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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE PSICOLOGIA
CURSO DE GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

GABRIELLE DA SILVA MONTEIRO

CORPOREIDADE EM TRAVESSIA: AGENCIAMENTOS ANCESTRAIS PARA


TORNAR-SE SUJEITO AFRODIASPÓRICO

Niterói
2023
GABRIELLE DA SILVA MONTEIRO

CORPOREIDADE EM TRAVESSIA: AGENCIAMENTOS ANCESTRAIS PARA


TORNAR-SE SUJEITO AFRODIASPÓRICO

Trabalho de Conclusão apresentado ao


Curso de Graduação em Psicologia do
Instituto de Psicologia da Universidade
Federal Fluminense, como requisito
parcial para obtenção do grau de
Psicólogo.
PROFESSORA ORIENTADORA:
LUIZA OLIVEIRA

Niterói
2023
TERMO DE APROVAÇÃO

GABRIELLE DA SILVA MONTEIRO

CORPOREIDADE EM TRAVESSIA: AGENCIAMENTOS ANCESTRAIS PARA


TORNAR-SE SUJEITO AFRODIASPÓRICO

Trabalho de Conclusão aprovado pela Banca Examinadora do Curso de


Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense – UFF

Niterói, 19 de dezembro de 2023.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________________

Profa. Dra.

Universidade Federal Fluminense

______________________________________________________________

Profa. Dra.
Universidade Federal Fluminense

_______________________________________________________
_____
AGRADECIMENTOS

Agradecer é a parte mais difícil dessa escrita. São tantas as pessoas, as forças e os
deuses que me deram todo suporte para completar esse ciclo. Sinto que nenhum esforço daria
conta de recordar todos os encontros que me deram insumos de existência.Porém preciso ao
menos tentar.Início pela minha base maior: Dona Estela, obrigada por me acolher no seu colo
em cada adversidade, me permitir desabar em sua segurança pra depois me reerguer forte
sempre que a senhora segurava nas minhas mãos e me lembrava de respirar. “ Respira filha,
você consegue”. Para minha irmã Luanna que me fez rir de todos os surtos que esse trabalho
gerou, por me ensinar a ser autêntica e brilhante como a lua no dia que ela nasceu, somos sol,
lua e estrela pra sempre, nossa tríade inquebrável fruto de outras vidas e com certeza nas
próximas.Obrigada ao meu pai Sidney, pelo som alto com dança na sala, lembro até hoje que
o senhor foi o primeiro a trançar os meus cabelos mas segue até hoje trançando as rotas dos
meus sonhos, sempre me apoiando sem medir esforços. Agradeço também a quem veio antes
de mim e eu não tive a oportunidade de conhecer, mas com toda certeza não estaria aqui se
não fosse por eles, especialmente minhas protetoras: vó Damiana e bisa Jostelina, tatuei no
meu braço as espadas de são jorge que vocês plantaram, para sempre lembrar que as senhoras
vivem em mim. Nós conseguimos, eu sinto que vocẽs vibram comigo.
Sem me esquecer dos amigos, minha família espalhada por todos os cantos, cada um
tão diferente e tão fundamental para mim. Foi através de cada conversa em caronas, terreiros,
bares, corredores, escadas, ônibus, sambas, casas… que eu pude dar sentido a toda correria,
por muitas vezes nos encontramos nas frestas do dia a dia, já estávamos em travessia. Cada
um de vocês foram essenciais em me acolher e me mostrar que no fim vivemos plenamente
pelo amor, a quem somos, de onde viemos e o que ainda vamos ser. Obrigada Athirson,
Izabella, Giovanna,Guilherme, Rayane, Guiga, Vitoria, Juliane, Gabriely, Henrique,
Emerson,Thamara, Pacheco, João, Deborah, Luis Antonio, Andreia e Clariana. O quanto eu
amo vocês vai além de mim, nossa amizade é afeto sagrado.
Demasiado fundamental agradecer a essa força invisível mais de presença latente,
que tudo regenera, a ancestralidade em todas as suas formas. Como sou grata por enxergar sua
manifestação nas palavras da minha familia, na risadas dos meus amigos e quanto mergulho
de cabeça no mar. Eu sei que a ancestralidade cuida de mim em todos os detalhes. Obrigada
pela energia vital que me fornece, e cuida das minhas feridas. Obrigada a Deus, aos Orixás, às
entidades e aos espíritos. Minhas forças guias que sempre me lembram que não estou sozinha,
nas palavras do cigano “ tem uma fila de pessoas atrás de você’’.
Sankofa: se wo were fi na wo sankofa a yenkyi
[Se você esquecer não é proibido voltar atrás e reconstituir]. (sakhu sheti ref )
RESUMO

Descartes propõe um modelo de conhecer a realidade pela racionalidade, destituindo


o corpo dessa tarefa e colocando-o no lugar do irracional, portanto, não confiável. Entretanto,
a importância da matéria sensível na experiência africana é categoria de análise fundamental,
visto que foi por meio da sensibilidade que se gerou a possibilidade de sobreviver ao
desterramento e despedaçamento subjetivo que foi o processo de escravização.
Portanto, a corporeidade foi a estratégia ancestral essencial para a sobrevivência da
sensibilidade do povo preto. Logo, cabe a psicologia compreender que a dimensão racional é
uma concepção ocidentalizada que não cabe na subjetividade afrodiaspórica já que, no
processo de escravização esses aspectos que compõem o sujeito africano escaparam da
colonização, já que fogem da ordem da racionalidade ocidental. Se os pretos precisassem
essencialmente racionalizar para existir não haveria tal possibilidade para os negros
escravizados, brutalmente desumanizados, foi necessário que a corporeidade roubasse a cena.
Assim, pode-se perceber nas mais diversas manifestações culturais afrobrasileiras
elementos de valorização desse corpo que dança, joga, luta e conta histórias. Existe uma
herança latente, passada pela esfera do sentir. Nossos corpos rastreiam a vivência, registrando
do que o mundo é feito e afirmando o que a ancestralidade já sabia, a matéria e o espírito são
elementos da mesma realidade. Assim, fugindo da própria racionalidade europeia que se
propõe a definir o que seria o corpo, coisa que não cabe na corporeidade, o ato de racionalizar,
a único coisa que faz sentido é sensibilizar e afetar.

Palavras-chave: corporeidade; ancestralidade; afrodiáspora.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Assentamento com coração


Figura 2 Assentamento raizes

SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO: EU SOU A CONTINUAÇÃO DE UM SONHO…

‘Eu sou a continuação de um sonho, da minha mãe, do meu pai,

Todos que vieram antes de mim

Eu sou a continuação de um sonho


Da minha vó, do meu vô

Quem sangrou pra gente poder sorrir ?

Eu não herdei o trono, eu recuperei e pronto

Perdi noites e noites de sono e foices da corte e sangue derramado de quem veio
antes

E o resultado tu não quer que eu cante?

Eu canto” (BK, 2022)

Não há possibilidade de iniciar as costuras dessa escrita sem antes demarcar de onde
emergem tais reflexões. Das propostas aos estudos aqui utilizados, tudo transborda de uma
mulher preta, feita, crescida e nascida no subúrbio carioca, especificamente na ladeira do
Encantado, no bairro de Piedade. Filha da Dona Estela Dalva e do Cavalo. Meu pai recebeu o
apelido de Cavalo pelas longas jornadas de trabalho em pé como vigilante; terminou o ensino
médio mais tarde pelo supletivo; o primeiro filho da minha avó Jarcilei, com 15 anos, e o
único preto de seis irmãos. Já a minha mãe conseguiu ser “estudada”, se formou em
jornalismo na universidade privada, mas foi uma tarefa exaustiva que até hoje rende histórias,
já que meus avós se foram quando ela ainda era jovem, a matrigestão se tornou encargo muito
cedo, mas também criou uma preta ambiciosa que nunca cessou em estratégias para criar suas
filhas. Meus pais se separaram quando eu ainda era criança, mas nunca deixaram de ter como

consenso uma prioridade: minha educação. Fui cultivada juntamente às minhas duas irmãs e
mais um bocado de primos, e em cada um de nós foi depositada a esperança de prosperar,
pois, dentro daquela família quem vem por último tem que ficar melhor do que quem já foi.
Então, se prosperar era a palavra da vez, Dona Estela dava aula, minha mãe fez com que eu
tivesse acesso a ensino público de qualidade no Colégio Pedro II, nossa primeira grande
vitória de aprovação e, anos depois, a euforia foi duplicada quando finalmente entrei na
faculdade federal. O curso escolhido? Psicologia na Universidade Federal Fluminense. Um
feito de triunfo, uma negra fruto do ensino público e, agora, a primeira da família a se graduar
na universidade pública. Mas o desafio era grande e os recursos limitados, não havia como
morar em Niterói, então a solução foi pagar a passagem mesmo com as duas horas de viagem
até o Engenho de Dentro, e acrescido dessa fadiga a necessidade de suprir os custos para
simplesmente existir. Se inicia a saga: estudar e trabalhar. Foram cinco anos descompassados,
onde eu nunca participei de eventos universitários ou reuniões do curso, de fato não tive
experiências universitárias, por assim dizer, para além da vida acadêmica, não tenho nenhum
vínculo afetivo com o curso em si.
Durante meu percurso formativo me deparei com a seguinte questão: O que pode um
corpo negro? Essa frase é uma reformulação da pergunta spinozista que nos ajuda a pensar na
ideia de potencialidade de agir. Na realidade, a própria faceta de existir nos espaços se altera
pelos afetos que aquela corporeidade mobiliza. Para compreender esse fenômeno de afetação
precisamos colocar em xeque nossas próprias experiências subjetivas de desconforto e
deslocamento, em meio a branquidade nos espaços e suas teorias que não abarcam a
complexidade da vivência preta. No cotidiano universitário os corpos racializados não se
veem nos espaços, e menos ainda nas referências bibliográficas, esse fenômeno nada ingênuo
acarreta um empobrecimento de engajamento no cuidado de uma população que expressa os
maiores números de adoecimentos psicológicos. Voltar os olhares para essa carência dos
estudos raciais em psicologia, e a presença da população negra somente como um objeto de
estudo, é revelar uma contradição latente no âmbito acadêmico, que só serve para criar mais
imagens racistas. Tomando como base o texto “O Bloqueio Epistemológico no Brasil” foi
possível perceber o quanto o apagamento epistemológico é algo perfeitamente articulado para
favorecer uma subjetividade datada - branca e europeia. Não obstante, desse "lapso
epistemológico" emerge o sintoma de apagamento de uma memória que foi fundamental para

