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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE - UFS

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUÇÃO EM HISTÓRIA

Para além dos fios: cabelo crespo e identidade negra feminina na


contemporaneidade

DENISE BISPO DOS SANTOS

SÃO CRISTÓVÃO
SERGIPE - BRASIL
2019
DENISE BISPO DOS SANTOS

Para além dos fios: cabelo crespo e identidade negra feminina na


contemporaneidade

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Sergipe, como requisito obrigatório
para obtenção de título de Mestre em História.
Linha de pesquisa: Cultura, Memória e
Identidade

Orientador: Prof. Dr. Petrônio José Domingues

SÃO CRISTÓVÃO
SERGIPE - BRASIL
2019

2
DENISE BISPO DOS SANTOS

Para além dos fios: cabelo crespo e identidade negra feminina na


contemporaneidade

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Sergipe, como requisito obrigatório
para obtenção de título de Mestre em História.
Linha de pesquisa: Cultura, Memória e
Identidade

Orientador: Prof. Dr. Petrônio José Domingues

Aprovada em: 13 de junho de 2019

Banca Examinadora:

3
Dedico esta dissertação a todas as
mulheres negra
de antes, de hoje e as que virão.

4
AGRADECIMENTOS

Escrever essa dissertação foi muito especial, pois a produção só foi possível porque
tive ao meu lado pessoas que me ajudaram tanto por meio de palavras como gestos e que
foram fundamentais na construção de toda a pesquisa. Lembro-me das noites que fiquei
conversando com minha amiga e companheira de moradia, Daniela Silva, sobre o momento
que iríamos escrever o tópico do “agradecimento” e aqui estou... Muito emocionada, mas com
a certeza de que as palavras a seguir tentarão demonstrar toda a minha gratidão.
Primeiramente, gostaria de agradecer aos meus ancestrais que lutaram bravamente e
resistiram a todas as privações históricas e hoje contemplo este momento por causa deles. Em
especial, a minha vó Helena Francisca, que não a foi dado o direito de estudar e a minha mãe
Marisa dos Santos que desafiou todas as estatísticas para sobreviver e criar uma filha nesse
Brasil, que como todos sabem; não é fácil! Tenho plena consciência que o mérito da produção
da escrita é minha, mas sem dúvida, se não fossem ambas, a fortaleza que elas transmitiram a
mim, eu não conseguiria chegar a onde estou. Recordo-me que no início da aprovação do
mestrado, mainha ainda sem saber o que era essa nova conquista acadêmica, falou para mim:
“se você quer um mestrado, se jogue, pois eu já estarei me jogando em sua frente para retirar
todos os obstáculos que irão surgir". Gratidão minha mãe, por mover montanhas para permitir
que sua filha realizasse todos os sonhos.
As minhas historiadoras que me acompanham desde a graduação: Josiane Rocha,
Claudiana Cardoso e Dandara Matos. Desde sempre eu agradeço e não me canso de falar o
quanto sou grata ao Universo por ter me permitido conhecer vocês três. Josy, suas palavras e
seu apoio incondicional foram essenciais para eu encontrar a minha fé. Você soube me
conduzir de maneira impar e me fez refletir sobre o porquê não podemos desistir, nunca.
Obrigada! Claudinha, amiga, como agradecer a você? Meu agradecimento é diário: nas redes
sociais e toda vez que te vejo. Você me fez sair da inércia e ir à luta. Orientou-me, acalmou-
me, falou-me verdades duras e me acalentou. Você é luz e terá a minha eterna gratidão!
Dandara Matos, você me conhece melhor que eu mesma e sabe o quanto está sendo
importante esse momento para mim. Você é meu ponto de apoio, é meu alicerce, é
simplesmente a minha Dandara. A minha sorte é que todos os dias que (desde sempre)
estivermos juntas, festejaremos e agradeceremos pela vida uma da outra. Gratidão por tudo e
pelo o que virá. Eu pedi tanto a Deus uma irmã, e ele enviou três. Amo vocês.

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Ao meu companheiro, Augusto Júnior pela cumplicidade e compreensão nesse longo
período. Mesmo antes da aprovação, esteve comigo compartilhando todo o processo da
elaboração do projeto de pesquisa. Seu otimismo foi fundamental para eu poder continuar.
Muito obrigada, meu amor.
A rede de mulheres que desde o início me ajudou e me fortaleceu:
A amiga Daniela Silva que compartilhou literalmente comigo as alegrias e apreensões
do mestrado. Até tentamos não morar juntas, mas o Universo é sábio. Cada um no seu
quadrado e claro, duas andaraienses teriam que ficar no mesmo quadrado. Um ano
compartilhando a casa, novidades do mestrado e da vida em Sergipe. Muitos segredos, risos,
choros e comidinhas que foram primordiais para aguentar a saudade e permanecer sã no
período do mestrado. Obrigada, amiga! Amo você!
A minha sogra Janete Oliveira que não mediu esforços para me ajudar a realizar mais
esse sonho. Permaneceu firme e forte ao meu lado, literalmente. Suas visitas e seus conselhos
foram importantes nesse período, além de ser ótima parceira de viagens. Agradecer também
ao meu sogro Augusto Rocha, por todo apoio e preocupação.
A amiga Majbritt Meincke que todos os dias emanou energia positiva para mim.
Compartilhar com você sobre minha vida, em especial sobre o meu mestrado, foram
“terapias” que me fizeram respirar com alívio. Com você tive meu primeiro contato do que
seria um mestrado. Obrigada amiga por todo o seu apoio e por você ser um exemplo para
mim. Amo-te, amiga.
A Edna Matos que é uma das minhas referencias. Sua história me inspira. Gratidão por
todas as palavras e exemplo.
A Paula Lima, amiga amada que o Universo me deu! São exatamente dois anos de
amizade, a mesma duração dessa dissertação. Nada é por acaso. Sou tão grata por te encontrar
e agora poder compartilhar todos os momentos contigo. Gratidão por toda energia e parceria.
A Dailza Araújo, uma mulher que tenho muita admiração. Gratidão por tudo o que
você somou em minha vida. Com você, eu refleti diariamente que “uma sobe e puxa a outra”.
Além disso, obrigada pelas sugestões, leituras e empréstimos de livros. Você faz parte dessa
vitória!
A Priscila Lobo, Linda Gomes, Cíntia Castro, Débora Oliveira, Stela Damasceno, Ana
Santos, Bruna Ramos e Tamires Costa por toda a preocupação, pelos incentivos e por toda a
torcida. Conversar e compartilhar com vocês a minha trajetória, fez-me perceber que nunca
estive só. Gratidão meninas.

6
As amigas que Sergipe me deu. Debora Leite, gratidão por todo apoio. Sou muito
grata ao Universo por ter te conhecido. Aprendi muito com sua bravura e sensibilidade.
Obrigada por toda a cumplicidade.
A Selma Santos que também tenho como referência de resistência de mulher negra.
Inspiro-me em você, minha irmã. Gratidão por todos os conselhos e sou feliz por compartilhar
contigo minhas expectativas, segredos, choros, sorrisos e os happy hour. Obrigada pela
morada! Gratidão!!!!
As amigas que reencontrei depois de 12 anos. Mônica, obrigada por toda atenção dada
a mim em Aracaju. Você, Kiara e Evellyn são meus tesouros.
A Anne Caroline serei eternamente grata pela acolhida e risadas. Amiga de longa data
e ainda trouxe a vida a linda Laurinha. Nossos encontros foram sempre recheados de alegrias
e muitos sambas.
E Miriam, obrigada também pela estadia e por toda energia. Gratidão pela existência,
sua e de Yasmim. Gratidão por acreditar em mim desde o primeiro dia. A sua frase ainda ecoa
“você será aprovada, mulher”. Obrigada meninas. Amo vocês.
Agradecer as mulheres que deram entrevistas para a dissertação. Ana Paula Couto,
Samara Azevedo, Juliana Lobo, Hilmara Bitencourt, Cíntia Castro, Dandara Matos, Aline
Silva, Karoline Gois, Debora Leite, Michele Santos, Thatiana Menezes, Angélica
Nascimento, Leiliane Santos e Míriam Félix. Gratidão por compartilharem comigo suas
histórias de vida, de momentos tristes, mas, sobretudo, de fatos especiais que tiveram com
suas cabeleiras. Gratidão por todos os registros.
Agradecer a turma do mestrado que me abraçou desde o primeiro dia de aula. Não
esquecerei jamais toda acolhimento que vocês me deram. Sintam-se agraciados por meio de
três pessoas da turma: Andrea Rocha, obrigada pelas palavras confortantes, conversas e pela
ajuda Acadêmica. Você foi a primeira pessoa que me deu boas vindas. Sua energia foi
fundamental para eu iniciar essa trajetória com muito otimismo. Gratidão Déa!! A William
Siqueira, amigo querido que apesar das poucas conversas que tivemos, seu carisma e
simplicidade foram contagiantes. Aprendi contigo que mesmo que o obstáculo pareça grande,
não conseguirá nos bloquear. Obrigada!! E Ivoneide Santos, amiga que tanto estimo, que
tanto quero o bem. Gratidão pelas conversas, desabafos, choros e sorrisos. Poder compartilhar
contigo tantos momentos, foi um aprendizado de vida! Obrigada por me emprestar a sua
família. Olha, a nossa trajetória não termina por aqui, viu? Amo muito você!!!

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Aos professores que fazem parte do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal de Sergipe. Todo o ensinamento transmitido por vocês foi
essencial para a construção da dissertação de mestrado e que levarei para a vida. Gratidão.
Ao meu orientador, Petrônio Domingues. Foi além e tornou-se meu amigo. Sou muito
grata por todas as orientações, tanto para a dissertação quanto para a vida acadêmica em geral.
Gratidão pelo exemplo que és para mim.
A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo
apoio financeiro que permitiu o desenvolvimento dessa pesquisa.
Por fim, é necessário falar que escrever essa dissertação não foi fácil. Foram dois anos
que ocorreram fatos lamentáveis no Brasil. Golpes atrás de golpes que infelizmente serão
marcados na História. Além disso, ocorreram muitas mortes, violências e racismos contra a
população negra, em especial, às mulheres afro-brasileiras. Escrever uma dissertação, falando
das mulheres negras, de nós, do povo preto e assistir a tantas perdas não foi fácil. Não mesmo.
Por isso, foi tão importante o apoio de todos que citei. Juntamente com a fé. À Deus por toda
benção emanada a mim e energia para enfrentar todas as dificuldades nessa trajetória e a
minha mãe Oxum que me guiou, livrou e conduziu pelos melhores caminhos. Òóré Yéyé ó,
minha mãe!
Gratidão aos meus. E para quem acha que é “mimimi” (os entendedores entenderão),
reparem: vim de Andaraí/Ba, moro em Salvador, da comunidade do Nordeste de Amaralina.
Meus ancestrais lutaram por isso. Minha mãe e amigos também. Quer mais? Acabo de me
tornar Mestra em História. Estamos em festa. Viva a nós!

8
RESUMO

A presente pesquisa tem como objetivo compreender os fenômenos que levaram um grupo de
mulheres negras a assumir o cabelo crespo tornando-o expressão de luta contra o racismo,
estratégia de resistência e redefinição da identidade feminina negra contemporânea. Nesse
sentido, no intuito de entender a influência do cabelo para a subjetividade dessas mulheres,
foram analisados quatro paradigmas capilares, são eles: Cabelo Alisado, Pluralidade Capilar,
Black Power e Transição Capilar. Por meio das contribuições do campo da História do Tempo
Presente que nos fornece possibilidades de analisar a movimentação de sujeitos sociais em
torno do aspecto capilar na contemporaneidade, realizou-se a coleta de dados em revistas da
Raça Brasil, narrativas de mulheres das cidades de Aracaju/SE e Salvador/BA e relatos de
grupos em redes virtuais. No que tange aos resultados encontrados, infere-se esse retorno
capilar às múltiplas dimensões como o diálogo com o corpo feminino, afirmação de
identidade, insurgência de um movimento virtual e presencial em torno da questão capilar,
bem como, troca de experiências e vivências no sentido de que são intensamente constituídas
de subjetividade, prisma fundamental para que adquirissem os significados no contexto atual.
Dessa maneira, a presente pesquisa busca contribuir com a reflexão acerca da construção da
identidade de mulheres que vivenciam e ressignificam as representações capilares pautadas na
intensa relação com os paradigmas que giram em torno do cabelo crespo.

