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Daniel Röhe

O Estranho em Les Contes d’Hoffmann,


de Jacques Offenbach
The Uncanny in Les Contes d’Hoffmann,
by Jacques Offenbach
Daniel Röhe

Resumo
Freud possuía uma vivência pessoal com Les Contes d’Hoffmann, ópera de Jacques Offenbach.
Ela trata do horror da castração e da frustação amorosa em mais de quatro contos de E.T.A.
Hoffmann na adaptação do libretista Jules Barbier. A paixão do personagem Hoffmann por
Olímpia pode ser interpretada enquanto uma manifestação do fetichismo. Já Antonia o seduz
pelo seu canto e pelo desejo de ser famosa, tal qual uma Hortense Schneider, que interpretou a
Helena de uma ópera três vezes citada por Freud. E Giulietta, essa sedutora cortesã representa
o papel de uma esfinge – pelos olhos ela ameaça o herói, tal como um Édipo atormentado pelas
intrigas familiares. Educado por um tio severo, E.T.A. Hoffmann desenvolveu a sensibilidade
artística a partir do contato com a tia Sophie. Les Contes d’Hoffmann foi a última contribuição
do Maestro de Monmartre, que homenageia aquele que deixou seu registro na história en-
quanto juiz de direito, escritor e compositor.

Palavras-chave: Ópera, Psicanálise, Estranho, E.T.A. Hoffmann, Jacques Offenbach.

C’est q’un doux rêve d’amour.


La Bele Héllène, Ato II

Introdução parcialmente a sua conclusão principal. Fora


O repertório operístico de Jacques Offen- isso, sabemos de estudos que apenas fazem
bach (1819-1880), assim como a sua Les uma menção curta à ópera, às vezes apenas
Contes d’Hoffmann, foram amplamente es- em notas de rodapé (e.g. Rahimi, 2013). O
tudados pela literatura musicológica (cf. curioso estudo de Schneiderman (1983) dis-
Dibbern, 2002; Hadlock, 2016). Contudo, cute o Ideal do Eu no artigo intitulado E. Th.
ainda que Freud (1919) tenha citado a refe- A. Hoffmann’s ‘Tales’: Ego Ideal and Parental
rida ópera, a literatura psicanalítica pouco Loss. Contudo, ainda que o título nos faça
lhe prestou atenção. Sabemos de um estudo pensar na ópera de Offenbach, é feita apenas
em alemão publicado em duas partes (Gre- uma menção breve a ela.
ve; Hössler, 1988; Hössler, 1988) e de Les Contes d’Hoffmann teve sua estreia
uma análise de Reik (1949) que, infelizmen- em Paris ao dia 10 de fevereiro de 1881. Dez
te, tem uma argumentação referente à versão meses mais tarde, Sigmund Freud e sua irmã,
antiga da ópera, na qual a ordem dos “três Anna, por pouco não perderam a vida: eles
contos” estava alterada, o que compromete estavam com ingressos para a segunda per-
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O Estranho em Les Contes d’Hoffmann,
de Jacques Offenbach

formance vienense da adaptação alemã da fenbach, 1865?, p. 38 apud Freud, [1913],


ópera de Offenbach. Ocorre que, naquele p. 260, tradução nossa), é indicada como a
dia 8 de dezembro, o Ringtheater, localizado melhor escolha de mulher, em analogia ao
entre a Schottenring e a Maria-Theresien-S- escrínio de chumbo no Mercador de Veneza e
traße, em Viena, seria o palco de um trági- à Cordélia de Rei Lear. Reik (1949) chegou a
co incêndio (Sühnhaus, 2016). Em 1886, comentar a relação de La Belle Hélène com a
Freud se mudaria para a Sühnhaus pouco antologia de E.T.A. Hoffmann. Mas é preciso
depois de testemunhar uma apresentação de lembrar que, na primeira, o herói obtém os
hipnose por um dinamarquês, no prédio re- favores da amante, ao passo que o argumento
sidencial construído no endereço do antigo de Les Contes d’Hoffmann fala mais de recor-
Ringtheater, que foi demolido após o incên- rentes frustrações amorosas e que a solução
dio. Ali Freud começaria a constituir família encontrada pelo herói é a sublimação.
(Jones, 1972). A terceira citação de Freud a Offenbach
O documentário Sühnhaus (2016) nos aparece na sexta das Lições introdutórias em
conta que os eventos entre a Schottenring e psicanálise (Freud, 1916). Contudo, essa
a Maria-Theresien-Straße são páginas maca- passagem se aproxima mais daquilo que
bras na história de Viena. A Áustria procu- ocorre na citação da Die Zauberflöte, de Mo-
rou reprimir aquele incêndio de sua memó- zart, em A interpretação dos sonhos (Freud,
ria. Nele 386 pessoas morreram. Anos mais [1899] 2010). Isso porque, em ambos os ca-
tarde, Freud receberia, naquele endereço, a sos, a ópera é citada a partir de um relato
esposa de Eduard Silberstein, Pauline. Se- do(a) paciente.
gundo o Neues Wiener Tagblatt, de 15 maio Em Lições introdutórias, Freud (1916) es-
de 1891, ela sofreu um traumatismo crania- creve que, às vezes, “não conseguimos tirar
no após se atirar da cobertura da Sühnhaus, uma música na cabeça” (p. 111). O seu pa-
e veio a óbito imediatamente (Hamilton, ciente não conseguia esquecer um trecho da
2002). Em agosto daquele ano, Freud se ópera de Offenbach (1865?) porque, à época,
mudaria para a Berggaße 19 (Jones, 1972). ele estava consumido por interesses amoro-
Após os bombardeios da Segunda Guerra sos por uma Helena (Freud, 1916).
Mundial, a Sühnhaus (2016) foi novamente Se até 1916, Freud teria optado por citar
demolida – a placa comemorativa referente Offenbach a partir de sua Hélène, seu comen-
à passagem de Freud por lá está, hoje, per- tário de 1919 é apenas uma passagem curta.
dida. Sua análise foca mais no conto do Homem
Mas se Freud (1919) retomaria a ópera da areia, de Ernst Theodor Wilhelm Hof-
que incendiou o Ringtheater em 1881, ele já fmann (1776-1822). Juiz de Direito e autor
havia citado seu compositor em três ocasiões romântico, ele devotou sua vida à música, de
anteriores. Na primeira, Freud ([1899] 2010) forma que estava convicto de que era como
comenta a elaboração secundária em relação compositor que ele entraria para a História
a um sentimento de perturbação relativa a (Taylor, 1976). Além de obras não publica-
um conteúdo onírico. Em um verso canta- das, sabemos de ao menos 85 composições
do pela personagem título de La Belle Hélène musicais de sua autoria, entre elas, seis ópe-
(Offenbach, 1865?), ela fala que se “trata de ras completas. Uma delas, a sua Undine, es-
apenas um sonho” (p. 137-139 apud Freud, tava em cartaz no Schauspielhaus em Berlim,
[1899] 2010, p. 493, tradução nossa), de for- quando aquela casa de concertos foi tomada
ma a diminuir a tensão provocada pela cena. por um incêndio em 1817 (Taylor, 1976).
A mesma ópera é novamente citada em O Um ano antes, ela foi aplaudida por Ludwig
tema dos três escrínios (Freud, 1913), quan- van Beethoven e Carl Maria von Weber (Fa-
do Helena, “aquela que ficou muda” (Of- ris, 1980)

