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Comum, ordinário, popular: figuras da alteridade no documentário


brasileiro contemporâneo

César Guimarães
Depto. de Comunicação da UFMG
Programa de Pós-Graduação em Comunicação

Resumo: Tendo em vista o contexto da produção documentária brasileira nas duas


últimas décadas, este artigo descreve algumas figuras da alteridade que emergem dos
espaços cotidianos, em meio à pobreza e à violência. Para tanto, discute as dificuldades
que envolvem a representação do outro de classe, ressalta o caráter exemplar daquela
"etnografia discreta" que Ismail Xavier identificou nos filmes de Eduardo Coutinho e
detém-se, particularmente, no estudo da aparição singular do rosto das mulheres e dos
homens ordinários em Boca de lixo.

No final da década de 1970, Raul Garcez dedica um ensaio fotográfico ao


Conjunto Habitacional Várzea do Carmo, em São Paulo, projeto de moradia
popular de traçado funcional e moderno, construído pelo IAPI (Instituto de
Aposentadorias e Pensões dos Industriários) e destinado à baixa classe média.
De outubro de 1979 a abril de 1980, o fotógrafo visita semanalmente o conjunto,
e a cada vez as imagens trazem um microcosmo silencioso, no qual nada (ou
pouco) se passa: nada de extraordinário ou típico. Com seu tempo espesso, os
espaços habitados revelam os traços da presença humana que lhes concede uma
história miúda e compartilhada, irrigada por práticas e gestos que se
perderiam no deslizar anônimo nos dias, se não fosse esta outra presença: a do
fotógrafo com sua máquina. Cioso de que não se trata nem de capturar algo
nem de invadir um espaço (ambas operações guerreiras), ora ele se posta na
soleira dos cômodos, ora adentra suavemente um recinto onde uma mulher
descansa, ou a sala na qual uma criança faz o dever de casa. A serenidade e,
mais do que isso, certa suspensão de sentido, habitam as imagens e lhes
2

conferem aquele "movimento imóvel" que constitui o cotidiano, no dizer de


Maurice Blanchot:
o ordinário de cada dia não o é por contraste com algum
extraordinário; não é o "momento nulo" que esperaria o "momento
maravilhoso" para que este lhe dê um sentido ou o suprima ou o
suspenda. O próprio do cotidiano é designar-nos uma região, ou um
nível de fala, em que a determinação do verdadeiro e do falso, como a
oposição do sim e do não, não se aplica, estando sempre aquém
daquilo que o afirma e não obstante reconstituindo-se sem cessar para
além de tudo aquilo que nega.1

Essas imagens de quase trinta anos atrás, que mostram, com discrição e
reserva, momentos da vida cotidiana de um conjunto habitacional popular,
contrastam surpreendentemente com as imagens atuais que temos de outros
conjuntos habitacionais similares a este fotografado por Garcez. Para lembrar
de uma região marcada pela pobreza e pela violência, poderíamos mencionar
aquele conjunto habitacional que esteve na origem da favela Cidade de Deus.
No filme homônimo dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund, o conjunto
aparece em cores que evocam um passado ameno, na década de 1960, quando
os futuros e bárbaros traficantes formavam apenas um grupo de pequenos
delinqüentes, ainda unidos pela camaradagem.
Podemos montar – para fins heurísticos – essas imagens e os distintos
tempos e lugares sociais aí inscritos. Tal como surgem representados, seja pelos
jornais (impressos e televisivos), seja pelos filmes de ficção e documentários, os
espaços que hoje abrigam as formas de vida populares têm dado a ver,
predominantemente, a violência espetacularizada e as condições dificílimas nas
quais os moradores desenvolvem suas táticas de sobrevivência, sem falar dos
acontecimentos trágicos a que sucumbem tantas vezes. Muito distante daquele
ambiente fotografado por Garcez, um número significativo de filmes produzidos
nas duas últimas décadas figurou esse outro de classe sob o duplo selo da
criminalização e do miserabilismo (segundo a denominação de Fernão Pessoa
Ramos).2

1
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 2. A experiência limite. São Paulo: Escuta, 2007, p. 240-241.
3

