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Question: Six Talks at Harvard (The Charles Eliot Norton Lectures), de Leonard
Bernstein, intitulada ‘A crise do século XX’ (1973)
Atenção para o fato de serem duas conferências em um link só. Bernstein começa a
falar de Mahler por volta de 1h:23min de vídeo. Mas vale a pena ver a conferência
desde o início, sobre tonalidade e atonalidade.
Link para a Nona Sinfonia de Mahler, sob regência de Leonard Bernstein, com a
Filarmônica de Viena: https://www.youtube.com/watch?v=wWxX-kf-2MI
Por que a nona sinfonia de Mahler (1908) como seu testamento musical? Por
que não a décima, um documento incompleto de tanta significação? Por que encerrar
uma conferência dedicada à crise do século XX com a Nona de Mahler? Depois de ter
se deslocado, com Schoenberg e Berg, até meados do século, por que recuar a
Mahler? Por que recuar àquele momento fatídico de 1908? Porque, como a pergunta
sem resposta de Charles Ives [que dão título à série de conferências de Bernstein],
escrita no mesmo ano, essa Nona é também uma grande pergunta. Mas é mais.
Contém uma resposta profundamente reveladora.
O século XX tem sido um drama mal escrito, desde seu começo, o oposto de um
drama grego. Ato I: ganância e hipocrisia levando a uma guerra genocida mundial;
injustiça e histeria do pós-guerra, uma explosão, um crash, totalitarismo. Ato II:
ganância e hipocrisia levando a uma guerra genocida mundial; injustiça e histeria do
pós-guerra, explosão, crash, totalitarismo. Ato III: ganância e histeria e não ouso
continuar.
Sinto essas conexões de modo muito forte e pessoal. Há alguns anos, quando
estava reintroduzindo, pela primeira vez, a música de Mahler em sua própria cidade,
Viena – de onde havia sido banido por anos pelos nazistas –, lá estava Frau Berg, a bela
e irradiante idosa viúva, sentada, em arrebatamento, em cada ensaio. Tornamo-nos
conhecidos e ela se tornou meu salto vivo de volta ao cruzamento conduzido/escrito
pela morte de Berg, Schoenberg e Mahler. E assim foi também com Alma Mahler, que
esteve presente a meus ensaios do Festival de Mahler em Nova Iorque. E comecei a
me sentir em contato direto com a mensagem de Mahler.
Hoje sabemos que mensagem foi aquela e foi a nona sinfonia que espalhou a
notícia. Mas eram notícias ruins e o mundo não se importou em escutá-las. Essa é a
verdadeira razão da negligência sofrida pela música de Mahler por cinquenta anos
após sua morte. Não as desculpas comuns que se costuma escutar – a música é muito
longa, muito difícil, muito bombástica. Simplesmente era verdade demais contar algo
demasiadamente terrível de escutar.
O que exatamente era essa notícia? O que Mahler viu? Três tipos de morte. O
primeiro, sua própria morte iminente, da qual ele estava intensamente consciente. As
barras de abertura da nona sinfonia são uma imitação da arritmia de seu coração que
falhava. O segundo, a morte da tonalidade, que, para ele, era a morte da própria
música, música tal como conhecia e amava. Todos os seus últimos trabalhos são uma
espécie de adeus à música assim como à vida. Pensem em Das Lied von Der Erde (A
Canção da Terra), com seu último Abschied (Adeus) e na controversa décima sinfonia
inacabada, que tenta alguns passos atentos em direção ao futuro de Schoenberg.
Mesmo essa décima sinfonia permanece para mim basicamente um movimento
completo, que é um adagio de quebrar o coração, dizendo adeus. Mas era um adeus
multiplicado. Estou convencido de que Mahler não teria concluído a décima, mesmo se
tivesse sobrevivido. Ele dissera tudo na nona.
