Você está na página 1de 12

Tradução publicada no site do Kátharsis.

Traduzido por Bruno Bianchi.

Publicado em:
LUKÁCS, G. Tendenz oder Parteilichkeit? In: Essays über Realismus (Werke, Bd. 4). Berlin:
Luchterhand, 1971, pp. 23-34. Escrito e publicado originalmente m Die Linkskurve, IV, nº 6,
1932, pp. 13-21.

Tendência ou Partidariedade

G. Lukács

A questão de saber se a nossa literatura é tendenciosa não é, de modo algum, uma


questão de terminologia. Se propusermos a palavra partidariedade [Parteilichkeit] (em vez de
"tendência" [Tendenz]) para designar uma das características mais essenciais da nossa literatura,
fica claro que ela contém um novo conhecimento teórico da natureza da nossa literatura. Ao
fazê-lo, queremos eliminar um complexo de incongruências e superficialidades teóricas da
nossa concepção da literatura; queremos formular a peculiaridade da nossa literatura de forma
mais clara e inequivocamente do que antes.

O que significa o termo "tendência"? E como é que entrou na nossa terminologia


literária? Para início de conversa, a palavra tendência é muito ambígua. Acima de tudo, significa
"lei cuja aplicação absoluta é contida, refreada e enfraquecida por circunstâncias contra-
arrestantes"; um significado sem interesse imediato para nós, por enquanto, mas que tinha de
ser mencionado porque não pode desaparecer do nosso campo de visão.

Mais importante, e mais próximo da nossa pergunta, é o significado segundo o qual


tendência significa aspiração, esforço. Está na linguagem do governo e da polícia desde a
primeira metade do século XIX. “Tendência inflamatória”, etc. encontramos nas instruções de
censura, proibições de livros das massas desta época. Para nós, é essencial que se dê um sentido
subjetivo à tendência. Em sua crítica à última instrução prussiana sobre censura, o jovem Marx
categorizou esse aspecto como um sinal de arbitrariedade, a "jurisdição da suspeita"; pois são
leis "que fazem de seu critério principal não as ações em si, mas a atitude do praticante"
(Anekdota, 1843)1. Infelizmente, não posso discorrer aqui a história exata de como -
aparentemente - esta terminologia jurídico-policial se tornou uma terminologia estética. (Tanto
quanto sei, este é, predominantemente, um desenvolvimento alemão; os dramas de tendência
francesa de meados do século XIX chamam-se, por exemplo, drames à thèse). Esta mudança,
no entanto, já começa a aparecer na década de 1840. Em 1841, por exemplo, numa época em
que ainda estava sob a influência do movimento da "Jovem Alemanha", Engels fala sobre a
"tendência" de Arndt (Kritik aus dem “Telegraph”, MEGA II, p. 96)2. Também entre os Poemas
Contemporâneos de Heine encontramos uma "tendência" como título, cujo último verso diz o
seguinte:

Espalhem, ressoem, trovejem diariamente


Até que o último opressor fuja –
Canta só nesta direção,
Mas mantém a tua poesia
Apenas o mais geral possível

Esta conclusão zombeteira de Heine, que neste mesmo período estava mais distante da
"arte pura", da "falta de tendência" do que antes ou depois, mostra que Heine - com um
verdadeiro instinto poético - tinha fortes reservas sobre a essência da "arte da tendência" da
época e, portanto, contra a expressão "tendência". Aqui (como em outros escritos simultâneos)
ele lutou contra o subjetivista, o intelectual e, portanto, contra a abstração geral da literatura de
"tendência". Falaremos rapidamente sobre as razões sociais desta abstração. Aqui queremos
apenas afirmar com um exemplo a justificação destas objeções zombeteiras, com um exemplo
de outro poeta que também via a poesia como um meio de luta. No duelo Herwegh-Freiligrath
sobre o viés ou não partidário do poeta (1843), conflito de grande importância na história da
literatura, Herwegh escreve:

Deixa um poema ser uma espada em tuas mãos.


Escolhe um lema, e estarei satisfeito,
Ainda que seja diferente do meu...