a construção cultural desse país, porém, por conta desse “trauma social”, o pensamento
brasileiro vai se distanciando e sublimando, no sentido freudiano do termo, tudo aquilo que
permitiria o povo brasileiro pensar sobre si e suas especificidades. Sabe-se que,
historicamente, o Brasil enquanto nação sofreu intervenções que encorajaram a mestiçagem
visando um projeto de embranquecimento fenotípico, subjetivo e espiritual. De fato, a
assimilação epistemológica foi principalmente uma estratégia de desconhecimento de si, onde
a alienação identitária era a ferramenta perfeita para enterrar uma memória que ameaça a
ordem vigente. Observando esse percurso, fica evidente que a recusa dos conhecimentos da
africanidade não é acidental, e sim um projeto do racismo estrutural sobre o qual a sociedade
brasileira foi erguida. O que me leva a pensar, de quais formas podemos combater esse
bloqueio cognitivo social se não por uma psicologia pautada na corporeidade ?
O movimento dos parágrafos anteriores é, em primeira medida, uma aposta
metodológica, em seu exercício de demarcar a minha trajetória para compreender como meu
corpo lutava para existir no espaço acadêmico antes mesmo de pisar nele. Pois, a ascensão
social foi um projeto familiar, mas que não anula a luta incessante que é se fazer pertencer.
Ademais, pertencer a um curso com uma agenda pautada em referenciais tão distantes da
experiência cotidiana do povo preto brasileiro. Recordo como me sentia constantemente
descolada daquilo que era apontado como Psicologia, e isso se somava a baixa autoestima
intelectual, uma consequência inevitável devido aos pontos de partida ali apresentados, pois,
se a ocidentalidade descompromissada com a vivência afrodiaspórica brasileira era a única
possibilidade de produzir psicologia, logo, eu não teria condições de construir tal
conhecimento. Perceber o quanto a intelectualidade branca ignora a realidade racial em suas
teorias, produzindo um conhecimento distanciado e uma experiência descorporificada do que
é fator intrínseco na sociedade brasileira, na minha vida, no meu bairro, na minha família, foi
um fator mortificante na minha constituição sensível, principalmente pela impossibilidade de
elaborar com fluidez esse incômodo. Foi nesse ponto que o adoecimento da minha
corporeidade atingiu o ápice, senti a exaustão das preocupações monetárias serem agravadas
pela batalha de ocupar a universidade, a angústia de não ver a sua cor, nos textos, nos
corredores e muito menos nos professores. Nessa passagem, da escola pública para faculdade
pública, as pessoas pretas diminuíram significativamente, e isso me fez pensar que eu não
deveria estar ali. Me recordo principalmente da tensão muscular paralisante de estar em sala

de aula, e não conseguir levantar a mão para realizar intervenções, pois, não enxergava
sentido nas minhas contribuições, meu estômago revirava em imaginar um cenário onde eu
me manifestasse em sala de aula, entretanto, nunca fui uma pessoa de tímida, muito pelo
contrário. No entanto, o ambiente de aula mais me parecia uma experiência de
amordaçamento, sem que uma mão física encostasse na minha boca.
Partindo dessas vivências e reverberações, pode-se perceber a constituição de um
estado de escassez identitária e empobrecimento do íntimo, devido à descoberta de si pela
negação, autoconcepção desfavorável que o negro possui de si mesmo, em decorrência do
processo de formulação da identidade através do contato primário com a branquidade
dominante. Assim, a ausência da imagem de si como totalidade ou como presença deslocada,
sistematicamente devolvidas no encontro com o outro, tendem a engendrar uma formação
psíquica de fragmentação corporal (FLOR; KAWAKAMI; SILVÉRIO;p.1295; 2020). Venho
aqui afirmar a necessidade de transmutar as minhas dores e confusões, antes concebidas como
trajetória pessoal, no plano de um sofrimento coletivo. Traumas compartilhados, que ganham
materialidade no sintoma do desejo avassalador pela ascensão social, como se o preto
“estudado” pudesse enfim conquistar seus territórios existenciais de forma positiva. Porém, na
prática, mesmo com certo grau de introjeção nos espaços, ainda se percebe pela sensibilidade
a distância da cor. A cor que pensamos, falamos e expressamos sempre será matéria de
continuidade com a história e a cultura, carregamos na pele a história de um povo. Assim, um
corpo negro que nunca será um corpo psicanalítico, já que não se trata de um drama
individual, e sim de traumas compartilhados na coletividade. Dessa maneira, quando
procuramos construir uma identidade na individualidade já estamos retornando para a agenda
da subjetividade ocidental, que destaca e singulariza a fim de fragmentar a realidade e seus
fenômenos, mas principalmente, as pessoas. Esse paradigma individualizante e fragmentador
é a pauta principal do sistema econômico vigente, por exemplo, o capitalismo que nos
convida todos os dias a comprar nossas alforrias nos saberes brancos. Nos matamos para
chegar lá, prejudicamos reciprocamente e padecemos, as mesmas técnicas da colonialidade
empregadas das dinâmicas do cotidiano mais moleculares. Mas não existe "pretos no topo"
(nota de rodapé), se esse negro está sozinho. A ascensão social que não garante uma retomada
de nossas bases não pode dar conta do nosso ser no coletivo, já que não reintegra os
repertórios ético-estéticos para inscrição dos saberes e conexão. Conectividade em saber que é

continuação de um sonho para além da liberdade, mas na esfera do existir, e agora que temos
condições para tal, precisamos resgatar as formas de enriquecer nossos afetos e ir além da
sobrevivência. Como fazemos África aqui no Brasil. Como fazemos África em nossos corpos.
Esse movimento é justamente o que permite que a África seja algo além do território
geográfico.
Em meio a ciclo de dores e apagamentos, reitero a aposta metodológica pela qual
escrevo, em fazer desses complexos matéria de construção a serviço de uma psicologia do
cuidado afrodiaspórica. Se fazendo aliada dos escritos de Beatriz Nascimento (p.48, 1974),
somos a história viva do povo preto, latente e potente, que habita o presente com a
complexidade dinâmica. No contexto socio-histórico brasileiro, de subsequentes
esmagamentos do negro em todas as suas dimensões, nos resta esmiuçar nossos complexos e
frustrações enquanto material oculto que só pode ser solucionado quando, primeiramente, é
assumido como não resolvido. Dessa forma, nos apropriamos de algo que é tão nosso quanto
nossas heranças, os traumas e adoecimentos, e fazemos disso objeto que só pode ser
compreendido pela dimensão experiencial viva. Nesse engendramento, no percurso da minha
graduação, tenho praticamente feito um curso à parte, buscando as urgentes necessidades do
povo preto no âmbito do cuidado e da saúde mental, me conectando com os meus sofrimentos
enquanto mulher preta pobre. Porém, com uma ambição além, ao objetivar a rememoração
sistemática das formas de agenciamento que propiciaram a sobrevivência do espírito,
individual e coletivo, do negro diaspórico. Nesse sentido, a centralidade do projeto se dá no
entendimento do corpo como estratégia que ganha destaque pelas possibilidades de
agenciamento da sensibilidade que é agredida cotidianamente. Apesar de todo massacre
físico, subjetivo e epistemológico, a ideia de corporeidade foi justamente o que propiciou a
conservação da força vital, ou, como prefiro denominar, axé. O corpo é via de circulação do
axé que nos mantém vivos e pulsantes. Imagine, o espanto e alegria que foi perceber que essa
tal tecnologia não era evento recente e sim filosofia africana milenar, trazida pelos ancestrais.
Buscar epistemologias e filosofias que redigiram nosso caminho para compreender como elas
se manifestam hoje, mesmo do outro lado do oceano atlântico. Nesse emaranhado de sentidos
e construções, a principal virada de chave, e meu grande ganho foi colocar o enfoque naquilo
que mais mobilizava afetos com toda sua complexidade: o corpo.