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Freud (1919) comentaria o Homem da janeiro daquele ano (Kaye; Keck, 2013). É
Areia para estudar a perda dos olhos en- como se algo estivesse querendo sair, mas
quanto metáfora para o terror da castração, existiam forças opostas: as portas do Ring-
ainda que inúmeros contos de Hoffmann theater só podiam ser abertas por dentro, o
lançassem mão de questões oculares (Sch- que em parte contribuiu para as mortes de
neiderman, 1983). Freud (1919) não deixa 1881 (Sühnhaus, 2016).
de observar a cena de suicídio de Natanael, Offenbach persistiu e, em 18 de maio de
muito parecida com a de Pauline Silbers- 1879, ofereceu uma première em sua resi-
tein. Se trocarmos o nome dele pelo dela, dência. Estiveram presentes león Carvalho, o
não obteremos uma exata descrição para o novo diretor da Salle Favart, e Franz Ritter
que ocorre com a paciente de Freud segundo von Jauner, do Ringtheater. A estreia foi um
aquele jornal de 15 maio de 1891? – Pauline sucesso, mas Carvalho exigiu inúmeras mo-
Silberstein “jaz no pavimento, a cabeça arre- dificações (Kaye; Keck, 2013). Em agosto
bentada” (Hoffmann, [1816] 1986). Freud de 1880, Jacques Offenbach havia já escrito
(1919) poderia estar refletindo sobre o suicí- vários trechos da ópera, mas a orquestração
dio da sua jovem paciente, já que ele próprio e o Epílogo estavam, supostamente, ain-
teria observado questões da vida amorosa de da pendentes. Em 11 de setembro daquele
Eduard Silberstein e estudado o suicídio de ano, começariam os ensaios para a première
sua esposa (Hamilton, 2002). mundial. Duas semanas depois, Hoffmann
Cinco anos antes do nascimento de Freud, teria terminado de escrever o trecho relati-
em março de 1851, Joseph-Jacques-Augustin vo à Aventura na noite de São Silvestre (Hof-
Ancessy, o diretor do Théâtre de l’Odéon, em fmann, [1815] 1873), o ato de Giulietta.
Paris, compôs música incidental para uma Segundo Kaye e Keck (2013), após o fa-
adaptação de contos de E.T.A. Hoffmann. lecimento do compositor, a sua família con-
Essa adaptação original foi dividida em cin- tratou Ernest Guiraud para finalizar a obra.
co atos conforme a leitura de Jules Barbier e Junto a Auguste-Jacques Offenbach, filho
Michel Carré. O primeiro criaria ainda uma do falecido, e Jules Danbé, a orquestração
adaptação musicada por Hector Salomon, e o Epílogo foram concluídos. A estreia da
em 1867 (cf. Huffmann, 1976; Kaye; Keck, versão completa estava prevista para o dia
2013). Jacques Offenbach regeu a performan- 5 de janeiro de 1881, o que não ocorreu, de
ce da versão de 1851 e sonhou que a obra po- forma que ela foi reagendada para o dia 31.
deria ser readaptada (Faris, 1980). No dia 28, o filho de Carvalho se acidenta-
Em 1873, um ano após o falecimento de ria num duelo, obrigando o adiamento por
Carré, aparecem os primeiros registros da mais uma vez. Em 1º de fevereiro, um ensaio
colaboração de Offenbach e Barbier para Les foi realizado com a participação da família
Contes d’Hoffmann. Em 1875, já existiam de Offenbach. A encenação durou 4 horas e
planos para uma performance na Salle Favart 30 minutos, exigindo cortes ulteriores. O ato
e uma primeira versão completa do libreto. referente à Aventura na Noite de São Silves-
Mas a demissão do diretor da Favart forçou tre foi excluído por inteiro, sob protestos de
a transferência da première para o Théatre de Jules Barbier. Mas era necessário encurtar a
la Gaîté. Com a falência do Gaîté, em 1875, obra e preservar os trechos mais relevantes,
Albert Vizentini intercedeu reformando a como a barcarolle, integrada no ato referente
casa e o seu repertório, justificando a perfor- ao Violino de Cremona (Hoffmann, [1818]
mance de Les Contes d’Hoffmann. O agora 1885).
chamado Théâtre-Lyrique anunciou a estreia A première oficial em Paris começou com
da ópera para a temporada de 1878, mas in- mais de 30 minutos de atraso. E mesmo com
felizmente o teatro fechou as portas em 3 de o programa terminando próximo à meia-

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noite, o público pediu bis da Ária de Olímpia guinte com a inclusão da cena do reflexo no
e da barcarolle. Para a estreia em Viena foram espelho. Em 1907, a editora Choudens publi-
incluídos novos recitativos oriundos do texto caria sua quinta e definitiva edição com re-
de Barbier para o Gaîté, além da inclusão de citativos, que ficou por mais de 80 anos em
trechos cortados da estreia parisiense. Após uso no repertório das casas de ópera pelo
o incêndio, a ópera só retornaria a ser exe- mundo.2 Em 1976, Antonio de Almeida des-
cutada na capital austríaca 20 anos depois, cobriu 1.250 páginas da ópera na casa dos
quando um futuro paciente de Freud regeria Offenbach, o que levou à publicação da edi-
a orquestra na Wiener Staatsoper (Dibbern, ção crítica do Dr. Fritz Oeser em 1977. Em
2002). Theodor Reik (1949) descreveu o 1984, foram descobertos trechos cortados do
maestro Gustav Mahler enquanto um mago ensaio para estreia em Paris, que foram lei-
fabuloso. Reik (1949) resgata de sua memó- loados pela Sotheby’s e eventualmente doa-
ria o relato de que seu pai teria assistido à dos para a Universidade de Yale. Em 1993,
estreia vienense e que teria sido naquela oca- um musicólogo francês descobriu a partitura
sião que o incêndio teria ocorrido. Seu pai original para piano referente ao Ato de Giu-
teria escapado da morte ao se atirar por uma lietta, finalizado poucas horas antes da morte
janela do Ringtheater. Contudo, fontes histó- de Jacques Offenbach. Em 2004, foram reve-
ricas comprovam que o incêndio não ocor- ladas cópias das anotações de Guiraud nos
reu na estreia.1 arquivos de Paris (Kaye; Keck, 2013).
Ademais, sabemos que, entre 1886 e 1911, Entretanto, mesmo com todas as desco-
a ópera de Offenbach não foi mais executa- bertas, a ópera está fadada a ser uma obra
da na Salle Favart. Contudo, sabemos de incompleta. O método de Offenbach exigia
uma performance em Paris, no ano 1893, da uma adaptação após a estreia, o que era fei-
qual o conto de 1815 foi excluído. Nesse ano, to mediante uma negociação com a reação
Freud estava em frutífera correspondência do público. Tendo falecido antes da estreia
com Fliess, além de estar publicando traba- mundial em Paris, jamais saberemos como
lhos sobre histeria e hipnose (Jones, 1972). Offenbach teria repensado Les Contes d’Hof-
Mais ainda, sabemos da estreia da ópera na fmann (Faris, 1980).
Bélgica, em 28 de janeiro 1887, quando foi
impressa uma primeira partitura “completa” Sinopse
para orquestra. Em 25 de maio do mesmo O Prólogo (Ato I) da ópera inicia-se com
ano, um incêndio na Salle Favart, quando uma passagem possivelmente familiar a
da performance de uma ópera de Ambroi- Freud. Isso porque ela começa com o perso-
se Thomas, levou à destruição da partitura nagem título em um encontro com Nicklaus-
orquestral de Les Contes d’Hoffmann. Fe- se, que é a Musa da Poesia usando um dis-
lizmente, cópias das anotações originais de farce somente revelado no Epílogo (Ato V).
Guiraud sobreviveram. Entretanto, assim Quem se disfarça é Erato,3 a musa da poesia
como na tragédia do Ringtheater, muitas em Virgílio (1908, 7.37), poeta que Freud
pessoas morreram durante a performance da
ópera de Thomas (Kaye; Keck, 2013).
Em 1904, Raoul Gunsbourg reivindicou a 2. Essa é a edição de referência para o presente trabalho,
criação do Ato de Giulietta, com orquestra- ainda que saibamos de outras mais completas e que estão
na ordem apresentada na atualidade. Para fins de análise,
ção por André Bloch e Pierre Barbier. Essa seguiremos a ordem moderna, ainda que a paginação seja
adaptação reverberou em Berlim no ano se- referente à quinta edição da Choudens.
3. Geralmente apenas referida enquanto a Musa da Poesia.
Contudo, com base nas qualidades e apoiados pela sua re-
1. Por exemplo, sabemos de uma resenha de Eduard Hans- presentação na Ópera da Bastilha, em 2016, pensamos se
lick ([1881] 1984) para a estreia vienense. tratar da Musa Erato.

