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INVESTIGAR

A PARTIR
DA ACÇÃO
INTERCULTURAL
ID_CAI (Colectivo de Acção e Investigação)
José Carlos de Paiva e Catarina S. Martins (org.)
INVESTIGAR A PARTIR DA ACÇÃO INTERCULTURAL
ID_CAI (Colectivo de Acção e Investigação)

Autores: José Carlos de Paiva, e Catarina S. Martins (org.)


Edição: GESTO Cooperativa Cultural, CRL
Rua José Falcão, 107 - 111, 4050-317 Porto

1ª edição, Porto, Dezembro de 2011


ISBN: 978-972-9171-76-5

Design e Produção Gráfica: GESTO


ÍNDICE

5 Introdução
– Vítor Martins
9 Modos de ver a escola: a produção de subjectividades dentro
de espaços educacionais.
– Catarina Martins, Catarina Almeida, Inês Miguel e Paulo Fernandes
29 No Sertão Pernambuco à procura de uma imagem mais nítida do
descontentamento como artistas, saboreando mungunzá…
– José Carlos de Paiva
39 Arte | Outra introdução política para o desenvolvimento
– Rita Rainho
47 Saboreie mas não engula: Cozinhe você mesmo os meios para a
sua expressão
– Tiago Assis
55 Mugunzá ou Cachupa: O direito à conquista e à descoberta de
uma nova receita pedagógica.
– Mónica Faria
65 Interrupção: um movimento intercultural
– Joana Mateus

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Introdução
Vítor Martins

Enquanto for possível distinguir a arte da vida, é apenas sobreviver. E divertirmo-nos, que é a única
porque tudo vai mal. É porque a arte é um traba- compensação ‘racionalmente’ aceitável, porque en-
lho e a vida uma sobrevivência. Mas nem a arte se quanto ‘recompensa merecida’ está no seguimento
dá bem como trabalho nem a vida como sobrevi- do ‘apenas trabalhar’, e enquanto mero momento
vência. Não sabemos como vai ser quando não for de distensão não põe em causa, antes reforça a
assim, mas pelo que podemos pressentir será então irrecusabilidade do ‘apenas sobreviver’. Gostaria
difícil distinguir entre elas porque o que pressen- pois que pensássemos que não há arte senão a da
timos é que ‘fazer arte’ será muito próximo, senão diversão, e sentíssemos assim o quão pouco séria
o mesmo, que viver. E se podemos pressenti-lo e interessante ela é, o quão triste e mísera é a sua
já hoje é, provavelmente, porque já foi assim em condição. E víssemos que ‘fazer arte’ é um trabalho
tempos muito antigos (tempos arcaicos, ou pelo como outro qualquer, tão estúpido, repetitivo, insa-
menos, arquetípicos), é porque a natureza à qual tisfatório, cruel, pesado, numa palavra, tão morto
estamos inelutavelmente ligados nos não deixa como qualquer outro. E assim perdêssemos toda
‘esquecê-lo’. É também o que nos vale, este pres- a esperança de encontrar a vida senão na sobrevi-
sentimento, para podermos afirmar seguramente, vência. E assim perdêssemos toda a esperança…
quando tanta gente tenta confundir-nos, que a Sim, nem em todo o lado isto é tanto assim,
nossa ‘vida’ não é realmente vida, porque se fosse apesar da globalização estar a fazer tudo para que
vida se pareceria muito com arte, e que a nossa seja. Há uns anos já que o Movimento Intercultural
‘arte’ não é realmente arte, porque se fosse arte se Identidades percebeu que para manter vivo o
pareceria muito com vida. O cinismo hipermo- desejo de manter a arte próxima da vida precisaria
derno dominante dá-se mal com pressentimentos, de procurar quem ainda pudesse sentir essa pro-
e outros ancestrais modos de avaliar o que nos ximidade ou esse desejo, e que tal procura teria de
é e o que nos não é importante, porque gostaria se efectuar, por certo, também fora da Europa, ou
que não houvesse resistência à racionalização mesmo fora do mundo ocidental. Outros lugares,
generalizada da vida, e obviamente da arte. Que outras culturas, outras artes, outras vidas. Deixar
aceitássemos candidamente apenas trabalhar e a Europa parecia ser a única condição de nela

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poder continuar a viver sem ser definitivamen- Movimento tinham alguma relação? Se esta escola
te contagiado pela sua doença. E o que come- tem servido mais para nos afastar da vida e da arte
çou por ser uma vaga intuição, há mais de uma do que para nos aproximar delas poderíamos con-
década atrás, revelou-se ser uma sábia resolução. tinuar a ter nela algum papel sem ficarmos divi-
Em Moçambique, em Cabo Verde, no Brasil, foi dimos, sem nos sentirmos a ‘trabalhar’ contra nós
possível encontrar quem estivesse com a arte e mesmos? Seria possível encontrar nela ou inserir
com a vida de outro modo. Foi possível aprender nela qualquer resto de vontade de viver? Eis então
com eles. Com eles enquanto indivíduos, com eles o Movimento aberto a dois campos diferentes mas
enquanto culturas diferentes da nossa. Foi possível complementares: aprender ou reaprender ‘lá fora’ a
aprender. Claro que uma relação intercultural tem vida e a arte e procurar ‘cá dentro’, nomeadamente
mais do que simplesmente ‘aprender’, é algo mais no mundo da escola, maneiras de pôr em prática
próximo do diálogo, da aprendizagem em conjun- o aprendido, o que implica necessariamente uma
to, mas no ‘regresso a casa’, a Portugal, à Europa, a atenção, digamos crítica, muito apurada ao modo
sensação era bastante a de se estar a aprender. Um como ele existe e insiste.
aprender que nunca tinha sido possível, sequer Para o Identidades a Europa, o ‘cá dentro’, tem-
pensável nas nossas escolas. Se o comparássemos -se reduzido muito a Portugal. Era no entanto
àquilo que seria suposto aprender nas nossas de esperar que houvesse quem tivesse tido ideias
escolas decididamente o que estávamos a fazer era similares ou próximas noutros cantos do mundo
mais parecido com desaprender. Estávamos pois ocidental. Seria possível beneficiar de tais ideias
a desaprender para poder aprender, finalmente, e das experiências a que elas terão conduzido?
realmente aprender. O que nos tornava claro que Com tal pergunta um novo caminho se abria ao
as nossas escolas ensinam talvez muitas coisas, mas Movimento, o de procurar, também ‘cá dentro’,
não permitem aprender. Acabamos ensinados, isto com quem dialogar e aprender. daí que se tenha
é prontos a aceitar apenas trabalhar e apenas so- decidido criar um espçao para percorrer esse
breviver, mas com muitas dificuldades para apren- caminho, que se passou a designar como ID_CAI
der. Não fosse aprender um instinto natural do ser (Identidades_Colectivo de Acção e Investigação).
humano e teríamos deixado, por certo, de o poder Ir a Berlim, ao Encontro Internacional de Artes
fazer. E isto que tínhamos começado a entender na Sociedade (6th International Conference on
levantava-nos um outro problema: como estar com the Arts in Society, 2011) inseria-se nesse cami-
esta escola, com a qual grande parte das pessoas do nho, nessa procura. Este Encontro nada tinha de

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parecido com os encontros tidos em Moçambique,
Cabo Verde ou Brasil, estava claramente marca-
do pelo peso da tradição académica ocidental,
mas talvez valesse a pena experimentar. Para isso
prepararam-se “comunicações” sobre a Conceição
das Crioulas, comunidade do sertão brasileiro de
quem o Identidades há já alguns anos se tornara
‘cúmplice’, relatando cuidadosamente os contactos e
as vivências, com o cuidado de quem sabe que está
a falar para pessoas que não viveram a experiência
mas que lhe poderiam ser sensíveis, e uma “comu-
nicação” sobre a escola (a ‘nossa’ escola, a escola
ocidental), observada a partir da ‘cultura visual’. São
estas “comunicações” que aqui se reúnem agora,
numa edição pensada para permitir a todos os
que queiram, não só aos presentes no Encontro de
Berlim, começar a aproximar-se dessas experiências
que as pessoas do Identidades têm tido o privilégio
de viver e gostariam de partilhar com os que, por
qualquer motivo, não puderam fazê-lo. Partilha do
sensível, claro, apesar de, como é inevitável em tal
tipo de “comunicações”, se parecer muito mais com
uma ‘passagem de dados informativos’, isto é racio-
nalizados. Não é fácil perceber como se pode que-
brar ‘cá dentro’, o círculo vicioso da racionalização,
por isso esta edição é também um apelo a todos
para participarem nesta procura de novos modos
de experiência e de partilha, que nos permitam
aprofundar este ‘reencontro’ com o prazer de sentir,
de pressentir, a proximidade entre a arte e a vida.

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Modos de ver a escola: a produção de subjectividades dentro de espaços
educacionais[1].
Catarina Martins[2], Inês Miguel, Catarina Almeida[3], Paulo Fernandes

“nós vivemos no espaço, nestes espaços,


nestas cidades, nesta zona rural, nestes imagens a partir das quais deriva, nem estas, no
corredores, nestes parques. Tudo isto processo de serem capturadas, pretendem alguma
nos parece óbvio. Talvez deva mesmo vez justificar o que se diz. Muito pelo contrário,
ser óbvio. Mas não é óbvio, não apenas textos e imagens são aqui considerados como
uma certeza. É real, obviamente, e como discursos: nunca as imagens adquirem o estatuto
consequência grandemente racional”[4] de prova da realidade, tampouco os textos são
(Perec, 1999: 5). alguma vez encarados como legendas alargadas
dessas imagens. Uns e outros são considerados
Este paper é concebido pelos seus autores como acontecimentos e, por isso, quer na sua suposta
um ensaio que surge a partir de um grupo de origem, quer agora na escrita que se abre, não
imagens mais abrangente do que o que aqui se perdem o carácter objectual, aquele que determina
reproduz. Nele, o texto não surge para ilustrar as a sua existência material. Há, então, que assinalar
1. O texto que aqui se publica corresponde a uma reescrita da
desde este início que o entendimento a que aqui se
apresentação realizada na The Sixth International Conference on procede do discurso não vê nunca como possível
the Arts in Society, em Berlim, em Maio de 2011. Ao inserir-se
neste volume sobre a investigação a partir da acção intercultural,
desmascarar uma suposta pletora da linguagem
distanciando-se, por um lado, de todos os outros textos aqui reu- por debaixo da qual se encontraria uma engrena-
nidos (em termos de espaços, experiências e conteúdos), pretende,
por outro lado, jogar-se nessa mesma implicação da investigação
gem capaz de explicar ponto por ponto os efeitos
mergulhada no agir. Dir-se-ia que a forma de o fazer é totalmente de poder que, quer o texto, quer o espaço, quer
teórica e enquadrada no modo como se questiona aquela que é
a paisagem educacional ocidental. O movimento que se ensaia
a imagem, operam sobre os sujeitos. Na inversa,
imagina-se como um gesto de suspensão face àquilo a que se dá o consideramos que nada se esconde sobre o que é
nome de ‘real’ e se toma por evidente e natural.
2. i2ADS_Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
dito ou visto, e que o silêncio, a rarefacção, a pro-
(Faculdade de Belas Artes, Universidade do Porto). lixidade do discurso são modalidades a seu tempo
3. i2ADS_Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
(Faculdade de Belas Artes, Universidade do Porto).
diferentes mas que se aproximam em termos de
4. tradução do original operatividade nos processos de subjectivação. O

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Catarina Martins, Catarina Almeida, Inês Miguel e Paulo Fernando

que há que fazer, então, é aceder às regras de pro- a possibilidade única de devir em permanência.
dução da racionalidade do discurso. Tomemos o pensamento como o acto que
Os quatro autores são professores, artistas e dispõe sujeito e objecto numa geografia qualquer.
investigadores e assumem o desafio de escrever a O espaço escolhido é o da escola e o exercício con-
múltiplas mãos a partir de um arquivo fotográfico sistiu em capturar esse espaço através da fotografia
que foram constituindo como o corpus de materia- e com ela produzir um discurso textual sobre a
lidade desta escrita. O acto da escrita é aqui toma- sua cultura visual. Abria-se uma espiral imensa de
do no sentido que lhe deram Deleuze e Guattari formas, sons, cores, texturas, materiais, disposições
(2006) e por isso se imagina a si próprio longe do dos corpos no espaço e dos objectos no espaço, e
espaço da significação e bem perto do movimento em todo este conjunto de elementos interessava-
de ‘calcorrear’ e de ‘cartografar’ mesmo aquilo que -nos sobretudo focar a visualidade. A anatomia
ainda se desconhece. Um dos grandes objectivos do espaço sobre a qual circulámos assumia-se por
deste exercício é, então, o de indiferenciar a linha demais evidente e natural. A certeza, portanto, de
de separação entre teoria e prática, entre aquilo que também nós éramos/somos sujeitos e objectos
que habitualmente se designa por texto e essoutro do discurso. Como (não) reconhecer uma escola
local da prática que se dá por contexto. Os gestos na textura da cidade? Como (não) ver ali uma sala
da captura, da acumulação, da categorização e da de aula e além um recreio? Como (não) ver que
ligação não são separáveis daquilo que, discursiva- a escola é inscrita na tese de que a mudança e o
mente, se designa por experiência, e muito menos, progresso são a base para uma sociedade melhor?
da decisão da escrita. Neste sentido, propõe-se um Como (não) ver que as soluções mágicas da escola
mesclamento que abra outros espaços de acção respondem invariavelmente a objectivos discipli-
através de uma crítica à racionalidade corrente. O nares e a racionalidades políticas que se inscrevem
exercício a que se procedeu pretendeu sempre ser, na ‘alma’ dos sujeitos? Olhar uma escola na paisa-
nas suas diversas modalidades, uma escrita em po- gem e observar a paisagem dentro de uma escola
tência. Este posicionamento implicou um questio- pode resultar em diferentes narrativas dependendo
namento à familiaridade com que nos deparámos do lugar do observador, no entanto o sistema de
nos contextos em que escolhemos mover-nos, mas raciocínio que estará sempre presente dificilmente
nem por isso pretendemos com este texto instau- se desligará de uma ideia de ciência como sinóni-
rar um outro regime de verdade. O seu carácter mo de desenvolvimento, e por questionar ficarão
provisório e mutável é plenamente assumido como as teses culturais que determinam modos de vida.

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Modos de ver a escola: A produção de subjectividades dentro de espaços educacionais

A memória dos dias de escola cruza-se com a me- pós-estruturalistas permitem. Muito embora os au-
mória recente dos dias na escola, com a escola pro- tores se movam no abrangente campo da educação
jectada na esfera pública, com a missão atribuída artística, não é este um texto que procure situar-
à inevitável escolarização. Como (não) ver, então, -se no topos desse espaço, mas antes utilizá-lo, na
que o que se vê é somente o que o próprio discurso interdisciplinaridade que lhe é própria, como a
torna visível e razoável ao pensamento? possibilidade de questionar o ver e o dizer. A expe-
Tornar estranhos estes espaços familiares aos riência sensorial dos espaços vividos, analisados e
olhos dos autores foi o primeiro passo da discus- fotografados não pode senão tornar-se inteligível
são. Assumindo que todo o acto de ver não pode na sua formulação discursiva. Estamos conscien-
nunca dar-se por ‘inocente’, pretendemos ‘escavar’ tes dos limites de dizer, em termos linguísticos, o
diferentes sentidos nas imagens que propomos que é visto, mas assumimos o risco que a ‘viragem
(Rose, 2007: 26). O desafio: questionar a naturali- linguística’ (e especificamente visual, bem como a
zada e inquestionada sinestesia da cultura visual, etnografia sensorial), abriu ao questionar os meca-
numa tentativa de desconstruir a performatividade nismos e jogos de poder nos processos de subjecti-
do acto de ver e de fazer ver. Assim, o que este vação. Se uma imagem-gesto fosse possível para o
texto oferece é a tentativa de desnaturalização da movimento de olhar em volta e explicitar, dir-se-ia
evidência visual de um espaço institucional de raiz que um olhar bisturi concretizaria a tarefa ciclópica
e de permanência moderna. da tradução do olhar. Todo o desejo se centra em
O que é que estas imagens de escola nos pode- observar a linguagem como uma força que se des-
riam ‘dizer’ para além da sua aparente clareza? O tina sempre, e independentemente da consciência
que então surgia em debate era a certeza de que que depositamos no processo, à constituição dos
só no questionamento da evidência visual e na objectos sobre os quais aparentemente apenas fala.
sua formulação como problema em análise nos Deste modo, sublinhamos as palavras de Mitchell
era permitido tactear a visualidade. O que fomos quando afirma que “o que quer que seja a viragem
encontrando foram modos de acção indiscutivel- pictórica, deve ficar claro que não é o retorno a
mente presos no interior de um modelo gramatical uma mimesis naïf, cópia ou correspondentes teorias
específico da modernidade. Aceder à sua cons- da representação, ou uma metafísica renovada
tituição alimentou o desejo de uma escrita que da ‘presença’ pictorial: é antes uma redescoberta
não se fecha nos estudos educacionais mas avança pós-linguística e pós-semiótica da imagem como
para as contribuições que os estudos culturais e um jogo complexo entre visualidade, dispositivos,

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Catarina Martins, Catarina Almeida, Inês Miguel e Paulo Fernando

instituições, discurso, corpos e figuralidade”. Muito


principalmente, é a afirmação de que as moda-
lidades da ‘espectação’ se compõem do olhar, da
mirada, das práticas de observação, das práticas
de vigilância e que incluem, ainda, as de prazer
ou desprazer visual, sendo “tão profundamente
problemáticas quanto as várias formas de leitura
(deciframento, descodificação, interpretação, etc.) e
que a experiência visual ou a ‘literacia visual’ pode
não ser completamente explicável por modelos de
textualidade” (Mitchell, 1986: 2). De modo se-
melhante, a complexidade do sensorial não pode
ser reduzida ao mapeamento dos sentidos que as
grelhas racionais da modernidade ocidental fabri-
caram a partir de uma linguagem psi.