Os espaços privados, que na distribuição de seus objetos, até então


guardavam experiências e práticas compartilhadas (uma história, uma relação
com o lugar e com o tempo ali vivido), tal como apanhados pelo olhar
contemplativo do fotógrafo, são agora substituídos pela superexposição do
tecido social em frangalhos, como se as marcas do viver em comum só
atestassem o limite da sua dissolução. Todo abrigo da vida cotidiana surge
ameaçado, de um lado, pelo crime e pela violência, e de outro, pela miséria (tão
pronunciada que parece roubar dos sujeitos qualquer relação de afeto e de
temporalidade com o lugar habitado). Ali onde os sujeitos existem e resistem,
os lugares parecem testemunhar somente o dano que recai sobre suas vidas,
causado pelas desigualdades duradouras da vida social. Para Fernão Ramos,
em documentários como Notícias de uma guerra particular, Ônibus 174 e
Falcão: meninos do tráfico, as imagens e falas que traduzem o universo
popular, exibidas sob a forma do choque (inscrito materialmente na intensidade
da tomada), são oferecidas a um público de classe média que "teme, treme e se
apieda com o horror"3 ao qual é exposto.
Sem deixar de reconhecer o predomínio desta face terrível do popular em
tantos filmes recentes, parece-nos, no entanto, que uma abordagem como esta
concebe a representação do outro de classe como um jogo excessivamente
polarizado, no qual o realizador exerce quase sempre uma força desigual e
preponderante sobre o sujeito filmado (ainda que este não apareça como
vítima). Essa desmedida na intervenção do cineasta revela a disparidade da
relação com aquele a quem filma, e acabará por acarretar a má-consciência que
se traduzirá – à maneira de um recalque – sob a forma do horror. Podemos,
entretanto, conceber a representação como um campo de forças cuja gênese é
anterior à circunstância da tomada, e na qual se inscreve, irreparavelmente,

2
O autor destaca, dentre outros, filmes como Notícias de uma guerra particular (1999), de João Moreira
Salles e Kátia Lund; O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas (2000), de Paulo Caldas e Marcelo
Luna; Ônibus 174 (2002), de José Padilha; O prisioneiro da grade de ferro: auto-retratos (2003), de Paulo
Sacramento; À margem da imagem (2003) e À margem do concreto (2006), ambos de Evaldo Mocarzel;
Falcão: meninos do tráfico (2006), de MV Bill e Celso Athayde.
3
RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal...o que é mesmo documentário? São Paulo: Senac, 2008, p. 211.
4

aquele dano infligido à “parcela dos que não tem parcela” (segundo a expressão
de Jacques Rancière). Por mais "inclusiva" que essa representação queira ser,
sempre sobrará, fora dessa conta, a parcela não-incluída. A conta das partes do
todo da comunidade restará sempre mal-feita. É por um outro viés, portanto,
que gostaríamos de abordar a questão da representação do "popular" (que não é
senão – como explicaremos mais adiante – apenas uma das diversas figurações
que tomou o homem ordinário no documentário brasileiro recente).

II

Reduzido à situação de objeto, o outro de classe pode receber várias


designações, mas todas recobrem uma identidade forjada em um processo
conflituoso, que pode ter lugar tanto em uma arena, feita para o confronto
aberto, quanto em uma negociação mais ou menos desarmada. Relembremos a
cena fundamental que constitui a política. Seja qual for o termo utilizado para
designar o outro de classe ("população de baixa renda", "favelado", "pobre",
"marginalizado", "excluído"), ele indicará sempre o pertencimento desse sujeito
à "parcela dos sem parcela" – os que só tem a qualidade de nada terem de
próprio (enquanto a oligarquia detém a riqueza e os aristocratas a virtude), e
que um dia recebeu o nome de demos na Grécia antiga.4 O povo, essa massa de
homens sem qualidade, sem título algum, que só tem a liberdade como coisa
própria, ao ser reconhecido como portador da mesma liberdade desfrutada pelos
que possuem títulos, passa a ostentar uma "propriedade imprópria". É por isso
que a existência desses não-contados na "conta malfeita nas partes do todo" da
pólis é motivo de um litígio fundamental, como afirma Rancière:
A massa dos homens sem propriedades identifica-se à comunidade em
nome do dano que não cessam de lhe causar aqueles cuja qualidade
ou propriedade têm por efeito natural relança-la na inexistência
daqueles não tomam "parte em nada". É em nome do dano que lhes é
causado pelas outras partes que o povo se identifica com o todo da
comunidade. Quem não tem parcela – os pobres da Antigüidade, o
4
Para Rancière, a política se institui no momento em que a "a ordem natural da dominação é interrompida
pela instituição de uma parcela dos sem parcela". O desentendimento, p. 26.
5