1
Em inglês, presente no Collected Works, vol. 1, p. 119.
2
Em inglês, presente no Collected Workd, vol. 2, p. 137.
Ele luta a favor do partidarismo em geral, contra a interpretação de Freiligrath da
época: "O poeta permanece numa torre de observação mais alta do que as muralhas do partido".
Há dois traços notáveis. Primeiro, de acordo com Herwegh a questão do partidarismo ou não
(ou, de acordo com a terminologia posterior: "arte da tendência" ou "arte pura") é uma decisão
subjetiva, não uma lei inevitável de qualquer literatura, como produto e arma da luta de classes.
Em segundo lugar, Herwegh aceita todo partidarismo - incluindo o de seu adversário - como
um progresso de desenvolvimento; assim, ele interpreta a questão do partidarismo (a
"tendência") por uma via formal.

Não há necessidade de explicar em pormenor o quanto toda a visão de Herwegh se


baseia em ilusões. Mas teve que ser citado e brevemente analisado, porque ilusões do mesmo
tipo são subjacentes a qualquer teoria burguesa a favor ou contra a "arte de tendência", e é
menos importante para nós expor essas ilusões como ilusões do que descobrir suas raízes na
classe burguesa. Isto é particularmente importante para nós porque as formulações deste
complexo de questões que foram decisivas para o movimento literário revolucionário
proletário, com Franz Mehring, surgiram muito fortemente sob a influência da "arte da
tendência" burguesa, e apesar de todos os esforços de Mehring, não ultrapassaram as
contradições não resolvidas da questão.

É compreensível, de fato evidente, que a literatura proletária inicial esteja ligada à


"literatura de tendência" dos restos esparsos da burguesia progressista e, assim, tenha adotado
a teoria e a prática da "tendência". Tanto mais que, desde os seus primórdios, foi forçada a
adotar, de forma intensa, as posições tomadas por essa literatura burguesa progressista de seu
tempo. "Tendência", em outras palavras é algo muito relativo. Isto é, na teoria literária burguesa,
o que é até oficialmente reconhecido hoje, uma obra aparece como “tendenciosa" quando possui
uma base classista e é hostil à orientação dominante – em termos de classe; A própria
“tendência” não é uma tendência, mas sim somente aquela do oponente. Estas posições de luta,
que as facções literárias individuais da burguesia tomam umas contra as outras, onde, é claro,
as modas mais progressistas política e socialmente foram recriminadas por sua “tendência”, ao
invés das modas reacionárias, foram tomadas com vigor redobrado contra as primeiras
abordagens da literatura proletária. Toda representação da sociedade, seja ela do próprio
proletariado, seja ela da burguesia, se representada do ponto de vista do proletariado ou
simplesmente de um ponto de vista próximo ao dele, era considerada "tendenciosa", e todos os
argumentos sobre seu caráter "não-artístico", "hostil à arte", eram apresentados. Ao mesmo
tempo, a "arte pura" burguesa, por um lado, se tornou cada vez mais carente de conteúdo e
realidade, e por outro lado - precisamente por isso - cada vez mais tendenciosa, de modo que a
condenação da "arte da tendência" proletária se tornou cada vez mais hipócrita. Sob tais
circunstâncias, é compreensível que a literatura proletária jovem tenha tomado o insulto que o
inimigo de classe lhe lançou como designação honorária, como fizeram os holandeses nos
séculos XVI a XVII com o termo Geusen (mendigos) ou os sans-culottes na Revolução
Francesa. Por muito tempo - com orgulho polêmico - chamamos nossa literatura de "literatura
de tendência".

Mas apesar de compreensível a tomada desta posição teórica, isto não significa que ela
seja teoricamente correta. Pelo contrário. Com a formulação burguesa do problema, com a
terminologia burguesa, adota invisivelmente todo o ecletismo burguês do problema, suas
contradições burguesas-ecléticas, não abolidas, mas em parte maquiadas, em parte rigidamente
polarizadas. Com isto queremos dizer o contraste entre "arte pura" e "tendência". Sobre esta
base, há geralmente duas respostas: por um lado, desprezamos a "arte pura” e sua "perfeição da
forma"; A literatura tem uma função social na luta de classes que determina o seu conteúdo;
cumprimos conscientemente esta função e não nos preocupamos com a decadente questão
burguesa da forma (estreitamento da literatura à agitação quotidiana, o ponto de vista de um
materialismo mecânico na teoria literária). Do outro lado, reconhecemos uma "estética" e
tentamos reconciliá-la a "tendência" extraída do campo "social", do "político", ou seja, de um
reino que é "estranho à arte". Isto significa que - ecleticamente - a tarefa inesgotável é a de
trabalhar um componente "estranho à arte" na obra de arte. Assim, por um lado é reconhecido
(tacitamente) a Imanência Estética, a autonomia artística "pura" da obra de arte, isto é, a
predominância da forma sobre o conteúdo; por outro lado, no entanto, exige-se que um
conteúdo não artístico (a "tendência"), segundo este ponto de vista, deve prevalecer. O resultado
é um idealismo eclético.