A gramática da escola

“ver é um grande desafio (...) é parte da Nas duas fotografias estão representadas salas de aula de arte. A primeira a
preto e branco é do início do século XX e retirada do Arquivo Fotográfico de
vida de todos os dias, é a vida de todos os
Lisboa. A segunda fotografia foi tirada numa escola básica de Gaia, em 2011.
dias”[5] (Mirzoeff, 1998: 3)  
de aula. Sem surpresa, observamos a geometria pe-
Entrar numa sala de aula convoca memórias, dagógica dos espaços calculados em grelhas, mesas
relembra rotinas e práticas, de tal modo familiares e cadeiras alinhadas em fileiras, mais recentemente
a cada um de nós que poderíamos quase falar, no dispostas em U, o quadro preto ou branco, paredes
ocidente e desde o segundo quartel do século XIX, vazias ou, pelo contrário, imagens nelas afixadas
no desenvolvimento de uma cultura própria da sala ou pintadas. Vemos janelas e a forma como a luz,
natural ou artificial, molda o espaço ou é pensa-
5. Traduzido do original. da para melhorar o desempenho de professores

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Modos de ver a escola: a produção de subjectividades dentro de espaços educacionais

e de estudantes. Salas que se improvisam para o que pode o design/projecto da sala de aula ou do
que escureçam e permitam, assim, a utilização de espaço escolar dizer-nos sobre a ordem pedagógica,
dispositivos de projecção. Por um lado, a escola as actividades e os gestos daqueles que os habitam?
fechada à contemporaneidade, pois ao campo do Se uma sala de aula é desenhada com propósitos
saber só o tempo traz legitimidade, por outro lado, precisos, quais são, então, as ideias que a enformam
permeável à inevitável modernização para não se e de que modo se tornaram respostas eficazes e
atrasar à chegada ao futuro. Apesar do silêncio das com variações mínimas num longo arco temporal
fotografias e da encenação do espaço que nelas e abrangendo espaços tão diferentes? O posiciona-
ocorre tendo em vista um observador imaginado, mento que assumimos é diferente do que toma-
conseguimos, sem esforço, reconstruir as activi- ria um historiador da educação; porém existem
dades que definem os trabalhos da sala de aula. As similitudes, dado que quando se questiona a ordem
nossas memórias de estudantes e as nossas experi- das coisas se percebe a sua historicidade e modos
ências como professores têm um importante papel de naturalização. Indiscutivelmente as salas de aula
na forma como pensamos as imagens da escola e são espaços discursivos: inscrevem a gramática da
imaginamos outras. A questão que então colocá- modernidade. E esta gramática da modernidade
mos foi a de como poderíamos aceder aos nossos pedagógica opera sobre os modos de ser, de pensar
próprios modos de ver, de tal forma que pudésse- e de agir de alunos e professores. De acordo com
mos aprofundar o nosso entendimento dos espaços Larry Cuban e David Tyack, se parece óbvio que os
nos quais circulamos e das imagens desses espaços espaços moldam sujeitos, nem por isso a gramática
que nos apareciam como estranhamente familiares. da escola ou a do discurso precisam de ser cons-
Em cima da mesa colocámos imagens de arquivo cientemente percebidas para operarem silenciosa-
que tivessem a escola por objecto, nacionais e in- mente (Tyack & Cuban, 1995: 85).
ternacionais, cobrindo, temporalmente, os últimos Neste sentido, considerar a sala de aula, ou
anos do século XIX e todo o século XX, cruzámos qualquer outro espaço no interior da escola, como
essas imagens com aquelas que também nós foto- tecnologias de subjectivação, exige a sua tomada
grafámos nas escolas onde somos professores, e a na complexidade das relações que ali são tornadas
primeira evidência era a de que existem sinais de possíveis e que inscrevem nos sujeitos formas de
‘escolaridade’ em todas as imagens confrontadas e comportamento e de acção considerados razoá-
que estes sinais se mantêm muito semelhantes des- veis. O espaço escolar é aqui percebido como um
de o século XIX até hoje. Na ordem da similitude, dispositivo disciplinar que acolhe em si corpos e

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Catarina Martins, Catarina Almeida, Inês Miguel e Paulo Fernando

movimentos, que organiza formas de ser, de estar um novo fôlego demonstrando que é a projecção
e de desejar. As salas de aula têm pelo menos dois no futuro que governa o presente.
lados: o lado do professor e o lado dos alunos. São alguns os princípios básicos da gramática
Normalmente, o aluno tem de permanecer sentado, escolar. Grupos de alunos com idades semelhan-
enquanto o professor circula na ‘frente do palco’. tes, formando classes que ocupam cada um dos
Mas não se trata apenas de um posicionamento espaços escolares por períodos fixos de tempo,
de corpos. Falamos de diferentes tipos de espaços, trabalhando e deslocando-se todos os tempos
todos eles são espaços conceptuais que governam lectivos de uma sala para a outra, viajando de uma
modos de ser. A sala de aula é um lugar político no disciplina para a outra, graduação dos exercícios,
qual regras e valores, modos de agir e modos de hierarquização dos saberes. O encadeamento desta
ser se unem no imaginarium de preparar a criança gramática depende da racionalidade que impõe
para um futuro por vir. O carácter tecnológico do que os professores sejam os especialistas em de-
dispositivo escolar não apenas produz sujeitos que terminados campos do saber, e que as disciplinas
regulam a sua conduta no espaço (o princípio pa- escolares se organizem alquimicamente por acordo
nóptico da observação e da vigilância constantes), com a idade e a sensibilidade dos alunos. De facto,
como produz sujeitos que se auto-regulam por refe- as alquimias operadas no processo de escolariza-
rência aos lugares conceptuais que a escola como ção têm por base o transporte de saberes científi-
instituição com uma missão civilizadora produz (o cos (a matemática, a arte, a geografia, etc.) para o
bom aluno, o mau aluno, o bom professor, o mau interior de um discurso pedagógico que lhes toma
professor, o normal, o anormal, a norma, o desvio, o nome, mas que se afasta do respectivo saber ao
o sucesso, o insucesso). Percebe-se já que o discur- transformar-se em matéria governada pelas lentes
so que classifica não apenas classifica, como pro- da psicologia que determina, ao invés de modos
duz. O discurso pedagógico sobre a criança, sobre de produção e de invenção em matemática, arte
as suas capacidades de aprendizagem ou grau de ou geografia, sólidos blocos compartimentados
desenvolvimento intelectual gera modos de pensa- assimiláveis por alunos ‘médios’. O princípio é
mento e de acção que englobam tecnologias do eu o do problema e da sua resolução em grelhas de
cada vez mais afinadas para a produção do cidadão racionalidade antecipadas sempre pelo professor. A
do presente. As ideias do sujeito aprendente, autó- crença é a de que a criança que resolve problemas
nomo e criativo não são, de forma nenhuma, novas, está em constante preparação para um futuro que,
no entanto, adquirem em cada momento histórico no entanto, se desconhece. A escola funciona como

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Modos de ver a escola: a produção de subjectividades dentro de espaços educacionais

uma máquina de produção de sujeitos que apren- atravessando do passado em direcção ao presente,
dem que o seu lugar e o seu destino social passa deixando-nos ver, hoje, a mesma formulação no
obrigatoriamente pelas etapas progressivamente dizer e no imaginar uma sala de aula. Como se
mais complexas que esta lhes vai propondo. No parecem estas imagens de salas de aula de artes? O
interior dessa máquina, uma constante definição que nos dizem sobre a evidência do seu reconheci-
e redefinição de quem e como a criança é e aquilo mento? Quais são as tecnologias em funcionamen-
em que se deverá tornar, bem como os modos de to nestes espaços? Responder a estas três questões
vida, de acção e de pensamento considerados úteis é entrar num lugar de desnaturalização do nosso
e razoáveis socialmente (Popkewitz, 2002). Mas próprio reconhecimento de o que é uma sala de
naquilo que se imagina direccionado para o futuro, aula e de como esta molda e afecta, assim como é
a preparação do cidadão do futuro, plasma-se, moldada e afectada pelos seus habitantes.
antes, o governo dos sujeitos no presente. Não é novidade que aulas de arte, tal como as
Espaços físicos e conceptuais intersectam-se aulas de ciência ou de geografia, usam as paredes
permanentemente e definem teses culturais que da sala como locais de exibição. A utilização da
determinam modos de pensar, sentir e agir. A sala imagem no ensino, como tecnologia de aprendiza-
de aula é uma pequena parte da escola. Se ampliar- gem, é uma ferramenta da modernidade. Se estas
mos a vista, a sala de aula é um território que di- imagens são produto do trabalho dos estudantes ou
vide o mundo exterior de corredores e de recreios representações que circulam, não é relevante. O que
do mundo de trabalho sério. Organiza-se numa podemos perguntar, por agora, é que tipo de ima-
ordem própria que produz efeitos específicos nos gens é exibido aqui? Cópias ou trabalhos originais,
corpos, almas e mentes daqueles que usam os algumas pistas apontam para a articulação directa
espaços. As duas fotografias acima têm diferentes com obras consideradas artísticas. Ora, um dos
origens: uma é retirada de um arquivo e a outra, tópicos que a cultura visual nos permite questionar,
tirada por um de nós, é um arquivo de práticas dis- com fortes implicações para a nossa prática en-
cursivas particulares. Ao dizer isto confrontamos quanto professores, é a supremacia que as imagens
diferentes concepções de arquivo. Por um lado, o retiradas da história da arte ocidental continuam a
arquivo como espaço ordenado e preservado para ocupar dentro do currículo escolar. Encontramo-
um futuro que agora acontece e que nos permite nos, então, a partir da observação destes espaços,
aceder a uma ordem discursiva específica, por diante da possibilidade de desconstrução do discur-
outro lado, a permanência das regras dessa ordem, so curricular. Que imagens e exercícios mostramos

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Catarina Martins, Catarina Almeida, Inês Miguel e Paulo Fernando

e propomos aos nossos alunos? Se o que realmente


importa na contemporaneidade é a capacidade de
produzir novos significados e não de reproduzir os
antigos, que valor continua a ser atribuído àquilo
que se designa por arte, e que arte é considerada no
currículo do século XXI? Faz sentido continuarmos
a falar de educação visual?

A terrível ordem que nos governa

“Ai que prazer


não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura. As três fotografias foram tiradas por António Carvalhal e representam uma
sala de aula de uma escola secundária no Porto.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original. rotina escolar, e olhá-los no sentido de perceber a
E a brisa, essa, de tão naturalmente construção das suas singularidades e as paridades
matinal evocadas pela identidade das coisas, as mesmas que
como tem tempo, não tem pressa...”[6] nos permitem reconhecer e nomear objectos apesar
(Fernando Pessoa) das suas variáveis. O interesse inicial nestas outras
fotografias trazidas aqui deveu-se à aparente coinci-
Experimentar o exercício que diariamente propo- dência entre arquitectura e papel. A folha vazia e a
mos aos nossos alunos passa por nos sujeitarmos parede branca são, de certa forma, lugares que parti-
deliberadamente aos espaços que habitamos na lham o comum da superfície virgem que exibem.
Estas paredes apresentam aquilo que poderá
6. Este poema está reproduzido na parede da fotografia. ser visto como páginas de um diário visual. Tido

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Modos de ver a escola: a produção de subjectividades dentro de espaços educacionais

como território de experimentação, de registo e é assumida como uma provocação. Mas como
de pensamento, o diário visual é aqui concebido funciona dentro do seu sistema de racionalidade?
como um espaço de trabalho, na plena acepção de Ou seja, que encenação de processo tem lugar
atelier: onde o artista se torna artista pelo seu saber nestas paredes e de que forma se desenvolve numa
fazer. Mais do que o objecto físico, ele é o espaço correspondência directa àquilo que seria o não de-
material de inscrição de um processo de pensa- terminado de uma acção supostamente ‘artística’?
mento. Tomemos também, por instantes, a sala de O que parece ser um modo de fazer subversivo,
aula como um espaço conceptual. Da exposição pelo uso dado às paredes da sala de aula enquan-
feita restará a ordem que governa o olhar. to substitutas do papel tradicional é, na verdade,
A primeira aproximação às imagens despertou a extensão de verdades modernistas, seja pelo
interesse pela semelhança da sua configuração formalismo condutor, seja pelas referências a que
com a folha de desenho, eventualmente tida como acriticamente recorre. De facto, nestas imagens,
fragmento de um diário visual, lugar propício à não se reconhece qualquer posicionamento que vá
visualização de processos e ao esboço de ideias. para lá da sujeição aos modos de fazer, operando
Facilmente imaginamos estas paredes como a essencialmente ao nível da forma e da composição,
representação de um work in progress, semelhante incorrendo na falácia de repetir a inquestionável
ao próprio processo do pensamento. Mas o nosso galeria de notáveis. De um diário visual, tomado
interesse procurou afastar-se dessa evidência e como espaço experimental de investigação pessoal,
focou-se, a contrário, no sistema de racionalidade esperava-se algo diferente. Algo que questionasse
que torna este pensamento possível e inteligí- esta terrível ordem que governa os nossos modos
vel. Dirigimos a nossa prática ao cumprimento de dizer, de ver e de fazer.
de uma visão crítica e dum questionamento das Invocar Picasso, Lichtenstein, De Chirico e
tecnologias e dos sistemas de pensamento, fazendo Andy Warhol não surpreende. Curioso é o cruza-
da resistência ao naturalizado o nosso móbil. O mento com “Liberdade”, um poema de Fernando
desenho confunde-se com o aparente caos pró- Pessoa. Combinando o contexto com o texto o que
prio de um pensamento em construção, que se resulta é um cenário grotesco que revela a incon-
corporiza diante da vista e que, por isso, revela as gruência das formas e do conteúdo, o grito mudo
hesitações, os recuos e os rasgos de progressão. A de um absurdo conjunto formalizado no modo
imprevisibilidade de uma acção colaborativa, que de falar de uma rebelião encenada. E, mais uma
ignora o próximo passo do seu desenvolvimento, vez, juntamente com os tubos de tinta e as paletas,

17
Catarina Martins, Catarina Almeida, Inês Miguel e Paulo Fernando

não é a liberdade um outro lugar-comum da arte de andar, os referentes que constituem os interes-
na educação? E as assinaturas e as datas, actuando ses de cada estudante, se encontra ligada à cons-
como plintos para cada contributo individual à to- trução da própria identidade, definindo regimes de
talidade do simulacro de um trabalho feito a múlti- aparência particulares.
plas mãos, são a antítese de um rizoma anónimo Tomaremos agora por objecto de análise a
que, por breves instantes, espreita na monotipia de materialidade que se apresenta na imagem aqui
Che Guevara – que pertence a Korda, a Fitzpatrick, reproduzida. O conceito de materialidade será
a toda a gente e também a Manuel Pinto, do 9ºB. tomado a partir do modo como tem vindo a ser
colocado por autores como Martin Lawn e Ian
Grosvenor, ou seja, “as formas através das quais
Locais de exibição os objectos ganham sentidos, como são usados, e
como estão ligados a redes heterogéneas activas,
nas quais pessoas, objectos e rotinas estão intima-
Na sala de aula todos os objectos são fontes que mente conectados”[7] (Lawn & Grosvenor, 2005: 7).
lançam continuamente a possibilidade de constru- Tomemos por exemplo o painel de afixação, cuja
ção de sentidos àqueles que a habitam ao mesmo presença, comum ao lado do quadro, anuncia a
tempo que condicionam as suas acções dentro de possibilidade de ali se exibirem trabalhos ou nú-
regras e modos de ser particulares. A configura- cleos de informação com interesse para os alunos.
ção arquitectónica e a organização espacial dos Muito embora este possa parecer um local de
objectos, a iluminação, as janelas, a cor, os mate- pouca importância no estudo da materialidade da
riais pedagógicos existentes na sala de aula: mesas, sala, é ali que se percebe, de modo muito evidente,
cadeiras, armários, quadro preto ou branco, giz, a forma como se instala aquilo que habitualmente
marcadores, painéis de afixação, computadores, se designa por currículo oculto. Não será tanto o
projectores e o material utilizado pelos alunos sentido escondido do que ali se afixa que pretende-
tomam parte no conjunto da materialidade que mos descortinar, mas antes o próprio princípio de
condiciona as relações estabelecidas entre sujeitos funcionamento deste espaço ao nível das relações e
e o lugar. Se expandirmos o campo da materialida- dos efeitos activados. Neste caso específico, este é o
de à forma como os sujeitos se apresentam nestes painel onde o professor expõe aquilo que pretende
‘pequenos palcos’ da vida, percebemos o quanto a
materialidade que configura os modos de vestir, ou 7. Tradução do original.

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Modos de ver a escola: a produção de subjectividades dentro de espaços educacionais

que os seus alunos vejam. Mas outros alunos, de gesto de contestação, absorve-o na sua condição de
outras turmas, frequentam também o espaço nou- expositor e devolve-o mais ou menos domesticado.
tros tempos. A informação visual e textual constitui Ou, resistindo também, será que este placard capta
um discurso paralelo ao discurso das lições que ali a atenção dos alunos quando têm de escolher entre
acontecem. Este é um foco de atenção que gera am- olhá-lo ou olhar antes o professor? Permite-lhes
biguidades. Secundário face à ordem dos saberes a escolha pela pertinência de um possível foco
escolares transmitidos em aula, pode, no entanto, preferencial ou, nesse caso, assume o carácter de
transformar-se no local de resistência do aluno desvio ao fluxo de oralidade desempenhado em
ao exercício do seu ‘ofício’ de estudante dentro da simultâneo pelo professor? Complementam-se ou
sala. Ou não. Seja como for, alternando entre o distanciam-se?
que a escola produz como subjectividade desejá- Porém não é sobre esses efeitos que queremos
vel, manifesta na condução da conduta dos alunos deter-nos, mas antes sobre as relações de conte-
no espaço de trabalho da aula - quer pelo caudal údos que ali se exibem. Esse pequeno espaço de
discursivo do professor, quer nos canais paralelos afixação é por si só um espaço de selecção. Tem
de informação - e uma outra forma de abjecção que a função de mostrar aquilo que ‘deve’ ser visto.
resiste ao ser-normal, o painel de afixação aceita o Embora de algum modo votado a certa discri-
ção (zonas laterais, campos visuais secundários
à ‘normal’ direcção do olhar em sala de aula), o
painel é paradoxalmente um local de exibição
capaz de conferir visibilidade e protagonismo
a conteúdos seleccionados por professores e/
ou pelos alunos. Qualquer informação que lá se
coloque, irá automaticamente adquirir destaque e,
nesse sentido, não se actua de forma inocente. As
imagens depositadas naquele espaço ganham uma
moldura que as resignifica, o que, de facto, torna
aquilo que é uma deslocação transitória, aleatória
e inócua, numa intervenção ao nível do que são os
próprios objectos. Tratando-se de páginas ou de
Fotografia tirada numa escola básica de Gaia, 2011 recortes, estes fragmentos recortam os significados

19
Catarina Martins, Catarina Almeida, Inês Miguel e Paulo Fernando

que eles próprios permitem, recontextualizando- Esta consciência nos alunos permitir-lhes-á usar
-os no cenário particular da escola, da sala de o placard a seu proveito, invocando conteúdos
aula, e contaminando o discurso desta. Ao fazê- capazes de interferir com a rotina da escola. A
-lo, os objectos destacados reformulam-se nesse interferência, todavia, não se resumindo ao sentido
reposicionamento, uma vez que sujeito e objecto da obstrução desses outros saberes institucionali-
se dispõem agora de uma forma outra daquela que zados, mas experimentando o seu questionamento
é ler as mesmas páginas no jornal donde saíram e a provocação, ensaiando dinâmicas nas relações
e no ambiente familiar de casa. O caligrama com de poder estabelecidas.
o perfil de Fernando Pessoa, ou a página sobre os Na fotografia aqui trazida há muitas alusões
Blasted Mechanism, adquirem a pertinência e a à música e a personalidades relacionadas com a
validade que o carimbo aprovador da instituição arquitectura, televisão, poesia e economia, num
escolar concede àquilo que recebe. encontro de referências modernistas e contempo-
No caso da figura apresentada, a informação afi- râneas, nacionais e internacionais. Aparentemente
xada reúne um conjunto de gostos e interesses do estes são os gostos que o professor tenta transmitir
próprio professor, que assim os expõe aos alunos e aos alunos, talvez numa tentativa de os moldar,
os torna plausíveis e atribuíveis ao trabalho escolar. mas também adaptando os temas à faixa etária em
Num critério de selecção que poderia parecer questão, se se considerarem as referências musicais
aleatório, verificamos que toda a informação foi expostas. Este local de exibição tem o potencial
retirada de páginas do mesmo jornal. As notícias, de alterar a relação estabelecida entre os sujeitos
as entrevistas, os artigos de opinião que se expõem com o lugar escolar, explorando veementemente
delimitam um micro-campo de legitimidades as ligações às tais ‘redes heterogéneas activas’ de
redutor da natureza do painel. Porém, a haver Lawn e Grosvenor (2005: 7). A proficiência destes
alguma aleatoriedade no momento de selecção, ela fragmentos recontextualizados irá ser determi-
é irremediavelmente compensada pelo estatuto que nada pela forma como se cruzam com a restante
o painel confere à informação que integra, na im- materialidade do espaço, combinando-se, e pelo
putação de novos sentidos aos recortes. O painel, modo como afectam os discursos implantados da
ainda que inevitavelmente actuando como uma sala de aula, seja no currículo oculto, seja em pri-
tecnologia ao serviço da escola, pode promover ac- meiro plano, adicionando algum ruído útil a uma
ções que ultrapassem o superficial campo da legiti- paisagem habitualmente pouco disponível para
mação, o qual parece ser o seu efeito mais evidente. estímulos exteriores ao seu próprio saber.

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Modos de ver a escola: a produção de subjectividades dentro de espaços educacionais

Organizando corpos dentro da escola acima reproduzida representa uma escola secundá-
ria do Porto. Aos olhos do observador, a vista aérea
O espaço escolar organiza-se de acordo com uma da planta oferece o desenvolvimento de uma forma
ordem. A localização e disposição dos vários em U, na qual o recreio preenche o miolo vazio.
espaços reflectem as finalidades da sua concepção Numa oscilação entre a ocupação e o vazio, o
como que a mostrar que a cada espaço corres- recreio concebe-se, por um lado, como o território
ponde um objectivo preciso e a este se vincularão por excelência dos alunos, por outro lado, é o ob-
modos de ser e de estar bem particulares. A planta jecto precioso de observação e de vigilância. Nele

Planta arquitectónica de uma escola secundária no Porto, cedida pela Parque Escolar. 2008.