Então, se Mahler sabia disso – e sua mensagem é tão clara – como nós,
sabendo-a também, conseguimos sobreviver? Por que ainda estamos aqui, lutando
para seguir em frente? Agora estamos face a face com a última verdadeira e derradeira
ambiguidade, que é o espírito humano. Essa é a ambiguidade mais fascinante de todas:
a de que, à medida que cada um de nós cresce, a marca de nossa maturidade é a de
que aprendemos a aceitar nossa mortalidade e, ainda assim, persistimos em nossa
busca pela imortalidade. Podemos acreditar que é tudo transitório, até que tudo
acabou. Ainda assim, acreditamos em um futuro, acreditamos. Saímos do cinema
depois de três horas da mais abjeta degenerescência em um filme como La dolce vita e
saímos de lá em asas, pela pura criatividade dele, e podemos voar para um futuro. O
mesmo é verdade depois de testemunhar a desesperança de Esperando Godot no
teatro, ou depois da violência agressiva de A sagração da Primavera no Concert Hall,
ou com o cinismo juvenil do álbum Revolver. Temos asas para voar. Temos de acreditar
nesse tipo de criatividade. Sei que eu acredito. Se não o fizesse, por que me daria ao
trabalho de fazer essas conferências? Certamente não para sentar aqui e fazer um
anuncio público do apocalipse. Tem que haver algo em nós, em mim, que me faz
querer continuar. E ensinar é acreditar em continuar. Dividir com vocês sentimentos
críticos sobre o passado, tentar descrever e acessar o presente, tudo isso implica uma
firme crença em um futuro.
Espero que eu responda à pergunta anterior – por que encerrar com Mahler
uma conferência que foi principalmente sobre Schoenberg. Porque Schoenberg é um
dos grandes exemplos do espírito humano em nosso século. Esse espírito que, afinal, é
nossa única esperança: ele é o protótipo do homem ambíguo compulsivamente
fazendo a engenharia de sua própria destruição e simultaneamente voando para o
futuro. Veremos como isso também é verdade para Stravinski em nossa última
conferência.
Só então chega o quarto e último movimento, o adagio, o último adeus. Toma a forma
de uma oração, o último coral de Mahler, seu hino de encerramento, por assim dizer.
Uma super oração pela restauração da vida, da tonalidade, da fé. Essa é uma
tonalidade sem vergonha, apresentada em todos os seus aspectos, indo da
simplicidade diatônica do hino melódico que a abre, passando por toda ambiguidade
cromática possível. É também uma oração apaixonada, movendo-se de um clímax para
o outro, cada um mais profético que o anterior. Mas não há soluções. E, em meio a
esse crescer de oração, há intermitentemente uma frieza inesperada, um espaço
aberto de transparência, como gelo pegando fogo, uma imobilidade zen de pura
meditação. Esse é todo um outro mundo de oração, de silenciosa aceitação. Mas,
novamente, não há soluções. Então, Heftig ausbrechend! [“com uma violenta
explosão”], ele escreve, novamente, a irrupção desesperada do coral, com intensidade
fortemente ampliada. Esse é o Mahler dual, de volta à sua oração ocidental, e, então,
de repente, de novo, congelando em sua oração oriental. Essa vacilação é sua
dualidade final. O último retorno do hino o encontra próximo da prostração, é tudo o
que ele pode dar e pelo que rezar: uma última tentativa em pranto e sacrifício. De
repente, esse clímax falha, não obtido, aquele que poderia ter funcionado, ter trazido
soluções. Essa última busca desesperada desaba aquém de seu alvo, diminui em uma
sugestão de resignação e, então, na própria resignação. E então se chega à última e
inacreditável página. E essa página, eu penso, é o mais próximo do que já chegamos,
em qualquer obra de arte, no experimentar o próprio ato de morrer, de desistir de
tudo. A lentidão dessa página é aterrorizante. Ele escreve: adagissimo, a mais lenta
direção musical possível. E como se isso ainda não bastasse, ele escreve langsam,
lento, ersterbend, sumindo, zögernd, hesitante. E se isso não fosse suficiente para
indicar a quase parada do tempo, ele acrescenta äusserst langsam, extremamente
lento, nos últimos compassos. É aterrorizante e paralisante, à medida que os fios
[strands] do som se desintegram. Nós nos agarramos a eles, oscilando entre esperança
e submissão e, um a um, esses fios entrelaçados que nos conectam à vida derretem,
desaparecendo por entre nossos dedos, enquanto os seguramos; nos apegamos a eles,
à medida que se desmaterializam. Seguramos dois, então, um, e, de repente, nenhum;
por um momento petrificante, há apenas silêncio. Então, novamente, um fio; um fio
quebrado; dois fios; um; nenhum. We are half in love with easeful death / (…) / Now
more than ever seems it rich to die / To cease upon the midnight with no pain [Me
enamorei, de meio-amor, da Morte calma / (…) / Agora, mais que nunca, é válido
morrer, / Cessar, à meia-noite, sem nenhum ruído]1.
Cessando, perdemos tudo, e, no fim de Mahler, ganhamos tudo.
1
Bernstein recita um fragmento de Ode to a nightingale, de John Keats. Mas o faz em primeira pessoa
do plural, no presente do indicativo – We are half in love... –, quando, no original, é I have been half in
love...