Essas contradições não resolvidas - e, neste campo, insolúveis - determinam a incerteza


de Franz Mehring nesta questão. Como é sabido, Mehring também considera a estética de Kant,
que é decisiva para a teoria da arte da burguesia em decadência, como uma base teórica
necessária. A visão básica expressa nela, a "intencionalidade sem propósito", a exclusão de
qualquer “interesse” do juízo da arte, é obviamente uma teoria da "arte pura". O
aperfeiçoamento desta teoria por Schiller, que Mehring assume, a "destruição do material pela
forma", apenas reforça esta tendência subjetiva-idealista. Portanto, é bastante consistente que a
teoria da arte da burguesia decadente use esses pontos de vista como armas para a luta contra a
"tendência". Ela poderia fazer isso ainda mais com sucesso porque os adversários dessa prática,
os seguidores da "tendência" (na medida em que não representavam um materialismo mecânico
vulgarizado) se colocaram sobre a base dessa mesma teoria e foram, portanto, apenas muito
inconsistentemente e ecleticamente capazes de se defender das conclusões necessárias e
inevitáveis tiradas dessa teoria.

Isso é bem visível em Mehring, o mais importante teórico literário alemão da virada
do século, que superou em muito seus contemporâneos burgueses. O ecletismo de Mehring está
muito claramente expresso no fato de que ele só conseguiu encontrar uma solução "por um lado,
por outro" para a questão central da forma e do conteúdo. Mehring percebe que o
reconhecimento incondicional da resolução do problema (subjetivo-idealista) de Kant-Schiller
leva ao reconhecimento da "atemporalidade" ou da "supratemporalidade" da arte e, portanto, à
primazia da forma e à rejeição de qualquer "tendência". E porque busca rejeitar essa conclusão
(sem criticar as suas pré-condições), ele escreve: "Por conseguinte, o gosto depende também
do conteúdo e não apenas da forma". Este ecletismo, que dá uma resposta absolutamente vaga
à questão decisiva, mostra claramente quão pouco Mehring foi além do problema fundamental
de Kant-Schiller e, portanto, da estética burguesa. O limite desta concepção é que a questão da
"tendência" se coloca como uma questão da relação entre arte e moralidade, de forma que o
carácter idealista subjetivo da "tendência" emerge claramente: "Tendência" é uma exigência,
um dever, um ideal que o escritor justapõe à realidade; não é uma tendência de desenvolvimento
social em si, tornada apenas consciente pelo autor (no sentido de Marx), mas um mandamento
(subjetivamente concebido) cuja realidade é exigida a atender. Por trás desta questão está o
seguinte: primeiro, a separação rígida e circunscrita das áreas individuais da atividade humana
umas das outras, ou seja, a reflexão ideológica da divisão capitalista do trabalho, que, no
entanto, não é submetida e criticada sob um prisma marxista como um fato, como consequência
desta divisão do trabalho, mas, pelo contrário, é entendida ideologicamente como uma lei
"eterna" da separação de "essências" e feita o ponto de partida de todas as análises posteriores,
de uma forma bastante ahistórica; em segundo lugar, que a atividade humana, a prática, não é
vista na sua produção real, objetiva ou material, voltada para a mudança da sociedade, mas na
sua reflexão ideológica distorcida e invertida (como "moral"), razão pela qual – de forma
também ahistórica – a distorção ideológica resultante deve ser o ponto de partida teórico; em
terceiro lugar, nesta justaposição de arte e moralidade há a ilusão acrítica e ideológica do ser
humano individual como "átomo" da sociedade (cf. sobre esta ilusão A Sagrada Família) e ao
mesmo tempo a visão fetichizada da sociedade como uma “coisa”, como algo que envolve o
ser humano como uma realidade "estranha" (teoria do meio ambiente), em vez da soma e
sistema, o resultado da atividade humana (mesmo que não seja consciente ou intencionada no
capitalismo); em quarto lugar, o isolamento da obra de arte da prática social, da produção
material e da luta de classes corresponde a esta oposição rígida e mecanicista das pessoas
(individuais) e da sociedade, que está subjacente a toda concepção burguesa de "moral", à
concepção da tarefa da arte como a realização de um "ideal estético"; em quinto lugar, deste
ponto de vista, a arte e a moralidade não são resultados da mesma prática social, mas sim
realizações de ideais diferentes, divergentes, rigidamente opostas (no caso de Kant: "interesse"
e "indiferença"). Para a relação e solução do problema da literatura e "tendência" ("moral"),
podemos aplicar o que Hegel disse sobre a concepção não-dialética de corpo e alma: "Pois, de
fato, quando ambos são assumidos como absolutamente independentes um do outro, eles são
tão impenetráveis um para o outro quanto uma matéria é impenetrável por outra"3.