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Catarina Martins, Catarina Almeida, Inês Miguel e Paulo Fernando

não há ponto fixo de vigia. A ausência deve-se não estabelecem como locais de certo modo informais,
a uma rarefacção, mas antes à sua desmultiplicação uma espécie de bastidores, onde os actores podem
na paisagem. Todo o ponto deverá poder ser tor- descansar do papel adoptado na frente de palco.
nado como ponto de mirada. Do vidro das janelas Aproximando-nos e olhando para dentro, o
das salas de aulas aos gabinetes dos professores, engavetamento não cessa de proceder a etiqueta-
do director ou aos próprios corredores de passa- gens classificadoras. Tomemos o princípio cromá-
gem, a abertura e transparência do espaço deve tico como o embraiador da discussão para agora
proporcionar um olhar total. A economia arqui- colocarmos em arena a tentativa de edificação e
tectural de um espaço que se deixa atravessar pelo estabilização organizada de uma verdade tal como
olhar de um extremo a outro extremo significa um o Estado moderno a inventou e instituições como
controle máximo. Neste sentido, o recreio como a escola não se cansam de a reimaginar segundo os
um dispositivo de ver sem ser visto, desenha-se mesmos princípios.
como estratégia disciplinar tornando as zonas Esta próxima fotografia foi tirada no gabinete
permeáveis ao olhar e delimitando, em simultâneo, dos directores de turma: área dos gabinetes de
espaços específicos de lazer, por contraponto à sala professores, perto da zona administrativa – uma
de aula como local de trabalho. área restrita. Esta imagem mostra um conjunto de
As cores na planta arquitectónica mostram as armários recheados de dossiers: organizados por
diferentes divisões dos espaços de acordo com as anos, e a cada qual correspondendo uma cor, eles
suas finalidades. A vermelho as salas de aula, a azul guardam a documentação referente a cada aluno,
a zona administrativa e os gabinetes dos profes- inserido este, por sua vez, num determinado gru-
sores, a amarelo as áreas sociais, a cor-de-rosa, po. Os pormenores não são mais pormenores, mas
vermelho claro e cor-de-laranja as artes, as ciências os pilares de uma política e tecnologia adminis-
e tecnologias e as áreas desportivas, respectiva- trativa do controlo do corpo dentro da estrutura
mente, separadas das salas dos outros domínios escolar. A um mesmo formato de dossier corres-
disciplinares. A vista a partir de cima deste espaço ponde determinado ano de escolaridade e a este é
devolve-nos a paisagem com as suas pequenas ga- atribuída uma letra. Por vezes os formatos repe-
vetas para guardar temporariamente os utilizado- tem-se em anos de escolaridade diferentes e a cor
res do espaço escolar. A cada lugar correspondem funciona como auxílio desta compartimentação.
comportamentos e regras particulares. Tal como A escola, local irrefutável de depósito documental,
o recreio, também os gabinetes de professores se actua segundo princípios de localização imediata:

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Modos de ver a escola: a produção de subjectividades dentro de espaços educacionais

ela arregimenta massas de informação que recor- é portanto nem o território (unidade de
ta por tipos. Do que se fala já não é somente da dominação), nem o local (unidade de
escola, mas de uma população que a habita. Todo residência), mas a posição na fila: o lugar
um vocabulário socio-psicológico determina o que alguém ocupa numa classificação,
lugar de cada um por comparação com cada um o ponto em que se cruzam uma linha e
dos outros. A fabricação de determinados tipos de uma coluna, o intervalo numa série de
pessoas é uma operação complexa e em constante intervalos que se pode percorrer sucessi-
apuramento dos contornos que permitem fixar, vamente. A disciplina, a arte de dispor
numa radiografia completa, os sujeitos em questão. em fila, e da técnica para a transforma-
Ao definir aquilo que cada um é e o que poderá vir ção dos arranjos. Ela individualiza os
a ser, traça-se, em simultâneo, aquilo que não é e corpos por uma localidade que não os
que não poderá nunca alcançar. Deste modo, o que implanta, mas os distribui e os faz circu-
está em permanente fermentação é o lugar do de- lar numa rede de relações.”
sejável e o lugar da abjecção como as duas únicas (Foucault, 1997:140-141)
possibilidades de existência.
Conjuntos de alunos são formados e agrupa-
dos por turmas, cada qual tendo direito a ocupar
determinado espaço no armazém da informação,
segundo um princípio de quadriculamento. Cada
indivíduo é então localizado na sua respectiva
turma, no seu respectivo ano, no seu respectivo
dossier, na sua respectiva prateleira. Também no
respectivo espaço de ser, agir e sentir. Esta organi-
zação facilita e agiliza a localização dos estudantes:
é o sistema de economia e racionalização do tempo
que aqui vigora. Como refere Foucault: Fotografia tirada por Inês Miguel numa escola secundária no Porto, 2011.
“Na disciplina, os elementos são inter-
cambiáveis, pois cada um se define pelo O espaço reservado ao aluno é complemen-
lugar que ocupa na série, e pela distância tado pelos seus dados biográficos que, por
que o separa dos outros. A unidade não sua vez, o contextualizam segundo critérios

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Catarina Martins, Catarina Almeida, Inês Miguel e Paulo Fernando

sócio-económicos, usando-se para tal uma escala e de arquivamento dos sujeitos construídos e em
de medição sócio-psicológica capaz de estabelecer construção; aos dados antropológicos recolhidos,
com rigor o grau de eficiência social. Não se trata relacionados com a estatística e as percentagens
nunca de um aluno em particular, mas do grupo políticas, é adicionada informação individuali-
ao qual pertence. O controlo vai do individual ao zante, lida sempre de acordo com uma matriz de
alargado controlo do social, do aluno à família, ao carácter psicológico. O dossier, eleito como objecto
contexto, à classe, à zona de habitação, da cidade deste processo de arquivamento, agrupa conjuntos
ao subúrbio, do condomínio de luxo à ilha social. de dados que ajudam a conhecer as singularidades
No ínterim vai ficando o retrato pormenorizado de cada aluno mas, ao mesmo tempo, é nesta apro-
que deixa perceber, numa só mirada, que lixo ximação que agem sobre o domínio da vigilância.
humano produz lixo humano e que o Estado, aqui O que é visível nestas fotografias é a biopolítica, a
a escola, tem por tarefa resgatar, corrigir e devolver forma de governação da vida.
à sociedade sujeitos que se integrem no seu tecido. Esta possibilidade de controlo detalhado das
A missão salvadora de que se reveste o gesto de acções aparece-nos como uma espécie de cadastro:
escolarização e a sua frenética sede de um saber é o registo do percurso escolar de cada indivíduo,
sobre aqueles a educar, torna visível uma projecção o seu histórico de acções, punições. A subjectivida-
particular de política, nomeadamente no que diz de anterior dos sujeitos é o ponto de partida para
respeito à tomada dos grupos como ‘população’ e à uma reconversão na escola, às mãos destes dispo-
aplicação do que, desde o século XVII, foi assumi- sitivos variados. Suportando amontoados de folhas
da como a ciência do Estado, um tipo de ciência que definem e categorizam grupos, estes armários
moral, ou seja, a estatística. também armazenam informações que entram
As regularidades da população escolar prestam- na esfera íntima e particular de cada indivíduo.
-se ao arquivamento. Dirigidas por um quadro Intituladas confidenciais, estas informações são já
de objectivos específicos, as particularidades dos sistemas de controlo que invadem a privacidade de
estudantes são subordinadas, tomadas na base dos cada aluno: importa “importa estabelecer as pre-
comuns que partilham, ainda se cada uma destas senças e as ausências, saber onde e como encontrar
superfícies sensíveis apresentem diferenças super- os indivíduos, instaurar as comunicações úteis,
ficiais, mais devedoras da estrutura de governo interromper as outras, poder a cada instante vigiar
do que das características dos sujeitos que agru- o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancio-
pam. Há infinitas possibilidades de catalogação ná-lo, medir as qualidades e os méritos” (Foucault,

24
Modos de ver a escola: a produção de subjectividades dentro de espaços educacionais

1997:138). De qualquer modo, porque considera- Notas finais


mos estes dados privados se ao dizê-lo não faze-
mos senão alinhar por marcadores que definem Através da escrita feita a quatro mãos expomos
isto privado e isto público? Não são estes dados tão a paradoxal invisibilidade da visão e aspiramos à
arbitrários como os anteriores, como os que mais afirmação de uma multiplicidade inatribuível, mais
ferozmente etiquetam dossiers? O que difere entre do que à combinação de fragmentos heterogéneos.
a forma e o conteúdo, entre as fichas individuais Num rizoma, como num texto ou numa
de alunos, os nomes dos dossiers, as gavetas e as imagem, existem apenas ligações. Estas linhas de
prateleiras dos armários, a sala de serviços admi- pensamento estão prontas a ligar-se a outras linhas
nistrativos? São instrumentos e materiais que per- e a serem retomadas a qualquer momento, desde
sonalizam e corporizam a cultura visual da escola, que se configure a superfície de mergulho e de
pertencendo à mesma gramática de catalogação, emergência do sujeito. Nesta superfície de escrita
gestão e instrumentalização utilizados no governo não nos limitamos a relatar as práticas, não sem
dos sujeitos. Instrumentalizar aquilo que se define desconstruirmos e reconstruirmos objectos; sendo
como os dados individuais dos estudantes faz parte nós professores e alunos, como aqueles que exami-
da gestão minuciosa do conjunto discente, tendo namos, recortamos o senso comum da visão para
como finalidade fazer cumprir o chamado bem revirarmos os gestos naturalizados e para explorar-
público, ou seja, de garantir a correspondência a mos territórios, desterritorializando-os.
um conjunto de expectativas institucionais implan- Escrever supõe um processo de observação e de
tadas. O desenvolvimento das suas estratégias de revelação, o empreendimento da análise das singu-
efectivação chama a si métodos de optimização, laridades para desvendar as práticas de subjectiva-
donde todo o tratamento de dados e tradução de ção. Objectivamos o pensamento com desenhos de
sujeitos corporiza essa política discursiva. Dossiers luz e de palavras, e, nesse quadro de procedimen-
e mais dossiers habitam estes armários colecciona- tos, objectivamos o sujeito ao pensá-lo do lado de
dores de pessoas: neles cada indivíduo é mantido lá da lente que continuamente obturamos.
na teia do registo e da vigilância, numa mesma Nós, os scriptors (Barthes, 2007: 32), exami-
agenda que controla e capitaliza indivíduos e os namos os regimes de visibilidade da dinâmica
arquiva em objectos de memórias políticas. de saber-poder, colocando os sujeitos debaixo
de um olhar atento. Tomamo-los no duplo sen-
tido de ser sujeito e de estar sujeito, o que faz da

25
Catarina Martins, Catarina Almeida, Inês Miguel e Paulo Fernando

simultaneidade entre as significações do eu e a sua Minnesota Press.


construção pelos efeitos de se expor uma depen- FOUCAULT, Michel (1997), Vigiar e Punir
dência irrevogável diferenciada da ideia de sujeito Nascimento da Prisão. Petrópolis: Editora
tornado objecto inerte. Alunos e professores não Vozes.
são analisados isolados; a incorporação do exterior FOUCAULT, Michel (2007). A
ocorre precisamente na relação que estabelecem Governamentalidade in Microfísica do Poder.
com os espaços que habitam e na troca proporcio- Rio de Janeiro, Graal.
nada por essa permanente exposição. LAWN, Martin, GROSVENOR, Ian (2005).
Trata-se de pensar as relações entre os saberes Materialities of schooling. Oxford: Symposium
(des)interessados da escola e as imposições que Books.
activam os seus mecanismos, e de reificar essa re- MIRZOEFF, Nicholas (1998). The Visual Culture
flexão, tornando-a substancial para ser interferida. Reader. London: Routledge.
Colaborativamente os autores tornam-se sujeitos MITCHELL, W.J.T. (1986). Iconology: Image, Text,
e, conduzidos nesta interdependência de ser uma Ideology. Chicago: The University of Chicago
coisa e outra, eles relêem imagens e revêem textos, Press.
requalificando o já dito a partir das suas pró- POPKEWITZ, Thomas (2005). Cultural produc-
prias convicções e das convicções dos outros. Do tions. (Re)constituting the Nation, the Child &
resultante, apenas a incompletude e a possibilidade Teachers in the Educational Sciences. Lisboa:
infinitamente aberta de voltar a olhar e a reescre- Educa.
ver, na certeza de que o lugar de qualquer saber é o RANCIÈRE, Jacques (2010). Estética e Política - A
da sua discussão incondicional. Partilha do Sensível – Porto: Dafne.
ROSE, Gillian (2007). Visual Methodologies An
Introduction to the Interpretation of Visual
Referências Materials. London: SAGE.
SONTAG, Susan (1999). Visual Culture: the reader.
BARTHES, Roland (2007). Escritores e Escreventes London: Sage Publications pp.80-94.
in Crítica e Verdade. São Paulo: Perspectiva. STURKEN, Marita; Cartwright, Lisa (2001).
DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (1987). Practices of Looking An Introduction to Visual
A Thousand Plateaus: Capitalism and Culture. New York: Oxford University Press Inc.
Schizophrenia. Minneapolis: University of TYACK, David & CUBAN, Larry (1995).

26
Modos de ver a escola: a produção de subjectividades dentro de espaços educacionais

Tinkering toward utopia. A century of public


school reform. Cambridge & London: Harvard
University Press.

Martins, Catarina S. (2011) - I2ADS


Almeida, Catarina (2011) - I2ADS
Miguel, Inês (2011)
Fernandes, Paulo (2011)

27
Breve nota sobre os textos que se apresentam, de seguida, nesta edição.
José Carlos de Paiva

O envolvimento de uma equipa se artistas/inves- terra, pela educação, pela construção de melho-
tigadores num processo de presença implicada res e mais qualificados modos de vida.
na luta de uma comunidade quilombola instalada Os textos seguintes que se apresentam nesta
há décadas num território do Sertão nordestino edição correspondem ao esforço de reflexão sobre
do Brasil, possibilita a construção de olhares in- essa acção desenvolvida pelos seus autores, cons-
dividuais e de reflexões, que ainda que partilha- cientes da importância da fusão da acção com a in-
das, representam uma consciência plural, de uma vestigação, e reconheceres da presença da sabedo-
acção, que com o tempo firmou a sua pertença ao ria e perseverança da população da Comunidade
movimento de luta da população, pela posse da Quilombola de Conceição das Crioulas.

28
No Sertão Pernambuco à procura de uma imagem mais nítida do
descontentamento como artistas, saboreando mungunzá…
José Carlos de Paiva

Para além de todo o aparato crítico e institucional proclamando o espaço exclusivo de onde emanam
legitimador da arte contemporânea, externo ao as suas potencialidades antagonistas.
autor, existe um campo de intimidade e de inte- Essa necessidade, torna ímpar o endógeno
rioridade que mergulha o artista no seu próprio momento de conferir à obra a assinatura que
campo de (in)satisfação e de reconhecimento do a completa, promove a conferência autoral do
resultado do seu esforço de impregnação na ‘obra’ artista, remetendo o produzido para a evidência
do ‘sentido’ que lhe era destinado. pública, destinando-o à propagação do ‘sentido’
A chamada para este texto da acentuação da que ela solta.
necessidade de vinculação do produto artístico Sem se pretender isolar o autor da sua obra e
ao pulsar político do seu autor, não recusa outros fragmentar ou sacralizar o ‘momento de criação’,
modos, nem se prende em os apresentar, mas ape- mas outrossim, defender a unidade do autor com o
nas pretende, a partir de quem o afirma, marcar seu tempo, invoca-se como inevitável o seu envol-
a procura incessante e interminável do autor para vimento com o mundo, a partir do modo como ele
embeber a sua obra de desígnios que emanem próprio constrói a sua postura ideológica, de como
a sua implicação com a arte contemporânea e se relaciona com o seu corpo, de como gere as suas
com o mundo. Reconhece-se o afastamento dos contradições e com elas se concentra na sua activi-
tempos onde se procurava um inovador proces- dade produtiva, e estabelece, a partir daí, a relação
so de realização formalista possuidora de uma de pertença e interferência social.
significação libertadora ou da expressividade do Evoca-se aqui nesse momento singelo de
autor, para um novo tempo, onde se persegue um sincera contemplação, de recompensa e também
envolvimento politizado com ‘um mundo fecha- de gestão de angústias, momento vivenciado de
do e, contudo, aberto ao mundo’ [FOSTER, Hal. modos distintos e contraditórios por diferentes
Design and Crime (and other diatribes), Londres: autores, apenas para sublinhar a conflituali-
Verso Books, 2002], em que a obra de arte se dade própria da busca de autenticidade, entre
constrói como lugar reflexivo e contaminador, a postura autoral perante a vida e a arte, e a

29
José Paiva

capacidade de objectualizar a unidade do artista ampla geografia que comunica na língua portu-
com a sua produção. guesa. Assim, é na perseguição da libertação de
Há evidência de que o que o autor é resulta de possibilidades de incorporação de aprendizagens,
um relacionamento plural, da digestão do vivido, que o ‘movimento intercultural IDENTIDADES’
da atenção ao circundante, das aprendizagens estabeleceu a sua acção, mobilizando a viagem de
coleccionadas, acresce o reconhecimento de um artistas para longe dos seus espaços de conforto,
campo de hesitações, de reconhecimento de insu- para terrenos onde a conflitualidade da pertença
ficiências, do assumir de cedências, de gestão de ao ‘mundo da arte’, ao tempo da ‘arte contempo-
utopias e de expectativas. rânea’ e a mundos ‘ocidentais’, se confronta com
É no reconhecimento do modo complexo como comunidades isoladas, demasiado esquecidas neste
o autor entende o seu percurso autoral, confere o tempo de ‘globalização de mercados’, desconhece-
sentido assumido e, através de si, procura conferir doras e afastadas desse ‘mundo da arte’.
coerência à sua produção artística e à sua existên- Ao longo de dezasseis anos, mais de uma cen-
cia, que se entendeu estabelecer um laboratório tena de artistas, professores e estudantes de arte,
intercultural, onde, num espaço de partilha da viveram intensamente tramas intensos de relacio-
acção e da reflexão, em contextos sociabilizados, namentos interculturais, em geografias alongadas
se experienciem confrontos múltiplos e se soltem de Portugal a Moçambique, a Cabo Verde e ao
aprendizagens que possam ser incorporadas na Nordeste do Brasil. Estabeleceram-se parcerias
interioridade autoral dos que nele participam. Um demoradas e duradouras, construídas a partir do
laboratório relacional que não exclua outros cená- surgimento de recíproca confiança, que a partilha
rios, que não se sobreponha aos espaços existentes sem pressas do conhecimento francamente ofere-
na vida de cada um. Um movimento que aceite a cido possibilitou. Foi a partir da edificação dessa
suspensão da produção artística, mas a prepare na comum confiança que, em regime de cumplicida-
complexidade das conflitualidades interculturais de, se desenharam os interesses comuns. Sempre
que se colocam na deslocação de um grupo de neste percurso, usando o tempo necessário para
artistas para planos externos ao seu ofício. Uma isso: conhecimento — confiança — cumplicidade.
estrutura não hierarquizada, nem rígida, impulsio- Assim pudemos saborear o MUGUNZÁ (refeição
nadora de projectos interculturais, que se denomi- afro-baihana, com base no milho, usual na comu-
na ‘movimento intercultural IDENTIDADES’ e nidade quilombola de Conceição das Crioulas, e
que a partir da cidade do Porto se espalha por uma espalhada por todo o Nordeste do Brasil), já não