Era pelo corpo, no corpo e com o corpo que tudo se reiterava. Nas poucas vezes que
a universidade oferecia, meu corpo mantinha minha sensibilidade viva, evitando o total
padecimento. Por esse viés, do singular-particular foi possível desaguar no coletivo, porque o
corpo emergia enquanto um saber ancestral materializado no presente. Não era necessário
fazer a pergunta do ‘’como’’ ocorria, pois, só fazia sentido corporificar, em momentos em que
a memória era recuperada e entendida em um momento, desaguando na identidade. O corpo
faz identidade. Pela subjetivação em se encontrar com elementos éticos e estéticos que
remonta a trajetória pessoal-coletiva preta. Em quaisquer espaços, o que se exige é
primordialmente uma corporeidade, um modo de expressão segunda a medida universal da
razão, e da educação e da elegância, porém sendo a branquitude entendida como a própria
materialização da medida da razão, por definição, as pessoas pretas têm uma corporeidade
eternamente em falha nesse paradigma.
Ao realizar tais conjugações, pessoais-coletivas, a atual proposta se dá
essencialmente em traçar um percurso que se inicia na crítica ao processo formativo em
psicologia, chegando as atitudes metodologias para romper com tais modelos vigentes e
alcançando novas propostas e entendimentos de aspetos principais a subjetivação
afrodiaspórica e como promover medidas de cuidado efetivas. Colocando em xeque o que é
hoje a formação em psicologia, tudo que não se trata de referenciais brancos e ocidentais é
tido como “alternativo”, como se os pontos de partida das histórias e filosofias já não
fizessem parte de uma estrutura de poder, baseada numa racionalidade que entende como
centralidade “neutra”, onde toda diferença se constitui a partir desse epicentro. Dessa maneira,
em continuidade ao modus operandi ocidental, a psicologia se empobrece em possibilidades
de construção de instrumentos capazes de dar conta da experiência de mais da metade da
população brasileira, a população preta. Portanto, se faz necessário, primeiramente, retirar tais
dinâmicas hegemônicas demarcando a partir do corpo que aqui escreve, com suas marcas e
lugares, fazendo com que a identidade seja recurso para finalmente fazer aparecer em
psicologia o que já é realidade prática. É a realidade ganhando teoria, em um movimento
impossível para os vieses universalistas, pois, o corpo não precisa sair para o conhecimento
entrar, visto que o sujeito e o objeto moram sob o mesmo teto, coexistindo no mesmo corpo.
Assim, a ciência psicológica ganha um caráter vivo, um campo afetivo, sensível e enriquecido
de uma complexidade que abarca a verdadeira humanidade. Enfim, esse trabalho é uma

medida bastante pretensiosa ao se propor a: mudar os pontos de partida; apontar


agenciamentos sensíveis; e demarcar medidas de cuidado. Mais especificamente, as
tecnologias de cuidado que reverberam no presente nas mesma medida que são recuperadas
no passado-presente, a ancestralidade enquanto a tecnologia que potencializa a existência e
constitui uma identidade positiva, distante de referenciais que não nos cabem e estrangulam a
riqueza de nossas experiências.
Iniciaremos aqui uma reflexão sistemática acerca da psicologia que embarca na
tarefa de uma constituição da subjetividade nem oposicional, nem reativa, e sim de afirmação
do sujeito afro diaspórico (FLOR; KAWAKAMI; SILVÉRIO;p.1295; 2020) e suas agências
sensíveis. Na primeira parte, o esforço dirige-se em discutir o êmbolo epistemológico pelo
qual emerge toda negação sistemática de África como centro de produção de conhecimento, e
como a epistemologia da universalidade, operada pela cosmovisão ocidental, nega a
humanidade negra. Nesse contexto epistemicida, percebem-se implicações na saúde mental do
negro, que perde seus próprios referenciais existenciais para assumir os repertórios da
branquidade. Na segunda parte, já será possível adentrar, no que aqui será defendido, como a
maior forma de agenciamento para a afirmação do sujeito afrodiáspora, a corporeidade.
Sustentando que justamente a tecnologia do corpo como depósito, de energia e memória, foi,
e ainda é, canal conector transatlântico entre a ancestralidade e a sensibilidade, fornecendo
condições não só para a sobrevivência do povo preto, mas, também a conservação da cultura
que subsidia o refazimento sensível no contexto da diáspora. E, finalmente, no terceiro e
último capítulo, será exposto formulações para uma psicologia que toma para si a tarefa de
sublinhar os engendramentos da ancestralidade para instituir ferramentas de cuidado eficazes
para a cura não somente do trauma colonial, mas de reafirmação da centralidade do sujeito
afrodiáspora e de sua identidade.
Portanto, esse trabalho de conclusão de curso se dá como uma encruzilhada entre: o
corpo, a epistemologia, a psicologia e a ancestralidade. Então, caro leitor, esteja preparado,
pois, aqui se movimenta uma psicologia onde somos convocados a discutir a subjetividade a
partir do grande imbróglio epistemológico a qual é a diáspora. Não seria possível, segundo
Fanon, explicar a constituição dos percalços identitários e subjetivos sem o situar sob o
violento jugo colonial que produzia uma escala de humanidade, em cujo topo reinava a
associação da perfeição, do sublime, da história, da razão, da realização e da humanidade com

a branquitude. Nessa elaboração, a dimensão social-econômica-histórica-política são centrais


na estruturação e nos efeitos dos complexos psico-coloniais e seus traumas, e, portanto,
permitiria explicar certas formações psíquicas como efeitos das rupturas da vida social
impostas pelo ocidente. “O objetivo do racismo não é o homem particular, mas uma forma de
existir” ou ainda as modalidades de existência (Fanon, 1969: 35). A feitura dessa escrita é um
projeto de travessia que busca compor com a ancestralidade, que habita toda a realidade,
como elemento primeiro que nos conecta, fazendo que casa não seja só terra. Pensar no
resgate ancestral dos sujeitos que só puderam carregar seu próprio corpo até o outro lado do
Atlântico. O que deixaram e o que trouxeram consigo? Das dores herdadas ao resgate
ancestral, está tudo aqui e agora. Estamos vivos.