PALAVRAS-CHAVE: Mulheres negras. Cabelo crespo. Identidade negra. Paradigmas


capilares.

9
ABSTRACT

The present research aims to understand the phenomena that led a group of black women to assume
afro curly hair making it an expression of the struggle against racism, a resistance strategy and a
redefinition of contemporary black feminine identity. In this sense, in order to understand the
influence of hair on the subjectivity of these women, four hair paradigms were analyzed: Hair
Straightening, Capillary Plurality, Black Power and Hair Transition. Through contributions from the
field of History of the Present Time that provides us with possibilities to analyze the movement of
social subjects around the capillary aspect in contemporary times, the data was collected through the
magazines “Raça Brasil”, narratives of women from the cities of Aracaju / SE and Salvador / BA and
reports of groups in virtual networks. With regard to the results found, this capillary return is inflected
to multiple dimensions such as dialogue with the female body, affirmation of identity, insurgency of a
virtual and face-to-face movement around the capillary issue, as well as exchange of experiences
which are intensely loaded with subjectivity, a fundamental prism for the ways in which the women
acquired meanings in the current context. In this way, the present research seeks to contribute with a
reflection on the construction of the identity of women who experience and create a resignification of
the capillary representations based on the intense relation with the paradigms that revolve around afro
curly hair.

KEY WORDS: Black women. Afro curly hair. Black identity. Capillary paradigms.

10
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Ângela Davis no partido Panteras Negras................................................................36


Figura 2 - Carta de princípios do MNU....................................................................................38
Figura 3 - Cabelo bom da Revista Raça Brasil.........................................................................44
Figura 4 - Primeira Revista da Raça Brasil Setembro 1996.....................................................44
Figura 5 - Segunda Revista da Raça Brasil Outubro 1996.......................................................44
Figura 6 - Terceira Revista da Raça Brasil Novembro 1996....................................................45
Figura 7 - Quarta Revista da Raça Brasil Dezembro 1996.......................................................45
Figura 8 - Cabeça Feita e estilos...............................................................................................49
Figura 9 - As tranças produzidas por fio de kanecalon.............................................................51
Figura 10 - A técnica de entrelaçamento...................................................................................52
Figura 11 - A técnica de Mega Hair..........................................................................................53
Figura 12 - O cabelo crespo natural..........................................................................................53
Figura 13 - Aspecto capilar: Crespo, sim..................................................................................54
Figura 14 - Modelos capilares do crespo..................................................................................55
Figura 15 - Cabelo crespo: estilos de penteados ......................................................................56
Figura 16 - Penteados da Raça Brasil.......................................................................................56
Figura 17 - Black Power na cabeça...........................................................................................57
Figura 18 - Capa da Revista Raça Brasil sem chamada sobre cabelos 1..................................59
Figura 19 - Capa da Revista Raça Brasil sem chamada sobre cabelos 2..................................59
Figura 20 - Encontro do paradigma Pluralidade Capilar com a Transição Capilar..................60
Figura 21 - Baile Black Power..................................................................................................65
Figura 22 - Toni Tornado e o cabelo Black Power....................................................................66
Figura 23 - Revista Black Hair.................................................................................................71
Figura 24 - Química x Transição Capilar..................................................................................74
Figura 25 - Busca pelo termo Transição Capilar.......................................................................84
Figura 26 - Vênus hotentote: Saartjie Baartan..........................................................................85
Figura 27 - O corpo da mulher negra livre de padrões.............................................................89
Figura 28 - Autonomia do corpo feminino negro.....................................................................91
Figura 29 - Mulher negra e as cotas..........................................................................................95
Figura 30 - Identidade e cabelo crespo.....................................................................................99
Figura 31: As práticas de resistência nos grupos sociais........................................................110

11
Figura 32: Resistencia e liberdade nos grupos virtuais...........................................................113
Figura 33: Apoio e identidade negra.......................................................................................114
Figura 34: Aniversário de 2 anos do CCSaa...........................................................................116
Figura 35: 2º Encontro do CCSe.............................................................................................116
Figura 36: Relato sobre o 2º Encontro do CCSe.....................................................................117

12
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .........................................................................................................15
2. O CABELO DA (O) NEGRA (O) RESSIGNIFICADO: CONSTRUÇÃO
SOCIAL E
SMBÓLICA.................................................................................................................29
2.1. O lugar do cabelo da (a) negro (a) ...........................................................................29
2.2. Dos movimentos negros ao cabelo em foco .............................................................34
2.3. Breve história da revista dos negros brasileiros: Raça Brasil ..............................39
2.4. O que fazia a cabeleira das mulheres: o paradigma Pluralidade Capilar por meio da
reprodução do cabelo da Revista Raça Brasil..............................................................44
2.4.1. O cabelo é livre, múltiplas opções .....................................................................49
2.4.2. Crespo sim!!! .....................................................................................................52
2.4.3. Black Power na Cabeça .....................................................................................57
2.5. O novo paradigma: da Raça Brasil a transição capilar .........................................58
3. SOLTO, ARMADO E NATURAL: OS PARADIGMAS DOS CABELOS
CRESPOS NATURAIS COMO FORMAS DE EXPRESSÃO DE LUTA,
AUTOESTIMA E AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA...........................62
3.1 A era do paradigma Black Power: o cabelo crespo como símbolo de luta e
elevação da autoestima de um povo...........................................................................62
3.2 Permanências e mudanças: afinal, qual a inovação da Transição
capilar?.........................................................................................................................69
3.2.1 Os protagonistas da pesquisa: as mulheres entrevistadas e os grupos virtuais
que abordam a transição capilar........................................................................76
3.3 E porque sós as mulheres? A questão capilar e o corpo negro feminino vivido...85
3.4 Breve reflexão sobre o contexto histórico.................................................................92
4. O CABELO CRESPO É IDENTIDADE, É RESISTÊNCIA................................97
4.1 Zona de tensão: reflexões sobre a construção e/ou afirmação da identidade negra
por meio do simbolismo do cabelo crespo.................................................................97
4.2 Como resistir? O simbolismo do cabelo crespo......................................................102
4.3 Os Espaços de resistências em torno da questão capilar.......................................109
4.3.1 Os espaços de sociabilidades por meio das mídias sociais.............................112

13
4.3.2 É preciso resistir: conhecimento e troca de experiências nos encontros
presenciais.......................................................................................................114
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................120
6 REFERÊNCIAS...........................................................................................................122

14
1. INTRODUÇÃO

A pesquisa tem como objetivo compreender os fenômenos que levaram um grupo de


mulheres negras a assumir o cabelo crespo e em que medida o mesmo se torna expressão de
luta contra o racismo, estratégia de resistência e redefinição da identidade feminina negra
contemporânea. No intuito de refletir sobre o que influenciou as cabeleiras das mulheres
negras, investigaremos quatro paradigmas1 capilares: Cabelo Alisado, Black Power,
Pluralidade Capilar e Transição Capilar. Tais padrões do cabelo crespo não sobrepõem uns aos
outros, contudo são relevantes para refletir sobre a construção da identidade que é
ressignificada mediante as experiências das mulheres.
Embora no Brasil tenha uma variedade de fenótipos, cores de pele e texturas de
cabelos, juntos, se tornam símbolos de inclusão e exclusão na sociedade brasileira. Sobre essa
questão, Gomes (2012) reitera que os aspectos físicos expressam a construção social, cultural,
política e ideológica e que por isso não podem ser considerados simplesmente elementos
biológicos (GOMES, 2012, p.2). Assim, no Brasil, para além da origem, os fenótipos da
pessoa são características essenciais para determinar se um indivíduo sofrerá ou não racismo.
No que se refere sobre o racismo proveniente dos traços físicos, Nogueira (2007)
contribui ao elencar dois tipos de características de preconceitos raciais: de marca e de
origem. Segundo o autor, membros de determinadas populações são condicionadas a
julgamentos por vários motivos, entre eles, pela aparência, ou por terem ascendência étnica
que lhes atribuem ou por serem reconhecidos. Nas palavras de Nogueira,

Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma


por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia,
os gestos, o sotaque, diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que o
indivíduo descende de certo grupo étnico para que sofra as consequências do
preconceito, diz-se que é de origem. (NOGUEIRA, 2007)

Dessa maneira, de acordo com Nogueira quando o preconceito é de marca, serve de


critério o fenótipo ou aparência racial. Vale ressaltar que, para o autor, o preconceito de
marca era típico do modelo racial norte-americana, já o preconceito de cor, era típico do
modelo racial brasileiro. Por meio de variações subjetivas, devido aos diversos fatores que
1
Bartelmebs (2012) apud Kuhn (1997) considera que paradigma é “[...] um conjunto de saberes e fazeres que
garantam a realização de uma pesquisa científica por uma comunidade. O paradigma determina até onde se pode
pensar, uma vez que dados e teorias, sempre que aplicados a uma pesquisa, irão confirmar a existência desse
paradigma.” (BARTELMEBS, 2012, p. 353). Dessa forma, aplica-se no estudo a ideia do paradigma capilar para
compreender fenômenos históricos distintos que abordaram o cabelo crespo dos sujeitos sociais negros.
15
podem influenciar o grupo discriminador em relação ao grupo discriminado, como a função
dos característicos de quem está sendo julgado e observado, como também em função da
atitude como a relação de amizade ou deferência por exemplos, essa variação de julgamentos
leva ao ridículo que implicará numa discrepância entre a aparência do indivíduo e
identificação que ele faz de si ou a que lhe atribuem.
Assim, ainda que saibamos que surgiu a ideologia da democracia racial2 e que esta
nunca existiu, a sociedade brasileira ainda é baseada em hierarquias sociais que estruturam as
desigualdades raciais. Nessa perspectiva, a imagem da população negra foi construída
marcadamente por preconceitos fincados em ideias racistas, inferiorizando-os. Munanga
(1986) corrobora que além da força física, foi utilizado contra os negros o preconceito e
estereótipo, que surgem como fatores importantes para a dominação à medida que
desmoralizam o ser humano, fazendo-o acreditar na sua inferioridade.
Esse cenário de exclusões e violência favoreceu a imposição de uma beleza
hegemônica baseada em modelos europeus. Há de se pontuar que tal injunção capilar é
observada no Brasil desde o período escravista, quando por meio da aparência: vestimentas,
brincos, colares e o cabelo cortado embelezado por pequenos adereços3, mulheres negras
escravizadas podiam se distinguir em posições privilegiadas em relação às outras mulheres
negras. Entretanto, é necessário ressaltar que esta pesquisa está situada nos estudos do pós-
abolição, por perceber transformações em relação aos aspectos capilares das mulheres negras
não somente a uma corrida por um status social, mas também pelas interferências das
indústrias relacionadas ao mercado, propaganda, manipulações e conceitos de beleza que
ocasionou comportamentos, atitudes e ressignificações.

2
A democracia racial remonta desde o século XIX. Segundo Domingues (2005), as raízes histórica do mito da
democracia racial é impulsionado pela literatura produzida pelos viajantes que visitaram o país, pela produção da
elite intelectual e política; pela direção do movimento abolicionista institucionalizado e pelo processo de
mestiçagem. E houve grande impulso no pós-abolição até 1930 pela a imprensa negra; o relacionamento de
aparente integração dos negros com os imigrantes; o legado da mentalidade paternalista em um setor da elite
tradicional; o movimento comunista e a tradição de comparar o sistema racial brasileiro ao estadunidense
(DOMINGUES, 2005, P. 119). Ainda nessa perspectiva, Nilma Lino Gomes enfatiza em relação à democracia
racial que “tal discurso consegue desviar o olhar da população e do próprio Estado brasileiro das atrocidades
cometidas contra os africanos escravizados no Brasil e seus descendentes, impedindo-os de agirem de maneira
contundente e eficaz na superação do racismo. Outras vezes, mesmo que as pessoas e o próprio poder público
tenham conhecimento da distorção presente no discurso da harmonia racial brasileira, usam-no política e
ideologicamente, argumentando que não existe racismo no Brasil e, dessa forma, julgam que podem se manter
impassíveis diante da desigualdade racial” (GOMES, 2005, p. 56).
3
Para saber mais sobre as mulheres negras escravizadas com os mais diversos penteados e adereços, ver a
dissertação de COUTINHO, Cassi Ladi Reis. A Estética dos Cabelos Crespos em Salvador. Dissertação de
Mestrado. Salvador : UNEB, 2010.

