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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE PSICOLOGIA
CURSO DE GRADUAÇAO EM
PSICOLOGIA

LANA PRADO SANTANA

AUTENTICIDADE É POSSÍVEL? :
CONSIDERAÇÕES SOBRE A
NECESSIDADE DE AFIRMAR-SE COMO
“SI MESMO” NA
CONTEMPORANEIDADE

NITERÓI,
2017
LANA PRADO SANTANA

AUTENTICIDADE É POSSÍVEL? :
CONSIDERAÇÕES SOBRE A
NECESSIDADE DE AFIRMAR-SE COMO
“SI MESMO” NA
CONTEMPORANEIDADE

Trabalho de Conclusão apresentado ao


Curso de Graduação em Psicologia do
Instituto de P si c ol o gi a da
Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial para obtenção
da titulação de Bacharel com
habilitação em Formação de Psicólogo.

Orientadora: Profa. Dra. ADRIANA


ROSA CRUZ SANTOS

NITERÓI,
2017
TERMO DE
APROVAÇÃO

LANA PRADO
SANTANA

AUTENTICIDADE É POSSÍVEL? :
CONSIDERAÇÕES SOBRE A
NECESSIDADE DE AFIRMAR-SE COMO
“SI MESMO” NA
CONTEMPORANEIDADE

Trabalho de Conclusão aprovado pela Banca Examinadora do Curso de G r a d u a ç ã o e m


P s i c o l o g i a d a Universidade Federal Fluminense – UFF

Niterói, 30 de Junho de 2017.

BANCA
EXAMINADORA

Profa. Dra. Adriana Rosa Cruz Santos


– Doutora em Psicologia Social (UERJ) – Orientadora

Prof. Dr. Roberto Novaes de Sá


– Doutor em Engenharia de Produção –
(COPPE/UFRJ)

Prof. Dr. Marcelo Santana Ferreira


– Doutor em Psicologia – (PUC/RJ)
DEDICATÓRIA

Para todos aqueles que ainda estão ou já estiveram atormentados com a busca por um ser mais
autêntico; que já se questionaram sobre o significado da autenticidade e se ela, na contemporaneidade,
é, de fato, uma possibilidade ou apenas mais uma ilusão vendida pelo sistema no qual estamos
imersos.
AGRADECIMENTOS

Aos meus ancestrais e antepassados que, representados pelos meus avós e pelos meus pais,
fazem parte de quem eu sou hoje e, portanto, mesmo que muitos eu não tenha sequer conhecido, sou
grata por também ser uma representante deles e com eles ter chegado até aqui. Em especial, devo
gratidão ao meu pai, Rubem Gomes Santana, e à minha mãe, Amélia da Conceição Prado Simões
Santana, que, com muita luta, muito empenho, dedicaram sua vida a cuidar de mim e dos meus irmãos.
Mesmo após a morte, meu pai, através de tudo o que ele deixou, continua a prover e a auxiliar na
minha formação, para que eu tenha um caminhar firme até alcançar a estabilidade material. Minha
mãe, neste contexto, exerce papel fundamental porque é ela quem, mesmo sem obrigação, decidiu
continuar a dar o suporte necessário para me ver progredir. Não se trata apenas de um suporte
financeiro, mas, sobretudo, de ensinamentos, orientações, palavras de apoio e de encorajamento, lições
que a morte não apaga. Celebro a vida de minha mãe, pois ela tem sido cada vez mais meu porto
seguro e, ao mesmo tempo, a grande incentivadora para que eu exerça a liberdade do meu ser e alce
voos cada vez mais distantes. É como ela sempre disse: “Criei meus filhos para o mundo, e não para
mim.”. Meus pais são e sempre serão minha maior referência. Com eles aprendi resiliência e a eles sou
eternamente grata.
Também devo um agradecimento especial à minha querida professora orientadora, Adriana
Rosa Cruz Santos, que no percurso elaborativo deste trabalho apresentou-se incansável e ouviu
pacientemente cada uma das minhas dúvidas, angústias e confusões. Sua forma serena de orientar me
trouxe tranquilidade nas horas de ansiedade. Também trouxe luz às minhas ideias com sua participação
ativa neste trabalho. Por isso digo que, mais do que me orientar, formou comigo uma parceria através
da qual foi possível conclui-lo com serenidade. Por ser uma profissional dedicada e demonstrar paixão
pelo que faz, além de transbordar simpatia e gentileza no trato com o outro, eu te admiro e pode ter
certeza que seu exemplo jamais será esquecido por mim! Você me inspirou! Receba a minha gratidão!
“Meu papel – mas este é um termo muito pomposo – é
mostrar às pessoas que elas são muito mais livres do que
pensam, que elas tomam por verdadeiros, por evidentes
certos temas fabricados em um momento particular da
história, e que essa pretensa evidência pode ser criticada
e destruída. O papel do intelectual é mudar alguma coisa
no pensamento das pessoas.”

M. Foucault
RESUMO

Neste trabalho buscou-se, inicialmente, investigar as condições históricas da constituição do “Eu”, como
indivíduo dotado de uma interioridade psíquica, e a contribuição da Psicologia para essa compreensão.
Posteriormente pesquisamos as relações de mutual determinação entre a subjetividade e o contexto
sociohistórico, destacando como a questão da autenticidade emerge no capitalismo contemporâneo.
Nesse sentido, a investigação é quanto ao papel da sociedade, do sistema no qual vivemos, para a
constituição da subjetividade, tida como “nossa”. Já no último capítulo, buscou-se trazer a autenticidade
sob a perspectiva fenomenológica-existencial, que lança um outro olhar sobre esse tema, partindo de
uma compreensão ontológica do ser do homem. Não se trata, porém, de uma investigação profunda
acerca da complexidade de cada conceito abordado, mas de sua utilização de modo a subsidiar a
compreensão ontológica e das derivas históricas do tema da autenticidade. As considerações finais não
pretendem encerrar a discussão, pois este tema não se esgota nesta investigação, admitindo outros
olhares. A perspectiva fenomenológica foi apenas uma das diversas admissíveis para pensar a questão
do “ser si mesmo” e do ser autêntico.

Palavras-chave: autenticidade; si mesmo; subjetividade; fenomenologia-existencial;


ÍNDICE

1. INTRODUÇÃO................................................................................................... p. 9

2. O NASCIMENTO DO SUJEITO
PSICOLÓGICO....................................................................................................... p. 12

3. A PRODUÇÃO SOCIAL DA
SUBJETIVIDADE................................................................................................... p. 24

4. UMA PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA-EXISTENCIAL DA


AUTENTICIDADE.................................................................................................. p. 33

5. CONSIDERAÇÕES
FINAIS....................................................................................................................... p. 41

REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................................. p. 43

REFERÊNCIA
FILMOGRÁFICA.................................................................................................... p. 44
1. INTRODUÇÃO

Há quem diga que entre a pré-adolescência e a adolescência começamos a criar nossa


identidade. Apartados de nossos pais, buscamos defender um “Eu” mais próprio, autêntico,
diferenciado. Como se houvesse um mundo interno (nosso interior), externo (o sistema no
qual vivemos) e a nossa família (para muitos, uma situação problemática à parte). Muitos
adolescentes possuem problemas com os pais, a ponto dessa dita “fase” ser chamada de
“aborrecência”. Aliás, estas “fases” pré-estabelecidas, que acompanham determinadas faixas
etárias, como se após ‘tal período’ não fosse mais possível ser de ‘tal modo’ porque é apenas
até ‘tal idade’, merecem ser questionadas.
No meu caso, aos 12 anos de idade desenvolvi um discurso avesso a qualquer tipo de
rótulo. Sempre me perguntavam “O que você é? Roqueira?”. Alguns, mais “entendidos” das
vertentes do rock, arriscavam a fazer afirmações: “Você é grunge!”; outros, mais
“cautelosos”, perguntavam: “Você é grunge ou punk?”. Por mais que eu curtisse músicas da
década de sessenta até o início da década de 90, passando pelo rock progressivo, punk,
crossover thrash, heavy metal e suas ramificações (thrash, death, melódico, progressivo,
doom, black, etc), e o grunge estivesse entre os meus favoritos, nunca me rotulei – ou me
admiti – grunge. Para mim, não se tratava de imitar a vestimenta encontrada em capas de
revistas – não tinha ‘grana’ e nem interesse por revistas teen –, ou em clipes que, após o
advento da internet em minha casa, aos meus 14 anos, tive acesso. Era um estilo com o qual
eu me identificava, aliás, dizia: “Essa sou eu! Eu sou assim. Sem um rótulo, apenas “Lana” e
de rótulo já basta o meu nome!” – afirmava com fervor. O que me levou a ser reconhecida
como grunge e, em alguns momentos, punk? Talvez fossem as roupas junto com a atitude.
Apesar de nunca ter sido hostil e, aliás, ser o oposto do que alguns diziam que era “ser
roqueiro” – sempre vestido de preto e com “cara de mau” –, isto é, era amigável e
extrovertida, alguns, apesar dos sorrisos, percebiam em mim uma certa tristeza. A cor preta
estava entre as minhas favoritas, minhas roupas ficavam “surradas” porque de tempos em
tempos é que meus pais compravam roupas para mim e meus dois irmãos. Aliás, meu pai
sempre prezava por roupas de qualidade, não necessariamente “de marca”, mas vestimentas
com boa durabilidade, justamente para evitar gastos excessivos. Então, a cultura na minha
família não dava passagem aos modismos, sempre evitávamos desperdício e utilizávamos ao
máximo tudo o que comprávamos – totalmente sustentáveis. Como filha de bancário e criada
com a referida forma de encarar o consumo, cresci compreendendo o valor do dinheiro e
questionando o sistema no qual vivemos. Aprendi a indagar a necessidade das pessoas em ter

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uma determinada roupa ou algum outro bem “da moda”. Meus pais sempre problematizavam
a necessidade de ter “isso ou aquilo” para além do que já tínhamos, que era o necessário -
“por que extravagâncias?”. E nos ajudavam a perceber o quanto grande parte das necessidades
que as pessoas apresentam, são devidas ao sistema no qual estamos, produzidas por ele e para
ele.
Com relação ao gosto musical, parte “herdei” de meu pai que, nascido em 1950,
sempre tinha algum som da década de 60, 70 ou 80 para me apresentar. Por essa influência,
desde que “me entendo por gente” – 6 anos de idade – gosto de rock e suas vertentes. Com 11
para 12 anos “descobri” o grunge e, por contemplar meu estado de espírito melancólico, me
apaixonei. Entre meus 14 e 15 anos, conheci o punk e mais uma vez senti meus sentimentos
traduzidos. Em função de muitos desentendimentos em casa e outras decepções na vida, meu
sentimento de tristeza se intensificou a ponto de, entre meus 16 e 17 anos, ouvir músicas mais
pesadas e agressivas, como o black metal e o punk finlandês – que eram só “barulheira”.
Nunca abandonei o grunge ou o punk, apenas comecei a sentir a necessidade de, ao menos no
período citado, ouvir algo que contemplasse o sentimento do momento. A música falava –
aliás, gritava – por mim, expunha o que tinha de mais visceral no meu ser. Não sei bem se era
angústia, desespero ou ambos junto com profunda tristeza. Só sei que era pela música e pelo
meu visual que eu expressava o meu ser e, agora penso, minhas questões. Julgava-me,
portanto, autêntica, apenas me expressando, sendo “eu mesma”. Mas o que é autenticidade? O
que é “ser si mesmo”? Sempre indaguei, mas nunca cheguei numa resposta. Absolutamente
detestava ser encaixada em algum rótulo para que os outros pudessem me compreender, ao
menos era assim que eu tentava entender a necessidade que tinham em saber o que eu era –
“por que me enquadrar? Não sou como as outras pessoas. Tenho minha singularidade.
Ninguém é igual.”
As roupas também tinham outro papel. Além de expressar “quem eu era” – em
essência ou interioridade, com uma personalidade e identidade demarcadas –, e de serem as
roupas que eu tinha – e escolhia, quando podia comprar –, talvez a identificação tenha sido
“facilitada” por esconderem meu corpo – coberto de cicatrizes e neuroses –, por ser um visual
que não requeria muitos cuidados e, enfim, por me deixar em uma certa “zona de conforto” –
sem muitas exigências, expressando minha rebeldia e essa busca por “ser eu mesma”. Um
espaço de livre criação. Mas até que ponto realmente criamos? O que mais há para ser
inventado? Cada qual “absorve” o que o sistema oferece e transforma ao seu modo. Mas até
que ponto esse modo realmente é nosso e não mais um modo que nos é oferecido e
“compramos” como nosso? Acreditamos que somos dotados de uma personalidade, de algo

