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A negação de todos os poderes

Márcia Tiburi

Pensamos sob o efeito de hábitos mentais. O mais básico desses atos é a crença. Falamos crença e
pensamos logo na crença em Deus, ou na vida após a morte. Podemos, contudo, crer na ciência
tanto quanto em uma opinião. Cremos em nossas próprias opiniões que nos parecem sempre as
mais confiáveis. As crenças, em sentido geral, sustentam o todo da nossa vida mental que se
expressa como linguagem que assume a forma administrada de teoria. Teorias científicas
dependem de crenças do mesmo modo que as teorias populares nos ajudam a organizar o
cotidiano. Colocamos teorias onde se exigem explicações, ou o impensado nos assusta. Há pessoas
que preferem ter um desenho exato do que seja Deus, por exemplo, a ter que pensar em Deus como
um mistério. O mistério também é um ponto de partida das teorizações, mas poucos se relacionam
com ele sem angústia.

Explicações nascem de crenças e fazem parte das construções das verdades usadas por todos para
sustentar crenças. O círculo do conhecimento é vicioso. Isso vale para todas as esferas da vida; da
religião à moral, da economia à política, o que vemos são crenças usadas para sustentar crenças.
Vale inclusive para a arte, que não devemos tomar como uma ideia, substância ou conceito
estanque, mas antes como um campo geral onde se dá um tipo de experiência complexa que atinge
justamente o lugar das nossas crenças.

Arte como problema

Assim, quando entramos em contato com o campo das artes, tendemos a usar teorias prévias,
sejam elas “científicas” ou populares, para nos orientar no que concerne à modalidade de
experiência que está em jogo. Todas as teorias (científicas ou populares) são interessadas; todas
desejam e esperam alguma coisa em relação às artes. Todas essas teorias não são apenas baseadas
em crenças, mas esperam que as artes confirmem essas crenças.

E as artes não se prestam a esse papel. As artes se apresentam como proposições materiais que
providenciam problemas onde eles não existiam. Ora, podemos chamar muitas coisas bem
diferentes de arte (por isso mesmo é que podemos falar de um campo em que cabe uma
multiplicidade de manifestações). Não podemos dar uma definição única do que é arte; sabemos
que todo um campo das representações, das apresentações, das produções de presença implica
aquilo que podemos chamar de arte. Arte é justamente algo que sempre provoca estranhamentos
programados no contexto do que se tornou hábito. A arte é, nesse sentido, um desprogramador
eficaz de hábitos mentais, aos quais as pessoas oferecem uma inevitável resistência.

A resistência desaparece com o tempo e a formação histórica do gosto. Hoje, por exemplo,
tendemos a gostar de pinturas impressionistas e expressionistas do século 19, sendo que na época
em que foram criadas poucas pessoas conseguiam gostar delas, pois em geral as pinturas
preferidas eram as que tinham sido criadas um século antes. A história da arte e das imagens está
sempre adiantada em relação à história do gosto, um parâmetro aliás que ficou para trás e que não
nos serve mais quando se trata de pensar a arte contemporânea. Verdade que o gosto ainda existe,
mas a arte contemporânea vai além dele, e podemos suspeitar que serviu para desconstruí-lo. Isso
quer dizer que não se trata, no caso da arte, de gostar ou não gostar. Talvez se trate, hoje em dia,
muito mais de entender. A arte se transformou em uma questão estética e intelectual. O que
representa um avanço e uma limitação que precisam ser analisados criticamente.

A diferença entre um objeto qualquer e uma obra de arte sempre se faz notar como uma
experiência de estranheza. Ora, o estranhamento é uma categoria filosófica presente na
experiência com a arte em todos os tempos. Na experiência sensível que está na origem da própria
filosofia. Vejamos um mictório em uso em um banheiro ou exposto para venda na vitrine de uma
loja e o mesmo objeto transformado em obra de arte por meio de um ato estético. Foi o que
aconteceu com o ready-made criado por Marcel Duchamp em 1917 chamado Fontaine.
Essa Fonte que nada mais é do que um urinol masculino invertido até hoje causa estranheza em
quem a vê pela primeira vez.

Duchamp assinou-a como “R. Mutt” e a enviou ao Salão dos Independentes em Nova Iorque.
Censurada naquele momento, a obra não chegou a ser exposta e se perdeu para depois tornar-se
o que foi considerado por muitos como a obra mais importante do século 20, sobre a qual se
criaram muitas teorias e confusões práticas, disputas estéticas e jurídicas.

Para além das sensações diferentes que Duchamp provocaria na sensibilidade de muita gente, o
que ele conseguiu foi mais complexo. A obra causa até hoje um efeito estético no cenário
ontológico que é, ao mesmo tempo, um efeito ontológico no cenário estético. Ou, em palavras mais
simples: como um mictório invertido poderia ser uma “obra de arte”? Certamente, Duchamp fez
da ironia uma ação estética. A ironia é o jogo que faz dizer e desdizer algo ao mesmo tempo. Que
seja um urinol e não seja um urinol ao mesmo tempo faz dele um ex-urinol ou um pós-urinol. Ora,
lembremos que Sócrates usava a ironia como método. Hoje, poderíamos nos perguntar se Platão,
que critivava as artes miméticas ou imitativas, veria algum problema nesse tipo de arte que realiza
o milagre da presentificação de uma ideia e nos faz pensar demais.