CAPÍTULO I - O ESPELHO DA VERDADE: DO LAPSO EPISTEMOLÓGICO


PARA PERSPECTIVAS PLURIVERSAIS

No princípio do mundo existia um grande espelho, ele ficava disposto entre o Orum
(mundo espiritual) e o Aiyê (mundo material). Então, tudo que acontecia no Orum se
materializa no Aiyê. Assim, ninguém tinha dúvidas da verdade, e todo cuidado era pouco para
não quebrar o espelho. Nesse mesmo tempo, vivia Mahura, uma menina que sempre
trabalhava para ajudar a sua mãe. Em um desses dias exaustivos de labuta, Mahura já cansada
e distraída pilando inhame perdeu o ritmo do movimento e sua mão esbarrou forte no espelho,
que se espatifou no chão. Desesperada com o incidente, Mahura correu para se desculpar com
Olorum, o deus supremo, mas o encontrou calmo e sereno, repousando tranquilamente à
sombra de uma iroko (árvore sagrada dos guerreiros). Porém, Mahura logo relatou o ocorrido
enquanto Olorum ouvia os detalhes com atenção, e quando a menina terminou o grande deus
proclamou: “De hoje em diante não existirá uma única verdade, pois, quem encontrar um
pedaço do espelho em qualquer parte do mundo terá um fragmento da verdade, e em cada
caco será espelhado a imagem da realidade de quem o encontra”
O conto que inaugura esse capítulo é um emblema perfeito de uma grande qualidade
da afrocentricidade: a pluriversalidade. A afrocentricidade é uma epistemologia que permite a
coexistência de inúmeras ‘’verdades’’ e atribui legitimidade à elas, respeitando seus
contextos, entendendo que cada lugar terá seu caco do grande espelho da verdade. Ao
contrário da lógica ocidental que se reconhece como o único modo possível de organização do
sistema-mundo, na (des)lógica africana temos um rompimento com a falácia do ‘’milagre
grego’’ que supõe um pioneirismo no pensamento do ocidente, invalidando todos os modos de
pensar construídos até aquele momento fora do berço norte. Compreendendo a multiplicidade
das histórias da humanidade não existe uma hierarquização dos seres humanos, e esse é o
papel fundamental da afroperspectiva, questionar o absoluto e direcionar para a
pluriversalidade, desconstruindo o projeto único euroamericano.
A partir daqui o espelho está quebrado. Não existe mais reflexo límpido e
inquestionável do que seja a verdade. O real se fragmenta em pedacinhos que refletem valores
construídos em cada contexto, territorial, histórico e epistemológico. Nessa perspectiva,
vivências distintas não rivalizam, pelo contrário, assumem um caráter de complementaridade,
onde aceitar a verdade do outro é recuperar um pouco do outrora imaculado espelho da
verdade, que Mahura fizera o favor de quebrar. Que grande ganho ter a verdade em estilhaços,
para ter o trabalho de montar mosaicos e tornar o mundo diverso e interessante. Tomando
como base o conto do espelho, pode-se ilustrar como a afro perspectiva coexiste
harmoniosamente com muitas outras visões de mundo, sendo uma medida aliada da
pluriversalidade ao reconhecer legitimidade em múltiplas verdades, e apontando como
equívoco o privilégio de um único ponto de vista (Nogueira, 2012). Em contrapartida, o
paradigma ocidental se afirma como centro de organização do sistema-mundo, que para se
fazer valer precisa, necessariamente, invalidar as outras cosmovisões. Assim sendo, quando o
extermínio do outro é base de afirmação, a grande consequência é que absolutamente tudo que
não caber no universalismo será questionado em seu estatuto ontológico,quanto ao caráter de
ser humano ( RAMOSE, 2011, p.8). Ou seja, a forma que o universalismo europeu se
encarrega de deslegitimar as epistemologias e filosofias não ocidentais constrói uma negação
sistemática a africanidade em medidas de afirmar toda uma cultura como irracional, e
portanto, animalesca e desumana. Nesse ponto, percebe-se a gravidade da medida universal da
razão quando esta facilmente se transfigura em matéria argumentativa suficiente para a
escravização de todo um povo. Em suma, é o seguinte tópico frasal: Se o ocidente
branco-masculino é o único capaz de produzir verdades universais todo resto é jogado a
margem, no centro de poder se inaugura inclusive o que é ser humano, e como um povo sem
sua filosofia e história poderia ser humano?
A escravidão não criou o racismo, foi a base filosófica racionalista que pressupõe
que os humanos do ocidente são os detentores da razão, e como, em tese, o pensamento é a
única forma de conhecer a verdade logo, eles eram os donos do saber por natureza. Os
sujeitos africanos colocados sob a perspectiva branca são seres sem filosofia, já que não
sabem conhecer através da razão. Nesse viés, a legitimação do racismo se dá pela negação da
alma, esvaziamento do negro como ser humano. Então, o racismo não é fruto somente da
colonialidade, e sim, da história da humanidade a partir do momento que somente uma
história é contada e colocada como única. De fato, um dos sofrimentos psíquicos fruto dessa
desumanização, que verbera no cotidiano da diáspora, é uma consciência preta, porém, uma
subjetividade centrada na branquitude e que a todo tempo inconscientemente almeja
inalcançável e restrita humanidade, ser branco. O desejo do embranquecimento advém dessa
eterna falha da humanidade negra. Uma rachadura explícita entre os corpos que podem
pensar, pois expressam na epiderme a clareza fenotípica, e corpos rechaçados ao lugar do
não-poder-saber e, portanto, animalizados.
A literatura, as artes plásticas, as canções, os provérbios, a educação escolar, os
hábitos restituem o racismo que repercute em todos os níveis de sociabilidade. A
constituição da subjetividade negra, em Fanon, portanto, não está exatamente na
chave da inferioridade, mas na da inexistência, do aviltamento da sua humanidade,
da negação e das ausências que ele internaliza. Por meio da negação, tanto o eu
quanto o Outro se tornam uma raça; uma delas, entretanto, no campo da
humanidade, a outra a sua recusa.Esse processo violento desarticulou o universo de
percepção do colonizado e engendrou uma série de psicodeformações que tiveram
impacto na constituição da subjetividade desse Outro que não será nunca
semelhante ao Eu europeu colonizador, tampouco contemporâneo a este, já que o
negro é remetido a um passado (deformado e desfigurado) na escala evolutiva da
formação da humanidade,do surgimento da História e da racionalidade científica.
Fanon mostra como o psiquismo colonizado internaliza a sucessão de sinais
negativos que lhe são imputados e busca incessantemente atingir a “brancura”
como destino de humanidade ou acaba por corresponder ao que lhe é destinado
como si mesmo

Sueli Carneiro (2005, p.97) toma o epistemicídio como um “sequestro da razão” e


uma forma de dominação coletiva e individual de corpos e mentes. Nesse ínterim, o bloqueio
epistemológico observado hoje nas ciências é, primeiramente, uma ferramenta euroamericana
de negação das contribuições da civilização africana, a fim de negar um conhecimento desse
povo e toda sua cultura. Desse modo, emerge um processo civilizatório de ódio
embranquecedor tão enraizado nas ações do Ocidente que, antes de ser uma atitude
consciente, se manifesta como um bloqueio cognitivo que faz manutenção do lugar de
desconhecimento e problematização racial da realidade. Assim, muitos fatos são rapidamente
“esquecidos” e jogados a grande máquina assimiladora da branquitude, que imprime as
subjetividades aos seus moldes.Um exemplo dessas sublimações sistematicas na cultura
euroamericana é produção da ideia que os egípcios são brancos ( DIOP, 2010), afirmação
insustentável em termos biológicos-históricos-geográficos. Foi graças aos esforços de Cheikh
anta Diop do Senegal que desafiou em argumentos grandes estudiosos da europa e recolocou
África no centro de produção dos saberes. Dentro de suas afirmativas, o autor elucidava a
necessidade da Europa de negar a origem negra do antigo Egito era um ato de falsificação da
história mundial (ASANTE, 2016, p. 15), e consequentemente um armadilha subjetiva
anti-negra que recusa o pioneirismo intelectual africano. Mas principalmente, repulsa
avidamente uma origem da civilização não-branca. Realizar a análise desse exemplo do Egito
Antigo é fundamental para que seja possível perceber quais movimentos se alteram na
produção de identidade quando partimos de um centro não hegemônico. Ainda no sentido das
civilizações do Vale no Nilo, naquele território todos se serviam da mesma água mas, ao
mesmo tempo, expressavam compreensões distintas de acordo com cada contexto, uma
unidade na diversidade. E um dos povos que hoje tem grande presença em matéria de
corpo-cultura brasileira e, possui suas origens egípcias são o povo Iorubá ( OLUMIDE
LUCAS). De acordo com a tese de Lucas, a similaridade da língua e bem como as práticas
religiosas, incluindo a conservação de atributos dos deuses cultuados, são alguns dos
argumentos que denunciam a permanência entre os Iorubás de antigos costumes egípcios. É
demasiado importante compreender essa permanência que marca uma continuidade, ou
melhor, uma travessia, operada pelas tecnologias criadas pelos africanos escravizados que
permitiram que hoje, apesar de todo projeto de bloqueio de nossos centros, podemos
constituir uma identidade pelo acesso à nossa cultura.
Por esse motivo, se conectar com a afrocentricidade, enquanto perspectiva é uma
atitude que rejeita a marginalidade imposta pelo eurocentrismo, a fim de demonstrar a
centralidade de África na história mundial e nas diversas áreas do conhecimento (ASANTE,
2016).Assim, a afropespectiva é um horizonte de afirmaçao do lugar de sujeito no negro
dentro das suas proprias experiências, sendo uma rejeição a marginalidade expressa pela
dominação paradigmatica branca (MAZAMA,2003), mas principalmente uma recolocação na
dinamica dos proprios processos de formação identitaria pela reaproximação com seus centros
culturais e psicologicos. Vale ressaltar, que os centros rechaçados aqui serão tratados pela
perspectiva de berço civilizatório, tendo em vista que a orientação se inicia nas margens do
Nilo , com a cultura Núbia e Kemética, e demonstra um ponto de partida diferente da história
da Grécia e Roma, o que já seria assunto suficiente para destacar como o referencial é valor
fundante para a constituição subjetiva do sujeito. Logo, como seria possível ultrapassar o
universalismo para um pluriversalismo, que atribui validade às diferenças ?
Tomando como objeto de análise a famosa frase: ‘’Penso, logo existo’’. Descartes
propõe um modelo de conhecer a realidade pela racionalidade, destituindo o corpo dessa
tarefa, e colocando-o no lugar do irracional, portanto, não confiável. Entretanto, numa
perspectiva africana é simplesmente impossível pensar no mundo sem a conectividade, que
seria esse caráter inter-relacional da realidade pois, tendo o todo como primeira instância não
existe possibilidade de separação das partes perfeitamente articuladas. Dada essa ontologia,
onde o Ser se vê como pertencente ao universo, os sentidos se tornam potência, utilizados
como ferramentas para conhecer a si mesmo e, consequentemente, o cosmos. Nessa retomada,
Oyèrónke ( referencia) nomeia a percepção africana iorubá como uma cosmo sensação, sendo
esse modo de experienciar característica do existente que trás consigo toda a totalidade do
existir. Porém,podemos encontrar a cosmo sensação como forma de experienciar a realidade
desde a antiga Kemet (ocidentalmente conhecido como Egito) que é o genuíno berço do
conhecimento africano, a raiz das nossas filosofias, histórias e espiritualidades, tal como a
Grécia é para o Ocidente. É a partir dessa reviravolta epistemológica que, reformulo a famosa
frase cartesiana para:“nem sempre penso mas, logo sinto”, na tentativa de evidenciar a
importância da matéria sensível na experiência africana, visto que foi por meio da
sensibilidade que se gerou a possibilidade sobreviver ao desterramento e despedaçamento
subjetivo que foi o processo de escravização.
Nessa configuração, fica evidente que o modelo racional do pensamento
desconsidera a corporeidade como agência capaz de conhecer a realidade, categorizando-a
como fenômeno irracional, primitivo e animalesco, como se carecessem de civilidade.
Utilizando esse alicerce, de trazer a civilização, que ocorreram os eventos mais catastróficos
da história, e sentimos os seus reflexos na contemporaneidade. Dessa maneira, ocorre a
perpetuação de contrastes com base no dualismo razão/emoção então, efetua-se as separações
que categorizam os elementos da realidade, a fim de atribuir ou desatribuir legitimidade e,
consequentemente, a própria humanidade do sujeito, resultando em um processo de
hierarquização.Ou você é consciência, ou é corpo. Ou você está na natureza, ou você está na
cultura. Nesse sentido, a grande virada de chave é compreender que o conceito de
corporeidade existe dentro de um sistema articulado de relações de poder que perpetua a
subjulgação dos individuos que não correspodem ao padrão do grande civilizador, homem cis,
branco, hetero e corponormativo.Em suma, a desvalorização do corpo em sua dimensão
sensivel é pura estratégia para oprimir grupos que se afastem do padrão ocidentalmente
estabelecido do pensamento.
Portanto, a afirmação que irá guiar este trabalho é que: a corporeidade foi a estratégia
subjetiva essencial para a sobrevivência da sensibilidade do povo preto. Logo, cabe a
psicologia compreender que a dimensão racional é uma concepção ocidentalizada que não
cabe na subjetividade afrodiaspórica já que, no processo de escravização esses aspectos que
compõem o sujeito africano escaparam da colonização, já que fogem da ordem da
racionalidade ocidental. Se os pretos precisassem essencialmente racionalizar para existir não
haveria tal possibilidade para os negros escravizados, brutalmente desumanizados, foi
necessário que a corporeidade roubasse a cena. Assim, pode-se perceber nas mais diversas
manifestações culturais afrobrasileiras elementos de valorização desse corpo que dança, joga
,luta e conta histórias. Existe uma herança latente, passada pela esfera do sentir.
Nessa composição, se contrário de ser corpo é morrer, como podemos pretender ter
uma vida separada do corpo ? Como se existisse uma continuidade muito mais eficaz na vida
do espírito.Como se os corpos não nascessem localizados, marcados, contextualizados, com
heranças e memórias. Eu não seria quem eu sou se meu corpo não fosse de uma mulher preta.
Quem eu seria se eu fosse um homem indígena ? Uma mulher branca? Nos nossos corpos
estão impressas as marcas da diferença que iram permitir o acesso ao mundo. Nossos corpos
rastreiam a vivência, registrando do que o mundo é feito e afirmando o que a ancestralidade já
sabia, a matéria e o espírito são elementos da mesma realidade.Assim, fugindo da própria
racionalidade europeia que se propõe a definir o que seria o corpo, coisa que não cabe na
corporeidade, o ato de racionalizar, a único coisa que faz sentido é sensibilizar e afetar
Partindo de nossos referenciais, compreendo que a melhor maneira de superar essa grande
confusão é dispor de uma psicologia que concebe a realidade como um fenômeno integrado.
Não é por acaso que utilizo o termo encruzilhada como clave epistemológica (LEDA,
VIDEO), pois, somente através da encruza posso formar nesse trabalho um locus de
construção para uma psicologia que transcende a dualidade cartesiana por se constituir em
múltiplas possibilidades e pela conexão com a matéria ancestral. Traçando um percurso por
cada esquina da nossa história, nossos traumas, nossos desejos, podemos encontrar bem ali,
no entremeio, nossa identidade. Apostando que somente o levantamento histórico da vivencia
do negro no Brasil levada a efeito dee seus descendentes, isto é, os que atualmente vivenciam
na pratica a herança existencial, poderá erradicar o complexo existente nele (NASCIMENTO,
p.56, 1974), e assim elabora uma psicologia que se conecta com as tecnologias de cuidado
afrodiasporicas.

