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Nem arte nem educação

Luis Camnitzer

Luis Camnitzer (na 1937) é um artista


uruguaio nascido na Alemanha e residente
nos Estados Unidos. Ele está entre os artistas
conceituais mais importantes. Desde 1969, tem se
concentrado em assuntos políticos, incluindo
identidade, linguagem, liberdade e debates éticos e
históricas envolvendo especialmente a américa
latina. 
Texto disponível em
http://www.niartenieducacion.com/project/textos/

Isso de "nem arte nem educação" parece uma excelente ideia. Nem tanto porque nenhuma delas
intrinsicamente sirva para algo, mas porque a esta altura das coisas, ambos os termos já estão em
um estado de corrupção e deformação que faz com que já não sirvam para nada.

Quando se decide oficialmente que as matérias relacionadas com a arte desviam da educação, não
estamos enfrentando uma estupidez ministerial soberana (ainda que nos dê prazer defini-la como
tal). Estamos em uma situação muito mais grave, que é a de sermos vítimas de uma ideologia que
deu um novo significado às palavras e que muita gente acredita. De acordo com estes significados, a
arte é uma atividade que serve para o ócio, e a educação é um serviço de construção de empregados
que trabalham para interesses alheios. Podemos culpar o sistema financeiro e seus instrumentos
(como o PISA, por exemplo), mas deveríamos também culparmos a nós mesmos por sermos passivos
e permitirmos a usurpação das palavras. Já não se trata de rebatizar à arte e à educação com um
"João" e uma "Maria", ou qualquer outro nome. Trata-se de re-conceitualizar os termos e dar-lhe um
conteúdo que sirva para os propósitos para os quais foram criados no sentido mais construtivo e,
portanto, independentemente e independentes da estrutura corporativa e da miopia
governamental.

De acordo com os preconceitos vigentes, a arte hoje é vista e utilizada fundamentalmente como um
meio de produção de objetos de luxo. Isto depois de uma larga história que inclui a passagem da
manufatura artesanal à contemplação para terminar em um colecionismo que serve como uma
prova de status e riqueza. A educação, por sua parte, é interpretada e usada como um processo para
criar uma meritocracia a serviço das estruturas de poder, tanto empresarial como nacional. As
instituições se desenham como filtros para identificar os poucos "melhores" úteis em vez de
preocupar-se por melhorar os indivíduos e permitir-lhes contribuir comunitariamente. Não que a
identificação do melhor seja inútil: prefiro ser operado pelo melhor cirurgião e não por um cirurgião
melhorado. Mas ambas dinâmicas, tanto em arte como na educação, promovem e reafirmam a
fragmentação do conhecimento em disciplinas e especializações que estão condenadas a
permanecer em compartimentos estancados. O processo que deveria aperfeiçoar os indivíduos como
parte de um complexo social os converte em pessoas encapsuladas e instrumentalizadas. Quando se
paga o ensino, se obriga ao estudante a pagar algo desenhado com critérios que não têm muito a ver
com o estudante: a sobrevivência dentro de um mercado dirigido pela oferta e a demanda de
trabalho, a competitividade nacional, etc. É como fazer os soldados pagarem para poder combater
em uma guerra.

Encerrar a arte em um gesto disciplinar é reduzi-la a uma produção de objetos auto-referenciados