16
Nesse contexto, no pós-abolição, por causa da hegemonia do padrão estético de beleza
branco, foram desenvolvidos produtos direcionados às mulheres negras com a finalidade de se
assemelhar a textura dos cabelos lisos, conhecidos como cremes de alisamentos. Processo
esse que denominamos como o primeiro padrão do cabelo crespo: paradigma Cabelo Alisado.
Mas antes de falarmos sobre o processo dos cabelos alisados das mulheres negras no
Brasil no pós-abolição, é relevante trazer as contribuições de Côrtes (2012) em relação ao
alisamento e crescimento capilar por meio da análise de histórias de vida de mulheres. Côrtes
(2012) em sua pesquisa dialoga sobre a racialização, beleza e cosmética na imprensa nega no
pós-emancipação nos Estados Unidos. As mulheres negras, segundo a autora, definiam a
beleza como uma forma de equidade em relação às mulheres brancas e respeito diante a
sociedade. No intuito de progredirem no campo intelectual, cultivavam saberes científicos e
disseminavam os conhecimentos e práticas em relação a beleza da cor e do cabelo por meio
da uma rede de sociabilidade, não somente para agradar ter um status na profissão, mas
também para terem sucesso no matrimônio.
Não obstante, para além desses quesitos descritos anteriormente, havia um questão
essencial para a busca da boa aparência: o resgate da feminilidade, que foi anulada pelo longo
e duro processo de escravidão. Dessa maneira, segundo Côrtes (2012), para as mulheres dos
EUA, adequasse à imagem do cabelo alisado e “que carregava em seu bojo uma proposta de
revitalização da imagem, igualmente calcada no discurso racializado de melhora da aparência,
promovido por centenas de cosmetologistas que integravam o time das empresárias da raça”.
(CÔRTES, 2012, p. 332). A autora reconstrói então, trajetórias do empreendedorismo negro,
como por exemplo, mulheres como Annie Pope Turnbo-Malone e Madam C. J. Walker e suas
relações com as comercialização e produção de cosméticas negras. Ambas insistiam em
articular mercado da beleza e ascensão profissional de mulheres blacks4, e lançavam a
imagens que as mulheres negras tinham suas próprias histórias para contar e as “experiências
de manipulação dos pelos também revelam o intento feminino de desconstruir estereótipos
através da comercialização e uso de produtos criados para encontrar o penteado mais
adequado para representar o que julgavam ser uma beleza cívica negra” (CÔRTES, 2012, p.
333). Ainda no ponto de vista de Côrtes (2012),

Já no caso da manipulação dos fios, o sonho era mais realista, uma vez que as
mudanças prometidas eram ligadas ao trabalho específico com os fios do couro
cabeludo, que rebeldes que só precisavam ser melhorados, como garantia o Hartona,
“maior de todas as preparações”, o tônico era “positivamente incomparável [no]

4
Mulheres negras retintas (CÔRTES, 2012, p. xix).
17
alisamento de todos os cabelos carapinhas, teimosos e ásperos”. Nesse sentido, é
interessante notar que as anunciantes recusavam um discurso essencialista e
homogêneo. Ao contrário disso, de olho nas vendas, faziam questão de reconhecer a
diversidade de cabeleiras crespas, criando um vocabulário altamente complexo e
comprometendo-se a esticar toda e qualquer uma delas. Por outro lado, não menos
interessante é a observação de que, em hipótese alguma, elas asseguravam mudar
aquilo que acreditavam ser a suposta essência dos fios, tão pouco garantiam a
manutenção de uma crina escorrida, em caso de abandono do tratamento. A esse
respeito, nossas especialistas eram um tanto quanto sinceras: uma vez kinky sempre
carapinha, daí a necessidade de cuidado permanente (CÔRTES, 2012, p. 334).

Nesse sentido, observamos que as mulheres não queriam negar o cabelo crespo e sim
cuidar constantemente da estética, ou seja, disciplinavam seus corpos a fim de se adequarem
ao contexto histórico e racista dos EUA. Por meio dessa reflexão, Côrtes (2012) sinaliza que o
alisamento foi uma política hegemônica entre as mulheres negras até 1950, quando começa a
se evidenciar o estilo natural do cabelo. Dessa forma, segundo a autora, é necessário
compreender que o processo de aceitação das mulheres afro-americanas do aspecto capilar
alisado “pode ser interpretado como uma posição política de afirmação racial” (CÔRTES,
2012, p. 337).
Já em relação ao Brasil, como já pontuamos anteriormente, o processo de alisamento
em várias mulheres negras foi também em detrimento ao racismo que as faziam a acreditar na
sua inferioridade. Dessa maneira, de acordo com Lopes (2002), no início do século XX,
ocorre um grande investimento em propagandas em prol de deixar o cabelo e pele
apresentáveis, visto que nesse período para ser uma mulher elegante, teria que se apresentar
com cabelos lisos e se possível, compridos. Lopes (2002) enfatiza que enquanto anúncios e
reportagens eram constantes publicados, apareciam poucos de produtos que eram capazes de
diminuir as quedas de cabelos ocasionados pelo teor químicos das pastas de alisamento. Isso
porque as empresas não queriam passar a imagem de produtos ruins.
Um dos produtos mais teve publicidades, foi o Cabelizador. Braga (2015) traz um
exemplo em sua pesquisa de um texto publicitário em que anuncia o produto chamado “O
cabelisador: alisa do cabelo o mais crespo sem dor”5 que tinha como intuito alisar o cabelo
crespo, pois era “o sonho dourado de milhares de pessoas” (BRAGA, 2015, p.244). A autora
ainda argumenta que,

[...] o Cabelisador aparecia como uma alternativa estética que vinha responder a
uma exigência social e histórica. Não por acaso, as pastas do produto são chamadas
de pastas mágicas: a elas estava reservado o poder de subverter a estética natural do

5
Ver a publicidade transcrita em BRAGA, Amanda Batista. História da Beleza Negra no Brasil: discursos,
corpos e práticas. São Carlos: EdUFSCar, 2015, p. 103.
18
negro em nome de um padrão de beleza dominante. Aliadas ao pente quente, essas
pastas prometiam beleza e modernidade à mulher negra sem causa-lhe dor, além de
dispensar a necessidade de ir ao salão ou de solicitar a ajuda de um cabelereiro. O
sonho dourado daquele momento nos parece ser, na verdade um sono negro, que
parte da prática de alisamento, mas que não se resume ou não se limita a ela: é um
sonho que vai além, e que também começa muito antes dessa invenção maravilhosa
que é o Cabelisador. Falamos de um sonho que condensa a busca por um status,
bem como a busca por uma aceitação/inserção social através da estética, ainda que
isso lhe custe uma profunda manipulação de seu corpo. Apostar num padrão de
beleza genuinamente negro não representaria qualquer alcance. Nas tramas da
história, era a estética branca que prevalecia enquanto modelo a ser seguido (...)
(BRAGA, 2015, p. 245).

Como podemos perceber, o alisamento causava uma profunda manipulação no corpo


da mulher negra. Os anúncios produzidos nesse período não escapavam ao estereótipo em
prol de um embelezamento moderno (LOPES, 2002). Sobre essa discussão, Jocélio T. dos
Santos evidencia que,

Os discursos sobre a importância do cabelo na composição da estética negra são


tema de imagens aproximativas, contrastivas e de conteúdo político. A aproximação
é a suposta harmonia estética do rosto das sociedades ocidentais, em que os cabelos
considerados bonitos são lisos e compridos. Em razão dessa colonização cultural, os
negros usavam ferro quente (que os baianos apropriadamente denominam cabelo
frito), pastas, alisantes e outras alquimias, construindo-se um ideal negro associado
ao uso desse instrumental (SANTOS, 2000, p. 9-10).

Assim, desde o início do pós-abolição no Brasil dominou o padrão do Cabelo Alisado


que gerou a negação dos fenótipos negros ocasionando a perda identidades para muitas
mulheres negras. Contudo, a depreciação da estética negra, sobretudo de uma grande parte da
população afro-brasileira só veio a ser significativamente alterada a partir dos anos 1960,
contendo influências dos vários movimentos que ocorreram nos Estados Unidos em 1950 que
buscavam a valorização dos negros por meio da elevação de sua autoestima. No Brasil
surgiram vários grupos organizados, como o Movimento Negro Unificado (1978), que militou
por direitos, reparações e rompimento com o mito da democracia racial, e também a
valorização de beleza, ou seja, a junção dos movimentos políticos e estéticos romperam
padrões racistas que imperavam.
Nota-se que houve transformações na aceitação de seus fenótipos e muitos sujeitos
negros passaram a assumir seus traços e se identificarem como tal. O Bloco afro baiano Ilê
Aiyê, fundado em Salvador no ano de 1974, tinha como principal ação a elevação da
autoestima da população afrodescendente como pode ser observados na letra da música Deusa
do Ébano 1.

19
Deusa do Ébano I

Minha crioula
Eu vou contar para você
Que estás tão linda
No meu bloco Ilê-Aiyê
Com suas trancas muitas originalidade

Pela avenida cheia de felicidade

Deusa do ébano
Ê, deusa do ébano
Ê, deusa do ébano
Ê, deusa do ébano

Todos os valores
De uma raça estão presentes
Na estrutura deste bloco diferente
Por isto eu canto pelas ruas da cidade
Pra você minha crioula
Minha cor
Minhas verdades

Deusa do ébano
Ê, deusa do ébano
Ê, deusa do ébano
Ê, deusa do ébano
Ê, deusa do ébano

Geraldo Lima. Deusa do Ébano. Gravado pelo Bloco Ilê Aiyê, 1978. 03:16 min.

A música tem o intuito de homenagear a Deusa do ébano6, com ênfase na afirmação da


consciência negra, valorizando a raça e a cultura, no intuito de fortalecer a identidade negra e,
também, exaltar as formas de expressão do corpo negro. Mas, apesar de toda afirmação dos
movimentos negros, o cabelo da mulher afro-brasileira ainda seguia como marco de definição
de estigmas.
A reflexão desse contexto direciona para a problematização da pesquisa: como o
cabelo crespo natural de muitas mulheres negras que há séculos é estereotipado, se tornou
símbolo de resistência e reconstrói uma identidade na contemporaneidade? Qual(is) o(s)
caminho(s) que os padrões encontraram para positivar a identidade negra? Em que o atual
paradigma da Transição Capilar inova em relação aos demais padrões capilares do cabelo
crespo? Esses paradigmas seriam estratégias de resistências? Em que medida o retorno do

6
O Bloco afro Ilê-Aiyê desde 1979 realiza o Concurso da Beleza Negra para a escolha de uma mulher negra, a
Deusa do Ébano que ocupa lugar de destaque, desconstruindo estereótipos racistas do padrão hegemônico. Ver
PINHO, Osmundo Araújo. Deusa do ébano: a construção como uma categoria nativa da reafricanização em
Salvador. ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 26., 2002. Caxambu. Anais... Caxambu: ANPOCS.
20
cabelo crespo seria uma possibilidade das mulheres reconhecer-se como negras? Quais os
fenômenos que levam um grupo de mulheres valorizar o corpo negro, sobretudo o cabelo?
No entanto, de onde surgiram esses questionamentos? Tais inquietações sobre os
cabelos das mulheres negras surgiram ainda na graduação. Entre a Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia e as ruelas da cidade de Cachoeira/Bahia, conheci um grupo de samba
chamado Samba Suerdick e em pouco tempo de participação nos ensaios do grupo, fui
convidada pela matriarca do samba, a Doutora do Samba7, Dona Dalva Damiana de Freitas, a
fazer parte do grupo. Um dos rituais que me chamou atenção foi a maneira que as senhoras
negras que compunham o grupo, arrumavam seus cabelos para colocar o torço 8 na cabeça.
Todas tinham os cabelos crespos, menos eu. Utilizava química no cabelo e isso começou a me
incomodar. Após conversas com as integrantes do grupo, resolvi passar por uma transição
capilar e também por um processo de me enxergar e me aceitar como uma mulher negra, pois
antes, não me reconhecia como tal.
Com essa inquietação, meus caminhos acadêmicos voltaram-se para os estudos da
população afro-brasileira, em especial no que tange a história das mulheres negras e suas
especificidades. Falar de mulher negra é essencial para um rompimento de uma narrativa
dominante que insiste em invisibilizar, silenciar e ridicularizar as histórias das mulheres
negras de forma individual e coletiva, desde as ancestrais até as dos dias presentes. Sobre essa
rompimento, Ribeiro (2017) alerta que deve-se

[...] pensar em saídas emancipatórias para isso, lutar para que elas possam ter direito
a voz e melhores condições. Nesse sentido, seria urgente o deslocamento do
pensamento hegemônico e a ressignificação das identidades, sejam de raça, gênero,
classe para que se pudesse construir novos lugares de fala com o objetivo de
possibilitar voz e visibilidade a sujeitos que foram considerados implícitos dentro
dessa normatização hegemônica (RIBEIRO, 2017, p. 43)

Dessa forma, logo após finalizar a graduação decidi que iria desenvolver uma
pesquisa que contemplasse a história dessas mulheres e trazê-las para o mundo acadêmico
como protagonistas do processo histórico, sobre a ótica da estética negra com ênfase nos
cabelos dessas mulheres negras. Assim, tais questões e vivências instigaram ao
desenvolvimento da presente pesquisa.