CAPÍTULO ll- CORPOREIDADE EM CENA


Imagens disponiveis em <http://rosanapaulino.blogspot.com/> acesso em 19 de junho de
2023
“ Um assentamento pode ser um assentamento de um prédio ou edifício, ou pode ser
um assentamento de um grupo social, como até hoje é o MST, ou ele pode ser a
força mágica que mantém um terreiro de pé nas religiões afrobrasileiras. Então, eu
escolhi esse nome porque esse grupo, essa população, apesar de todos os horrores
da escravidão, ainda assentaram numa cultura, assentaram em um país.

Nós sabemos que aproximadamente cinco milhões de escravizados, africanos e
africanas, chegaram no Brasil. Como é estar entre os seus e ser sequestrado?
Jogado em um tumbeiro e levado para outro país onde você não sabe se vai
sobreviver, o que você vai fazer, se você vai chegar vivo ou morto, não sabe como é
a língua, e isso sem contar as condições da viagem em si. Então, essas pessoas
tinham que se refazer na chegada, até porque não existia outra saída. Ou se refaz ou
morre. E ainda assim conseguiram assentar em um país. Só que refazer a si mesmo
implica em um trauma… Então, o que eu faço? Pego essa imagem inteira e recorto
essa imagem, e suturo essa peça. Mas, quando a gente olha, a gente percebe que
esse refazimento não bate, ele não se conecta ou se liga de maneira correta (…). Eu
dou um coração a ela porque essa pessoa teve uma vida, teve sentimentos e a
própria comunidade“

Entrevista disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=uNEIJArBdKw>.


