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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

A transição da vergonha ao orgulho na defesa de uma identidade


negra cristalizada

Trabalho de Conclusão de Curso

Daiane de Jesus Santos

São Cristóvão - Sergipe


2024
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

Daiane de Jesus Santos

A transição da vergonha ao orgulho na defesa de uma identidade


negra cristalizada

Trabalho de Conclusão de Curso submetido ao


Departamento de Psicologia da Universidade Federal de
Sergipe como requisito parcial para a obtenção do título
de Bacharel em Psicologia.

Orientador: Prof. Dr. Bruno Cerqueira Gama

São Cristóvão - Sergipe


2024
Dedico esse trabalho a todos que me
incentivaram, durante a graduação, a gritar
entre as linhas.
DAIANE DE JESUS SANTOS

A TRANSIÇÃO DA VERGONHA AO ORGULHO NA DEFESA DE UMA


IDENTIDADE NEGRA CRISTALIZADA

Trabalho monográfico apresentado à


Universidade Federal de Sergipe como parte dos
requisitos para conclusão da graduação no curso
de Psicologia – Habilitação e Formação em
Psicologia.

Aprovada em ___/___/___

Banca Examinadora:
______________________________________________________________________

Prof. Dr. Bruno Cerqueira Gama


Universidade Federal de Sergipe (Orientador)
______________________________________________________________________

Prof. Dr. Leomir Cardoso Hilário


Universidade Federal de Sergipe
______________________________________________________________________

Prof. Dr. Helmir Oliveira Rodrigues


Universidade Federal de Sergipe

______________________________________________________________________
Prof. Dr. Lázaro Batista
Universidade Federal de Alagoas
Agradecimentos

Essas linhas pertencem a uma garotinha tímida e de língua afiada, às vezes a resposta
não estava na ponta da língua, mas estava sendo maquinada. Sempre gostou de dança, música,
se arriscou até no teatro, havia algo que palpitava para ser expressado, por isso, já fui de
briguenta a serena, de calada a conversadeira, de mal-humorada a abestalhada, tudo em um só
corpo. Obrigada: Dai, Nani, Naninha, Dani, Dadai, Daiane, todas vocês representam uma só, e
que se transforma diante do olhar do outro.
Eu tive o privilégio de conhecer minhas duas avós (Guilhermina e Dona Zufinha).
Com a minha vó Guilhermina eu aprendi que amor é demonstrado nas pequenas coisas, como
nós duas sentadas na esteira, no terreiro do sítio, enquanto ela fazia bolinho de feijão com
farinha para molhar no molho do caranguejo. Naquela época minha alergia era bem mais leve,
mas eu me permiti viver esse momento, que é uma das minhas lembranças mais preciosas.
Com minha avó da Chinduba (que é como eu e meus irmãos a chamávamos carinhosamente),
Dona Zufinha eu aprendi sobre comunidade, ela convidava dezenas de pessoas para o seu
caruru, que já era um evento anual, lembro da gente sentadas junto aos meus primos enquanto
cortávamos centenas de quiabos, nunca pude provar por causa do camarão, mas o sabor ficou
na minha lembrança.
Essas mulheres acima formaram mainha (Diana), que foi quem me formou. Faltam
linhas para falar sobre a nossa relação, sem dúvida alguma, ela conhece todas as faces de
Daiane (que para ela é Nani ou Naninha). É a pessoa que mais me viu chorar e, também, a que
mais me viu sorrir, somos companheiras uma da outra. Com ela eu tive as maiores brigas e
meus maiores sincericídios. Posso dizer que essa é nossa maior prova de amor, sem ela eu não
estaria aqui hoje, essa conquista também é sua!
Agradeço aos meus irmãos David e Kelvin por serem implicantes e chatos, mas
também, parceiros e protetores. Obrigada por sempre torcerem por mim desde quando
tentaram me ensinar a andar de bicicleta, não foram bons professores (eu até hoje não sei
bem, mas não nego minha culpa nisso). Agradeço a Foster, meu eterno companheiro canino,
que está brilhando no céu.
A toda a minha grande família, que sempre esteve ao meu lado, com todo o carinho:
Tia Valdivia, Tia Nice, Mônica (minha madrinha), Tio Nezinho (meu padrinho), Tio Valter,
Tio Miro, Vânia, Lita. Meus companheiros de risadas e brigas (primos): Nina, Walesson,
Isadora, Lucas, Dominique, Ray. Meu bebês: Cauê, Walace, Lore, Laura e Ravi.
Faço uma menção especial aos meus primos Lucas e Isadora. Lucas foi o primeiro da
família a pisar na UFS e foi quem me esperou, para me levar na matrícula, foi quem me
apoiou em todos os momentos antes da entrada, com as redações que fazia comigo, até a saída
da universidade. Isadora, que sempre foi minha parceira, que ouviu minhas reclamações do
curso e partilhou as suas experiências com o seu de licenciatura em inglês. Sem ela eu não
dormiria na volta do escolar às 22:30, depois de um dia exaustivo. Serei eternamente grata por
tudo isso.
Da minha formação escolar nunca irei esquecer de Givaldo, meu professor querido de
biologia do ensino médio, que sempre me confortou na escola e que inconscientemente
demonstrava que aquele espaço também era meu. Também, menciono Henrique que
promoveu inquietações, com discussões de temas que muitos não queriam mencionar. Por
fim, reconheço o professor do cursinho Almir Santana, um dos maiores exemplos de cuidado,
respeito e coragem que eu tive na minha vida. Agradeço aos meus amigos do ensino médio
que mostraram que a frase “ do terceirão para a vida” não é uma falácia: Antônia, Érica e
Vinícius.
Sobre a minha história na graduação eu não poderia deixar de mencionar minha
companheira de curso, que hoje também é uma parceira de vida, Duda (minha irmã de outra
mãe). Desde o início enfrentamos dificuldades juntas, primeiro com o apagão à noite na nossa
primeira semana quando não sabíamos achar a saída nem de dia. Obrigada por todos os
sorvetes compartilhados com lágrimas no central park, obrigada pelo colo, obrigada por
deixar meus dias dentro da universidade e fora dela mais alegres.
Aos meus amigos que fui me aproximando durante os anos de graduação. Meu trio
maravilhoso: Maiza, Dani e Bia, juntas fizemos trabalhos, compartilhamos fofocas, fomos a
todas as festas e desabafamos. A graduação também me trouxe outros presentes como: Hal,
Nidinho, Luan, Maykon, Talison, Karolzinha, Nay, Jess, Jhonan, Sara, Samara, Denis, Victor,
Yandra. Não poderia deixar de mencionar o grupinho do pibic, que mais do que pesquisa, me
permitiu ter outra experiência com a universidade, sendo assim, menciono: Tainara, João e
Edu.
Faço questão de ressaltar algumas parcerias que se formaram durante o curso. Minha
loira (Maiza) foi mão para toda obra em todos os buracos que nos metemos na universidade.
Acho que mais de 90% das optativas fizemos juntas. Obrigada por ser minha duplinha dentro
e fora da UFS. Não poderia deixar de mencionar Halzinho, meu parceiro de monografia.
Compartilhamos frustrações e inseguranças, ainda que em caminhos diferentes. No segundo
momento, você ainda se fez presente.
Agradeço ao CAPS Arte de Viver, da minha cidade, que me deu a oportunidade de
realizar meu estágio institucional. Lá, aprendi que o cuidado em psicologia não se restringe a
salas, nem a espaços, mas sim à escuta e às pessoas. Agradeço ao psicólogo Gladson Lima,
que foi meu preceptor e parceiro nessa jornada. Suas orientações não compuseram somente
meu estágio, mas também minha vida pessoal e meu futuro profissional. Agradeço a toda
equipe do serviço, que me apoiou durante esses quase 7 meses.
Por fim, mais com certeza muito importante, agradeço a Bruno Gama, meu orientador
neste trabalho, mas também orientador em muitos momentos nesta graduação. Agradeço por
acreditar em mim até mesmo quando eu não acreditei! Obrigada por não fazer essa
experiência ser dolorosa, mas sim, de construção de confiança. Ademais, agradeço aos
seguintes professores, que tive a honra de conhecer nesse processo de formação, são eles:
Leomir Hilário, Sandra Raquel, Frederico Leão, Daniel Coelho, Marcelo Ferreri.
Iroh “Zuko, você deve deixar seus sentimentos de vergonha
se quiser que sua raiva vá embora”
Zuko “Mas eu não tenho nenhuma vergonha, estou mais orgulhoso do que nunca”
Iroh “Príncipe Zuko, orgulho não é o oposto da vergonha, mas é a fonte dela” (Avatar, 2005,
Ep. 9, Temp. 2).
RESUMO

Esse ensaio aborda a temática da transição do sentimento de vergonha para o


de orgulho na defesa de uma identidade negra. Nesse sentido, investiga como esses
sentimentos constituem-se no sujeito negro no cenário brasileiro diante do racismo, e
como essa dinâmica produz efeitos específicos na defesa de uma identidade negra.
Para esse exame, utilizou como método de análise a escrevivência, que consiste na
escrita de narrativas oriundas de vivências e observações do cotidiano. Sendo assim,
três narrativas foram desenvolvidas acerca do tema, logo, foi possível problematizar
como o sentimento de vergonha para o sujeito negro se articula com o racismo, que o
coloca em uma posição subalterna em relação ao branco, já o orgulho ascende como
mecanismo de defesa a essa violência. Todavia, o orgulho, baseado na política
identitária que cristaliza a identidade negra, reduz a diversidadede experiências negras,
fomentando, por vezes, cisões na luta antirracista.

Palavras-chave: orgulho; vergonha; identidade; política identitária; racismo


ABSTRACT

This essay deals with the theme of the transition from the feeling of shame to that of
pride in the defense of a black identity. In this sense, it investigates how these feelings
are constituted in the black subject in the Brazilian scenario in the face of racism, and
how this dynamic produces specific effects in the defense of a black identity. To do
this, she used the method of analysis escrevivência, which consists of writing
narratives from everyday experiences and observations. Thus, three narratives were
developed on the subject, and it was possible to verify that the roots of the feeling of
shame for the black subject emerge from racism, which places them in a subordinate
position in relation to whites, while pride rises as a defense mechanism against this
violence. However, pride, based on identity politics that crystallizes black identity,
reduces the diversity of black experiences, fostering splits in the anti-racist struggle.

Keywords: pride; shame; identity; identity politics; racism


Lista de abreviaturas e siglas

DNA DeoxyriboNucleic Acid


EUA Estados Unidos da América
FGV Fundação Getulio Vargas
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
LR Letramento Racial
PIBIC Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
UFS Universidade Federal de Sergipe
Sumário

1. Introdução 13
1.1 Contextualização e motivação 13
1.2 Objetivos 19
1.2.1 Geral 20
1.2.2 Específicos 20
1.3 Método 20

2. Cena 1: uma estética disciplinar 23

3. Cena 2: e eu não mereço ser livre para amar? 39

4. Cena 3: onde é o meu lugar? 50

5. Agrupando o que vivi, o que vi e o que pari 61

Referências Bibliográficas 64
12

1. I NTRODUÇÃO

1.1 Contextualização e motivação

Sendo este o meu último trabalho dos 5 anos de graduação, dei-me o direito de
cometer minha última rebeldia. Assim, a escolha do ensaio como a forma desse trabalho
ocorreu partindo do que Larrosa (2003, p. 102) afirma “[...] refletir sobre o ensaio como uma
das figuras do que é excluído da academia, pelo menos das formas de saber e de pensar que
dominam no mundo acadêmico.” Não há outra forma de produção que me representasse tão
bem, uma vez que também sou uma das figuras excluídas da academia. Assim, de início,
ressalto que não espere um texto com a perseguida pureza acadêmica na sua estruturação e
linguagem, mas sim a impureza na sua temática e escrita. Eu escolhi escrever sobre o
silenciado, de forma que eu não me silencie, mais uma vez, durante o processo. Com isso,
meu papel não é de uma investigadora neutra, e sim como apontou Larrosa (2003), de uma
leitora que escreve e constrói narrativas!
O tema dessa pesquisa surgiu em meio ao projeto de pesquisa, no Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), do Prof. Dr. Bruno Cerqueira Gama,
que trabalhava a temática da Negritude e Prazer, por meio da análise da obra de Isildinha
Baptista Nogueira, 2021. A vergonha de si era um dos capítulos do livro A Cor do
Inconsciente: Significações do Corpo Negro (2021), nesse encontro foi discutido como o
sentimento de vergonha ascende no sujeito negro e suas consequências na subjetividade deste.
A partir disso, como estudante universitária negra observei, ao longo da minha
graduação, a dinâmica da passagem do sentimento de vergonha para o de orgulho na busca
pela identidade dentre diversos jovens negros. Nesse sentido, o presente trabalho busca
analisar tal questão por meio da construção de narrativas, isto é, que trazem, sem
compromisso em necessariamente relatar e/ou descrever fatos, trazer a intensidade do vivido
de situações reais que experienciei/observei. As cenas levantadas aqui não devem ser
entendidas como relatos, pois não se apresentam apenas como um dado imparcial, mas sim
como fonte e recurso para a discussão do tema proposto com o olhar e escrita parciais de uma
jovem negra.
13

As narrativas construídas neste trabalho apresentam-se a partir de escrevivências, um


método de produção no qual quem esteve silenciado durante sua formação pode alçar voo,
preenchendo lacunas com um novo/antigo olhar, que anteriormente não foi expresso. Aqui
surge através de experiências individuais, que ao serem escritas podem tornar-se coletivas.

[...] Ela se presta a uma subversão da produção de conhecimento, pois, além de


introduzir uma fissura de caráter eminentemente artístico na escrita científica,
apresenta-se por meio da entoação de vozes de mulheres subalternas e de sua
posicionalidade na narração da sua própria existência. (Soares & Machado, 2017, p.
207).

Baseando-se nisso, a dinâmica da passagem do sentimento de vergonha para o de


orgulho na defesa de uma identidade negra passa a ser meu objeto de análise. Desse modo,
pretende-se investigar, neste trabalho, a sobreimplicação do sujeito negro que ao ultrapassar o
sentimento vergonha alcança uma nova dimensão de defesa: o orgulho que se faz sustentáculo
de uma identidade1 negra performática, a qual precisa estar em constante processo de
reforçamento.
Para conceituar a sobreimplicação faz-se necessário apresentar outro termo, o de
implicação, que trata da relação que o sujeito tem com que está instituído, isto é, aquilo que
está estabelecido numa lógica de conservação e permanência. Nesse sentido, a análise de
implicação possibilita a reflexão acerca da posição do sujeito no duelo de forças entre o
instituído e o instituinte (aquele que se opõe à conservação a partir da revolução). Tendo isso
em vista, a sobreimplicação, outro polo da implicação, trata-se do engajamento profundo na
instituição, impedindo que a implicação do sujeito seja analisada. (Romagnoli, 2014)
Temática esta que propomos neste escrito como passível de encontro com alguns
elementos da atual formação da identidade negra brasileira, constantemente em tensão devido
ao processo de constituição do país. A miscigenação trouxe novas perspectivas sobre
identidade racial, que pautam desde os aspectos biológicos, que defendem a ausência de uma
pureza racial no país, aos sociais, os quais refletem sobre uma característica da sociedade
brasileira, na qual o fenótipo é o principal parâmetro para a designação racial.
É nesta perspectiva que sinalizamos que a sobreimplicação atribuída nesta pesquisa
diz respeito a uma ideologia normativa do excesso, na qual o sujeito negro está a todo instante
comprometido com uma identidade negra cristalizada (ou seja instituída), utilizando-se do

1
“ “Identidade” é um fenômeno real: ela corresponde ao modo que o Estado nos divide em indivíduos, e ao
modo que formamos nossa individualidade em resposta a uma ampla gama de relações sociais” (Haider, 2019,
p. 36).
14

orgulho racial como mecanismo de defesa para essa conservação, logo, ele restringe seu olhar
a uma única forma de compreensão sobre a negritude, impedindo que novas formas de
vivenciá-la sejam experimentadas (isto é, impedindo que o instituinte atue) devido a um viés
sociopolítico restritivo (Lourau, 2004).
Seguindo essa discussão, torna-se fundamental apresentar algumas concepções acerca
da negritude, uma dessas é a de Aimé Césaire (2004, p. 85, apud Audebert, 2022, p. 7) em
que
“[...] a negritude tem sido uma forma de revolta, primeiro contra o sistema
mundial da cultura tal qual se tem constituído durante os últimos séculos o
qual se caracteriza por um certo número de preconceitos, de pressupostos
que levam a uma severa hierarquia. De qualquer maneira, a negritude foi
uma revolta contra o que chamarei de reducionismo europeu.”