7
No dia 22 de novembro de 2012, a Universidade Federal da Bahia concedeu o título de Doutora Honoris Causa
a Dona Dalva Damiana de Freitas.
8
O torço é feito com tecidos brancos que envolve e tem o objetivo de proteger o Or i- a cabeça. No samba de
roda é usado exclusivamente pelas mulheres e reverência todas as mulheres negras ancestrais, em especial, as
mulheres que tinham como ofício ser baianas de acarajé.
21
O recorte espacial do estudo são as cidades de Aracaju/SE e Salvador/BA, ambas
situam-se na região Nordeste do Brasil. Salvador/Ba foi escolhida por habitar uma das
maiores populações afrodescendentes do mundo, e principalmente, por apresentar um quadro
de empoderamento das mulheres negras e do orgulho crespo que promovem e participam das
marchas com o objetivo de valorizar a beleza negra e combater o racismo. Aracaju/SE, por
sua vez foi escolhida por ser uma capital que desde os anos 1980, vem construindo estratégias
para se fortalecer uma identidade da população negra através dos movimentos negros. Seja
por meio da religião afro-brasileira, pelos centros de cultura ou políticas públicas, o
movimento negro aracajuano organiza discussões sobre o racismo, a auto-estima e a
valorização da cultura negra (NEVES, 2012). Acrescenta-se que Aracaju foi escolhida
também por análises preliminares feitas em grupos virtuais das redes sociais em que
percebeu-se um movimento de idas e vindas de mulheres negras aracajuanas à Salvador.
Esses itinerários tinham como finalidades a participação nas machas e encontros que
socializavam informações sobre a transição capilar e o empoderamento crespo9.
Em relação ao recorte temporal, o estudo se debruça na análise dos paradigmas
capilares no pós-abolição: Cabelo Alisado, Black Power, Pluralidade Capilar e Transição
Capilar. Há reflexões pontuais feitos do período da era Black Power no Brasil a partir dos
anos 1960, como também análises retiradas por meio das publicações feitas nas revistas Raça
Brasil (RB) entre os anos de 1996 a 1999. Nos últimos anos da década de 90, a RB foi um
veículo midiático nacional que abordou questões raciais, nas quais a beleza da população
negra, sobretudo o cabelo estava sempre em foco. Dessa forma, será possível analisar detalhes
relevantes sobre o cabelo e suas particularidades como modelos capilares, métodos, penteados
que influenciavam as mulheres nesse período.
A pesquisa também se propõe refletir sobre o paradigma atual do cabelo por meio do
método da transição capilar que se inicia no ano de 2008 e estende até o ano atual. O período
analisado está inserido em um contexto em que ocorre no Brasil aplicação de ações
afirmativas e, também, acontece à emergência da reflexão sobre o corpo negro por intermédio
de pautas advindas do feminismo negro que foram igualmente essenciais para a repercussão
do novo fenômeno capilar.
Os procedimentos metodológicos fundamentam-se, a priori, em fontes escritas e orais.
Na fonte impressa, as revistas RB podemos localizar reportagens relacionadas ao cabelo da
mulher. Para analisar a fonte impressa, Lucca (2005) corrobora que o pesquisador que
9
Ocorreram em Salvador, 03 marchas do Empoderamento Crespo entre os anos de 2015 a 2016. No capitulo 3
será abordado sobre tais encontros.
22
trabalha com revistas e jornais, investiga assuntos que já se tornaram notícias, e que é
necessário o destaque conferido ao acontecimento, como também para o local em que se deu a
publicação. Por isso a análise crítica das revistas RB nessa pesquisa se abarcará tanto dos
conteúdos interiores, quando nas capas e no contato que mulheres leitoras tiveram com a
revista.
Dessa forma, a revista da RB é essencial, pois permite apreender sobre o paradigma
Pluralidade Capilar, anterior a transição capilar que também tinha o intuito de valorizar a
cabelo da mulher negra. Nessa fonte localizam-se usos práticos para os cabelos crespos como
técnicas capilares, cortes e tratamentos para os cabelos naturais, o grande uso de produtos
para alisar e relaxar os cabelos, depoimentos e reportagens que evidenciam o uso do cabelo
crespo como símbolo de afirmação identitário. Na revista também observam-se diversas fases
da reprodução do cabelo crespo, natural e com química, bem como o encontro desse
paradigma capilar com a transição capilar.
Para dar corpo ao trabalho e obtermos maiores informações de quem são as mulheres
que estão optando ao retorno do cabelo natural, utilizou-se, também, entrevistas de mulheres
das cidades de Salvador-Ba e Aracaju-Se. Os depoimentos são relevantes para que possamos
entender o que levaram essas mulheres a passar pelo processo de transição capilar; qual seria
o sentido do cabelo crespo para refletir-se como mulher negra e se o retorno ao cabelo natural
seria uma forma de resistência dentro de uma sociedade racista, ou se tinha outros objetivos.
Ao analisá-los dá-se ênfase aos pormenores, como por exemplo, as questões subjetivas dessas
mulheres por meio de suas histórias de vida, em relação aos seus cabelos e aos relatos
considerados irrelevantes para alguns. Dessa forma, tem-se como objetivo dar voz a essas
mulheres que tiveram suas vivências silenciadas, conferindo-lhes o papel de protagonistas de
suas histórias.
Na pesquisa dialogamos com 2 grupos da rede social do Facebook, são eles: Crespas e
Cacheadas de Salvador e Cabelos crespos e cacheados de Sergipe. A participação reflexiva
nos grupos permitiu compreender a dinâmica de ajuda mútua, troca de informações e
compartilhamento de experiências entre as mulheres que fizeram a transição capilar. Nesse
sentido ressaltarmos a importância em dialogar com o ciberespaço, pois é um espaço que
permite a comunicação e interação entre diversas pessoas no meio virtual online, quanto off-
line. Sobre a pesquisa histórica no ciberespaço, Lopes (2018) pondera que,

[...] a mídia digital trouxe de fato uma série de novidades


epistemológicas para a pesquisa histórica. Trabalhar em dispositivos digitais
23
acessando um espaço de informação igualmente digital não é análogo a trabalhar
com papel e lápis em uma biblioteca/arquivo incomensurável. A maneira como a
informação é encontrada é diferente, o modo como a examinamos é distinto, o jeito
como a compilamos e comparamos é outro. Ou seja, a pesquisa histórica realizada
em meio digital é diversa da pesquisa histórica realizada em arquivos tradicionais
(LOPES, 2018, p. 161).

Nesse contexto, encontramos nesses grupos relatos de racismo da família, dos colegas,
de ambientes institucionais, enfrentamento antirracista por causa do cabelo; afirmação
identitárias por meio do corpo; vivências das mulheres por intermédio da transição. Analisou-
se, também, a movimentação virtual destas mulheres e suas iniciativas para organizarem
encontros em espaços físicos que discutiam sobre o cabelo e suas particularidades. Todas as
fontes são de grande importância, têm proporcionado observar mudanças e permanências que
permitirá responder à problemática da pesquisa.
O cabelo da população negra, sobretudo, da mulher vem sendo discutido cada dia mais
e as pesquisas sobre essa temática também cresceram. Tal análise é interdisciplinar, a saber,
historiadores, antropólogos, sociólogos dão enfoque ao tema. Alguns desses estudos são
pertinentes para esta pesquisa, dentre eles destacam-se: a obra de Raul Giovanni Lody (2004)
que traz uma pertinente discussão sobre os cabelos como forma de memórias de identidade de
grupos sociais. Com a utilização de fontes iconográficas, Lody (2004) narra a história do
cabelo dos africanos e afro-descendentes por meio dos penteados, abordando que a cabeça
como uma união do mundo contemporâneo a ancestralidade. O autor afirma que a cabeça é
um espaço simbólico e dessa forma, cuidar do cabelo é um ritual que a pessoa vivencia nela
própria e com seu grupo. Manipular os cabelos, para Lody, é atividade muito antiga e muito
importante, tão quanto às outras descobertas do ser humano (LODY, 2004).
Outra pesquisa fundamental é o da antropóloga Ângela Figueiredo, intitulado Beleza
Pura: símbolos e economia ao redor do cabelo (1994), que traz um debate acerca da
manipulação em torno do cabelo crespo para entender sobre a classificação de cor na
construção do discurso da identidade. A autora faz um contraponto com as falas de militantes
negras e entrevistadas sobre as formas de usar o cabelo afro e conclui, por meio da pesquisa,
que para as ativistas negras o cabelo é uma marca da identidade, já para as entrevistadas o
cabelo é um fenótipo que pode ser manipulado de acordo com o que se pretende, como festas,
trabalho, reuniões sociais e orçamento financeiro, ou seja, os preços, por exemplo, salões,
compras de cremes.
Em relação ao cabelo como símbolo de afirmação, Nilma Lino Gomes em seu livro
Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra (2006), faz uma de
24
pesquisa realizada em quatro salões étnicos em Belo Horizonte que a norteia para entender
como se constrói a subjetividade e identidade da negra mediante a estética. A autora aborda
questões históricas, sociais, identitárias, estratégias de resistência e relaciona-as com as
demandas do cotidiano das entrevistadas que possibilita conhecer o universo do indivíduo
negro e suas particularidades. Vale ressaltar que Gomes (2006) escolhe justamente os salões
étnicos por ser um espaço de sociabilidade onde surgem questões sobre política e sociedade,
como também movimentos tipo desfiles de beleza negra, músicas, entre outros.
Cassi Coutinho, em A estética dos cabelos crespos em Salvador (2010) investiga o
processo da estética negra, com ênfase nos penteados dos cabelos relacionando a afirmação e
pertencimento étnico com base no processo de emergência e institucionalização de uma
estética negra em Salvador. Coutinho ainda destaca que os penteados como estética do
indivíduo negro ganhou espaço no mercado brasileiro e busca entender sobre a identidade dos
sujeitos envolvidos.
Para pensar sobre o processo de alisamento entre as mulheres negras, encontramos o
trabalho da autora bell hooks10 (2005), que embora não discuta sobre o Brasil, foi relevante
para se pensar o cabelo alisado das mulheres negras. Seu trabalho Alisando nossos cabelos
(2005), que teve como referência as mulheres dos Estados Unidos, faz uma reflexão sobre o
alisamento dos cabelos das meninas negras que era uma forma de ritual feito na cozinha pelas
suas mães, irmãs, tias, ou seja, uma forma de solidariedade entre as mulheres. Nesse espaço e
também nos salões de alisamento constituíam-se em locais de trocas de experiências, cantigas,
afazeres, ou seja, elas podiam acolher e ser acolhidas. Segundo a autora, com a presença do
patriarcado capitalista, nos contextos sociais e políticos, a postura do negro com o alisamento
capilar se torna uma imitação com a aparência dos brancos e toma isso com inferioridade,
fazendo com que sentissem ódio de si mesmos desenvolvendo baixo auto-estima.
Já em relação ao cabelo no processo da transição capilar, manteremos um diálogo com
a pesquisa de Larisse Louise Pontes Gomes (2017) que busca compreender a transição capilar
e o racismo, no qual geram tensões e novos significados, dentro e fora do ciberespaço. Por
meio de uma caracterização da transição como rito de passagem, mostra a aproximação das
mulheres com a estética negra, o fim da prática do alisamento e reconfiguração do processo
de identidade. Esses e outros trabalhos que serão citados ao longo desta pesquisa nos