Há uma diferença estética entre os dois objetos que é, também, uma diferença ontológica. O caráter
performativo do objeto artístico surgiu com força incomum. A força de uma transfiguração, para
usar uma expressão de Artur Danto, que é ao mesmo tempo uma certa transubstanciação que em
tudo parece heresia, negação da crença oficial.

Filosofia é um trabalho do pensamento que se constrói com a ironia que consiste em dizer e
desdizer para fazer pensar. Nosso sistema de crenças baseado em certezas e verdades não suporta
isso muito bem. Esse dizer e desdizer, esse ser e não ser ao mesmo tempo, causa alegria intelectual
aos animados e mal-estar aos indispostos. O que chamamos de arte é um universo de objetos
(pinturas, literatura, poesia, cinema, perfomance, ready-made, happenings) que causam um efeito
concreto de estremecimento na ordem estabelecida por meio da ironia. É nesse sentido que a arte
provoca a realidade. Cria um outro mundo que necessariamente põe em xeque o que estava dado
como verdadeiro. Porque tudo o que é pode não ser.

Muitas pessoas não se sentem confortáveis diante das obras de arte, justamente porque elas
abalam o nosso conforto mental, o nosso sistema de crenças, o que é dado e tomado como certo e
verdadeiro. São raras as pessoas que gostam naturalmente de arte, se é que se pode usar a
expressão “naturalmente” em qualquer contexto. Entendemos a arte a partir de mediações
relacionadas à educação, religião, cultura, classe cultural. Há horizontes de compreensão prévios
e preconceitos no ato de perceber uma obra qualquer. Alguém que tenha alguma relação de
proximidade com ambientes educados ou preparados para a arte tende a entender e aceitar
melhor as proposições artísticas, justamente porque seu sistema de crenças absolutas já está
menos rígido. Mas isso não basta, também os especialistas no assunto podem ser vítimas de
hábitos mentais produzidos em contextos. Só nos livramos deles se nos relacionamos diretamente
à lógica da obra e somos capazes de ir além das teorias científicas e populares e aceitar que a ideia
da arte e a obra de arte abram o nosso espírito.

O que chamamos de indústria cultural, o todo da cultura no qual cada objeto artístico é reduzido
à forma da mercadoria, ou seja, ao que cabe no mercado, contribui para o embotamento da
percepção da ironia necessária à arte (e também à filosofia). Em um mundo em que a ironia está
em baixa, a arte e o pensamento livre também.

Apesar dos apelos da indústria cultural, da ideia de que obras de arte devem ser entretenimento,
de que as artes devem apenas embelezar o mundo ou agradar às pessoas, as artes persistem com
seus poderes complexos, realizando sua função metafísica essencial, a de nos retirar do imediato,
do óbvio, de nos fazer sentir e pensar o que não está regulamentado e, assim, expandir nossa
subjetividade no sentido de uma autorreflexão crítica.

O que é arte e obra de arte?

A complexidade da arte nos obriga hoje a falar em “artes”, em “obras de arte” e a falar cada vez
menos de uma “essência” da arte. Mesmo assim, um momento importante da teorização científica
ou popular sobre a arte continua a sustentar-se sobre seu conceito. A pergunta “o que é arte?”
constitui um interesse genuíno das pessoas quando se trata da autorização a pensar as obras que
sempre se apresentam a nós como seres extremamente estranhos. Eu pergunto “o que é arte?”
para saber se posso acreditar no fato de que aquilo que vejo merece minha atenção. Como se
víssemos um alien, um E.T. e perguntássemos quem são, estamos diante das obras sempre sem
saber se são confiáveis, se podem ser levadas a sério, se são uma alucinação e, inclusive, se
corremos perigo diante delas e até se elas podem ou não mudar algo no mundo.

Foi nesse clima que cidadãos caíram nas armadilhas criadas por movimentos que levaram ao
fechamento de exposições, apreensão de obras de arte, cancelamento de peças de teatro e
criminalização de performances no Brasil atual. Manipulando elementos morais na intenção de
capturar as mentalidades, grupos conseguiram afastar pessoas das análises estéticas que
favoreceriam a experiência com a arte. O moralismo impediu a experiência de emancipação do
pensamento e da sensibilidade à qual as artes nos conduzem.

Precisamos melhorar nosso diálogo com as artes, sob pena de afundarmos em uma experiência
cada vez mais autoritária. A arte é sempre uma proposição que se coloca como pergunta e como
resposta ao mesmo tempo, daí a sua ironia. Que ela apareça como campo de resistência se deve ao
seu caráter de contradispositivo de poder. A arte é a negação de todos os poderes que nos permite
ver o mundo, o corpo, a nudez, a roupa, o espaço, o tempo, o traço, as materialidades, os objetos, a
história, as classes, as violências, as raças de outro modo. Enervantes, angustidas e irritantes, as
obras desconfortam, desestabilizam, abrem corações e mentes para a aventura do conhecimento
que exige a coragem da presença.

Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/marcia-tiburi-negacao-de-todos-os-


poderes/ acesso em 01.09.2018

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