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peculiar, nunca antes visto ou compartilhado com poucos – e daí vem as amizades. Parte
dessa crença é reforçada pelo sistema capitalista, com os tais “estilos” de vida e “de cada um”,
com o incentivo a “ser você mesmo”. Por um lado, fomos criados para acreditar que somos
especiais, diferentes, “temos algo a mais” ou “algo nosso”, que nos é particular. As famílias,
em geral, alimentam esse sentimento nas crianças e nos jovens. Mas até que ponto não são
discursos que reforçam o dispositivo capitalista no qual nos encontramos? Ao mesmo tempo,
qual o nosso espaço de singularização? É possível? De que formas podemos entender o “ser
autêntico”? Estas e outras questões me acompanharam na minha jornada, e na universidade,
com mais embasamento, acho que conseguirei – tentarei – pelo menos compreender um
pouco, talvez até formular algumas respostas possíveis para essas minhas inquietações.
Responder, como que encerrando o assunto, não é meu objetivo. Acredito, aliás, que em nada
seja possível apenas uma resposta ou uma interpretação e que, assim como a vida apresenta
múltiplos caminhos, as pessoas não são apenas “isso” ou “aquilo”, mas, sim, pode haver
várias interseções, ligando o que em nós há de paradoxal.
A partir dessas inquietações que me levaram a abordar esse tema, chego ao presente
trabalho, de conclusão de graduação. No capítulo 1, buscou-se investigar as condições
históricas da constituição do “Eu”, como indivíduo dotado de interioridade, e, neste contexto,
investigar a contribuição da Psicologia nessa construção, qual seja, que o sujeito possui uma
dimensão interior, psicológica e que há um “si mesmo” ou self. No capítulo 2, a investigação
é quanto ao papel da sociedade, do contexto sociohistórico, do sistema no qual vivemos, para
a constituição da subjetividade, tida como “nossa” e de que modo as diferentes configurações
do capitalismo modulam diferentes sentidos para a autenticidade. Já no último capítulo,
buscou-se trazer a autenticidade sob a perspectiva fenomenológica-existencial, que lança um
outro olhar sobre esse tema, partindo de uma compreensão ontológica do ser do homem. Não
se trata, porém, de uma investigação profunda acerca da complexidade de cada conceito
abordado, mas de sua utilização de modo a lançar um outro entendimento acerca do tema
proposto. As considerações finais não são para encerrar a discussão, pois este tema não se
esgota nesta investigação, admitindo outros olhares, outras perspectivas; a fenomenológica foi
apenas uma das diversas admissíveis para pensar a questão do “si mesmo” e do ser autêntico.

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2. O NASCIMENTO DO SUJEITO PSICOLÓGICO

Para pensar a necessidade do homem contemporâneo em afirmar-se como um "si


mesmo" distinto dos demais, faz-se necessário primeiramente investigar como se deu a
constituição do homem como um "Eu", dotado de uma interioridade, que se manifesta numa
identidade fixa e essencial. O nascimento do sujeito psicológico é o que propicia a
emergência do "Eu" como locus da identidade. Nesse percurso investigativo, "A invenção do
psicológico", obra de Luís Cláudio Figueiredo (2012) possui contribuições interessantes.
O autor assinala que no início do século XVI constituiu-se o medo do contato com o
outro, que trazia perspectivas, até então, desconhecidas. Em função deste período ser marcado
pelo teocentrismo, inexistia o que não tivesse sentido, o que não pudesse ser explicado. O
contato com a alteridade trazia esta dimensão do sem-sentido. Afinal, como explicar o que
não se encaixava nos modos convencionais de existência? Emergiam questionamentos,
inclusive acerca das práticas até então desenvolvidas. Com isso, havia o medo da dissolução
da identidade, o outro era visto como foco de poluição e contágio, e era, portanto,
demonizado para que ninguém estabelecesse relação com ele. O medo da diferença era devido
à falta de uma explicação pré-estabelecida para o desconhecido que representava um desafio
para o entendimento da Igreja - suposta detentora do saber e responsável por interpretar todos
os acontecimentos da época. Portanto, a resposta mais rápida e simples para prevenir o
contato com este outro, que poderia deflagrar o desmanchamento dos contornos de si, era
taxá-lo como herege e contagioso. Qualquer um que ousasse ter contato com ele, estaria
condenado ao mesmo fim, fisicamente (à fogueira, por exemplo) e espiritualmente (danação
eterna).
Deste modo, a Igreja – instituição mais poderosa deste período – advertia a respeito
dos ‘hereges’ – considerados sempre transgressores de limites, habitantes de fronteiras e com
grande potencial contaminador. Do mesmo modo houve a perseguição às ‘bruxas’, que,
ressalta o autor, eram provenientes de regiões periféricas – em termos étnicos, religiosos e
sociais, regiões pobres e miseráveis, nas quais os habitantes eram considerados no limite entre
a humanidade e a animalidade. O medo das margens era o medo do desconhecido, que trazia a
possibilidade do contato com um mundo novo, do qual não se sabia o que esperar e como
lidar. Havia o medo de serem invadidos pelas misérias e agressões do mundo, vistas como
causadoras de desintegração. Por isso era preferível manter-se indisponível para tudo o que
era do mundo, isto é, para qualquer espécie de outro. Até hoje, aliás, é possível encontrar essa
percepção em algumas religiões de orientação cristã, que fazem uma separação entre o que é

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da Igreja e "do mundo", como se vivessem em um universo à parte, que não admite o
contágio com quem não segue os mesmos preceitos. O simples contato com o diferente
constitui-se como ameaça à sua identidade.
De volta ao século XVI, a desconfiança pairava também sobre os ‘cristãos-novos’
(judeus e mouros convertidos ao cristianismo), pois pensava-se que na intimidade do lar eles
ainda eram praticantes da sua religião de origem. O referido autor ressalta que, do mesmo
modo que se receava que o cristão-novo não tivesse entrado verdadeiramente nos preceitos
cristãos, receava-se que o velho cristão pudesse sair do campo do autêntico cristianismo. A
desconfiança era, assim, generalizada. Ainda mais que na segunda metade do século XVI,
com o crescimento das atividades comerciais – expansão do comércio ultramarino – e os
projetos de expansão do cristianismo, juntamente com a política colonialista que marcou este
período – inicialmente de Portugal e, logo após, da Espanha –, houve a necessidade de
aprender outros idiomas para, assim, entrar em contato com os diversos e exóticos outros. O
contato europeu com a Ásia, África e América “[…] não apenas alterou hábitos de toda a
espécie na Europa (por exemplo, a difusão do tabagismo) como colocou frente a frente vozes
e falas absolutamente distintas [...]” (FIGUEIREDO, 2012, p. 29).
Neste contexto, a música deu expressão à multiplicação das vozes e sentido à confusão
das línguas. No estilo flamengo da composição polifônica, diversas vozes podem ser ouvidas,
mas nenhuma se destaca. O tema que predomina na polifonia renascentista é o da variação e
da dissonância, para o deleite dos sentidos. A harmonia musical está na ausência de hierarquia
das vozes e na ausência da separação entre figura e fundo. Como diz Zarlino (1517-1590)
citado por Figueiredo (2012, pp. 30-31): “[...] a harmonia só pode surgir das coisas que são
entre si diversas, discordantes e contrárias e não de coisas que estão em completo acordo
[...]”. Esta homogeneidade com essência heterogênea, diversificada, constitui a beleza das
composições da escola borgonhesa. Antes, com o canto gregoriano, a música possuía uma
identidade bem definida e possuía função religiosa, enquanto que no estilo polifônico da
referida escola, cada composição diferia entre si e, com a autonomia das diversas vozes, não
havia uma relação linear com o todo do qual faziam parte. Em função de a música ter perdido
seu sentido espiritual, o “[...] compromisso com a verdade que teria caracterizado a música
grega [...]” (Ibid., p.55), tornando-se objeto de divertimento e prazer sensorial, foi considerada
profana (não religiosa). Com o espírito das reformas religiosas, a polifonia renascentista,
considerada caótica por alguns críticos em função das vozes simultâneas, precisou passar por
uma reforma estética, uma codificação que a ordenasse segundo determinadas regras de
composição. Mesmo assim, manteve a sua identidade baseada na multiplicidade.

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No final do século XVI, o contato com existências individuais e coletivas tão diversas
e complexas provocou a necessidade de se realizarem reformas, pois esta diversificação
trouxe a dispersão das identidades e o questionamento sobre as que se propunham
homogêneas, em especial as de âmbito religioso. O cristianismo, então, experimentou uma
crise e a reafirmação da identidade cultural coube à Igreja por meio de inquisições,
perseguições e conversões. Por um lado, havia reformas que procuravam reconstituir as
normas capazes de dar suporte à identidades bem definidas e conferir sentido unívoco às
coisas e às práticas. Neste contexto, a memória tinha a função de preservar a experiência
através da atribuição a seus objetos de uma espécie de estabilidade e permanência de sentido,
como se fosse um “instrumento antimistura” infalível, que garantisse uma interpretação sólida
de mundo. A partir da memória coletiva, transmitida por meio de rituais e lendas, formava-se
um universo estável de identidades duráveis, onde se assentavam as experiências de cada
grupo e cada indivíduo. Quando não era possível inserir as experiências individuais como
componente da memória coletiva, em função da discrepância entre elas e o acervo coletivo,
cresciam os espaços de improvisação e inovação. Desse modo, surgiu a necessidade de
desenvolver dispositivos mnemônicos que tornassem disponíveis para a comunidade os
materiais das experiências e estudos particulares. Através dos registros com base nos
conteúdos presentes na memória, buscava-se manter a coesão das informações e também a
coesão identitária, uma vez que acreditava-se manter o sentido da experiência por meio da
memorização e, assim, ficar no controle das situações, permanecendo num universo em que
tudo faz sentido e tem uma explicação. Em outras palavras, ao conseguir manter a coesão das
experiências na memória, acreditava-se ser capaz de “fixar em seu lugar” cada acontecimento
e, pela imaginação, delinear um conjunto de modos de relação, visando compreendê-los e não
mesclá-los com a própria identidade. Como se a memória garantisse um distanciamento
seguro do outro, proporcionasse o entendimento sobre este e, assim, a permanência de sentido
do universo no qual se vivia. As autobiografias quinhentistas, por exemplo, visavam ser um
registro que garantisse a continuidade das tradições familiares. Neste “falar de si”,
imaginariamente acreditava-se reconquistar a unidade da vida, a integridade do corpo e o
sentido dos acontecimentos. Porém, a memória não era suficiente para dar ou descobrir
sentido nos acontecimentos que, para o homem, eram despidos de significado. A ideia de
predestinação, neste contexto de reformas, visava garantir o sentido daquilo que o homem não
compreendia, uma vez que, em função da vida do homem estar sob os desígnios de um Deus,
todo acontecimento tinha um propósito maior e estava rumo a um destino previamente
traçado. Este “direcionamento Divino” para a vida de cada um era o suporte dado pela

