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O que faz algo ser arte?

GOSTO PESSOAL ≠ CONDIÇÃO ARTÍSTICA


ACERVO ONLINE por Raisa Pina junho 4, 2019 Imagem por MoMA.

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A pergunta que precisa ser feita não é “o que é arte? ”, mas “o que faz
algo ser arte? ”. A mudança de abordagem parece pequena e sutil, mas é
fundamental.
Desde que o mundo é mundo, muita gente já arriscou uma definição
sobre o que é arte. Apesar de corriqueira, contudo, essa questão sempre volta
à tona para inquietar os corações. Tentar responder “o que é arte” é uma tarefa
das mais injustas por dois motivos: primeiro porque todo mundo parece se
sentir autorizado a estabelecer verdades absolutas sobre o tema e, segundo,
porque a reflexão, como parece posta, força uma homogeneização de obras
completamente distintas. Como comparar a Vênus de Milo exposta no Museu
do Louvre, do outro lado do Atlântico, com o graffiti estampado na W3 Sul de
Brasília? Impossível, não há definição única de arte que dê conta de abarcar
os dois simultaneamente. Foram feitos em tempos, em locais, por pessoas e
técnicas diferentes. São formas de expressão particulares que não podem ser
niveladas, apesar de ambas serem arte.
A pergunta que precisa ser feita não é “o que é arte?”, mas “o que faz
algo ser arte?”. A mudança de abordagem parece pequena e sutil, mas é
fundamental. Saímos de uma busca de generalização perigosa e caminhamos
rumo à valorização e ao respeito às diversidades, abrindo espaço para a
compreensão das particularidades de cada produção. Cada obra de arte
sempre terá elementos próprios que devem ser considerados por si mesmos,
nunca em comparação com paradigmas estabelecidos anteriormente, ainda
mais de milênios atrás.
Para entender o que faz um objeto arte, o primeiro passo é saber que o
gosto pessoal de cada indivíduo observador não tem absolutamente nada a
ver com a condição artística de algo. Não é o meu gosto que faz algo ser ou
não ser arte. Acreditar que isso poderia ser possível de legitimação é muita
prepotência. É difícil aceitar que nossa própria opinião não importa, eu sei,
mas é um ótimo exercício para esvaziar nossos egoísmos.
Geralmente quem se acha muito especialista em arte e enche o peito para
falar que determinada coisa não é arte está em busca da primeira definição de
arte do mundo ocidental, aquela que Platão deu lá na Antiguidade, antes
mesmo que Cristo tivesse existido. Segundo o filósofo grego, a arte deveria
ser uma representação do belo e do real. Essa busca pelo prazer na obra de
arte vai se intensificar no romantismo do século XVIII. Foi nesse período
também que a figura do artista foi construída como genial, dotada de talento
inato, prodígio. Desde então, foram diversos os estudos, as teorias, as
histórias e as filosofias que superaram esse argumento.
Artista é uma profissão como outra qualquer. Assim como é necessário
ter médico na sociedade para que ela não adoeça, é preciso ter artista; assim
como jornalistas são necessários, artistas também são. E da mesma forma
que existem profissionais bons ou ruins em todas as áreas, existem da mesma
forma artistas bons e ruins. Como tudo na vida, isso não é de forma alguma
uma condição imutável. Artistas bons podem ter semanas difíceis (quem
nunca?), assim como artistas ruins podem um dia acordar com sorte e de
repente virar sensação. É a vida normal que segue. Nada demais.
Em contraposição aos conceitos antigo e romântico da arte e do artista,
a modernidade e a contemporaneidade inauguram novos parâmetros de
entendimento sobre o que faz algo ser arte. A partir de toda a tradição
construída até aqui, que não pode de forma alguma ser ignorada, mas com a
incorporação dos avanços temporais da nossa época, podemos pensar em
alguns critérios que podem nos ajudar a refletir sobre o que faz algo ser arte
em pleno 2019.
Quando Elsa von Freytag-Loringhoven criou aquele mictório, conhecido
internacionalmente como a grande obra de Marcel Duchamp, que lhe roubou
a ideia, a artista mudou a ordem artística vigente. A partir da peça, um mictório
comum, apenas virado de ponta-cabeça, ela afirmou, nos primeiros anos do