terceiro estado ou o proletariado moderno – não pode mesmo ter outra


parcela a não ser nada ou tudo.5

Trazendo a perspectiva de Rancière para a discussão do que está em jogo


nas imagens documentais, enfatizemos o quanto as questões envolvidas na
representação do outro de classe não podem se desvencilhar deste dano
irreparável, instituidor da comunidade política. Se para Fernão Ramos um dos
problemas mais incômodos no âmbito do documentário brasileiro recente é a
"má consciência" do realizador (pertencente à classe dos que têm títulos) ao
filmar os que pertencem à classe dos não-contados, julgamos que tal dificuldade
só pode ser enfrentada se a relação entre quem filma e quem é filmado
alcançar, simultaneamente, um processo de subjetivação e um ato de
individuação. Como afirma Rancière, um processo de subjetivação só pode
ocorrer se surge uma tomada de palavra na qual o sujeito se arranca do lugar
dos não-contados, de todos aqueles que só tem a phoné, e passa a participar do
sensível sob uma outra modalidade: a do logos. 6
Resta identificar, contudo, os
recursos expressivos de que o documentário dispõe para dar conta de um
processo que tanto o atravessa quanto o ultrapassa.
No campo dos estudos sobre o documentário brasileiro, Jean-Claude
Bernadet traçou, admiravelmente, o percurso da evolução da representação do
outro de classe, no período que vai de 1960 a 1980. Nesse arco de vinte anos, o
outro filmado deslocou-se da condição de objeto de um saber exterior à sua
experiência, encarregado de ditar-lhe a sua verdade, para assumir-se como
sujeito do discurso, dono de uma auto-mis en scène que lhe permite dramatizar
a singularidade da sua relação com o mundo, agora irredutível às explicações
generalizantes. No entanto, essa mudança de foco que põe o acento no ponto de
vista singular do sujeito filmado – cuidadosa em não fazer do discurso do filme
o agente de uma segunda expropriação – não eliminou as tensões
5
RANCIÈRE. O desentendimento, p. 24.
6
Como indica Rancière, é no Livro I da Política de Aristóteles que se encontra a divisão entre duas espécies
de animais e duas modalidades de participação no sensível: a voz (phoné), compartilhada pelos animais,
indica a dor e o prazer. Mas o homem é o único animal que detém a palavra (logos), que permite manifestar o
útil e o nocivo e, conseqüentemente, o justo e o injusto. Cf. RANCIÈRE. p. 17.
6

constitutivas da relação entre o cineasta e aqueles a quem ele filma, modulada


por graus diversos de alteridade e sustentada por uma gama de diferenças (de
classe, de gênero, étnicas, culturais). Mencionemos, a esse respeito, uma obra
ficcional que traduz, com rara agudeza, essa disparidade irredutível e
constitutiva que atravessa o processo de representação do outro de classe.
Em 1977, Clarice Lispector publica A hora da estrela, texto cujo
narrador, o escritor Rodrigo S.M., se debate no processo de criação de uma
personagem, Macabéa, uma nordestina semelhante às “milhares de moças
espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões
trabalhando até a estafa”.7 Toda a dificuldade enfrentada pelo narrador reside
no fato de que essa personagem não se presta a uma descrição realista, pois
“vive num limbo impessoal”, ausente de si mesma, invisível para todos que a
cercam, subterrânea, destituída de todo encanto. Com seu “corpo cariado”, ela
“nunca tinha tido floração”, era como capim. Para o narrador – que toma para
si o papel de válvula de escape da vida massacrante da média burguesia – a
escrita que se defronta com essa alteridade irredutível é uma possibilidade de
sair de si.8 Sabemos bem o quanto essa narrativa vai muito além da
tematização do confronto de classes, e se sublinhamos esse aspecto é para
estabelecer um contraponto entre o mundo de Macabéa, alagoana, datilógrafa,
habitante do “pardo pedaço de vida imunda" (segundo a expressão do narrador)
e o horror que um outro mundo, similar ao da nordestina, despertará, três
décadas depois, nos cineastas e nos espectadores que se deparam com o
"popular criminalizado" ou sufocado pela miséria (para retomar os termos
empregados por Fernão Ramos).
Sem menosprezar o quanto a violência e a pobreza impregnam a
representação dos homens ordinários no documentário brasileiro recente,
gostaríamos de esboçar um outro traçado teórico e analítico para nos
avizinharmos das inúmeras e diversas "vidas sem qualidade", mergulhadas
nesse limbo impessoal para o qual são empurradas. E por isso mesmo, ainda
7
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 14.
8
LISPECTOR. A hora da estrela, p. 30.
7

que frágil, a visibilidade que alcançam não é destituída de interesse político e


estético. Dito isso, tentemos identificar outras figuras da alteridade que não se
reduzem a esta face exasperada da violência ou da miséria, sem desconhecer o
quanto ela se infiltra nos modos de vida e na subjetividade dos que são
filmados. Para tanto, será preciso percorrer o "pardo pedaço" da vida cotidiana,
à procura de um outro rosto para as mulheres e os homens ordinários.9