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religião para que, apesar das experiências de dissociação, o homem mantivesse a crença em
ser possuidor de uma identidade estável e de, independentemente das suas escolhas, estar
caminhando para um destino inevitável. Haveria, assim, a garantia de um significado
consistente e permanente para a vida.
Em contrapartida, Figueiredo sinaliza que é possível encontrar diversos testemunhos a
respeito da dificuldade do homem quinhentista em decifrar a própria existência e descobrir
nela uma unidade e um sentido. Neste contexto, houve, no final do século XVI, reformadores,
como Montaigne (1533-1592), que, diante da diversidade e da ambiguidade da experiência
individual, defenderam a inexistência de uma natureza humana autêntica, isto é, sempre igual
a si mesma. Este filósofo, em particular, acreditava que os homens diferiam entre si e de si
para si. Quer dizer, compreendia que cada homem possui um modo de ser e cada qual possui
ações contraditórias, a ponto de não parecerem provir de um mesmo indivíduo. Por isso,
escreve Montaigne: “[...] Somos todos constituídos de peças e pedaços ajuntados de maneira
casual e diversa, e cada peça funciona independentemente das demais. Daí ser tão grande a
diferença entre nós e nós mesmos quanto entre nós e outrem.” (apud FIGUEIREDO, 2012, p.
42). Esta casualidade na nossa formação contradiz a crença num “objetivo Divino” que
guiaria o Homem. O corpo humano também estaria sujeito a dissociações, pois cada parte
funcionaria independentemente da outra e, algumas, independentemente da vontade do
homem. A alma é entendida, por Montaigne, como equivalente à imaginação e, por não ter
havido ainda na cultura ocidental a separação radical entre mente e corpo, a força da
imaginação imitaria as doenças físicas e, até mesmo, poderia produzi-las, como o autor nos
informa no seguinte trecho:

Pego a doença que estudo e a semeio em mim. Não acho estranho que a
imaginação dê febre e mesmo provoque a morte nos que não a controlam.
(MONTAIGNE apud FIGUEIREDO, 2012, p. 43)

Para tentar dar sentido a esta desagregação experimentada pelo homem renascentista,
Martinho Lutero defendeu a existência de uma dupla natureza humana: uma espiritual,
chamada de alma, que designaria o “homem interior” ou íntimo; e uma corporal, “homem
exterior”. Este seria controlado pela sociedade, enquanto que o homem interior submeteria-se
plenamente à vontade divina. Desse modo, o homem interior seria completamente
independente do mundo – suas normas, autoridades e rituais –, para ser unicamente servo do
Senhor e, assim, renunciar à crença na sua liberdade e vontade própria. Lutero defendia a
liberdade religiosa, mas, ao mesmo tempo, negava o livre-arbítrio, pois, para ele, a liberdade
humana só existia na e pela fé. Esta consistiria numa entrega absoluta ao arbítrio divino. Cada

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qual, então, viveria individualmente a sua relação com Deus e, não sendo tal vivência passível
de apreensão ou regulação por parte da sociedade ou da Igreja, nisso residiria a sua liberdade
religiosa.
Alguns reformadores buscavam a liberdade para o espírito crítico e racional, a
tolerância às diferenças, o livre-arbítrio no sentido de liberdade de escolha, a inexistência de
sentido a priori para a existência e até questionaram normas e leis, visando libertar indivíduos
e coletividades. Outros, entretanto, defenderam o livre-arbítrio dentro de uma predestinação, a
perseguição às diferenças, a liberdade com limites determinados por uma providência divina.
Estas perspectivas, dentre outras, ressaltam como o século XVI, a partir da intensificação do
contato com a alteridade, experimentou questionamentos que implicaram numa tensão
constante entre a busca por unidade e sentido e a dissolução de identidades. Tal processo
culminou na transformação de civilizações, até então, fechadas; na abertura de espaços de
liberdade individual e, ao mesmo tempo, na tentativa constante de circunscrever esses
espaços, visando a ordenação e a sustentação de sentidos há muito estabelecidos. Assim, essas
experiências que marcam a busca pela compreensão e delimitação de quem o homem é, em
essência e natureza, transformaram-se, na modernidade, em objetos de saber e de intervenção
psicológicos. A partir dessa noção de “homem interior” e “homem exterior”, começa a se
esboçar a compreensão moderna de que há um “mundo interno” e um “mundo externo”. O
indivíduo, portanto, surge da dispersão dessas subjetividades distintas, e a crença moderna
numa interioridade a priori acompanha a noção de natureza bipartida.
O século XVI foi identificado pelo autor como um século marcado por conversões1 e
que se debatia com a ambiguidade do policentrismo, ocasionado pelo contato com a
alteridade. Para ilustrar esse período escolheu Santa Teresa d’Ávila, cuja própria vida e de sua
família são marcadas por histórias de conversões, destruições e reconstruções de identidades e
pelo uso identificatório das memórias, ou seja, a memória como artifício na busca por
estabilização e consolidação de identidades.
Na segunda metade do século XV, o avô de Teresa - Dom Juan Sánchez -, um judeu
convertido ao cristianismo, em função das perseguições religiosas em Toledo, casou-se com
Dona Inez, da nobre família Cepeda. No final desse século, após deflagrada uma caça aos
judeus convertidos, Dom Juan Sánchez adotou o sobrenome da esposa para livrar-se das

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FIGUEIREDO refere-se a conversões não somente religiosas, mas como “[...] fenômenos de ruptura: viagens,
encontros significativos, desastres (naufrágios, falências etc.), alterações sucessivas de moradia, de sorte (azares
e venturas), experiências de exercício e de perda de poder, perseguições, exílios, ameaças de peste, mortandades
maciças, guerras, massacres etc.” (2012, p.40). Trata-se, então, de um conceito que designa a variedade de
mudanças que fragmentam as vivências individuais, segmentarizando-as.

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humilhações públicas as quais ele e seus filhos foram submetidos. Passou a se chamar, então,
Juan Sánchez de Cepeda e seus filhos tenderam a excluir o sobrenome paterno. Após
reconstruir sua vida e fortuna, mudou-se para a cidade de Ávila, na qual, o agora chamado,
Juan de Cepeda comprou um certificado de nobreza. Os filhos de Dom Juan, dentre eles
Alonso, que viria a ser o pai de Teresa, assumiram com total determinação a nova identidade.
No entanto, em 1519, quando Teresa já era nascida e estava com 4 anos de idade, os Cepeda
foram denunciados como falsos nobres. No tribunal, obtiveram veredicto favorável e suas
falsas origens foram reconhecidas como verdadeiras. Até aqui, uma série de conversões
podem ser verificadas nesta família, como sinaliza o autor: “a conversão original ao
catolicismo, a confirmação da conversão no episódio de Toledo, a conversão de Toledo à
Ávila, a conversão de Sánchez a Cepeda e de plebeu a fidalgo.” (Ibid., p. 68). Destes
episódios resultou uma identidade imaginária, respaldada em memórias inventadas, mas
registrada e reconhecida como verdadeira, em um “estilo amaneirado de vida” (sic). Quer
dizer, assim como as obras maneiristas das artes plásticas, estilo presente em, por exemplo,
esculturas, a identidade artificial da família Cepeda ficou registrada, como que paralisada,
numa tentativa de estabilizar cuidadosamente uma identidade originalmente instável.

Teresa passou por várias conversões: defrontou-se pessoalmente com a


dispersão do catolicismo na figura de confessores e mentores díspares e
mutuamente contraditórios; esteve sob a suspeita da Inquisição, foi
denunciada, marginalizada; escreveu uma autobiografia (1562) e, como se
fica sabendo por esta obra extraordinária, foi uma das mais interessantes
doentes neste século de hipocondríacos.2 (Ibid., p. 69)

Na autobiografia de Santa Teresa, o autor não somente encontra descrições minuciosas


das doenças que a acometeram, mas uma descrição e, até, tipificação das experiências
místicas pelas quais passou. A partir do uso destas como recurso pedagógico, visa mostrar que
suas experiências são autênticas e espontâneas, e não programadas como propunham os
jesuítas da Ordem de Inácio de Loyola. A busca pela garantia de uma existência unívoca se
desloca, então, da necessidade de utilizar a razão de forma pragmática para a “[...]
reivindicação de uma radical veracidade de sua experiência pessoal” (Ibid., p. 71). Neste
ponto, é possível perceber o quanto a visão contemporânea sobre autenticidade está
influenciada por este mesmo modo de encarar a si e as próprias experiências. Se elas são
verdadeiras, tudo faz sentido e a identidade fica preservada pelo respaldo desta fidedignidade.

2
Através do processo autobiográfico se registrava, de forma meticulosa, todas as experiências disruptivas de si,
em geral o padecimento do corpo. Tratava-se de uma tentativa de preservar certa unidade àquilo que estava se
dispersando.

17
A busca por autoconhecimento, então, é enfatizada, pois torna-se necessário distinguir por
conta própria entre o verdadeiro e o falso, o confiável e o ilusório. Madre Teresa apostava na
vontade de completude, de união perfeita com Deus, conhecedor de seu íntimo, de seu Eu
interior, e tal vontade não possuía garantias externas que pudessem ser oferecidas por rituais,
dogmas ou um modelo consagrado, mas sim era o que a impulsionava a vivenciar sua fé e, a
partir das experiências pessoais, convencia-se de que conhecia a verdade. Afinal, dizia que a
verdade não vinha de representações, mas sim da presença pura e simples que era vivenciada
pela fé. O empirismo radical de Teresa abre espaço para o posterior ‘psicológico’ como um
campo de realidade psíquica, a partir do qual entende-se o valor e a atribuição de verdade que
se dá às experiências pessoais, que, por sua vez, corroboram a afirmação de uma identidade
autêntica. Em função do homem do século XX encontrar-se mais próximo de certa
constituição subjetiva que paira no século XVI do que consegue perceber, é possível entender
porque este século foi escolhido para dar início ao delineamento do tema proposto.
Entretanto, também no século XXI é pertinente retomar o século XVI para verificar de
que forma subjetividades produzidas naquele período desdobram-se contemporaneamente
através de dispositivos como a religião, e como ainda estão presentes, em certo sentido, em
diferentes configurações sociais. A perspectiva de classificação do mundo e das coisas a partir
do binarismo “bom/mau”, por exemplo, é uma herança da qual não conseguimos nos
desvencilhar, pois continua a ser (re)produzida. O autor Tzvetan Todorov em seu livro “A
conquista da América”, tem uma passagem em que narra o encontro de Colombo e os
nomeados “índios”:
Colombo declara de cara que são gente boa, sem se preocupar em
fundamentar sua afirmação. “São as melhores gentes do mundo, e as mais
pacificas” (16.12.1492). “O Almirante diz que não crê que um homem
jamais tenha visto gente de coração tão bom” (21.12.1492). “Não creio que
haja no mundo homens melhores, assim como não há terras melhores”
(25.12.1492): a fácil ligação entre homens e terras indica bem o espírito com
que escreve Colombo, e a pouca confiança que podemos depositar nas
qualidades descritivas de suas observações. Além disso, no momento em que
conhecer melhor os índios, cairá no outro extremo, o que não tornará sua
informação mais digna de fé: vê-se, náufrago na Jamaica, “cercado por um
milhão de selvagens cheios de crueldade, e que nos são hostis” (“Carta
Raríssima”, 7.7.1503). Sem dúvida, o que mais chama a atenção aqui, é o
fato de Colombo só encontrar, para caracterizar os índios, adjetivos do tipo
bom/ mau, que na verdade não dizem nada: além de dependerem do ponto de
vista de cada um, são qualidades que correspondem a extremos e não a
características estáveis, porque relacionadas à apreciação pragmática de uma
situação […] (TODOROV, 1999, p. 44)

A princípio, como Todorov demonstra através do destaque de trechos das anotações


de Colombo, os homens encontrados nesta nova terra eram citados como mais um achado em

