus
translúcidos e de sólidas barreiras; criadora de texturas e vibrações que enchem
o espaço de sensações inomináveis; criadora de realidades ostensivamente
ficcionais e de fatos-linguagem. Trânsito permanente entre evocação e
invocação. Nem nos confina inteiramente à frieza da superfície, e nem recua
todo tempo para trás dela, mas escava planos que saem uns de dentro dos
outros.
35- A sensação nunca aparece ANTES; ela está inteiramente contida na fala,
quando da sua emissão (isto oblitera a abordagem psicológica).
41- O teatro é hoje um dos únicos lugares em que podemos tocar o que a razão
não alcança completamente. No vazio da cena, no silêncio visível da ausência,
algo decanta. Vamos ao teatro para tocar o que decanta no vazio.
44- É preciso que haja sempre uma ambivalência entre ground e motif (entre
mythos e opsis).
45- Temos que enxergar a parcela de experiência humana (isto é, de vida) que
ainda não foi sufocada pela tempestade de imagens e barulho da
contemporaneidade. Temos que elaborar uma experiência estética que não ecoe
ingenuamente nenhum dos discursos hegemônicos da cultura.
Nunca houve tanto som e imagem. Há que se construir o silêncio e o vazio: não
o silêncio e o vazio estéreis, anódinos. Construir a forma hodierna do silêncio e
do vazio, seu insuspeitável desenho no espaço e no tempo; desenhar linhas de
fuga.
Este teatro, embora seja também um contra-fluxo à cultura contemporânea, se
sintoniza com a abstração crescente da vida hodierna e, particularmente, da vida
urbana. O termo-chave de Anthony Giddens para esta abstração (ou alienação)
é desencaixe.
46- Nada causa mais repulsa e incômodo ao senso comum que o conceito de
alteridade. A alteridade instaura outra experiência do humano – o que é
intolerável (mais do que nunca em nossa era de comunidade global), e dá-se a
isto, na falta de outro rótulo (posto que não há, ao menos no surgimento da
alteridade), a designação genérica de estranho.
Ser estranho (diferente do senso comum, isto é, elaborado de modo distinto das
estratégias de construção empregadas pela cultura de massa) não é um valor
em si mesmo. É preciso que esta estranheza advenha da instauração de uma
Poética: um sistema complexo de relações formais que, articuladas, promovam
uma outra experiência do humano (sempre uma ampliação, haja vista ser uma
contra-partida dialética à cultura).
48- A narrativa é um método de sentido. Como todo método, trás consigo uma
ideologia – ao se impôr, impõe também uma determinada imagem do humano.
Essa imagem é, desde há muito, hegemônica. Aceitá-la significa aceitar que a
vida humana consiste em uma determinada coisa – e é contra esta norma que
nosso teatro se coloca.
O tempo é espaço.
Rainer Maria Rilke
53- O teatro deve ter a chance de tocar o infinito contido nas palavras (operação
de desencobrimento do texto, no dizer de M. Heidegger).
No teatro o que importa não é dizer (bem ou mal) o texto, mas trabalhar para
que o texto faça ver, para que as palavras nos transportem, nos desloquem,
instaurem uma qualidade de experiência da ordem do enigma (sempre
polissêmico).
C- Focos muito fechados, que iluminam apenas os rostos dos atores, e que se
alternam abruptamente com a escuridão penumbrosa das silhuetas, alterando a
percepção (nosso olhar tem dificuldade de focar por conta destes trânsitos
violentos), conferindo às figuras, momentaneamente, a condição de sujeitos
(instância figurativa).
It is dark disaster
That brings the light
Blanchot
60- Quando Barnett Newman traça sua linha (zip) no plano, está mais próximo
da palavra que da imagem: significa por diferença, não por semelhança. Aí sua
arte se aproxima mais da literatura – e, na literatura, da poesia (sua epifania) –
do que de uma produção de imagens.
A imagem pertence ao espaço. A poesia pertence ao tempo.
61- Trata-se de um teatro que dialoga com a poesia (em sua supremacia do
significante e em sua enunciação do significado como um torvelinho labiríntico,
assim como em sua instável construção elíptica do tempo, do espaço e do
sujeito – penso em F. Holderlin e em Robert Creeley).