III

Segundo Giorgio Agamben, todos os seres vivem no aberto, e é nele que


resplende sua aparência. No entanto, diferentemente dos animais, o homem se
apropria desta abertura e procura capturar a manifestação da sua aparência,
dando-lhe um nome, uma face, uma semelhança. Se para o homem a aparência
constitui um problema político e estético é porque ela torna-se a arena de uma
luta pela verdade. Para o filósofo italiano, o rosto é o "estado da exposição
irremediável do homem e, ao mesmo tempo, sua dissimulação justamente nessa
abertura".10 Destituído de algo próprio e de substância, o rosto é um fundo
amorfo e passivo do qual emergem os traços de expressão que contrai. Sem
esconder um segredo nem ocultar a verdade, e longe de se reduzir a um
simulacro, o rosto está mais próximo da simultaneidade das várias faces que o
constituem – sem que nenhuma seja mais verdadeira do que as outras – do que
da similitude adquirida em condições particulares.
Comumente, quando é encarregado de suportar a identidade no campo
das imagens, o rosto perde a oscilação que o constitui – a simultaneidade do
aparecer e do dissimular – e ganha a rigidez de um caráter próprio, fixado
pelos predicados que o delimitam. Ao personalizar e particularizar um sujeito,
a imagem corre o risco de expropriá-lo do que ele tem de especial, que é o oposto

9
Permitimo-nos resumir aqui a argumentação apresentada no artigo publicado no v.7, n. 13 (jul./dez. 2006) da
revista Alceu., escrito em parceria com Cristiane Lima.
10
AGAMBEN, Giorgio. Le visage. In:___. Moyens sans fins. Notes sur la politique. Paris: Payot
& Rivages, 2002, p.106
8

exato de uma marca absolutamente particular. Ao contrário: especial é


exatamente o ser que não tem substância, cuja essência coincide com seu dar-
se a ver (seu aparecer), com sua espécie, enfim. Agamben nota que o termo
species – aparência, aspecto, visão – liga-se a uma raiz da qual derivam outros
termos, tais como espelho, espectro, espécie e espetáculo. Se a espécie de cada
coisa é a sua visibilidade, o ser especial é aquele "que coincide com seu fazer-se
visível", mas de tal modo que esse seu aparecer em imagem deve ser entendido
tal como os filósofos medievais faziam quando se perguntavam pelo ser e o não-
ser das imagens especulares. Para eles, a imagem, destituída de essência, sem
existir por si mesma, é um acidente que surge em um sujeito, e não algo que
lhe pertence. Desprovida de realidade contínua, ela é engendrada pela presença
e pelo movimento de quem a contempla. Não determinável sob a categoria de
quantidade, ela é uma espécie de coisa. Eis então a dualidade fundamental que
define o termo espécie quando aplicado à imagem: "Ela é o que se oferece e se
comunica pelo olhar, o que faz visível, e ao mesmo tempo – o que pode – e deve
a todo custo – ser fixado em uma substância e em uma diferença específica para
constituir uma identidade". 11
Se o aparecer da identidade configura-se atualmente como um problema
simultaneamente político e estético é porque está em jogo, tanto do lado dos
discursos midiáticos quanto do filme documentário, uma incessante redução do
especial ao pessoal e deste ao substancial. A espécie é transformada em
princípio de identidade e de classificação, fazendo-se com que as linhas de
significação e de subjetivação que desenham o rosto – para os lembrar os
termos de Deleuze e Guattari – ganhem um traçado por demais marcado e
linear.12 Uma manifestação particular desta operação redutora é hoje
compartilhada – não sem ambigüidade – pela mídia e pelos filmes
documentários: talvez, como nunca antes, os homens ordinários alcançaram

11
AGAMBEN, Giorgio.El ser especial. In:___. Profanaciones. Buenos Aires: Adriana Hidalgo,
2005, p. 75.
12
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. Ano zero: rostidade. In:___Mil platôs. Capitalismo e
esquizofrenia, vol. 3, Ed. 43, 1996, p. 31-62.
9

tamanha exposição e visibilidade, a ponto de acreditarmos que adentramos, de


vez, na "era dos homens sem qualidades". Contudo, é preciso não confundi-los
com a figura do qualquer um, homem comum ou genérico, mediano,
mergulhado no cotidiano – anódino ou atroz – ou ainda, sob a figura um tanto
vaga dos representantes das "classes populares", embora destas seja sempre
pinçado, por seu caráter exemplar, um ou outro rosto tingido de cores
particulares, ou então um depoimento, queixa, denúncia ou protesto. Como bem
sublinhou Jean-Louis Comolli, estamos diante de uma questão que é tanto
política quanto estética: "Como passar do indivíduo à massa? Questão política.
Como passar da coletividade ao sujeito? Questão cinematográfica. Os dois
movimentos – para o único, para o múltiplo – se cruzam e descruzam, oscilação
sem fim".13