Já Domingues (2005) amplia o olhar sobre o conceito de negritude, apresentando


novas dimensões que são apontadas logo a seguir:

[...] negritude passou a ser um conceito dinâmico, o qual tem um


caráter político, ideológico e cultural. No terreno político, negritude serve de
subsídio para a ação do movimento negro organizado. No campo
ideológico, negritude pode ser entendida como processo de aquisição
de uma consciência racial. Já na esfera cultural, negritude é a
tendência de valorização de toda manifestação cultural de matriz
africana. Portanto, negritude é um conceito multifacetado, que precisa
ser compreendido a luz dos diversos contextos históricos. (Domingues,
2005, p. 25-26).

Tendo isso em vista, Fernandes & Souza (2016) propõem-se a analisar o papel das
representações sociais na construção da identidade a partir da perspectiva de Stuart Hall. Tal
concepção aponta que a identidade do sujeito negro passa por diversas representações sociais,
isto é, construções culturais que impõem significados através da linguagem. Nesse sentido,
com base num resgate histórico, tem-se o negro no período escravagista como objeto, a
ferramenta de produção de riqueza para o branco. A ele era negado humanidade, sendo visto
como mercadoria sem alma, que deveria seguir o ordenamento dos “seus senhores”.
Posteriormente, após a abolição da escravatura, ele já não ocupa mais a posição de sem alma,
mas sim a de inferior ao branco.

Entre a segunda metade do século XIX até meados do século XX, mais
precisamente a década de 1930, a sociedade brasileira foi fortemente influenciada
por teorias racistas importadas da Europa. Essas teorias se pautavam pelas
discussões acerca da origem da espécie humana. Segundo elas, as diferenças étnicas
seriam fruto da superioridade ou da inferioridade de determinados grupos humanos
sobre outros. Nesse sentido, muitos cientistas passaram a desenvolver argumentos
15

que justificavam a inferioridade da população que não fosse de origem europeia


(Pinto & Ferreira, 2014, p.258).

Diante de tal resgaste, percebe-se que ao longo da história brasileira o “sujeito negro”
emergiu a partir das concepções racistas, que são presentes nas representações sociais que
violentam e desprezam pessoas negras. Neste âmbito, ao buscar defender uma identidade
negra positiva, o sujeito enfrenta novos desafios, um desses constitui-se através do risco da
sua sobreimplicação nesse processo. A sobreimplicação apontada refere a um olhar exclusivo
a uma única perspectiva, sem outras possibilidades de análise, sendo assim, o sujeito negro
sobreimplicado na constução de uma identidade negra pode recorrer a uma negritude
performativa.
Judith Butler desconstrói a noção de gênero como característica natural ao apontar que
ele se trata de uma construção social, que se estabelece através da performatividade. Nesse
sentido, a performatividade de gênero se dá a partir de manifestações (atos, linguagem e
imagem) repetitivas com padrões que estabelecem um corpo normativo. Esse constitui-se
mediante a construção de uma coerência entre sexo, gênero e desejo na elaboração de um
corpo heteronormativo (apud Borba, 2014). Nesse sentido ela aponta

[...] Esses atos, gestos e atuações, entendidos em termos gerais, são


performativos, no sentido de que a essência ou identidade que por outro lado
pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos
corpóreos e outros meios discursivos. O fato de o corpo gênero ser marcado
pelo performativo sugere que ele não tem status ontológico separado.
(Butler, 2018, p. 182).

Utilizando-se dessa investigação, propõe-se aqui, timidamente, a delimitação de uma


negritude performativa. Com isso, a negritude performativa que trago a discussão é formada
a partir de uma normatividade estética, afetiva e política, a qual se estabelece por meio do
orgulho excessivo. Excessivo, pois para se manter ele precisa negar, constantemente, as
representações sociais negativas imputadas ao sujeito negro e fomentar uma identidade negra
positiva. Nesse processo, para assegurar essa dinâmica ele passa a estabelecer um modelo de
padronização e universalização da negritude.
Desse modo, uma negritude performativa seria um padrão de um corpo que ao longo
da história foi subjugado, que encontra-se submisso a um modo específico de vivenciar a
negritude, tanto no seu viés estético quanto no comportamental, que determinaria a existência
do sujeito negro. Sendo assim, tendo em vista a pluralidade de raízes do país, o presente
trabalho busca levantar novas questões sobre a identidade negra e seu percurso da vergonha
16

ao orgulho e as implicações que tal linha pode deparar-se. Para tanto, levantamos questões
sobre uma possível padronização das formas de ser e existir como sujeito negro, a qual pode
se manifestar também como um potencial mecanismo de apagamento histórico e cultural,
além de servir como estratégia contra a construção de (micro) revoluções.
Mediante tais apontamentos, é preciso analisar a experiência de ser negro no Brasil,
que se apresenta como um prolongamento do Período Colonial, no qual o sujeito deixou de
ser apenas pessoa para se tornar um corpo negro. Foi a partir dessa condição, que ele passou a
ser desumanizado ao ser inferiorizado pelo branco, que assume lugar de destaque na
sociedade, logo, o negro, na concepção do branco, passa a ser meramente um objeto no
espaço branco.
Como exemplo, podemos apresentar alguns dados do Atlas da Violência de 2020 que
constatam a continuidade de tal período na atualidade, uma vez que a taxa de homicídio de
pessoas negras no país aumentou 11,5% em uma década, de 2008 a 2018, enquanto o índice
para pessoas não negras reduziu em 12,9%. Tal estado denuncia que o alvo para violência no
país tem como sua principal característica o fenótipo negro. Essa realidade é legitimada pelo
Estado que em sua instância neoliberal, marcada pelos pilares do desejo, do mercado e da
morte, modulam a lógica colonial a partir da necropolítica2 (poder de morte) que define quem
deve morrer, que no contexto abordado é representado na figura do sujeito negro. (Mbembe,
2011)
Dada a situação apresentada, o mercado de trabalho é também um dos campos que
refletem as condições de marginalização nas quais, no qual o sujeito negro é
instrumentalizado para a obtenção de lucro a partir da exploração capitalista. Assim, dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2022, apontam que as diferenças
salariais, com base na raça, estão presentes em todas as esferas de qualificação, pessoas
brancas ganharam em média 50% a mais que pessoas negras. Com isso, percebe-se que
independente do nível de instrução, a carne mais barata do mercado continua sendo a carne
negra. (Seu Jorge, Yuca & Capellette, 1998)
Estes dados são essenciais para a compreensão da condição do negro no Brasil, a fim
de que as nuances do racismo sejam amplamente discutidas. Nessa perspectiva, os dados do
Censo Agro, 2017, retratam mais uma situação sintomática acerca da continuidade da
estratificação social do país, uma vez que a população negra continua sem concentrar terras

2
A necropolítica é a forma de exercício da soberania que se funda na expansão da lógica colonial, tendo em vista
que a reprodução das condições objetivas e subjetivas da vida econômica se estabelece com a constante
depreciação da vida material, com o aprisionamento do desejo na forma de mercadoria e com a financeirização
de todos os âmbitos da vida (Almeida, 2021, p. 9).
17

em suas mãos, pois 79,1% dos proprietários de grandes estabelecimentos agropecuários (com
mais de 10 mil hectares) eram brancos, enquanto apenas 17,4% eram pardos e 1,6% eram
pretos. Nesse sentido, constata-se que há uma política de gestão racial de terras, que permite a
permanência do perfil dos detentores de terras ao longo da História.
Diante de tais condições, o mecanismo de violência, exploração e marginalização se
atualiza na promoção da pobreza para a população negra, assegurando o lucro do explorador
branco. Esse é o pacto firmado por brancos na sociedade brasileira, ele não é verbalizado, mas
visa manter o status quo (Bento, 2002). Sendo assim, Um dado sintomático que corrobora esta
afirmação é que, em 2021, segundo o IBGE (2022), considerando-se a linha de pobreza
monetária proposta pelo Banco Mundial, o índice de pessoas pobres no país era de 18,6%
entre brancos e quase o dobro disso tanto para os pretos (34,5%) quanto para os pardos
(38,4%).
Por fim, o antropólogo Kabengele Munanga nos diz que no Brasil: “(...) nosso
racismo é um crime perfeito: além de matar de verdade, fisicamente, ele mata pelo silêncio:
tanto a consciência das vítimas como a da sociedade como um todo, dos brancos e negros”
.(Munanga, 2015, p.13). Sendo assim, é mediante circunstâncias de violência, como a
degradação e exploração do corpo, sendo tratado como ferramenta sem alma e valor que o
sentimento de vergonha emerge no sujeito negro que se sente impotente, uma vez que esse
não vê forma de transformar sua realidade (Nogueira, 2021). O processo de inferiorização do
negro surge após um duplo processo: inicialmente econômico, que é notável a partir dos
dados sobre a linha da pobreza e pela baixa concentração de terras em mãos negras, e em
seguida pela interiorização dessa inferioridade (Fanon, 2008). Desse modo, o sujeito negro
passa almejar extinguir a sua desumanização, assim, Fanon (2008, p.106) afirma, em seu livro
Pele Negra Máscaras Brancas, “[...] queria ser homem, nada mais do que um homem. Alguns
me associavam aos meus ancestrais escravizados, linchados: decidi assumir”.
É a partir desse cenário que entendemos que o orgulho aparece como modo de
transformação. O sujeito negro passa por um processo de mudança na origem da extração da
sua libido, que antes dava-se a partir do mundo branco (seu objeto anterior), para tornar-se a
busca da identidade negra, seu novo objeto de investimento libidinal (Freud, 1914). Tal
processo, apesar de ser empreendido como forma de combate ao racismo, apresenta mais um
caminho de angústia, uma vez que o medo de fracassar está sempre presente na busca dessa
identidade.
Tal angústia faz com que o sujeito invista cada vez mais sua energia no seu
fortalecimento egóico. Isso ocorre devido a necessidade de negação das representações sociais
18

racistas que foram imputadas ao negro no Brasil, logo, forma-se uma demanda excessiva de
autopositivação, na qual ele precisa estar a todo instante em um ciclo de negação e afirmação
de si. Dessa maneira, o recurso utilizado para esse processo é o orgulho racial excessivo, que
surge como resposta ao racismo, na tentativa de manutenção da negritude performativa, como
modo de manter uma imagem positiva de si.
É nesse contexto, que o sujeito negro passa a construir um nova forma de
subjetividade, essa é a militância. A militância que eu apresento não é a política, mas a
militância como modo de vida, na qual a defesa de uma identidade negra passa a imperar, “[...]
trata-se de um processo identificatório igualmente calcado em procedimentos de exclusão e
vedamento e que também resulta na repetição estéril do próprio terreno que pretendia
transformar”(Figueiredo, 2018, p.207). O sujeito apontado no trecho acima é o
sombreimplicado, que limita-se a repetição sem análise daquilo que defende, no contexto
presente neste trabalho, a identidade negra cristalizada, estabelecida por meio do orgulho
racial, é aquilo que se repete, é o instituído.
A análise que este trabalho busca realizar constitui-se no exame da transição do
sentimento de vergonha para o de orgulho na defesa de uma identidade negra cristalizada.
Assim, a política identitária3 ascende como elemento que precisa ser problematizado na
sociedade liberal, uma vez que ela passa a pautar a individualização de opressões (racismo,
sexismo etc.), corroborando com a neutralização de movimentos coletivos contra opressões
capitalistas. Assad Haider (2019) expõe tal questão no trecho a seguir:

[...] Na sua forma ideológica contemporânea, diferentemente da sua forma


inicial como teorização da prática política revolucionária, a política
identitária é um método individualista. Ela é baseada na demanda individual
por reconhecimento, e toma essa identidade individual como ponto de
partida. Ela assume essa identidade como dada e esconde o fato de que todas
as identidades são construídas socialmente. E porque todos nós temos
necessariamente uma identidade que é diferente da de todos os outros, ela
enfraquece a possibilidade de auto-organização coletiva. (Haider, 2019, p.51)

Nesse sentido, o sujeito negro que está sobreimplicado na defesa de uma identidade
negra, corre o risco de promover cisões na luta pela transformação social ao cristalizar essa
identidade, através de uma negritude performativa. Com isso, objetiva-se explorar esse risco
na análise da transição da vergonha para o orgulho na defesa de uma identidade negra
totalizante, que produz reducionismos nas formas de experimentação da negritude.

3
Em acordo com Haider: “(...) defino a política identitária como a neutralização de movimentos contra a
opressão racial. É a ideologia que surgiu para apropriar esse legado emancipatório e colocá-lo a serviço do
avanço das elites políticas e econômicas. (Haider, 2019, p. 38)
19

Baseando-se na discussão abordada, surge uma necessidade de realização de pesquisas


sobre o papel do orgulho na esfera da população negra na defesa da sua identidade.
20

1.2 Objetivos

1.2.1 Geral

O objetivo deste trabalho é realizar uma problematição sobre como os sentimentos de


vergonha e orgulho constituem-se no sujeito negro no cenário brasileiro diante do racismo, e
como essa dinâmica produz efeitos específicos na busca por uma identidade negra positiva.