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([1899] 2010] conhecia (1908, 7.312). Segun- cujas práticas alquímicas nos fazem lembrar
do Freud (1919), o locus suspectus (p. 299) [o das discussões entre o pai de Natanael e o
lugar estranho] é um exemplo de tradução Homem da Areia. Nesse sentido, os autores
para o Das Unheimliche. O mesmo Virgílio da ópera reforçam a ideia de que as três ama-
(1908) faz alusão ao Olimpo enquanto um lu- das são a mesma, por partilharem de deta-
gar distante (suspectus Olympum; 6.579). lhes de enredo que tornam uma próxima da
É sobre a estranha Olímpia (Freud, outra.
1919) que o Ato II se debruça. Nesse trecho, A nova paixão de Hoffmann, Antonia, fi-
sabemos da primeira frustração amorosa lha do Conselheiro Krespel, padece de uma
narrada por Hoffmann. O herói se apaixo- doença misteriosa. O pai a proíbe de cantar
na por ela, mas depois vem a descobrir que, – se ela o fizer, morre. Mas os amantes se en-
apesar de ser toda perfeita, ela era uma ma- contram secretamente no dueto “C’est une
quinação criada para enganá-lo. Olímpia chanson d’amour” (Offenbach; Barbier;
era uma boneca cujos olhos foram doados [1881] 1907, p. 288). Ato contínuo, o Dr.
por Coppélius, o Homem da Areia (Hof- Miracle, como se assumisse a função castra-
fmann, [1816] 1986). Como nos ensina dora do Homem da Areia, ou enquanto um
Freud (1919), como que citando Sófocles, é Mefistófeles, intervém tentando Antonia a
justamente o problema dos olhos que causa cantar. Assim, o fantasma da mãe é evocado,
mais inquietação, ao menos no que concer- e ele coloca que Hoffmann a deseja apenas
ne ao Homem da Areia, interpretação que por sua beleza e que, para se unir a ele, se-
Huffmann (1976) estende para o restante ria necessário abandonar a glória dos palcos
da ópera e Schneiderman (1983) para toda alcançada por ela. Hoffmann a encontra ao
a obra de E.T.A. Hoffmann. A descoberta final do Ato quando, já seduzida pelo Dr. Mi-
ocorre após Coppélius se enraivecer com racle, Antonia canta para morrer (Hadlock,
Spalanzani, o criador da boneca, porque 2016).
este estava agindo fraudulentamente para No Ato IV da ópera, adaptado a partir da
com aquele, que então destrói a boneca Aventura na Noite de São Silvestre, o herói re-
(Hadlock, 2016), impedindo o jovem de nunciou ao amor e está participando de jogos
se realizar na vida amorosa (Freud, 1919). apostados. Mas quando aparece Giulietta, ele
O Ato III foi extraído do Violino de Cre- se apaixona novamente, o que ocorre na fa-
mona (Hoffmann, [1818] 1885). Mais uma mosa barcarolle “Belle nuit, ô nuit d’amour”
vez Hoffmann se encontraria amorosamente (p. 196), cantada em dueto com Erato. Nesse
frustrado, mas agora em virtude de um Dr. Ato, Giulietta é orientada a roubar o reflexo
Miracle. É importante lembrar que o Dr. Mi- de Hoffmann por meio de um espelho (Ha-
racle aparece originalmente enquanto um dlock, 2016), o que nos faz pensar na obser-
personagem do conto de Giulietta, A Aven- vação de Freud (1919) acerca de sua estra-
tura na Noite de São Silvestre. Portanto, na nheza ao observar o próprio reflexo em uma
ópera, ocorre um deslocamento, de um con- viagem de trem.
to para o outro. “Miracle” é a tradução fran- Segundo Freud (1919), o seu estranha-
cesa de “Wunderdoktor, Signor Dapertutto” mento foi oriundo de uma falha no reconhe-
(Hoffmann, [1815] 1873, p. 288), que apa- cimento acerca de sua própria autoimagem
rece no original alemão. no espelho. Na ópera, os convidados do casi-
Contudo, Dibbern (2002) defende que no zombam de Hoffmann quando ele perde
o médico de Antonia tem inspiração direta o seu reflexo. A sua amada vem a óbito ao to-
em Alban, o hipnotista de um conto de 1814. mar o veneno originalmente destinado para
Ocorre a promoção de uma coerência, já que Nicklausse (Hadlock, 2016). É Erato que,
Alban é inspirado no Conde de Cagliostro, no Epílogo da ópera, reclama seu amor junto