Acesso em 19 de junho de 2023

Nos meados da graduação, eu trabalhava na Praça Mauá, panfletando para uma loja
de roupas. De lá eu já caminhava direito para Niterói para assistir as aulas, sempre apressada,
cansada e atrasada. Entretanto, em um desses dias, durante o intervalo no serviço, me
arrisquei a seguir o conselho de uma querida professora, e me adentrar na exposição
“Costuras da Memória" de Rosana Paulino que estava acontecendo logo ali no Museu de Arte
do Rio. Me recordo perfeitamente, de pisar na exposição com uma curiosidade juvenil, e
abruptamente, ser arrebatada pelas obras de Rosana, mais especificamente pelo trabalho
intitulado “ Assentamento”. Remontando a cena do meu encontro com a obra de arte, foi um
momento onde me vi ali, de pé, diante de uma foto da mesma altura que a minha, que dava
essa sensação de espelhamento. Eu tinha tantas perguntas sobre aquela mulher revelada
eternamente naquela fotografia, porém, enclausurada ao anonimato e reduzida a um
cientificismo sem sentido. Quem ela era ? De onde ela veio? Qual era seu nome ? Ao
compreender, sem ler nenhuma linha, o movimento daquela arte de transmutar um corpo
capturado na sua esfera física, e subverter essa matéria objetivista em uma corporeidade
pulsante, com coração e raízes, eu simplesmente chorei. Eu chorava e deságuava. Analisando
cada sutura e descontinuidade que a peça remendava. Eu simplesmente entendia, nos níveis
mais íntimos e, ao mesmo tempo, na epiderme, que tudo aquilo era o puro refazimento que era
tarefa dolorida e diária. Não precisava de interpretação, meu corpo deu conta do recado, uma
obra de arte que discute as implicações traumáticas nas esferas psico-socio-culturais
decorrentes do processo de colonização europeu e tráfico humano transatlântico. Onde estão
suas raízes, e como sabemos onde elas estão? O que faz a nossa cultura ser esse sistema
imunológico que nos sustenta e fornece formas de refazimento na diáspora ?
O termo tecnologia se refere ao conjunto de técnicas, ou métodos pelos quais se
promove transformações no mundo de maneiras inteligentes e engenhosas, intervindo nas
problemáticas da realidade. Corroborando a afirmativa anterior, como podemos denominar as
tecnologias desenvolvidas pelos africanos escravizados que foram essenciais para a
sobrevivência da sensibilidade preta ? Aqui e agora, atribuímos o nome tecnologia ancestral,
para tudo aquilo que foi, e ainda é, estratégia herdada pela força dos que vieram antes, mas
moram no agora, permitindo a recuperação de valores e raízes. É uma forma ampliada de
enxergar os modos de produzir a vida e de rever a ciência antiga com as lentes do futuro. É
buscar no passado as ferramentas para construir utopias que nos permitam ‘superviver’ ao
invés de sobreviver. Consonante a essa ideia, a ancestralidade é o conceito chave para
compreender a história da produção de ferramentas de conhecimento e cultura dentro e fora
do continente africano pois, é por meio dessa força-guia que articulamos nossas heranças,
representações, práticas e resistências. É através da análise da categoria ancestral que é
possível perceber determinados princípios no processo civilizatório africano que atravessam
nosso presente, são valores de extrema importância por reiterar uma memória de grande
sabedoria estratégica e espiritual. Cotidianamente esses princípios cunhados nos primórdios
da existência humana, são rechaçados ao lugar da irracionalidade e primitividade por não
corresponder a lógica individualista, desafetiva e desconectada do Ocidente. Nessa interação,
a matéria ancestral é a via conectora que permite o refazimento, assim como também é a força
encantada que mantém o terreiro de pé, a ancestralidade faz o assentamento dos sujeitos
afrodiasporicos pelas possibilidades em continuidades dos repertórios éticos, estéticos e
culturais. Todavia, a preservação da força assentadora foi um grande desafio, principalmente
no contexto do tráfico transatlântico, todavia, foi justamente uma das instrumentalizações
ancestrais que fez com que hoje seja possível constituir- se como sujeito afrodiásporico. A
toda resistência e sobrevivência da esfera sensível preta, nós devemos a tecnologia ancestral
da corporeidade, já que foi por meio dessa agência que refazemos nossas identidades
transatlânticas sem perder as raízes.
Portanto, a corporeidade foi a filosofia essencial para a sobrevivência da alma do
povo preto no processo de escravização já que alguns aspectos na existência do sujeito
africano não são colonizados já que fogem da ordem da racionalidade ocidental. Se os pretos
precisassem unicamente pensar para existir não haveria tal possibilidade para os escravizados,
foi necessário a corporeidade roubasse a cena.Assim pode-se enxergar nas mais diversas
manifestações culturais afrobrasileiras elementos de valorização desse corpo que dança, que
joga , que luta e que gera descendentes. Soletrando com ênfase: Corporeidade.
Se o contrário de ser corpo é morrer como podemos pretender ter uma vida separada
do corpo como se existisse uma continuidade muito mais eficaz na vida do espírito. Essa
premissa fomenta o equívoco da crença que o sujeito está ali dentro do corpo.Como se os
corpos não nascessem localizados, marcados, contextualizados, com heranças e memórias. Eu
não seria quem eu sou se meu corpo não fosse de uma mulher preta. Quem eu seria se eu
fosse um homem indígena ? Uma mulher branca. Não posso nem minha essência foi movida
pelo o que meu corpo encontrava. Nos nossos corpos estão impressas as marcas da diferença
que iram permitir o acesso ao mundo. Nossos corpos não são moradas provisórias da alma
imortal mas é aquilo que rastreia nossas vivências registrando do que o mundo é feito.Assim,
fugindo da própria racionalidade europeia que se propõe a definir o que seria o corpo, coisa
que não cabe na corporeidade, o ato de racionalizar, a único coisa que faz sentido é
sensibilizar.O nossos corpos estão em constante movimento por serem continuamente
afetados pelos entes humanos e não humanos. E quando um sujeito é capaz de reconhecer que
assim como ele move também é movido, afetado e influenciado a todo momento, ou seja,
existe essa realidade que a todo momento compõe o nosso corpo e identificar esse fluxo é
construir um corpo sensível.
O corpo é lugar de produção e inscrição de conhecimentos, portanto, tudo que se
repete do corpo cria uma episteme. Esse mecanismo operado pela engrenagem ancestral foi
uma revolução sensível essencial para a sobrevivência subjetiva dos povos africanos frente
todo despedaçamento subjetivo que foi o processo de escravização. De fato,
utilizando essa agência da corporeidade, foi possível transmutar aquilo que que era uma
matéria de comércio em arquivo vivo, uma prática de rebelião sensível onde o corpo rouba a
cena. Ele é re-descoberto, re-investido de singularidades que sintetizam as múltiplas presenças
da condição humana (LEDA). Portanto, o que emerge é um corpo negro que transcende a
dualidade cartesiana por se constituir como lugar de encruzilhada, em suas multiplas
possibilidades e pela conexão com a materia ancestral. Entendo essa ancestralidade como a
força inter- relacional que tudo conecta, o princípio que equilibra o cosmos e evidencia o
movimento curvilíneo do tempo, a ancestralidade é rede de todo o pensamento. Nesse sentido,
o corpo preto carrega a ancestralidade como potência indissociável, sendo essa força que
permite a criação e a atualização das afrografias, onde é pelo corpo e no corpo que o saber se
inscreve e produz epistemes. O corpo é vida, é aqui e agora, é potência e possibilidade. Com
o corpo se afirma a vida na existência por ser manifestação da história individual e coletiva,
dando materialidade a uma memória a ser preservada, inscrita e compartilhada. O corpo conta
histórias. É pelo corpo e no corpo que afirmamos nossos saberes.
Partindo da explanação de Leda Maria Martins no encontro “ Encruzilhada
referencial do dramaturgo diaspórico", constrói-se a noção de como o tráfico transatlântico
sequestrou corpos que vieram nus de roupas e bens, mas não de conhecimento. Pensar nessa
imagem do desnudamento físico é um recurso muito forte, justamente por revelar que mesmo
quando a captura e sequestro só permitiu que se carregasse seus próprios corpos, ainda sim
nossa cultura e saberes nos revestiam como a própria epiderme. Esses corpos adornados de
conhecimento trazem possibilidades de constituição de si, para fugir dos modos de inscrição
privilegiados pelo Ocidente, dando à corporeidade lugar de construção narrativa. Nesse
andamento, o corpo é locus de produção e inscrição de conhecimentos, então, tudo que se
repete do corpo cria uma episteme. Portanto, o que emerge é um corpo negro que transcende a
dualidade cartesiana por se constituir como lugar de encruzilhada, em suas multiplas
possibilidades e pela conexão com a materia ancestral. Compreender essa ancestralidade
como a força inter- relacional que tudo conecta, o princípio que equilibra o cosmos, e
evidencia o movimento curvilíneo do tempo que quebra as barreiras passado-presente-futuro.
A ancestralidade é rede de todo o pensamento.Por fim, o corpo preto carrega a ancestralidade
como potência indissociável, sendo essa força que permite a criação e a atualização das
afrografias, onde é pelo corpo e no corpo que o saber se inscreve e produz epistemes.
Por meio de tantas interfaces complexas e dinâmicas, cabe utilizar um exemplo,
citado por Martins, na entrevista já citada, que ilustra todas as construções aqui tratadas
acerca do corpo que preserva e reintegra a ancestralidade e, consequentemente, nossos
insumos identitários essenciais para nossa validação em sujeito e humanidade. A dança dos
Orixás, quanto uma dessas heranças vivas, através de seus movimentos denunciam formas e
modos de ser no mundo. Traçando um comparativo em características da dança de Yemanjá e
Nanã, pode-se analisar como na performance sagrada aparecem distinções em proposições,
pois apesar das duas Orixás performaram o elemento água ou estado de água, elas revelam em
suas danças propriedades diferentes de água. Iemanjá dança como as águas do oceano, calma
e revolta,maternal e espirituosa, ao passo que, Nanã dança aquelas águas primordiais da
criação, a água da placenta, ou a própria lama de onde tudo foi criado. Enquanto os orixás
dançam vão gestualizando, rodando e gritando formas que arquetipicamente demonstram suas
qualidades divinas. Quando no terreiro Ogum bate continência; quando Iansã rodopia com a
velocidade de vendaval; quando Oxum se olha em seu espelho de mão; quando Xangô dá seu
grito batendo no peito. Dissecar esses aspectos do âmbito afro religioso é fonte de
exemplificação fundamental para conceber o quanto a corporeidade, com toda as suas
expressões estéticas e posturas, traduz uma narrativa, pois, o Orixá antes de ser santo ele é um
princípio de cognição que elabora claves de conhecimento e elementos constitutivos de
mundo. Em continuidade a esse mosaico de refazimento, pode-se fazer um corpo a partir dos
acervos estéticos, visto que esses princípios remontam uma ética que quando conectada,
alimentada e ativada, constitui nossas subjetividades. No fim o corpo é a forma pela qual se
materializa

