Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
César Guimarães
Depto. de Comunicação da UFMG
Programa de Pós-Graduação em Comunicação
Essas imagens de quase trinta anos atrás, que mostram, com discrição e
reserva, momentos da vida cotidiana de um conjunto habitacional popular,
contrastam surpreendentemente com as imagens atuais que temos de outros
conjuntos habitacionais similares a este fotografado por Garcez. Para lembrar
de uma região marcada pela pobreza e pela violência, poderíamos mencionar
aquele conjunto habitacional que esteve na origem da favela Cidade de Deus.
No filme homônimo dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund, o conjunto
aparece em cores que evocam um passado ameno, na década de 1960, quando
os futuros e bárbaros traficantes formavam apenas um grupo de pequenos
delinqüentes, ainda unidos pela camaradagem.
Podemos montar – para fins heurísticos – essas imagens e os distintos
tempos e lugares sociais aí inscritos. Tal como surgem representados, seja pelos
jornais (impressos e televisivos), seja pelos filmes de ficção e documentários, os
espaços que hoje abrigam as formas de vida populares têm dado a ver,
predominantemente, a violência espetacularizada e as condições dificílimas nas
quais os moradores desenvolvem suas táticas de sobrevivência, sem falar dos
acontecimentos trágicos a que sucumbem tantas vezes. Muito distante daquele
ambiente fotografado por Garcez, um número significativo de filmes produzidos
nas duas últimas décadas figurou esse outro de classe sob o duplo selo da
criminalização e do miserabilismo (segundo a denominação de Fernão Pessoa
Ramos).2
1
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 2. A experiência limite. São Paulo: Escuta, 2007, p. 240-241.
3
2
O autor destaca, dentre outros, filmes como Notícias de uma guerra particular (1999), de João Moreira
Salles e Kátia Lund; O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas (2000), de Paulo Caldas e Marcelo
Luna; Ônibus 174 (2002), de José Padilha; O prisioneiro da grade de ferro: auto-retratos (2003), de Paulo
Sacramento; À margem da imagem (2003) e À margem do concreto (2006), ambos de Evaldo Mocarzel;
Falcão: meninos do tráfico (2006), de MV Bill e Celso Athayde.
3
RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal...o que é mesmo documentário? São Paulo: Senac, 2008, p. 211.
4
aquele dano infligido à “parcela dos que não tem parcela” (segundo a expressão
de Jacques Rancière). Por mais "inclusiva" que essa representação queira ser,
sempre sobrará, fora dessa conta, a parcela não-incluída. A conta das partes do
todo da comunidade restará sempre mal-feita. É por um outro viés, portanto,
que gostaríamos de abordar a questão da representação do "popular" (que não é
senão – como explicaremos mais adiante – apenas uma das diversas figurações
que tomou o homem ordinário no documentário brasileiro recente).
II
III
9
Permitimo-nos resumir aqui a argumentação apresentada no artigo publicado no v.7, n. 13 (jul./dez. 2006) da
revista Alceu., escrito em parceria com Cristiane Lima.
10
AGAMBEN, Giorgio. Le visage. In:___. Moyens sans fins. Notes sur la politique. Paris: Payot
& Rivages, 2002, p.106
8
11
AGAMBEN, Giorgio.El ser especial. In:___. Profanaciones. Buenos Aires: Adriana Hidalgo,
2005, p. 75.
12
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. Ano zero: rostidade. In:___Mil platôs. Capitalismo e
esquizofrenia, vol. 3, Ed. 43, 1996, p. 31-62.
9
IV
13
COMOLLI, Jean-Louis. Os homens ordinários, a ficção documentária. In: SEDLMAYER, Sabrina;
GUIMARÃES, César; OTTE, Georg (org). O comum e a experiência da linguagem. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2007, p. 128.
10
14
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano, p. 48.
15
DELEUZE, Gilles. Michel Tournier e o Mundo sem Outrem. p. 317.
16
DELEUZE. Lógica do sentido, p. 318.
11
V
17
BLANCHOT, Maurice. A fala cotidiana, p. 241.
18
AGAMBEN, Giorgio. Moyens sans fins. Notes sur la politique. p.14.