1.2.2 Específicos

Com a finalidade de pormenorizar o objetivo geral, os seguintes específicos foram


tratados:

• Analisar as raízes dos sentimentos de vergonha e orgulho no sujeito negro;


• Investigar como a vergonha afeta o sujeito negro ao longo de sua trajetória;
• Refletir sobre a dinâmica entre a passagem do sentimento de vergonha para o de orgulho no
negro;
• Examinar o orgulho como ferramenta fundamental na defesa de uma política identitária que
estabelece paramêtros de performance estética, afetiva e política para o ser negro;

1.3 Método

A forma adotada nesta pesquisa foi o ensaio, que foi utilizado como recurso que
permitisse produzir conhecimento com base em outras formas de escrita, não apenas as
consagradas na academia, mas sim, aquelas atravessadas pela criatividade e pela arte. O
ensaio está entre zonas, segundo Larrosa (2003, p. 106) :

“[...]confundiria ou atravessaria a distinção entre ciência,


conhecimento, objetividade e racionalidade, por um lado; e arte, imaginação,
subjetividade e irracionalidade por outro. O que o ensaio faz é colocar as
fronteiras em questão. E as fronteiras, como se sabe, são gigantescos
mecanismos de exclusão.
21

Nesse sentido, baseando-se no método da escrevivência produziu-se narrativas, que


retratam a temática em questão. A escrevivência é marcada por seu caráter ético ao promover
o protagonismo de histórias invisibilizadas, é a possibilidade de enunciação de um eu
coletivo, através de narrativas que exprimem as vivências de um “nós” compartilhado
(Soares, Machado, 2017).
Escrevivência, em sua concepção inicial, se realiza como um ato de
escrita das mulheres negras, como uma ação que pretende borrar, desfazer
uma imagem do passado, em que o corpo-voz de mulheres negras
escravizadas tinha sua potência de emissão também sob o controle dos
escravocratas, homens, mulheres e até crianças. E se ontem nem a voz
pertencia às mulheres escravizadas, hoje a letra, a escrita, nos pertencem
também. Pertencem, pois nos apropriamos desses signos gráficos, do valor
da escrita, sem esquecer a pujança da oralidade de nossas e de nossos
ancestrais. Potência de voz, de criação, de engenhosidade que a casa-grande
soube escravizar para o deleite de seus filhos. E se a voz de nossas ancestrais
tinha rumos e funções demarcadas pela casa-grande, a nossa escrita não. Por
isso, afirmo: “a nossa escrevivência não é para adormecer os da
casa-grande, e sim acordá-los de seus sonos injustos” (Evaristo, 2020,
p.30. Grifo nosso)

A escolha da escrevivência como ferramenta analítico-metodológica é ético-política,


uma vez que retira a máscara invisível que silencia mulheres negras diariamente. Com isso,
pode-se ter acesso a uma nova forma de rigor científico que amplifica a possibilidade dessas
mulheres analisarem a história do país a partir dos seus olhos.
Nesse sentido, Malheiro & Nadier (1987) defendem uma função social para
psicologia, a de transformação social das relações de exploração, assumindo outros conceitos,
métodos de produção de conhecimento, isto é, uma outra concepção de ciência. A
escrevivência faz isso ao possibilitar novas formas de produção de saberes científicos. Sendo
assim, não se trata de uma biografia, pois não busca contar a história de vida de uma pessoa,
nem literatura, pois apesar de subverter os ditames tradicionais da escrita acadêmica, através
de um caráter artístico, ela não descreve apenas uma história.
Tendo isso em vista, o trabalho em questão segue um padrão de construção que visa
analisar e elaborar criticamente o tema abordado. As cenas são apresentadas em três capítulos:
Cena 1: uma estética disciplinar; Cena 2: e eu não mereço ser livre para amar?; Cena 3: onde
é o meu lugar? A seguir apresentam-se sínteses sobre essas cenas.
Cena 1: uma estética disciplinar traz a experiência de Camila. Desde a infância até a
fase adulta, tendo como eixo central o seu cabelo, apresentando como esse ao longo da sua
história foi submetido a uma estética disciplinar, que normatizou as formas que ele deveria ser
utilizado, através de violência. Tal condição gerou em Camila sentimentos como a vergonha
de si.
22

Cena 2: eu não mereço ser livre para amar? apresenta a história de Ester. Uma
pesquisadora sobre a população negra, que retrata sua história com o amor. Acreditando que
não seria uma vivência possível para ela num primeiro momento, depois arriscando a vivê-lo
em dois relacionamentos. O último desses, com um homem branco, devido a isso ela passou a
ser acusada e atacada por outras pessoas negras, que repudiavam relacionamentos
inter-raciais, na defesa do orgulho racial.
Cena 3: onde é o meu lugar? narra a vivência de Pedro. Um jovem negro que vive
num bairro cuja a vizinhança é majoritariamente branca. Nesse sentido, ele passa a sentir a
sensação de estar em um não-lugar, até que um aluno novo, também, negro entra em sua
classe. A partir disso, Pedro começa a buscar uma identidade negra, até que acredita que
poderá alcançá-la através de sua herança racial, assim, o teste de ancestralidade surge como a
resposta a essa demanda.
Para descrever a elaboração dessas cenas utilizarei a afirmação de Bianca Santana
(2015) ao trazer em seu livro histórias de pessoas em momentos que “se descobriram negras”,
a afirmativa é a seguinte: as que vivi, as que ouvi e as que pari! Neste trabalho, essa frase
segue a seguinte alteração: as que vivi, as que vi e as que pari. Essa modificação, deve-se ao
fato que essas cenas tratam de vivências, observações do cotidiano e criações. Apesar dos
elementos semelhantes, uma das principais diferenças desse trabalho em relação ao de Bianca
Santana, é que ela separa os textos do seu livro nessas três categorias, no entanto, este ensaio
traz as três categorias em cada uma das cenas.
A história de Camila trata de uma mulher negra experimentando várias formas
estéticas através do seu cabelo. Assim como eu passei pela transição capilar, aqui está as que
vivi, sem apoio da maioria das pessoas próximas a mim, Camila também passou, mas
diferente da personagem, eu não alisei, é nesse ponto que eu aponto o parir. Já com Pedro eu
observei na universidade, jovens de coletivos negros fazerem esses testes de ancestralidade, é
nessa posição que encontra-se as que vi.
Desse modo, os capítulos a seguir propõem-se a apresentar conteúdos básicos para a
compreensão deste trabalho, para que o leitor familiarize-se com a temática abordada.
Destaco o uso de cenas, que servem de subsídios para a construção de narrativas de algumas
vivências cotidianas que denotam a dinâmica do orgulho e da vergonha.
23

2. Cena 1: uma estética disciplinar

Permita que eu fale


Não as minhas cicatrizes
Elas são coadjuvantes
Não, melhor, figurantes
Que nem devia tá aqui (Emicida, Majur & Vittar, 2019)

Aqui, especificamente nesta cena, por estética disciplinar sinalizamos na direção da


estética da mulher negra como um campo de regulação social, sob uma lógica racista, na qual
a negra deve manter um equilíbrio entre valores específicos, para ser considerada aceitável
para o branco e não sofrer discriminação racial, e empoderadores para não ser menosprezada
por pessoas negras sobreimplicadas na luta por uma identidade racial positiva.
Assim, a imagem que eu trago é a de Camila, uma mulher negra do interior, que
passou a sua vida ouvindo injúrias a respeito do seu cabelo crespo em todos ambientes em que
convivia. Na infância foi assunto de fervorosas discussões na sua família negra, que
reproduzia um discurso violento que a inferiorizava. “Camila, tá na hora de lavar as buchas!
" “Se você tivesse nascido com o cabelo da sua prima Rita não teria tanto trabalho para
cuidar”. É neste ponto que Camila assume o papel de contar sua história.

*****

Um dos momentos que marcaram a minha infância foi o de cuidar do meu cabelo,
ainda criança eu não conseguia cuidar dele sozinha Minha mãe fazia isso por mim e saber
que era dia de lavar o cabelo já era um terror para mim, pois sabia que viria a seguir: a dor do
desembaraçar o cabelo, as reclamações da minha mãe, xingamentos como “esse cabelo de
bucha, duro, não vejo a hora de você crescer mais para alisar”. Era nesse cenário que minhas
lágrimas corriam, um momento tão comum na vida de uma criança, para mim sempre foi uma
tortura.
Eu sofria violências diárias em casa e na escola, pois meu cabelo era alvo do bullying
e discriminação racial praticados por meus colegas de escola. “Os insultos raciais seguem
essa lógica. Como instrumentos de humilhação, sua eficácia reside justamente em demarcar o
24

afastamento do insultador em relação ao insultado, remetendo-o ao terreno da pobreza, da


anomia social, da sujeira e da animalidade” (Guimarães, 2000, p. 39).
Falando do período da escola, eu lembro de um dia específico que era a comemoração
do carnaval, todas as crianças estavam com roupas coloridas e brilhos espalhados pelo corpo,
tínhamos espuma, tinta spray para pintar cabelo, comida e música, ou seja, tudo para ser um
dia perfeito, no entanto, não foi o que ocorreu, pelo menos não para mim. Após uns 30
minutos de início da festa nas caixas de som começou a tocar uma das músicas mais ouvidas e
tocadas naquele período os versos “nega do cabelo duro, que não gosta de pentear” (Caldas,
1985).
Tal canção anunciava o fim da minha alegria, pois eu já sabia o que viria a seguir:
meus colegas de sala e alunos de outras turmas começaram a rir e gritar meu nome
“CAMILA, CAMILA, CAMILA” ecoava pelo espaço. Mais uma vez, lágrimas desciam pelo
meu rosto, os professores não faziam questão de intervir e eu me sentia cada vez mais
humilhada e sozinha. Além disso, essa canção carnavalesca traz a realidade ideológica dos
anos da minha infância, uma vez que trata uma sociedade racista, na qual a mulher negra tinha
seu corpo inferiorizado e suas características como alvo de ataque.
Eu me sentia sozinha por não ter com quem contar, afinal se eu ouvia humilhações
semelhantes em casa, o que garantia que eu seria acolhida? Eu acreditava que receberia ainda
mais ofensas, visto que nunca fui defendida pela minha mãe quando algum familiar me
ofendia. Bell hooks (2010) no seu texto sobre o amor faz o resgate de uma cena do livro “O
Hábito da Sobrevivência: Estratégias de Vida das Mulheres Negras”, de Kesho Scott. Ela faz
referência a uma menina, Keshno, que chega da escola encharcada após ter a cabeça forçada
na privada por várias meninas brancas. Assim, ao chegar em casa, a mãe ignora seu
sofrimento e parte para ação mandando a se arrumar para ir resolver a questão.

É claro que essa é uma lição importante para as mulheres negras. Mas Keshno
estava também aprendendo uma lição dolorosa, ao sentir que não merecia ser
consolada após uma experiência traumática, como se não devesse nem mesmo
esperar por isso, como se suas necessidades individuais não fossem tão importantes
quanto a luta de resistência coletiva contra o racismo e o sexismo (Hooks, 2010, p.
6).

Diferente de Keshno eu não contei para minha mãe, porque sabia que não teria apoio
emocional. Sendo assim, sem alternativas guardei essas emoções, e passei a acreditar que o
problema estava em mim, afinal se todos apontam como defeito, até as pessoas mais
próximas, então, eu deveria corrigir ele.
25

*****
Cavallero (2012) apresenta no seu trabalho “Do silêncio do lar ao silêncio escolar”
uma pesquisa sobre socialização e racismo entre crianças no ambiente escolar. Dentre as
questões discutidas está o silêncio como uma forma de evitar conflitos étnicos. Ele aparece
como forma de defesa utilizada por crianças negras e seus familiares ao não verbalizar o
sofrimento causado pela violência racista. Ademais, o silêncio também está presente na escola
ao não pautar as diferenças étnicas e raciais, eximindo-se do seu papel social. A autora traz
que [...]“a ausência do debate social condiciona uma visão limitada do preconceito por parte
do grupo familiar, impedindo que a criança de formar uma visão crítica sobre o problema”
(Cavallero, 2012, p.33). Essa realidade pode ser percebida na experiência de Camila no
primeiro momento pela omissão dos professores, no segundo momento pela sua escolha de
silenciar-se, pois sabia como funcionava a sua dinâmica familiar.
Seguindo essa realidade, Oracy Nogueira (2006) ao pesquisar sobre as relações raciais
no Brasil e em outros países, como os Estados Unidos, percebeu uma diferença em sua
constituição, pois de acordo com o autor o preconceito no Brasil se dá pela marca enquanto
nos EUA ocorre pela origem. O preconceito de marca sofrido por Camila se assemelha ao de
diversas crianças negras no país, uma vez que através de brincadeiras com ofensas ao fenótipo
do negro, racismo recreativo, impõe-se nas crianças a noção de inferioridade e de
negatividade para traços negróides. Adilson Moreira, em 2020, criou o termo racismo
recreativo para designar o ódio racial que é movido através do humor, sendo um recurso
utilizado para tornar os ambientes hostis para o convívio social de pessoas negras
(Nascimento, Souza, de Paula, 2023).
Com isso, para refletir acerca do racismo estético sofrido por Camila é necessário
fazer um resgate histórico sobre a história do cabelo como lugar de disciplina do corpo. Nesse
cenário, o cabelo de meninas negras, ao longo da história, foi apontado como algo negativo,
4.
um problema que precisava ser sanado para atender as exigências estéticas da branquitude
Acerca disso, Quintão ( 2013, p.15-16, apud Campos & Cruz, 2018, p. 125) aponta “[...] o
cabelo pertence tanto à esfera da vida privada, quanto da vida pública, já que é a sociedade
que dita as normas estéticas de uso dos fios, cabendo aos indivíduos segui-las, caso queiram
ser aceitos socialmente.”

4
“A branquitude é entendida como uma posição em que sujeitos que ocupam esta posição foram
sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados
inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantêm e são preservados na contemporaneidade”
(Schucman, 2014, p. 84).
26

Desse modo, o cabelo liso e loiro recebeu prestígio social e histórico, visto que denota
uma origem étnica caucasiana, assim, o cabelo afro assume o papel de não aceitável por ser
considerado uma característica de uma raça inferior devido à escravidão (Campos & Cruz,
2018). Diante dessa construção, como o cabelo está na esfera pública, o liso passa a marcar
uma posição social de privilégio, enquanto o crespo recebe a posição de subalterno, nesse
sentido, o desejo por um cabelo liso passa a ser constituído na sociedade.

*****

Outro dia, em uma visita ao museu realizada pela escola, conhecemos diversas obras
que retratavam a história do Brasil, uma das que vi foi “A redenção de Cam” de 1895, do
pintor espanhol Modesto Brocos.

Fiquei um bom tempo parada observando.

Fonte: Modesto Brocos, 1985.


27

Mesmo tendo ficado um tempo olhando aquela imagem, confesso que naquela época
eu não a compreendi muito bem, mas ainda assim ela conseguiu prender bastante minha
atenção. Virava e mexia, lembrava daquele quadro, lembrava do incômodo que ele havia me
causado, mas continuava sem entender muito bem o porquê...
Assim, os ano foram passando e já no ensino médio eu tive um novo encontro com a
tela, dessa vez, através do livro de história, de primeiro eu tomei um choque com as
lembranças daquele dia e de como fiquei hipnotizada com o quadro, logo em seguida, li a
descrição que o livro trouxe sobre ele.
Tratava-se da temática do embranquecimento racial no Brasil, eu realmente
desconhecia aquele assunto, e quando li, apesar do estranhamento, uma nova janela foi aberta
para mim. Não havia como não relacionar a interpretação da obra com a da minha vida, sobre
as dificuldades diárias que eu enfrentava, a frustração da minha família com a minha
aparência, o bullying dos meus colegas, as ofensas e humilhações. A obra apresentava uma
família: uma avó negra que aparentava estar agradecendo aos céus por seu neto, que estava no
braços de sua filha, ter nascido branco, pois o pai da criança presente na pintura era branco.
Nossa!
Quando eu compreendi aquilo foi como se algo que sempre esteve na minha frente
tomasse forma. Lembrei da minha prima Rita e como ela sempre foi festejada pela família.
Confesso que ela é realmente bonita, mas odiava quando minha mãe e tias sempre me
comparavam a ela. Rita tinha a pele mais clara, o cabelo cacheado e olhos cor de mel. Ela era
o orgulho da família, e naquele momento eu entendi o motivo, ela escancarou o desejo que
sempre foi presente na minha família e a razão do rancor dessa sobre meu cabelo.

O ideal branco foi a sentença da minha família.

*****

As marcas de cosméticos, usufruindo de uma demanda sócio-histórica de


branqueamento da população, que anteriormente se deu por meio do estímulo à miscigenação
e atualmente se atualiza através da modificação corporal, com produtos e cirurgias estéticas,
fomentaram cada vez mais a associação entre o cabelo crespo com o ruim. Logo, uma nova
demanda passa a ascender: o cabelo liso. Sendo assim, como já se espera do capitalismo, na
sua busca incessante pelo lucro, após fomentar um problema, que nesse cenário era o cabelo
28

crespo e o cacheado, essas empresas passaram a vender uma solução. Nesse contexto, a
solução foi lançar linhas de cosméticos com composições químicas capazes de alterar a
estrutura do fio, deixando-o liso. Como o cabelo está em constante crescimento foi uma
estratégia perfeita de vendas, uma vez que o consumidor seria “obrigado” a comprar
rotineiramente para esconder seu cabelo natural.
A primeira fórmula química de alisamento produzida por tais indústrias em 1950 foi o
hidróxido de sódio, também conhecido como soda cáustica, um dos produtos mais fortes da
indústria até os dias atuais, criado pela empresa Relaxar em 1914, mas usado somente mais de
três décadas depois, segundo o artigo “A história do alisamento através das décadas” da
revista Cabelo&Cia (2015). Ele atua quebrando as pontes de dissulfetos, que são responsáveis
pela forma do fio, promovendo o seu alisamento. Contudo, entre os possíveis efeitos
colaterais segundo a Ecycle (2022) estão a coceira, vermelhidão, queimaduras, descamação,
inchaço, dor de cabeça e ardência. Vale lembrar também que para as pessoas que aplicam
também pode ter reações adversas como irritação na garganta e coceira no nariz, problemas
nos pulmões e tosse.
Dessa forma,

[...] a indústria de cosméticos opera um poder que está sempre vigiando e


produzindo desejos individuais, propondo uma imagem ideal de beleza. Esse poder é
mantido e reforçado por discursos promovidos pela mídia, que faz uma espécie de
“ponte” entre essa indústria e a sociedade” (Campos & Cruz, 2018).