18
meio à natureza. Por não estarem vestidos, uma vez que vestimenta era sinal de civilidade,
foram considerados culturalmente virgens. Por não conseguirem se comunicar com eles,
também foram considerados desprovidos de língua, de costumes, de leis e de religião. À
medida em que Colombo não compreendia que o valor atribuído a um objeto de troca era uma
convenção social e não um valor universal, julgava que os índios fossem ingênuos por darem
ouro em troca de pedaços quebrados de barril. O contato com o diferente, então, resumiu-se
em classificá-lo superficialmente, a partir das próprias referências, como é possível observar
no trecho acima destacado. Na atualidade ainda é comum julgar o outro, sua identidade,
utilizando a nós mesmos como parâmetro. A partir daí, surgem classificações que
desconsideram a rede de significados e o campo de sentido que o outro dá para si e para os
costumes que apresenta.
Para cada ato dos indígenas, Colombo apresentava uma interpretação que supunha
verdades sobre o ser deles. Por aceitarem qualquer objeto sem valor em troca do ouro que
detinham, ele julgou serem as pessoas mais generosas do mundo e que davam “de coração”,
alimentando, assim, o mito do “bom selvagem”. Ao mesmo tempo, as trocas eram feitas como
forma de comunicação e os índios só recebiam bagatelas porque era o que Colombo e seus
marinheiros ofertavam. Eles, então, que ensinaram os “selvagens” a apreciarem o que eles,
espertamente, tinham a noção de que eram bugigangas. O sentimento de superioridade, então,
de início gerou um comportamento protecionista e Colombo proibiu que seus marinheiros
efetuassem trocas, que ele considerou, escandalosas.
Em algum momento, começaram a dar roupas a eles, como gorros, calçados, camisas e
luvas, o que demonstra o não-suportar da diferença cultural. Aliás, os indígenas eram vistos
como aculturados. Cabe questionar aqui o que significa “não ter cultura”. Essa expressão
utilizamos até hoje, século XXI, e quando o fazemos presumimos que cultura é algo de alto
nível, algo superior, isto é, partimos de um ideal de cultura, de um referencial já pronto, e
tendemos a negar o que a ele não se assemelhar. No entanto, e ao mesmo tempo, já temos
acesso à noção de “diferença cultural”, o que traz embutido a percepção de que existem
diferentes culturas, diferentes modos de lidar com o mundo e organizar uma sociedade.
Quando pensamos em “cultura superior” perpetuamos a ideia de que há um modelo que deve
servir de padrão, sob o qual os demais podem até ser inseridos, mas em nível inferior.
Na experiência do contato com a alteridade, Colombo não estava verdadeiramente
interessado em conhecer os homens que viviam em meio à natureza. Para ele, eram parte da
paisagem. Não havia, pois, a vontade de compreendê-los, mas, antes, foram observados
partindo-se de um referencial próprio, tomado como norma. Esta atitude reflete um

19
etnocentrismo, a partir do qual tem-se uma ideia do outro tomando-o como se fosse a si
mesmo. Era comum que os colonizadores projetassem seus próprios valores sobre os
colonizados, quando estes eram considerados igualmente humanos; ou, então, quando
reconhecidos como diferentes, esta diferença era posta em termos de
superioridade/inferioridade. Os nomeados “selvagens”, que posteriormente ficaram
conhecidos como “índios”, eram, neste contexto, considerados inferiores. Seus costumes eram
tão díspares com relação aos dos espanhóis, que o estranhamento veio acompanhado de
punição severa. Em função dos nativos não apresentarem a noção de propriedade privada e,
pelo contrário, tudo ser tratado por eles como propriedade comum, entravam não apenas nas
cabanas uns dos outros como também, anotou Colombo, acharam que os “visitantes”
(espanhóis) tivessem o mesmo costume. Então, pegavam o que era de seu agrado, mas eis que
veio a represália: Colombo declarou que todos os índios, antes generosos, eram, agora,
ladrões e como castigo ordenou que quem fosse pego ‘roubando’, no entendimento deles,
tivesse o nariz e as orelhas amputadas. Essas duas maneiras radicalmente opostas de tratar o
outro, demonstram como em momento algum Colombo buscou conhecer a alteridade, mas
sim aproximou-se com julgamentos autorreferenciados, de acordo com as circunstâncias. Em
pleno século XXI, ainda fazemos isso: entramos em contato com o outro, mas não buscamos
conhecê-lo de fato. Inclusive, no geral, apresentamos pouca tolerância com o outro e criamos,
ou perpetuamos, modelos identitários sob os quais tentamos encaixá-los.
Na contemporaneidade, bem como na modernidade, o homem ocidental possui uma
visão naturalizada sobre si mesmo e seus costumes. Possui um sentido como que dado para
sua existência e trata sua individualidade como algo essencial e não historicamente
construído. O modo como o homem ocidental contemporâneo compreende a si mesmo, e aos
outros, é influenciado não apenas pela religião, mas também pelo surgimento de determinadas
disciplinas que, ao pretenderem-se científicas, produzem saber sobre o homem, transformam
seu corpo em objeto de estudo e, ao mesmo tempo, produzem o corpo do chamado
“indivíduo”. Este, após o século XIX, é entendido como um “eu”, naturalmente singular e
distinto dos demais, habitante de uma vida no interior das fronteiras de um corpo material,
dotado de uma “psique” que armazena e processa de forma única todas as experiências
individuais, além de guardar os segredos de sua identidade. Nas modernas sociedades
ocidentais, como ensina Nikolas Rose, em seu artigo “Como se deve fazer a história do eu?”,
constrói-se a pessoa
[…] como esse locus natural de crenças e desejos, como algo dotado de
capacidades inerentes, como a origem auto-evidente das ações e das

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decisões, como um fenômeno estável que se mostra consistente através de
diferentes contextos e diferentes épocas. (ROSE, 2001, p. 1)

À esta pressuposta consistência deve-se a tão reivindicada autenticidade. O sujeito, ao


compreender-se como uma entidade individual, acredita-se dotado de especificidades
inigualáveis. Neste contexto, o advento da “Psicologia Científica” corrobora esta
compreensão de si como possuidor de uma “vida psicológica interior” (idem).
Na segunda metade do século XIX e começo do século XX, algumas práticas
psicológicas buscaram se adequar ao ideal positivista, a partir do qual o conhecimento
científico é entendido como a única forma de conhecimento verdadeiro, e, assim, visaram dar
um estatuto de verdade às suas colocações. Eis que surge a chamada “Psicologia Científica”.
No entanto, antes dos experimentos no laboratório de Wundt, segundo PRADO FILHO e
TRISOTTO, em seu artigo “A Psicologia como disciplina da norma nos escritos de M.
Foucault” (2006), o comportamento humano já era objeto de investigação e regulação em
instituições totais (manicômios e presídios), de visibilidade e vigilância constantes. A figura
do panóptico, dispositivo arquitetônico, é utilizada por Foucault para ilustrar o ideal de
vigilância do final do século XVIII, cujo objetivo é expor o sujeito “a uma visibilidade
exaustiva, induzindo nele a certeza de estar sendo vigiado – automatização e autonomização
da vigilância no sujeito – produzindo efeitos de subjetividade e tornando possível a produção
de um saber sobre os sujeitos, fundado na observação e no registro sistemáticos das suas
condutas e comportamentos cotidianos.” (PRADO FILHO; TRISOTTO, 2006, p.9).
Por meio de uma genealogia da Psicologia, como propõe Foucault, é possível
constatar como os corpos e as subjetividades dos indivíduos são produzidos por
normalizações disciplinares. Há o estabelecimento de uma conduta ideal, a partir da qual
todos são observados e analisados. A cobrança de adequação aos parâmetros internaliza-se de
um modo sutil, aparentemente indolor. Desde que nascemos estamos submersos em um ideal
de normalidade, ao qual, sem questionamentos, de tão naturalizado que está, buscamos,
incessantemente, corresponder e cobramos dos outros semelhante correspondência. Quando
algum indivíduo foge ao que socialmente é esperado, tendemos a rotular suas práticas, como
uma forma de tentar abarcar aquela existência que se desviou da “normalidade”. Este
conceito, a propósito, sustentado no campo da Biologia e, consequentemente, na ciência e na
medicina, foi importado para as chamadas “Ciências Humanas” no século XIX, o que
naturalizou e atrelou ao biológico “uma questão que é na verdade uma construção histórica,
da ordem dos juízos, dos enunciados e dos dispositivos.” (Ibid., p. 10).

21
A partir do discurso liberal, as pessoas passaram a compreender-se como indivíduos e
a falar sobre si em termos de “eus”, dotados de uma “psicologia” - um domínio interior
estruturado pela interação entre a experiência biográfica particular e os processos gerais do
desenvolvimento animal humano (ROSE, 2001).
O indivíduo é exatamente aquilo que está sendo produzido nos discursos
modernos, em correlação com práticas de separação e normalização social.
Também a racionalidade e a humanidade do sujeito moderno, mais que
“atributos inerentes à natureza humana”, são construções históricas, figuras
correlativas dos discursos racionalistas, humanistas, e das modernas cartas
de direito. Aplica-se a mesma lógica às figuras do “cidadão” e da
“cidadania”, correlativas da política do Estado de direito, e também à figura
do “sujeito psicológico” ou, da própria “instância psicológica” – objeto da
psicologia e campo de experiências do sujeito – que devem ser objeto de
estranhamento, deixando como produções dos discursos e práticas de um
tempo. (PRADO FILHO; TRISOTTO, 2006, p. 10)

Nikolas Rose, ao fazer uma genealogia da subjetivação, investiga quais as práticas que
têm constituído os indivíduos enquanto tais - dotados de uma personalidade, de atributos
como caráter, honra, de uma identidade nacional, racial, sexual, com a necessidade de
conhecer a si mesmo, autorrealizar-se, vigiar e corrigir a própria conduta em prol de uma vida
mais saudável, mais feliz ou, pelo menos, “normal”. Diversos programas visam a ensinar uma
conduta ideal: como criar os filhos, como ser boa mãe, como emagrecer, como gerenciar
melhor o tempo, dentre outros conselhos que, ao contrário do que se possa imaginar, não
transformam experiências, mas, sim, criam-nas, bem como criam subjetividades. Práticas
cotidianas, vocabulários e técnicas foram desenvolvidos de modo refinado para tentar tornar
condutas consideradas problemáticas em condutas inteligíveis, ao mesmo tempo que
administráveis (ROSE, 2001). A partir daí, surgiu a noção de normalidade, do que seria uma
conduta normal, ou seja, esperada. Os dispositivos e as técnicas intelectuais que os
acompanham foram criados para produzir sentido, isto é, produzir a experiência a partir da
qual as pessoas se reconhecerão como pessoas de determinado modo de ser. A “subjetivação”,
então, é um termo usado “para designar todas essas práticas e processos heterogêneos por
meio dos quais os seres humanos vêm a se relacionar consigo mesmos e com os outros como
sujeitos de um certo tipo” (ROSE, 2001, p.4).
Desse modo, o ser humano é entendido não como uma entidade histórica, mas como o
alvo de uma multiplicidade de tipos de investimento que criam os modos através dos quais
cada qual se reconhecerá dentro de um regime de pessoa em “particular”, como um indivíduo,
portanto, único. A partir daí, a noção de “interioridade” é questionada como sendo criada por
dispositivos e, em especial, por disciplinas “psi” que corroboraram para a compreensão de si

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como dotado de um “eu interior” que precisaria ser desvendado e que conteria a verdadeira
identidade de cada um. Ao utilizar-se do conceito de dobra, de Gilles Deleuze, ROSE traz,
juntamente com sua genealogia da subjetivação, a noção de que “esta "interioridade" que
tantos sentem-se compelidos a diagnosticar não é aquela de um sistema psicológico, mas a de
uma superfície descontínua, de uma espécie de dobramento, para dentro, da exterioridade.”
(Ibid., p. 17). Ou seja, mais do que uma interioridade intrínseca e essencial, aquilo que está
“dentro” seria simplesmente o dobramento de um exterior que, por ganhar status de verdade,
é absorvido como sendo a essência sobre nós mesmos. Nesse sentido, as psicologias e, em
geral, os dispositivos psi – incluem-se a psiquiatria e, em especial, a psicanálise, com sua
noção de “instâncias psíquicas”, têm feito há quase dois séculos contribuições importantes,
diria, cruciais, a esse regime da subjetivação. Os sabers psi apresentaram discursos que se
propõem a desvelar a verdade sobre o ser do humano, fabricada nas mais diversas áreas do
convívio social – escolas, presídios, trabalho, manicômios etc -, contaminando a linguagem e
os modos de relação com seu vocabulário e seu enquadre.