12
Não temos condições sequer de esboçar uma explicação aqui, mas não
podemos deixar de indagar o que aconteceu nesse arco de trinta anos para que
a fala popular – um dia depositária daquele "povo por porvir" de que nos fala
Deleuze – tenha se metamorfoseado nessa figuração crispada do horror em
nossos dias.19 Seria possível, contudo, interrogar os interstícios dessa mutação
que afetou aquela "glória do qualquer um", inventada ainda no século XIX pela
literatura e que prosseguiu ao longo do século XX com as artes da imagem
técnica (a fotografia e o cinema), quando ambas passaram "dos grandes
acontecimentos e personagens à vida dos anônimos", na tentativa de "explicar a
superfície pelas camadas subterrâneas e reconstituir mundos a partir de seus
vestígios".20
A obra de Eduardo Coutinho já recebeu leituras esmeradas (como a de
Consuelo Lins, por exemplo), e o que gostaríamos de destacar aqui são alguns
aspectos suplementares da convivência entre a violência, a miséria e os gestos
de subjetivação que emergem das práticas cotidianas. Se a etnografia realizada
por Coutinho pode ser reputada de "discreta" (como o fez Ismail Xavier), é
porque seus filmes, pouco a pouco, tornam mais e mais complexa a conexão
indicial entre as falas e os espaços sociais habitados pelos sujeitos filmados,
endereçando-a também a espaços imateriais, nos quais imperam as potências e
os afetos que constituem transversalmente a subjetividade. De maneira muito
precisa, Consuelo Lins identificou na obra de Eduardo Coutinho o gradativo
aperfeiçoamento – filme após filme – de um dispositivo variável que se (auto)
impõe coerções procedimentais na realização do filme, como, por exemplo,
concentrar-se num único espaço geográfico e adotar o plano fixo como principal
19
Pensamos aqui nas passagens em que Gilles Deleuze, ao falar das diferenças ente o cinema político clássico
e moderno, dedica aos filmes de Resnais, Straub, Glauber Rocha, Pierre Perrault e Jean Rouch, dentre
outros. Cf. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo.São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 257-266. Entre nós, talvez
a última aparição dessa figura do "povo que falta" tenha sido em Cabra marcado para morrer,
de Eduardo Coutinho (1984).
20
RANCIÈRE. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo: Ed. 34, 2005, p. 49.
13
recurso expressivo, como é o caso de Santo Forte, por exemplo.21 Trata-se, com
certeza, do aprimoramento de um método, e o que gostaríamos de destacar é
que há outra propriedade suplementar que o cineasta extrai do seu princípio
criativo: em sintonia com o gesto de filmar a fala, os filmes de Coutinho
concedem ao rosto – e apesar dos cortes – uma inquietante potência.
Em Boca de lixo (1992), tudo começa e termina pelo rosto. Para
aproximar-se dos catadores de lixo da região do vazadouro de Itaoca, município
de São Gonçalo, a 40 Km da cidade do Rio de Janeiro, o cineasta, munido
inicialmente de uma cópia xerox das imagens das pessoas que trabalham no
lixão, pergunta a um pequeno grupo de catadores quem são os sujeitos ali
retratados. Na massa quase indistinta de pessoas e detritos, misturados ao lixo
e à sua decomposição na terra revolvida, algo deve se destacar: um nome
próprio, um traço (mínimo que seja) com algum sentido, um índice qualquer
que faça diferença, que exiba a individuação onde os rostos desapareceram sob
a sujeira e o anonimato. Possuir um rosto não tem nada de gratuito ou de
aleatório: um rosto não é apenas imposto pelas formações sociais e seus
agenciamentos de poder. É preciso conquistá-lo: passar do trabalho à casa,
desfazer um rosto e entrar em outro, alcançar o único e no entanto nunca o
mesmo rosto. Rosto de mãe, mulher, trabalhador, menina, criança, homem,
menino, moça...
Um rosto traz sempre os vestígios das passagens e das velocidades que o
percorrem. Em Boca de lixo, se nos momentos iniciais do contato com o cineasta
os moradores do lixão encobrem o rosto, envergonhados ou temerosos de que
sua imagem seja expropriada pela televisão (ao tomarem o cineasta por um
repórter), aos poucos o filme desenvolve uma série de operações em torno do
rosto e dos espaços (o do lixão e o das moradias), construindo uma proximidade
onde reinava a desconfiança ou o protesto (ainda que dito em tom brincalhão).
Pouco depois da primeira aparição dos catadores, que disputam os restos
despejados pelo caminhão que acabara de chegar, surge um garoto que
21
Sobre o dispositivo em Coutinho, cf. LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho. Televisão,
cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 100-102.
14
22
DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 62
17
que animava aquele presente que escoou quase sem vestígios: o real, em sua
face mais bruta. Desde então, são outros os espaços que abrigam os corpos e a
fala populares, tal como exibem diversos documentários; espaços como este que
surge no plano-seqüência final de Boca de lixo. Perto dos urubus e de um cavalo
que procura algo para comer, um garoto seleciona e recolhe materiais do lixão.
Na sua camiseta há uma inscrição: "Casa & Vídeo". A ironia vem do próprio
real filmado: aqueles que vivem sob o signo da precariedade, exilados do mundo
do consumo, catam o que dele restou, e com isso, paradoxalmente, afirmam sua
própria imagem.23
23
Não é inútil lembrar aqui a etimologia do termo precário, conforme indica o Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa: "lat. precarìus,a,um 'obtido por meio de prece; concedido por mercê revogável; tomado como
empréstimo; alheio, estranho; passageiro'".
18