10
Bell hooks é uma escritora norte-americana e seu nome é Gloria Jean Watkins. Ela justifica a assinatura de
suas obras como “bell hooks”, pois afirma que o que é mais importante em seus livros é a substância e não
nomes ou títulos.
25
permitem obter informações específicas sobre o cabelo como símbolo identitário da mulher
negra.
Por meio dessas contribuições, a pequisa visa observar o aspecto capilar por
intermédio dos paradigmas capilares: Cabelo Alisado, Black Power, Pluralidade Capilar e
Transição Capilar e investigar como cabelo crespo foi ressignficado no pós-abolição por
mulheres negras no contexto brasileiro. Em suma, a pesquisa alvitra auxiliar para a
consolidação do campo de estudos sobre a estética negra no Brasil, ocupando espaço de
pesquisa e construção de teorias inovadoras que possam contribuir para a afirmação e
discussões em torno de questões da população negra e, contribuindo, assim, para o estudo da
trajetória dos povos afro-brasileiros e do enfrentamento contra as desigualdades sociais e
raciais.
Esta pesquisa é relevante, pois, amplia o estudo do campo da História do Tempo
Presente fornecendo possibilidades de leituras para a compreensão da história das mulheres
negras utilizando o cabelo como símbolo de afirmação, construção de uma identidade e
expressão antirracista, contribuindo para que haja a mudança de estereótipos e padrões que
inferiorizam o povo negro, criados por uma sociedade racista e consagrados pela história
oficial.
Ao considerar que a história se reescreve constantemente, aplicaremos a metodologia
construída pela História do Tempo Presente, pois a história está em permanente processo de
atualização, como avalia Ferreira (2013, p. 25). Essa metodologia permite analisar o processo
histórico marcado por experiências ainda vivas e ativas com tensões e repercussões (Ferreira,
2013). Ademais, História do Tempo Presente possibilita trabalhar com fontes inovadoras
como as entrevistas orais e as mídias digitais, fazendo a história como “coparticipante dos
acontecimentos; vive-se e conta-se sobre o que se vive” (MOTTA, 2011, p. 34).
Contribuindo com a pesquisa, empregaremos a metodologia da História Oral que
consiste em realizar entrevistas com sujeitos que participaram e ou testemunharam
conjunturas e fatos do presente e do passado no intuito de ampliar os conhecimentos e ações
desenvolvidas, registrando e difundindo na contemporaneidade. Lozano (1998, p. 19) afirma
que a história oral, com a concepção da oralidade, se relaciona com a história de vida das
pessoas e com isso se comunica e interpreta.
É daí que a história oral se corresponde com as ciências humanas, sobretudo, com a
antropologia, a história e a literatura. Com as influências dessas vertentes, a história oral
possibilita interpretações e uso de técnicas produzindo análises profundas das experiências

26
dos indivíduos. Nessa vertente, a abordagem de Paul Thompson (1992, p. 22) relaciona a
História Oral como uma possibilidade de transformação que revela novos campos de
investigação na história. Utilizaremos no estudo em questão, a História Oral para propiciar o
conhecimento das experiências e trajetórias das mulheres negras em relação ao cabelo crespo
antes e pós transição capilar e como o cabelo se torna símbolo e expressão antirracista na
contemporaneidade.
Na metodologia aplicaremos também a entrevista semi-estruturada centralizada no
problema, pois permite manter a liberdade em colocar diversos assuntos sobre a estética negra
no decorrer da entrevista, apesar de estar com questões previamente definidas. Manzini
(1990) contribui ao ressaltar que a entrevista semi-estruturada foca em um assunto com
perguntas principais comtempladas por outras questões relacionadas com o assunto principal
no momento da entrevista. Com uma abordagem qualitativa, produz-se um levantamento das
informações colhidas no intuito de verificar as mudanças/retorno no que diz respeito à estética
e à busca pela identidade feminina contemporânea.
Pretendemos também com o aporte das entrevistas, tornar o passado concreto e
compreender o presente, numa história dinâmica que permitirá construir narrativas vivas no
processo de construção de identidade. Para isso, como fez Ginzburg (1989), seguiremos os
vestígios dessas narrativas e não apenas interpretar os relatos de ações passados, pois essas
memórias são mutantes e estão em constantes reformulações (ALBERTI, 2010, p. 167).
Por meio das análises das fontes que seguiram a metodologia descrita e dialogaram
com a bibliografia elencada, as reflexões construídas na pesquisa foram estruturadas em cinco
capítulos. O primeiro é apresentado as reflexões introdutórias. O segundo capítulo
denominado O cabelo da (o) negra (o) ressignificado: do feio da raça a símbolo da identidade
negra, tem como objetivo o estudo do lugar social e representação do cabelo. Neste capítulo,
buscamos analisar um panorama geral do cabelo da população negra e refletir sobre como ao
longo dos anos o mesmo foi construído e ressignificado fora e dentro da comunidade negra.
Em um segundo momento, descreve-se sobre o paradigma Pluralidade Capilar que na década
de 90 influenciou várias mulheres negras no Brasil, no qual apresenta-se a representação do
cabelo, bem como os modelos e técnicas capilares, penteados e as várias vertentes do cabelo
crespo proposto pela revista Raça Brasil.
No terceiro capítulo, denominada Solto, armado e natural: os paradigmas dos cabelos
crespos naturais como formas de expressão de luta, autoestima e afirmação da identidade
negra, tem como objetivo fazer uma análise minuciosa sobre as particularidades dos padrões

27
que exaltaram o cabelo crespo natural e como os mesmos redefiniram a identidade de um
grupo de mulheres. No primeiro momento, iremos refletir sobre a Era Black Power e sua
relevância para a elevação da autoestima do sujeito negro a partir da década de 1960 no Brasil
e, a seguir, abordaremos sobre o paradigma da Transição Capilar e a influência desse processo
estético entre as mulheres nos dias atuais.
E quarto capítulo, intitulado O cabelo crespo é identidade, é resistência faz a reflexão
sobre como sujeitos socais conseguem resistir em locais que impõe atitudes e pensamentos
hegemônicos. Por meio da análise do paradigma Transição Capilar, no primeiro tópico
apresentaremos uma discussão sobre identidade e as zonas de tensões que as mulheres
enfrentam quando assumem o cabelo crespo e a seguir, fazemos uma problematização em
torno da resistência dessas mulheres no cenário atual através de encontros virtuais e
presenciais, nas quais utilizam a resistência como ferramenta para posicionarem
afirmativamente nos dias atuais. E por fim, nas Considerações Finais apresentam-se as reflexões
e resultados encontrados ao longo da construção dessa pesquisa.

28
2 O CABELO DA (O) NEGRA (O) RESSIGNIFICADO: CONSTRUÇÃO
SOCIAL E SIMBOLICA

Preta

Hoje eu acordei mais Preta


Pus o turbante na cabeça

Forjadas na amarração aprendida recentemente e sai pela rua


inocente, descrente
Uma Preta empoderada mete medo em muita gente.

São tão bonitas minhas tranças, mas me chamam de exótica, a cena


fica caótica.

Hoje eu acordei tão Preta que arranquei dos curiosos olhares, se eu


tivesse nascido em outro tempo me chamariam de ousada
Hoje eu sou mais uma ousada que não se limita ao alisamento e que
prefere o afrontamento.

Hoje eu acordei chamativa minha gata


Passei no meio da multidão e um grupo me mirou na cara,
não sei se foi meu coque bem amarrado ou meu tom de marrom
estampado, eu sei que me olharam.

Mas esse olhar de estranhamento não me deu constrangimento, lancei


meu rosto ereto
Por que cabeça feliz não se abala

Passei com minhas tranças na sua cara


Hoje nem o seu "Oh morena, me abala".
(Andra Tls)

2.1 O lugar do cabelo da (a) negro (a).

A simplicidade dos versos da poetiza Andra11 nos convida a pensar sobre o cabelo e
como este é importante para a construção dos sujeitos sociais em relação a sua negritude em
suas múltiplas nuances. O sentido explícito nas palavras imprimem cicatrizes de uma outrora
e um enfretamento de uma mulher que se reconhece como negra e por intermédio do cabelo
ressignificado percorre caminhos que reconfiguram o mundo vivido, pertencimento e poder
enquanto mulher negra que usa cabelo crespo. E para melhor apreender sobre a
ressignificação em torno do cabelo crespo para as mulheres negras é preciso compreender o
lugar social dos sujeitos negros.

11
Mulher, negra, poetisa do sul da Bahia. Poema cedido pela autora, 2018.
29
O cabelo é uma parte fenotípica do corpo humano. No contexto brasileiro, o cabelo da
(o) negro (a) ora assume significados que possibilitam exclusão, violência, infeoridade ou
tornando-se símbolo da identidade do povo negro por meio de lutas antirracistas de
movimentos negros. Dessa forma, assim como a cor da pele, nariz, feições, o cabelo torna-se
representação que é ressignificada alterando ou moldando a história que foi marcada por
práticas e discursos discriminatórios para produzir discursos positivos aos corpos negros.
Em relação a esses significados, Lody (2004, p. 14-15) afirma que o cabelo é um
identificador da pessoa e da cultura a que pertence. Segundo ele, historicamente, desde a
Antiguidade o cabelo foi ressignificado por diversos povos que usavam-no para identificar
mulheres e homens em seus diferentes papéis sociais, exigências sagradas e posicionamentos
políticos. Nessa mesma direção, Gomes (2008, p. 233) expõe que “o cabelo é um dos
elementos mais visíveis e destacados do corpo” e está na parte de cima do rosto, que dá
visibilidade imediata na identificação do indivíduo. Pode-se perceber, por exemplo, que na
Idade Média os homens livres distinguiam-se dos escravizados por usar cabelos longos, mas
ao participarem das guerras, tinham que cortar os cabelos para adapta-los aos trajes de guerra.
Ou no século XIX, os cabelos faziam base para o chapéu utilizado por mulheres e homens de
várias classes sociais (LODY, 2004, p.16).
Para Perrot (2017), o cabelo é uma questão de pilosidade que está relacionado a
mulher, a sedução feminina, a carne e a tentação. A autora sinaliza que uma mulher
apaixonada pode dar de presente uma mecha de cabelo ao seu amante para ele guardar sobre o
coração, como também perder o cabelo seria bastante sensível para as mulheres, pois é um
sinal visível da feminilidade. Ainda segundo Perrot, o cabelo se torna objeto de tentação no
mundo mediterrâneo e por isso as mulheres tinham que cobri-lo. Entra em ação o uso do véu
com funções diversas, religiosas e civis, se tornando um sinal de dependência, pudor e honra
(PERROT, 2017, p. 56).
Nos princípios sagrados, a saber, o cabelo está relacionado às rituais a partir de
intervenções corporais. De acordo com Borges (2012), na cultura Hinduísta, por exemplo, o
cabelo é utilizado em rituais antes do nascimento do indivíduo até a morte. Destacam-se, entre
os rituais, aqueles que são feitos durante a gravidez e que são importantes para a definição do
sexo do bebê ou para que a mãe possa evitar problemas durante a gestação. Outro rito é o
corte do cabelo, que nessa mesma religião, é realizado nas crianças, tanto em menina quanto
menino, e está ligado ao ritual de passagem para que a criança tenha um vida prospera,
realizada sob minuciosos detalhes, como demonstra Borges (2012):