Pense em quaisquer escritos e teorias literárias do século XIX e você verá que nenhum
deles poderia escapar das consequências necessárias desta abordagem, que surgiu do ser social
da classe burguesa e especialmente dos seus escritores (fetichismo etc.). Havia apenas a escolha
de ou conscientemente (mas por essa mesma razão: apenas aparentemente) renunciar a
"tendência" e criar uma "arte pura", cujo resultado seria uma figuração tendenciosamente feita
da realidade, ou seja, "literatura de tendência" no pior sentido da palavra4. Ou, por outro lado,
a “tendência” poderia ser subjetivamente contraposta à representação da realidade de uma
forma moralizante e pregadora, trazendo um elemento estranho à representação literária.

3
HEGEL, G.W.F. Werke vol. 10, 1986, §389. p. 44.
4
Esta ajuste tendencioso da realidade para introduzir de maneira artisticamente orgânica uma "tendência", que não
surge organicamente do material da realidade, não se encontra apenas na má literatura da burguesia em declínio.
Para dar apenas alguns exemplos, encontramo-los na segunda metade de "afinidades eletivas" de Goethe, nos
dramas de Hebbel após 1848, em Dostoievski, de quem Gorki diz, com razão, que difama seus próprios
personagens.
Mehring também não encontrar uma saída para esta rede de contradições, o que é
compreensível agora. Se, por exemplo, ele critica a "tendência não artística" de Schilller em
Wilhelm Tell e os "meios não artísticos" de Heinrich von Kleist, estas são apenas soluções
ecléticas, pois ele não está em posição, dadas as suas premissas, e é incapaz de demonstrar
concretamente o que é teórica e praticamente uma "tendência artística". Ele não está em posição
de o fazer pois se sustenta na concepção burguesa da arte, cujo fundamento não podia abandonar
consistentemente, de que o "ideal" da arte é precisamente a "falta de tendência", que só as
circunstâncias da arte que são desfavoráveis para o desenvolvimento da arte (tal como a
agudização dos conflitos de classe) forçam uma característica de “tendência” sobre a arte. Como
um revolucionário honesto, Mehring se esforça para tirar as conclusões de classe adequadas,
ou seja, ele afirma a "tendência". Mas a sua opinião de classe política está em indissociável
contradição com as suas percepções artísticas. O próprio Mehring fala desta ligação, sem
perceber a amplitude de seu escopo: "em todos os tempos revolucionários, em todas as classes
que lutam pela sua libertação, o gosto será sempre significativamente manchado pela lógica e
pela moralidade, o que traduzido em termos filosóficos apenas significa que, onde o
conhecimento e o poder do desejo são intensos, o julgamento estético está sempre
comprometido”.