IV

A visibilidade que o documentário pode proporcionar ao homem


ordinário deve ser avaliada, portanto, em função da maneira com que seus
recursos expressivos traduzem, no domínio das formas, um problema político e
estético, entrelaçado à nervura dos filmes: o da exposição do rosto. Essa
exposição é hoje transformada em um objeto de disputa entre os midiacratas
(os novos gestores da imagem) e todos aqueles que lutam para tornar visível a
identidade – individual ou coletiva – de sujeitos marcados por processos sociais
e econômicos de exclusão e de marginalização. Sabemos bem da importância
que essa disputa por visibilidade adquire em um espaço público ampliado pela
disseminação dos discursos midiáticos, mas gostaríamos de voltar nossa
atenção para um outro espaço, menos iluminado e mais discreto: o cotidiano.

13
COMOLLI, Jean-Louis. Os homens ordinários, a ficção documentária. In: SEDLMAYER, Sabrina;
GUIMARÃES, César; OTTE, Georg (org). O comum e a experiência da linguagem. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2007, p. 128.
10

As práticas cotidianas – afirma Michel de Certeau – produzem sem


capitalizar, sem dominar o tempo, pois sua economia é a da dádiva.14 É preciso
tão somente acolher essa indiferença da vida cotidiana, que não guarda segredo
algum, que nada pode revelar, pois nada esconde. Ao percorrer aquelas
imagens de Garcez mencionadas no início deste texto podemos perscrutar e
índices de um modo de vida que alude ao universo “popular” – para utilizar o
termo com que os especialistas (engenheiros, arquitetos, técnicos) designam
esse seu outro. Trata-se, certamente, de um outro de classe, mas ele guarda
uma reserva de alteridade que não se reduz meramente às marcas sociais.
Seria preciso incluir aí um regime de afetos e de crenças, de condutas e de
práticas, de universos imaginados, de falas criadas e esquecidas diariamente,
sem registro; enfim, a expressão de um mundo possível, para retomar os
termos de Deleuze em sua leitura de Michel Tournier. Em vez de falar da
representação do outro, é melhor então falar de algo que a antecede e a
condiciona: outrem como estrutura do campo perceptivo, e não apenas como
objeto ou como um outro sujeito. Para Deleuze, outrem, tomado "a priori como
estrutura absoluta" funda a relatividade dos outrem em diferentes campos
perceptivos. 15
A aparição de um outro, com traços particulares e individualizados,
emerge, portanto, da estrutura outrem: ele é o desenvolvimento ou a realização
do mundo possível correspondente. Esta maneira de conceber a teoria do
conhecimento pode deslocar a maneira usual com que tratamos a representação
do outro no domínio das imagens, comumente aprisionada no dualismo sujeito-
objeto. Outrem (como estrutura) não é nem um objeto particular percebido em
um campo perceptivo nem um sujeito que ocupa esse campo. De todo modo,
ressalta Deleuze, "não é o eu, é outrem como estrutura que torna a percepção
possível".16

14
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano, p. 48.
15
DELEUZE, Gilles. Michel Tournier e o Mundo sem Outrem. p. 317.
16
DELEUZE. Lógica do sentido, p. 318.
11