.
De início, o alvo desses produtos era o público adulto, todavia, as empresas
perceberam um novo nicho que sofria com as exigências de uma sociedade que almejava a
branquitude. As crianças negras vítimas de injúrias racistas, que eram estimuladas pelos
discursos dessas empresas, tornaram-se o novo público desejado pelas marcas, a nova
extensão de mercado brasileiro dessas marcas foi o alisamento infantil.
A imagem a seguir traz o alisamento da Toin (figura 1), muito utilizado na década de
1990, o qual estava estampado Netinho de Paula, um cantor famoso de pagode – ritmo
tipicamente associado à população negra – naquele período, e suas filhas. Assim, percebe-se
que o objetivo daquelas marcas era garantir a atração do público-alvo. É possível notar ainda
algumas características nas caixas, letras coloridas, uma estética infantil e feminina, mas não
somente isso elas seguiam uma estética racial voltada para a população negra. Se
considerarmos que até hoje pessoas negras lutam por espaço na mídia, é interessante colocar
em questão o quanto as capas desses produtos eram, em sua grande maioria, preenchidas por
29

pessoas negras, ainda que houvesse brancos de cabelos crespos e cacheados, isso demonstra
que o público-alvo eram as pessoas negras.

*****

Foi com a propaganda com as filhas do Netinho de Paula que eu pude ter o meu
primeiro contato com o alisamento. Eu tinha uns 6 a 7 anos, vi uma vez na televisão e fiquei
muito animada, indo até a minha mãe comentar sobre isso. De início ela desacreditou, mas
depois ficou interessada, então, esperou comigo a propaganda aparecer novamente e ao
assistir minha mãe levantou, bruscamente, correndo para o supermercado com mais
variedades que ela conhecia, pois por ser um produto novo ela acreditou que poderia não ter
nos outros.
Assim, fomos à caça! A emoção crescia cada vez mais dentro de mim, pois era a
chance que sempre sonhei, comecei a fantasiar andando por aí com meu cabelo solto sem ser
alvo de chacotas. Desse modo, percebe-se que no geral o interesse de mudança do corpo
negro inicia-se na infância e tem como um de seus alvos prioritários um traço específico: o
cabelo crepo, por meio de alisamentos (Gomes, 2008).

Figura 1: Alisamento da Embelleze Toin floft

Fonte: Medium, 2021.


30

Encontramos o produto e em seguida minha mãe foi na casa da minha tia para pedir
ajuda na sua aplicação, já que era ela que sempre fazia a aplicação do alisamento no cabelo da
minha mãe. Nos reunimos no quintal de casa e iniciamos o processo, eu não imaginei que
aquele produto pudesse feder tanto, o cheiro chegava a doer meu nariz, depois de um tempo o
produto começou a arder meu couro cabeludo e ao removê-lo, com o tempo, formaram-se
pequenas feridas. Minha tia acredita que foi por causa do tempo que elas deixaram, visto que
como meu cabelo era bastante volumoso e crespo elas queriam diminuir o máximo possível e
esticar a fibra para que pudesse pelo menos formar pequenos cachos.
Ainda assim, eu achei que todo aquele sofrimento tinha valido a pena, pois era como
minha mãe dizia “ser bonita dói, minha filha”, eu sentia vergonha da minha aparência devido
às injúrias que ouvi ao longo da minha vida, então, a dor física que senti não se comparava a
ferida que tinha no meu interior ao me reconhecer como uma criança negra e só conseguir
enxergar desprezo e repulsa alheia nisso. Essa vergonha não era inerente a Camila, mas sim,
fruto do olhar moral do outro, que produziu nela um estado de angústia 5(Zygouris, 1995, p.
166 apud Nogueira, 2021, p. 127).
No outro dia, eu estava pulando de alegria, seria a primeira vez que minha mãe iria
deixar eu ir para escola com cabelo solto, porém, ao chegar na escola a reação dos meus
colegas não foi a que eu esperava. Eu acreditei que finalmente eu seria aceita por eles, que as
piadinhas iriam acabar que eu não me sentiria mais tão inferior, mas não foi isso que ocorreu:
eles continuaram rindo do do meu cabelo, apontando o dedo e criando novos insultos

“a cabelo duro, resolveu deixar o cabelo mole. Agora tá parecendo uma vassoura!”.

*****

Foi nesse momento que percebeu que não importava o quanto tentasse mudar para
atender as expectativas da sociedade, Camila sempre continuaria sendo a “neguinha do cabelo
duro”, porque nunca seria o suficiente, porque nunca alcançaria a branquitude, pois esse lugar
não diz respeito somente a estética, mas sim um lugar que condensa um conjunto de

5
“A angústia nasce do medo de perder o objeto amado ou de sua espera devastadora, a vergonha é uma
decadência social, ainda que o “social” seja reduzido à sua mais simples expressão: um olhar que
julga!”(Zygouris, 1995, p. 166 apud Nogueira, 2021, p. 127).
31

privilégios para um grupo social específico (Bento, 2002). Com isso, os insultos direcionados
a Camila pelos colegas, a definiam como refugo (algo que precisava ser desprezado,
silenciado e reduzido a nada, isto é, ao inferior), ela perdeu seu nome, no momento em que os
insultos racistas o substituíram, e também sua dignidade como criança negra (Nogueira,
2021).
Como nos alerta Guimarães (2000, p. 48): “O insulto racial é a tentativa de
institucionalização do lugar de inferioridade para o sujeito negro na sociedade branca,
simbolicamente, ele retoma o lugar historicamente atribuído ao negro.”

*****

Com o passar dos anos, foi emergindo um novo olhar sobre o cabelo natural. Torna-se
importante ressaltar que foi uma mudança na aceitação do cabelo cacheado, uma vez que o
crespo continuou sendo esquecido. Foi um movimento consagrado, majoritariamente, através
das redes sociais, nas quais jovens cansadas das imposições sociais, retornaram ao uso do
cabelo natural, passando pelo processo conhecido como transição capilar. Ele consiste no
retorno ao cabelo natural a partir da abdicação do uso de químicas.
Nesse contexto, mulheres passaram a deixar o cabelo crescer, enquanto enfrentavam
duas texturas capilar, uma com química e a outra natural, para posteriormente realizar o big
chop (grande corte) no qual se remove toda a parte com química. Sendo assim, novos lemas
começaram a crescer na mídia como “pelo fim da ditadura do liso”, E com ele, um novo
mercado cosmético passou a ganhar espaço.
Nesta direção é que podemos situar o início desse processo, na década de 1990, com o
desenvolvimento de Andre Walker, um cabeleireiro estadunidense famoso, da tabela de
curvatura capilar, que diferenciava as formas dos fios em categorias, com a finalidade de
conhecer as necessidades do cabelo e seu tratamento adequado (Bulbo Raiz, 2023). Seguindo
essa estratégia, a tabela ao longo dos anos foi sofrendo modificações, sendo assim, empresas
passaram a investir em propagandas, desenvolvendo produtos cada vez mais específicos para
cada tipo de cabelo.
32

Figura 2: cronograma capilar

Fonte: site Eudora

É nesse ponto que podemos observar uma mudança no mercado, que antes seguia uma
lógica de normação, a qual criava polos dicotômicos entre o que seria o normal (cabelo liso) e
o anormal (cabelo cacheado e crespo), atribuindo um caráter negativo ao anormal, o excluindo
do mercado. Diante disso, uma nova lógica ascendeu na indústria capilar: a da normalização,
que tem como objetivo controlar o comportamento individual fazendo funcionar possíveis
interações entre o normal (liso) e o anormal (cacheado e crespo), isto é, incluindo o anormal e
aproximando-o do padrão de normalidades diferenciais, que no cenário em questão,
acontecem por meio de “recomendações” de cuidados e produtos a serem utilizados nos
cabelos crespos e cacheados para que se adequem às novas normas, através de relações de
saber-poder (Lopes & Fabris, 2016).
33

*****

Passei muitos anos alisando meu cabelo, ainda assim não fui aceita como sempre
sonhei. Com essa realidade, eu já estava cansada da rotina de secador e prancha toda semana,
eu não tinha liberdade para ir à piscina, porque sabia o trabalho que dava para cuidar depois,
já que sem as fontes de calor meu cabelo ainda tinha muito volume. Dessa forma, por muito
tempo acreditei que a vergonha que sentia era fruto da minha baixa autoestima devido aos
insultos que recebi em relação aos meus traços, por isso, tentava a todo momento modificar
minha aparência.
A partir disso, passei a consumir cada vez mais conteúdos sobre autoajuda, quando
esse tema começou a crescer cada vez mais na internet. O intuito era elevar a autoconfiança e
autoestima. Apesar de todos esses esforços, sempre senti pontadas quando me olhava no
espelho, pois ainda que aplicasse todas as recomendações (como ter um pensamento positivo,
valorizar minha beleza, etc.) dos autores eu não conseguia me sentir bem. Assim, resolvi
buscar novas referências de pessoas mais parecidas comigo.
Foi assistindo vídeos de blogueiras no Youtube que conheci a transição capilar. Apesar
de insatisfeita com meu cabelo eu tinha receio de voltar ao natural, confesso que não
recordava muito sobre como ele era, mas lembrava das dores que os insultos direcionados a
ele me trouxeram.
Após cerca de 1 ano criando coragem para tomar essa decisão, com 17 anos resolvi
passar por esse processo para descobrir a minha verdadeira “naturalidade”. Eu tinha uma nova
rede de amigos, que eram negros e conversavam comigo sobre raça, sobre a importância da
aceitação da naturalidade dos nossos corpos. Com isso, acreditei que finalmente seria
reconhecida e respeitada, pois queria apagar as lembranças de discriminação que sofri na
infância. Assim, ao ter despertado o desejo de compartilhar uma identidade social, já que
minha tentativa de me enquadrar durante anos na branquitude foi mal-sucedida, eu passei pela
transição para reconhecer meu cabelo.
No entanto, o processo não foi tão simples quanto pensei, meu cabelo quebrava e
carecia de ainda mais atenção, eu assistia vídeos de meninas ensinando como cuidar. Era um
ciclo eterno de cuidado: hidratação (uma etapa de reposição de água para o fio); Nutrição
(reposição de óleos) e Reconstrução (reposição de aminoácidos).
Ainda que eu me esforçasse eu não via retorno, fazia texturizações (com tranças,
trançava o cabelo molhado, deixava até secar e depois desmanchava) no cabelo para reduzir a
34

diferença entre o cabelo alisado e o natural, mas durava pouco. Essa foi a parte mais difícil
para mim, porque eu não conseguia me achar bonita.

1 ANO DEPOIS…

Finalmente chegou o momento que eu tanto esperei, era o dia de cortar as partes
alisadas do meu cabelo. Escolhi fazer isso em casa e sozinha, pois foi sozinha que passsei por
toda essa caminhada.

Cortei

Senti minha cabeça leve.

Lavei hidratei, desembaracei, finalizei e finalmente me olhei no espelho. Não posso


dizer que me apaixonei pela imagem que vi, eu chorei! O espelho refletia uma moça de
cabelos curtos e crespos, que eu não conseguia reconhecer.
Mas eu sabia o que estava acontecendo, aquela pessoa não era eu, era novamente
aquela Camila criança que chorava voltando da escola por causa das injúrias racistas que
sofria, era a Camila que chegava em casa e ouvia mais violência e não sabia como reagir. Para
eu me redescobrir era preciso avançar mais, era preciso eu começar a me amar! Foi assim que
eu comecei o processo, coloquei uma máscara facial, fiz minhas sobrancelhas, coloquei meu
vestido favorito e acessórios. Fui de olhos fechados para frente do espelho novamente e foi
como abrir um presente, primeiro a ansiedade de abrir o presente/olhos

SILÊNCIO

parada em frente ao espelho, aquela era eu. Lágrimas caíram dos meus olhos.
Finalmente, eu consegui. O sorriso brotou no meu rosto automaticamente… Eu finalmente
estava feliz com o reflexo que vi, eu tinha orgulho de quem eu tinha me tornado.
35

Assim, eu segui até a sala, fui mostrar a minha mãe e sua primeira reação foi de
choque, depois de desgosto. Eu pensei que com o passar dos anos sua visão sobre o nosso
cabelo mudaria, mas não mudou. O resto da minha família quando me viu me tratou como
animal exótico puxando meu cabelo e tecendo comentários desagradáveis

“Preferia como antes. Tá parecendo bombril!”.

Foi preciso muito esforço para suportar tudo aquilo novamente. No entanto, dessa vez,
eu acreditava que não estava só, mais meninas passavam pela mesma transformação, eu
estava fortalecida.
Diante disso, eu não esperava cair, mais uma vez, na armadilha do capital, o cabelo
natural não passou a ser aceito pela sociedade, mas sim o cabelo que a indústria cosmética
escolheu exaltar, e esse era o cabelo cacheado. “Cachos perfeitos” compunha o slogan de
várias marcas; cachos que deviam ser controlados, disciplinados sem frizz6, com balanço e
maciez (figuras 3 e 4) o cabelo crespo mais uma vez me parecia esquecido, não somente
esquecido, mas também, desprezado.

Figura 3: Seda cachos

Fonte: site Magazine Luiza

Figura 4: Elseve Supreme control 4D

6
frizz são os fios irregulares, que não seguem o padrão de regularidade da maior parte do cabelo.
36

Fonte: página L'Oréal Paris Facebook7

O “natural” aceito me parecia ser o mais distante possível do crespo, que é constituído
por fios com curvaturas mais fechadas e com mais frizz que o cabelo cacheado. O meu cabelo
crespo encolhe mais e tem dificuldade para a oleosidade do couro cabeludo acessar o
comprimento. Ele sempre teve mais facilidade em ficar ressecado. Ainda assim, eu passei
longos anos utilizando meu cabelo crespo, tinha dificuldade para encontrar bons produtos, já
que o mercado ainda era restrito aos cabelos lisos e cacheados, logo, a variedade para meu
tipo capilar era mínima.
Desse modo, utilizei como alternativa óleos, gelatinas e texturizações, pude viver
várias mudanças capilares como: tranças, penteados, black power…, mas as injúrias
continuavam. O que mudou talvez foi a relevância que antes tinham para mim: eu não focava
mais nas ofensas, minha prioridade era me sentir bem. Dessa vez, eu tinha pessoas parecidas
comigo para me espelhar, blogueiras negras ensinavam penteados, acessórios e estimulavam
suas seguidoras nas redes sociais, a gente não estava mais sozinha. Eu não construí minha
autoestima sozinha, ela foi coletivizada.
Ainda assim, com o passar do tempo, eu fui ficando cada vez mais cansada, pois meu
cabelo deveria estar sempre impecável para ser minimamente respeitada nos espaços e evitar

7
Fonte: https://www.facebook.com/lorealparisbrasil/photos/a.158273077529607/1064175600272679/?type=3.
Acesso em: 11 de mar. 2024
37

o sofrimento provocado pela discriminação. A rotina estava cada vez mais difícil, demorava
horas cuidando do cabelo, e a liberdade que achei que teria com meu cabelo natural não
passou de um sonho. Eu ainda estava presa a uma demanda estética da sociedade, percebia
certa mudança no comportamento das pessoas quando eu colocava tranças, me elogiavam
falando que eu estava mais bonita, porém, eram caras e duravam pouco tempo. Além disso, a
maioria gostava porque escondia meu cabelo e elas assemelham-se ao cabelo liso, por sua
estrutura rente e sem o volume de um cabelo crespo.
Nesse sentido, após experienciar o cuidado com meu cabelo natural e explorar várias
possibilidades por muitos anos, eu resolvi mudar novamente, alisando os cabelos com 30
anos. Entretanto, eu não imaginava que haveria tamanho alvoroço com essa nova mudança,
pois acreditei que as pessoas próximas a mim já estavam habituadas com as minhas mudanças
e o apoio que eu esperei receber dos seus amigos, àqueles que antes me elogiavam quando
mudava o cabelo, não veio. Em seu lugar, novas críticas começaram. Lembro bem quando
cheguei na rodinha de colegas.