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a Hoffmann. Trata-se de uma continuação em Röckel para elaborar o papel da cantriz


do Prólogo, no qual o Conselheiro Lindorf no seu conto Don Juan (Kopitz, 2015). Em
disputava o amor da prima donna Stella com Bamberg, Hoffmann iniciaria sua carreira li-
Hoffmann. No Epílogo, por mais uma vez, terária (Faris, 1980).
Hoffmann perde o seu grande amor, mas É comum que a ópera de Offenbach co-
descobre o valor do seu trabalho. mece com a apresentação de uma cena de
Don Giovanni, com a prima donna Stella in-
Don Juan na enoteca terpretando o papel de Donna Anna (Kaye;
A plateia parisiense estava familiarizada o Keck, 2013; Hadlock, 2016). Erato, disfar-
suficiente com os escritos de Hoffmann para çada de Nicklausse, de fato canta no Prólogo
entender que ele incluía questões autobiográ- um verso de Don Giovanni “notte e giorno
ficas em seus contos. Mas E.T.A. Hoffmann mal dormir” (Huffmann, 1976, p. 106),
talvez não tivesse aprovado a releitura de sua modificando o trecho original citado por
biografia na forma grotesca, condensada e Hoffmann (1813) e deixando o personagem-
deslocada, que a ópera de Offenbach propõe. título da ópera furioso. Na ópera de Offen-
E ele poderia ter aplaudido a sua música – bach, Stella é uma das amadas inatingíveis,
essa foi a tônica da recepção da estreia em e que eventualmente o abandona no Epílogo
Paris (Faris, 1980). após a interceptação de uma carta no Prólo-
Schneiderman (1983) observou que o es- go, o que nos faz pensar no Homem da Areia.
critor foi muito cedo separado dos pais, de Nesse conto, sua esposa Clara acaba abrin-
forma que seus contos são geralmente mar- do uma carta que não era para ela, deixando
cados por frustrações relacionais. Morando Natanael inquieto.
com a sua tia Sophie, com quem conviveu Na ópera, é Lindorf que abre a carta e
após o divórcio da mãe, ele chorava quando toma a chave que seria entregue a Hoffmann.
ela cantava para a família. A tia querida era Aqui pensamos também numa alusão indi-
também a fonte de expressão emocional, ao reta à Noite de São Silvestre. Isso porque a
passo que Otto-Wilhelm, seu tio, era o res- chave do quarto da cortesã é central no en-
ponsável pelo lado punitivo da sua criação. redo da ópera e apenas uma alusão metafó-
Hoffmann, aluno de Immanuel Kant, seguiu rica ao conto original, no qual não há uma
a carreira jurídica em paralelo à sua dedi- “chave”, mas uma entrada no quarto. A cha-
cação às artes. Quando da sua ascensão em ve simboliza a permissão da cortesã para
Posen, ele se encontrou preso a uma cidade que isso ocorra. A mesma cena alude ainda
culturalmente estéril, o que o levou a se tor- ao Violino de Cremona. Isso porque Stella
nar uma espécie de Don Juan. Em 1803, ele é, assim como Antonia, uma sedutora can-
escreveria sobre o seu estilo de vida dissolu- triz (Hoffmann, 1813, [1815] 1873; [1816]
to. Já em 1814, ele assumiu uma posição na 1986; [1818] 1885).
carreira jurídica em Berlim. Ele trabalhava Em Don Juan (Hoffmann, 1813), Dona
em sua Undine, nos dias que ficaram famo- Anna é uma personagem que causa terror no
sos na enoteca de Lutter e Wegener, que ser- leitor, talvez mais do que o seu pai, porque,
vem de palco para o Prólogo e o Epílogo da primeiro, ela aparece atrás do assento do
ópera de Offenbach. protagonista enquanto um fantasma, depois,
É preciso destacar que Elisabeth Röckel, porque esperávamos ouvi-la cantar nova-
em 15 de outubro de 1810, realizaria sua es- mente. Contudo, a imposição de sua morte
treia no papel de Donna Anna na ópera Don nos priva dessa expectativa. A sua missão, na
Giovanni, de Mozart, no Bamberger Theater e qual ela tragicamente falha, era redimir Don
que para ela Beethoven iria compor a sua Für Juan com o seu amor (Taylor, 1976). Mas a
Elise. E.T.A. Hoffmann (1813) se inspiraria obsessão amorosa de Don Juan acaba exigin-

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do da estátua de pedra uma intervenção mais Se tomarmos a definição do estranho


assertiva (Hoffmann, 1813). desde a citação de Schelling lembrada por
Para Huffmann (1976), o Prólogo e o Epí- Freud, entenderemos que ele é algo sobre o
logo de Les Contes d’Hoffmann representam qual tomamos consciência, mas que deveria
a vida real do personagem título da ópera. ter permanecido oculto. É algo que já nos foi
Pensamos que a ambientação na taverna e a familiar e que se torna, estranhamente, cons-
relação pessoal do Hoffmann histórico com ciente. A ópera de Offenbach fala justamen-
a Donna Anna de Don Giovanni reforçam te de uma tomada de consciência. Todavia,
essa interpretação. Do ponto de vista musi- ela é mais uma apologia à sublimação e ao
cal, o trecho do Prólogo representa um Hof- processo analítico. Ora, se a ópera fala da
fmann enfeitiçado pelas suas três amadas: superação das questões grotescas, pensamos
“Stella! Trois femmes dans la même femme” que ela explora reflexões sobre o amadure-
(p. 66). No Epílogo, encontramos uma for- cimento pessoal que propiciam a Hoffmann
ma musical semelhante ao trecho anterior a superação de experiências traumáticas em
em “Je comprends! [Trois drames dans un sua vida amorosa. O método para a supera-
drame]” (p. 315) quando ele faz referência às ção? Na taverna de Luther e Wegener, ele diz
três amadas dos contos: semicolcheias segui- para os convivas que irá falar de suas desven-
das por uma semínima. Na segunda passa- turas amorosas. Assim, o destino do perso-
gem, pensamos que Hoffmann realiza uma nagem Hoffmann se opõe ao de Don Juan
tomada de consciência acerca de um objeto (Hoffmann, 1813), porque o primeiro não
que o consumiu anteriormente: a intriga e a se consumiu completamente pelos proble-
desilusão amorosa. mas do amor e se elevou, pela cura da fala e a
Assim, no Epílogo ocorre uma solu- dedicação à arte (Faris, 1980).
ção diferente dos outros contos da ópera.
Ocorre que, a cada conto, o herói avança Olímpia, ou a mulher superficial
no reconhecimento do que o aflige, o que No verão de 1891, época de sua mudança para
culmina no Ato final. Hoffmann não mais a Berggaße 19, Freud estava em transição no
fica confuso com a perda do objeto amado seu posicionamento clínico em relação à su-
porque ocorre uma conciliação entre o belo gestão hipnótica e ao método catártico (Jo-
e o grotesco: ele faz uma renúncia ao que nes, 1972). Entretanto, quando da mudança
não lhe é apropriado. É nesse ponto que ele para a Sühnhaus, ele estava começando a tra-
atinge uma maturidade e uma compreensão balhar com hipnose. Ele só se mudaria para
sobre a Musa Erato (Huffmann, 1976). Ela lá após consultar Martha Bernays para saber
representa o triunfo da arte sobre o amor se ela acreditava nas superstições em torno
na transfiguração de Hoffmann em “Des da Sühnhaus – tal como Natanael, que com-
passions s’apaise entoi! L’homme n’est plus; pra a luneta de Coppélius apenas para não
renais poète!” (p. 233). constranger sua esposa Clara, que não tinha
Pensamos que tais versos, ainda que omi- interesse pela “violenta perturbação de espí-
tidos de representações modernas da ópera, rito” (Hoffmann, [1816], 1986), que envol-
são os que melhor representam a função da via o seu temor da castração dos olhos desde
Musa. Eles inclusive são corroborados pelo a infância (Freud, 1919).
coro final, quando escutamos um sono- Na ópera, antes da cena em que Hof-
ro elogio à escrita enquanto solução para o fmann adquire a luneta, ele já está enfeitiça-
sofrimento amoroso. Ao contrário do que do por Olímpia quando canta “c’est elle, elle
se poderia esperar, pensamos que a grande sommeille” (p. 105), em Si bemol menor, em
mensagem transmitida pela ópera fala de claro contraste com o Fá Maior que o antece-
algo oposto ao que é estranho. de. O canto de Hoffmann ilustra a submissão