O prazer ligado à poesia é resultado da destruição e dissolução que ela causa
ao sentido cultural das palavras.
67- O espaço está vazio para que possa estar pleno de linguagem.
68- A grande ação realizada aqui é a fala: é ela que constrói e desconstrói o
espaço; que promove transportes instáveis no tempo; que evoca e invoca; é
através da fala, na fala, que a presença habita distintos modos de subjetivação.
E é em todas as problemáticas ligadas a este ato (que não se relaciona com
expressão, mas sim com invenção) que a obra se situa, se desdobra, se
expande – em direções sempre impossíveis.
70- O que veremos aqui são outras possibilidades, ligadas ao fim da ideia
moderna de sujeito e ao surgimento de uma outra lógica de funcionamento para
a humanidade em nossos dias.
NOVAS MITOLOGIAS*
dêitico: elemento que tem por objetivo localizar o fato no tempo/espaço, mas
sem defini-lo.
figuras
A MULHER VELHA
O HOMEM VELHO
O MENINO
A MULHER DE AZUL
O GRILO FALANTE
A AGENTE DA LEI
em um salão vazio
escuridão
O GRILO FALANTE.
no princípio
um boneco
veioseivasmadeira
do jardim
a madeira
e o vento lá fora
só
o céu
raízes no céu
vazio
e as raízes
raízes no céu no ventre as raízes
do céu
no princípio um
só
do jardim um eco
e a vertigem
vertigem
perguntas?
A MULHER VELHA.
só o que falta
é undar-se à máquina
quer ele unar tudo
urdir-me à máquina
ele disse
quero untir-me
pode a máquina só
satisfanar no dreno
vastos bolsões vastos
drenando drenindo
à máquina
unzar-me
ele disse
O HOMEM VELHO.
lá sentado
em sua terra lugarnenhum
nenhum lugar seus planos
para ninguém
em ritorno não + há
nada atrás nadanada + paratrás?
nãonada
mas em frente + nafrente ou fora
FORA
+
porque de onde se vê nada para ver
mas fora
talvez
A MULHER VELHA.
mas sulcando sapados
talvez
crescendo em satélites saposdesatélites
de girinosbaleias
em outrosoutros códices
linhas de outras fugas
crescendo
ou paisagens outras
do corpo da mente da alma
paisagens novas do espíritocorpo
mas em outro
qual? ela disse
outro
O HOMEM VELHO.
o fim de algo
é também
um começo?
O MENINO.
você está lá
a casa
sua minha casa a casa que é dele minha sua vocêeu estou lá aqui
ele está você sempre esteve eu sempre aqui na casa lá
que é dele minha casa sua nasceu nela cresceu ela cresceu com ele em você
neleemmim esta casa
onde estamos
agora
escoam os restos de você detritos restos meus seus restos dele escoam pelos canos
intestinos vísceras tubulações da casa o esgoto água encanada saliva e suor e restos e
detritos seu ventre
OLHE EM VOLTA
sala
quartos
paredes pode ver?
ele pode
eu posso?
infiltrações nas paredes estrias na pele da casa em sua pele minha crescendo como rugas
o tempo? eu digo o tempo ele responde
e o porão
rãs no porão
sapos vivem lá
o tempo
e a casa
e não há
ou não havia
ou não havia saída
do corpo do tempo fuga possível nãonão há saída
ou não havia
ou não havia
fuga do corpo saída possível nãonão
não havia
fuga
saída
até agora
A MULHER DE AZUL.
o parque é negro
daqui
um parque todo negro as árvores
é porque são escuras as árvores
olhando daqui
no rio escuro à beira o corpo do peixe no rio escuro tem na boca o gosto da boca no
hospital é só impressão?
os pés e pernas e doem que as pernas mas sem gritos estão inchadas?
gritando também as mãos e os olhos e a cabeça a minha não é engraçado? porque
está crescendo ou?
não
e agora
O MENINO.
debaixo
embaixo daquela vê? nessa ponte
na ponte e debaixo dela
lusco fusco
o barulho
é o rio
correndosempre
mamãe?
papai?
não é assim?
lusco fusco
escuta
olha
olhaolha paimãegrilorã
é alguém?
alguma coisa
está vindo
pra cá
A MULHER VELHA.
se com rurbôtos
do espelho + não
rostes de purcados
por onte vertens
em vãos de chão só
no alto nada de não +
RUR EM PEDAÇOS MAS UNANDO
sem temponão mas encarnado
em aço carne encarnado
um corpo
A MULHER DE AZUL.
só?