30
[...] se realiza aos 3 anos de idade, cortando o cabelo da criança totalmente; pode
também ser parcial, deixando-se apenas uma mecha ou tufo de cabelo no alto da
cabeça. Note-se que para as meninas prevalecem os mesmos rituais, mas sem a
recitação dos mantras. A cerimónia deve ser realizada num dia auspicioso, segundo
o calendário hindu. À entrada da casa põem um recipiente com fogo, e na direção
dos seguintes pontos cardeais colocam: [...] A mãe cobre o corpo da criança com
roupa lavada, senta-se na erva kuśa, olhando de este para oeste do fogo, com as
mãos voltadas para norte; o pai preside ao ritual com as quatro oferendas ao fogo;
depois pega na vasilha da água com a mão direita e molha os cabelos do filho,
olhando para a navalha e para o espelho; enquanto faz isso, vai recitando os mantras
próprios, terminando por sentar-se voltado para este; no fim, colocam o cabelo
cortado no recipiente do excremento, que por sua vez o pai ou outro membro da
família levará para a floresta para ser enterrado. (BORGES, p. 23)

Podemos perceber, portanto, que o cabelo é uma construção simbólica social e


importante para intervenções corporais. Entretanto, como já foi mencionado, o símbolo
capilar pode significar pertencimento a um determinado grupo social fazendo os sujeitos
partilhar de um movimento dinâmico para se reconhecer dentro e fora do grupo. Ou seja, “o
cabelo é visto como um demarcador do lugar na escala social”, reitera Figueiredo (2002, p.
05). Nesse contexto, então como é visto o cabelo do negro brasileiro?
Vianna (1979, pp. 136) enumerou vários adjetivos para caracterizar a cabelo do negro
como o feio da raça: “cabeça seca, cabeça fria, cabeleira de xoxô, cabelo de romper fronha,
cabelo de perder missa, cabelo amoroso ao casco, cabeleira de sebo, cabeleira teimosa, pão de
leite, etc.”. Para Vianna, desde o período da escravidão, o cabelo dos homens e mulheres
negras podia ser manuseado por diversas maneiras. Nos meninos era preciso cortar ou pelar a
cabeça, pois podiam esconder “navalhas” dentro dos cabelos. Caso cortasse o cabelo até o
couro cabeludo, eles passavam a ser reconhecidos como ladrões. As meninas teriam que
cortar o cabelo por motivo de higiene para não proliferar piolhos, já que eram escravizadas e
tinham que trabalhar forçadamente ao lado de outras crianças. Isso porque, segundo Vianna
(1979, pp. 137), os seus donos não tinham paciência, tempo e não sabiam lidar com o cabelo
duro, pois era um martírio; e apenas consentiam o uso do cabelo grande na adolescência, mas
sob o torço a fim de esconder a humilhação de mostrar o cabelo.
Nessa mesma direção, Azevedo (1987) afirma que durante e pós escravidão a
população negra continuou a passar por muitas humilhações e restrições por causa dos traços
fenotípicos, incluindo o cabelo, numa sociedade dominada por uma pequena elite branca. Os
fenótipos sendo marcas do antepassado africano, seriam motivos de exclusão desses sujeitos
da sociedade. O corpo do negro continuava a ser tratado como desumano, sem sentimentos,

31
sem alma, animalizado e o cabelo era identificador do que é ser negro. Azevedo ainda
argumenta que

[....] na cor de sua pele, nos seus traços físicos, nos seus cabelos, os negros livres já
de ha muitas gerações, mesmo miscigenados, frequentemente traziam impressas as
suas origens africanas, as marcas de seus antepassados escravos, e assim ficavam
entregues a possibilidade de serem tratados com desprezo e violências. Quanto aos
libertos, isto e, os negros alforriados, as restrições a eles eram ainda mais explicitas,
constando de vários itens de leis que desta forma contrariavam a disposição da
Constituição de 1824 em aceita-los como cidadãos. (AZEVEDO, 1987, pp. 33-34)

A vivência da negação do corpo negro, sobretudo do cabelo, faz necessário dialogar


com a vivência do racismo. De acordo com Carlos Moore (2007, pp. 243), o racismo vem
desde a origem a história da humanidade, ancoradas nas especificidades fenotípicas. Com o
movimento de migrações massivas que culminou em crises das relações humanas a partir de
conflitos violentos em busca de territórios, permitiu surgir uma nova ordem da sociedade
baseada em conceitos raciológicos. Diante disso, completa o autor, as conquistas pelos
territórios e lutas pelos recursos de subsistência opondo duas ou mais populações distintas
possibilitou a diferenciação de características reconhecíveis como as feições, a cor da pele e a
textura dos cabelos (MOORE, 2007, pp. 246).
Portanto, o racismo foi a base para se pensar na exclusão da população negra.
Segundo Gomes (2008), o racismo incide sobre os negros não somente pelo seu
pertencimento, mas também pelos seus sinais diacríticos no corpo. Podemos destacar o
Branqueamento como um conceito fundamental para analisar o racismo. Nesse sentido, pode-
se destacar o branqueamento como uma das modalidades do racismo brasileiro. De acordo
com Domingues (2002), o branqueamento foi um projeto de “clareamento fenotípico da
população” e um dos aspectos ideológicos desse fenômeno era chamado de branqueamento
estético, que constitui no modelo branco que era considerado como padrão regendo o
comportamento e atitudes dos negros assimilados12. Com a imposição de um ideal da
aparência estética branca, alguns indivíduos negros tentavam eliminar seus traços fenótipos: a
cor da pele, afinar o nariz, textura dos cabelos alisados. Isso foi possibilitado, principalmente,
a partir de tratamento estéticos, como os produtos de alisar os cabelos.

12
Para Domingues (2002), uma outra vertente da teoria do branqueamento pode ser por ordem moral e/ou social.
Ou seja, “ao assimilarem os valores sociais e/ou morais da ideologia do branqueamento, alguns negros
avaliavam-se pelas representações negativas construídas pelos brancos. Era necessário ser “um negro da essência
da brancura”. Por isso, desenvolveram um terrível preconceito em relação às raízes da negritude. Aliás, a recusa
da herança cultural africana e o isolamento do convívio social com os negros da “plebe” eram duas marcas
distintas dos negros “branqueados socialmente” (DOMINGUES, 2002, p. 576).
32
Por meio da historicidade da imposição dos cabelos lisos e para percebermos as
características e predominância dos padrões que influenciaram o cabelo crespo dos sujeitos
negros no Brasil, é necessário situar os paradigmas capilares para seguirmos com a análise.

Quadro 1. Variáveis estruturantes dos paradigmas capilares


Cabelo Alisado Black Power Pluralidade Transição Capilar
Capilar

Escravidão Nos anos de 1960 Nos anos de Nos anos 2008


Surgimento Intensificou-se 1980
no pós-abolição
Pós-abolição / Décadas de 70 e A partir de 1980 A partir de 2008
Predominância Contemporanei- 80. até os dias atuais até os dias atuais
dade

Protagonismo Mulher Mulher/Homem Mulher Mulher

Semelhança Resistência, Liberdade Retorno ao


Elemento de com a textura elevação da Capilar cabelo Crespo
discurso dos cabelos lisos autoestima, a
conscientização e
manifesto.
Símbolo de Orgulho e Símbolo estético-
Elemento de Símbolo de identidade e qualidades por político entre
afirmação modernidade corpo negro meio capilar em mulheres negras
várias
dimensões
Fonte: Quadro elaborado pela autora mediante as análises feitas para a pesquisa, 2018.

Observamos no Quadro 1, que os paradigmas capilares não sobrepõe uns aos outros,
entretanto, cada um possui especificidades relacionadas desde ao surgimento como elementos
de discurso e afirmação. Dessa forma, a partir do pós-abolição o cabelo crespo foi
ressignificado e rompeu com padrões racistas não somente no campo estético, mas também no
social, cultural e político, como discutiremos no decorrer dessa pesquisa. Por meio desse
contexto, questionamos: como foi a trajetória do cabelo crespo para afirmar positivamente o
33
sujeito negro, deixando de ser o feio da raça para se tornar símbolo de luta antirracista?
Responderemos a seguir.

2.2 Dos movimentos negros ao cabelo em foco

Os movimentos da negritude, no século XX, possuem como questão norteadora a


racial, tendo algumas características que o diferenciavam. Os grupos organizados lutavam
contra o racismo e todas as suas ressonâncias. Essa luta se dava no campo político, social e
cultural. Alguns com ênfase na educação, outros na saúde, ou no cultural, entre outros setores,
mas todos os movimentos tinham o intuito de solidificar melhores condições de vida para a
população negra seja por intermédio da teoria ou prática, construindo estratégias e resistência
em diferentes conjunturas sócio-histórica brasileira e internacional. De acordo com
Domingues (2009), por volta da década de 20 nos Estados Unidos da América o movimento
da Negritude teve como papel norteador romper os valores da cultura eurocêntrica. Com o
enfoque marxista, esse movimento buscou desconstruir modelos europeus da cultura e
construir ideologias de afirmação de valores e símbolos da cultura na diáspora africana. Nas
palavras do autor,

Na sua fase inicial, o movimento da negritude tinha um caráter cultural. A proposta


era negar a política de assimilação à cultura (conjunto dos padrões de
comportamento, das crenças, das instituições e dos valores transmitidos
coletivamente) européia. O dilema para os africanos e negros da diáspora, assevera
Franz Fanon deixou de ser “embranquecer ou desaparecer”. Até essa época,
considerava-se positivo apenas os modelos culturais brancos que vinham da Europa.
Para rejeitar esse processo de alienação, os protagonistas da ideologia da negritude
passaram a resgatar e a enaltecer os valores e símbolos culturais de matriz africana.
Como salienta Jean Paul Sartre, “trata-se de morrer para a cultura branca a fim de
renascer para a alma negra (DOMINGUES, 2005, pp. 197)

Com o tempo, ainda na visão do autor, o objetivo do movimento se ampliou. Os


seguidores passaram a protestar contra a hegemonia colonial e lutaram politicamente a favor
dos povos da África e das diásporas, tornando-se o movimento da Negritude militante.
Foi nesse cenário que surgiu na década de 60 nos Estados Unidos movimentos
políticos e identitários, protagonizados por jovens negros estadunidenses que fundaram o
partido dos Panteras Negras. Esses jovens organizaram um movimento chamado de Black
Power, que em tradução livre significa Poder Negro para reivindicar o fim das leis
34
segregacionistas. Desde época da escravidão, os negros libertos eram considerados como
“cidadãos de segunda classe” e, até então, eram separados e impedidos de frequentar
estabelecimentos, escolas, ônibus e até calçadas caso uma pessoa branca estivesse nesses
ambientes. Dessa forma, em busca por direito civis, os adeptos do movimento Black Power
valorizavam o afro-americano e traziam discurso de ordem, frases que elevavam a autoestima
negra e quando havia confronto com a polícia, tinham posturas altivas, punhos cerrados e
erguidos, e o cabelo com cortes arredondados que juntos, no qual chamamos na pesquisa de
Paradigma Black Power, tornaram-se uma marca de afirmação da identidade e corpo negro.
Dentro desse contexto de reivindicações de direitos, os jovens negros dos Estados
Unidos lançaram o movimento de afirmação “ser negro é lindo” com o slogan “Black is
beautfull” (COUTINHO, 2010, pp. 53). Este movimento propôs desconstruir o que foi
lançado pelo racismo ao afirmar que os fenotípicos negros, cabelo e traços faciais e corporais
eram inferiores aos padrões europeus. Nessa perspectiva, bell hooks (2005, p. 2-3) relata que

Durante os anos 1960, os negros que trabalhavam ativamente para criticar, desafiar e
alterar o racismo branco, sinalavam a obsessão dos negros com o cabelo liso como
um reflexo da mentalidade colonizada. Foi nesse momento em que os penteados
afros, principalmente o black, entraram na moda como um símbolo de resistência
cultural à opressão racista e fora considerado uma celebração da condição de
negro(a). Os penteados naturais eram associados à militância política. Muitos(as)
jovens negros(as), quando pararam de alisar o cabelo, perceberam o valor político
atribuído ao cabelo alisado como sinal de reverência e conformidade frente às
expectativas da sociedade (HOOKS, 2005, p. 2-3).