CAMILAA, o que foi que você fez?


Tá querendo virar branca?!?
Gostava mais antes, o black te dava um poder!

E isso continuou por um longo tempo, não consigo lembrar quantas vezes eu fui
chamada de embranquecida e que eu tinha vergonha de quem eu era, apagando toda minha
trajetória e possibilidades de vivenciar minha negritude de forma singular. Fiquei em choque
pois em outros momentos já havia utilizado laces lisas e sempre fui bem recebida, por isso
não consegui imaginar essa reação.

*****

A narrativa de Camila, tão comum a um sem número de mulheres negras, foi


construída com o objetivo de apontar algo perigoso acerca das novas concepções da
experiência estética e política negra. Tal enfoque surge a partir da problematização das formas
de singularização do sujeito negro, que na representação de Camila surge com a construção de
um padrão estético para pessoas negras que não pode ser desviado. No primeiro momento,
38

esse aparece como mais uma forma de violência racista, a qual repudia características que
remetem a negritude entendida aqui no seu aspecto cultural de valorização do corpo negro.
O segundo momento ocorre na pretensa tentativa de fuga a tais formas disciplinares
sobre o corpo, por meio da transição capilar ao exaltar o cabelo natural. No entanto, tal linha
de análise não problematiza a própria concepção de “natureza”, que passa a ser forjada pela
indústria cosmética e a construção de uma nova forma de normatização e controle do corpo, a
partir de produtos que buscam “controlar e disciplinar” um cabelo que seria natural.
O terceiro momento revela-se a partir da defesa de uma negritude (aqui no seu viés
ideológico-cultural de reconhecimento de suas raízes) a partir de uma norma estética, que
acredita aproximar o negro de suas raízes africanas, através do cabelo natural.
Baseando-se nesse exposto, torna-se essencial uma análise profunda a respeito da
defesa de uma estética negra, na medida em que o capitalismo é capaz de operar o desejo do
sujeito. A máquina capitalística produz o que acontece com o sujeito quando esse sonha,
fantasia, apaixona, etc., ou seja, é uma forma de controle e produção hegemônica do próprio
sujeito (Guattari; Rolnik, 1993). Isso ocorre, uma vez que o modo de vida capitalista dita
como a sociedade deve ser organizada tanto na sua esfera política quanto na esfera do desejo.
Dessa forma, pessoas negras sobreimplicadas na defesa de uma identidade negra
cristalizada, devido a incapacidade de análise de outras formas de experimentação, que não
seguem seu viés, acabam, inconscientemente, construindo um discurso acerca de uma estética
política, que pode ser passível de um processo de uniformização do ser negro.

“A análise dessas experiências que reduzem tudo à imitação do padrão


branco negligencia as implicações profundas e a trama complexa que envolvem a
relação negro e cabelo na esfera da dominação, da cultura e da subjetividade. O
alisamento, claro, deve ser contextualizado e questionado devido à violência
estruturante do racismo. Ao mesmo tempo, também pode ser visto como integrante
de um estilo de o negro usar o cabelo. O que quero dizer é que a discussão sobre a
expressão estética negra não pode ser cristalizada” (Pequeno, 2019, p. 5).
39

3. Cena 2: e eu não mereço ser livre para amar?

Permita que eu fale


Não as minhas cicatrizes
Tanta dor rouba nossa voz
Sabe o que resta de nós?
Alvos passeando por aí (Emicida, Majur & Vittar, 2019)

Meu nome é Ester, tenho 25 anos, sou uma mulher negra, faço mestrado em história e
estudo a população negra. Durante a minha graduação, participei de movimentos sociais,
coletivos negros e ainda hoje faço parte, sou ativa nas redes sociais e divulgo os
conhecimentos que acesso na universidade e as leituras independentes que faço. Essas
informações, para além de uma apresentação sobre quem sou, são importantes para
contextualizar o episódio que pretendo narrar, o qual foi marcante na minha vida pessoal,
chegando a atingir a profissional. Para iniciar essa narrativa, é necessário eu falar um pouco
sobre a minha vida particular.
Eu moro sozinha no centro da cidade, tenho uma grande rede de apoio com amigos,
família e principalmente a minha mãe. Você deve estar se perguntando “onde está o pai de
Ester nisso?”, ou talvez não ao observar o número de lares sem pais no Brasil. Um artigo do
portal da Fundação Getúlio Vargas (FGV), 2023, aponta que cerca de 11,3 milhões de
famílias, em 2022, eram chefiadas por mães solo, ou seja, mães que criam seus filhos
sozinhos sem a participação do genitor, sendo 6,9 milhões dessas mulheres negras, ou seja,
aproximadamente 61%. Corroborando com tal estatística, preciso informar que meu pai nos
abandonou quando eu tinha 2 anos, foi um período muito difícil para minha mãe, afinal perder
seu companheiro de repente não foi algo que ela imaginava.
Assim, como muitas mulheres negras e mães solos, ela foi obrigada a dar tudo de si e
sacrificar muitas coisas para o meu cuidado, trabalhava exaustivamente o dia inteiro e a noite
já estava cansada, mas ainda assim, reservava um tempo para brincar comigo e saber como foi
meu dia. Essas lembranças mexem comigo, pois eram momentos de carinho e amor entre nós.
Esse que em muitos momentos nos foi negado ou subtraído. Por muito tempo, eu me desiludi
do amor romântico, pelo menos não via como algo para mulheres como eu, quando pensava
em relacionamentos as imagens da minha mãe e minhas tias chegavam à mente.
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“Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou


nenhum amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é
discutida em público. Essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras
raramente falam abertamente sobre isso” (Hooks, 2010, p. 1).

Eram pessoas diferentes, mas com histórias semelhantes. Minha tia Ana casou logo
cedo, depois de perder a virgindade, naquela época quando uma menina “se perdia” casava ou
era expulsa de casa. O casamento foi muito difícil para ela, o marido era uns anos mais velho
e não queria casar, mas foi obrigado. Após um ano de casados ela engravidou e foi aí que as
coisas pioraram, ele vivia fora de casa, saía para trabalhar de manhã e voltava tarde da noite,
isso quando voltava, as pessoas falavam a ela que ele tava na casa de outra mulher, mas o que
ela podia fazer?
Assim, ela foi ignorando até quando teve o filho e os outros tipos de embates entre ela
e o marido começaram. Ele passava a sair nos fins de semana e voltar bêbado, a xingava,
maltratava e batia. Até que anos depois, quando seu filho estava mais velho, ela se separou.
Minha tia Ana teve que voltar a morar com a mãe até conseguir se estruturar.

*****

O Atlas da violência, 2023, aponta que 67,4% das mulheres assassinadas no Brasil,
em 2021, foram negras. Além disso dados coletados pelo ligue 180, no ano de 2016, indicam
que aproximadamente 60% das ligações sobre violência doméstica foram de mulheres negras
(Géledes, 2017), ratificando ainda mais uma realidade coletiva na vivência de Ana.
Para analisar a violência intrafamiliar em lares de pessoas negras Bell Hooks (2010)
ao discutir sobre o amor retoma ao pós-escravidão levantando hipóteses sobre a dificuldade
do negro em expressar e receber amor. Ela aponta que as relações de poder e violência que
marcaram o Período Colonial, na qual o negro estava sobre o domínio do branco, podem ter
influenciado na reprodução dessa relações nas dinâmicas familiares das gerações posteriores.
Lares em que conflitos domésticos e violência espelham a brutalidade da escravidão.

*****
41

Nessa linha, eu enxergava o amor masculino como uma ausência e/ou violência
quando era direcionado à mulheres negras. Pois desde cedo, ele nunca me foi direcionado, o
cuidado, a delicadeza e o zelo nunca foram ações presentes na minha vida quando oriundas de
um homem. A minha experiência foi marcada pela objetificação do meu corpo, ou seja, eu
servia para alguma função laboral ou para hiperssexualização, já que desde a adolescência vi
meu corpo sendo tratado como pedaço de carne e isso fazia eu questionar:

que corpo é esse, que produz desejos e ao mesmo tempo repulsa nos homens?

Eu como pessoa negra tinha meu corpo marcado por estereótipos devido à princípios
científicos produzidos, principalmente, na década de 1930, por meio do que chamaram de
racismo científico que buscou justificar as práticas discriminatórias raciais, por meio de
formação de hierarquia biológica, na qual a raça branca era superior a todas as outras (Pinto &
Ferreira, 2014; Cavallero, 2012). Tais estereótipos, permanecem ainda hoje no senso comum,
são dicotômicos: “[...] passivo-violento, emocional-desamoroso, luxurioso-inocente,
ingênuo-malandro, vigoroso-atrasado, sendo, a todo momento, reduzidos aos seus próprios
corpos. Esse corpo fetichizado é a base de sua sensualidade” (Fernandes, 2022, p. 564)
Essa ambiguidade permeou a minha trajetória, não importava a idade, condição social,
raça, todos os homens tratavam-me dessa forma. Assim, o sentimento de desamor entre a
minha figura e a masculina emergiu. Tendo em vista, que desde nova eu já percebia o
tratamento diferenciado que recebia, como, por exemplo, na escola eu observei a diferença no
trato dos meninos e das professoras com minhas amigas, eles eram mais respeitosos e
tratavam com uma delicadeza que nunca me foi dirigida, logo, pensei que o problema estava
em mim. No entanto, com o passar dos anos, já no fim do ensino fundamental, eu percebi o
que me separava das minhas colegas: minha cor. Lembro o quanto eu dedicava esforços para
ser querida, sempre estava disposta a ajudar quem precisasse, empenhava-me nos estudos e
era a melhor aluna da turma ainda que não fosse reconhecida. O rosto escolhido era sempre
branco!

*****
42

Cavallero, 2012, demonstrou a diferenciação sofrida por Ester, ao analisar o


tratamento de crianças negras e de crianças brancas no ambiente escolar. Nesse âmbito, ela
afirma:
A escola, penso, representa um espaço que não pertence, de fato, à
criança negra, pois não há se quer um indício de sua inclusão, exceto a sua
presença física. Ali, ela é detituída de seus desejos e necessidades
específicas: recnhecimento da sua existência e aceitação como indíviduo
negro, provimento de alternativas que lhes possibilitem um sonhar com
futuro digno (Cavallero, 2012, p. 100)

Essa lembrança poderia estar presente no livro “Quando me descobri negra” da


Bianca Santana (2015), que traz narrativas divididas em três partes: as que vivi, as que ouvi e
as que pari. Este livro nos apresenta narrativas que trazem momentos da vida cotidiana de
pessoas pretas, no qual o tema em comum é a tomada de consciência da sua raça, não que
todos naquele momento não sabiam que eram negros, mas sim, o choque da realidade de ser
negro no nosso país e conviver com o tão famoso racismo à brasileira, que em grande parte se
dá de maneira sutil ou às vezes nem tanto, mas está presente nas entrelinhas. Oracy Nogueira
(2006) indica que a concepção de branco e não branco no Brasil ocorre diante de um conjunto
de fatores, entre eles estão: mestiçagem, classe, região do país, etc., com base nisso, o racismo
ascende de diferentes formas a partir do contexto que o sujeito está inserido.

*****

Percebi que para mulheres como eu só havia dois destinos no campo dos afetos: a
invisibilidade ou a objetificação sexual. Diante disso, no ensino médio eu experimentei o
primeiro desses que citei, a invisibilidade. A utilizei como uma aliada com receio de ser mais
uma vez desprezada. Recordo de brincadeirinhas que meus colegas faziam na escola “casa,
beija ou mata?”. Na primeira vez que conheci, eu estava arrumando minha mochila para o
recreio quando uma colega me chamou. "Ester, vem jogar com a gente!" Assim eu fui,
chegando lá, ela me explicou a brincadeira, que se chamava beija, casa ou mata, que
basicamente alguém escolhia 3 pessoas da sala para outra escolher se beijaria/casaria/mataria.

Eu fui sempre morta.


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Pensando bem era uma dupla morte: a morte afetiva e a vexatória. Era sempre um
constrangimento lidar com a repulsa. Na esfera da invisibilidade somos enxergadas de várias
formas, como a pessoa legal, alguém a quem se pode pedir ajuda, a inteligente, a parceira,
mas nunca como alguém que pode ser um interesse afetivo ou sexual.

*****

Do modo que eu trouxe parece ser um caminho simples, mas a verdade é que
extremamente doloroso, principalmente, quando observava minhas colegas falando sobre
meninos, que eu sabia que seria impossível despertar o interesse de qualquer um desses. Elas
falavam sobre os caras com quem estavam saindo ou os convites para encontro que recebiam
emeu papel naquelas cenas era sempre o de ouvinte, a amiga que estava lá para ouvir as
aventuras, mas nunca para vivê-las.
Levando esses cenários em consideração, quando entrei na graduação eu vi a chance
de finalmente viver as histórias que tanto ouvi e estava decidida a experienciar o que não
consegui durante a adolescência. Modifiquei minha aparência mais uma vez, conheci pessoas
novas e fiz amizade com outras garotas, assim, foi fácil ir a festas, sair para mais lugares e
conhecer a tão falada revolução sexual. Essa ocorreu nas décadas de 1960 e 1970 em diversos
países como França, Alemanha, Brasil, etc. e tratou de uma série de transformações sociais,
culturais e médicas como, por exemplo, a criação da pílula anticoncepcional que possibilitou
experienciar o sexo de diversas maneiras, como o sexo sem compromisso desvinculado da
possibilidade de uma gestação indesejada.
No entanto, não me disseram que essa experiência era diferente para mulheres negras.
Para minhas colegas brancas era uma forma de emancipação e viver a liberdade do seu corpo,
porém, para mim a verdade era outra. Eu utilizei a liberdade sexual como ferramenta de
acesso à migalhas de afeto, enquanto os homens a utilizavam como forma de usar meu corpo,
no final não era uma troca justa, ao menos não para mim, pois logo depois o que permanecia
era a sensação de solidão e culpa por estar sentindo aquilo. Quero salientar que o problema
não era transar por transar, mas sim, eu tentar usar isso como modo de obter afeto masculino,
o qual acreditava ser o mais próximo do amor que eu poderia chegar.
44

*****

A negra está no entre lugares, exercendo funções de cuidado, trabalho e sexual, porém,
é algo que a sociedade atual tenta ocultar, trazendo um olhar eufêmico para tais condições
com nomes como zelosa, guerreira, sensual, etc. Nessa esfera, a mulher negra serve para o
sexo, o trabalho e o cuidado, mas não para o casamento. Lélia Gonzalez (1984) analisa tal
condição como sintoma da neurose brasileira, que a tanto custo tenta recalcar as violências do
racismo. Esse investimento no recalque começa com o apagamento da violência imputada ao
negro, durante e após a escravidão, e para isso utiliza-se como recurso a construção de
conceitos, como o da democracia racial, que afirma que não há desigualdade racial no país,
pois esse foi capaz de integrar o negro na sociedade de forma igualitária.
No relato de Ester ela percebe que mulheres negras e brancas podem ter experiências
diferentes. Isso já vem sendo apontado há muitos anos, como por exemplo Sojourner Truth
(1851) em seu discurso na Women’s Rights Convention, reunião que discutia os direitos das
mulheres, em Ohio, ela levantou um questionamento e eu não sou uma mulher?, visto que ela
salientou em sua fala a diferenciação entre vivência de uma mulher negra e uma mulher
branca naquele período. Nas suas palavras ela denuncia:

Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em
carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o
melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em
carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor
lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para
meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem
algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia
trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse
oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher?
Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e
quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me
ouviu! E não sou uma mulher? (Truth, 1851. Grifo nosso)