30
No Sertão Pernambucano à procura de uma imagem mais nítida do descontentamento como artistas, saboreando Mugunzá…

com a distância turística de quem se dispõe a consciência, construída de modo progressivo, de


provar os sabores exóticos do longínquo, mas na que no relacionamento intercultural se reforçam,
simplicidade de partilhar um tempo de família e se evidenciam e se enfrentam os grandes dilemas
de amizade, onde se come o que há e se absorve a da arte contemporânea, se entendidos não no
alegria de quem nos oferece o melhor que tem. isolamento dos seus próprios medos, sofismas e
O IDENTIDADES, movimento intercul- convenções, mas confrontados para fora de si, no
tural de acção e reflexão partilhada, elege a desconforto da sua exposição perante as pessoas
cumplicidade e a permanente interligação arte/ e as populações. E, no mesmo sentido, o globo
desenvolvimento, remetendo para a investigação terrestre entende-se melhor como um todo se
intimista e pessoal as responsabilidades, a procu- atendermos à diversidade nele contida e, nessa
ra dos processos e do sentido de quem intervém dimensão, se se questionarem os dilemas actuais
fundindo a energia artística com o exercício da e as forças que nele tecem os presentes sucessivos
cidadania e escolhe mergulhar a sua criatividade que se constroem.
na vida e, assim, decide remeter a sua actividade O movimento cultural IDENTIDADES não
artística para envolvimentos públicos e de com- persegue ensejos de intervenção artística, nem
prometimento social. É na esfera do relaciona- pretendeu nunca produzir o ‘objecto artístico’.
mento humano, criado em volta da partilha de Suspende essas possibilidades, assume a acção
intervenções de cunho artístico, de reflexões em como intervenção política em contextos onde as
volta da cultura, do compartilhar de vidas, me- populações se envolvem no seu próprio desenvol-
dos e utopias, que se vão tornando decifráveis os vimento, revelando para os seus protagonistas o
limites da solidão do artista, e emersas as energias campo de tensão em que se processa a busca de
germinadas pela comparticipação nos problemas, autenticidade e de autonomia criativa, que a de-
nas alegrias, nas ansiedades, nas lutas travadas por clarada atitude de engajamento com a procura de
uma vida melhor e por um mundo melhor. Desse um devir para a humanidade, ancorada no próprio
caudal transbordante de acção e de relacionamento protagonismo, requisita. Nos terrenos pisados, na
intercultural se destacam, da fluência de informa- procura de uma diluição da estranheza da presen-
ção que a experiência emite, as aprendizagens que ça, com os saberes que o repertório artístico de
podem ser captadas, incorporadas e transpostas cada um possibilitou, na tentativa permanente de
para a sempre solitária actividade artística dos consentida pertença às comunidades, na leitura
intervenientes. Discernimento que remete para a dos rumos de suas lutas, na adesão solidária a seus

31
José Paiva

anseios, na partilha de linguagens, na troca franca sustentável de economia criativa.


de ideias e utopias, se definem os programas de Os casos vividos promoveram o envolvimento
relacionamento intercultural, se determinam os dos artistas para um papel de destaque, aceite pelo
ritmos, se estabelecem rotinas. Dessas rotinas se modo como se disponibilizaram para a procura de
exalam os rumos, que se espalham por projectos novas respostas aos grandes problemas da nossa
que privilegiam o vídeo como linguagem, ou a web época, pela busca incessante de novas maneiras de
como partilha de informação, ou as oficinas artís- pensar, pela abertura à realização de mudanças so-
ticas como possibilidade criativa; ou a intervenção ciais, pela aceitação de novos paradigmas concep-
partilhada pelas populações no espaço público tuais, pela prática em lidarem com metodologias
como interferência no seu território; ou o desvio de projecto e pela suas irreverência criativa.
epistemológico como método de procura de novas Estes mais de quinze anos de persistência, de
soluções; ou em escolas como espaço de produção construção de uma memória partilhável, de rela-
cultural; ou em escolas de arte como campos de cionamentos íntimos com comunidades, artistas,
emanação de pertença às comunidades; ou a sim- estudantes e professores de arte, permitem-se hoje
ples percepção de como o corpo dança engolindo a iniciar um processo de estudo e análise a partir da
música para dentro de si; … acção. Este impulso reflexivo gerou a criação de
Nesta dimensão pluridisciplinar se determina o um Colectivo de Acção e Investigação (ID_CAI),
envolvimento nos programas de desenvolvimento onde se reúne e se sistematiza a experiência e se
onde se procuram modelos que ultrapassem as fra- estabelecem processos colectivos de investigação.
gilidades existentes e se procurem possibilidades Foi desta iniciativa recente que se soltou a nossa
criativas e utopias contemporâneas. Os modelos de presença neste encontro, onde se pretende apre-
desenvolvimento estão gastos, principalmente os sentar a nossa análise da experiência vivenciada:
subordinados a interesses adversos ao estreitar do apresento um primeiro plano, numa panorâmica
fosso da desigualdade, e carecem de novos palcos geral, o nosso ‘movimento’. Anuncio que circuns-
onde as populações sejam os motores de progres- creveremos as nossas apresentações à análise
so e gestoras dos processos, onde a criatividade produzida sobre a nossa presença na Comunidade
patente na luta pela sobrevivência crie territórios Quilombola de Conceição das Crioulas, terra
inteligentes, que de acordo com a identidade encantada pela democraticidade, tenacidade e
local, a força endógena e as capacidades de gerar discernimento de sua população. Meus camaradas
competências e cooperação, apostem num modelo apresentarão visões particulares sobre aspectos

32
No Sertão Pernambucano à procura de uma imagem mais nítida do descontentamento como artistas, saboreando Mugunzá…

mais precisos da nossa intromissão nesta povoação à população da Comunidade Quilombola de


isolada no sertão pernambucano do Brasil. Conceição das Crioulas. Conceição das Crioulas
Do Brasil, potência económica mundial e deten- é um concelho pertencente ao município de
tora de invejáveis recursos naturais, mapa cultural Salgueiros, situado a cerca de 600 km do mar e da
infinito, paraíso turístico abençoado, colhemos as cidade do Recife. A povoação resulta da fixação de
riquezas de sua história, presenciámos a sua arte, seis negras livres guiadas por um escravo fugido,
devorámos as inovadoras respostas artísticas en- ocorrida no início do século XIX. Fruto de seu
contradas, desde o seu antropofágico modernismo trabalho agrícola, da sua produção e da comerciali-
e tropicalismo à presença no mundo da sua arte zação do algodão, já em 1802 os residentes recebe-
contemporânea, respirámos o ar doce e perfuma- ram a escritura da posse da terra entretanto adqui-
do. E, com esse todo, deslocámo-nos para o sertão rida. A comunidade foi crescendo, agrupando-se
onde partilhámos os anseios de uma população em diversos sítios de um amplo e pouco produtivo
pobre mas optimista, lutadora incansável pelo pro- território (mais de 300 m2). Perante a decadência
gresso de seu território e por melhores condições do algodão a população passa a viver de uma
de vida para a comunidade. economia de subsistência e num estado de pobreza
É nesse minúsculo ponto perdido no vasto perante a qual fazendeiros abastados e coronéis,
mapa que entendemos plenamente a dimensão aproveitando apadrinhamentos políticos, foram
do Brasil, a sua complexidade política, económi- tomando posse das melhores terras, remetendo as
ca e cultural. Do sertão sabemos, pelo cinema de populações para os terrenos mais inférteis. Esta
Glauber Rocha e pela literatura de João Guimarães usurpação da terra constitui, no presente, o fulcro
Rosa, da resistência dos pobres a um mundo principal de sua revolta e o motivo aglutinador
adverso, conhecemos a história da luta contra a da luta encetada pela restituição e posse legal das
escravatura, a agrura de suas vidas, sabemos da terras para a comunidade. Hoje a comunidade é
fuga de um grupo de escravos para o Quilombo composta por cerca de 3 800 moradores e a área
dos Palmares e a transformação de seu líder por si ocupada confina-se às terras improdutivas
Zumbi num símbolo da resistência negra contra a do seu território.
escravidão. Desde o contacto inicial estabelecido pelo
Por sorte nossa, das cerca de oitocentos co- movimento intercultural IDENTIDADES per-
munidades quilombolas registadas no Brasil, cepcionamos ser esta uma comunidade pioneira
fomos apresentados pela Fundação Luiz Freire no modo democrático da sua organização, onde a

33
José Paiva

participação nas decisões é generalizada e profun- onde encontrámos a AQCC e esta população
da a consciência sobre os seus problemas e sobre optimista inesgotável na luta, que um grupo de ar-
a estratégia de suas lutas. Seu percurso em defesa tistas, professores e estudantes de arte, mobilizados
da restituição de suas terras e o modo como foram para entenderem os seus próprios dilemas, da arte
capazes de gerar a unidade da população em torno contemporânea e da actualidade do mundo, se ins-
da valorização identitária de sua condição e da sua tala, na partilha dos destinos da comunidade, para
história, consolidou-se na Associação Quilombola enfrentar o confronto cultural que aí se estabelece.
de Conceição das Crioulas (AQCC), colectivo Desbravando incertezas, criaram-se as primei-
onde se estabelecem as estratégias, se partilham as ras ‘oficinas de artes plásticas’ e de ‘teatro’, passo
ansiedades, se solidifica a solidariedade. Esta sua decisivo para se estabelecerem laços fortes e se
Associação, nascida da necessidade de intensifica- desenharem interesses, que rapidamente se con-
ção da luta pelo bem comum, promove o desenvol- solidam. A comunidade cansada de ver visitantes
vimento da comunidade a partir da dignificação produzirem narrativas sobre ela, quer ser capaz
da sua história e da construção identitária e da de produzir documentários sobre si, de tecer os
melhoria das condições de vida, valorizando as seus próprios discursos para divulgar as suas lutas.
suas potencialidades, na consciencialização da Assim se anuncia o interesse em se criar uma
presença do seu povo negro na construção de uma ‘oficina de vídeo’ e, com a nossa adesão, se orga-
sociedade mais justa e na quebra das barreiras do niza esse momento. A formação de um grupo de
preconceito e discriminação racial. jovens em vídeo vai desencadear um movimento
Desde o primeiro momento o IDENTIDADES na comunidade que se inicia com a edição de um
se enamorou desta realidade (2003). O fascínio primeiro documentário e se estende para a criação
do envolvimento progressivo na sua história e de um colectivo — o Crioulas Vídeo, que passa a
os laços de amizade com a população está hoje representar no exterior a comunidade e que, hoje,
transformado em camaradagem. Hoje somos parte realiza ‘formação’ noutras comunidades, multipli-
da comunidade, partilhamos o seu optimismo que cando os seus saberes. Nas escolas locais, criadas
resulta do seu reconhecimento das próprias forças, perante a determinação da população consciente
na capacidade própria de determinar o rumo, na da importância da educação para a construção do
reconhecida persistência na luta pelas razões que seu futuro, iniciam-se ‘oficinas artísticas’ (ce-
se reconhecem como justas e devidas. râmica, técnicas de impressão, desenho, dança,
É neste território de pobreza, em pleno sertão, educação visual), com as professoras e com os

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No Sertão Pernambucano à procura de uma imagem mais nítida do descontentamento como artistas, saboreando Mugunzá…

alunos. Da experimentação oficinal vai gerar-se travessia do Atlântico; da noite passada no ônibus
um programa que visa instalar a ‘educação artísti- pela ‘rodovia’ do Recife a Salgueiro; do amanhecer
ca’ nas escolas (José Néu, José Mendes, PETI e Sítio ímpar; e da viagem ‘como for possível’ até lá estar.
Paula), processo ainda em curso e que se integra Em cada ‘chegada’ há sempre coisas novas que nos
no esforço colectivo para a construção de um aguardam e mudanças surpreendentes, e mesmo se
‘currículo diferenciado’. A Internet, de sinal débil, é sempre um voltar, os abraços soldam a alegria re-
ganha importância e promove-se a sua utilização. cíproca que transvasa os corpos e se reconhece na
Numa das localidades (Vila União) estabelece-se cumplicidade das vidas. Nenhuma dúvida temos
um programa de intervenção criativa, participado sobre a possibilidade de experienciar o conceito e
pela população. a vivência de comunidade, presente e afirmada no
Destas experiências apresentaremos de seguida seu discurso político, de enfrentamento da violên-
quatro análises sobre quatro áreas da nossa inter- cia política a que é sujeita, no círculo aconchegante
venção, sectorizando pontos de vista que só podem de onde se enfrentam as agitações culturais, e a
ser entendidos neste caudal que os completa e lhes abertura às alterações sócio-culturais que vão sen-
confere o sentido. do absorvidas e são desejadas.
“Sabe, eu achava que era preta, que não ia ter Nesta realidade sócio-cultural aprendemos a
amizade com ninguém… Eu tinha uma coisa co- distância, persistentemente ampliada, que separa
migo, eu tinha vergonha da cor, porque era preta… a arte (no conceito erudito e cosmopolita que
muitas vezes, aconteceu de eu sentir na pele que se utiliza nas sociedades urbanizadas e que nos
as pessoas desfaziam da cor… eu tinha medo, eu constrói) de grandes parcelas da humanidade.
não era de fazer amizade de jeito nenhum, eu era E se a arte apenas faz a falta que faz, para nós,
igual a um bicho do mato. Então, eu conheci este artistas plásticos, professores e estudantes de arte,
pessoal, sabe eu senti que eles faziam muita conta de europeus, a consciência dessa distância também
mim, elas davam muita atenção, então foi onde eu significa, num elevado grau de complexidade, a
passei a me sentir gente.” (Cida, mulher, ‘bóia-fria’, dificuldade e o desinteresse que existe no estreita-
negra) in SILVA, Maria Aparecida Moraes (1999). mento dessa separação. E é no sentido de melhor
Errantes do fim do século, São Paulo: Fundação entender esse beco de incomunicabilidade que
Editora da UNESP, p. 273 as deslocações que realizámos se tornam impor-
Viajei tantas vezes já para Conceição das tantes na gestão individual da incomodidade que
Crioulas, que são rotineiras as paisagens: da essa verdade causa.

35
José Paiva

Evidentemente esta experiência que se pode desintegrar as crenças colectivas, reduzir as po-
adquirir neste movimento, não emite propostas pulações a consumidores compulsivos dos espec-
individuais de produção artística, nem soluções taculares resultados da profissional máquina de
milagreiras, apenas promove consistência no espa- produção cultural, assumida no mesmo patamar
ço íntimo da procura de uma sinceridade autoral, da imagem resultante do marketing político e da
numa coerência do ser, no encontro do compor- propaganda da ideologia dominante pelos meios
tamento com as convicções, na adequação dos de comunicação.
discursos com o que se produz. Os esforços dissonantes de irreverência estéti-
Se a presença da arte nos conflitos que foram ca e de aproximação da arte com as populações,
sendo gerados com o novo contexto de globaliza- efervescentes em períodos de exaltação política
ção hegemónica do mercado mundial, que carac- revolucionária, não foram suficientes para esbate-
terizam hoje o panorama onde não se identifica rem a força dominante que nunca poderia aceitar
um sentido narrativo para a humanidade, confere a vinculação da arte a legitimações desordeiras,
alguma imprecisão ao presente, ela reside na desenquadradas do mercado e das hierarquias
densidade de um momento em que se misturam estabelecidas no tecido social. A existência de um
os antagonismos e se não podem isolar as suas espaço de contaminação, ganha agora um cariz
contradições. próprio face a um mercado que faz da irreverência
Se hoje não se identificam nas suas camuflagens e do escândalo um discurso ausente de sentido
os meios de opressão e de reprodução social, nem revolucionário. A procura de uma paragem que
o campo de poder que se desmaterializa e dester- exija um novo tempo de contemplação do poético,
ritorializa entre grupos financeiros virtuais e os da capacidade limite do homem para se suplantar
beneficiários do capitalismo liberal, e se hoje não e melhor se sentir como ser político, constitui-se
são mais unilineares os caminhos da resistência, hoje como um sentido adverso ao comum e consti-
a intensificação das conflitualidades conhecidas tuinte de uma nova postura de rotura cultural.
no século passado, assumidas por muitos artistas,
persistem, vivenciando as contradições contem- Como na vida, onde o corpo abstracto do poder
porâneas e revelando o seu antagonismo: perante decide, remetendo a maioria para o seu aplauso
um silêncio dissimulado que invade o quotidiano e para a possibilidade de legitimação. Para quem
e se apresenta como que desapossado dos seus não encontrar acantonamento neste tecido social
antecedentes e sem perspectivas, o interesse em complexo e selvático, onde a ética desapareceu

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No Sertão Pernambucano à procura de uma imagem mais nítida do descontentamento como artistas, saboreando Mugunzá…

completamente perante o ‘vale tudo’ e a corrupção,


resta a exclusão completa, engrossando os lotes
superpovoados dos não-inseridos, dos refugiados,
dos desalojados, dos apátridas, …

Nesta suspensão nos situamos. Incomodados


pelo social que habitamos, pretendendo instalar
na nossa produção artística o compulsivo desejo
de apresentação dos trabalhos artísticos como
insistência na diferença, interrogativos do estabe-
lecido, capazes de suscitar a sua contemplação, e
parceiros dos desígnios sociais que persistem na
luta pelo reconhecimento de iguais direitos para
todos os cidadãos. Estes dilemas suspendem essa
acção, separam-na do terreno da acção política
que se promove e realiza, alojam-na num espaço
próprio, alargado e envolvente, globalizante, mas
que se diferencia da actividade artística, ainda que
reconheça as estreitas ligações com ela. A inter-
venção política faz-se pela actividade política. A
actividade artística não prepara nenhum ama-
nhã, lida com o que habita em cada um, amplia a
capacidade de admiração, de atenção, de reflexão,
favorece a possibilidade imanente de acção. É essa
a nossa procura.

PAIVA, José Carlos de . i2ADS - Faculty of Fine


Arts, University of Oporto, Rua Rodrigues de
Freitas, 265 4049-021 Porto PORTUGAL
Paiva, José Carlos de (2011) - I2ADS

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Arte | Outra introdução política para o desenvolvimento
Rita Rainho

“A palavra Arte assusta. Ou pelo menos processo de libertação ou de saída que cercam e
mete algum respeito.” Dionísio, 1997 perdem o ser humano e impedem a sua realização
como ser individual, social e ambiental (José Pedro
Barata, n.d. in Amaro, 1990).
1. A palavra ‘desenvolvimento’ assusta. ainda mais.