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O Estranho em Les Contes d’Hoffmann,
de Jacques Offenbach

daquele que se apaixona à primeira vista sem lacionar o fetichismo com algo que é infantil,
ponderar os perigos que isso pode causar. porque Natanael/Hoffmann falha na distin-
Além disso, a sua admiração por Olímpia ção entre objetos inanimados e animados
reverbera o efeito de maravilhamento que a (Freud, 1919). Isso em parte justifica Jents-
Europa da primeira metade do século XVIII ch (1906a, 1906b) no sentido da estranheza
teve para com os autômatos de Jacques de relativa à descoberta de que Olímpia era uma
Vaucanson (Castle, 1995). Contudo, con- boneca – porque Natanael/Hoffmann se dá
cordamos com Freud (1919), que apenas a conta de seu posicionamento infantil em re-
descoberta de Olímpia ser uma boneca não lação ao mundo. Ele se reconhece como um
é suficiente para gerar sensação de estra- adulto a brincar com uma boneca.
nheza. Ainda assim, é preciso lembrar que Notamos que Freud (1919) observa a
Freud começa a pensar no Das Unheimliche diferença de gerações para explicar seu en-
no mínimo ao final do século XIX, de forma tendimento sobre o que é o estranho, dando
que o impacto das invenções de Vaucanson mais atenção ao terror da castração. Mas isso
tiveram nele um efeito distante daquele que não implica que a tomada de consciência da
provocaram os autômatos do século anterior diferença de gerações não gere também um
(Castle, 1995). trauma. Concordamos, por exemplo, com
Ademais, concordamos novamente com Hentschel (2013), quando ele fala que o Er-
Freud (1919) na sua interpretação do conto lkönig, tanto de Franz Schubert quanto de
de Olímpia, que oferece uma crítica irôni- Carl Lowe, representa o estranho na música.
ca ao apaixonado. Isso porque ela não fala No Erlkönig, tanto a voz quanto o piano real-
muito, ainda que seja bela. Mesmo na ópe- çam essa sensação que temos quando nossos
ra, quando de sua Ária “Les oiseaux dans la “cabelos ficam de pé” (Hoffmann, [1816],
charmille” (p. 147), podemos notar um me- 1986).
canicismo no seu canto. O próprio acompa- Ao final do lied, o pai do rapaz encontra o
nhamento, na flauta e na harpa, parece imi- filho morto em seus braços, e isso após pri-
tar um orgue de barbarie. Toda a melodia é meiro desacreditá-lo quando o segundo aler-
repetida duas vezes, como se a música gerada tava que o Erlkönig o perseguia. De forma
pela manivela fosse exatamente duplicada. A similar ao comentário de Freud (1899/2010)
tão bem representada boneca poderia ser sobre La Bélle Hélène, ele dizia para o filho
uma metáfora para a mulher vazia ou mesmo que os seres da floresta eram apenas a névoa
inocente (Reik, 1949; Huffmann, 1976). ou o farfalhar das árvores. Tal fala, que seria
Quando Freud (1919) comenta o estra- típica da infância, é reconhecida com inquie-
nho em relação ao pensamento onipotente, tação pelo adulto quando o filho, que o avi-
parece haver uma sugestão de explicação sou, morre.
sobre o motivo pelo qual alguém se apaixo- Outro detalhe no Ato de Olímpia nos faz
naria por Olímpia. Nesse caso, Freud (1919) pensar no estranho. No conto de Hoffmann
disserta acerca da aplicação de poderes má- ([1816] 1986) fala-se de um trinado, um ar-
gicos (mana) a objetos, o que sugere a pre- tifício musical que aparece de forma proemi-
sença de um aspecto fetichista4 de Natanael/ nente no motivo do início do Ato e que se
Hoffmann. Nesse contexto, sua meta sexual repete ainda no Coro dos Convidados. No
se destina a um ser inanimado, o que ele conto original, o trinado marca o desejo de
pensa poder satisfazê-lo sexualmente – uma Natanael em dançar com Olímpia. Na ópera,
“mulher” que só lhe dá prazer! Podemos re- o trinado é evidente no solo de flauta ao iní-
cio e em meio às vocalizes de Olímpia. Pode-
4. Seria um caso de “Agalmatofilia”, tal como Von Krafft-E- mos pensar que se trata de um artifício que
bing (1886) observou. confere a ela o seu mágico poder sedutor.

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O motivo com trinados no coro dos Bovary isolada no campo (Flaubert, 1857).
Convidados “Non, aucun hôte” (p. 131) tem A solução do casamento formal, ainda que
um clima festivo em claro contraste com o inicialmente ofereça conforto, priva Antonia
monotônico “mesdames et messieurs” (p. de se realizar pessoalmente, o que exige dela
138) de Spalanzani, cantado em Lá Maior. um excesso fatal. Huffmann (1976) aponta
O canto monotônico aparece ainda quando que tanto Hoffmann quanto o pai da cantora
Coppélius descobre que Spalanzani o estava são cegos para Antonia, por não reconhece-
enganando em “Voleur! brigand! quelle dé- rem o sonho dela de ser cantora lírica.
route!” (p. 166), em Si bemol menor – que A versão da ópera contrasta, e muito, com
ocorre quando ele descobre que o cheque de o conto original, no qual o amante de Anto-
500 ducados, oferecido por Spalanzani pelos nia, ainda que tenha prometido que não fa-
olhos de Olímpia, não tinha fundo. Coppé- ria sua amada cantar, acaba unindo-se a ela
lius inicia então as maquinações para a sua em uma cena musical na qual não é possível
vingança, que culminam com a destruição enxergar quem canta ou toca o piano. Nesse
da boneca. ponto, Antonia já havia aceitado a proibição
Além da tomada de consciência sobre o do pai em não cantar, e um violino já havia
trauma da diferença de gerações e a ligação incorporado a sua voz – o som de suas cor-
de Olímpia com Spalanzani e Coppélius, um das cantava por ela.
terceiro argumento nos faz pensar, do ponto Na versão original, entendemos que tudo
de vista musical, que Olímpia causa uma sen- que entre nós permanece apenas em pensa-
sação de estranheza no Hoffmann da ópera. mento, Krespel, pai de Antonia, tornava em
Três compassos antes de “Tu me fuis?” (p. ato. Era um homem de manias excêntricas,
131) já podemos escutar uma linha melódica que tinha o estranho hábito de adquirir um
tenebrosa nos instrumentos de cordas. Essa violino para tocá-lo apenas uma vez, e de-
ideia musical retorna pouco antes da des- pois guardá-lo. O conto menciona um vio-
coberta de que Olímpia era uma boneca em lino de Krespel que falava com ele de uma
“Un automate!” (p. 184). Ocorre que em “Tu forma estranha, de forma que ele se sentia
me fuis?”, Hoffmann teme perder o seu amor, um mesmerista revelando a arte produzida
como se houvesse uma ameaça de castração pelo próprio instrumento. Antonia gostava
ligada não à perda dos olhos, mas do objeto muito daquele instrumento. Quando de sua
de amor. A ideia musical nas cordas aparece morte, o violino se parte em muitos pedaços
justamente antes da ameaça se concretizar. (Hoffmann, ([1818] 1885). E eram muitos
Num primeiro momento ele teme perder os olhos com os quais Krespel vigiava sua
algo. Num segundo, o medo se concretiza. E filha, tal como um Argos Panoptes, cujos
assim, ele perde o seu primeiro amor. olhos são entregues por Hermes a Hera na
pintura de Goltzius.
Antonia e o canto da morte Ainda que a questão ocular apareça en-
Entre as paixões de Hoffmann, Antonia é quanto fonte de censura no Violino de Cre-
a que mais possivelmente pode ser ligada à mona, pensamos que ela nos faz pensar não
Stella, porque ambas partilham do dom do apenas no estranho (Freud, 1919), mas no
canto. Segundo Huffmann (1976), é a ino- Supereu (Freud, 1923). Antonia é proibida
cência de Olímpia e a sedução do canto que de cantar, ela não deve ser como a mãe. A ela
atraem Hoffmann para o campo do amor. é aplicada a negação operada pelo verbo dür-
Contudo, ainda que Antonia possua instru- fen, tal como Freud (1923) o fez quando da
ção musical, Hoffmann nega o seu talento, sua explicação para a formação do ideal do eu
exigindo que ela opte por um estilo de vida – observação que escapa ao registro de Sch-
sem glamour, mais típico de uma Madame neiderman (1983). Estranhamente, a proibi-