No que concerne às imagens de Garcez, ambientadas no conjunto


habitacional Várzea do Carmo, seria pouco recolher os traços indicadores de
uma classe social e remetê-los a uma época ou a uma situação; identificar os
objetos e seu design, fazer da imagem um atestado do que desapareceu. Se os
inúmeros detalhes contidos nessas imagens – nos móveis, nos utensílios, na
decoração, na disposição dos espaços, nas roupas – podem, de algum modo,
servir a uma datação (tudo aquilo que pertence ao que Barthes chamou de
studium), a forma de vida cotidiana que ocupa esses espaços, entretanto,
“dissolve as estruturas e desfaz as formas”, como escreve Blanchot.17
Sem ignorar os problemas implicados nessa representação do outro de
classe, a começar pelas diferenças que se interpõem entre quem realiza a
imagem e quem é nela é figurado, interessa-nos menos a aparição de um
"sujeito popular" do que a presença de uma forma-de-vida, a vida humana, "na
qual todos os modos, os atos e os processos do viver não são nunca
simplesmente fatos, mas sempre e antes de tudo, possibilidades de vida ou
potências, como escreve Giorgio Agamben.18 Sob esse prisma, a denominação
"popular" pode muito bem funcionar como uma identidade concedida de fora,
outorgada por quem não consegue perceber o que concerne à potência no
mundo do outro, e nele identifica somente o que recai sob a rubrica do
representado, o resultado da operação da representação, o fato, o condicionado,
o estado cristalizado e acabado. Não é assim, por exemplo, que o termo funciona
na denominação "moradia popular", quando empregado pelos peritos? Em
contraposição a essa identidade concedida de fora (dada justamente por aqueles
que só reconhecem o horror no mundo do outro de classe), gostaríamos de
destacar outras figuras da alteridade que surgem nos movimentos de
subjetivação e nas práticas cotidianas figuradas nos filmes de Eduardo
Coutinho, e em especial, em Boca de lixo (1992).

V
17
BLANCHOT, Maurice. A fala cotidiana, p. 241.
18
AGAMBEN, Giorgio. Moyens sans fins. Notes sur la politique. p.14.
12

Não temos condições sequer de esboçar uma explicação aqui, mas não
podemos deixar de indagar o que aconteceu nesse arco de trinta anos para que
a fala popular – um dia depositária daquele "povo por porvir" de que nos fala
Deleuze – tenha se metamorfoseado nessa figuração crispada do horror em
nossos dias.19 Seria possível, contudo, interrogar os interstícios dessa mutação
que afetou aquela "glória do qualquer um", inventada ainda no século XIX pela
literatura e que prosseguiu ao longo do século XX com as artes da imagem
técnica (a fotografia e o cinema), quando ambas passaram "dos grandes
acontecimentos e personagens à vida dos anônimos", na tentativa de "explicar a
superfície pelas camadas subterrâneas e reconstituir mundos a partir de seus
vestígios".20
A obra de Eduardo Coutinho já recebeu leituras esmeradas (como a de
Consuelo Lins, por exemplo), e o que gostaríamos de destacar aqui são alguns
aspectos suplementares da convivência entre a violência, a miséria e os gestos
de subjetivação que emergem das práticas cotidianas. Se a etnografia realizada
por Coutinho pode ser reputada de "discreta" (como o fez Ismail Xavier), é
porque seus filmes, pouco a pouco, tornam mais e mais complexa a conexão
indicial entre as falas e os espaços sociais habitados pelos sujeitos filmados,
endereçando-a também a espaços imateriais, nos quais imperam as potências e
os afetos que constituem transversalmente a subjetividade. De maneira muito
precisa, Consuelo Lins identificou na obra de Eduardo Coutinho o gradativo
aperfeiçoamento – filme após filme – de um dispositivo variável que se (auto)
impõe coerções procedimentais na realização do filme, como, por exemplo,
concentrar-se num único espaço geográfico e adotar o plano fixo como principal

19
Pensamos aqui nas passagens em que Gilles Deleuze, ao falar das diferenças ente o cinema político clássico
e moderno, dedica aos filmes de Resnais, Straub, Glauber Rocha, Pierre Perrault e Jean Rouch, dentre
outros. Cf. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo.São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 257-266. Entre nós, talvez
a última aparição dessa figura do "povo que falta" tenha sido em Cabra marcado para morrer,
de Eduardo Coutinho (1984).
20
RANCIÈRE. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo: Ed. 34, 2005, p. 49.
13