Ficámos afundados na ideia de um desenvolvi- 2. Só poderia ser em Conceição das Crioulas


mento apenas económico que, se no seu tempo
original da revolução industrial foi marcante, Conceição das Crioulas é uma comunidade qui-
nestes dias neoliberais e capitalistas, mais ainda o lombola com quem o ‘movimento intercultural
é. Nos últimos anos a designação de países ‘em de- Identidades’ iniciou laços de relacionamento em
senvolvimento’ ou outras que tais, define o recorte 2003. Pérola no sertão brasileiro, aloja em si uma
da área do poder, apresentando a condescendência experiência pessoal, pessoal e colectiva, muito
de que qualquer pessoa pode chegar a fazer parte especial. É sobre ambas que apresento aqui minha
da esfera ‘dos poderosos’. No entanto, e claramen- reflexão.
te se mantêm e dilatam as relações hierárquicas Da forte consciência colectiva, global e política,
assim como o fosso que as separa. Funda-se numa em 2000 fundou-se a Associação Quilombola de
voz única, o discurso de sombra financeira de um Conceição das Crioulas, AQCC. Trata-se de uma
mundo de desigualdades catastróficas, perpetuadas organização da própria comunidade, vocacionada
sobre si mesmo. para a organização de suas lutas. Brotou, subli-
Nada distraída com o espectáculo promovido nhando a necessidade de intensificação do direito
pelas grandes potências, Conceição das Crioulas, pelo bem comum desta população e desenhando o
pequeno território perdido no sertão do Brasil, desenvolvimento da mesma, como principal objec-
luta para o seu desenvolvimento. Qual? Aquele que tivo associativo e comunitário. AQCC, concentra
é transversal e humano. Ou, se desconstruirmos no seu discurso a convicção na luta pela sua pró-
a palavra ‘des - envolvimento’, esta sugere-nos o pria sobrevivência, vincada na recuperação e posse

39
Rita Rainho

da terra. Potencializa a valorização da construção bombasticamente formatado. A deslocação parece


da sua identidade quilombola, realidade e história permitir a abertura e consciência da geometria de
no sentido da conciencialização do povo negro outros pontos de vista do mundo, sua manera, mas
(uma população remanescente do passado escravo também seu lugar específico e global no contex-
brasileiro). Portanto posta no desafio da edificação to político, económico e social. Parece também
de uma sociedade justa e igualitária e ainda na desencadear frustrações capazes de abrir os olhos
quebra dos preconceitos e da discriminação racial. à urgente revisão da Arte e das culturas imponen-
Assim, as crioulas libertam-se, construindo um tes e impositivas. Construir outras, já agora com
desenvolvimento (não previsto ou pré-formatado, outros (que não sempre os mesmos).
mas o por si escolhido) e exigem o plural, múltiplo, “Arte, Própria e Dócil/ à própria Arte,
heterogéneo, diferenciado; a terra nunca efectiva- aos artistas, aos galeristas, aos críticos de
da, a voz participada. arte, aos professores de arte, aos museus,
aos coleccionadores, às editoras/ que
se vejam ao espelho!/ Arte, também se
3. deslocar(me) pouco própria, ou mesmo imprópria e até
intratável.” (Rainho, 2011)
É neste ambiente que se dá o processo de, ‘deslo-
car-me física e intelectualmente’ para esta ins-
trínseca e fascinante experiência. Leva-me a um 4. Arte, Própria e Dócil: trata-te!
exercício de diálogo motorizado pela inquietação
e frustração do envolvente. Este diálogo promove A arte contemporânea, importa aqui esclarecer,
um pensamento crítico, mas plural, político, mas está ciente das exigências das directrizes mundiais
comum. Capaz de um entendimento mais amplo, em favor da aproximação a âmbitos de alteridade,
no confronto intercultural e incoincidente, o terre- diversidade, sustentabilidade, periferias, partici-
no da Arte parece aqui ganhar sentido de existên- pação,... Tem-se vinculado a estas tendências, de
cia na deslocação. modo pouco crítico, e se crítico, pouco interventi-
Nas minhas rotinas de construção do ser, a Arte vo. De acordo com mecanismos do campo da Arte,
e a Cultura são a especificidade que me determina. estas práticas experimentais, marginais, regulares
Costumo até dizer, ainda que de modo descon- (e talvez por isso intratáveis) e impróprias, são
tente, que este meu umbigo ocidental é um olhar ‘permitidas’, consentidas e toleradas. No entanto,

40
Arte | Outra intromissão política para o desenvolvimento

sabemos da impossibilidade de coincidir, na mes- testar sua amplitude, pólo controverso na relação
ma face, determinadas práticas com a sua ‘consa- com o seu habitual campo específico. Vêm à su-
gração’. Portanto, aquilo a que este texto modesta- perfície, contradições do pensar e fazer do campo
mente se dedica é a entender e reflectir sobre uma artístico das nossa rotinas poderosas embuídas de
experiência provavelmente consentida, mas não ocidentalismos e capitalismo desenfreado.
consagrada. Desafiante e contínua, esta prática de
um conjunto de artistas com uma pequena comu-
nidade no interior do sertão brasileiro, figurou-se 5. ‘Intervenção artística em Vila União’
o contexto ideal para por à prova a minha descon-
fiança quanto às afirmações referentes à Arte ‘sem 5.1. mutirão, representação e imagem colectiva
fronteiras’, ‘sem territórios’. Agora mesmo poderia ‘Intervenção artística em Vila União’ é um projecto
desenhar limitações, prescrições e preconceitos do que tem o tempo das terras quentes e que, vindo já
âmbito da prática e teoria artística, bem como da de várias estações, se prolongará por muitas, nos
sua institucionalização e mercantilização. Parece- trabalhos de mutirão. Emerge de uma inquietude
me também, no campo autoral, mas obviamente comum, do grupo de artistas do ‘movimento in-
afectivo, que se sente uma arte sem interior, nem tercultural Identidades’ e da própria comunidade,
exterior, e tão ocidental que febril e fechada. No Conceição das Crioulas, no seu relacionamento de
pingue pongue de cá, a Arte e os artistas revêm o conhecimento, confiança e cumplicidade.
seu sentido, sua não-função, sua impermanência. No verão de 2008 emergiu este projecto, de um
Eis-nos em Vila União! pé de conversa num convívio na Vila União. Um
Postas as inquietudes pessoais e com o mundo almoço em família e com os amigos ‘Identidades’,
da arte em cima da mesa, penso sobre a impossi- fomentou as histórias do princípio e das motiva-
bilidade de uma prática inocente da arte. Penso ções daquela parte da Vila. O Sítio de Vila União,
sobre as controvérsias tangentes ao discurso poé- do ponto de vista geográfico é um braço prolonga-
tico e estético que se articule com na capacidade do de uma das saídas da Vila Centro de Conceição
de corporizar as convicções e comprometimentos de Crioulas. Teve nome de Vila União, resultante
políticos e utópicos do autor. de uma empreitada da comunidade que uniu os
No deslocamento para o sertão, especificamente esforços da população para resolver o grave pro-
Conceição das Crioulas, cheira-se a diluição do blema da doença das chagas que espalhava a morte
conceito de Arte, já que se forja a necessidade de e a doença na população. Detectado o problema (a

41
Rita Rainho

doença das chagas era propagada por um insecto empreitada terá prolongamento para a concepção
que se reproduzia em buracos da taipa crua das e execução de uma imagem identitária a incluir na
suas casas), sabia-se ser necessária a construção parte exterior da casa de cada família. O processo
de novo das suas casas, utilizando tijolo cozido. de recolha dessas histórias, elementos e imagens,
Mobilizando uma ajuda estadual as mulheres tem sido realizado pelas próprias gentes da comu-
organizaram-se para tirar barro, fazer tijolos, nidade, que incorporam o princípio da tarefa. Face
erguer paredes e telhados, conquistando com a a isso, passará por um processo longo de experi-
sua tenacidade a participação dos homens. Assim mentação e pesquisa do campo da simbologia e
nasceu a Vila União. Hoje, este Sítio é constituído representação. Passo a explicar: constituindo-se
por uma única rua de terra batida ladeada de cerca a referência de cada casa no conjunto do percur-
de 70 casas, algumas apresentando ainda o reboco so da rua, revela-se um processo interessante no
de cimento original, sem pintura, outras carecendo fenómeno de representar, representar um deter-
de reboco e pintura, por dentro e por fora. minado grupo familiar, entendido na sua pertença
A nós, esta magia e capacidade de mobilização a um colectivo. Um exercício da passagem da
parecia poder de novo repetir-se. E porque não? oralidade das histórias, da memória partilhada e
Ao pensamento dissidente, divergente e ousado, reconhecida e ainda da linhagem familiar, para a
mas confiante que tanto caracteriza o mundo da configuração de elementos visuais - pregnantes de
criatividade e dos artistas, instigou-se o desejo sentido representativo - no seu domínio estético e
e brotou o desafio que se transformou rapida- da subjectividade. que os reunam, vinculem e por
mente em projecto partilhado. Este programa, isso ‘representem’. O trabalho envolverá o projecto
‘Intervenção artística em Vila União’, tem a preten- ‘Expressões artísticas nas escolas da comunidade
são de voltar a reunir a população desta comunida- do quilombo da Conceição das Crioulas’. Com
de, para uma intervenção participativa (mutirão) as crianças, jovens e os professores, para além de
de arranjo das casas (reboco e pintura), interior e se desenvolverem os elementos visuais e gráficos
exterior destas. - Será branco a cor usada, decidida representativos de cada família, a implementar no
num processo participativo onde se queria acentu- contínuo da fachada das casas, pretende-se ainda
ada a UNIÃO, vertida para uma simbologia preci- recolher a história de cada família e editar uma
sa. A escolha de imagem colectiva determinou que monografia da vila.
o arruamento ficará dotado de uma imagem iden- “Toda persona y todo colectivo humano
titária fresca, cuidada, e forte na paisagem. Esta tiene derecho a la libre producción y a

42
Arte | Outra intromissão política para o desenvolvimento

la libre gestión, circulación y exhibición instarau-se a oportunidade de construir e difundir


de la própia imagen cinematográfica.” suas próprias histórias. A minha experiência de
Tudurí, 2008 trabalho e partilha com este grupo, concebeu em
mim a semente da complexidade, da profunda
5.2. Grupo Comunitário de Produção de Vídeo consciência política. Penso que em Conceição
Paralelamente à preparação e execução deste foi, efectivamente, o lugar e as gentes onde e com
programa do projecto ‘Intervenção artística em quem aprendi o âmago do poder do discurso
Vila União’ será realizado um documentário pelo que conta a sua própria história, gerando matizes
colectivo Crioulas Vídeo. Este poderá registar e e deslizes aos universalismos tendenciosos da
reflectir sobre o processo de trabalho, as dinâmicas História.
de tomada de decisão, a execução e finalmente as Importa aqui explicitar que, ante a força e o
primeiras transformações de Vila União. Existe poder de deter e difundir o próprio percurso da
também nesta competência de documentar uma comunidade, ressaltam-se as contradições vigentes
possibilidade de, simbolicamente eternizar, o na trama dos planos estratégicos da AQCC e na
mutirão, o fenómeno de transformação da paisa- vida das mulheres e homens que constituem este
gem de Vila União, a sua capacidade própria de árido território.
se representar intrínseca à própria acção (por um No inter-conhecimento que nos permitimos
lado nos elementos visuais na fachada, por outro (possível da relação de cumplicidade e confian-
na imagem do vídeo). Este colectivo, Crioulas ça), tornam-se mais visíveis as controvérsias que
Vídeo, autonomizou-se a partir de uma oficina que incorporam as suas posturas colectivas, as minhas
a comunidade solicitou ao ‘movimento intercultu- pessoais, todas as que exijam unidade no fortale-
ral Identidades’ em 2005. Convictos da força e da cimento, ainda que no campo empírico exista um
potencialidade de subverter as relações de poder saber lidar com a pluralidade.
frequentemente aliadas ao discurso, à imagem, Os jovens videoastas são há já alguns anos
a AQCC propicia uma estrutura para a gestação autónomos. Este grupo, Grupo Comunitário de
deste jovem grupo. Tem-se revelado um grupo Produção de Vídeo de Conceição das Crioulas
a partir da e de comunidade, determinante na (Crioulas Vídeo), além desse comprometimento
criação de uma imagem representativa própria, de com a comunidade adquiriu uma capacidade de
identidade una mas complexa e revelando sobre repassar as competências e ferramentas de luta
seu critério, a voz do seu povo. Por consequência para outras comunidades quilombolas. Os seus

43
Rita Rainho

vídeos correspondem a um discurso comunitá- Gostaria ainda de aqui sublinhar que se trata de
rio, à estratégia política da AQCC, a encomendas um projecto de mobilização e organização comu-
estaduais (e por isso renda) e a registos (prova) de nitária, cuja dimensão do colectivo é opção políti-
auto defesa perante afrontas no território quilom- ca, mas levado avante também como opção estéti-
bola. De acordo com a nossa visão e expectativa ca. ‘Intervenção artística em Vila União’ estende-se
talvez pudesse estar presente um investimento no tempo da relação, vem de longe e prolonga-se
mais expressivo, plástico, narrativo ou do domínio na luta da comunidade pela identidade colectiva,
da ficção nos trabalhos que realizam. Mas sabemos melhoria das condições de vida e reforço da cons-
ter de suspender este nosso desejo e apenas agir no ciência política comum. Contém em si assim um
decurso das linguagens espontâneas e empíricas trabalho de ritmo dengoso, espraiado no tempo
que se soltam do seu trabalho. Ainda assim ficam do resistir e avançar, lento. Ainda a meio passo,
por assinalar a divulgação de vídeos na televisão transborda já, como aqui foi tentado demonstrar,
recifense, ou prémios nacionais e internacionais de uma reflexão teórica e um pensamento crítico
vídeo granjeados. relativo às possibilidades da arte se sintonizar com
Por fim, de ter vingado este colectivo nas terras a cultura e vida das comunidades. Nesta pequena
áridas espera-se que mais vezes a câmara seja in- vila, Vila União, cuja origem revela um passado e
trumissora na rua das comunidades, nas activida- presente de forte potencial, ganha relevo a inicia-
des, nas pessoas, para desse meio, dessa ferramenta tiva das mulheres (ainda que nela se envolva de
se soltem possibilidades de discurso político, visu- toda a população), na determinação e participação
al, expressimo e sobretudo veículo de experiência democrática. É por isso terra fértil por excelência
de cultura e conhecimento. No caso de Conceição para práticas comuns, participativas, e de posi-
é já garantido que o vídeo permite o registo eter- cionamento situado segundo a noção política do
namente simbólico da luta, do triunfo de todas as antagonismo social, da presença de um conflito
conquistas na resistência de cada dia, capacidades produtor simultaneamente de sentido e de acção.
adjacentes às noções do realismo social extremo Estaríamos a falar de actos artísticos colectivos,
no século XXI introduzido por Tudurí (2008). ou comunitários de cidadania, de política. Esse é ou-
tro jogo de contradições. Ainda que assim fosse, que
tipo de acções políticas são essas? Arte ou política?
6. estética do colectivo. arte ou política? Tratando-se de uma comunidade cujo sentido
comum é objectivo e arma de luta, estarão estas

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Arte | Outra intromissão política para o desenvolvimento

acções culturais, ao serviço da política? E que ser- RAINHO, Rita, (2011), des abafos contra Arte,
viço é esse já que é composto pela força da partilha Porto.
do sensível, das emoções comuns, da ‘magia’ da TUDURÍ, Gerardo (2008) ‘Manifiesto del cine
estética na capacidade de interacção’? Certamente sin autor’, contratiempos nº 15, Centro de
nos arriscamos, em Conceição das Crioulas, ao Documentación Crítica, Madrid.
assomar da esteticização da política, das políticas
culturais das magias espectaculares, em detrimen-
to do entusiasmo político - esse sim por excelência
mantido nesta comunidade. Repito - entusiasmo
político. Essa é a frescura de tal lugar longínquo do
conceito de Arte.
Dessa imagem de um sertão desértico para
agricultura, também para Arte, eis o desafio que
incorporamos juntos. Que Arte?

Bibliografia

BARATA, José P., n.d. in Amaro, Rogério (1990),


‘Desenvolvimento e injustiça estrutural’,
COMMUNIO, ano VII 1990, n.5, pag 456.
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Maio, Lisboa.
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Political’, O Regresso do Político, Gradiva,
Lisboa, 1996, tradução de Ana Cecília Simões.
PAIVA, José Carlos de, ‘entrada de leão, saída
de cordeiro’, in ‘ID10’, GESTO Cooperativa
Cultural, Porto. RAINHO, Rita (2011) - I2ADS

45
Saboreie mas não engula: Cozinhe você mesmo os meios para a sua expressão
Tiago Assis

Abstract de respeito mutuo e ampliação do conhecimento


sobre as áreas abordadas. A defesa da inovação
Desde 2003 que um colectivo de artistas, que tecnológica e a expansão dos espaços comuni-
integram o Colectivo de Acção e Investigação cacionais da comunidade levam à importação
(CAI) e pertencem ao ‘movimento intercultural de tecnologias com gramáticas e sintaxes que
identidades’, tem desenvolvido actividades e expe- não lhe pertence. Este conflito abre a investiga-
riências com uma comunidade quilombola, no ção sobre a natureza das interfaces e aplicações
sertão Brasileiro em Conceição das Crioulas. Essa amigáveis, numa utilização dentro do contexto de
comunidade vive numa constante luta pela posse tecnologias de informação e comunicação para
da terra, direito à educação e saúde para digni- o desenvolvimento (ICT4D — Information and
ficar a sua vida e identidade. A relação de cum- Communication Technologies For Development).
plicidade estabelecida permite a formulação de As receitas usadas para implementar as tecnolo-
um corpo teórico que se apresenta como acção/ gias sob o acrónimo ICT4D são baseadas numa
investigação. Este artigo centra-se na possibilida- perspectiva ocidental que, muitas vezes, ignora
de das comunidades criarem os seus laboratórios, os aspectos socio-culturais das comunidades
preservando a sua autonomia e identidade, ao acabando por se tornarem em projectos de cima
mesmo tempo que o mundo ocidental saboreia e para baixo.
aprende a partir dessas experiências. A natureza
particular desta acção/investigação determina a
importância de articular no campo político das Apreciando a refeição
áreas desenvolvidas, uma posição acerca do con-
ceito arte/desenvolvimento. Por ter lugar numa Em 2005, a pedido da comunidade, o Identidades,
comunidade em que, as identidades apresentam organizou uma Oficina de Vídeo da qual viria a
uma enorme complexidade multicultural, a surgir o grupo Crioulas Vídeo (http://crioulasvi-
relação intercultural segue através de práticas de deo.org).
cumplicidade construídas num continuo processo Com apenas oito dias de oficina para jovens que

47
Tiago Assis

estavam a ter os primeiros contactos com estas interessava esmiuçar as diferenças pois, indeléveis,
tecnologias, não fazíamos ideia do resultado a seria difícil dissipa-las num ‘terroir’ de qualquer
esperar. Achamos por bem deixar o equipamento produto tão genuíno que só existiria na sua terra
(Apple Imac G4, câmara de vídeo Sony “Digital 8”, de origem.
tripé e microfone) de modo a estes jovens poderem Era a cachupa africana rebatizada de munguzá,
dar continuidade ao projecto, pondo em prática os alterada, pelas pessoas, terra e clima do nordeste
conhecimentos adquiridos. pernambucano.
Um ano depois, voltamos a Conceição das Em Conceição das Crioulas, já há muito que
Crioulas e fomos surpreendidos com a produ- o povo percebeu a importância de reorientar em
ção de mais de 20 vídeos, executados de forma seu benefício tudo o que vem de fora. É assim na
autónoma e profissional. Entre eles, “Serra das educação com os seus currículos diferenciados; é
Princesas” tinha passado na Televisão Universitária assim na arquitectura ao construir colectivamente
do Recife e viria a ser exibido em diversos festivais. uma aldeia; é assim na agricultura com adaptações
O intuito da nossa ida era continuar com as ao seu terreno seco. Mas, apesar das já vastas im-
oficinas mas, desta vez, fizemo-nos acompanhar portações do mundo exterior, a decisão de alterar
de António Tavares (Toni) para fazer uma oficina o meio ambiente, como o desviar um caudal do
de dança. Tínhamo-nos apercebido que a procura Rio S. Francisco para usufruírem de uma necessi-
da identidade quilombola afro-descendente no dade tão básica como água potável, é um assunto
que refere a dança estava muito longe, ao contrário tão delicado que obriga a ampla discussão, com
das raízes gastronómicas, por exemplo. a comunidade a intervir, demonstrando o enor-
Toni é cabo-verdiano e estava pela primeira me sentido de responsabilidade e o respeito que
vez em Conceição. Uma vez, a almoçar mun- têm por aquilo que consideram o seu bem mais
guzá, Toni, reconhecendo as semelhanças com a precioso: o seu território. É latente a consciência
cachupa do seu País comentou: política da manipulação das grandes corporações
“As pessoas pensam que os povos se distinguem sobre as necessidades dos mais pobres.
pela côr da pele, pela raça ou seja lá o que for... Os Com os media essa consciência mantém-se. Há
povos distinguem-se pela comida e este povo é muito acostumados a serem o alvo de reportagens
Cabo-Verdiano e não sabe.” e documentários onde praticamente não se reviam,
Não era cachupa, mas o que poderia faltar para quiseram descobrir e utilizar os media a seu favor.
ser cachupa estava num terreno de ninguém. Não Foi na realização deste desejo que o identidades

48
Saboreie mas não engula: Cosinhe você mesmo os meios para a sua expressão

participou com as oficinas de vídeo e publicação A haver modelo, ele reside num permanente
web que deixaram Conceição das Crioulas com a conflito com ele próprio: sabemos que somos dife-
capacidade e os meios necessários para produzir os rentes e que temos que reorientar a tecnologia para
seus próprios objectos audiovisuais. as nossas especificidades. Aquilo que aprendemos,
nós e a comunidade, é que trazemos sementes de
outros lugares e que, para se darem na nossa terra,
Maiêutica Cultural e um desígnio comum. têm que ser plantadas de outra maneira. As inter-
faces das tecnologias possuem cargas culturais que
Definitivamente este projecto distingue-se de precisam de ser redefinidas em cada cultura.
muitos outros espalhados pelo mundo, geralmente 3) Os intervenientes, não são grupos organiza-
sob a sigla ICT4D. dos para captar fundos e executar projectos com
Não o queremos distinguir em termos de valor modelos pré-definidos fazendo dessa prática o seu
para o desenvolvimento das comunidades, não ofício. Não queremos replicar modelos de ‘sucesso’
estamos certos de que seja mais ou menos válido, que garantam um ‘desenvolvimento’ similar aos
nem tão pouco se falamos do mesmo tipo de ‘de- ‘países desenvolvidos’. Pelo contrário, reiteramos
senvolvimento’. Sabemos que corremos o risco de que queremos descobrir as nossas necessidades e
pisar em terrenos susceptíveis a grandes discussões, como reorientar as ICT em função delas.
no entanto, queremos em primeiro lugar distinguir 4) Os intervenientes tornam-se autónomos ime-
a génese do projecto e as entidades que o compõe: diatamente a seguir a cada momento de interven-
1) O projecto nasce de uma necessidade explíci- ção. Existe uma dispensabilidade sempre presente,
ta da comunidade. Foi a comunidade que decidiu em que nenhum precisa, ou depende, do outro para
que queria utilizar as ICT e reorientar as práticas continuar... Ao mesmo tempo, um dos eixos de
para as suas necessidades politico-sociais, ao con- continuidade reside nas dinâmicas provocadas em
trário de projectos que se baseiam no olhar exter- que, a arte e a tecnologia (neste caso), transformam
no com a premissa de que é necessário informati- os intervenientes. Sem saber as razões e conse-
zar as comunidades para que elas se desenvolvam. quências dessa transformação e dessas dinâmicas,
2) O modelo não foi uma implementação de viciamo-nos nelas. Podemos dizer que não depen-
cima para baixo - aplicando ‘receitas’ desenvolvi- demos uns dos outros, mas de certa forma, depen-
das em Silicon-Valley por companhias que sabem demos desse vício pelo desconhecido que quere-
o que as pessoas precisam… num computador. mos conhecer e marcamos aí o ponto de encontro.