O HOMEM VELHO.
casulo ainda
A MULHER VELHA.
as rostes em ordas
conspurcados é metamorfose
falanges em corpoquimeras
corpo da rã o corpo do sapo
a baleiamorcego
girinos de larva
A MULHER DE AZUL.
é de um corpo só que fala?
A MULHER VELHA.
eu a larva
ou elevocê
O HOMEM VELHO.
ou menino?
A MULHER DE AZUL.
não
A MULHER VELHA.
o menino a larva?
O MENINO.
na ponte aqui
A MULHER VELHA.
é o menino?
O MENINO.
na ponte embaixo alguém está vindo coisaalguém
A MULHER VELHA.
O MENINO
O MENINO.
coisaalguém láaqui
O HOMEM VELHO.
larva ova
O MENINO.
pra cá?
A MULHER DE AZUL.
NÃO
( )
O GRILO FALANTE.
que nãonão é
maldição? não
mentealmaexcrescência
a alma?
verruga um cancro a mente do corpo
porque o tumor cerebral é é é
comocomo convite
o convitetumor do outro um começo
a cabeça?
excrescência
VERRUGA
A MULHER VELHA.
eu então
sua mãe eu
mamãeelaeu
ele seu pai papaiali
agora
aqui
O HOMEM VELHO.
o homem velho caminha pelas ruas dentro
pelas ruas caminhou mas agora nas de dentro caminha
ele vê a mulherdeazul uma mendiga? perguntava ainda vivedorme no parque
corroída a mulherdeazul ele vê se corrói por estar ali
não no parque mas dentro
presa
uma prisioneira
em seu corpo o próprio presa da doença ela grita corroída por estar dentroprisioneira
o homem velho caminha pelas ruas de dentro ao seu lado a mulher velha vê também
é a mendiga? ela pergunta
e ele repara depois ela sorri
a mulher velha vendo também ele repara
a mulher velha sorri
um sorriso
MENINO.
EI?
A MULHER VELHA.
sou eu
MENINO.
mamãe?
A MULHER VELHA.
e ela sorri
filho?
MENINO.
o menino olha
olhaolha
e vê
é o amor?
no fim?
eu vejo mamãe eu
o amor
e vejo o amor
no fim
A MULHER VELHA.
me dê sua mão
feche os seus olhos
E O SENHOR RESPONDERÁ
EIS A ALIANÇA
A GRAÇA
ENFIM RESTAURADA
EIS
AQUI
A FACE DE DEUS
escuridão
A MULHER DE AZUL.
de onde vem a dor?
ela grita
de onde vem?
grita ela sozinha no parque
porque não pode perceber
compreender ela não nenhum de nós ninguém até agora
que a dor não vem da doença não
que a doença é o caminho para além da dor
e ela grita sem percebercompreender
que o tumor é um bebê
que pare um corpo
sem cabeça
O HOMEM VELHO.
ele Adão
A MULHER VELHA.
ela Eva
O HOMEM VELHO.
este lugar
este tempo
o paraíso
reencontrado
redescoberto
A MULHER VELHA.
construído
inventado
A AGENTE DA LEI.
Um corredor imundo. Comecei a andar devagar, muito devagar, comecei a me aproximar
devagar da porta pesada de madeira que estava aberta, entreaberta, eu podia ver agora. E
cada passo era dor porque minha pele estava gelada, porque um frio terrível fazia doer
cada osso do meu corpo, cada músculo. Difícil respirar, o coração quase explodindo. Era
medo. Era terror. Porque havia alguma coisa atrás da porta. Mas havia também o dever, a
Lei, e eu empurrei e empurrei a mim mesma e entrei. E o que havia estava lá.
O que estava lá tinha a ver com aço e carne, nervos e motores, expostos. Sangue e óleo,
circulando em tubos infinitos. Pedaços acoplados, em cicatrizes, ligados uns aos outros,
os pedaços, costurados, nascendo, brotando uns dos outros, glândulas e metal, músculos,
tendões, circuitos. Mas não uma cabeça, não, cabeça não, nenhum rosto, só partes. De um
corpo. Uma criança? E os tubos, os fios, e o sangue, espécie de sangue, negro, sangue
negro, óleo e sangue, circulando nos tubos, pelos canos, misturados em dutos.