recurso expressivo, como é o caso de Santo Forte, por exemplo.21 Trata-se, com
certeza, do aprimoramento de um método, e o que gostaríamos de destacar é
que há outra propriedade suplementar que o cineasta extrai do seu princípio
criativo: em sintonia com o gesto de filmar a fala, os filmes de Coutinho
concedem ao rosto – e apesar dos cortes – uma inquietante potência.
Em Boca de lixo (1992), tudo começa e termina pelo rosto. Para
aproximar-se dos catadores de lixo da região do vazadouro de Itaoca, município
de São Gonçalo, a 40 Km da cidade do Rio de Janeiro, o cineasta, munido
inicialmente de uma cópia xerox das imagens das pessoas que trabalham no
lixão, pergunta a um pequeno grupo de catadores quem são os sujeitos ali
retratados. Na massa quase indistinta de pessoas e detritos, misturados ao lixo
e à sua decomposição na terra revolvida, algo deve se destacar: um nome
próprio, um traço (mínimo que seja) com algum sentido, um índice qualquer
que faça diferença, que exiba a individuação onde os rostos desapareceram sob
a sujeira e o anonimato. Possuir um rosto não tem nada de gratuito ou de
aleatório: um rosto não é apenas imposto pelas formações sociais e seus
agenciamentos de poder. É preciso conquistá-lo: passar do trabalho à casa,
desfazer um rosto e entrar em outro, alcançar o único e no entanto nunca o
mesmo rosto. Rosto de mãe, mulher, trabalhador, menina, criança, homem,
menino, moça...
Um rosto traz sempre os vestígios das passagens e das velocidades que o
percorrem. Em Boca de lixo, se nos momentos iniciais do contato com o cineasta
os moradores do lixão encobrem o rosto, envergonhados ou temerosos de que
sua imagem seja expropriada pela televisão (ao tomarem o cineasta por um
repórter), aos poucos o filme desenvolve uma série de operações em torno do
rosto e dos espaços (o do lixão e o das moradias), construindo uma proximidade
onde reinava a desconfiança ou o protesto (ainda que dito em tom brincalhão).
Pouco depois da primeira aparição dos catadores, que disputam os restos
despejados pelo caminhão que acabara de chegar, surge um garoto que
21
Sobre o dispositivo em Coutinho, cf. LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho. Televisão,
cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 100-102.
14

interpela o cineasta frontalmente, e pergunta o quê ele ganha "pra ficar


botando esse negócio" [a câmera] "na cara deles". Coutinho responde que é para
mostrar às pessoas como é a vida real deles. Ao que o garoto retruca: "Sabe pra
quem o senhor podia mostrar? Podia mostrar pro Collor"[então Presidente da
República]. Pouco depois, ouvimos uma voz de criança que grita: "Collor tá
matando o pobre de fome". Vencida essa resistência inicial à presença da
câmera, os catadores passam a afirmar, em meio a risos e brincadeiras, que o
lixão é um lugar de trabalho, e que dali também se retira comida (quando
apanham o lixo proveniente do supermercado Sendas). A defesa do lixão como
lugar de trabalho é um dos pontos de ancoragem da individuação (contra a
representação genérica que reduz os sujeitos a um bando de miseráveis
famintos ou preguiçosos). No espaço doméstico, depois de rompidos o anonimato
de cada um e a desconfiança contra o cineasta, se admite, ainda com certa
reserva, mas sem conflito, que o lixão também propicia alimentos
aproveitáveis.
A co-presença do rosto, da fala, da escuta e da máquina que registra faz
do filme um espaço de partilha no qual os sujeitos ganham tempo e autonomia
para desenvolverem uma auto-mis-en-scène que comporta fragmentos
biográficos, valorações subjetivas, táticas cotidianas para enfrentar a
precariedade dos recursos materiais e a instabilidade da relação com o lixão, e
também – por que não – pequenas aspirações. Às vezes, os desejos mais
descabidos são os que possuem maior grandeza, porque permitem o equilíbrio
no mais improvável, sustentados não com a força da fantasia (facilmente
aproximada do engano ou da falsidade), mas de um gérmen de fabulação, tal
como o faz a filha de Cícera, uma das muitas mulheres que trabalham no lixão,
pernambucana, há 18 anos no Rio de Janeiro. A certa altura, instada por
Coutinho a falar mais, Cícera afirma: "Eu só quero que um dia (....) a mim não,
que não tenho mais o que ganhar (...) mas eu quero que Deus, o que eu peço a
Deus (...) liberte ela, dê uma chance a ela mais tarde pra seguir o que ela bem
quer". O diretor logo pergunta à moça o que ela queria ser na vida – um pouco
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como perguntamos às crianças – e ela responde, sem titubear: "Cantora".