“As práticas culturais que tem o corpo como seu agenciador privilegiado, o corpo
vivo do sujeito, nos permitem assegurar que toda arte, assim como toda
performance traduzem, um estilo de vida significativo e singularizador da cultura e
das pessoas que vivenciam (...) Como estilo cultural, as performances incorporam e
ilustram valores, e são um modo de apreensão e interpretação do mundo e ainda,
um meio de permanência e de pertencimento dos indivíduos por elas circunscritos.
Nas performances rituais também podemos fruir a elaboração de suas poéticas,
configuradas pelos solfejos da voz, pelas balizas do corpo em movimento e pela
poética dos seus gestos. Aqui a ancestralidade vibra e restitui, performando os
repertórios de nossas africanias, tanto das mais longevas quanto das mais recentes
que com elas improvisam e nelas se fermentam.”
Performaces do tempo espiralar - Leda Maria Martins
O deleite estético, na cosmovisão de África, é indissociável da sua funcionalidade
prática, sendo assim os valores estéticos também são valores éticos ( leda) de remontagem
identitária que permite tornar-se sujeito afrodiásporico por referenciais que se
complementarizam com a sensibilidade preta. Entretanto, essa oferta de conceitos tão
performáticos, são um convite para o exercício cotidiano de fazer um corpo capaz de carregar
todos esses signos que nos recolocam na dinâmica da ancestralidade.Nesse contexto, somos
convocados cotidianamente a montar um corpo, muitas vezes para resistir ao racismo e dar
sentido às nossas experiências. Tendo em vista que existe uma corporeidade que se percebe
como a própria materialização da razão, os “outros” corpos, rechaçados à irracionalidade,
serão cotidianamente convocados a repensar as reverberações dos seus corpos nos espaços, e
como se agenciar no mundo a partir de tais implicações, elaborando estratégias sensíveis para
(re)existir.Na realidade, a própria face do existir de um corpo nos espaços se altera pelos
afetos que aquela corporeidade mobiliza. É pensar a própria experiência subjetiva de
desconforto e deslocamento em meio a branquidade nos espaços e suas teorias que não
abarcam a complexidade da vivência preta. Por mais vezes que podemos contar, sentimos que
estamos aqui só por estar, para provar algo ou conseguir ser validado na sociedade, então
ficamos dissociados, flutuantes, como párias sem sentir aquele vibrar de corpo. Quando
falamos de África, o que eu sinto vai além de qualquer racionalidade cartesiana, tudo se
amplia e o coração dispara. A ancestralidade me move logo, ela também moverá o meu fazer
psicologia.
Destacar aquilo que foi conjurado como maldição de eterna falha humana,
condenada a ser mercadoria, porém, nessa centralidade paradoxal que o corpo assumiu,
também ganhou o encargo de ser território potente de criação na mesma medida que foi de
subjugação. Nessa armadilha que o Ocidente criou, em nos enjaular em nossas epidermes, se
desenvolveu a tecnologia da corporeidade que percorre em liberdade. Justamente por essa
movimentação os processos em torno dos quais entendemos quem somos, de onde viemos e
nossos propósitos, ou seja, nossas subjetividades propriamente ditas, são recarregadas pelo
agenciamento sensível do corpo. Perceber o ganho identitário que se produz por meio da
inscrição de memórias nesta localização que são os nossos corpos, pelo qual somos capazes
de contar nossas histórias e assim firmar nossas existências, re-humanizar. Aqui o que
interessa é uma psicologia capaz de dar enfoque a tecnologia do corpo que vai se compondo,
por apetrechos e movimentações, projetadas em nossas peles imagens da ancestralidade
latente e potente. E o quanto essa ancestralidade, encantada na mesma medida que é
filosófica, constrói um corpo coletivo que remonta os aspectos do acervo interno, os saberes
que são passados. Nesse momento, se instaura a relação com uma subjetividade que pode
contar sobre quem somos. Logo, é pelo sentir no-com o corpo, que estamos remontando e
dando continuidade a uma experiência coletiva através desses saberes incorporados ( corpo e
oralidade página 90).
A partir de tais proposições acerca da corporeidade afro diaspórica e seus
agenciamentos, pode-se partir para a próxima problemática: Como pode a psicologia pelas
bases ocidentais propiciar ganhos identitários e processos curativos para a população preta
brasileira ? A resposta é simples e direta, quaisquer psicologias que emergiram pelo
universalismo, dicotomização e desumanização não são capazes de favorecer a corporeidade
preta. Pois, as ferramentas do senhor nunca derrubaram a casa grande ( Audre lorde, outsider)
elas podem permitir que vençamos em seu próprio jogo por certo tempo, porém, nunca criarão
condições plenas para os processos curativos do povo preto. Nesse embasamento que é,
epistemológico-filosófico-histórico, se convoca a necessidade de uma psicologia que possua a
corporeidade no seu cerne para reintegralizar as rachaduras do trauma que reverbera no íntimo
e romper com desumanização sistemática. Por uma psicologia que utiliza bases próprias da
instrumentalização necessária para que possamos ser curados pelas nossas vozes,pelas nossas
memórias, pelas nossas histórias, pelos nossos conhecimentos transatlânticos. Ser curado pela
ancestralidade que recuperamos cotidianamente, que nos escancara como podemos fazer um
cuidado efetivo através da forma que nos move, nos afeta, e ganha materialidade no corpo nos
fazendo agir e falar. Então, ao se reconectar com esse conhecimento o sujeito africano, mesmo
na diáspora, pode se desenvolver como um todo pois está em contato com uma tecnologia de
saber psicológico e espiritual feita especialmente para sua corporeidade melaninada.

20
CAPÍTULO lll -

A todos os deuses reunidos por Orunmilá, Ifá fez a seguinte pergunta:


“Quem dentre os Orixás pode acompanhar seu devoto numa longa
viagem além dos mares e não voltar mais?”. Exu respondeu que ele
podera acompanhar o seu devoto para além dos mares e não retornar.
então foi-lhe perguntado: ‘’ O que farás depois de caminhar uma
longa distancia e chegar a cidade de Queto, o lar de teus pais, e ali te
derem um galo e grande quantidade de azeite de dendê e
aguardente?” Exu respondeu que, depois de se fartar, voltaria para
sua casa. Ifá então: ‘’ Não, não poderias acompanhar teu devoto
numa longa viagem além dos mares e não retornar”Aos que entravam
pela porta e ali ficavam de pé, Ifá repetiu a pergunta: "Quem dentre
os orixás pode acompanhar seu devoto numa longa viagem além dos
mares e não voltar mais? ". Oiá respondeu que ela poderia. Ifá
questionou o que ela faria depois de caminhar uma lon distância,
caminhar e caminha à cidade de Irá, o lar de seus lhe ofereceriam
uma gorda cabr dariam um pote de cereal. Oiá respondeu: "Depois de
comer até me satisfazer, voltarei para casa" Foi dito a Oiá que ela
não poderia acompanhar seu devoto numa viagem sem volta além dos
mares. E assim a mesma pergunta foi feita a todos os orixás reunidos
por Orunmilá, "Quem dentre os orixás pode acompanhar seu devoto
numa longa viagem além dos mares e não voltar mais". E cada Orixá
que se voluntariou se mostrava incapaz de resistir voltar para casa. O
sacerdote de Ifá ficou pasmo. Porque ele simplesmente não entendia
essa parábola. Disse ele:"Orunmilá, eu confesso minha incapacidade.
Por favor, ilumine-me com tua sabedoria. Qual é a resposta para a
pergunta sobre quem dentre os deuses pode acompanhar seu devoto
numa viagem sem volta além dos mares?". Falou Orunmilá: "A única
resposta é o Ori. "Quando morre um sacerdote de Ifá, dizem que se
apetrechos de adivinhação de deixados numa corrente d’água.
Quando morre um devoto de Xangô, dizem que suas ferramentas
devem ser despachadas. Quando morre um devoto de Oxalá, dizem
que sua parafernália deve ser enterrada mas, quando os seres
humanos morrem, a cabeça nunca é separada do corpo para o
enterro. Lá está o Ori, este vai junto com o seu devoto morto. Somente
o Ori pode acompanhar seu devoto numa viagem sem volta além dos
mares.
Conto adaptado do livro Mitologia dos Orixás