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O Estranho em Les Contes d’Hoffmann,
de Jacques Offenbach

ção do pai se aplica também ao interesse de ga a cantar. Tal como notamos na biografia
Antonia em se casar e ter uma vida social, de Hortense Schneider, a Antonia da ópera
impedindo-a de se realizar dentro do que é é consumida pelo macabro abraço maternal
permitido socialmente. Para ela, o que lhe é da morte (Hadlock, 1994, 2016).
devido (sollst du sein; Freud, 1923, p. 40) é A Cena do Diagnóstico de Antonia tam-
também proibido (darfst nicht du sein, p. 40). bém merece atenção. Pouco antes da pro-
No Ato de Antonia podemos pensar tam- messa do Dr. Miracle, de que se Antonia
bém na questão ocular em semelhança com cantar, ela não sobreviverá, Hoffman canta
o trauma ligado ao Homem da Areia (Hof- “Suis-je le jouet d’un rêve? Est-ce un fantô-
fmann, [1816] 1986). Se Hoffmann e Kres- me?” (p. 314). Presa na cegueira do pai e do
pel proíbem Antonia de cantar, o Dr. Mira- amante, a cantora encontra na mãe o amparo
cle, enquanto marionetista, propõe o contrá- fatal para o conflito. Ela sai da cena incestuo-
rio. De posse do violino, ele covardemente a sa com o pai quando pensa em se casar com
compele a cantar. Junto a ele, o fantasma da Hoffmann. Mas nessa transição ela acaba se
mãe arranca o sopro da vida de Antonia. Em fundindo com a mãe na morte, realizando
“Quelle flamme éblouit mes yeux?” (p. 349), questões homossexuais, tal como Dora, que
fala-se um pouco do trauma de Natanael não escapou à metáfora do galvanômetro, tí-
num verso sobre chamas e olhos. O ardor pica do imaginário dos autômatos do século
de Antonia e a herança de sua mãe, a voz, a XVIII (Castle, 1995). Somente o clínico en-
fazem transcender (suspectus) a capacidade tende sua dor, que faz uma metáfora que usa
humana para o canto (Hoffmann, ([1818] um simbolismo similar ao de Erlkönig em
1885), além de causar a sua queda. Nem as “N’as-tu pas entendu, dans un rêve orgueil-
superstições do pai, nem a promessa de amor leux ainsi qu’une forêt par le vent balancée”
de Hoffmann fazem com que ela ceda ao im- (p. 333-334). No caso, as fantasias de Anto-
perativo categórico – ela não deve cantar. nia de ser amada pelo público têm como fon-
Segundo Hadlock (2016), o canto da mãe te o desejo de se tornar como a mãe. Mas há
nos remete a outro lied de Schubert, que nos uma corrupção, já que pelo canto ela não será
remete à roca de fiar, o Meine Ruh’ ist hin. A curada de sua aflição, uma vez que morre.
referência aqui é a Gretchen, essa apaixona-
da personagem faustiana que nos faz pensar Giulietta, ou o enigma do espelho
tanto na mulher domesticada como na trans- Se Antonia e sua mãe foram criadas a par-
gressora infanticida. tir da inspiração em Hortense Schneider, é
Antonia é como uma metamorfose de Giulietta, a terceira paixão de Hoffmann,
Stella, cantriz caprichosa. Uma Hortense que nos faz pensar mais no papel social que
Schneider, que reduziu a Belle Hélène a ca- a soprano francesa ocupou – o de uma das
racterísticas humanas, mas elevou os ensaios demimondaine, estrela do palco sustenta-
a proporções míticas e divinas, em virtude da por ricos homens muito interessados na
de suas exigências típicas da Angela, a mãe beleza delas. Havia uma corrupção moral e
de Antonia no original de E.T.A. Hoffmann. espiritual em Paris, muito ilustrada na pena
A escolha entre a vida social respeitada e a de Émile Zola (Hadlock, 1994). O mesmo
vida de cantora era o dilema de toda mu- Zola é lembrado por Freud (1916) na sua Li-
lher musicista no século XIX. Seduzida pela ção 17, quando fala da degeneração que afli-
promessa materna de se tornar uma grande ge mesmo os grandes homens como E.T.A.
estela dos palcos e enfeitiçada pelo violino Hoffmann.
do Dr. Miracle, os elementos reprimidos de Giulietta é uma cortesã com grande poder
sua psique ficcional vêm à tona de forma que de sedução. Ela já havia enfeitiçado Schlémil
ela não consegue controlar isso que a obri- quando Hoffmann entra em sua vida. É com