"Quer ser cantora?", Coutinho insiste. "Quero", ela confirma. "O que você gosta
de cantar?", ele indaga. "Música sertaneja", ela diz. Nos dois planos que se
seguem (o primeiro, aberto, o segundo, fechado no rosto), a adolescente canta
uma canção romântica típica da difusão massiva das rádios ("Sonho por
sonho"), pés descalços na terra, em frente à casa feita de barro, rosto exibindo
seus trejeitos para a câmera. Ela desenvolve sua auto-mis-en-scène, enfim.
A figura da adolescente que canta está longe de ser reduzida a mero
exemplo da relação entre a cultura popular e as formas simbólicas midiáticas.
O que aparece aí é outra coisa. Trata-se da moça-cantora sem palco, estrelato
ou público; a moça-dentro-da-imagem, movendo-se no seu próprio imaginário,
sem espetáculo ou afetação. Uma anti-estrela tentando fabular seu desejo
disparatado. Pouco antes da seqüência final do filme ela reaparecerá
"arrumada", rádio de pilha na mão, escutando a canção preferida, na voz de
José Augusto. Os três planos finais da seqüência que traz a primeira aparição
de Cícera e sua filha exibem justamente as duas se arrumando: primeiro, a
mãe lavando os pés, no quintal: depois, a filha se penteando ao espelho, no
quarto, e em seguida, também a mãe. Em sua segunda aparição, mais à frente,
a mãe, a filha e o padrasto (Antônio, um pescador) são apanhados à maneira de
um retrato de família, mas sem a rigidez da pose. Nas mãos a garota traz o
rádio que toca sua canção predileta. O cineasta pergunta de quem é a música.
"Zé Augusto", ela responde, sorrindo. Coutinho pede, amigavelmente: "Canta,
canta junto!". A voz, um pouco trêmula, começa a acompanhar a música que
vem do rádio. Enquanto a cena dura, sem cortes, a câmera se aproxima mais,
enquadra a moça em plano médio, desce e focaliza o rádio, depois sobe e alcança
o rosto dela, move-se em seguida para a esquerda e apanha os rostos da mãe e
do padrasto; retorna para a direita e fixa-se novamente no rosto da moça. Com
suavidade, ela tenta assimilar – tal como se diz de um golpe – a frontalidade
com que é apanhada; seus olhos buscam um pequeno desvio para o lado. Em
comparação com sua primeira performance, agora a moça aparece com a voz
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levemente embargada, os olhos mais baixos (prestes a lacrimejar), como se


dividida entre duas imagens: aquela primeira, que lhe foi oferecida para
realizar vicariamente seu desejo de ser cantora, e esta outra, mais incerta, na
qual não se encaixa de todo, na qual ainda procura se situar. Descolando-se do
seu próprio imaginário, os seus olhos procuram o interlocutor, que se afastou
um pouco para nos mostrá-la inteira, endereçando-nos sua alteridade
irremovível. Aqui a fabulação criadora – que nos filmes de Perrault e Rouch
remetem a uma lenda ou a um animal mítico – só pode se desenvolver no
ambiente da vida cotidiana, com seus pequenos enfrentamentos, sua cota diária
de invenção, às vezes mínima, mas capaz de fazer frente à dureza do trabalho e
a reificação que ele produz.
Enquanto a moça canta, acompanhando a música tocada no rádio, um
corte introduz outro cenário (mas mantendo as vozes da moça e do cantor em
off): os trabalhadores do lixão, alguns com o rosto encoberto, se vêem nas
imagens exibidas no monitor de tv colocado no alto da carroceria de uma
Kombi. Agora nós os vemos um a um, e eles também vêem a si mesmos um a
um, singularizados, únicos, e em seus rostos resplende a simultaneidade dos
seus múltiplos modos de aparecer. O filme alcançou, afinal, a individuação dos
sujeitos filmados, mas isso não vem pacificar o espectador. Se os filmes de
Coutinho são exemplares é porque neles as formas de vida surgem diante das
condições mais adversas, quando os sujeitos não dispõem mais de nenhuma
reserva utópica (nem política nem religiosa), mas apenas a "pequena área da
vida" (para retomar o verso de Drummond), e é nela mesma, com suas coerções
e seu espaço diminuto (numa barraca de lona ou plástico, numa casa de
paredes de barro e chão batido), que os sujeitos criam um espaço diferente, que
coexiste com aquele de uma experiência sem ilusões"22. Aquele espaço
fotografado por Garcez (o conjunto habitacional como abrigo de um modo de
vida popular) e o instante que nele aguardava o futuro, se distanciaram de nós,
irreparavelmente. Sabemos bem o que barrou esse futuro e o sonho modesto

22
DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 62
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que animava aquele presente que escoou quase sem vestígios: o real, em sua
face mais bruta. Desde então, são outros os espaços que abrigam os corpos e a
fala populares, tal como exibem diversos documentários; espaços como este que
surge no plano-seqüência final de Boca de lixo. Perto dos urubus e de um cavalo
que procura algo para comer, um garoto seleciona e recolhe materiais do lixão.
Na sua camiseta há uma inscrição: "Casa & Vídeo". A ironia vem do próprio
real filmado: aqueles que vivem sob o signo da precariedade, exilados do mundo
do consumo, catam o que dele restou, e com isso, paradoxalmente, afirmam sua
própria imagem.23

23
Não é inútil lembrar aqui a etimologia do termo precário, conforme indica o Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa: "lat. precarìus,a,um 'obtido por meio de prece; concedido por mercê revogável; tomado como
empréstimo; alheio, estranho; passageiro'".
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