ou, se isso falar, é convertê-la em uma prática social superficial que não se diferencia dos serviços
sociais genéricos. É ignorar o fato de que a arte é uma forma de pensar e de adquirir e expandir o
conhecimento e que sua utilidade maior não é a de colocar peças em um museu, senão a de ajudar a
usar a imaginação. A tradição artesanal é a que faz que se entreguem às crianças lápis, tintas,
tesouras e colas para que joguem com os materiais. Sevem primeiramente para definir as habilidades
manuais e não as mentais e emocionais utilizadas para conhecer. O elogio do professor é que
converte os objetos em arte, e isto acontece sem que a criança (ou frequentemente também o
professor) tenha a mínima ideia de que coisa é arte realmente. A paulatina submissão ao cânone
imperativo e à eficiência dentro deste cânone determinam quais as crianças serão designados como
talentosos e quais não, mas primeiramente usando critérios baseados na habilidade manual, a
eficiência na representação e na competitividade. Pareceria mais apropriado então entrar para arte
pela porta da cognição. Propor à criança que divida seu universo em coisas que são arte e coisas que
não são de acordo com uma definição própria e arbitrária. Com isso se evitaria categorizar em
termos de uma escala de valores culturais pré-fabricados e não entendidos, e levaria-os a tomar
decisões taxinômicas pessoais. Com esta decisão o educando poderia encontrar e/ou produzir para
um campo definido como arte de acordo com seu próprio cânone. O passo seguinte, então, é
apresentar o que cabe nessa categoria. A ideia neste passo é chegar a que o espectador aceite a
classificação e se convença de seu mérito e importância. Quer dizer, o educando tem que criar a
museografia e os elementos que designam o que foi eleito como artístico e portanto tratar com os
meios de comunicação que servem para estes efeitos. A moldura, o pedestal, o museu, são todos
meios de comunicação que designam e codificam a taxonomia artística. Mais importante é que por
este caminho se equipe o educando para que observe conscientemente o cânone que lhe é ensinado
institucionalmente e que ele possa compará-lo e questioná-lo desde seu próprio cânone. É com esta
base autodidata que a exploração artística e a fabricação de objetos expressivos podem começar a
cumprir com sua verdadeira razão de ser.
Enquanto a arte em nossa cultura é aceita como um meio de produção, também podemos defini-la
como uma meta-disciplina que permite subverter as ordens estabelecidas e explorar novas ordens
alternativas em uma etapa prévia à verificação de sua aplicação prática. A dinâmica comercial que
favorece o consumo tem nos levado a confundir o objeto artístico com a arte mesma. Este fato nos
impede de cumprir plenamente com a função mais importante: a de ajudar a elucidar as áreas do
desconhecido. O que superficialmente chamamos "mistério" não éo milagre congelado que nos
entrega o dogma religioso. Tampouco é a representação da obscuridade impenetrável do
desconhecido. O mistério é o que marca o limite daquilo que conhecemos. Nos desafia para que
desmitifiquemos este limite e assim possamos chegar ao mistério seguinte. É o que permite transitar
continuamente da área do conhecimento à área do desconhecimento como se entrássemos em um
videogame. Permite-nos não somente conhecer o novo mas também des-conhecer e re-conhecer o
velho por meio de novas visitas sem preconceitos. É essa busca interminável que ata o artista à sua
profissão como se fosse uma droga. O problema é aque através do tempo esta tarefa foi se definindo
como um monopólio de uns poucos e foi sondo erodida por um formalismo da apresentação da
busca pelo espetáculo. Conectado a isto, a produção objetual também produziu a redução das
margens de atenção do espectador em vez de desencadear e ampliar a imaginação, a especulação e
a criação. Estamos perdendo a arte como uma metodologia cognitiva compartida e comungada. Em
seu lugar estamos permitimos que se diminua para converter-se em uma atividade reservada para
uns poucos trabalhadores requintados que trabalham para uns poucos milionários que querem ser
requintados.

A definição do sistema educativo é paralela ao da arte. Aparte seus fins, as educação meritocrática
utiliza também uma pedagogia preguiçosa. Os "eleitos" em grande parte são aqueles capazes de
aprender com o esforço minimizado da ajuda institucional. Os descartadas, ao contrário, que são os
que realmente necessitam da educação, necessitam de muito esforço, em parte para compensar a
falta de educação familiar. Ignora-se assim que a educação não deveria enfatizar o ensino mas que
deveria dedicar-se à aprendizagem. O ensino se baseia na transmissão de informação e no
entendimento. A educação correta, ao contrário, estimula o autodidatismo. Este autodidatismo
consiste em identificar os mistérios d desconhecido, desmitificá-los e superá-los para então enfrentar
os novos mistérios. O mesmo que na arte, se trata de conhecer, desconhecer e re-conhecer. É um
trabalho contínuo que se desenvolve ao longo da vida do indivíduo. É algo que não pode ser
encerrado dentro dos muros de uma instituição, dentro dos limites de um tempo imposto, dentro de
uma quantificação ditada por um currículo, e dentro de uma relação que depende dos professores.