Aqui já temos em embrião a teoria literária do trotskismo. Pois é claro que se, segundo
Trotsky, "a ditadura do proletariado não é uma organização cultural-produtiva de uma nova
sociedade, mas uma ordem revolucionária de luta para atingi-la", se mais tarde ele opõe
rigidamente socialismo e luta de classes entre si, então para, correspondendo à intensificação
da luta de classes e à concretização de todos os problemas nela existentes, a cultura ocupa o
mesmo lugar que a "arte pura" (kantiana) ocupava para Mehring. "A literatura revolucionária
deve estar impregnada do espírito do ódio social... [é, portanto, apenas uma 'arte de tendência'
– G.L.]. No socialismo, a base da sociedade é a solidariedade [assim uma 'arte pura', uma
'cultura real' é possível - G.L.]"5. Portanto, não é coincidência que o os escritos de Mehring,
adotado de forma acrítica na nossa literatura e teoria cultural, tenha intensificado o trotskismo.
Da mesma forma, qualquer distorção mecanicista dos nossos objetivos literários - consciente
ou inconsciente, intencional ou não intencional – acaba fazendo uma curva ao trotskismo.

5
TROTSKI, L. Literatura e Revolução
Não pode ser nossa tarefa aqui analisar todos os erros teóricos desta concepção; isso
já foi feito, em grande medida, na luta contra o trotskismo. Temos aqui apenas de chamar a
atenção para o erro em todo este complexo de questões que é decisivo para a nossa pergunta
atual: à visão errada e não dialética do fator subjectivo. Marx e Engels expressam repetida e
inequivocamente as formulações dialéticas corretas sobre a dialética do fator subjetivo e
objetivo do desenvolvimento social. Mencionarei apenas uma citação que é particularmente
importante para o esclarecimento da nossa questão: “A classe trabalhadora... não têm nenhuma
utopia já pronta para introduzir par décret du peuple. Sabem que, para atingir sua própria
emancipação, e com ela essa forma superior de vida para a qual a sociedade atual, por seu
próprio desenvolvimento econômico, tende irresistivelmente, terão de passar por longas lutas,
por uma série de processos históricos que transformarão as circunstâncias e os homens. Eles
não têm nenhum ideal a realizar, mas sim querem libertar os elementos da nova sociedade dos
quais a velha e agonizante sociedade burguesa está grávida”6.

Assim, é precisamente o reconhecimento da necessidade social que - ao contrário da


visão mecanicista e idealista - determina o lugar correto (e importante) do fator subjetivo no
desenvolvimento. Determina-os para o proletariado de forma diferente das outras classes. A
frase "a classe trabalhadora não tem ideais para realizar" aplica-se apenas ao proletariado. Para
as outras classes (também para o período revolucionário da burguesia) aplica-se as palavras de
Engels: "a ideologia é um processo que é realizado com consciência pelo chamado pensador,
mas com uma falsa consciência" (Carta a Mehring de 14 de julho de 1893). Esta "falsa
consciência" resulta então no fato de que a atividade humana consciente no processo histórico
ou não possui nenhum papel ativo, ou uma autossuficiência expandida ou um papel central; que
se reflete também no fato de que o fator subjetivo aparece na forma de "moralidade" e seus
objetivos assumem a forma de "ideal". Mesmo os escritores e pensadores burgueses que
penetraram na dialética da história de forma proporcionalmente profunda se perdem na mística
nebulosa ou permanecem em contradições que não podem ignorar. (Por exemplo Hegel, a quem
Marx atribui tanto um "idealismo acrítico" quanto um "positivismo acrítico"). Mesmo que
cheguem à realização das forças objetivas e reais propulsoras do desenvolvimento social, o
fazem com "falsa consciência", sem intenção clara, muitas vezes mesmo contra a vontade, a
consciência e a intenção. Assim, Engels enfatiza sobre Balzac (Linkskurve, Março de 1932) que

6
MARX, K. A Guerra Civil na França, 2011, p. 60.
sua intenção consciente era uma glorificação da classe decadente do antigo regime francês, mas
que ele foi "forçado a ir contra as simpatias e preconceitos políticas da sua própria classe",
apresentando um quadro correto e exaustivo da sociedade de seu tempo. A sua "tendência" está
assim em contradição com a sua representação, e esta, é significativa apesar da sua “tendência”.
(A situação é similar com Tolstoi e uma série de outros grandes escritores burgueses).