Ângela Davis, na figura 1, foi uma das líderes do partido Panteras negras. Por meio da
imagem da Davis, permitiu-se analisar que os sujeitos que participaram desse movimento
eliminaram as práticas de alisamento, ganhando evidência os penteados capilares.
Salientamos, portanto, que esse movimento percussor foi relevante para uma luta antirracista,
bem como a valorização da cultura e identidade negra , como também a afirmação dos traços
físicos da população negra.

35
Figura 1- Ângela Davis no partido Panteras Negras

Fonte: Site Geledés: in https://www.geledes.org.br/afro-imagens-politica-moda-e-nostalgia-por-angela-davis/.


Acessado em 12/02/2018

No contexto brasileiro, na década de 30 já havia movimentos negros organizados.


Questões que perpassam pelo social, cultural e político foram nortes fundamentais para os
primeiros grupos, entretanto, houve alguns entraves em relação ao movimento da negritude da
sociedade abrangente. Por exemplo, em 1931 foi fundado a Frente Negra que difundia o
fortalecimento político e cultural dos negros. Essa organização lançou-se como partido
político em 1936 e, de acordo com Munanga (1999, pp 97), “estavam preocupados em dar ao
negro uma nova imagem, semelhante àquela proposta pela ideologia de "democracia racial".
Entretanto, afirma o autor que os adeptos desse movimento foram vítimas do próprio racismo,
pois tinham o intuito de se transformar para serem aceitos pelos brancos e ressalta que havia
contradições e por isso

[...] a educação, a formação e a assimilação do modelo branco forneceriam as chaves


da integração. Até o branco mais limitado não hesitaria em abrir a porta ao negro
qualificado, culto e virtuoso. A maioria desses movimentos organizava intensivas
campanhas de educação, dando ênfase ao bom comportamento na sociedade. Alguns
fizeram até publicidade de cosméticos destinados a alisar os cabelos e excluíram do
meio cultural negro qualquer manifestação de origem africana considerada como
inferior. A referência era o modelo proposto pela sociedade dominante, isto é,
branca. Daí a ambigüidade desses movimentos que, embora protestassem contra os
preconceitos raciais e as práticas discriminatórias, alimentaram sentimentos de
inferioridade perante sua identidade cultural de origem africana. (MUNANGA,
1999, pp. 97)

36
Já nos anos 40, Domingues (2009) relata que o movimento da negritude ocorreu
principalmente através do Teatro Experimental do Negro (TEN), que adquiriu projeção
atuando em vários espaços e tinha como questão norteadora a afirmação dos valores negros
(DOMINGUES, 2009, p. 204-205). Não obstante, assim como ocorreu com o Frente Negra,
Domingues, citando Costa Pinto, expõe que a negritude que ocorreu no Brasil não passava de
um mito (DOMINGUES, 2009, p. 206). Apesar de ter ocorrido no solo brasileiro

[...] como expressão de protesto da pequeno-burguesia intelectual negra (artistas,


poetas, escritores, acadêmicos, profissionais liberais) à supremacia branca. Em
outras palavras, a negritude foi uma resposta dos negros brasileiros, em ascensão
social, ao processo de assimilação da ideologia do branqueamento , mas que,

[...] jamais deram uma formulação “explícita e sistemática” ao conceito, ou seja, em


nenhum instante transformaram a idéia vaga e difusa de negritude em propostas
concretas ou, em última instância, traduziram a negritude em um projeto mais geral
para resolver o problema do negro brasileiro (DOMINGUES, 2009, p. 205-
206).

Na década de 70, enquanto acontecia nos Estados Unidos o movimento Black Power,
no Brasil estava reaparecendo vários movimentos sociais que retomaram a bandeira de luta
dos movimentos que mencionamos anteriormente. Com influências internacionais que
buscavam direitos, igualdades e valorização do negro, os movimentos negros traziam uma
nova forma de se pensar a negritude. O Movimento Negro Unificado (MNU), por exemplo,
surgiu no ano de 1978 no intuito de ser uma organização para representar o povo negro em
favor de lutas e denúncias da dita “democracia racial”, que oprimia e perseguia o negro.

37
Figura 2 - Carta de princípios do MNU

Fonte: https://movimentonegrounificadoba.wordpress.com/

Na sua fundação, a Carta de princípios do MNU destacada na figura 2, os membros do


movimento esperavam, de fato, uma verdadeira democracia racial, diferente da que vigorava
no Brasil. Dessa maneira, a MNU reconhecia a discriminação racial e resolveu lutar contra
esse mito. O que queremos chamar a atenção nessa Carta seria o enunciado no qual enfatizam
que “entendendo como negro todo aquele que possui na cor da pele, no rosto ou nos cabelos,
sinais característicos dessa raça”. O MUN escolheu características do fenotípico do negro
como forma inicial de luta e de legitimação da identidade negra. Então, por meio desta
identificação do sujeito enquanto sujeito negro para positivar o corpo, esse posicionamento
almejou desenvolver um sentimento e pertencimento da valorização estética, social e cultural
do negro.

38
Todos os movimentos descritos acima foram fundamentais para refletirmos sobre os
caminhos percorridos da abordagem dos traços físicos do negro. As lutas contra o racismo,
segregações, resíduos da herança escravista levaram de fato para o sujeito negro construir
uma autoimagem positiva, sobretudo quanto diz respeito à estética do cabelo crespo. Todavia,
como investigaremos no decorrer desse estudo, houve algumas limitações que levaram
diversas mulheres a voltar e/ou continuar o alisamento capilar. Hooks (2005, p. 3) tem uma
explicação para tal fenômeno

[....]quando as lutas de libertação negra não conduziram à mudança revolucionária


na sociedade, não se deu mais tanta atenção à relação política entre a aparência e a
cumplicidade com o segregacionismo branco, e aqueles que outrora ostentavam os
seus blacks começaram a alisar o cabelo.

Com a intenção de suplantar essas limitações, no Brasil, influenciados pelos movimentos


sociais internacionais e nacionais, surgiu a revista RB na década de 90 do século XX e tinha
como propósito abordar questões raciais, sociais e culturais do negro. A revista assumiu um
papel importante no âmbito midiático que reflete sobre a valorização do negro em várias
esferas tendo como público-alvo, a comunidade negra, principalmente as mulheres, pois
traziam reportagens direcionadas ao público feminino. Dessa forma, no tópico a seguir iremos
discutir sobre como a RB se tornou uma das mais relevantes do meio midiático dos anos 90
no Brasil a abordar sobre o cabelo e identidade do negro de forma positiva, trazendo questões
que exaltavam a beleza capilar da mulher.

2.3 Breve história da revista dos negros brasileiros: Raça Brasil

Em 1996 é lançado a revista Raça Brasil que se apresentava como “a revista dos
negros brasileiros”13, com discurso do orgulho de ser negro e tinha como intuito ser um
veículo de comunicação para disseminar a valorização do negro em vários espaços.
Diferentemente do que se produzia sobre a população negra na mídia, a RB propunha uma
nova perspectiva positiva abordando a partir de elementos comportamentais a consciência da
identidade negra em relação à beleza, política , moda, da raça, música, mercado de trabalho e
em diversos outros espaços. Tomando de partida esse diferencial em que a revista se propunha
no final dos anos 90, nos leva a nossa primeira inquietação: o porquê das pessoas comprarem

13
Ver Figura 5
39
RB? Ela era referencial no meio midiático para os negros, já que era intitulada para os
mesmos? O depoimento de Edna Matos, nos dar um norte sobre essas questões.

Eu comecei a comprar a Raça no dia que ela foi lançada, lá em Setembro de


1996, se não me engano, pois teria que confirmar a data a primeira edição e do
primeiro número. Mass eu não assinava, eu achava que naquela época, no finalzinho
da década de 90, em que a gente estava se afirmando e que a luta do movimento
negro era tão forte, era muito mais eficaz comprar a revista na banca, do que
exatamente fazer uma assinatura e receber em casa anonimamente. Eu tinha muito
orgulho em chegar na banca de revista e dizer: ‘olá, me dê uma revista Raça’ ou
então o que era mais comum é ‘vocês tem a revista Raça aí?’ Na maioria das bancas
não tinha, mas eu fomentava, eu conversava com o dono da banca, normalmente eu
procurava bancas de revistas grandes e eu nunca comprava na mesma banca. Era
uma questão de militância mesmo, eu saía trocando de banca para comprar revista,
procurar os lugares mais impróprios, normalmente em bancas grandes nos bairros
mais ricos, mais nobres para que ele soubessem que existia aquela revista e que
tinha um público para aquela revista. Então eu, na minha cabeça, fazer isso era
fomentar a venda da revista e difundir a revista. Eu vim ser assinante da revista Raça
já agora, depois de todas as mudanças que eles fizeram. Foi em 2016 ou 2017, quase
ou mais de 20 anos depois que eu fui assinar. Aí sim eu fui assinar por comodismo,
era mais fácil receber em casa. Mas antes eu comprava a revista por militância, foi
uma revista que foi um marco, ela foi um diferencial no movimento, a gente
começou a se ver na banca de revista e só que para isso é necessário que tivesse em
público que comprasse a revista para que a banca pudesse colocar a nossa capa, a
nossa cara ali estampada junto com todas as outras revistas que existiam na época.
(Edna Matos. Entrevista concedida a autora em 15/05/2018.)

Mulher, negra e afirmando que adquirir a revista era questão de militância, Edna fazia
questão de comprar a RB diretamente nas bancas para haver demandas e vendas das revistas.
O que nos chama a atenção era que Edna se enxergava nas capas. Na maioria dos meios de
comunicação os negros eram sempre estereotipados. Com a intenção de se opor a esse
cenário, a revista RB ressaltava e valoriza o negro em todas as suas esferas. 20 anos depois,
Edna continuou comprando, e assinou para recebê-las em casa. Para entendermos sobre esse
diferencial da RB, que em meio de tantas mudanças, continua em circulação, é necessário
fazermos uma breve reflexão sobre o seu surgimento na década de 90 e trajetória desde então.
A Revista Raça veio fazer parte da nova impressa negra no Brasil, que segundo Santos
(2007) é resultante de uma consciência etnicista surgida nos anos 60, com o movimento Black
Soul que retorna na década de 90. Nas palavras de Santos (2007, pp 09)

A revista, na perspectiva comercial que segue, apropria-se de algumas


manifestações dos movimentos sociais que têm, entre outras metas, a redefinição da
identidade negra, a luta contra o racismo, a construção da auto-estima positiva para a
população negra, melhores condições econômicas, acesso ao mercado de trabalho, a
consideração da diversidade racial do país e a assunção dos mestiços como negros.