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Schlémil que Hoffmann duelaria pela chave século seguinte, numa cena de Madame Bo-
do quarto da cortesã. E se a perda da sombra vary (Flaubert, 1857), o barômetro e o es-
de Schlemil já pode nos provocar uma sensa- pelho são associados à sexualidade feminina.
ção de horror, um outro objeto nos faz pen- Em uma cena de fúria de Madame Bovary, o
sar no estranho (Castle, 1995). Para Freud barômetro, tal como o Violino de Cremona,
(1919), tanto as sombras quanto os espelhos se quebra em muitos pedaços. E o que dizer
são associados ao fenômeno do duplo: o Do- da superstição sobre espelhos quebrados? E a
ppelgänger. boneca despedaçada?
Mas, se na ópera já somos impostos a esses Segundo Castle (1995), espelhos foram
objetos que causam a sensação de estranheza, gradualmente introduzidos nos ambientes
somos comovidos também por uma opera- domésticos a partir da Idade Média, e eles
ção de castração em relação ao duplo. Na sua fomentaram o sentimento do individualis-
doce Ária do Diamante, Dapertutto descreve mo burguês mais do que qualquer dogma
a joia enquanto um espelho que prende a co- religioso ou corrente filosófica. Ademais, o
tovia – é nessa ária do Ato de Giulietta que espelho permite a autocontemplação, realça
se faz menção a uma ave, diferentemente dos a experiência do duplo e promove a amplia-
dois outros atos, quando Olímpia e Antonia ção da consciência de si mesmo. Para Freud
falam do amor desde uma metáfora aviária. (1919), o duplo gerado na imagem especular
E se ocorre esse intrigante deslocamento da garante uma certa segurança ao Eu. A auto-
dita metáfora no Ato de Giulietta, Huffmann contemplação, de fato, só é possível graças a
(1976) destacou que Dapertutto é o único vi- essa faculdade de podermos observar a nós
lão que não tem motivo evidente para frus- mesmos. Certa vez, Freud (1919), numa via-
trar Hoffmann: Coppélius quer também algo gem de trem, se deparou com a presença de
de Spalanzani, o Dr. Miracle quer Antonia, um outro que lhe causou grande estranheza.
mas Dapertutto deseja apenas o reflexo de Como se desmentisse o princípio da incer-
Hoffmann. teza intelectual (Jentsch, 1906a, 1906b),
Estaria o motivo de Dapertutto encerrado Freud (1919) alega que o seu desgosto em
por um enigma? Ele canta: “Allez!... pour te relação ao seu reflexo, que ele falhou ao reco-
livrer combat les yeux de Giulietta sont une nhecer o que era em realidade, é um vestígio
arme certaine” (p. 216), numa alusão aos do que se entende por estranho.
olhos da cortesã. Já Hoffmann, em sua “Que Segundo Huffmann (1976), é na cena da
d’un brûlant désir” (p. 203) não deixa de jogar perda do reflexo que Hoffmann se encontra
com uma condensação poética entre os ter- em perturbação psicológica próxima à que
mos “deux beaux yeux” (p. 207) e “chants jo- ele vive na Cena do Diagnóstico no Ato de
yeux” (p. 206-207), com amplo uso de cantos Antonia e na mirada de Olímpia com os ócu-
monotônicos e uma metáfora incendiária. los de Coppélius. Não se trata, portanto, de
Nesse trecho, Hoffmann fala do efeito que uma estranheza meramente provocada pelo
os olhos da cortesã têm sobre ele – eles põem vislumbre do seu duplo, mas da perda do
em chamas o seu coração, metáfora que pode que é familiar a todos que se olham no es-
aludir ao Homem de Areia em um sentido pelho. A perda do reflexo é associada a uma
distante, já que nos é mais familiar o uso das figura literária já muito estudada pela psica-
chamas para designar as paixões ardentes. Ao nálise,5 a do vampiro. Ainda que desconhe-
sucumbir à sedução de Giulietta, Hoffmann
entrega seu reflexo para esse objeto que, jun- 5. Além de quatro estudos de Maria Bonaparte, Melanie
to aos barômetros e galvanômetros, havia se Klein e Heinrich Racker estão entre os autores psicanalistas
das mais de cinco centenas de contribuições que comentam
tornado uma parte essencial da decoração o problema em questão. Von Krafft-Ebing (1886) também
doméstica no início do século XVIII. No estudou alguns casos de vampirismo.

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O Estranho em Les Contes d’Hoffmann,
de Jacques Offenbach

çamos qualquer indicação sobre Dapertutto enigmas. Ela enfeitiçava todos que tentas-
ser uma espécie de vampiro, em Vampiris- sem algo dela. Da Grécia no século V a.C.
mus (Hoffmann, [1819] 1892) sabemos de sabemos do cílice do Vaticano (H 569), do
uma mulher a quem não se recomenda amar. Pintor de Édipo, que ilustra o confronto es-
Com olhos privados pela faculdade da visão, cópico, tradição iconográfica que representa
a vampira detesta a luz. Ela pertence ao fol- o embate não por meio do enigma, mas pela
clore do Conde Drácula que, segundo Stoker sedução mortífera do olhar. O enigma envol-
(1897), não possuía reflexo no espelho. Nes- ve um desafio intelectual, e exige que o he-
se sentido, pensamos que o Ato de Giulietta rói não seja seduzido sexualmente por quem
ilustra, de forma disfarçada, o interesse de proferiu o enigma.
Dapertutto por Hoffmann. Ao torná-lo ho- Quando Giulietta canta “Je le veux, sagesse
mem sem reflexo no espelho, Dapertutto es- ou folie” (p. 235), ela convence Hoffmann de
taria ocultamente se alimentando, canibalis- que ele deve entregar seu reflexo no espelho
ticamente, de Hoffmann. Se nossa hipótese é para ela. O verso cantado por Giulietta tem o
verdadeira, Hoffmann não perde somente o mesmo motivo musical cantado por Krespel
reflexo, mas todo o seu sopro de vida. em “Misérable assassin” (p. 317), quando o
Mesmo que deixemos de lado a especu- conselheiro acusa o Dr. Miracle de ter cau-
lação sobre a identidade real de Dapertut- sado a morte de sua esposa, sugerindo ainda
to, Vampirismus (Hoffmann, [1819] 1892) uma ansiedade de perder a filha. Não é algo
nos oferece uma reflexão que pode explicar similar que teme Hoffmann ao não ceder
a diferenciação teórica de Freud (1919) em aos caprichos da cortesã? Ela entende que o
relação a Jentsch (1906a, 1906b). Hoffmann preço pelo seu amor envolve algo que é de
([1819] 1892) nos conta que a ideia de algo ordem pessoal para ele. Infelizmente, para o
causa mais horror do que a coisa ela mes- herói, tudo não passava de um estratagema,
ma. Segundo Cixous (1976), Jentsch (1906a, Giulietta não queria o seu amor, mas sim o
1906b) procura pelo Unheimliche apenas na diamante oferecido por Dapertutto. Ela o
vida cotidiana, ao passo que Freud (1919) es- abandona em uma gôndola, rindo do poeta
tuda também os casos da Literatura. Segun- na barcarolle – e morre envenenada.
do Hoffmann ([1819] 1892), para provocar
horror não é preciso um vampiro: basta uma Conclusões
ideia simples, como a de uma mera boneca. É Em 1872, Jacques Offenbach viveria a estreia
na construção do texto que o autor consegue do primeiro de seus Contos de Hoffmann mu-
transformar isso que é simples em algo que sicado. Na ocasião, Le Roi Carotte, da mesma
causa a sensação de horror. Nesse sentido, coletânea de Vampirismus, fala de uma joia
pensamos que a ansiedade ligada à castração roubada, tal como o cobiçado diamante de
não pode ser pensada fora do contexto literá- Dapertutto. Mas a Ária de Giulietta encontra
rio em que ela aparece: não é a incerteza in- suas origens em uma obra ainda mais anti-
telectual que causa a inquietante estranheza, ga de Offenbach (1864) – a sua Die Rheinni-
mas ela participa do jogo literário que emula xen. A barcarolle foi originalmente composta
o terror da castração. para essa obra em que a heroína Armgard
Mas é em outra criatura fabulosa ainda morre cantando tal como Antonia – mais
mais familiar à psicanalise que pensamos um exemplo de condensação dos contos de
durante o Ato de Giulietta. Hadlock (1994) Hoffmann.
destaca que Giulietta é a única paixão de Pensamos que Les Contes d’Hoffmann
Hoffmann que não possui um momento encerra não apenas três mulheres, tal como
de prima-donna. Sua sedução é feita pelos Reik sugeriu. Além de citações diretas ao
olhos. Pensamos na esfinge, que cantava Homem da Areia, o Violino de Cremona e à