Fernandes (2023) em seu trabalho “Identidade negra, descolonização e amor” tece


críticas ao universalismo euroamericano de Anthony Giddens na sua discussão sobre
intimidade e amor. O primeiro aponta que ao desconsiderar na sua análise fatores históricos de
vivências e negociações de outras populações fora do eixo euro-americano o discurso
centra-se na história de agentes brancos. Tendo isso em vista, a revolução sexual que Ester
achou experienciar no primeiro momento se deu com base no discurso de movimentos
45

feministas de mulheres brancas, que carregam outras experiências e narrativas, as quais não
servem como parâmetros universalizantes para todas as mulheres.
*****

Com isso, anos depois, após desistir dessa tentativa, eu conheci mulheres que eram
mais parecidas comigo, partilhei meu sofrimento com elas e percebi que isso também
acontecia com algumas delas. Nós, ao longo da graduação, fomos nos dando apoio e
incentivando umas às outras a não nos submetermos a situações degradantes, como as que já
havíamos vivido, e assim, foi formada uma rede de proteção por mulheres negras. Posso
afirmar que meu primeiro relacionamento oficial ocorreu quando eu tinha 24 anos, não é que
eu não tivesse me relacionado anteriormente, mas na verdade eles não assumiram
publicamente nosso status.
Meu primeiro namoro oficial foi com Paulo. Ele tinha 29 anos, nos conhecemos em
uma social de amigos em comum, quando o vi de cara o achei muito bonito, um homem negro
alto com cabelo black baixo, e ao conversar percebi que ele não era somente isso. Ele
realmente estava interessado em conversar comigo e não só isso, como também me conhecer,
conversamos durante exatas 4 horas naquela noite, rimos muito e falamos sobre a vida, não
rolou nada físico, mas trocamos contato.
Naquele dia eu fiquei realmente muito empolgada com ele, conversei com minhas
melhores amigas, Rafaela e Marina, sobre ele e ficou a cargo da primeira buscar a ficha
completa de Paulo. Descobrimos que ele estava solteiro há 6 meses, morava sozinho e
trabalhava como fisioterapeuta, e que segundo conhecidos ele era muito simpático e querido
pela maioria que o conhecia. Com essas informações, eu fiquei ainda mais interessada, nós
continuamos conversando todos os dias da semana, ele me convidou para sair no sábado à
noite e eu obviamente aceitei, nossas conversas fluíram facilmente e eu já estava boba por
notar mais uma vez que ele tinha interesse em me ouvir.
Ficamos durante 2 meses e ele me pediu em namoro, foi um dos momentos mais
felizes para mim. Ele planejou tudo perfeitamente, arrumou a casa dele com os enfeites mais
bregas e fofos possíveis, tinha uma mesa arrumada com o jantar, um buquê e o pedido
aconteceu. Eu não tinha medo de ser quem eu era com ele (aqui leia-se ser negra), eu não
precisava estar “perfeita” o tempo todo, não tinha receio do meu cabelo ou do meu nariz, uma
vez que Paulo tinha características semelhantes. Foi nesse momento, que eu percebi que não
precisa me esconder com vergonha de quem eu era, eu estava feliz em finalmente me exibir e
me sentir bem com isso, a Ester de antes estaria orgulhosa de quem se tornou tanto quanto a
46

Ester de hoje. Por muito tempo eu acreditei que o amor não era para pessoas como eu, já que a
minha história e a das minhas semelhantes demonstraram isso.
No entanto, como pontua Fernandes (2023) é preciso descolonizar o amor.

Isso porque o sentimento passa a ser defendido como um aprendizado social.


Desse modo, ao reconhecer-se que o racismo é estrutural na sociedade brasileira,
indica-se também que ele se manifesta nas próprias emoções, entendidas, ainda que
indiretamente, como produções sociais e políticas. Por essa razão, afirma-se: “o
amor tem cor”, opondo-se à tese de branqueamento e declarando-se que o gosto é
produzido socialmente estruturando as escolhas afetivas individuais desses sujeitos.
(Fernandes, 2023, p. 577)

Namoramos cerca de um ano, não posso dizer que nosso tempo juntos foi um conto
de fadas, houveram desentendimentos como todo casal, mas conseguimos contornar, eu
realmente acreditei que Paulo fosse o amor da minha vida, no entanto, depois de um ano ele
recebeu uma proposta para trabalhar em outro estado e era um cargo muito importante para
sua carreira, mas eu já tinha 25 anos, estava no mestrado e não conseguiria largar tudo para
acompanhá-lo e nem ele me pediu isso. Terminamos nossa relação da forma mais bonita
possível, reconhecemos o papel de cada um nas conquistas e sentimentos bons que
compartilhamos, além de continuarmos com nossa amizade após o término.
Quatro anos após o término com Paulo eu já havia terminado o meu mestrado. Nesse
tempo eu tive alguns envolvimentos passageiros e relacionamentos curtos, uns legais outros
nem tanto, até que conheci Caio num evento da pós-graduação, esqueci de falar, mas já estava
no doutorado. Caio era como eu posso dizer “serenamente vivo”. Ele era calmo, gostava mais
de ouvir do que falar, mas quando falava era com uma harmonia que fascinava todos que
estavam por perto. Logo, se interessar por ele não foi difícil, saímos com nossos colegas de
turma e ficamos algumas vezes, conversamos bastante sobre tudo: cinema, gastronomia,
música, campo, esporte, política, etc.
Eu me interessava cada vez mais por ele e ele por mim. No entanto, eu sentia uma
barreira entre a gente:

Caio era branco.


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Como eu, uma mulher que estudava tanto sobre raça, era engajada nos movimentos
sociais podia assumir um relacionamento com um homem branco? Além disso, meus amigos
já tiravam certo sarro de mim nas brincadeiras, agora imagina isso nas redes, eu sabia o
quanto mulheres negras eram propensas a ser criticadas por coisas mínimas, imagina eu que
discutia tanto sobre raça nas mídias. Somado a isso, ainda que ele tivesse letramento racial8,
compreendesse e defendesse a pauta, eu sabia que ele nunca saberia o que era viver em um
corpo negro, sofrer com o racismo estrutural e suas violências mascaradas. Com letramento
racial eu quero dizer que Caio compreendia a existência do racismo e seus efeitos na
sociedade.
Até que em uma conversa com Rafa ela me perguntou:

Por que é importante para você que ele vivencie a negritude?


Ou melhor, o racismo?

Eu nunca havia me feito essa pergunta, logo, não consegui respondê-la. Sempre achei
importante ter um parceiro negro porque assim não iria precisar ter conversas constrangedoras
para explicar medos, dores e o sentimento de vergonha de ter que relatar violências vividas
em situações de racismo, ou seja, era importante ele ser negro para saber o que era sofrer
racismo. Eu não percebia o quanto essa dinâmica era cruel, eu desejava alguém que sofresse o
que eu sofria, para que fosse meu parceiro de sofrimento, mas eu não percebi que eu poderia
ter um parceiro que me apoiava e lutava comigo, ainda que não passasse por essa violência.
Falando dessa maneira parece que foi uma reflexão rápida, mas na verdade passei
semanas, noites mal-dormidas, aluguei meus amigos, repeti meus medos a minha analista
dezenas de vezes. Foi assim que eu decidi dar uma chance para ter um relacionamento oficial
com Caio. Conversamos bastante, eu falei mais uma vez com franqueza sobre meus receios e
ele também. Depois de mais um mês assumimos publicamente. Eu já esperava ser escrachada

8
“A formulação do conceito de Letramento Racial – LR em 2003, pela antropóloga estadunidense France
Winddance Twine, com propósito inicial de desconstruir o racismo nas identidades raciais brancas. O caminho
para esta desconstrução seria a educação, uma vez que fomos educados a partir de uma visão de mundo
colonizada, embranquecida e que o racismo é uma ideologia que se pretende permanente como garantia de
privilégio, por isso a educação é instrumento fundamental para superar as impossibilidades de construir relações
mais humanizadas.” (Pereira, 2022, p. 1)
48

no Twitter9 por namorar um branco, mas não imaginei que seria tanto, foram meses de
críticas, pessoas me atacando pessoalmente e aos meus trabalhos, chamando-me de traidora e
falsa militante. Usaram essa oportunidade para exprimir um discurso de ódio que parecia estar
a muito tempo guardado.
Realmente tinha esquecido como é comum encontrar vários tweets (pequenos textos
ou fotos publicados na rede) que ditam como o sujeito negro deve se relacionar afetivamente.
Diariamente somos bombardeados com temáticas sobre relacionamento inter-racial, entre
brancos e negros, (conhecido também na rede como “palmitagem10”, termo que além de
carregar conotação pejorativa, também, possui tom moralizante), tais postagens em sua
maioria defendem um ideal de relacionamento pautado no “afrocentramento”, isto é, na teoria
o desejo de união entre as pessoas negras como forma de proteção, afetividade e orgulho
racial. No entanto, no decorrer destes embates, é comum observar a defesa do centramento
racial negro, na qual “palmitagem” é algo que deve ser evitado.

*****

A visão de Ester compreende relacionamentos afetivos como linha de proteção e


resistência contra a experiência violenta do branqueamento do Brasil, por meio da
miscigenação. Seguindo uma lógica semelhante, Fernandes (2023) analisa a campanha de
1991 “Reaja à violência: beije sua preta em praça pública” (Figura 05) do Movimento
Negro Unificado (MNU). Ele denota o amor entre pessoas negras como um combustível para
luta contra o racismo, além de ser uma forma de dispositivo anticolonial.
Apesar do caráter recreativo de algumas publicações sobre o assunto, grande parte das
pessoas assume esse tema com seriedade ao levar em consideração a história violenta de
miscigenação do país na tentativa de branqueamento da população. Seguindo tal análise, a
defesa do afrocentramento se estabelece como oposição aos reflexos dessa violência na
atualidade, uma vez que para alguns militantes nas redes sociais: “[...] o relacionamento
interracial é visto como uma forma de ascender e reproduzir simbolicamente um status quo,

9
Uma rede social e serviço de blog, em que os usuários compartilham atualizações através de publicações.
10
É o relacionamento interracial entre uma pessoa negra e outra branca, recebe o termo de palmiteiro quem
prefere se relacionar com pessoas brancas em detrimento de pessoas negras.
49

afigurando-se como um ideal a ser atingido pelos negros que têm o branco como parâmetro
de humanidade” (Fernandes, 2023, p. 563).
No entanto, essa discussão mostra-se extremamente delicada, pois põe em questão
mais um aspecto humano que foi negado ao negro: o amor como emoção. Na tentativa de
controlar o sofrimento, pessoas negras passam a negar a si a permissão para expressar
emoções, já que essas eram sinônimos de fraqueza e poderia levar a castigos maiores no
Período Colonial (Hooks, 2010). Pensar em sentir o amor hoje como negro, para além de uma
luta colonial, é poder finalmente permitir-se ser humano, e possivelmente restringir essa
experiência apenas à luta pode aprofundar a ferida.
Figura 5: Campanha Reaja à violÊncia: beije sua preta em praça pública

Fonte: Mídia NINJA, 2020

*****

Não acredito que minha resistência e luta contra o racismo terminem ao me relacionar
com Caio. Acredito que talvez elas estejam ainda mais acesas, pois continuo resistindo e não
permito que a estrutura racista continue limitando minhas experiências, afinal, o antirracismo
não toma o branco como alvo, mas sim o racismo. Viver esperando que o encontro com a
50

alteridade seja marcado pela violência, num embate constante, torna a nossa existência num
estado de alerta constante. Bell Hooks (2010) aponta no trecho de Keshno, que está presente
na narrativa de Camila, a lição dolorosa que recebeu após a experiência traumática na escola,
de que não merecia ser consolada e que suas necessidades não fossem tão essenciais quanto a
luta coletiva. Sendo assim, a autora expressa que a saúde emocional é tão importante quanto o
movimento contra o racismo e o sexismo.
Gostaria de dizer que lidei com isso com facilidade, mas a verdade é que não
consegui. Passei meses afastada das redes, e falando sobre isso em quase todas as minhas
sessões de psicoterapia. Fui atacada por quem, anteriormente, me apoiava e estava do meu
lado, fazendo com que eu me questionasse sobre que tipo de aquilombamento era aquele, que
não conseguia respeitar a decisão de uma mulher negra, que antes era utilizada como
inspiração. Será realmente esse o tipo de luta política que estou disposta a apoiar e batalhar?
Tudo isso com um pressuposto de engajamento político, sendo que eu como mulher negra
continuava, como historicamente sempre o fora, um alvo mais fácil. O sentimento que esses
que tanto me atacavam diziam defender: o orgulho negro, na minha visão estava corrompido
ao violentar e causar mais sofrimento a uma pessoa que anteriormente era vista como aliada.
As pessoas me cobraram por acreditar que por eu ser negra e estudar a questão racial
no Brasil eu não poderia relacionar-me com um branco, ainda que todos meus
relacionamentos anteriores foram com homens negros. Nesse entendimento, a pessoa negra
deve manter-se afastada do branco a todo instante e os laços afetivos, tornam-se somente
contratos sociais em defesa de alguma identidade. Assim, eu questiono: a militância deve
fazer parte da minha subjetividade ou ser ela?
51

4. Cena 3: onde é o meu lugar?

Permita que eu fale


Não as minhas cicatrizes
Se isso é sobre vivência
Me resumir a sobrevivência
É roubar o pouco de bom que vivi (Emicida, Majur & Vittar, 2019)

A história que eu conto a seguir é a de Pedro, filho de pais negros, possui avós negros
e brancos. Durante a sua infância viveu em um bairro de classe média, tinha conforto, mas se
sentia a todo instante desconfortável, questionava-se a razão disso, já que desde que nasceu
sempre morou lá. Os pais tinham amigos na vizinhança e ele, por conseguinte, fez amizade
com os filhos desses, porém, era sempre incômodo atender a porta da sua casa quando algum
desconhecido batia e perguntava onde estava a patroa11 da mãe dele. Ele sempre achou isso
estranho, até que um dia, após ter se estressado com uma briga que teve com um colega da
vizinhança, um entregador bateu na sua porta e o questionamento, que já tinha se tornado
comum, se fez presente. Dessa vez, não conteve seu desagrado e comentou isso com sua mãe,
e percebeu de início um certo choque para, posteriormente, ele enxergar a tristeza em seus
olhos.

Foi quando ela teve AQUELA CONVERSA com ele pela primeira vez.

Com aquela conversa eu quero dizer a conversa sobre racismo, na qual uma criança
negra precisa ser orientada sobre o que é ser uma pessoa negra no país. É durante essa
conversa que algumas recomendações são orientadas. Assim, sua mãe começou explicando o
que era racismo, para posteriormente, ensinar como funciona as regras do jogo para um jovem
negro em uma sociedade racista. Tendo em vista que o racismo nega, desumaniza a alteridade
da população negra por meio de estereótipos que inferiorizam e relacionam o negro a maldade
(Fernandes, Souza, 2016).

11
Uma das narrativas de Santana (2015) traz o relato de uma médica negra, com boas condições financeiras que
sofre com as “sutilezas” do racismo. Num desses momentos, ela é confundida pelo entregador como a
empregada da casa.
52

Sua mãe ficou triste, pois soube que aquele era o momento que ela esperava poder
adiar por mais anos, afinal, ela e seu companheiro conseguiram proporcionar uma condição
financeira melhor para seu filho, bem diferentes da que eles alcançaram na infância. Eles
acreditavam que com a ascensão social o racismo poderia ser minimizado e até mesmo
esquecido das suas vidas. É a experiência do choque que os trouxe de volta à realidade social,
e seria preciso quebrar o imaginário infantil da inocência de Pedro.