23
3. A PRODUÇÃO SOCIAL DA SUBJETIVIDADE

Comumente referimo-nos à subjetividade como sinônimo de algo em nosso interior,


algo que nos pertence – “nossa subjetividade”. É como se esta falasse do que há de mais
próprio em nós, de mais íntimo, mais essencial. Essa noção está atrelada ao surgimento do
sujeito psicológico, dotado dessa subjetividade entendida como interioridade, encapsulada e
encerrada no sujeito. Sabe-se que a psicologia surgiu como um campo de saber a partir da
emergência de seu objeto – um sujeito psicológico, dotado de uma “subjetividade”, uma vida
psíquica interior. A partir daí, não apenas houve produção de verdades sobre o sujeito, como
também a produção desta subjetividade reivindicada como componente de uma identidade
autêntica, onde, tal como Teresa D’Ávila preconizava, apenas pelo autoconhecimento, pelas
experiências pessoais, seria possível descobrir a verdade sobre si mesmo. Como visto no
capítulo anterior, o empirismo radical de Teresa abre espaço para o que se configurou
posteriormente como o sujeito ‘psicológico’. Tal forma de lidar consigo encontra eco na
subjetividade contemporânea que, por um lado, com o advento das psicoterapias, estimula a
crença de que existe uma verdade oculta e inacessível aos demais, e que apenas o próprio
sujeito, a partir da introspecção e profunda análise das experiências pessoais, é capaz de
conhecer essa verdade sobre si. Por outro lado, com o discurso midiático atual, essa
concepção de uma profundidade do sujeito é afastada e emerge uma subjetividade que se
produz como efeito de superfície, isto é, pautada no que há de mais superficial na sociedade
de consumo, como exemplo no culto ao corpo. Este que agora não apenas diz respeito à
dimensão física da nossa existência, como também expressa aquilo que somos. A
subjetividade não se encontra mais na profundidade do ser, mas na superfície mesma do
corpo. Neste contexto, o corpo sustenta minha identidade, porque serve de vitrine a partir da
qual ostento um “estilo” que falaria do quão autêntica sou.
Quanto aos desdobramentos da psicoterapia, que sustentam a noção de uma
subjetividade mais intimista, onde apenas o indivíduo, a partir de suas vivências, é capaz de
falar de si, cabe questionar: ora, se são as experiências pessoais que o compõe e, em certa
medida, o definem, pois falam dele; e se estas surgem senão no sujeito, mas na interação com
o meio, como pode a subjetividade ser algo que diz respeito apenas ao indivíduo? É possível
usar como exemplo o universo adolescente, em que as chamadas “tribos urbanas” pautam-se
na afirmação de certa autenticidade a partir das vivências que têm em comum, tais como as
músicas que escutam, as roupas que vestem, enfim, as experiências que compartilham. O
“autêntico roqueiro” é aquele que veste preto, faz “cara de mal”, apenas escuta rock e se fecha

24
para qualquer possibilidade de contágio com o outro – que pode ser aquele que escuta funk,
pagode, rap, enfim, tudo menos rock. É como se vestir rosa, sorrir para as pessoas (ser
simpático) e se permitir ouvir uma música fora do seu estilo usual, o descaracterizasse. É
como se esse medo da alteridade, do contato com o diferente e do receio de ser contagiado
pela diferença, fizesse emergir as contradições e trouxesse indagações a seu próprio respeito.
Para evitar ter a sua identidade questionada, fecha-se com os “iguais”, os que, com ele,
compartilham de um certo mundo. Tal atitude faz lembrar a dos religiosos do século XVI que,
frente ao contato com a alteridade, para evitá-la, a demonizavam. Quando o “roqueiro” não se
permite ouvir outro estilo musical que não seja “o seu”, quando não suporta a diferença e
maldiz o estilo musical alheio, como se “o que não é rock, não presta”, mostra esse medo da
dissolução de si e, ao mesmo tempo, a fragilidade de seus contornos – aparentemente bem
definidos. Dentro da denominação “roqueiro”, há diversas “tribos”, por exemplo: os grunges,
os punks, os headbanguers (“batedores de cabeça”, na tradução literal, ou, simplesmente,
“metaleiros”). Dentre estes, que são os que curtem heavy metal, há diferenças de acordo com
as diversas ramificações deste gênero musical: há quem curta thrash metal, death metal, black
metal, doom metal, metal melódico, metal gótico, crossover (uma mistura de punk com thrash
metal, que surgiu quando bandas de hardcore punk buscaram incluir elementos do heavy
metal em suas músicas), etc. As tribos urbanas surgem a partir da demarcação de territórios
pelos que curtem determinado estilo musical, como se fossem bem definidos e não houvesse a
possibilidade do contato com o outro. É como se a sua diferença, sua originalidade e
autenticidade estivesse nesse isolamento, em que só se congrega com quem curte o mesmo
som. No entanto, o rock é uma pluralidade de estilos e subgêneros. Dentre os já citados, há
também, dentro do rock, os seguintes subgêneros: “rock clássico” (denomina os músicos que
foram inovadores dentro do rock, surgidos principalmente entre o início da década de 60 e o
final da década de 70), “rock progressivo” (surgido no final da década de 60, inclui elementos
do jazz fusion e da música clássica), e “rockabilly” (um dos primeiros subgêneros do rock,
que surgiu no início da década de 50). Desse modo, é possível constatar que, dependendo da
influência musical acrescida ao rock, surge uma determinada ramificação ou subgênero. Ao
mesmo tempo, não apenas as ramificações ou subgêneros do rock não são “puros” – livres de
influências –, como também não há um “rock puro”, mas, sim, ele mesmo é um híbrido, isto
é, surgiu a partir de diversas influências, dentre elas, está em suas raízes: o gospel norte-
americano, a música clássica, o country, o R&B (rhythm and blues), o jazz e a folk (música
folclórica).

25
Assim como, no exemplo acima, o rock se constitui em meio a diversas influências, a
subjetividade roqueira não nasce a partir de si mesma, mas é composta por uma série de
influxos externos ao sujeito. Quer dizer, os processos para a formação desse “Eu roqueiro”
são heterogêneos e estão para-além do território do biológico e do psíquico; são, antes,
políticos, tecnológicos e capitalísticos. As tribos urbanas não são apenas constituídas a partir
de seus membros, mas constituir-se como “tribo” é um agenciamento do capitalismo mundial
integrado. Fala-se, então, em processos de subjetivação, pois entende-se que a subjetividade
não emerge do sujeito, mas, antes, que ele está mergulhado no campo em que as
subjetividades são produzidas. Há modos de subjetivar, de constituir-se como indivíduo, e há
uma série de vetores e agenciamentos culturais, sociais e micropolíticos a partir dos quais a
subjetividade surge e, ao mesmo tempo, também atua na sua constituição – ela não,
simplesmente, advém deles.

Os processos de subjetivação realizam-se, portanto, por intermédio de


componentes heterogêneos, de materiais distintos, de linhas e vetores
diversos relativos às existências, onde seus movimentos próprios
caracterizam-se como devires múltiplos que se atravessam num plano
infinito de conexões e agenciamentos. Neste aspecto, não se trata somente de
uma leitura sobre os fatores biológicos, ou da dinâmica psíquica envolvida
em tal produção. Trata-se também, de fenômenos que dizem respeito à
política, ao Estado, às tecnologias, bem como ao espaço urbano, aos meios
de comunicação, à vida cotidiana e às mais variadas formas de
agenciamentos indicativos das multiplicidades e dos diversos fluxos sociais
[...] (SOARES, 2016, pp.1-2)

Este é o modo contemporâneo do capitalismo atuar, integrado aos diversos modos de


existência através de processos, múltiplos em sua origem, que visam criar novos ‘modos de
subjetivar’, de “ser quem se é”, isto é, novas subjetividades que tenderão a afirmar-se como
independentes do campo social. Como exemplo, há os chamados “estilos de vida”,
abertamente encorajados pelo sistema, que não são percebidos como sua criação, mas, sim,
vivenciados como puro reflexo da personalidade de cada um. Isto mostra o sucesso que o
sistema tem em inculcar nos indivíduos determinados modos de ser e se relacionar com o
mundo.
Na era industrial, com o desenvolvimento da lógica fabril, o foco do capitalismo era o
novo modelo de produção, que acabara de surgir, e o lucro. Então, todo o sistema era
organizado em torno da maximização da produtividade. Neste período, onde emerge a
“sociedade disciplinar” (Foucault, 1989), o proletariado era visto como um conjunto de
corpos que precisavam ser docilizados para melhor corresponder à demanda de trabalho:
produzir muito em um curto espaço de tempo. Os homens tinham que se adequar não somente

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ao tempo, que deveria ser produtivo, mas também ao espaço, ao confinamento ao qual eram
submetidos, pelas longas horas que passavam nas fábricas, sem interação com o mundo
exterior. Assim como nas escolas os corpos eram disciplinados para se adequarem às
exigências e, em breve, se inserirem na lógica do sistema, nas fábricas, além da restrição
espaço-temporal, os corpos eram submetidos a processos repetitivos visando a excelência
técnica – cada qual com sua tarefa bem específica para somente em conjunto serem capazes
de produzir. Não havia, claramente, uma preocupação com a constituição de subjetividades,
ao mesmo tempo em que essa busca pela adequação dos corpos ao modelo de produção
vigente moldava não apenas o corpo, mas, consequentemente, a subjetividade deste indivíduo
que emergia como sendo “o proletário”.
Na era pós-indutrial, com as mudanças do processo produtivo, a sociedade que se
configura é chamada, por Gilles Deleuze, de “sociedade de controle”. Apesar de haver
diferenças entre a “sociedade disciplinar” e a “sociedade de controle”, não se trata de uma
oposição, mas, antes, de acordo com alguns autores, como Michael Hardt, de uma
intensificação da lógica disciplinar (ARAÚJO, s.d.). Trata-se, portanto, de uma modulação e
não de uma passagem, como se a sociedade disciplinar houvesse sido superada pela sociedade
de controle. Então, ainda hoje, na contemporaneidade, os modos de subjetivar passam por
dispositivos específicos (exemplo: escola, presídio, empresa etc), porém não se limitam a eles.
Na sociedade disciplinar, as pessoas eram submetidas a um processo de individuação –
através do qual a população ganhava diferenciação, tornando-se uma massa composta por
indivíduos que, ao passarem pelas diversas instituições, ganhavam identidade e saíam delas
com uma subjetividade normalizada, regular. Já na sociedade de controle, com a crise das
configurações institucionais que fomentavam a lógica disciplinar, há um processo de
“dividuação” no qual, a partir da não-definição do lugar de produção, o indivíduo passa a
buscar o governo de si e a tornar-se, ele próprio, um centro produtivo.