49
Tiago Assis

Este desígnio é comum à comunidade e aos autodeterminação de um autor aproxima-se do


membros do Identidades, cada um dos interve- da autodeterminação cultural, ambos procuram
nientes procura o seu espaço de acção em conjunto ultrapassar as margens do que está estabelecido na
e individualmente. Caracterizamos este projec- busca da sua identidade.
to como um projecto egoísta, não obstante nos
solidarizarmos com os diversos problemas, todos
sabemos que os conflitos culturais e individuais Conflito ICT
são o motor que permite o crescimento colectivo e,
simultaneamente o de cada um. Quando computadores e internet chegam a estas
Há neste processo uma maiêutica individual mas comunidades, chega também, todo um trajecto
também cultural, no sentido que cada um pergunta histórico de construção dessas tecnologias que há
a si próprio quem sou eu e colectivamente quem muito se afastou desses povos. Não chegam só os
somos nós? Este conflito identitário da procura de dispositivos, uma das características das ICT é que
um conhecimento sobre nós próprios é um desejo as interfaces vêm rotuladas com palavras como:
do qual resulta uma permanente desobediência amigáveis, intuitivas, utilizáveis etc. De facto, o
intelectual às receitas e aos modelos externos. que se passa é que debaixo de metáforas como
Queremos conhecer as receitas para podermos “secretárias” e “janelas” encontramos as receitas de
rejeitá-las, ou pelo menos, reorientá-las. utilização destes meios. e.g. Ícones figurativos com
Interessamo-nos pelas diferenças e conflitos no mensagens de como devemos utilizar estes meios.
sentido em que proporcionam novos terrenos para A carga cultural implícita nas interfaces gráficas
nos identificarmos. destes dispositivos é um veículo de globalização e
Pode ser esta desobediência uma resistência uniformização dos seus utilizadores.
ao desenvolvimento social? Não. Se for feita com Assumimos, portanto, que contribuímos para
a sinceridade de quem procura conhecer-se. Aliás, esse efeito perverso, ao participarmos activamente
julgamos que este pode até ser um alicerce para o na experiência com estes meios. Mas, o facto de o
desenvolvimento social deste tipo de comunidades. fazermos conscientes desse efeito - e antecipando-
Nesta afirmação fundimos Arte e Sociedade, -nos a outras tentativas de expansão destes meios,
pois o que pode ser comum aos artistas e ao povo - permite colocar este conflito a par dos outros.
de Conceição é que ambos querem conhecer-se Ou seja, num sentido de reorientação para as
e desenvolver-se no desconhecido. O poder de nossas necessidades.

50
Saboreie mas não engula: Cosinhe você mesmo os meios para a sua expressão

Há um momento de diálogo com as comunida- atrevidos, foi surpreendente ver os vídeos do pri-
des, antes de passarmos a qualquer tipo de acção. meiro ano, particularmente o “Serra das Princesas”.
Um momento de discussão em que tentamos per- Um documentário que a partir de uma lenda leva
ceber as necessidades dos diversos intervenientes. o Crioulas Vídeo a aventurar-se na descoberta dos
No Identidades chamamos-lhe ‘momento zero’. territórios quilombolas. Progressivamente os vídeos
Os espaços entre esse momento e os momentos vão ficando institucionalizados e cada vez mais
seguintes são uma tentação para usar receitas. Se instrumentalizados pela política da comunidade
resistirmos talvez encontremos outras receitas nos abandonando a ficção. O vídeo e as ICT tornam-
processos e nas necessidades, em terrenos que não -se em ferramentas políticas, nesse aspecto servem
são os nossos. Poderemos saborear os momentos as necessidades da comunidade porque ela precisa
especulativos dos que definiram as regras que dessa arma para se defender das hostilidades, mas a
conhecemos e mudar alguma coisa em função do interrogação permanece:
nosso ambiente. Pode uma comunidade emancipar-se no sen-
É fácil seguir uma norma, o difícil é criar um tido de desenvolver uma gramática própria nos
ambiente conceptual a partir de nós próprios. meios que utiliza?
No caso dos primeiros trabalhos do Crioulas Os primeiros momentos apontam para isso,
Vídeo, deleitamo-nos a observar a gramática do para um desenvolvimento endémico. No ‘momen-
realizador norte-americano D. W. Griffith a diluir- to zero’ os elementos perturbadores que podem
-se, perante um colectivo, que aprende pelos seus impor uma ‘receita’ somos nós (identidades) e os
próprios meios a estabelecer a sua maneira de próprios meios, nas retóricas que carregam como
contar as histórias. As narrativas pertencem ao referimos anteriormente. Mas, como partilhamos
imaginário Quilombola e às constantes lutas que o interesse em conhecer e adaptar os meios às
desempenharam ao longo da sua história. necessidades especulativas de investigadores das
Mas essas idiossincrasias vão desaparecendo com artes, suspendemos as receitas deliberadamente.
a invasão de referências externas, pelo aparecimento Tentamos perceber o que os meios têm para ofere-
de mais dispositivos e.g. TVs, DVDs e a internet. O cer nas margens da sua utilização.
próprio Crioulas Vídeo vai à procura delas, como A realidade de Conceição das Crioulas é
é natural a qualquer um que se entrega a conhecer interrompida por nós e pelas tecnologias nestes
o meio. Concluímos que os primeiros momentos momentos. Mas, nunca deixa de ser interrompida
de contacto com o meio são naturalmente os mais na nossa ausência porque os vazios entre nós, as

51
Tiago Assis

tecnologias e Conceição, permanecem pela ausên- markting implacável, encobre uma palavra que
cia da receita. As perguntas ficam e são repetidas poderia ser bem mais pertinente para um sentido
incessantemente durante e depois dos nossos de desenvolvimento: “from” (a partir de).
encontros. Esta realidade é tão não-linear como As receitas estão nas comunidades, aprender
as próprias ICT e, tal como nas ICT, a interrupção com elas um novo olhar sobre as tecnologias,
não impede o movimento. aprender novos usos em contexto de desenvolvi-
mento, para assim redefinir as ICT ao serviço das
pessoas. Abram-se espaços e laboratórios intercul-
As nossas receitas. turais de “ICT from communities” (TIC a partir
das comunidades)e o desenvolvimento poderá ser
Aprendemos novas receitas como os três Cs, consequência desse processo.
(confiança, conhecimento e cumplicidade), receitas No actual modelo, vemos ONGs (Organizações
que emanam dos processos, ao mesmo tempo que Não-Governamentais) a trabalhar metade de um
mantemos os conflitos. Receitas que não podem ser ano para conseguir projectos ICT4D, para pas-
doutrinas porque só fazem sentido nas acções que sarem o resto do ano a implementar os projectos
nos envolvem. Não servirão para mais ninguém e que, longe de serem o que as comunidades preci-
são tão efémeras como o nosso movimento. sam, são os projectos que as empresas tecnológicas
Permitam-nos dizer que a nossa experiência precisam de implementar para assegurar o seu
obriga-nos a desconfiar de receitas ICT4D que ig- negócio.
noram os aspectos culturais das comunidades que No caso do Crioulas Vídeo foi conquistada uma
se propõe transformar. autonomia, o trabalho deles consegue renda den-
Uma breve perspectiva sobre a evolução das tro e fora da comunidade. Isso permite a aquisição
ICT, dá para perceber que a receita resume-se a de equipamento e a continuidade do projecto. Dão
que os primeiros que chegarem e implementa- formação noutras comunidades Quilombolas re-
rem modelos, conquistarão tudo. O que se faz em plicando as suas receitas e inventando outras. É um
Silicon Valley é o que se tenta impor no resto do projecto de baixo para cima, de dentro para fora.
mundo. Estas estratégias impedem ‘momentos ze- A necessidade de um autor em exprimir-se e a
ros’ pois o ‘momento zero’ já foi em Silicon Valley. necessidade de uma comunidade em se exprimir
Aliás, a sigla que cuidadosamente assume o partilham desafios comuns. Um deles é descobrir a
“for” (para) como um número, num gesto de sua receita e não se conformar com as dos outros.

52
Saboreie mas não engula: Cosinhe você mesmo os meios para a sua expressão

Deixar que os ingredientes absorvam a receita, que


o “terroir” se manifeste, que os acidentes aconte-
çam… Especular entre a receita e o cozido, entre o
eu e o outro, e o munguzá aparece e as identidades
transformam-se.
Esse é um território das artes que, quando par-
tilhado com a sociedade, talvez se desenvolva, ou
pelo menos se transforme.
Nós continuamos a ir saborear as receitas
Quilombolas levando alguns ingredientes para lan-
çar o conflito. Como naquele ano de 2006, quando
Toni (Cabo-Verdiano) resolveu fazer a cachupa
para mostrar como era semelhante ao munguzá.
Liderados por Toni, Quilombolas e Portugueses
puseram as mãos na massa seguindo a receita
tradicional. Estava óptima, mas, o Toni que nos
perdoe, estava mais parecida com o munguzá do
que com a cachupa cabo-verdiana.

ASSIS, Tiago (2011) - I2ADS

53
Mugunzá ou Cachupa: O direito à conquista e à descoberta de uma nova
receita pedagógica.
Mónica Faria

Mónica Faria, Instituto de Investigação em Arte, o contributo da arte na educação e na consciência


Design e Sociedade (I2ADS) das identidades?

O texto que aqui apresento reflecte uma visão par-


cial do que é transversal ao projecto que o movi- Introdução
mento intercultural IDENTIDADES promove na
comunidade do sertão pernambucano, Conceição “(…) 8. Visando o quilombismo à
das Crioulas, Brasil. fundação de uma sociedade criativa, ele
A conquista pelo direito à educação, prevê a procurará estimular todas as potencia-
construção de um Projecto Político Pedagógico. Na lidades do ser humano e sua plena rea-
procura da demarcação desse território enfrenta-se lização. (...) As artes em geral ocuparão
a solidificação e a sistematização dos conhecimen- um espaço básico no sistema educativo
tos das expressões artísticas da comunidade para e no contexto das actividades sociais.”
as escolas. (Nascimento, 2009:213)
A conquista pelo direito à educação, prevê a
construção de um Projecto Político Pedagógico. Na A comunidade do Quilombo de Conceição das
procura da demarcação desse território enfrenta-se Crioulas luta pela restituição e posse da terra, pelo
a solidificação e a sistematização dos conhecimen- direito à educação e à saúde, procurando um me-
tos das expressões artísticas da comunidade para lhor sentido de vida, organizando-se no exercício
as escolas. por uma democracia participativa. A conquista de
As perguntas que se pretende reflectir são: como uma destas tomadas, significa a conquista de todas
trabalhamos na nossa escola e de que forma ela as outras, como uma rede que une os vários laços,
pensa e vive a comunidade em que nos inserimos? onde fortificando um fortalecem-se os outros. O
Como trabalha ela no sentido do reconhecimento todo que define a identidade da Conceição das
das outras comunidades que nos paralelam? Qual Crioulas é todo o cruzamento e o fortalecimento

55
Mónica Faria

dessa rede. A restituição do território quilombola Freire (CCLF) e da Associação Quilombola da


efectua-se com base em laços familiares fundados Conceição da Crioulas (AQCC) para realizar uma
num espaço intercultural, de cruzamento entre oficina de artes plásticas, principalmente para a
índios, entre negros descendentes de escravos faixa etária infantil e juvenil. O Rogério Manjate
africanos, entre descendentes de colonos europeus. orientou uma oficina de teatro. A data escolhida
A escola transpira preocupações ao mesmo nível foi a grande festa da ‘Nossa Senhora da Conceição’
e integra todas as problemáticas da comunidade. a santa padroeira da comunidade, em pleno agosto
É uma importante ferramenta de emancipação da sertanejo. A festa durou quinze dias e durante esse
própria comunidade. tempo organizaram-se várias oficinas: teatro, con-
Nesse contexto de luta, no campo da educação tação de histórias, história da África, artes plásti-
a comunidade implica-se na construção de um cas, dança e percussão.
Projecto Político Pedagógico (PPP), onde se con-
templa uma Educação Específica, Diferenciada e
Intercultural Quilombola. Nessa busca procura-se A primeira manifestação
estabelecer uma forte presença das expressões ar-
tísticas no currículo da escola, opção que pretende Conhecer a comunidade nesta condição exige uma
reforçar e fortalecer a identidade cultural da comu- (des)confiança carregada de uma expectativa deter-
nidade. Conceição das Crioulas torna-se pioneira minante para o inicio de qualquer relação. Ao se-
e, por isso mesmo, um exemplo e referência para gundo dia, já estava apaixonada – soube-o depois –
outras comunidades, pelo sentido que confere ao o que naquele momento reconhecia era a presença
caminho que traça e que desenha para o futuro. de uma energia contagiante, de uma identificação
ou de uma contradição inquietante, que denuncia-
va uma vontade enorme de dar e de receber tudo o
Conhecer que fosse possível nos poucos dias que sabíamos ir
lá estar, para aproveitar este encontro.
Em 2003, eu, a Iva Correia, ambas viajando do Na oficina de artes plásticas, o desenvolvimento
Porto, e o Rogério Manjate de Moçambique das actividades sugaram-me no momento em que
tivemos a oportunidade de visitar e conhecer a lá me encontrava. Não foi necessário procurar um
comunidade através do ‘movimento intercultural tempo para apresentação do trabalho, exercício ao
Identidades’, a convite do Centro de Cultura Luís qual me haviam acostumado enquanto estudante

56
Mugunzá ou Cachupa: o direito à conquista e à descoberta de uma nova receita pedagógica

de belas artes - os resultados finais de uma oficina muito’. As oficinas de teatro, dança e precursão
desta natureza serviria também como validação apresentaram o resultado do seu trabalho. Magia
e avaliação da minha competência, provocando para mim, foi o momento em que as crianças,
a sensação de trabalho cumprido. Mas até neste espontaneamente, apareceram com as suas pro-
ponto fui surpreendida. Ganhava relevância o pro- duções oficinais desse dia – as máscaras - o que
cesso e o progresso que se sentia partilhado desde causou um certo burburinho alegre da parte de
a manhã até ao final de um dia de trabalho, feito de toda a gente que viveu intensamente o dia-a-dia
experiências empenhadas, de descobertas, ainda do resultado daquela oficina. Havíamos de voltar a
que muitas delas efémeras. Dia após dia acontecia marcar encontro, essa era a certeza.
este registo. Inevitavelmente, o dia seguinte exigia E assim foi. O encontro marcado pelo ‘momen-
outras coisas, outras trocas, outras acções que to zero’, meses mais tarde. Uma conversa longa o
implicavam e não estavam separadas da vontade suficiente, para se entender que comum, segundo
de conhecer o Outro, de nos deixarmos encantar Rancière, poderia existir entre nós. Que espaço,
e experimentar juntos. E assim foi durante as duas que tempo, que distância, que proximidade, que
semanas de actividade. Quem participava agia sensibilidades se estabelecem entre nós e como
assim, mas quem não participava da oficina agia do estávamos prontos para enfrentar esse caminho em
mesmo modo. A comunidade nunca teve a preocu- conjunto. E em 2005 voltávamos para o ‘momento
pação de ‘procurar’ o objecto final, remetido para um’, conscientes que queríamos construir uma
uma apresentação especial de último dia. No entan- relação contínua.
to encantavam-se, e por isso assimilavam todas as
descobertas como suas - todos esses ‘objectos finais’
que as crianças e jovens transportavam diariamente Confiar
da oficina para a rua (que é o mesmo que casa).
O último dia da oficina, foi usado pela con- A oficina que se realizou em 2005, contou com a
fecção de máscaras. E foi marcado por ser isso participação de professoras e crianças, ainda que
mesmo, por ser o último dia. O presságio do ‘e todas estudantes. Repetíamos a experiência, mas
agora que há-de ser de nós?’ depois de um tempo desta vez com um objectivo em concreto – cons-
tão intenso. À noite os festejos terminaram com a truir a praça em maquete. Pretendia-se realizar um
novena. E terminaram com a despedida do ‘hoje trabalho que se amarrasse ao local, que estabe-
soube-me a pouco, portanto, hoje soube-me a lecesse um modo de interpretar o espaço todos

57
Mónica Faria

os dias vivenciado. Observar e ver o lugar onde Cúmplice


nos encontrávamos e como o representávamos.
O corpo como medida. A folha como medida. O Em 2008 pensamos em dar um passo mais consis-
desenho como meio de expressão. O levantamento tente. Existia já muita coisa em comum, e por isso
de uma representação bidimensional e a sua trans- questionávamos sobre o currículo diferenciado
formação em tridimensional. Ali aprendíamos que a comunidade procurava para as suas escolas
todos uns com os outros, experimentando e de- especificando a presença das artes nesse currículo.
senvolvendo novos métodos e novas perspectivas Destas conversas estabelecemos uma parceria com
de aprendizagem observando e aprendendo com comunidade e com a Prefeitura de Salgueiro para a
o meio envolvente. Entendendo o lugar de modo organização de um projecto com a duração de dois
partilhado, questionando-o. anos, 2009-2011 - ‘expressões artísticas na comu-
As oficinas que se seguiram, nos anos seguintes, nidade da Conceição das Crioulas’, que contava
2006 e 2007 resultaram em dois livros: o primeiro, com encontros formativos em Portugal, na cidade
uma compilação do resultado da oficina de im- do Porto. O projecto centrava-nos na procura
pressão (linogravura, decalque, xilogravura, entre de um currículo das artes a incluir no processo
outras técnicas); o segundo ’10 anos de história da de construção do Projecto Político Pedagógico.
AQCC’ maioritariamente efectuado com as pro- Entendemos que era altura de abrir as nossas casas
fessoras que faziam parte também da sua comissão à Conceição das Crioulas, que aprende com o
de comunicação da associação, um livro composto mundo conquistando passo a passo a sua presença
por textos então redigidos e ilustrações inventa- e a sua voz nesse espaço global.
das. Em 2008 produziu-se de modo participativo
um teatro de sombras, usando um retroprojector:
‘ As seis negras’ e ‘A escola José Mendes’, foram Projecto Político Pedagógico - Educação diferenciada
as histórias criadas, dramatizadas e teatralizadas
através de sombras do corpo e de elementos visuais “... nunca em nosso sistema educativo se
recortados. As oficinas começaram a ficar restritas ensinou qualquer disciplina que revelasse
às professoras tendo em conta a necessidade de se algum apreço ou respeito às culturas,
desenvolver material crítico e teórico a partir da artes, línguas e religiões de origem africa-
prática, e os mesmos exercícios poderem ser trans- na.” (Nascimento, 2009:198)
portados e aplicados na sala de aula pelas mesmas.