Esta barreira ideológica não existe para o proletariado. Seu ser social torna possível
para o proletariado (e, portanto, para o escritor proletário-revolucionário) atravessar essa
barreira, para ver claramente as relações de classe e o desenvolvimento da luta de classes por
trás das formas fetichizadas da sociedade capitalista. A clareza sobre essas conexões, a clareza
sobre suas leis de desenvolvimento significa, ao mesmo tempo, a clareza sobre a eficácia
histórica do próprio proletário, sobre o papel do fator subjetivo nesse desenvolvimento. Tanto
sobre a determinação deste fator subjectivo por pelo desenvolvimento histórico-económico
objetivo, como sobre a função ativa deste fator subjectivo na transformação das circunstâncias
objetivas. Este conhecimento não é um produto mecânico e direto do ser social. Ele deve ser
desenvolvido. O processo desta elaboração, no entanto, é também o produto da disposição
interna (material e ideológica) do proletariado, bem como o desafio do desenvolvimento do
proletariado, de "classe em-si" a "classe para-si"; ou seja, a exigência de sua organização interna
para cumprir sua tarefa histórico-mundial (emergência de sindicatos e partidos, seu
desenvolvimento posterior, etc.).

Se o fator subjetivo da história é visto dessa forma - e o escritor revolucionário


proletário que domina o materialismo dialético também o deve compreender - então para ele
todos os problemas que tratamos acima em conexão com a "tendência" deixam de ser
problemas. Ele rejeita o dilema da "arte pura" e da "arte da tendência". Pois em sua
representação, que é uma representação da realidade objetiva com sua real força motor, com
suas reais tendências de desenvolvimento, não há espaço para um "ideal", seja moral ou estético.
Ele não traz nenhuma exigência "de fora" para sua representação da realidade, porque como
são momentos integrantes da própria realidade objetiva, de onde emergem e que em
contrapartida ajudam a moldar, sua própria representação da realidade deve incluir o destino
daquelas exigências que surgem da luta de classes, se ele quiser descrever a realidade
corretamente, isto é, dialeticamente. Ao mesmo tempo ele rejeita o outro dilema da
incorporação "tendenciosa" da "tendência" na representação, a contraposição nua e crua de
"tendência" e representação da realidade. Não precisa distorcer a realidade, não precisa ajustá-
la, não precisa retocá-la "tendenciosamente", porque sua representação - se for correta, dialética
- se baseia precisamente no reconhecimento das tendências (no sentido marxista legítimo da
palavra) que prevalecem no desenvolvimento objetivo. E nenhuma "tendência" pode e deve ser
colocada contra esta realidade objetiva como uma "demanda", pois as demandas que o escritor
representa são partes integrantes do auto-movimento da realidade em si, ao mesmo tempo
consequências e pré-requisitos de seu auto-movimento.

Também fica claro de tudo isso que a rejeição da "tendência" sob nenhuma
circunstância significa que o escritor se encontra numa "torre superior", nos termos de
Freiligrath, maior "do que as ameias do partido" (o que Mehring tende a fazer de tempos em
tempos apesar da defesa eclética da "tendência"). Pelo contrário, a correta representação
dialética e a escrita da realidade pressupõem a partidariedade do escritor. Naturalmente, mais
uma vez, não uma “partidariedade” no sentido de Herwegh, abstrata, subjetivista, arbitrária,
mas partidariedade para aquela classe que é a portadora do progresso histórico em nosso
período: para o proletariado; partidariedade para aquela "parte da classe, aquele partido cujos
membros diferem dos outros proletários apenas porque, por um lado, eles enfatizam e afirmam
nas várias lutas nacionais dos proletários os interesses comuns do proletariado como um todo,
independentemente da nacionalidade, e, por outro lado, porque eles sempre representam os
interesses de todo o movimento nos vários estágios de desenvolvimento em que a luta entre o
proletariado e a burguesia acontece".