A fábrica constituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem


do patronato que vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que
mobilizavam uma massa de resistência; mas a empresa introduz o tempo
todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que
contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si
mesmo. (DELEUZE, 1992, p. 2)

Na atual fase do capitalismo, denominado por Guattari de “Capitalismo Mundial


Integrado” (CMI), ainda há a disciplinarização dos corpos, porém, ao mesmo tempo, o
controle não é mais exercido prioritariamente de forma autoritária e não se limita aos espaços
de confinamento. Agora, sua forma de atuação é não possuir uma forma, um molde fixo, mas,

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antes, modular os modos de existência, ser flexível. O controle é exercido de forma mais sutil,
mais molecular, isto é, não fica limitado a lugares específicos, está disseminado pelo corpo
social. É como se este fosse poroso e o controle o atravessasse, ao mesmo tempo em que o
compõe. Não há definição estável de territórios, há uma permanente desconstrução e
redefinição de contornos, como forma de capturar todos os modos de ser, ao passo em que
cria outros. Esta desterritorialização o torna tão maleável a ponto de ser incapturável. Quando
estudiosos esboçam uma compreensão sobre ele, em seguida ele já se transfigura, se atualiza.
Atividades que antes escapavam da lógica produtiva, isto é, não estavam inseridas na
definição clássica de trabalho, foram apreendidas pelo CMI, no qual há a produção de desejo
e, consequentemente, do social. Afinal, uma vez que “o campo social é imediatamente
percorrido pelo desejo [...]” (Guattari e Deleuze apud CAMARGO, 2011, p. 4), o CMI visa
capturar a produção desejante para ter sob controle as forças produtivas e as relações de
produção. Para Guattari, o inconsciente está diretamente vinculado com todo um campo
social, econômico e político; e, neste contexto, a força desejante investe e desinveste os fluxos
de toda natureza que permeiam o campo social. (CAMARGO, 2011)
No capitalismo industrial havia outros modos de subjetivar, porém, atualmente, o foco
está na produção de subjetividades desejantes. Assim, vê-se a influência da Psicologia que, ao
pretender-se científica, criou técnicas para conduzir as condutas e para que o “sujeito
psicológico” examine-se e, numa lógica empresarial, gerencie a si mesmo para ser o mais
produtivo possível (ROSE, 2014). Desse modo, um dos objetivos da psicologia é incrementar
a capacidade de indivíduos de exercer autoridade sobre si mesmo,
[…] melhorando a capacidade de estudantes, empregados, prisioneiros ou
soldados de compreenderem suas próprias ações e regularem suas próprias
condutas. O exercício da autoridade, aqui, torna-se uma questão terapêutica:
a forma mais poderosa de agir sobre as ações dos outros é mudar os modos
pelos quais esses governam a si mesmo. (Ibid., p.43)

Os discursos psicológicos, que postulam verdades sobre os sujeitos, contribuíram com


a emergência da ideia de normalidade a partir da generalização e universalização dos
resultados de pesquisas e parâmetros científicos de mensuração e classificação. Com isso, a
psicologia tem produzido uma gama de autoridades sociais, especialistas, que gerenciam as
subjetividades.
É por meio do advento do discurso especializado – e das diversas prescrições que com
ele surgiram – que a economia cresce e o capital ganha novos territórios de atuação. Afinal,
são ditados os modos de ser “si mesmo”, inclusive, dona de casa, mãe, hippie, enfim, os
anteriormente excluídos da lógica capitalista agora ganham definição e geram lucro; porque

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são inúmeros os itens, acessórios e estilos de vida – passíveis de consumo – que compõem
essas subjetividades e corroboram para a afirmação destas como tal. Não à toa buscamos
compreender o outro encaixando-o em rótulos. Estes existem e são quase que universalmente
compreendidos porque o sistema capitalista os reinveste, de forma flexível e contínua. Quem
quiser ser hippie, por exemplo, sabe como deve agir e se vestir. O “roqueiro” ganhou
identificação porque os itens que o compõe são promovidos pelo CMI. A subjetividade punk,
que busca fugir da lógica vigente, também virou um produto a partir do momento em que o
“como sê-lo” pode ser adquirido em lojas. Há uma rebeldia controlada porque promovida, e
tudo isso gera lucro. Ademais, antes das subjetividades ganharem personificação, o mundo no
qual elas existem é criado. Na lógica empresarial, portanto,
[...] não é a mercadoria que é criada, mas o mundo onde a mercadoria existe;
ela [a empresa] não cria o sujeito, mas o mundo onde este sujeito existe. Os
serviços, os produtos e os produtores/consumidores devem corresponder a
esse mundo. Assim, a empresa busca construir a correspondência entre os
consumidores e seu mundo. (LAZZARATO apud ARAÚJO, s.d., pp. 5-6)

O consumo, então, diz respeito à adesão a um mundo,


[...] constituído por agenciamentos de enunciação, por regimes de signos
cuja expressão se chama publicidade e cujo expresso constitui uma
solicitação [...] a esposar uma forma de vida, isto é, esposar um jeito de se
vestir, um jeito de ter um corpo, um jeito de comer, um jeito de se
comunicar, um jeito de habitar, um jeito de deslocar-se, um jeito de ter um
estilo, um jeito de falar etc. (idem)

Há também, na atmosfera contemporânea, de acordo com Paula Sibilia, em seu livro O


show do eu – a intimidade como espetáculo, o estímulo à “[...] hipertrofia do eu até o
paroxismo, que enaltece e premia o desejo de “ser diferente” e “querer sempre mais” [...]”
(SIBILIA, 2008, p. 8). Neste contexto, o advento da internet e das redes sociais virtuais,
contribuiu para esta hipertrofia, uma vez que se constitui como um espaço para falar de si,
criar-se e recriar-se incessantemente do modo que se desejar e melhor estruturar quem se
gostaria de ser. Uma das principais metas dessas imagens auto-referentes e dos textos
intimistas, postados nesses espaços virtuais interativos, é a criação de uma personalidade
espelhada nos padrões que a mídia imputa aos indivíduos. Isto é, seja uma imagem
semelhante aos padrões ou que busque refutá-los, de qualquer forma, neles se espelha e com
eles dialoga. Ao mesmo tempo em que a ideia de que “agora qualquer um pode”, no tocante
às práticas autorais que se desenvolvem online, encontra-se no cerne de conceitos como o de
“liberação do pólo emissor”, que busca dar conta da superação do esquema midiático do
broadcasting (SIBILIA, 2008). Neste modelo de transmissão, as informações eram

29
disseminadas em larga escala, de “um-para-muitos”. Mas com as mudanças no campo da
comunicação, houve um tensionamento do modelo vigente e a produção de uma nova
configuração, agora, de “muitos-para-muitos”. É a este novo formato que o fenômeno de
“liberação do pólo emissor” se refere (BARROS, 2007). Como exemplo dessa mudança, há o
“Broadcasting Yourself” – slogan do Youtube –, que explicita esse incentivo à auto-promoção
e à construção de si orientada para (e pelos) outros. É um incentivo ao show do eu, à
exposição. Com isso, a personalidade trata-se de “[...] uma subjetividade visível, uma forma
de ser que se cinzela para ser mostrada.” (SIBILIA, 2008, p.234). A partir daí, há tanto a
exigência de autenticidade como a crítica à inautenticidade.
Sobre este tema, no livro O novo espírito do capitalismo, de Luc Boltanski e Éve
Chiapello, encontramos contribuições interessantes. Nesta obra, são apresentadas as fases –
ou “espíritos” – pelas quais o capitalismo passou até emergir como o conhecemos na
contemporaneidade. Para que as pessoas entrem no circuito econômico, de perpétuo
reinvestimento, é necessário que haja o engajamento delas ao capitalismo. Este ocorre a partir
do “espírito do capitalismo”, definido, pelos autores, como a ideologia que apresenta não
apenas benefícios individuais como vantagens coletivas, definidas em termos de “bem
comum” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 39). Os autores também apresentam que,
para cada momento do desenvolvimento deste sistema, surge um “novo espírito” para abarcar
as críticas que lhe são inerentes, isto é, para dar conta do anticapitalismo que o acompanha
desde a sua constituição, tal como uma sombra. Além do que, para cada melhoria realizada,
surgem novas críticas. Com relação ao primeiro espírito do capitalismo, “[...] a crítica era ao
espírito burguês, às suas convenções, à sua preocupação com as boas maneiras, com “aquilo
que se faz”, em detrimento da “verdade” dos sentimentos e da “sinceridade” nas relações”
(Ibid., p. 440). Ou seja, a crítica era à hipocrisia burguesa. Já as mudanças pertinentes ao
segundo espírito do capitalismo, as que ocorreram no fim dos anos 60, começaram a se
delinear a partir da crítica à perda de autenticidade que designava, essencialmente, uma crítica
à uniformização ou à perda de diferença entre os seres – objetos ou seres humanos. Como os
autores vão apresentar, esta crítica deriva, primeiramente, da condenação à produção em
massa. A falta de diferença afeta prioritariamente os objetos, tais como tecidos, móveis,
bibelôs, carros, utilidades domésticas etc, pois, além de serem iguais entre si, para funcionar,
eram usados exatamente do mesmo modo. Correlativamente, há uma denúncia à massificação
do ser humano, pois com a padronização do uso, há, consequentemente, a padronização dos
usuários por intermédio do consumo. Afinal, para que alguém consuma é necessário fazê-lo
desejar o produto. Desse modo, é como os autores apresentam:

30
Essa massificação dos seres humanos, na qualidade de usuários, por
intermédio do consumo, com o desenvolvimento do marketing e da
publicidade no fim do período entre guerras e principalmente após a
Segunda Guerra Mundial, estende-se a uma das dimensões das pessoas que
parece estar entre as mais singulares e íntimas, ancorada em sua
interioridade: o próprio desejo, cuja massificação é, por sua vez, denunciada.
Entre meu desejo por um objeto qualquer e o desejo de outra pessoa por um
objeto idêntico pertencente à mesma série, já não existe nenhuma distância
pertinente. Também entre as libidos é abolida a diferença. (Ibid., p.441).

Neste cenário, aquele que questiona o que, pelos meios de comunicação, visa ser
inculcado nos indivíduos – que em sua maioria não apresentariam espírito crítico –, é
declarado como “autêntico”; enquanto que o “inautêntico” é aquele que, de acordo com os
autores, “refugia-se na inércia de uma vida serial” (idem).
Na contemporaneidade, com a formação do que os autores chamam de “terceiro
espírito”, é que o capitalismo pretendeu dar resposta à crítica à inautenticidade,
compreendendo o autêntico como aquele que busca uma diferenciação constante de tudo o
que está posto. Nesta nova fase, ao incorporar as críticas, o capitalismo se modula de tal modo
que passa a compor subjetividades que se pretendem anticapitalistas, isto é, ele mesmo
desmancha seus contornos como uma estratégia para não se permitir capturar. Adequa-se às
críticas, produz outras, desfazendo-se a si mesmo, para não deixar de existir. Esta exigência
por uma permanente diferenciação é o próprio modo do CMI atuar, então o surgimento de
subjetividades com igual necessidade apenas reflete a vida em sociedade.
O capitalismo, entretanto, não se modifica apenas diante de críticas, uma vez que,
segundo os outros autores citados - como Deleuze e Guattari -, o capitalismo está em
constante transformação desde a sua constituição. Pois ao pretender expandir-se, esse ato
mesmo provoca mudanças. Isto é, as mutações são próprias da expansão do capitalismo.
Afinal, para acoplar-se a outras estruturas sociais e subjetivas é necessário se adequar a elas,
ao mesmo tempo em que, nesse processo, também as modifica. Neste contexto, é possível
aproximar Guattari e Chiapello/Boltanski, pois é de acordo com os diferentes espíritos do
capitalismo que ocorrem diferentes processos de constituição de subjetividades, cada época
com o seu modo específico de produzir individualidades. Na sociedade disciplinar, como
vimos acima, o poder era massificante e individuante, isto é, o objetivo era constituir os
indivíduos em um só corpo, ao mesmo tempo em que moldava a individualidade de cada
membro do corpo. Na sociedade de controle, em contrapartida, os indivíduos são dividuais,
quer dizer, o controle atravessa cada um, dividindo-os em si mesmos; há uma modulação –
portanto, fluida, e não uma moldagem fixa – das existências, para tal o controle é auto-
deformante, ou seja, muda constantemente, a cada instante. Agora, não se trata de uma gestão

31
dos indivíduos na massa e, sim, cada qual é convocado a ser gerente de si mesmo. Por sermos
dividuais, o “Eu”, ao qual Paula Sibilia se refere, desapareceu. Não há uma essência interior
que seria exposta por este “Eu”, como o termo pressupõe, mas, antes, uma dobra da
exterioridade na superfície cambiante dos corpos. Portanto, somos menos autênticos do que
imaginávamos. Não há como fugir do social. Somos constituídos por ele e seus elementos nos
compõem. Ao mesmo tempo, Guattari e outros autores observam a possibilidade de
singularização, isto é, transformação do que está dado em algo novo. Não há como inventar
algo a partir do nada, mas há como estabelecer um outro modo de relação com os elementos
existentes. É um processo dinâmico, que exige movimento constante.

32
4. UMA PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA-EXISTENCIAL DA
AUTENTICIDADE

É impressionante como nossa sociedade sempre elege símbolos com os quais as


pessoas estabelecem uma relação de identidade, se apropriando deles como algo que os
constituísse subjetivamente. Por exemplo, vamos supor que o tênis da marca Adidas só
pudesse ser adquirido por milionários, quem o usasse, o “ostentasse”, então, demonstraria que
tem dinheiro ou que ganhou na loteria (para o caso dos socialmente emergentes). Isto é,
mesmo sem uma palavra, todos entenderiam o que significa ter um Adidas e automaticamente
ao seu usuário atribuiriam a identidade de milionário.