século XX, que qualquer coisa poderia ser arte. Não que tudo fosse, porque
não é bagunçado assim, mas tudo poderia ser. E como saber a diferença entre
o que é e o que não é, se os artistas cada vez mais se apropriam de coisas
aparentemente banais e se lançam de cabeça na piscina de tudo aquilo que
queremos jogar fora?
O caminho é mais simples do que parece. O primeiro elemento que se
deve considerar é quem produziu a obra. Foi um artista profissional? Se sim,
não se pode de forma alguma dizer que o trabalho feito não é arte. Você pode
falar que não gosta, que o estilo não lhe agrada muito, mas jamais negar que
seja arte. Mais uma vez, não tem nada a ver com o seu gosto pessoal. Não é
porque você não gostou de um prédio novo construído na sua cidade que ele
deixa de ser engenharia.
O segundo elemento é avaliar o processo criativo de quem elaborou a
obra. Para se tornar profissional em artes, demanda-se muito investimento. Os
materiais são caros, as remunerações são baixas e as universidades, pelo que
observamos recentemente, estão caminhando para uma restrição cada vez
maior. Se o processo de formação profissional oficial é um caminho oneroso,
uma alternativa é ser autodidata e investir em seu próprio processo criativo. É
assim que fazem geralmente os grafiteiros: começam a pixar por conta própria,
aventuram-se em novos traços, arriscam desenhos e, com empenho,
constroem suas carreiras. Se o processo criativo é parte valorizada no
processo de produção de uma obra, o resultado final não pode ser
descredenciado artisticamente. Mais uma vez, você pode dizer que não gosta,
mas não que não é arte. O processo criativo é o principal elemento que
separa uma obra de arte do rabisco do seu filho de 5 anos. A criança não
reflete séria e criticamente sobre o processo, mas se aventura na
descoberta de novas ferramentas de expressão. Para a criança, lápis é
brincadeira. Nas artes, ninguém está brincando, por mais divertidas que sejam.
O terceiro elemento, talvez o mais respeitado pela opinião pública
atualmente, mas mesmo assim ignorado por muitos, é o parecer da instituição.
Como em todas as áreas de conhecimento, as artes também têm sua
instituição oficial, composta por um leque amplo de frentes que incluem
museus, galerias, críticos de arte, acadêmicos em geral (teóricos,
historiadores, sociólogos, antropólogos, filósofos), colecionadores, curadores
etc. É uma categoria formada por pensadores com bagagem profunda, que
vão se dedicar a pensar a arte em suas diferentes formas. Se a instituição
endossa algo como arte, novamente não é seu gosto que vai derrubar isso.
O último elemento, e o mais precioso e moderno de todos, é o poder do
espectador de poder transformar qualquer coisa em arte a partir de sua
disponibilidade de estabelecer uma relação estética com ela, mesmo que por
alguns segundos. A partir do mictório de Elsa, ou das cadeiras de Kosuth, por
exemplo, cada vez que vemos objetos similares no dia a dia, mesmo que no
banheiro do trabalho, somos resgatados das nossas inércias mentais para
termos um momento de reflexão estética. Considerando que toda estética é
política, olhar para uma cadeira no restaurante e pensar que poderia ser uma
obra de arte já é uma micro revolução da ordem vigente.
A arte tradicional que alguns reivindicam, aquela que tem que ser bela,
que tem que ser exposta entre quatro paredes com alarmes de segurança,
aquela que custa caro, exclui formas contemporâneas de se produzir e viver,
além de ignorar a conjuntura do momento. Se observamos o caos mundial se
instaurar, com tanta violência, tragédia e injustiça, que desserviço seria se a
arte funcionasse na lógica clássica, anestesiando pela contemplação e não
oferecendo nada à reflexão crítica. Que triste seria uma arte pautada pela
cópia da verdade, sem inventar ficções possíveis, sem fantasiar, sem
incomodar. Não há nada que não possa ser arte; tudo pode. E de todas as
possibilidades existentes, que são infinitas, até o momento desprezo apenas
uma: a arte obediente.

*Raisa Pina é jornalista e pesquisadora em arte, cultura e política, doutoranda


em História da Arte pela Universidade de Brasília.

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