Essa partidariedade não contradiz - como "tendência", como "representação


tendenciosa" - a objetividade na representação e reprodução da realidade. Pelo contrário, é o
pré-requisito para a verdadeira - dialética - objetividade. Em contraste com a "tendência", onde
defender algo significa sua glorificação idealista, e uma posição contrária significa distorcer,
em contraste com a "imparcialidade", cujo lema (nunca realizado na prática) é: "entender tudo
é perdoar tudo", uma atitude que contém uma afirmação inconsciente e, portanto, quase sempre
desonesta. Esta partidariedade defende precisamente o que torna possível o reconhecimento e
a configuração de todo o processo como uma totalidade sintética das suas verdadeiras forças
motrizes, como uma reprodução constante e aumentada das contradições dialéticas em que se
baseia. Mas essa objetividade se baseia na correta - dialética - determinação da relação da
subjetividade com a objetividade, do fator subjetivo com o desenvolvimento objetivo; na
unidade dialética da teoria e da prática. As análises de Marx, Engels e Lenin nos dão os modelos
de como esta unidade dialética deve ser entendida. Vou dar apenas um exemplo: “a burguesia
encarrega-se de desenvolver os trusts, de empurrar as crianças e as mulheres para as fábricas,
de aí as martirizar, perverter e condenar à extrema miséria. Nós não ‘reivindicamos’ tal
desenvolvimento, não o ‘apoiamos’, lutamos contra ele. Mas como lutamos? Sabemos que os
trusts e o trabalho das mulheres nas fábricas são progressivos. Não queremos andar para trás,
para o trabalho artesanal, para o capitalismo pré-monopolista, para o trabalho doméstico das
mulheres. Avante, através dos trusts, etc., e mais além, para o socialismo!”7.

Partidariedade neste sentido não é, portanto, um novo rótulo para uma coisa antiga.
Portanto, não se trata de substituirmos agora a palavra "tendência" pela palavra
"partidariedade", e todo o resto permanece como estava. Não. A terminologia nunca é aleatória.
O fato de termos adotado a palavra "tendência" da teoria e prática literárias da oposição
burguesa (e não do auge do seu desenvolvimento revolucionário) foi, como foi demonstrado,
um sinal de que nós trazemos neste termo uma bagagem ideológica não negligenciável. Hoje,
quando sujeitamos a herança ideológica da Segunda Internacional a uma revisão fundamental
em todos os aspectos da nossa teoria e prática, devemos também prestar muita atenção, na nossa
teoria e prática literárias para que não carreguemos conosco a bagagem burguesa trazida pela
Segunda Internacional, o que somente obstruirá o nosso progresso.

Tentamos brevemente indicar o que a teoria da “tendência” significa. Finalmente,


façamos apenas a seguinte pergunta: esta teoria não teve qualquer influência na nossa prática?
Claro que sim. Não consideremos nisso apenas como uma prática literária do trotskismo em
todas as suas variedades, consciente e inconsciente, mas também nossa melhor literatura até
hoje. Será que ela realmente conseguiu esse avanço para a partidariedade que torna possível
uma representação dialético-objetiva do processo global da nossa época? Tão logo a questão é
levantada, sua resposta é imediatamente negativa. Nossa literatura, mesmo em seus melhores
produtos, ainda está cheia de "tendências". Pois nem sempre obtém êxito, nem mesmo chega
perto, de representar o que a parte do proletariado que possui consciência de classe quer e faz,
do ponto de vista da compreensão das forças motrizes do processo global, e como representante
dos grandes interesses histórico-mundiais da classe trabalhadora, como uma vontade e um ato

7
LENIN, V.I. Collected Workd, vol. 23, p. 97.
que se originam dialeticamente deste processo global em si, que são os momentos
indispensáveis deste processo objetivo da própria realidade. A representação do fator subjetivo
do desenvolvimento revolucionário é frequentemente substituída por um mero "desejo"
subjetivo (porque não representado) do autor: uma “tendência”. E se o autor apresenta esse
desejo como objetivo e realizado, em vez de representar o fator subjetivo dialeticamente como
tal, a representação torna-se "tendenciosa". Não temos razões para negar estes erros e
deficiências. Muito menos para deslocá-los para o campo dos "erros técnicos" ou da "inaptidão
técnica". O método que expõe os nossos erros, que revela a sua raiz - a herança não liquidada
da Segunda Internacional - é ao mesmo tempo o método que nos ajuda a superar esses erros: o
materialismo dialético, o marxismo-leninismo. A partidariedade no lugar da "tendência" é um
ponto - importante - onde podemos e devemos fazer este avanço na promoção do marxismo-
leninismo para o nosso método criativo.

Você também pode gostar