Existem determinados perfis que são atribuídos ou incorporados por determinadas


pessoas, consciente ou inconscientemente. Por exemplo, a “identidade rock n’roll” é
socialmente entendida como tal pela utilização, basicamente, dos seguintes itens: calça
rasgada, bandana, blusa preta ou camiseta de banda, correntes como acessório, munhequeira e
tênis da marca All Star – que, há uns tempos atrás, após emergir como tênis de jogador de
basquete, passou a ser considerado, por alguns, como “tênis de roqueiro”, pela forte aderência
dos jovens autointitulados roqueiros a esta marca. No caso destes, que se identificam como tal
e acham que ser roqueiro é usar todos esses itens, além de andar na rua com uma expressão
carrancuda, mostram que aderiram voluntariamente a esta identidade. Mas há casos em que
essa aderência a um rótulo é feita de forma involuntária, isto é, irrefletida, e a pessoa, apesar
de rejeitá-lo, é socialmente identificada como pertencente à alguma “tribo urbana”, por
apresentar características associadas à determinada tendência, mesmo que fora de moda.
Rejeita o rótulo porque não se reconhece como adotando características de alguma tendência
e, pelo contrário, afirma que é “ele mesmo”, como se manifestasse, pelas suas roupas e “estilo
de vida”, algo que diria respeito à “sua” individualidade, algo do âmbito do “Eu” privado e
não do social.

No entanto, como vimos no capítulo anterior, na fase em que se encontra o capitalismo


contemporâneo – chamado por Guattari de “Capitalismo Mundial Integrado” (CMI) e, tal fase
ou “espírito”, denominada por Boltanski e Chiapello (2009) de “terceiro espírito do
capitalismo” –, apresenta um modo de atuação mais sutil. Ele foi, ao longo de seu
desenvolvimento, sofisticando-se para expandir-se com maior facilidade e aderência,
penetrando, atravessando e, sobretudo, constituindo os diferentes modos de subjetivação, isto
é, de ser “quem se é”, de ser este “si mesmo” que anuncia uma autenticidade inerente ao que

33
haveria de mais próprio em seu ser. Os modos de identificação são variados e, segundo o
conceito de dobra proposto por Deleuze (1991), seria mais do que uma interioridade que se vê
refletida em elementos exteriores e com eles se identifica. Trataria-se de uma dobra da
exterioridade, sem um “lado de dentro”. Seríamos, então, compostos por diversos
agenciamentos coletivos, sem uma interioridade prévia sobre a qual iriam se sobrepor as
marcas do mundo. Haveria, nesta perspectiva, uma apropriação e conjugação inconsciente de
elementos que o mundo apresenta, constituindo um si. Ao mesmo tempo, não se trata de
excluir a possibilidade de escolha dos sujeitos. Se é possível ter preferências, é porque
também não somos, exatamente, pura exterioridade. O fora se dobra de forma singular em
cada um. Algo ‘em nós’ escolhe ou somos alguém que escolhe?

Segundo Guattari (1996), os indivíduos presentes no corpo social são o resultado desse
social. No capitalismo mundial integrado há uma produção em larga escala: os indivíduos são
serializados, registrados e modelados. A subjetividade, neste contexto, não é diferente. Ela é
fabricada e modelada no registro do social, possui múltiplos agenciamentos. Ou seja, não é
algo que está no indivíduo, ele, aliás, é um dos efeitos do processo de subjetivação. Este,
então, não é um processo apenas individual, mas engendra e afeta a sociedade como um todo
a partir do momento em que ela é estruturada politicamente, socialmente, tecnologicamente,
economicamente, dentre outras formas, no intuito de manter a lógica do sistema no qual
estamos inseridos – basicamente, lógica de consumo e produção. A publicidade, como vimos
anteriormente, é um importante dispositivo desse processo porque, inclusive, atua na
produção de desejo, de maneira tão sutil que o indivíduo passa a crer que determinado
produto é “a sua cara” ou que determinado “estilo de vida” traduz (ou expressa) seu modo de
ser. O homem encontra-se, assim, numa encruzilhada de múltiplos agenciamentos e diversos
componentes da subjetividade que comumente refere-se como “sua”. Por esta subjetividade
dizer respeito a um processo que se dá nas relações, cada indivíduo é um participante não só
passivo – consumidor de subjetividade – como também ativo, atuando como (re)produtor de
modos de subjetivar. Por exemplo, ao divulgarmos a amigos que uma determinada loja está
em liquidação, com diversos produtos em promoção, e fazermos comentários sobre os
produtos que compramos, estaremos produzindo no outro o desejo de consumir e, por ser
liquidação, “sair na vantagem”, assim como nós. Ou, então, quando dizemos para um amigo
passar em determinada loja, porque vimos um produto que era “a cara” dele, estamos, nesse
momento, criando um desejo no outro, uma vontade, e isso faz parte do processo de
subjetivação. Sem nos darmos conta, contribuímos com ele.

34
A questão da identidade, do “quem sou eu?”, em um sentido autêntico, permeia nossa
existência, no horizonte histórico ocidental, desde o declínio da perspectiva teocêntrica. Esta
perspectiva tomava como referência os desígnios de um "Deus-pai", expressos em valores
morais e preceitos religiosos ortodoxos que ditavam como cada um deveria viver. Neste
período, era como se houvesse um sentido a priori para a existência humana, isto é, bastava
ser a imagem e semelhança de Deus e quanto mais semelhante melhor, mais corretamente o
homem estaria vivendo. Então, com esta referência Divina, o sentido da existência humana
estava em viver de acordo com os desígnios desse Deus. Não existia a busca por um "Eu"
independente da vontade desse Deus soberano. Tratava-se, antes, da supressão das próprias
vontades em detrimento da vontade do Divino.

No entanto, entre os séculos XV e XVI, com o advento do mercantilismo e,


consequentemente, das expansões ultramarinas, a partir do contato com a alteridade e do
descobrimento de outros mundos, para além do seu, o homem passou a ser aquele quem
conhece e não mais dependente unicamente das orientações de um Deus onisciente. A partir
daí, uma perspectiva antropocêntrica foi se delineando até alcançar seu auge, no século XVIII,
com o "Iluminismo" - movimento europeu que defendia o uso da razão e da experimentação
como formas de conhecer o mundo, e que, através da mobilização do poder da razão,
objetivava reformar a sociedade, afastando-a, cada vez mais, da "Idade das Trevas", isto é, da
tradição medieval, cuja intolerância e falta de questionamentos eram veementemente
criticados por esse movimento. O homem, então, experimentou uma cisão na sua forma de
conhecer o mundo, antes apenas cognoscível através da religião, agora compreendido pelo
exercício da razão e do método empírico. No século XIX, tal exercício culminou no
surgimento da chamada ciência e, consequentemente, diversos campos de saber buscaram se
adequar aos preceitos do método científico emergente para, diante dessa nova configuração
social e cultural, terem validade. (VICENTINO; DORIGO, 2008)

Neste contexto de cisão e efervescência de outros modos de existir, também surgiram


as filosofias da subjetividade, com a concepção que lhes é comum, de que cada sujeito pensa
a si mesmo e posiciona os objetos no mundo. Tal perspectiva estabelece as bases para o
surgimento efetivo da dicotomia sujeito e objeto. Com isto, são fornecidas as bases para boa
parte das concepções teóricas e práticas em Psicologia. Ainda nesta linha de pensamento, que
pressupõe uma interioridade encapsulada, contraposta ao mundo e com prioridade do eu
frente ao mundo ambiente, e que exerce forte influência nas elaborações da Psicologia, temos
a influência de dois movimentos opostos: o Iluminismo e o Romantismo. A Psicologia,

35
inserida no contexto científico racionalista, defende a natureza previamente dada da faculdade
racional do homem, bem como seu caráter universal. Trata-se, então, de disciplinar os
impulsos e obter auto-controle. Enquanto que as psicologias que recebem inspiração
romântica defendem a liberação dos sentimentos como aquilo que vai levar o homem a se
opor diante das determinações de seu ambiente e, assim, seguindo suas emoções, atuar no
mundo de modo mais autêntico. Assim, as psicologias, seja por um viés racional ou emotivo,
tomam o sujeito como encapsulado em si mesmo, desconsiderando a articulação primeira
entre homem e mundo, bem como o horizonte histórico, social e político no qual ele se
constitui. (FEIJOO, 2011)
As psicologias, com suas mais diversas teorias, produziram verdades sobre o existir
humano, moldando, assim, a forma com a qual o homem compreende e conhece a si mesmo.
Ao produzir e apregoar, por exemplo, a existência de uma interioridade psíquica, de um “Eu”
que possui vontades e desejos, e que deve ser conhecido, pois diz respeito ao que há de mais
íntimo em cada homem, contendo a verdade sobre a motivação de determinadas ações, a
psicologia, que se pretende científica, também reforça a cisão cartesiana entre mente e corpo,
homem e mundo. Mesmo na perspectiva behaviorista, que desconsidera o eu em sua
interioridade, apresenta esta cisão quando entende o eu tal como uma tábula rasa que se
constitui por meio de estímulos oriundos do mundo. Estas “perspectivas tradicionais” em
psicologia culminam com um fazer clínico coisificante, em que o sujeito é reduzido a um
objeto de estudo, verdades sobre ele são postuladas e aplicadas, e ele é apartado do seu
horizonte histórico.
Com a perspectiva fenomenológica-existencial, o estudo sobre a subjetividade – e
temas como a autenticidade – e a prática psicológica ganham outra compreensão. Ao invés de
ser mais uma teoria sobre o homem, trata-se de um outro modo de compreender a existência,
não mais sob a dicotomia entre homem e mundo, como se esta fosse a estrutura originária da
realidade. Não se trata mais de reificar o eu, como se este fosse uma coisa material dotada de
um aparato psíquico prévio, cuja complexidade pudesse ser entendida de forma mecânica.
Mas de integrá-lo novamente ao mundo, sob um outro olhar. O que se busca é suspender
verdades, a partir da compreensão do modo de ser do homem no sentido ontológico. Esta
descrição é feita por Martin Heidegger (1889-1976), um filósofo alemão, que é um dos
principais nomes desta perspectiva filosófica. Junto à compreensão ontológica do ser do
homem, há contribuições interessantes para um outro entendimento do que seja a
autenticidade humana. Para tal, de acordo com a natureza do presente trabalho, será

36
selecionado o que cabe para abordar o tema, e, portanto, não nos deteremos numa
investigação profunda acerca do sentido de cada conceito.
Em um sentido originário, então, homem e mundo são co-pertencentes, isto é, só há
mundo porque há homem e vice-versa. O homem não apenas está no mundo, como tem
mundo. Isto significa que o desvelamento do mundo se dá no encontro com a abertura que o
homem é. Essa abertura do ser do homem é chamada por Heidegger de Dasein (palavra alemã
que significaria “ser-aí”). O modo de ser do homem é ser este “aí” cuja existência sempre está
em jogo, cujo ser se vê lançado no mundo e com ele sempre está em relação. Por isso
podemos também dizer que o modo de ser do homem é “ser-no-mundo” ou “ser-com” para
assinalar essa dimensão relacional da existência. Em função da essência do “ser-aí” estar
sempre em jogo no seu existir, podemos dizer que a sua essência é a sua existência. Estar em
jogo quer dizer estar lançado no mundo, num contexto de possibilidades, isto é, de poder-ser.
Se o que há são possibilidades de ser, então não há “nenhuma determinação positiva da
essência humana em termos de características universais prévias à existência” (NOVAES,
2016, p. 35).
Por isso o homem vive a buscar sentido para a sua existência, sem encontrar uma
resposta que o satisfaça. Partimos todos de um sentimento comum, de angústia, que diz
respeito a essa abertura que somos, em função da nossa essência ser essa negatividade
originária, de uma ausência de sentido e de determinação a priori. Ao nos depararmos com o
poder-ser que é nosso ser, ficamos perdidos, pois para cada contexto, outras possibilidades se
desvelam. Não são possibilidades infinitas, mas são múltiplas. E é nessa ausência de uma
determinação a priori que reside a autenticidade humana, uma vez que esta refere-se à “mera
possibilidade de ser si mesmo em um sentido próprio, não sendo possível determiná-la pelo
valor positivo de uma atitude ou comportamento específicos” (NOVAES, 2016, p. 35).
Neste contexto, não interessa o que eu faça, o que eu vista ou como eu me rotule,
nenhuma destas formas de eu me expressar dirão respeito ao quão autêntica sou, pois a
autenticidade do nosso ser reside nas diversas possibilidades de ser e não em um modo de ser
específico. Nesse sentido, somos “devir” (vir a ser), isto é, por mais que nos identifiquemos
com determinado modo de ser, nosso ser não é limitado a este, podendo vir a ser, dentro de
seu campo existencial, de suas possibilidades, o que quiser. Podemos, então, transitar por
diversos modos de ser, sem perder a autenticidade. Esta noção contraria a forma com a qual
comumente compreendemos o que significa ser autêntico. Então, não se trata mais de se
reduzir a um modo de ser e se afirmar, até a morte, como sendo, por exemplo, “roqueiro”.