- Meu filho, vivemos num mundo muito desigual, nossa família tem boas
condições, mas nem sempre foi assim. Chegou o momento de eu contar um
pouco da história da nossa família, e para isso, vou usar alguns autores que
estudaram essas questões. Mas primeiro, irei te passar algumas
recomendações, tudo bem? Preste bastante atenção.
- É importante sempre sair bem vestido de casa, você já percebeu o quanto é
comum as mães dos seus amigos implicarem com você, filho?
- Sim, eu não entendia porque sempre a culpa era minha.
- Eles sempre desconfiam da gente, Pedro!
- Você já está crescendo, por mais que nosso bairro seja calmo, você deve sair
sempre com seu documento, porque ainda que seu pai seja militar, a polícia é
cruel com a gente.

A história da nossa família começa antes mesmo de eu conhecer seu pai, é preciso
voltar a décadas atrás, quando eu e seu pai desejávamos mudar nossa condição financeira. Foi
no contexto da década de 80, em que nós dois já morávamos juntos e buscávamos melhores
condições financeiras, pois a vida na cidade fazia isso com as pessoas: a busca incessante por
capital.

Através das ideologias de mobilidade social ascendente e democracia racial, a vida


da metrópole, regida pelo sistema competitivo que começa a se organizar, cria um
conjunto de necessidades, aspirações e insatisfações que incentivam o negro a lutar,
junto com outros setores da sociedade, pela conquista da ascensão social” (Souza,
1983, p. 76).

Eu e seu pai Fábio nos conhecemos ainda jovens, ele com seus 21 anos e eu com 19
anos. O seu pai teve uma infância difícil, financeiramente falando, com 7 irmãos e mãe em
casa, pois seu avô faleceu cedo e a família passou pela fome e pela violência social. Como
53

irmão mais velho ele tinha mais obrigações para compor a renda familiar e cuidar dos irmãos,
sendo assim, desde cedo assumiu a responsabilidade de transformar sua realidade e não deixar
sua futura família passar por essas dores. Então, Fábio passou sua adolescência dividido entre
trabalhos informais, escola e cuidado dos irmãos. Era exaustivo demais. Seu pai não consegue
lembrar quantas vezes chorou de cansaço durante à noite, mas ver sua mãe exausta
trabalhando em várias casas como faxineira lhe deu combustível para continuar.
Foi nesse ponto que ele me conheceu. A mãe do seu pai foi fazer uma faxina lá em
casa, e ele foi levar a carteira que ela tinha esquecido. Fábio ficou encantado quando me viu, e
eu igualmente. Nós dois aproveitamos para conversar, durante o tempo que sua avó fazia
faxina, e isso se repetiu durante alguns meses. Mas ainda assim, seu pai sentia a necessidade
de se esforçar mais, pois a minha família era diferente da dele, não passava por aquelas
dificuldades, meu pai era um homem forte apesar da idade, era aposentado como militar e a
minha mãe era dona de casa com meus dois irmãos que estavam na faculdade. Seu pai se
sentia inferior e acreditava não ser o suficiente, porém diferente do que você poderia imaginar
ele não desistiu de mim e, por ter uma boa relação com meu pai, tomou interesse pela carreira
militar. Seu pai a viu como forma de melhorar financeiramente. Ele investiu muito tempo
estudando e se dedicando fisicamente para ingressar, até que conseguiu. A carreira militar12
foi e ainda é vista como uma ferramenta de mudança social para o negro

Para os policias negros, um corpo negro fardado rompe com o mito


historicamente construído da população negra como desordeira e conflituosa.
Para eles, a presença massiva de negros na corporação, comprova que os
mesmos são controladores e mantenedores da ordem social (Nascimento,
2015, p.10).

Ainda assim, o que Fábio não imaginava era o interior da convivência familiar da
minha família. Minha mãe era uma mulher ácida com piadas e comentários desagradáveis,
geralmente de teor racista, mesmo apesar de estar casada com um homem negro, ela o achava
do mesmo nível, pois suas condições financeiras eram boas, possuia formação superior então
era um “bom negro”. Eu lembro muito bem o dia que sua avó sugeriu que eu tomasse banho
com alvejante para “limpar” a pele e ficar mais clarinha. Permeava na família o ideal de ego
branco, isto é, a concepção de que o branco é a meta que deve ser atingida, já que esse
representa o modelo do sucesso, do positivo, do bom. Com isso, apesar de ser negro o meu pai

12
Dos 1181 policiais militares do Distrito Federal e Entorno que responderam o questionário de pesquisa
“Identidades Profissionais e Práticas Policiais”, coordenada pela professora Maria Stela Grossi Porto e integrante
do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia-INCT- “Democracia, Violência e Segurança Cidadã” 28% se
declararam brancos e 66,9% se declararam não-brancos (Nascimento, 2015, p. 3).
54

atendia a um dos fatores do ideal de ego branco, esse fator era o sucesso econômico (Souza,
1983; Nogueira, 2006).
Sendo assim, quando os dois me tiveram, a família torceu para que eu parecesse com a
minha mãe, afinal ela era branca de cabelos lisos e olhos claros. Para Souza (1983) no
desenvolvimento de um ideal de ego Branco é preciso primeiramente para o negro a negação,
ou seja, o apagamento de qualquer característica negra. Todavia, na tentativa desse
apagamento, para infelicidade da maioria, eu nasci com semelhanças dos dois, pele escura,
cabelos ondulados e olhos claros, ou seja, o retrato invertido do quadro “A Redenção de
Cam”. Lembra dele, daquela sua tarefa na escola?. Eu era a imagem das mulheres que
chamavam de mulata13 naquele período. Sempre ouvia comentários da minha mãe sobre ser
mais elegante e educada, meus passos eram sempre mapeados por ela, pois não queria que a
filha “se tornasse uma perdida”. Já o meu pai tornava as coisas mais leves com seu senso de
humor, e foi graças a ele que meu relacionamento com seu pai pode acontecer, uma vez que
minha mãe foi contrária, pois acreditava que ele não estava no nível da família, todavia, meu
pai e eu depois de muita insistência e empenho de Fábio conseguimos convencê-la.
Fábio e eu finalmente casamos, o que foi um suspiro de alívio para mim, já que eu não
estaria mais presa às cobranças e repressões da minha mãe. Fábio já estava há 3 anos
trabalhando no serviço militar e eu, que me tornei professora, juntamos economias o
suficiente para dar entrada numa casa bem localizada, com boas escolas perto, já que nós dois
planejamos ter filhos. Dessa forma, a nossa chegada na vizinhança trouxe certa
movimentação, pois os moradores já tinham certo ideal de comunidade entre vizinhos, logo,
nós destoávamos desse imaginário sobre novos moradores.
Eles esperavam uma família mais semelhante a deles, era isso que eles insinuavam
com olhares de surpresa ao bater na porta para cumprimentar, comentários como

“é você mesmo o/a novo(a) morador(a)?”

Eram pequenas atitudes, como a do entregador que perguntou a você sobre a patroa,
que demonstravam que eles não estavam preparados para nos acolher, e assim foi por um
longo período.

13
O termo mulata remete a história da democracia racial, do processo miscigenação e branqueamento do país,
refere-se a mulher filha de casal-interracial, com traços negros e brancos. Esse termo carrega uma conotação
pejorativa e sexual, pois muitas dessas mulheres no Período Colonial eram vistas como objeto sexual dos
“senhores” brancos (Silva, 2018).
55

Durante esse tempo, eu estava bastante angustiada, pois esperava ter sido
desvinculada desse ambiente hostil ao sair de casa, já Fábio por mais que tentasse se mostrar
otimista para mim, também, estava decepcionado, não era aquilo que havia sonhado para
nossa família. Ainda assim, com o passar dos anos fomos adquirindo o nosso espaço na
vizinhança, uma vez que eu consegui um emprego para lecionar na melhor escola da região e
seu pai tornou-se um militar respeitado.
Desse modo, nos esforçamos para sermos aceitos neste lugar, pois imaginamos que ele
seria o melhor para nossa família, pois era um lugar seguro e afastado das margens da cidade.
Após alguns anos, eu engravidei e nós dois acreditamos que não havia ambiente melhor para
te criar. Até chegar o momento de termos esta conversa sobre racismo, porque percebi que
independente do lugar essa violência sempre nos perseguirá. Quando formei esse pensamento
lembrei de um texto, em que li a seguinte afirmação: “[...] o racismo é uma desumanização e
uma negação da humanidade do outro, uma destruição muito profunda, que a mobilidade
social não resolve” (Munanga, 1996, p.223). Ela confirmou o que eu já sentia, que a posição
social da gente não eliminará as violências racistas que podemos sofrer.

*****

Dessa forma, após esse breve relato da mãe de Pedro, Dalva, sobre a história da sua
família, retomamos a narrativa de Pedro. Seus pais não notaram que Pedro já sentia aquilo há
muito tempo, a sensação de não pertencimento. Ele notava a diferença em relação a seus
amigos, nos aniversários era comum algumas mães tratarem ele com rigidez, mas ele não
sabia o real motivo, após “a” conversa apesar de ainda estar confuso, algumas coisas
começaram a fazer sentido.
Recordou da festa de 9 anos de seu amigo Guilherme na qual estavam os dois e mais
outros três colegas brincando próximo a piscina e um dos colegas o empurrou e ele acabou
esbarrando em Guilherme e juntos caíram na piscina, a mãe de Guilherme chegou aos berros
gritando pelo filho, e no momento, brigou com Pedro falando que ele era muito estabanado e
deveria ser mais cuidadoso na casa dos outros. Apesar de não ter sido sua culpa, Pedro ficou
muito mal e constrangido, ainda que seu amigo tenha o defendido. Dalva ao ficar ciente do
ocorrido brigou com a colega e chamou o filho para irem embora.
56

Com isso, o que Pedro sentia era a falta de acolhimento e identificação com a
vizinhança e lugar, lá tudo era branco. Seguindo o pacto da branquitude, tudo naquela
vizinhança foi feito com a intenção de beneficiá-los, através das melhores escolas, segurança,
ótimo bairro, até sua família que se adequou às normas deles para serem aceitos (Bento,
2002). Sua família, ainda assim, era o único ponto que destoava, apesar de todo empenho dos
seus pais para tentar se enquadrarem, seguindo as regras da vizinhança e sendo prestativos.
Apesar e diante disso, Fábio e Dalva sabiam a importância de assegurar parte da
herança familiar com samba, pagode e festa familiares. Lembrou do aniversário da sua avó
paterna de 60 anos em que seus pais fizeram um churrasco enorme, com direito a roda de
samba, sua mãe e suas tias tentando sambar, enquanto seu pai e seus tias fingiam ser
churrasqueiros. A festa teve tudo que sua avó tinha direito, seus primos estavam lá também,
apesar da distância eles eram seus melhores amigos, eles brincaram a beça. Essa é uma das
melhores lembranças de Pedro, era uma memória de alegria e pertencimento.
Nesse sentido, como a identidade está em constante produção, Pedro, justamente, por
apreciar esses momentos em família, sentia que aquela realidade da sua vizinhança já não era
a que ele se sentia semelhante, com isso, a partir da compreensão desse sentimento, ele
percebeu a diferença, isto é, o contraste com o outro (sua vizinhança), que fomentava a
alteridade da sua família. (Fernandes & Souza, 2017)
Com o passar dos anos, na sua adolescência cada vez mais afastados dos seus primos
que foram morar em outra cidade, a necessidade de uma identidade própria fez Pedro ter
diversas crises. Pedro foi se tornando um jovem fechado e recluso, quase não saía de casa e
isso preocupava a sua mãe. Inúmeras foram as vezes em que Dalva o chamava para sair, ir ao
cinema ou parque, e o instigava a sair com seus amigos da escola e vizinhança, entretanto, a
resposta era sempre a mesma “não estou afim, mãe!”. Apesar de serem seus colegas, Pedro
não se sentia à vontade para sair com eles, pois tinha que ser sempre muito cuidadoso, sempre
recordava da conversa com a mãe e suas recomendações. Esse Pedro estava bem diferente
daquela das festas em família.
Até que dia um aluno novo entrou na sua turma, ele era parecido consigo por ser um
jovem negro, mas seu estilo era totalmente diferente, seu cabelo crespo não era curto como o
seu, era com dreadlocks e Pedro achou aquilo incrível, o modo dele falar era diferente do
restante da turma e ele soube depois que ele vinha de outra cidade.
Apesar de querer conhecê-lo, Pedro passou muito tempo distante das pessoas, sem
fazer novas amizades, logo, não conseguiu tomar a iniciativa para iniciar um diálogo.
Todavia, não foi preciso esforço, o rapaz que descobriu chamar-se João Vitor veio ao seu
57

encontro e sentou na cadeira atrás dele, logo depois, ele se apresentou e foi esse o início de
um grande e sincera amizade.
Depois de conhecer João Vitor, Pedro descobriu que ele era bolsista e tinha se mudado
recentemente, morava numa zona mais marginalizada da cidade. Foi assim que João Vitor
mostrou uma nova realidade para Pedro. Dalva, de início, ficou receosa porque ao saber da
origem de João Vitor pensou que talvez não fosse uma boa influência para seu filho, mas
depois que o conheceu e viu como o filho estava mais alegre, participativo e não mais
trancado dentro do quarto, ela aceitou tranquilamente a amizade dos dois. Assim, Pedro
passou a sair mais, frequentar shows de rap, sambas, conheceu a capoeira e se apaixonou.
Ele passou a ir para a casa de João Vitor onde sempre era bem recebido por sua família
e estava finalmente começando a se sentir pertencente a um espaço e a um povo, realidade
que era bem diferente da sua vizinhança. As pessoas o tratavam bem, sem repressões a todo
momento e olhares de desconfiança, ele se sentiu livre para ser quem ele era, ou seja, ser
autêntico sem precisar estar monitorando seu comportamento mecanicamente como os seus
pais orientavam, com vergonha de ser julgado.

Foi esse o início do seu processo de construção do orgulho de ser negro.

Segundo Scheff (1990, apud Britt & Heise, 1997), a vergonha e o orgulho são
emoções sociais oriundas da concepção de si mesmo do ponto de vista de outra pessoa. Scheff
argumenta que a vergonha acontece na medida em que alguém se sente avaliado
negativamente por si mesmo ou pelos outros, enquanto o orgulho é manifesto quando alguém
se sente avaliado positivamente por si mesmo ou pelos outros. Nesse sentido, houve uma
transformação no comportamento de Pedro, deixou de ser calado e passou a falar mais,
apresentar suas opiniões e pontos de vista. Pedro não temia mais ser afastado, pois sabia que
naquele ambiente e para aquelas pessoas ele era bem-vindo. Assim, Pedro que sentia
vergonha por sentir-se avaliado negativamente pelos outros da sua vizinhança, logo, ao
conviver em espaços nos quais ele era querido passou a construir orgulho sobre quem ele era.
No entanto, ele ainda sentia uma falta no seu fundo, havia um desejo, que ele ainda
não sabia qual era. Buscou de todo modo saná-lo, o primeiro passo foi com amigos, o segundo
foi com a consciência de classe. Ainda que estivesse próximo a semelhantes Pedro sentiu a
necessidade de validar ainda mais seu espaço, não era só ser aceito, mas ser reconhecido
como negro. Nesse ponto, é importante observar como uma identidade construída a partir da
rotulação tem sua base na estigmatização, assim, Fernandes & Souza (2017, p. 112) afirmam
58

que o “[...] estigma que impede o negro de desenvolver um sentimento de pertencimento


racial e, paralelamente, de construir a autoestima baseada numa identidade racial positiva”.
Com isso, depois de ouvir mais uma das histórias da avó de João Vitor sobre a família
e como foi a sua vida, Pedro acabou analisando a sua vida, percebeu que não conseguia
acessar sua história, isto é, a verdadeira história da sua família: a história do seus. Quem eu
sou? Quais são as minhas raízes? Como vou sentir orgulho se nem sei quem sou?
A tentativa de resgate dessa história deu-se primeiramente a partir do questionamento
dos seus pais e da sua única avó viva. Todavia, eram histórias sobre as vivências do interior e
as dificuldades do passado. Eles não sabiam falar sobre as outras gerações, pois não tiveram
esse contato. Esse relato, é o exemplo que Missiatto (2021) denuncia em seu trabalho
Memoricídio das populações negras no Brasil: atuações das políticas coloniais do
esquecimento

Neste país se cresce ouvindo histórias referentes ao sobrenome,


estas não dizem respeito à identificação de pessoas negras, são histórias
brancas. Toda pessoa branca orgulha-se em falar de sua ancestralidade, de
sua origem italiana, polonesa, espanhola, portuguesa, alemã etc. Pelo
sobrenome muitos alcançam o direito à dupla cidadania, resguardam
prestígios e acessam histórias anteriores ao próprio nascimento. Mas, as
pessoas de pele negra não. Suas histórias, são fragmentos e suas
ancestralidades estão encobertas pelo denso véu da colonialidade
escravagista. Não se sabe de que lugar de África vieram, a qual reino
pertenciam, quais foram as principais lutas de seus ancestrais, como seu
povo se organizou e construiu sua política milenar (Missiato, 2021, p. 253.
Grifo nosso).