58
Mugunzá ou Cachupa: o direito à conquista e à descoberta de uma nova receita pedagógica

A construção da identidade de cada instituição colectivo. O currículo diferenciado procura deste


escolar passa pelo entender da necessidade, e modo manter a base formal curricular proposta a
da existência, de um currículo diferenciado. Por nível nacional, mas estabelecendo com o currículo
currículo diferenciado entenda-se a afirmação da formal uma forma de interpretar e de valorizar ‘
individualidade de cada instituição, tentando dessa o que é nosso’ e o que é local, enquanto elemento
forma retirar qualquer factor preponderante de central do currículo, definindo, assim, a abertura
algum currículo em relação a outros. Cada escola de novos capítulos na história.
deveria procurar aplicar de forma diferenciada o Na construção do PPP (Projecto Político
mesmo currículo formal. O currículo formal é uma Pedagógico), desenvolvem-se os parâmetros a
imagem da cultura digna de ser transmitida, com a respeito da educação diferenciada. Nesta pro-
codificação e a formalização correspondente a esta posta torna-se pertinente prestar atenção à
intenção didáctica (Perrenoud, 2001). Na comu- importância da escola ter professoras que sejam
nidade da Conceição das Crioulas, reclama-se o da própria comunidade, conhecedoras e sujeitas
direito de um currículo diferenciado tendo como da história e da sua luta. Por um lado a profes-
comparação o currículo formal que é visto como sora da comunidade trabalhará com o currículo
sendo externo e global anulando dessa forma a diferenciado a partir de dentro, compreendendo
validação de outras imagens de cultura dignas de e dominando os valores culturais e apoiando os
serem transmitidas e o esquecimento do interno e objectivos com os quais a comunidade luta. Só
particular da sua cultura. No entanto, todos os cur- desta forma a escola cumpre o seu dever e o seu
rículos têm como objectivo, promover a educação papel na causa e na comunidade quilombola,
para a cidadania, para a cultura democrática e a reforçando o colectivo. Por outro lado faz-se ur-
abertura ao Outro. Todos exigem o direito à sua gente chamar a atenção do acesso à comunidade,
existência, individualidade e pertença à rede global cujas vias de circulação encontram-se em muito
e ao tecido social. É necessário ter presente o mau estado e dificultam o transporte até à cidade
esforço que deve ser feito por todos e no espaço da mais próxima, Salgueiro. As professoras que não
escola, espaço por excelência educativo, por com- são da comunidade muitas vezes não conseguem
preender primeiramente a urgência da necessidade ir para a escola causando uma situação instável
de trabalhar a consciência crítica do lugar que no ritmo diário da escola.
ocupamos e como nos encontramos em comuni-
cação e na identificação, ou na definição, com o

59
Mónica Faria

Projecto Político Pedagógico - Educação intercultural Tradução

Como referido anteriormente, a comunidade Neste contexto, as professoras são mães, tias, avós,
estabelece-se numa relação contínua de cruza- portanto família. Seguindo as leituras de Jacques
mento entre índios locais, descendentes de negros Rancière, a experiência que aqui se constrói
e de europeus. Dessa forma, situa-se num campo assenta-se numa base onde todos são ‘Mestre
complexo, muitas vezes, controverso. Com uma Ignorante’ - as professoras são também estudantes,
forte consciência política, a comunidade define- aprendem entre elas e com a comunidade. No en-
-se enquanto quilombola, mas tem consciência tanto, a questão da tradução que existe no ‘Mestre
que a sua convivência se constrói lado a lado com Ignorante’ a nível linguístico, segue na direcção de
diversas culturas. Se o PPP se define enquan- traduzir recursos, leituras, produção de imagens
to quilombola, na escola a prática revela outras e produtos. A tradução é uma constante: de fora
participações e abre outras discussões. O reflexo para dentro, de dentro para fora, de dentro para
dessa diversidade apresenta-se desse modo como dentro. Esta situação exige uma constante demons-
respeitando uma outra cultura que se mostra e tração de perspectivar o olhar e entender o con-
que revela modos próprios de habitar em pleno texto, o método, a potência da sensibilidade e da
sertão, rural, com os meios de subsistência que inteligência. Valorizando e reforçando a identidade
acabam por se afastar de clichés criados a respeito da comunidade.
do que é a cultura africana ou indígena. Um factor Partindo da complexidade do conjunto de acti-
preponderante nesta análise, e que se mantém em vidades com que a comunidade se faz apresentar,
comum é o valor comunitário e a procura por uma procuramos isolar uma das suas acções que pode-
vida melhor, mais respeitada. Esse é o ponto forte mos denominar como pertencente ao grupo das
identitário que se respira nas tomadas de decisão. aprendizagens manuais: uma linha de artesanato
Decide-se o melhor para a comunidade, e toda a com a qual se representa, a nível cultural e identi-
gente tem o seu lugar, papel, opinião e voz na hora tário, no âmbito nacional e internacional - bone-
de se tomar decisões. cas, malas, jogo americano, entre outros, que pro-
duzem com o algodão e a fibra cárua que retiram
do plantio, e tigelas, pratos, panelas que produzem
com o barro que extraem da terra. Serve-nos este
isolamento e esta prática para entender e analisar a

60
Mugunzá ou Cachupa: o direito à conquista e à descoberta de uma nova receita pedagógica

força que existe, distante do fazer artístico, mas im- Observando todas as ferramentas que a ter-
portante para fortalecer a identidade que é trans- ra oferece, trabalha-se no sentido de conferir o
posta para o currículo artístico na escola, focando reconhecimento-do-conhecimento já adquirido
a premissa do currículo diferenciado. A comunida- mas não consciencializado na exploração do
de aprende com a comunidade e com quem chega domínio que existe no saber-fazer do mestre.
cheio de olhares exteriores. Procura-se crescer no entendimento daquilo que já
Focando as suas produções - a ‘boneca’, objecto se domina para acrescentar novos entendimentos
representativo das pessoas que fortaleceram a luta e novos modos do fazer, entregues aos olhares das
quilombola torna-se, desta forma, num símbolo crianças e jovens que fazem parte deste processo e
de homenagem, de memória, de identificação, en- crescem num outro tempo, com novos estímulos.
quanto os outros objectos, jogo americano, malas, Absorvendo e traduzindo a realidade e a pertença
tigelinhas, panelas, de cariz utilitária transmitem da sua cultura, transmitida por códigos decifrados
modos e usos próprios de quem habita e utiliza e dominados por quem os produz e cria.
tais instrumentos na sua prática diária. Fica assim A necessidade de repassar esses conhecimentos,
presente, os meios de estar, conviver e do modo de que os mais velhos são portadores e detentores,
ser. Tais instrumentos começam também a perder aos mais novos pensou-se na escola enquanto ve-
o seu lado mais utilitário acompanhando o ritmo ículo para trabalhar essas aprendizagens. Não no
e a evolução dos dias que se vivem. Substitui-se os sentido de ‘formar’ artesãos, mas mais no sentido
objectos de barro por louças e panelas que, pela de reforçar conhecimentos culturais da comu-
melhoria das condições, já são adquiridos na cida- nidade, assim como desenvolver a manualidade
de mais próxima, Salgueiro. Com esta mudança, (motricidade fina) e conservar conhecimentos his-
por um lado surte o receio de se perderem carac- tóricos, no sentido da fundação da comunidade e
terísticas e conhecimentos adquiridos e praticados culturas – tendo em conta que com esses trabalhos
por muito tempo, por outro, estes objectos, muito e a venda dos mesmos foi o que permitiu comprar
apreciados por quem visita a comunidade, criam as terras onde habitam - no sentido da tradição e
um potencial de geração de renda levando à ne- da renovação. Assim sendo, a geração mais velha
cessidade de produção em série e de repassar esses vai à escola.
conhecimentos que estão mais enraizados pela
geração mais velha.

61
Mónica Faria

EJA – Educação de Jovens e Adultos práticos de descodificar códigos próprios da lei-


tura e escrita, mas sim alargar a compreensão do
“Quilombo não significa escravo fugido. conhecimento ao pensamento e à força da palavra,
Quilombo quer dizer reunião frater- do contexto no campo político, tentando conferir
na e livre, solidariedade, convivência, poder a todas as classes. Não quer isto dizer que
comunhão existencial.” (Nascimento, o poder mudou de lugar, mas sofreu alterações ao
2009:204) longo do tempo.
A filosofia pedagógica de Paulo Freire ainda
Uma das lutas com as quais o quilombo desde hoje se mantém bastante actual, as classes domina-
sempre se deparou foi o acesso à educação. A al- doras persistem e a pedagogia da autonomia é ain-
fabetização durante muito tempo esteve associada da um bem necessário, no entanto ocupa hoje uma
ao direito de voto. Apenas quem era alfabetizado outra posição, a classe oprimida tem, nem que seja
poderia votar. Este tipo de descriminação social aparente, uma voz porque está já consciente do
sempre determinou, conferiu e manteve o poder mundo que o rodeia e sabe situar-se perante ele,
económico, social e cultural distante do povo e politicamente.
próximo à classe de elite dominadora. Paulo Freire Por esse mesmo motivo, a escola do quilom-
foi um pedagogo defensor da igualdade de direi- bo da Conceição das Crioulas ainda hoje tem a
tos e da conquista pela educação para as classes Educação de Jovens e Adultos, tendo em conta a
sociais de minoria e pobre. O primeiro passo era quantidade de pessoas que ainda não vão à escola
alfabetizar essas classes, “alfabetizar é conscienti- em criança porque ainda existe muita necessidade
zar” (Freire,1972). de apoiar em casa o trabalho que garante a subsis-
A filosofia pedagógica de Paulo Freire abre espa- tência familiar.
ço e promove um movimento de educação tangível
a toda a gente. Fortalecendo e favorecendo a possi-
bilidade de mudanças sociais que só poderiam ser Projecto Político Pedagógico - Educação específica
instauradas pela própria classe oprimida e alfabe-
tizada. Entenda-se que não se pretende fechar essa O adulto é também convidado a ocupar o lugar de
classe ao quilombo, mas sim a todas as sub-cultu- mestre na escola. Ao mesmo tempo que repassa os
ras dos proletários e dos marginais. Essa demanda seus conhecimentos reforçando os valores culturais
nunca pretendeu apenas adquirir conhecimentos da comunidade, é também aprendiz reforçando

62
Mugunzá ou Cachupa: o direito à conquista e à descoberta de uma nova receita pedagógica

o seu conhecimento individual para dessa forma a identidade e reconhecer a individualidade no


adquirir força no colectivo. Inevitavelmente cria-se colectivo. Por um lado, deparamo-nos com as
uma analogia com a experiência de Joseph Jacotot, diversas culturas que existem num mesmo sítio,
no livro ‘O Mestre Ignorante’ de Jacques Rancière. por outro a complexidade que existe nas aprendi-
Na procura de soluções para aplicar neste contexto zagens locais do colectivo para a complexidade do
e pela excessiva quantidade de fórmulas desade- colectivo global. Mas no tocante às experiências
quadas aos interesses da comunidade oferecidas que vivenciamos sabemos agora da possibilidade
pelo currículo formal, está implícito no ritmo diá- de operar mudanças internas que a comunidade
rio da escola e na relação comunidade-professor(a) procura sempre em direcção ao trabalho de grupo
partir à procura das suas próprias traduções e e a partir das expressões artísticas.
fazer as suas descobertas. De sublinhar que neste Quero aqui contar uma pequena história talvez
exercício na comunidade vive-se todos os dias uma para sublinhar o reconhecimento-do-conheci-
aventura intelectual. A exemplo de Joseph Jacotot, mento que primeiramente existe no conhecimento
encontrando-se perante uma situação que poderia empírico. Numa das nossas análises de grupo na
surtir um efeito de impasse, de desilusão ou até formação de professoras(es) fizemos um levan-
mesmo de incompatibilidade entre a sua tarefa e tamento de ‘dinâmicas e brincadeiras’, enquanto
os objectivos a atingir, ele recria um método que exercício lúdico-pedagógico de intervenção e
provoca uma experiência prática única entre o conhecimento do corpo que temos e da relação
problema e a resolução deste. este estabelece com o outro corpo - focando as
Apresenta-se, desta forma, toda a complexidade vantagens e desvantagens de determinado jogo,
do ser individual no colectivo. Toda a comunidade os objectivos a atingir com aquela brincadeira, o
é mestre, aprendiz e autor. desenvolvimento que poderia ser evidenciado com
determinada actividade nas diferentes idades…
Marinalva é directora da Escola Bevenuto São
Projecto ‘expressões artísticas na comunidade da Simão do Sitio Paula, Conceição das Crioulas,
Conceição das Crioulas’ uma senhora calma, com um sorriso disponível e
bastante interventiva. Ela expressamente revelava a
A tarefa não é fácil. Na certeza de reforçar as artes dificuldade de trabalhar com as crianças da sua es-
no currículo diferenciado existe a procura e a cola, multi-seriada (o que significa trabalhar várias
tentativa de desenvolver a igualdade, valorizar matérias, várias idades, vários ritmos sempre em

63
Mónica Faria

simultâneo, na mesma sala de aula) essa dificulda- Mas não acreditem em tudo que digo, porque
de partia simplesmente do facto de as crianças não esta é apenas uma das possíveis traduções da mi-
saberem lidar com o afecto, com o tacto e nomea- nha experiência.
damente com o corpo, de maneira que só conhe-
ciam um gesto capaz de comunicar com os outros:
à porrada. No tempo lectivo que se seguiu aplica- Bibliografia
ram uma temática – ‘Brinquedos e Brincadeiras’
- a ser trabalhada por toda a escola. Desde então, a CASHMORE, Ellis (2000). “Dicionário de
base de qualquer aprendizagem assenta nas expres- Relações Étnicas e Raciais”. São Paulo: Selo
sões artísticas. Seguem um tema onde abordam Negro.
todas as outras áreas, despertando e trabalhando FREIRE, Paulo (1972). “Pedagogia do Oprimido”.
todos os sentidos (olfacto, visão, tacto, audição, Porto: Afrontamento.
paladar) para desenvolver a compreensão e o NASCIMENTO, Abdias (2009). “Quilombismo:
conhecimento de todas as matérias, aplicando nos Um conceito emergente do processo his-
hábitos do local onde as crianças habitam. Tudo tórico-cultural da população afro-brasi-
isto porque motivadas as crianças para a constru- leira” in Elisa Larkin Nascimento (Org.),
ção dos brinquedos e transportando para a escola AFROCENTRICIDADE uma abordagem epis-
todas as suas brincadeiras, estas foram elaboradas temológica inovadora (pp.197-218). S. Paulo:
cuidadosamente para desconstruir as barreiras sa Selo Negro.
comunicação corporal. Tendo sido ultrapassado RANCIÈRE, Jacques (2010). “O Mestre ignorante”.
este problema, a relação entre as crianças melho- Porto: Edições Pedago.
rou e a interacção entre as crianças aumentou des- RANCIÈRE, Jacques (2010). “Estética e Política A
construindo barreiras que marcavam as diferenças partilha do Sensível”. Porto: Edição Dafne.
para o entendimento das semelhanças.
Uma certeza temos, inevitavelmente
aprenderemos!

“ninguém educa ninguém, ninguém educa a si


mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados
pelo mundo” (Freire,1972) FARIA, Mónica (2011) - I2ADS

64
Interrupção: um movimento intercultural
Joana Mateus

Este texto propõe uma descrição da relação inter- pluralismo: transculturas visuais, educação e mul-
cultural desenvolvida pelos activistas do movimen- ticulturalismo crítico, Graham Chalmers define os
to Identidades. Pretende-se problematizar a sua conceitos de multiculturalismo crítico, transcultu-
relação intercultural na Comunidade de Conceição ral e hiperculturalismo. Ao mesmo tempo, o autor
das Crioulas, uma acção colaborativa que vai ques- fala sobre o papel do professor de arte. Descreve
tionando o sentido da educação artística. a articulação do multiculturalismo no currículo
O uso da expressão intercultural configura escolar e o sentido dos conceitos de hospitalidade,
uma convivência plural implicando o necessá- melting pot, mosaico cultural e rio lamacento, que
rio questionamento do que acontece entretanto, definem tipos de comprometimento educacional
ou seja, como é que acontece a relação entre os com o multiculturalismo. A seu ver, o multicul-
sujeitos das diversas culturas. O tipo de relacio- turalismo não pode ser abordado como contami-
namento intercultural, tal como o reconhecemos, nação, nem simplesmente como celebração, mas
problematiza as identidades através do sujeito como crítica. Notamos que a compreensão que
constituído pelo relacionamento interpessoal. É fazemos do sentido da palavra intercultural está
importante rever, aqui, alguma da discussão sobre próxima do sentido atribuído por Chalmers ao
o conceito intercultural, numa abordagem a partir termo multicultural. Portanto, o autor critica o
da perspectiva de um autor, F. Graham Chalmers, tipo de relação que o ensino estabelece com a iden-
num texto publicado em 2005 numa edição de Ana tidade híbrida das culturas. Estabelece, também,
Mae Barbosa, referência incontornável na área da as prioridades para o Ensino da Arte relativamen-
educação artística. te à diversidade de sujeitos e objectos culturais,
discutindo os conceitos de tolerância, caridade
e empatia contrapostos ao princípio do diálogo
A relação intercultural na educação da arte – uma intercultural. Chalmers segue Nieto (1999) ao
perspectiva apontar seis aspectos em que o multiculturalismo
crítico ganha um carácter insurgente: ao reforçar
No texto Seis anos depois de Celebrando o a cultura do aluno sem trivializar o conceito de

65
Joana Mateus

cultura; ao desafiar o pensamento hegemónico; classes convivem sob uma certa trégua; partindo
ao complexificar a pedagogia; ao problematizar a de uma posição oposta, Rizni apela aos educadores
atenção centralizada na auto-estima; ao encora- que problematizem a formação cultural através
jar “discursos perigosos”; ao admitir a sua acção do ensino de formas de imaginação artística que
como parcial e incompleta. Chalmers apoia-se na permitam o reconhecimento de que a política da
publicação Culture, difference and the arts orga- diferença implica o diálogo com os outros; profes-
nizada por Sneja Gunew e Fazal Rizvi (1994), para sores, comunidade étnica e comunidades de artis-
sustentar que o multiculturalismo é politicamente tas deverão trabalhar juntos para desestabilizar as
controverso: o conceito de arte híbrida e inter- ideologias que sustentam as práticas de exclusão,
cultural é reconhecido como fundamental pelas marginalização e opressão.
novas abordagens do ensino da cultura visual, mas, Com Mahalingam e McCarthy (2000),
entretanto, devem ser consideradas e exploradas as Chalmers considera que o multiculturalismo
implicações locais e globais das redes da diáspora, deveria corresponder a uma alteração paradig-
numa constante vigilância aos posicionamentos e à mática na educação global, partindo de registos
complexidade dos elementos em jogo na produção históricos complexos e das experiências e realida-
e consumo culturais. O autor salienta que Rizvi des de vida dos sujeitos marginalizados, gerando
(idem) critica o modo geral da política da educa- estratégias pedagógicas críticas que estimulem
ção na organização e implementação curricular da a sua experiência. Identifica problemas cruciais
diversidade, cujo resultado é uma aprendizagem para o professor: como representar as identidades
de outra cultura para o romper dos estereótipos e a marginalizadas em relação à carga do seu passado
promoção de maior tolerância social, mas que não histórico? É possível falar pelo outro? O autor
define o outro em termos relacionais, antes o ra- questiona a posição do hiperculturalismo, expli-
cionaliza em naturalizações tidas como objectivas, cado por Steve Fuller (2000) no sentido em que
ocultando questões de discriminação, precarieda- apenas os nativos de uma cultura estão autoriza-
de[1] e política de formação étnica implícita; para dos a falar por ela e as outras vozes são suspeitas,
Rizni (idem), ao promover uma ficção de tolerân- partindo dos exemplos de Max Weber, Aijaz
cia entre grupos sociais, a escola tem o intuito de Ahmad e Eduard Said, que são autores exteriores
produzir uma sociedade na qual grupos étnicos e a uma cultura e críticos pertinentes dessa mesma
1.  precariedade é um termo meu, que substitui o termo
cultura. A cultura Ocidental deve aceitar o desafio
desamparados usado no texto. de questionar o seu privilégio como grupo do