37
Mas de entender que é o poder-ser do ser que nós somos que nos confere, de forma originária,
a autenticidade.
Ao mesmo tempo, há o que Heidegger chama de “cotidianidade mediana” que é onde
todos nós estamos imersos, de início e na maior parte das vezes. Nesta cotidianidade, por
vezes, não nos damos conta de nossas escolhas, nossas possibilidades, e simplesmente
vivemos sem estarmos presentes para nós mesmos. E como estamos, segundo Heidegger, na
Era da Técnica, acabamos por nos confundir com algo técnico ao simplesmente aceitar sem
questionamento e sem reflexão tudo o que a medicina e a ciência propõem para o nosso
existir. Desse modo, passamos a viver na impessoalidade, de modo impróprio (não
apropriado) e, portanto, na inautenticidade. Pois ser autêntico, singular, viver de modo
próprio, significa estar apropriando-se da sua existência a cada momento, estar presente para
si, tendo a noção de como se está vivendo, como tem se relacionado, das escolhas que rondam
seu existir, e, assim, trata-se da experiência de “decisão” (Entschlossenheit, em alemão), que,
para Heidegger, no sentido em que ele usa esse termo em Ser e Tempo, significa “o
propriamente assumido abrir-se do ser-aí ao aberto” (HEIDEGGER apud NOVAES, 2016,
p.36). O que diz respeito a essa tomada de responsabilidade pelo fazer do seu existir a cada
instante, em um sentido meditativo (reflexivo), de forma serena e não controladora. É, antes,
uma abertura para o mistério da existência, o que implica desprendimento, liberdade.
Tal abertura de desapego tampouco pode ser confundida com resignação.
Não se trata de um estado de despotencialização. Na serenidade, há um
deixar-se ser que denota aceitação potencializada, um estar aberto para as
possibilidades. Assim como a angústia nos arranca, às vezes violentamente,
da absorção no mundo cotidiano das ocupações, a serenidade também
implica um movimento de suspensão das referências identitárias do mundo
circundante. (NOVAES, 2016, p.36)

Com esta noção de serenidade, é possível que o homem se relacione com a técnica de
um modo mais livre, dizendo “sim” ou “não”, sem ser submisso e sem negar completamente
os avanços técnicos. Ao mesmo tempo, em função da serenidade não depender da vontade, do
querer humano, mas de uma postura que traduz uma disposição afetiva fundamental, se trata
de, frente ao mundo, apresentar uma vontade de não-vontade caminhando para a não-vontade
propriamente dita. O que significa estar aberto aos fenômenos, isto é, ao que aparece no
encontro e se mostra a si mesmo, sem deduções apriorísticas e sem supor um “por trás” do
que se mostra.
Dessa forma, ser autêntico, inautêntico, viver de modo próprio ou impróprio, pessoal
ou impessoal, não são estágios do desenvolvimento humano, como etapas pelas quais
passamos no decorrer da vida e que, uma vez atingidas culminariam com uma constância no

38
modo de se relacionar com o mundo e consigo mesmo. Trata-se, antes, de possibilidades em
jogo a todo instante no nosso existir, são modulações da transparência do ser-aí a si mesmo,
em que ora estamos imersos na cotidianidade, ora algo em nós se liberta da absorção do
mundo para fazer a experiência própria, isto é, se dar conta de que é absorvido pelo mundo
(NOVAES, 2016). Um exemplo disto pode ser encontrado no filme “Viver” (título original:
“Ikiru”), do diretor Akira Kurosawa, lançado em 1952. Trata-se da história de um chefe de
seção de Assuntos Municipais, o Sr. Watanabe, que é um funcionário exemplar em sua
repartição, sem uma única falta em 30 anos de serviço; ele encaixa-se à cabeceira da mesa de
seu escritório, a carimbar papéis que vão juntar-se aos que, arranjados em lotes e etiquetados,
transbordam das estantes e invadem o espaço de ação dos funcionários, numa aparente vitória.
Tomando essa imparável circulação de papéis como um organismo mais vivo do que as
pessoas que ali trabalham, facilmente entenderemos o sr. Watanabe como um morto-vivo –
ou, na linguagem da fenomenologia, como alguém imerso na cotidianidade mediana, em que
apenas ‘se vive’, num sentido impessoal e inautêntico. A história realmente tem início quando
o próprio sr. Watanabe toma consciência dessa condição e, após um exame médico, com a
suposta condenação a uns meses de vida, percebe que ainda não tinha começado a vivê-la.
Começa, então, uma febril procura por algo realmente significativo que ainda possa fazer e,
ao contrário do esperado numa situação dessas, nada faz de mirabolante, apenas retoma ao seu
trabalho, ao que sempre fez, de uma forma mais autêntica e pessoal, conscientemente
implicado em seus afazeres e mais ciente das possibilidades de seu existir.3
Uma psicoterapia sob esta perspectiva, em síntese, visa despertar e exercitar a reflexão
para que cada um se dê conta de como tem vivido e possa viver de modo mais autêntico,
consciente de seu poder-ser e do que está em jogo no seu existir, devolvendo o ser a si
mesmo. Trata-se de uma proposta que visa o cuidado-de-si.

O princípio do cuidado de si foi convertido nas fórmulas “ocupar-se


consigo”, “ter cuidados consigo mesmo”, “retirar-se em si mesmo”, “sentir
prazer em si mesmo”, “buscar deleite somente em si”, “ser amigo de si
mesmo”, “respeitar-se”, “prestar culto a si mesmo” etc.
(MATTAR; RODRIGUES, 2011, p.19)

Ao contrário do que este princípio parece supor, nada possui de egoísta, remete, antes,
à ética e à moral extremamente rigorosas do pensamento grego, helenístico e romano, e diz
respeito a “um exercício de si sobre si mesmo através do qual se procura se elaborar, se
transformar e atingir um certo modo de ser.” (FOUCAULT apud MATTAR; RODRIGUES,

3
Trecho inspirado na sinopse do filme encontrada no website: http://filmescult.com.br/viver-1952/

39
2011, p.24); em que cada qual que procure, facultativamente, a medida para a sua vida, o
controle de si mesmo e sobre si mesmo para, assim, exercer a liberdade de seu ser. Esse
exercício reflexivo, que é um trabalho de elaboração de si para consigo, em que se é o próprio
responsável por longo labor e que tem especial ênfase na proposta da psicoterapia
fenomenológica-existencial, não deve ficar restrito à prática clínica, mas, sim, deve ser visto
tal como uma filosofia de vida, uma prática de si, em que, ao retomar à existência o seu fazer
originário, faz com que cada um emerja para si como o autor de seu destino, tendo em vista as
possibilidades que se oferecem ao seu campo existencial. Nestes termos, então, é que se dá,
pela proposta deste trabalho, um modo de ser mais autêntico.

40
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do que foi apresentado neste trabalho, proponho pensar a autenticidade de


modo mais livre, sem condicioná-la a determinados comportamentos, modos de ser e se
vestir. Tal como a fenomenologia-existencial apresenta, a autenticidade não deixa de fazer
parte do ser do homem. Então, não importa como eu queira me afirmar ou com o que eu
possua identificação. É preciso, antes, compreender que há quem se fixe em determinados
modos de ser, mas que o ser do homem não é, como que por “essência”, limitado e, sim, essa
limitação é uma escolha individual, seja ela refletida ou não.
Dessa forma, não é necessário, tal como fazem os adolescentes, afirmar-se como
“sendo” algo, como se a “sua” autenticidade estivesse na constância do modo com o qual se
apresenta. Ou seja, independentemente de como escolhermos ser, para reivindicar uma
autenticidade, primeiramente, precisamos entender que ela não é um fenômeno individual,
não é ‘sua’ ou ‘minha’, mas um mero poder-ser si mesmo que, como vimos no terceiro
capítulo, não reside em um valor positivo. Diz respeito, antes, à negatividade originária do ser
do homem. Isto é, se não há um sentido a priori para a existência e, por isso, esta pode
assumir qualquer valor, significa que não há um valor intrínseco, um sentido simplesmente
dado para o existir.
Em geral, a autenticidade é entendida como essa fixidez porque – assim como cópias
de papéis originais e oficiais precisam ser autenticadas, para serem reconhecidas como
verdadeiras –, tendemos a compreender como verdadeiro (autêntico) algo que se apresenta
igual a si mesmo. Daí a exigência, e até pressão, social para a manutenção e sustentação de
uma constância no modo de ser. Inclusive, quando uma pessoa é compreendida como
inconstante, tendemos a não confiar nela e até julgá-la “falsa” (tal como um documento não
autenticado).
Por outro lado, na atual fase do capitalismo, que se encontra mundial e integrado, há o
estímulo tanto à fixidez quanto à flexibilidade quando este requer que adotemos “estilos”
(previamente montados) que são “a nossa cara”. Ou seja, ao mesmo tempo em que eu escolho
qual estilo eleger como o meu, essa escolha partiria de algo que em mim seria fixo ou
essencial. Também é possível perambular entre os diferentes estilos pela ideia de que
podemos ser o que quisermos. Na verdade, vende-se a ideia de que como consumidores
devemos ser maleáveis e múltiplos, dividuais. E se é assim, o que há é uma ausência de
determinação a priori. Por isso podemos ser o que quisermos, o nosso ser não é determinado.
Se há uma essência, ela é “devir”, isto é, “vir a ser”, é mutável, adaptável, a partir da escolha

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individual. Há, assim, um empoderamento do indivíduo, cuja liberdade de escolha é
estimulada, ao passo em que, para cada qual afirmar-se como “sendo” algo, precisa sustentar
um modo de ser em toda sua expressão, por exemplo, através das roupas, dos hábitos, dos
trejeitos, etc. Isso pode ocorrer consciente ou inconscientemente, no sentido de que as
experiências podem ou não virar tema de reflexão para o sujeito.
Dessa forma, somos mais ou menos autênticos, dependendo do quanto nos
apropriamos do modo como estamos vivendo e nos relacionando, ou seja, do quanto estamos
presentes para nós nos momentos do nosso existir, analisando as circunstâncias
sociohistóricas que nos condicionam a viver desta ou daquela maneira. Se percebo as
possibilidades que rondam a minha existência, que esta não pode ser limitada a “estilos de
vida”, se me responsabilizo pelo seu desenrolar, estou na autenticidade do meu ser. Caso
contrário, se apenas vivo mecanicamente, sem problematizar as possibilidades da minha
existência, sem me apropriar dela, vivo de modo impróprio, impessoal e inautêntico. Neste
contexto, é importante ressaltar que a autenticidade ou inautenticidade são possibilidades do
ser do homem e que elas não são uma constante, mas, sim, ora estamos mais atentos, ora mais
desconectados de nós mesmos e do poder-ser do nosso ser. Trata-se, antes, de um exercício
meditative (reflexivo), pois até os que se julgam atentos podem estar vivendo,
momentaneamente, na inautenticidade, assim como o contrário também é possível. Nosso ser
não é uma constância, ele oscila dependendo dos momentos, do que está em jogo em nosso
existir.

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[produção]. Distribuidora internacional: Janus Films, 1956 [lançamento]. (2h 23min). Título
original: Ikiru.

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