Com a sede pela busca de suas raízes Pedro começou a pesquisar sobre formas de
obter esse acesso, já que as histórias que obteve sobre o povo negro sempre foram marcadas
por dor e sofrimento. Eram menos histórias de vida e mais histórias de sobrevivência.
Sobrevivência porque eram marcadas por lutas diárias, lutas contra a fome, violência e morte.
Ele não queria resumir a sua história a sobrevivência, porque isso seria roubar o bom que ele
viveu (Emicida, Majur, Vittar, 2019). Histórias de vida para Pedro são aquelas que ele vai
poder contar aos seus filhos, sobre como sua família tinha uma tradição de valorização das
raízes, era unida, divertida, acolhedora e faziam festas como nenhuma outra, mas também, o
quanto seus pais se esforçaram para resistir diariamente.
Até que em uma dessas pesquisas ele viu alguns influenciadores negros fazerem uma
espécie de teste de ancestralidade em uma empresa online. Assim como apontam Gaspar Neto
e Santos (2011, p. 230) “[...] na quase totalidade dos casos, essas empresas apresentam seus
59

produtos como revelações que permitirão a um indivíduo, uma família ou mesmo uma
comunidade descobrir o que, “de fato”, e por que não, “de direito”, eles são.” O teste em
questão parecia trazer uma resposta que Pedro aguardava há muito tempo.

Os testes de ancestralidade consistem na coleta do material genético do solicitante


para sua análise, buscando resgatar a origem geográfica e as características genéticas da
pessoa a partir do seu DNA (DeoxyriboNucleic Acid). As propagandas ( figura 6 e figura 7) de
tais métodos de investigação expõem “[...] testemunhos de anônimos e celebridades revelam
que, tal qual apontado por Lindee (2010), o mundo daqueles para os quais os segredos
genéticos foram revelados passa a se caracterizar por um apanhado de transformações
repletas de logro e alegria.” (Gaspar Neto e Santos, 2011, p. 235)

Figura 6: teste de saliva, genera premium Figura 7: teste básico

Fonte:site Memed+ Fonte: site Amazon

É fundamental ressaltar que as empresas que trabalham com esses testes utilizam
banco de dados genéticos, isto é, um conjunto de sequências genéticas armazenadas com
informações relevantes sobre o funcionamento do DNA e dos genes. Existem diversos bancos
de dados pelo mundo, sendo assim, universidades e laboratórios de pesquisa fazem parcerias
para o compartilhamento desses dados, utilizando-os e inserindo informações. (Faria, 2023)
O interesse de Pedro nestes testes foi o de provar que sendo um “verdadeiro negro”
suas raízes estariam em África e foi baseado nesse continente que o orgulho por sua raça foi
gradativamente sendo constituído e seria, finalmente, referendado pela ciência. Ainda assim,
60

esses eram caros e foi preciso juntar economias para poder realizá-lo. Nesse contexto, cinco
meses depois Pedro finalmente conseguiu realizar o teste, após um mês o resultado saiu e com
isso o choque. O resultado do seu teste apresentou que apenas 20% do seu DNA era de
origem africana, e para agravar ainda mais sua decepção 27% condizia com a origem
europeia. Pedro estava constrangido, afinal a base de seu orgulho racial estava abalada, tal
resultado tornou-se algo que deveria ser escondido, apagado, pois seria a constatação do
“negro impuro” racialmente.
Buscando consolo para o resultado do seu teste, Pedro mergulhou novamente na
internet e encontrou uma reportagem interessante. Era sobre um projeto realizado pela BBC
chamado “Raízes afrobrasileiras” de 2007, em que nove personalidades negras brasileiras
fizeram um teste para saber a porcentagem genética de origem africana. Os nomes
selecionados foram Milton Nascimento, Djavan, Seu Jorge, Neguinho da Beija-Flor, Sandra
de Sá, Daiane dos Santos, Obina, Ilde Silva e Frei David. Cada um deu porcentagem variada,
nenhum recebeu 100% africano, mas os comentários de alguns participantes chamaram mais
atenção para Pedro.
Seu Jorge por exemplo comentou com tristeza

Tinha muita esperança de ser 100% negro. Se fosse, eu ia pedir uma indenização
muito pesada nesse país, mas sou filho dos culpados também. […] Miscigenação era
barbárie. Não tinha isso de história de amor, era barbárie. Fico feliz em saber que
parte da minha galera resistiu e compõe 85% dos meus genes. […] Tem que ser
negro para saber o que é você entrar em um ônibus, como uma pessoal normal, e ver
os passageiros saltando antes do ponto, escondendo relógio, ligando para a viatura. É
uma agressão muito forte. É violento” (BBC Brasil, 2007).

Já o religioso Frei David apontou com indignação

Eu me sinto muito frustrado com o trabalho, uma vez que o cerne do projeto era
aprofundar a origem africana. […] Não aceito que a ciência não tenha
instrumental técnico para aprofundar a herança africana considerando que ali
foi e é o berço da civilização. Ele [Sérgio Pena] simplesmente boicotou de maneira
consciente o resultado. […] Nunca vi nenhuma batida policial em ônibus, por
exemplo, que antes de discriminar perguntasse à pessoa quantos por cento de genes
afro ela teria. A discriminação e o discriminador, que tantos estragos trazem ao
tecido social brasileiro, não vêem na genética os argumentos para parar de
discriminar. No entanto, querem que o discriminado pare de lutar por seus direitos
porque “todos temos genes afro” (BBC Brasil, 2007. Grifo nosso).

Nota-se que os dois discursos trazem pontos de vista diferentes para o teste. No de Seu
Jorge, assim como Pedro, percebe-se um desejo pela integralidade racial que no discurso
passa a ser entendida como positiva, enquanto o miscigenado seria sim o fruto da violência e,
61

portanto, necessariamente negativo. O projeto foi realizado por Sérgio Pena, um médico
geneticista criador do Laboratório Gene, o qual foi responsável pelos testes realizados. Pena
em seu percurso como pesquisador defendeu o fim do conceito de raças. Nesse sentido, Frei
David encontrou o furo no projeto, já que no convite e título da pesquisa trouxe como foco a
análise das raízes africanas no país, todavia, tal estudo foi utilizado para confirmar o que Pena
já defendia, a saber: o equivoco no conceito de raça, já que para ele não existem brancos nem
negros no Brasil devido à miscigenação. Essa estratégia de Pena, fundamenta-se na discussão
sobre raça no Brasil através do viés biológico, que se utilizada estratégia de negar a existência
de raça, e por conseguinte, negar a existência do racismo, afirmando a concepção de
igualdade entre brasileiros.
Pedro já não sabia como se sentir, estava com seu orgulho ferido, já que a
porcentagem que ele acreditava reafirmar sua identidade no final das contas a fragilizou. Ele
estava envergonhado, queria se esconder, bem diferente do esperado, já havia planejado fazer
uma publicação nas redes sociais, apresentando o resultado do seu teste. No entanto, não foi o
que ocorreu, pois como aponta Britt e Heise (1997, p.252) “[…] o orgulho, tal como a
vergonha, envolve mais do que uma avaliação de si mesmo e se reflete na forma de interagir
com os outros. O comportamento orgulhoso ocupa o espaço público ou, mais simplesmente,
envolve exibição pública.” Nesse sentido, a exibição de Pedro foi devastada, ele precisava
buscar uma nova forma de construir sua identidade, pois a sua solução de utilizar fatores
genéticos como comprovante das suas raízes biológicas e étnicas o havia traído. Por fim,
Pedro se viu preso em mais uma armadilha ao tentar usar o viés biológico, que na verdade
negava, a partir da biologia, o conceito de raça como sustentáculo do seu orgulho na formação
da sua identidade racial. Sendo assim, ao contar seu desapontamento a sua mãe, ela lhe deu
um novo horizonte para sua formação.

“Meu filho, você já encontrou sua identidade há muito


tempo, ela está na sua família e nos seus amigos, nos seus
gostos pela capoeira, pelo rap, pela dança. Sua identidade
como homem negro não vai ser construída por um papel, mas
sim, por sua história!”
62

5. Agrupando o que vivi, o que vi e o que pari

Por fim, permita que eu fale


Não as minhas cicatrizes
Achar que essas mazelas me definem
É o pior dos crimes
É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóis sumir, aí (Emicida, Majur & Vittar, 2019)

O presente trabalho propôs discutir a transição do sentimento de vergonha para o de


orgulho entre sujeitos negros na construção e defesa de uma identidade negra cristalizada.
Durante tal trajeto, foi utilizado como ferramenta para a produção dessas reflexões o método
da escrevivência, que consiste na produção de uma escrita que emerge do cotidiano da pessoa
que escreve, através de lembranças, observações e experiências. Com isso, foram produzidas
cenas, que assim como Santana (2015) insinua, foram construídas pela combinação de
histórias que vivi, que vi e que pari. A escolha da escrevivência nasceu de uma demanda de
liberdade, que se dá no texto a partir da possibilidade de quebrar o silêncio, contando e
refletindo vivências singulares do cotidiano que remetem à experiências coletivas que, através
da escrita puderam ganhar corpo.
A liberdade de que eu falo, é a que permite quebrar barreiras na escrita da academia.
Na minha graduação sempre foi insinuado que devemos falar a partir do eco de outros, e sob
uma forma específica de construção, que tenta minar as construções que permitem delírios na
escrita. Delírios aqui em seu sentido pleno, como invenção e produção de outros mundos que
subvertem, mesmo que precariamente, as normas dadas e tão naturalizadas em nossos fazeres
acadêmicos. Com este exercício, apostamos na construção de formas outras de produção do
conhecimento que se quer científico.
O objetivo geral deste texto tratou da investigação acerca de como os sentimentos de
orgulho constituem-se no sujeito negro no cenário brasileiro diante do racismo, e como essa
dinâmica produz efeitos específicos na busca e defesa de uma identidade negra. Durante tal
análise foi possível observar que o sentimento de vergonha está amplamente relacionado a um
conjunto de experiências negativas, que fomenta no sujeito inseguranças e vontade de
afastamento.
Logo, no âmbito do racismo, o sujeito negro experiencia uma vergonha constante ao
passar grande parte da sua história sofrendo com processos de marginalização e exploração,
63

que promovem a interiorização de uma inferioridade em relação aos brancos. Assim como,
aponta Souza, 1983, na sua discussão sobre o ideal de ego branco, que coloca a branquitude
como modelo, enquanto os negros deveriam permanecer em posição subalterna e
experimentar o sentimento de vergonha de si (Nogueira, 2021). É nessa direção que
ensaiamos uma compreensão dos sentimentos de inadequação de Pedro na vizinhança dos
seus pais. (Souza, 1983; Nogueira, 2021).
Questões que compõem também as tentativas de Camila de ser aceita na sociedade e a
repressão de emoções que ela acreditou que não seriam acolhidas, pois pessoas negras são
ensinadas desde a infância a silenciar seus sentimentos, seja na escola ou no lar (Hooks, 2010;
Cavallero 2004). Compondo, por fim, o quadro que esboçamos aqui, ainda nos
encontramoscom Ester que acreditava que o amor não era um sentimento para ela devido a
história de violências sofrida por mulheres negras na sua família, além do constrangimento
que sentia ao imaginar a ideia de compartilhar seu sofrimento com um branco. A perspectiva
de que o amor não é uma vivência possível para uma pessoa negra ainda está presente na
sociedade e tem raízes históricas no processo de exploração do seu corpo (Hooks, 2010;
Gonzalez, 1984).
Já o orgulho se estabelece como o gozo a partir do reconhecimento positivo de si. O
orgulho empreendido aqui foi o performático que se utiliza de padrões estéticos, afetivos e
políticos que promovem uma normatização na forma de vivenciar a negritude, com base em
padrões totalizantes que reduzem as possibilidades de vida a partir de normas. Seguindo essa
descrição, é mediante tais condições que armadilhas na defesa de uma identidade negra se
formam através da política identitária. O sujeito, que sofreu diversas opressões na sua
vivência ao tentar superar a vergonha que o racismo produz, torna-se sobreimplicado na
militância, usando o orgulho como ferramenta de emancipação.
No entanto, o uso do orgulho como dispositivo central na defesa da identidade negra
cristalizada tende ao fracasso devido a suas bases estarem, muitas vezes, na política identitária
contemporânea (Haider, 2019). Tal afirmação se dá baseando-se nas cisões, que esse
sentimento, impulsionado por tal política, produz ao ditar as formas que o sujeito deve
conduzir sua vida, utilizando-se do controle da vida, com aval da defesa de uma identidade
negra cristalizada, que prega parâmetros para o reconhecimento positivo do sujeito.
Nas cenas foi possível verificar essa hipótese ao observar a experiência de Ester, que
foi violentada por pessoas negras que pregavam o afrocentramento como medida de orgulho
negro, deixando explícitos os limites afetivos para uma pessoa negra, que na política
identitária deve entender o branco apenas como inimigo. Na narrativa de Camila, também
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elevam-se normatizações para vivenciar a negritude; dessa vez, os limites partem da estética,
através da rejeição não somente da escolha capilar de Camila, mas também, dessa como
mulher negra ao ser chamada de embranquecida. Por fim, temos Pedro que tentou pautar seu
orgulho negro mediante a esfera biológica, acreditando que essa resposta traria o
reconhecimento como sujeito e negro, assim, pertenceria a uma almejada identidade.
Com base no exposto, faz-se necessário a elaboração de pesquisas sobre o sentimento
de orgulho e suas contradições na articulação da luta antirracista. Ademais, seguindo tal
demanda é importante o exame da identidade negra brasileira e a influência da política
identitária nos movimentos sociais no Brasil, com objetivo de analisar as adversidades
produzidas por ela para que revoluções não sejam oprimidas pelo separatismo identitário, que
utiliza da divisão de opressões para mitigar a luta coletiva.

AQUI VAI MEU ÚLTIMO: PERMITA QUE EU FALE!

Esse trabalho foi a oportunidade para que eu finalmente gritasse na academia. A


menina que encontrou um novo mundo na universidade, fora das salas de aula ela se permitiu
conhecer, estranhar, conectar com novas formas de afeto e cuidado. Escreviver é isso, quebrar
silêncios e permitir que as palavras engasgadas escorram pelas linhas. As mazelas que vivi
dentro e fora da universidade com o racismo, em certos momentos me definiram, mas hoje
não, eu afirmo que jamais permitirei dar troféu para meus algozes.
Minha passagem pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) foi repleta de
dificuldades com a distância, sendo uma jovem do interior do estado, que precisava enfrentar
cinco ônibus, que totalizavam uma jornada de quase cinco horas por dia. As cobranças dentro
e fora da academia eram constantes. Dentro da universidade sofri com os docentes que
estabelecem uma linha de exigência para todos os discentes, visando uma igualdade,
entretanto, essa abordagem muitas vezes desconsidera as diferentes realidades individuais,
resultando em uma desigualdade camuflada. Mas acima de tudo isso, repleta de choros
engasgados, de abraços, risos e partilhas. Eu posso dizer que vivi a UFS, e seguirei vivendo
outros lugares.
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