66
Interrupção: um movimento intercultural

poder racial historicamente superiorizado, através não como inimigo a destruir mas como adversário
de uma abordagem ao problema da inclusão, do cuja existência é legítima e de pleno direito.
trauma do oprimido que pode e deve afectar o Chalmers considera que o comprometimento
opressor. Dessa forma, o currículo intercultural com o multiculturalismo deve significar mais do
permitiria aos alunos identificar e analisar os que hospitalidade condicional[2]; cada vez mais,
conflitos e as disposições culturais, bem como as culturas maioritárias persistem em relembrar
promover o “desenvolvimento das capacidades de às minorias que são um problema. Para o autor,
participação social e sentido de eficiência política as culturas reinventam-se e se tornam-se híbridas
como fundamento necessário para uma cidadania mas não acha possível nem desejável que se ve-
efectiva e um Estado democrático e plural” (Cao nham a unir numa cultura em comum. O conceito
in Barbosa, 2005: 206). metafórico de mosaico cultural, que veio substi-
A relação intercultural é um tema crítico para tuir o de melting pot como princípio conceptual
a nossa sociedade, na qual não cessam de emergir para a multiculturalidade, também não é correcto,
disposições de uma racionalidade normalizadora porque as culturas e as comunidades não são está-
que recusa a diferença e que pretende destruí-la. ticas, nem auto-suficientes nem impenetráveis e o
Como nos diz Mouffe (1993), quando o antagonis- indivíduo não está perpetuamente fixo num grupo.
mo que nos separa do outro é colocado num limite Uma metáfora alternativa poderá ser um grande
em que o outro parece impedir a nossa própria rio lamacento, algo que constantemente se trans-
identidade, aí constrói-se a figura do inimigo. É o forma através de uma combinação de movimentos
que sucede, actualmente, na sociedade europeia e elementos. O autor lembra que na música, há
que vê perder-se a sua identidade e na resposta muito tempo que se propõem novas perspectivas
do racismo que incide sobre os imigrantes. O a partir de outras culturas, numa reconversão
antagonismo é uma constante social que vem da cultural que permite explorar as possibilidades
necessidade do político. Mas como ultrapassar o da música em si mesma. Este é o fenómeno do
antagonismo extremo que nos opõe a um inimigo? hibridismo, da porosidade entre culturas, manifes-
Para Mouffe, o que tem que ser considerado é a tado no Primitivismo da arte moderna do início
possibilidade de manter uma ordem democrática
pluralista sob essas condições, uma ordem que se 2. para um conceito de hospitalidade, no pensamento de Derrida,
consultar pág. 255, BORRADORI, Giovanna, Filosofia em Tempo
baseie na distinção entre inimigo e adversário. A de Terror – diálogos com Jürgen Habermas e Jacques Derrida,
comunidade política deve considerar o oponente Campo das Letras, Porto, 2004.

67
Joana Mateus

do séc. XX[3], mas com o qual a Escola deve lidar da relação intercultural que estabelecemos na
tendo atenção o perigo de se atribuir um carácter Comunidade de Conceição das Crioulas, no sertão
exótico às identidades híbridas, o que pressupõe Pernambucano do Brasil. Essa abordagem de
um tipo de absolutismo étnico. É necessário, como Chalmers é, contudo, centralizada na geografia
diz Hall, realizar uma crítica do “recentramento da ocidental à qual pertencemos. Assim, agora pre-
história global sob a rubrica do tempo europeu”. A tendemos deslocar a questão para o território do
construção artificial de uma certa identidade, diz outro, no qual as questões que se nos deparam nos
Chalmers, é também refutada por Homi Bhabha convocam directamente a reflectir sobre uma cul-
(1990) e Papastergiadis (2000) na consideração tura social que não nos pertence. Efectivamente, o
de que a identidade não é fixa pois nunca adere que partilhamos é o entendimento da necessidade
a uma forma absoluta e pressupõe sempre uma de colocar à prova outros modos, modos novos,
relação com os outros. No ensino da arte segundo de agir na educação, na arte, na comunidade e na
a educação multicultural há ainda o perigo de que sociedade. A realidade social de Conceição das
a tolerância, como princípio central nos progra- Crioulas, em processo de intensa construção e
mas educacionais, permita encobrir a manutenção organização estrutural, permite-nos confrontar e
dos privilégios de raça, classe e género; tal como problematizar radicalmente os problemas e ansie-
a caridade e a empatia, que podem produzir uma dades que levamos connosco. Aí nos deslocamos
opressão benevolente, e que por isso devem ser para colaborarmos na construção de um Currículo
mediadas pelas questões inter-relacionadas da Diferenciado para as escolas da comunidade,
solidariedade e da política. partindo de um Projecto Político Pedagógico que
inclui o Ensino das Expressões como lugar de
construção da experiência artística. Promovemos
Os sujeitos em relação: da hospitalidade à amizade a aprendizagem da realização e edição vídeo junto
de um grupo de jovens que vai usando a tecnolo-
A análise do texto de Chalmers permite- gia como ferramenta política de comunicação e,
-nos elaborar os princípios e as contradições por sua vez, vai orientando a formação de outros
grupos. Entretanto, numa comunidade que não
3. Hal Foster, no texto The artist as ethnographer, considera que tem artistas, é o próprio processo da arte que está
vivemos numa época cultural análoga à do início do sec. XX,
quando os novos objectos do primitivismo alteraram o campo
em construção, na sua forma cultural própria e
artístico. diferenciada. O que nos afecta, portanto, não é a

68
Interrupção: um movimento intercultural

transmissão de saberes e de valores nossos para a da autonomia e o imperativo da heteronomia”


comunidade, mas sim a construção de uma forma (Borradori 2004). Os princípios da dúvida e da
inesperada e imprevisível de educação e de arte, incerteza da ruptura da visita, que não podem
fruto da relação colaborativa. Mais do que elaborar caber na noção de tolerância, são fundamentais na
uma teoria ou uma metodologia da prática que relação de amizade que queremos construir.
estabelecesse condições de trabalho e investigação Partindo de um ponto de vista aristotélico, a
para um terreno de acção que não nos pertence aproximação ao outro pela amizade é uma norma
mas com o qual desejamos intervir em termos imanente à condição humana. Como tal, a nature-
muito relativos e sempre negociados, é fundamen- za da relação com o outro não é diferente da que
tal, neste momento, descrever e analisar o modo de o próprio estabelece consigo, sabendo que é, pela
ser da nossa acção intercultural, implicando nessa sua própria constituição, separado e distinto — sou
reflexão, sobretudo, um pensamento reflectido do outro. É esta possibilidade de reconhecer-se como
sentido singular da experiência da própria relação. alteridade e de agir com coerência dentro da sua
Acreditamos que é a construção deste entendimen- diversidade que permite colocar-se em comum, po-
to que nos permitirá formar e sustentar a nossa sicionando-me num campo de relação interpessoal.
ética de acção. A educação artística poderá desempenhar tem
um papel importante na abordagem do outro em
Nos nossos encontros interculturais, somos visi- mim, sustentada pela dinâmica da alteridade. Sobre
tas inesperadas e não esperamos convite. Fazemos este tema, da corrente psicanalítica freudiana,
valer uma noção incondicional de hospitalidade, tomamos como referência Júlia Kristeva (1999: 196)
pela qual quem vai e quem vem é inesperado. Nesse que localizou o estrangeiro na literatura filosófica
acontecimento, a autonomia do sujeito é colocada como o alter ego do homem nacional, a figura que
num terreno de negociação, no qual quem recebe corporaliza a metáfora da distância a nós próprios
terá que abrir-se à visita sem garantias, incondi- e um duplo capaz de julgar, no qual se delega a
cionalmente; para que o outro, que é estranho e perspicácia e ironia de espírito. Para Kristeva,
não-identificável, seja recebido, não em tolerância, vermos o estrangeiro como sintoma significa,
mas em amizade. A relação assim iniciada evolui, psicologicamente, “notre difficulté de vivre comme
inevitavelmente, para uma negociação consecutiva autre et avec les autres” (p.150-151). O estrangeiro é
das condições de permanência da ligação entre aquele que não é, o outro, e não tem uma definição
os sujeitos, “numa transacção entre o imperativo que não seja pelo negativo (p.139). Na constituição

69
Joana Mateus

dos Estados Nação a sua definição moderna é Sartre abre a discussão da impossibilidade da
aquele que não tem a mesma nacionalidade (p.140). intersubjectividade ao considerar que, na relação
Politicamente, há uma interiorização profunda interpessoal, um dos sujeitos é objectificado: o
pelos Estados-Nação da diferença de direitos do outro é sempre um ele sobre quem se fala, nun-
estrangeiro perante a lei, e mesmo uma identifica- ca é um tu com quem seja possível estabelecer
ção da criminalidade com o estrangeiro (p.151). uma relação de comunhão e abertura. A relação
Kristeva (p.262-269) explica que o nacionalismo interpessoal, no plano das relações concretas é, no
como intimidade situa o estrangeiro como um exter- pensamento de Sartre, o lugar de chegada de um
no ao eu íntimo: visto positivamente, é o segredo, conflito original entre sujeitos e subjectividades,
o obscuro que o romantismo domestica e integra, porque cada qual só pode inscrever-se como su-
e negativamente é o perturbador da racionalidade. jeito na própria consciência pela comprovação da
A psicanálise freudiana experimenta o estranho objectivação que o outro faz de nós. O outro é um
que se encontra no inconsciente e que permite a objecto, como uma imagem reflectida no espelho.
dinâmica da alteridade, numa ética de respeito pelo O fundo conflitual imanente na relação entre os
inconciliável. A crise íntima é, psicanaliticamente, sujeitos, impede-os de serem confundidos num
mon malaise à vivre avec l’autre — mon étrangeté, ‘nós somos’. Compreendemos que este princípio é
son étrangeté (p.269); a alteridade-estranha consti- fundamental para escapar ao absolutismo étnico.
tutiva do próprio psiquismo reconcilia-se, através Efectivamente, aquilo que permite, a cada
da psicanálise, a partir do outro, num processo qual, persistir na relação é a impossibilidade do
descrito como “voyage dans l’étrangeté de l’autre et próprio não se confundir com o outro e de serem
de soi-même”. Kristeva (idem) sugere que o estran- identidades diversas. Existe uma necessidade dos
geiro como sintoma freudiano pode ser interpreta- sujeitos se encontrarem em presença, ou seja, uma
do como um convite a não coisificar o estranho mas importância na experiência das relações concretas.
a descobri-lo, numa viagem interminável: Porque entendemos que é em presença e é nas re-
ne pas réifier l’étranger, à ne pas le fixer comme lações concretas que nos vemos no olhar do outro
tel, à ne pas nous fixer comme tels (…) a reconnaître como imagens expostas, e aí nos constituímos
notre inquietante étrangeté, nous n’en souffrirons ni como sujeitos. Esse sair do próprio a que somos le-
n’en jouirons de dehors. L’étrange est en moi, donc vados pelo outro é uma exposição. É pelo diálogo,
nous sommes tous dês étrangers (p. 284). o conflito, o confronto, a dificuldade e a incerteza
que nos expomos e nos deslocamos, no sentido

70
Interrupção: um movimento intercultural

desse deslocamento físico aos lugares do outro e A experiência da tradução na construção do dis-
no sentido de um deslocamento operado em nós: curso intercultural
a possibilidade de nos colocarmos numa posição
que permite olhar a nossa ex-posição. É o esforço O objectivo do encontro intercultural que reali-
de comunicar para que o outro, na sua autoridade, zamos não é incentivar uma acção determinada:
nos diga de nós e como somos. se bem que os diálogos cresçam em função de
Na relação que construímos, não se produz o acções, é o próprio desejo do diálogo que nos
apagamento de uma identidade perante a outra. O move. Gozamos o estar em presença, o sermos seres
que se produz é um espaço de instabilidade, oscila- comunicantes. A nossa interculturalidade é pensar
do por forças contrárias e pelo acentuar de posições. a intertextualidade. Sabe-nos bem a indecisão e a
A ideia de uma impossibilidade da intersubjectivi- indefinição de praticarmos um pensamento e um
dade é ultrapassada pela noção, de Merleau-Ponty, relacionamento com o outro que não é deter-
de sujeito incarnado: nesse sujeito, a consciência minista, porque tem a função de problematizar
não se separa do corpo. Não nos colocamos perante perspectivas sobre velhas e novas premissas. Esta
o mundo, como se o mundo fosse um objecto é a condição da nossa existência intercultural. No
exterior. Na verdade, o mundo constitui-nos pelos projecto que nos toca, pretendemos redesenhar,
sentidos — nós com o mundo somos coisa que sen- através de uma enunciação colectiva, o espaço das
te. Existe a possibilidade de que a relação construída coisas comuns, rompendo a ordem que antecipa as
entre os sujeitos não objectifique nenhum deles, e relações de poder (Rancière: 2010). Para que este
que cada qual se mantenha indecifrável e subjecti- projecto político se concretize como tal, é necessá-
vado. Enquanto a ligação intersubjectiva persistir, rio um trabalho teórico-prático, de investigação-
poderá formar-se, entre os sujeitos, um objecto -acção crítica que opera sobre o conceito de cultu-
novo — um espaço sensível comum de conheci- ra através do discurso. Pela autoria da textualidade
mento da relação dos sujeitos. Nesse encontro, todo produzida, o nosso discurso nunca pode ir além de
o discurso que se produza, seja na comunicação um deslocamento e de um adiamento da definição
mediática ou na comunicação interpessoal é, em da cultura do outro.
parte, intraduzível e incomunicável. Para Chalmers, não percebemos o outro pela
empatia mas sim pelo diálogo, pelo que o outro diz,
pensa e sente. A relação implicada tem que partir
de uma necessidade. Como se entende no conselho

71
Joana Mateus

de uma mulher aborígene australiana, nas palavras encontro intercultural interrompe esse fechamento.
de Chlamers: se vens para ajudar, não te incomo- Entretanto, estamos longe de um apaziguamento
des, mas se vens porque a tua liberdade está ligada de todo o conflito: porque, a todo o momento, se
à minha, então vamos trabalhar juntos. Chalmers levanta a questão da articulação problemática da
reforça a ideia de que “não é tanto de onde somos arte e da hegemonia política e cultural do Ocidente,
que importa e sim “onde estamos” (2005: 246). O intrínseca à nossa relação.
espaço da construção do discurso é uma área de
intersecção dos sujeitos. Esse lugar permite uma A experiência do sujeito tem uma forma,
associação, mas pela qual os sujeitos se diferen- desenhada pelas vivências concretas e pelo rasto
ciam. A avaliação da importância da experiência deixado pelas ideias dos outros que hospedamos.
de sujeitos em presença resulta numa recusa da Na escrita de si, ou no desenho de si, o sujeito tem
aceitação consensual do discurso mediático na sua que reflectir sobre os limites das suas vivências e
função mediadora da experiência. Atentos a esse traduzir aquilo que não experienciou no concreto
facto, somos levados a sair da conformação do dis- mas que lhe tocou indirectamente pela reflexão
curso que ouvimos na zona de conforto do nossos dos outros (Hall, 2003). Consequentemente, a
grupos sociais e da nossa cultura. Este discurso tradução é sempre um deslocamento conceptual,
exerce uma repetição descritiva que é redutora um desenho sobre um desenho, que pretende dar
da diversidade das identidades, que constitui os conta do que não experimentámos directamente
estereótipos. É um discurso que, mesmo que seja mas que pertence, no entanto, às nossas ideias e
responsável pelas alteridades em jogo, é sempre um que nos in-forma.
discurso sobre o outro, integrando-o numa lógica Um hábito cultural específico, uma refeição
funcional que lhe escapa e que o domina. O movi- típica da Comunidade de Conceição das Crioulas,
mento intercultural permite interromper e escapar como o Mugunzá, não é vivenciado concretamen-
a esse enorme cansaço. Permite re-equilibrar a te senão pela experiência do próprio hábito, ou
distância e a proximidade ao outro como condições seja, por uma prática frequente que integra, na
instáveis mas necessárias à comunicação. O que sua disposição, um conjunto diverso e variado de
nos leva a entrar em relação pela interculturalidade outras práticas e de outras estruturas de ligação.
é o entendimento de que a mesmidade provocada Por esse motivo, dizer o que é o Mugunzá, para
pela hegemonia cultural europeia nos fecha em nós quem o provou apenas uma vez, é fazer uma tra-
próprios e suspende a possibilidade do que vem. O dução. Porque a experiência é ainda insuficiente,

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Interrupção: um movimento intercultural

a definição do objecto está demasiado condicio- quem come: a conversa estica o tempo para conti-
nada a uma definição comparativa indirecta, que nuar comendo e a vontade de continuar a comer
não inclui a expressão cultural do objecto. O que prolonga o tempo da conversa.
é o Mugunzá? No espaço do encontro que se deu
foi possível sabê-lo e, no entanto, é indizível, é A experiência intercultural implica o sujeito
incomunicável. Mas, no espaço da minha reflexão numa acção deliberada de tradução, colocando
subjectiva, que coincide com o momento da expe- em funcionamento os sentidos e significados que
riência ou que se distancia dele, como agora acon- atribui às coisas e colocando-os à prova perante o
tece, consigo traduzi-lo: Comi uma vez o Mugunzá, ‘outro’ — precisamos de uma voz que não com-
em casa da Valdeci. É servido numa grande panela preendemos e que queremos traduzir. A relação
e pareceu-me um cozinhado semelhante à Cachupa intercultural é a reversibilidade do olhar sob o qual
de Cabo Verde, que já tinha comido em Portugal. “é saboroso e completo descobrir que pertencemos
No entanto, tinha um molho espesso e uma cor mais ao olhar de quem olhamos” (Paiva: 2009). Estamos
parecidos com o da feijoada de feijão manteiga à num diálogo com o outro em que continuamente
moda de Tràs-os-Montes. É uma mistura de canjica nos vemos a ser vistos e nos ouvimos a ser ouvi-
de milho e de um feijão, que não é o preto. As carnes dos a tentar fazer crescer um espaço em comum.
que leva são salgadas. Como a feijoada, é muito Estamos em aberto num círculo de aprendizagem.
bom com arroz branco. Quando me servi, procedi
como faço com a feijoada: gosto de servir o arroz
primeiro, para ficar por baixo e absorver o molho, Bibliografia:
mas nunca envolvo o feijão, deito-o por cima mas
sem cobrir totalmente o arroz para poder ir sabo- BHABHA, H. (ed.), (1990) Nation and Narration.
reando ora a mistura, ora cada um por si, arroz e Londres: Routledge.
feijão. É um prato que vou comendo e comendo, e BARBOSA Ana Mae (org.) (2005) Arte/Educação
acompanho-o com uma bebida alcoólica, como a Contemporânea: consonâncias internacionais.
cerveja que bebemos dessa vez. Demoro a terminar São Paulo: Cortez.
a refeição porque repito várias vezes, apenas por BORRADORI, Giovanna (2004) Filosofia em
gula. O mugunzá, tal como a feijoada de domingo, Tempo de Terror — Diálogos com Jürgen
é uma refeição que se come quando há tempo para Habermas e Jacques Derrida. Porto: Campo das
a digerir e serve bem de ocasião para conversar com Letras.

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Joana Mateus

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