Enquanto a arte como disciplina profissional forma parte dos estudos universitários e pretende estar
a par deles, sua posição é frágil. Os produtos deste profissionalismo artístico geralmente não
pertencem à produtividade econômica e portanto carecem de interesse. Ao mesmo tempo em que a
sociedade aceita esta imagem, se esquece que a arte é o único ramo em que potencialmente o
estudante pode fazer o que quer, pode explorar o fracasso e que aí está grande parte de sua
importância e a torna imprescindível. É esta potencialidade, geralmente insuficientemente
explorada, que faz com que sua posição seja instável e que seja a primeira vítima dos cortes
orçamentárias. A arte, como já foi esclarecido desde as definições de Kant, produz objetos carentes
de uma função discernível. Isso se traduz naquilo que é uma atividade que não serve para nada (ou
que distrai) e, portanto, é descartável. De uma outra forma esta mesma perspectiva se estende às
humanidades em geral, que nos últimos tempos também se converteu em um alvo de vitimização.

Mas nem artistas nem educadores somos inocentes desta marginalização e banalização: os artistas
estão preocupados com o ego e com o mercado e os educadores com a sobrevivência dentro de um
sistema desenhado para uma função extraterrestre. A arte se redefine nas galerias e a educação em
uma burocratização na qual se gasta mais dinheiro na administração que no desenvolvimento do
estudante. Ambos os campos se mantêm como profissões mutuamente estranhas, sem entrever as
possibilidades de fusão. As teorias rebeldes neste campo da pedagogia são excêntricas e
minoritárias, e por fim, incapazes de oporem-se ao esforço esmagador da quantificação e da
qualidade. Ao contrário, em vez de resistir pensamos que acetar a quantificação nos garantirá o
direito de existência, seja por meio de preços e famas na arte, ou pelas estatísticas no ensino. Há
nisso uma guerra não reconhecida entre distintas interpretações do que ser o rigor. O conceito de
rigor é justamente um dos instrumentos utilizados para separar a arte das demais disciplinas, para
organizar as disciplinas em "brandas" ou "duras".

O rigor das matérias acadêmicas que tem uma aplicação prática se baseia na possibilidade de prestar
contas quantitativamente. O protocolo que segue respeita a relação de causa e efeito, a lógica, a
repetição de resultados na experimentação e, em geral, um desenvolvimento linear dos
procedimentos. Em forma circular o protocolo informa ao rigor e o rigor informa ao protocolo. Em
arte, ao contrário, a noção de rigor e a prestação de contas se baseiam na inevitabilidade e na
indispensabilidade e ambos são impossíveis de serem traduzir em números. Uma vez que a obra ou
situação artística existe, o protocolo (ou os protocolos) se deduzem da necessidade de sua existência.

Esta discussão dos conceitos de prestação de contas e de rigor está diretamente conectada com as
metodologias do conhecimento e se colocam acima de sua aplicação nas distintas disciplinas. Se
falamos da utilidade potencial dos atos nos referimos aqueles que são úteis e aqueles que não são.
Ao nos limitarmos educacionalmente ao útil, descartando o inútil, ou ao inútil descartando o útil,
estamos fragmentando a educação e confundindo o ato de projeção antropocêntrica com a
compreensão e o ordenamento da realidade. Paradoxalmente se utiliza esta projeção para falar de
objetividade. É aqui onde a arte, o campo das configurações e das conexões qualitativas, deveria
informar e enriquecer a ciência (campo das conexões quantitativas) e não ao contrário, como é de
constume.

Tanto o artista quanto o professor podem demostrar o êxito efetivo de sua missão uma vez que
cheguem ao ponto em que se convertam em prescindíveis, ou seja, o momento quando o público da
arte ou da educação é capaz de atuar independentemente. É aqui onde a arte e a educação confluem
em uma missão única. Ambas tem um caminho comum e a diferença está somente nos trações
deixados durante o percurso. A arte é educação e a educação é arte. Uma das palavras somente
adquire sentido uma vez que está dentro da outra.

"Nem arte nem educação", portanto, não é aqui uma declaração niilista que proponha um deserto
cultural unificado pela ignorância. É, ao contrário, uma declaração crítica do uso de ambas as
palavras mas que não nega nem uma nem outra. É uma frase que denuncia a separação disciplinaria
que obriga a fragmentar o conhecimento. É uma crítica que nos propõe um desafio para que nos
ponhamos a gerar sistemas ou ordens criativas e a fazê-lo criativamente. É uma declaração que
busca uma palavra que todavia não existe. Ou, em seu lugar, que se trata de recarregar e unificar as
palavras já conhecidas e por hora mortas pelo mal uso. É uma frase que quer facilitar a liberação dos
indivíduos de tal forma que dentro de sua individualidade possam se definir como unidade pensante
e sensível, mas dentro do contexto de um bem coletivo.

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