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Daniel Röhe

Aventura na Noite de São Silvestre, sabemos o terror da castração está implicado também
de citações diretas ou indiretas de contos de na perda da mulher amada.
Hoffmann, como Don Juan, Kleinzach, Der Via de regra, pensamos no conceito do
Goldne Topf, Die Hypnotiste, Le Roi Carotte, estranho não apenas desde a leitura histo-
Vampirismus, Die Automate e Datura Fas- riográfica de Terry Castle. Interpretamos a
tuosa, entre outros que se associam semanti- criação de um gênero literário e o seu efeito
camente a eles, em especial quando falamos no leitor. Assim, o Romantismo alemão de
de uma força diabólica à qual o herói deve se E.T.A. Hoffmann faz emergir o gênero do
opor (Taylor, 1976). A ópera de Offenbach horror gótico, cuja finalidade é gerar descon-
se realiza por meio de operações de conden- forto e arrepio no leitor, como no caso das
sação e deslocamento entre várias obras de obras das irmãs Brontë, Poe, Doyle e Steven-
Hoffmann e a sua história pessoal. son. Mesmo que o romancista parta de uma
Destacamos também que a lógica de Reik ideia simples, como uma boneca, o leitor é
é frágil se observamos a frustração amorosa capaz de sentir uma sensação que evoca suas
com Stella porque ela é a quarta mulher com ansiedades de castração vividas na infância.
quem Hoffmann se decepciona, ainda que Um grande t(r)emor é sentido, em especial
ela não deixe de guardar semelhanças com as quando o leitor chega às frases finais do con-
amadas de outros contos, nos quais persona- to. É assim que, mesmo aquilo que é mais
gens paternais fantasmagóricos sempre in- familiar, promove a sensação de estranheza.
tercedem para proibir Hoffmann de se reali- Mas afinal, porque Freud (1919) citou Les
zar amorosamente. Seria o caso de emprestar Contes d’Hoffmann? Primeiramente, o am-
de Schneiderman a questão do Ideal do Eu e biente cultural envolvido pelo horror gótico
supor que a mulher amada é sempre uma va- sem dúvida influenciou o início de sua prá-
riante da mãe – e não somente Olímpia, como tica clínica – em especial, a hipnose, método
Reik sugere. Nesse sentido, o pai sempre im- que Freud usou após seguir a trilha científi-
põe uma proibição. Os contos de Giulietta e ca aprendida em Paris, diga-se de passagem,
Olímpia, em especial, sustentam essa análi- antes de morar no endereço do Ringtheater.
se porque são os únicos em que Hoffmann Por um lado, a temática de Les Contes d’Hof-
estava comprometido com uma mulher fmann está diretamente relacionada com o
com quem vivia sua vida burguesa modesta. início de sua prática, a qual ele acaba aban-
No ato de Antonia, sua frustração amoro- donando em prol da associação livre. Por
sa se deve justamente à ligação a uma amada outro, pensamos que sua experiência clínica
a qual ele é incapaz de convencer a viver a não o abandonou por completo ao longo dos
vida prometida a uma Madame Bovary – a cerca de 40 anos entre a estreia da ópera de
retórica do Dr. Miracle é mais eficaz. No Ato Offenbach e a publicação de Das Unheimli-
de Antonia, Hoffmann, ainda que não realize che. Por exemplo, quando Freud (1919) fala
sua própria fantasia incestuosa, falha em im- do mau-olhado, é difícil não pensar na ópera
pedir a manifestação da transgressão inter- de Offenbach (Reik, 1949).
dita pelas leis de parentesco – falha similar à No seu Prefácio, James Strachey (1955) se
que se aplica a Dona Anna, exigindo que um assume incapaz de datar quando Freud ini-
convidado de pedra, tal como um Drácula ciou sua escrita sobre o tema. Talvez seja um
na porta de seu castelo, aplique o seu casti- excesso de especulação propor que o germe
go. Em Sófocles (1883, 1265-1284), Édipo para Das Unheimliche (Freud, 1919) esteja na
sofre a perda da mulher amada, porque ela vivência pessoal de Freud com o incêndio no
é a mãe, e a Édipo não é devido amá-la com Ringtheater. Contudo, notamos que há algo
o pênis. Ao descobrir sua identidade, ele fere de estranho com Les Contes d’Hoffmann,
os seus olhos. Com Hoffmann, notamos que mas por uma razão musicológica.

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O Estranho em Les Contes d’Hoffmann,
de Jacques Offenbach

Via de regra, leituras psicanalíticas sobre Abstract


óperas e seus compositores buscam pelas Freud had a personal experience with Les Con-
representações de questões biográficas que tes d’Hoffmann, opera by Jacques Offenbach.
são traduzidas para a obra. Por exemplo, The opera deals with the horror of castration
Schwartzman (2016) estudou a biografia and the sufferings of love in more than four
de Claude Debussy para explicar passagens tales by E.T.A. Hoffmann in the adaptation
de sua Pelléas et Mélisande. Contudo, ocor- by the librettist Jules Barbier. The passion of
re que Les Contes d’Hoffmann foi composta the character Hoffman by Olympia might be
para um público já muito familiarizado com interpreted as a manifestation of fetishism. As
a tradução biográfica do próprio E.T.A. Hof- of Antonia, she seduces by means of her sing-
fmann para os seus contos góticos. E ainda ing and by the desire of being famous, just like
que a ópera apresente variantes grotescas Hortense Schneider, who interpreted Helen
da sua biografia, não deixa de fazer alusão a in an opera thrice quoted by Freud. Giulietta
questões pessoais de Hoffmann, como a sua was a seductive courtesan who represents the
separação da mãe, ainda enquanto jovem. role of a sphinx – by her eyes she threatens the
E que um tio cruel exerceu a função de criá hero, an Oedipus tormented by his family is-
-lo junto a uma tia (Faris, 1980). Ademais, sues. Educated by a severe uncle, E.T.A. Hoff-
não é apenas o conteúdo da ópera que está mann developed artistic sensibility through his
permeado de elementos estranhos, mas a aunt Sophie. Les Contes d’Hoffmann was the
própria história fantasmagórica do endere- last play by the Maestro of Monmartre, who
ço que abrigou uma casa de ópera vienense. pays his tribute to the one who left his mark in
A questão íntima de Freud com Les Contes History as a Supreme Court judge, writer and
d’Hoffmann implica que estudos ulteriores as a composer.
devam explorar outros detalhes dessa e de
outras óperas do Maestro de Monmartre. Keywords: Opera, Psychoanalysis, Uncanny,
E.T.A. Hoffmann, Jacques Offenbach.

108 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 54 | p. 95–110 | dezembro 2020


Daniel Röhe

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