Inaugurar esse terceiro, e último, capítulo com itan de Ori é um canto de exaltação
para tudo o que pode nos acompanhar nessa viagem para além dos mares. De fato, sabe-se
que nunca poderemos retornar, entretanto, agora possuímos a condição de traçar rotas para
(re)existir em travessia.Viver lá e cá. Tornar o “entre” lugar para aterrar a existência pelo seu
poder de conectividade. Pois, Ori como divindade pessoal que nos habita e singulariza
consegue, ao mesmo tempo, nos despertar para a sacralidade de toda a existência, portanto, na
própria individualidade daquele sagrado também habita a dimensão interconectada. Então,
mesmo na viagem forçada, sem retorno, que foi o tráfico transatlântico, tivemos princípios
que nos nutriram em espírito, abrigaram nossas epistemes, adubaram o chão árido da
existência escassa de uma humanidade negada. Pensando nesses fundamentos que
propiciaram a sobrevivência sensível preta, é possível afirmar que se pelo corpo e no corpo se
materializa os princípios que são insumos para subjetividade, o fio conector que preenche
nossa fonte é a ancestralidade. À todo refazimento devemos essa instância, que tem vários
nomes, mas é, em princípio, a força que ressoa dentro dos íntimos e reveste as camadas mais
superficiais da pele, habitando todo o real. Logo, para fins de construção em saúde para a
população preta, deve-se pretender cumprir uma missão de continuidade de um conhecimento
acerca da subjetividade afrodiaspórica, remontando reflexões destinadas a entender e explorar
as possibilidades identitárias e, consequentemente, a iluminação de espírito. Nesse sentido, a
psicologia alinhada ao termo Sakhu Sheti ( nota de roda pe ), diz a respeito do encargo da
psicologia em se propor como ciência do terreno de compreensão das formas de potencializa a
essencia do negro através da valorização ancestral que desocidentaliza e descoloniza a
subjetividade. Portanto, estudar profundamente o essencialismo afro com significados e
aplicações afrocentrados, tudo no seu próprio terreno que é tão pouco explorado, é uma
atitude de reconstituição daquilo que esquecemos, mas não foi destruído dentro de
nós.Entretanto, alterou a percepção ou a crença em nosso senso de africanidade intrínseco, e
esse sentido alterado de consciência é o problema fundamental da afrodiáspora ( Wade
Nobles, página 277) que gera tanto adoecimento.
Finalmente, se abre um período onde o campo da psicologia negra emerge
reafirmando uma base afrocentrada em seu cerne ( Akbar 1984; Grills e Rowe,1996;
Kambon,1992; Myers,1988). As grandes discussões nesse campo tem circulado entorno das
necessidades de medidas de cuidado por bases proprias, devido a limitação da psicologia
oocidental (branca) (Wade Nobles, pagina 277) em dar conta das consequencias psicologias
de ser negro na contemporaneidade, ao passo que ainda se enfrenta os atravessamentos dos
traumas da desumanização. Vale ressaltar ainda que, a psicologia, em mais contextos
históricos que podemos contar, foi instrumento ocidental para o refinamento da exploração do
povo africano, orientando estratégias de controle e inclusive de “justificativas” para a
subjugação negra. Como por exemplo, antes mesmo de podermos denominar como
psicologia, já eram fabricados escritos de como manter os escravizados sob controle pela
separação em tons de pele; pelo fomento de rivalidade; pela separação de quem falava a
mesma língua; pelas práticas eugenistas. Devido esses contextos, necessita-se atestar a
necessidade de uma psicologia calcada na afrocentricidade, que nos permita não somente
compreender o significado da experiência de ser africano, mas também a utilidade e a
realização da fé, da alegria, e da beleza de ser, pertencer e torna-se (Wade Nobles, página 278)
sujeito afrodiásporico. uma perspectiva afrocêntrica que se conecta com a pluriversalidade
entendendo profundamente a propriedade dos ser humano se compor e ser composto pelos
afetos. Sendo assim, afirmar uma perspectiva afrocentrada enquanto corpo que afeta e é
afetado nos contextos em que esses mundos dos sujeitos estão localizados é construir mundos
possíveis para que a multiplicidade de corpos possa viver sua singularidade, cientes de seus
pertencimentos e afetos. Esse movimento só é possível pois a perspectiva africana
compreende e apreende que a realidade está conectada com o mundo que articulamos logo,
não pode ser dissociado ou categorizado. Portanto, essa epistemologia entrelaça os mundos
que diferentes corpos e afetos venham a construir. Nesse viés, os sentidos se tornam potência
já que servem como ferramenta para d conhecer a realidade, interna e externa. nesse sentido
que afirmo que a corporeidade africana não cabe na lógica desafetiva do ocidente pois no
paradigma da afrocentricidade é impossível pensar a realidade sem a conectividade. Nós,
sujeitos africanos, estamos intrinsecamente articulados com nossos afetos porque a
corporeidade africana é a filosofia que compreende que sou parte indissociável do universo,
portanto meu corpo é o próprio universo. Então a afrocentricidade vem como aposta contra
ao paradigma hegemônico ocidental é uma aposta que relocaliza nossos corpos para os campo
dos afetos
A proposta de Sakhu Sheti (nota de rodapé), psicologia negra, exige que respeitemos
a particularidade em diferentes épocas e lugares, buscando o princípio de perspectivas
diversas que convergem pela via ancestral. Logo, apesar de não partimos dos mesmos pontos
porém buscamos a libertação mental, física e espiritual, que só será oferecida por meio de
uma interpretação profunda da linguagem e da lógica da nossa própria ancestralidade, assim
seremos nós capazes de verificar os significados e compreensões de viver em maafa (nota de
roda pé). O conceito de Maafa ( Marimba Ani, 1994), que pode ser definido como foi o
descarrilamento da trajetória dos africanos. Ou seja, a sequência de graves eventos na história
do povo preto, com destaque para o tráfico transatlântico, que interromperam o
desenvolvimento da história e cultura africana fazendo com que se perpetuasse atrocidades
que ferem os direitos, o espírito e a saúde do povo preto na contemporaneidade. Seguir o
deslocamento, mesmo que fora dos seus trilhos, em direções desastrosas. Percebe-se que, é
exatamente dessa forma que o desenvolvimento da afrodiáspora, em meio ao desastre, a vida
segue, as experiências continuam, o que torna mais difícil perceber que se está fora do seu
eixo. A experiência de Maafa é a condição vivida pelas diásporas negras, assim, pode-se viver
tentando retomar a trajetória ou sem nem saber que está fora dela, mas sempre será
experimentado os efeitos da descontinuidade histórico-social que desemboca em nossas
constituições subjetivas. Enquanto nos movermos a partir de referenciais não que não o
nossos, permanecemos em estado de (des)continuidade com uma identidade que não nos
serve. De fato, toda a toxidade do descarrilamento dos povos africanos causou uma
desterritorialização que também é subjetiva, que se dá como uma total desterritorialização
psicológica e em nossas bases de cuidado.
A experiência de ser uma pessoa preta escancara a triste verdade que somos
constantemente recolocados nas dinâmicas traumáticas. Muitas cenas do cotidiano remontam
nossas vivências negativas e por mais que exista o esforço de se descolar ao máximo, essa
ferida já modulou os nossos íntimos. Não existe dor que a subjetividade não devore. Tá tudo
ali engolido mesmo que mal digerido, só conseguimos ver os sinais quando eles vêm como
refluxo. O mundo ocidental subjulgando a corporeidade preta provocando a tragedia de perder
a força interior, pois, existe uma embate no campo sensivel que deseja um espirito branco em
um corpo negro. E enquanto permanecer enclausurado nesta objetividade esmagadora ( nota
de roda pe ), a validação do olhar do branco será a única fonte constitutiva, mesmo que
negativa. Segundo Fanon, em Pele Negra Mascaras brancas, aos olhos do branco, o negro não
tem resistência ontológica, então foi necessario, de um dia para o outro, os pretos tiveram de
se situar diante de dois sistemas de referência, onde a sua metafísica, seus costumes e
instâncias de referência foram abolidos porque estavam em contradição com uma civilização
que não conheciam e que lhes foi imposta ( página 104 ). O efeito de tantas descontinuidades,
que ganha reverberações traumáticas, é que no mundo branco, as pessoas pretas encontram
com o próprio corpo em lugar de despontencialidade, pois, em cada uma das ativações da
matéria sensível ocorre por meio da negação. Portanto, em torno do corpo impera uma densa
atmosfera de incertezas que dificultam a elaboração de um esquema corporal que possa
estabelecer uma dialética efetiva entre o eu e o mundo ( Fanon pg104). Nesse sentido, a
psicologia emerge ainda mais necessária por ser ferramenta primordial dessa lenta construção
de um corpo de afirmação, em meio a luta anticolonial que também é a batalha de libertação
no campo psíquico, desarticulando as noções de desumanidade naturalizadas e infiltradas na
consciência do proprio sujeito negro. O desprezo branco-colonial europeu é expulso de dentro
de si, liquidando todas as mentiras cravadas em seu corpo pela opressão (Fanon, 1979: 266).
Esse é o momento em que o negro e/ou africano construídos hetero-hieraquicamente com base
em relações de saber-poder diferença encontra a possibilidade de desconstruir as condições
impostas ( PAGINA v.10, n.3 Cauê Gomes Flor Érica A. Kawakami Valter R. Silvério 1313).

“A descoberta de sua própria humanidade introduz um abalo essencial no mundo e


também a revolucionária segurança que o colonizado terá para o combate.Descendo
aos verdadeiros infernos, à zona do não ser, o homem negro vai poder
olhar24verdadeiramente para como se constitui todo esse conjunto de aberrações e
violações de si, a usurpação de sua consciência, o adoecimento de sua gente – daí o
privilégio tal como da segunda visão duboisiana25, mas é com a coragem de quem
encara essa descida, que ele poderá emergir livre da clausura na qual fora encerrado
- o extraordinário, então, acontece26 – emergir humano: “Há uma zona do não ser,
uma região extremamente estéril e árida, uma rampa totalmente despojada de onde
um autêntico nascimento pode advir. Na maioria dos casos o Negro não tem o
privilégio de realizar esta descida aos verdadeiros Infernos” (Fanon, 1983: 10). E
para quê? Para a refundição total do seu mundo, com a exclusão irreversível do
estatuto colonial, de suas “terras” e do seu pensamento, para reconstituir o mundo e
a sua integridade psíquica. (...)A exigência fanoniana, como projeto histórico
político e psíquico revolucionário, portanto, será a de estarem – os negros – no
mundo plenos de humanidade, restabelecer a “consubstancialidade do nós e do eu”
(Fanon, 1979: 279), “por homens novos, uma nova linguagem, uma nova
humanidade…”

PAGINA v.10, n.3 Cauê Gomes Flor Érica A. Kawakami Valter R. Silvério 1314).

Por essas ativações, a psicologia alinhada com as bases afrocêntricas pretende


oferecer alternativas de redescoberta da própria humanidade, mesmo em face da negação
racial. Partindo do princípio que a África que vive na diáspora, com toda a sua bagagem
sistematicamente suprimida, tem tornado pronunciável a raça, enquanto condição social e
culturais da nossa existência (Hall, 2003b[1999]: 41). Nos movimentamos em espiral,
orbitando em torno das nossas feridas, cada vez mais perto do centro de existência, não que o
trauma possua centralidade em nossas vidas, mas eles sempre serão ponto de retorno e
recomeço. Porém, a cada vez que voltamos estamos mais prontos para efetivamente resolver e
entender aquela presença. Essa circularidade pode ser compreendida nos movimentos diários,
e nos coloca a questão de como sempre buscar nos conectar princípios que forneçam essas
estratégias e agenciamentos. A cura como movimento espiralar em volta das feridas.
A essa altura da discussão, já se estrutura condições suficientes para uma convocação
prática de conexão aos princípios da africanidade. Pensar nas intervenções psicoterápicas, as
maneiras que subsidiar nossas matérias psico-socio-historicas para se potencializar e não
dispersar do caminho curativo. Tornar possível se retirar da lógica euroamericana e entrar
numa dinâmica de mapeamento dos próprios afetos, rastrear pelos corpos sensíveis às
substâncias que fazem a ancestralidade, em toda força restaurativa, reverberar. Pensando
nessa proposição, as apostas em psicologia se dão na medida de alinhamento estratégico com
os princípios de africanidade que borbulham em nossas vivências, antes mesmo de receberem
qualquer nomeação verbal. São diversos os exemplos onde o sujeito afrodiaspórico consegue
ativar seus potenciais de existência sem sequer se dar conta que está perpetuando vieses
ancestrais; com a corporeidade que dança em roda;com a memória em cada itan; com os
banhos de axé. Nessa proposição, a psicologia ganha a oportunidade de reterriorializar nossas
identidades, pelo refinamento do cuidado que já temos em abundante presença, porém escasso
acesso. Finalmente, a psicologia constrói caminhos para desenvolver uma saúde mental
alinhada com o propósito da ancestralidade: nossa vivência plena.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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