E o que estava lá, aqui, diante de mim, à frente, tinha a ver com imortalidade também. E
sexo. Orgasmos? Não – sexo. Eternamente.
É um menino?
O GRILO FALANTE.
efeito fantasma
perder um membro braço perna língua
sentir o membro mesmo depois de perdido
e se você sente o pedaço
então o pedaço perdido decepado separado
então o pedaço a parte
também SENTE
VOCÊ
A AGENTE DA LEI.
Uma máquina?
A MULHER DE AZUL.
porque não era o corpo a prisão
o corpo? não
a prisão era a alma ela compreende finalmente antes de morrer
e o tumor um bebê ela compreende um instante antes de morrer
parindo o corpo novo
sem cabeça
A MULHER VELHA.
o corpo
em corpo hibridado três dias em fim
glorioso o corpoanfíbio surgindo do mar eterno
sobe à terra desce dos céus espíritoemcorpo
encarnado glorioso
A AGENTE DA LEI.
O que era aquilo?, ela se perguntou ainda, antes de deixar de ser, para sempre, quem ela
foi um dia.
Aquilo, isto, o que é?
O QUE?
O GRILO FALANTE.
no princípio do princípio
é o que eu sou agora
O HOMEM VELHO.
tantas mortes para uma única vida plena em eternidade
tantos cadáveres para um único último corpo
A MULHER VELHA.
ressuscitado
glorioso
A AGENTE DA LEI.
meu amor
escuridão
fim
PINOKIO - Crítica de Christiane Riera (publicada no jornal Folha de São Paulo,
maio de 2011)
O diretor e dramaturgo Roberto Alvim tem sido celebrado como um dos autores
mais inovadores e arrojados à frente do Club Noir, criado em parceria com a
atriz Juliana Galdino.
Sua mais recente montagem, "Pinokio", inspirada em "Pinóquio", de Carlo
Collodi (1826-1890), vem reiterar esses títulos.
Do original, há pouco sobre o boneco que fabrica histórias, cujo drama está em
padecer na transição do estado puramente material para a dimensão espiritual.
O ganho de vida traz o imponderável, algo moralmente confuso e angustiante.
Diferentemente do clássico, o espetáculo apresenta seres humanos com a
mesma angústia de se encontrar em processo de mutação. Em via contrária,
aqui o espírito inquieto sofre com suas fusões em matéria.
Alvim elimina naturalismo e narrativas para criar rascunhos do que podemos vir
a ser: "Uma coisa é alguém coisa".
A batalha é travada com um texto cheio de neologismos e palavras deslocadas
que servem para inquietar, não para explicar. Trama e conflito cedem lugar a
ruídos e sussurros, que carregam o tema do hibridismo entre corpos e
máquinas.
"Restos dele escoam pelos canos intestinos vísceras tubulações da casa."
No palco, atores imóveis estão sujeitos à iluminação que os transforma. Luz
branca resulta em troncos sombreados. Focos isolados revelam rostos
pasmados. Por último, um vermelho insistente parece mergulhá-los em
impalpável perigo.
Personagens são vozes aprisionadas e manifestas em timbres distintos. Do
ponderoso tom de Juliana Galdino ao melancólico de Rodrigo Pavon, cria-se
uma escala de ressonância acústica variada, segundo as diversas
profundidades em que se posicionam no palco.
Com isso, a sensação é de instabilidade no espaço.
"Pinokio" é poesia cênica radical. Propõe a combinação de som e imagem como
uma experiência sinestésica, mesmo que sacrifique facilidade na recepção do
texto.
Se o hermetismo é veículo para reproduzir a aflição de um nebuloso mundo em
transição, também afasta o espectador de tal fruição, ao oferecer pouquíssimos
fios em que se agarrar na travessia por esse labirinto.
No final, olhares perplexos do público. Alguns inconformados com a obscuridade
da proposta. Aqueles que aceitaram o tormento em lidar com um universo
desconhecido refizeram a trajetória de um Pinóquio: "Um eco e a vertigem.
Perguntas?".