40
Ainda sobre a nova imprensa negra no Brasil, Dias Filho (1999) caracteriza-a de
Afromídia por compor revistas periódicas dirigidas ao público afro-brasileiro. Foram várias
revistas que foram lançadas a partir de 1990 como o “Agito Brasil” que tinha como principal
reportagem principal a cultura do hip hop, a “Black People” que se dedicava com assuntos
sobre a educação, esporte e turismo e um pouco de beleza e moda, “Negro Cem por Cento”
que abordava funk, moda e pagode, “A Cor do ébano” trazia assuntos sobre história e política,
e assuntos também de moda, “Etnic” voltada para a estética corporal e facial e moda, a “Rap”
se dedicavam a “cultura de rua” e a “Raça Brasil” que exaltava e ascendia socialmente o
negro (DIAS FILHO, 1999, pp. 02). Todas essas revistas foram importantes para a
comunicação e visibilidade da população negra brasileira, mas escolhemos a RB por ser a
mais reconhecida, com mais de 200 mil exemplares vendidas (índice recorde) em sua primeira
tiragem e por percebemos que além dos artigos de ascensão social do negro, se dedica em
reportagens na valorização do mesmo grupo, com foco relevantes no cabelo da mulher negra.
E também por que a seção Beleza/Moda aparecia em todas as revistas e seu público-alvo, em
especial, eram as mulheres.
Exatamente no dia 02 de setembro de 1996, a RB nº 1, ano 1 chegava às bancas de
todo o Brasil, pela Editora Símbolo, sob o comando do editor chefe Araldo Macedo propunha
que a

[...] revista Raça nasceu para dar a você leitor, o orgulho de ser negro. Todo cidadão
precisa dessa dose diária de auto-estima: ver-se bonito, a quatro cores, fazendo
sucesso, dançando, cantando, consumindo. Vivendo a vida feliz. Todos os meses, a
Revista Raça vai falar de nossos problemas e apresentar soluções. Vai ajuda-lo a se
cuidar melhor; a viver com mais alegria e segurança. Vai discutir nossa identidade,
resgatar nossa herança cultural e mostrar que a negritude é alegre, rica, linda.
Estaremos atentos para negar o preconceito, mas, acima de tudo, queremos afirmar
nossas qualidades. Nosso trabalho começou. Quem vai continuá-lo é você. Lendo,
discutindo, escrevendo, sugerindo, reivindicando. Queremos o que há de melhor.
Ninguém neste país merece mais do que você. Queremos esta revista com a cara da
nossa raça: black, colorida, com balanço e ginga bem brasileiros: Isto é Revista
Raça. (REVISTA RAÇA BRASIL, ano 1, nº 1)

Assim, a RB se coloca uma importante no meio midiático que fomentou a elevação da


auto-estima especificamente dos negros, e de maneira diferenciada, ousada e pretensioso, vem
falar dos problemas enfrentados pela população negra, não de maneira estereotipada, mas,
sim, trazendo soluções. Perceber-se aqui que a pretensão da RB não é relatar sobre as mazelas
que afetam os negros, mas sim, abordar qualidades do negro de uma forma dinâmica, através
de um intercâmbio intrínseco com os seus leitores.
41
É relevante ressaltar que em alguns momentos de sua trajetória, a RB passou por
algumas crises editoriais em relação ao seu apelo mercadológico. Segundo Dias Filho (1999,
p. 02), a linguagem mercadologia ao falar de auto-estima e consciência racial, merecem uma
atenção por publicizar de forma tradicional a exploração do negro, reproduzindo velhos
estigmas raciais. As questões mercadológicas seriam voltadas apenas para uma parcela da
população negra e a outra, uma grande maioria que efetivamente teria um baixo poder
aquisitivo, não seria contemplada pelo efeito mercadológico. Sobre essa questão, alguns
componentes dos movimentos negros faziam severas críticas por entender um grande aspecto
nas questões de consumo, sendo que, para os mesmos, seriam mais urgentes artigos sobre
políticas públicas.
Por outro lado, informa Suzana Tavares (2010), é necessário considerar as opiniões
dos defensores da RB. O Consumo e a estética seriam ferramentas importantes na sociedade
contemporânea contra o racismo, ou seja, uma ação política de estratégia. Esse instrumento
seria essencial para produzir transformações no imaginário social do negro e seria um ponto
crucial para provocar mudanças na construção de identidades e relações de poder que
acontecem na prática. Tavares (2010) complementa que,

Seja qual for a opinião que se tenha a respeito da Raça, entretanto, é inegável que
essa revista, apesar das várias crises editoriais e da queda nas vendas que levaram à
redução de sua periodicidade, foi um marco na divulgação de uma estética negra
positivamente valorizada, e isso não apenas para o seu público alvo. Embora
predomine entre a maioria dos profissionais da propaganda uma perspectiva
marcadamente utilitarista, que atribui o crescimento do mercado de produtos étnicos
e a presença cada vez mais evidente de negros na propaganda, sendo este um ponto
de argumento pela revista onde a diretora geral da Raça na época, Liliane Santos, no
editorial da Edição 102 - Setembro/2006, que comemora os 10 anos da revista, faz
tal afirmação: "Hoje somos maioria e fico feliz em não sermos à única revista com
negros e personalidades negras na capa. Raça Brasil foi causa e efeito dessa
significativa mudança” (TAVARES, 2010, p. 02).

De fato, os elementos da cultura negra brasileira exibidos na RB foram apropriados


pelo campo mercadológico e o que antes era negado ou ridicularizado, com a atuação da
Raça, os símbolos da cultura negra brasileira são vendidos com ênfase contínua entre
mercado, identidade e cultura. Todavia, Braga (2008) pondera que

Essa comercialização, além de causar uma popularização de bens simbólicos, produz


também a socialização de expressões culturais que foram, por muito tempo,
marginalizadas. Por isso, apesar das críticas sofridas, das crises editoriais e da queda

42
nas vendas, não se pode negar o papel social empreendido pela Raça Brasil. Assim,
se a Raça, por um lado, mercantiliza uma cultura com fins de mercado, esse
processo, por outro lado, age como forma de compartilhamento e valorização dessa
cultura (BRAGA, 2008, p. 79).

Portanto, analisamos que, para além das críticas do consumismo, a RB pretendia


valorizar os negros e estimular sua auto-estima a partir de histórias comuns ou de
personalidades que ascenderam socialmente, apresentando soluções a problemas vivenciados
pelos indivíduos negros cotidianamente, seja na família, escola, trabalho, na moda, na beleza
e comportamento. A revista RB rompe, no meio midiático, com a forma de como os negros
eram retratados até então e dá um novo significado à imagem da população afrodescendente
na mídia e no imaginário social dos negros brasileiros.
Levando em conta as discursões tecidas nos três tópicos anteriores sobre o cabelo, as
influências internacionais e nacionais para uma afirmação positiva sobre o negro e sua estética
negra e a intenção da RB para uma valorização negra e sua representação no imaginário dos
sujeitos, partiremos para análise do cabelo do negro e de como ele é retratado para o leitor.
De acordo com Santos (2004, pp. 78), as edições da RB possuem duas fases. A
primeira corresponde do ano de seu lançamento a 2001 e a outra fase começa em 2002 até os
dias atuais. Para que se pudesse analisar as representações sobre o cabelo, decidimos por
investigar os quatro primeiros anos da revista. Essa escolha justifica-se por duas questões. A
primeira é pela relevância da análise do cabelo logo nas primeiras revistas da RB. Perceber a
representação capilar é importante para compreender o grande sucesso que a revista obteve
em seu lançamento inicial entre o público-alvo fazendo com que muitas mulheres negras se
identificassem com os modelos capilares da revista. E a segunda, porque verificamos que
praticamente em todas as revistas desses quatro anos há matérias em suas chamadas sobre o
cabelo. Tanto a representação, quanto os artigos sobre o cabelo, serão mostradas nas figuras a
partir do próximo tópico. Nesse contexto, Santos (2004) caracteriza que

Beleza e Moda chegava a ocupar, com suas várias matérias, muitas páginas
da revista, como, por exemplo, na edição nº 9: são 28 páginas dedicadas à moda e à
beleza, em uma revista de 114 páginas, o que corresponde a 24,56% do total da
revista. A seção contava com fotos de modelos negras, sendo que havia poucos
homens que ilustravam os diversos temas abordados. Muitas vezes, eram
apresentadas sugestões de empresas ou profissionais da área de tratamento de
beleza, com seus respectivos telefones e endereços. (Santos, 2004, pp. 82)

Portanto, considera-se relevante as discursões sobre a estética e auto-estima do negro


trazidas pela RB que colocou em foco o campo da beleza, em especial o cabelo desses
43
sujeitos, pois colocou uma atenção especial na representação do cabelo da população negra,
principalmente para as mulheres, mostrando além da beleza, técnicas de cuidados e usos
práticos do cabelo no intuito de afirmação identitária. Nesse sentido, no próximo tópico
iremos discutir sobre como era retratado o cabelo na RB que fazia a cabeleira de milhares de
mulheres pelo Brasil.

2.4 O que fazia a cabeleira das mulheres: o paradigma Pluralidade Capilar por meio da
reprodução do cabelo da Revista Raça Brasil

É necessário refletir sobre a representação do cabelo crespo da RB. Com as influências


dos movimentos internacionais e nacionais, o corpo negro como um todo foi sendo
ressignificado dentro da comunidade negra. Na perspectiva de valorização, o cabelo deixou de
ser o “feio da raça14” e tomou outros sentidos como observamos na figura 3.

FIGURA 3 – Cabelo bom da Revista Raça Brasil

Fonte: Revista Raça Brasil, nª 1, São Paulo, Ano 1: 1996 .


Mostrar uma imagem de uma pessoa negra e sua estética positiva, sobretudo do cabelo
era essencial para suprimir toda a invisibilidade que foi imposta por um padrão eurocêntrico
no Brasil. Na figura 3, a RB nos traz em primeiro plano duas imagens de mulheres negras, os

14
Termo utilizado por Hildegardes Vianna (1979).
44
cabelos de tranças e com várias opções de usar o cabelo, e fomentava a ideia de que a pessoa
poderia usar a cabeleira da forma que desejasse, e de maneira destacada o texto “cabelo bom”.
Esse posicionamento de usar o cabelo como quiser, inclusive o liso, pode parecer
problemático, já que dentro dos movimentos negros, o que se imperava era o paradigma Black
Power, sem usos de alisamentos. Diferente dos padrões Alisamento Capilar e Black Power
que seguiam via única para a estética do cabelo, a RB se propõe a veicular diversos caminhos
para o leitor no qual denominados do paradigma Pluralidade Capilar. Ou seja, obter um
reconhecimento da negritude e a aceitação dos fenotípicos sem seguir uma única direção por
meio do cabelo.
Para a RB, todos os caminhos seriam intencionais: poder exaltar o cabelo de todas as
formas, sem falar sobre problemas e obter soluções para o que incomodava o público negro.
Dessa maneira, abordar os múltiplos cabelos bons e de forma positiva era o propósito da RB.
Posto isso, o que seria essa representação positiva do “cabelo bom” da RB e por que deu tão
certo esse discurso e foi aceito pelos seus leitores? Rosangela Malaquias (2007) sugere que
expressar o cabelo como bom remetia a virtudes, diferente do sentindo do cabelo ruim que
remetia a dor, aversão ou defeito. Ao mesmo passo, a autora afirma,

De forma objetiva e também subliminar, a cultura negra é associada à ruindade e ao


“diabo”. Inegavelmente, a oposição bondade/maldade tem sido ideologicamente
vinculada ao pertencimento étnico, expresso nos exemplos abaixo descritos: Cabelo
bom = cabelo liso = cabelo de pessoas brancas e/ou asiáticas. Cabelo ruim = cabelo
crespo/duro = cabelo de pessoas negras e/ou miscigenadas. (Malaquias, 2007, pp.
37-38)

Ou seja, ao contrário do que a sociedade racista propagava que o cabelo liso seria bom
e era necessário alisar o cabelo crespo “duro” e que era ruim, a RB representava que o cabelo
da pessoa negra era bom e que ao invés de seguir o padrão eurocêntrico, o sujeito poderia usar
de todas as maneiras, inclusive o liso, mas sem seguir a imposição. Do ponto de vista de
Gomes,

O cabelo do negro na sociedade brasileira expressa o conflito racial vivido


por negros e brancos em nosso país. É um conflito coletivo do qual todos
participamos. Considerando a questão histórica do racismo brasileiro, no caso dos
negros o que difere é que a esse segmento étnico-racial foi relegado estar no polo
daquele que sofre o processo de dominação política, econômica e cultural e ao
branco estar no polo dominante. Essa separação rígida não é aceita passivamente
pelos negros. Por isso, práticas políticas são construídas, práticas culturais são
reinventadas. O cabelo do negro, visto como “ruim”, é expressão do racismo e da
desigualdade racial que recai sobre esse sujeito. Ver o cabelo do negro como “ruim”
e do branco como “bom” expressa um conflito. Por isso, mudar o cabelo pode
significar a tentativa do negro de sair do lugar de inferioridade ou a introjeção deste.
45
Pode ainda representar um sentimento de autonomia, expresso nas formas ousadas e
criativas de usar o cabelo (GOMES, 2016, pp. 42)

Sobre o cabelo representado pela RB, a entrevistada Lúcia Lobo relatou sua
experiência ao comprar e visualizar mulheres negras na revista.

“Nossa, eu me lembro quando vi a revista Raça na banca de revistas. Sabe, eu


comprei porque era difícil encontrar pessoas da minha cor nas revistas e queria saber
do que se tratava. Uma das coisas que me chamou atenção foram aquelas mulheres e
seus cabelos. Lembro que alguns cabelos eram cacheados. Naquela época eu tinha
trinta e poucos anos. Estava cansada de alisar. Fiquei inspirada. Ver o cabelo igual
ao meu foi bom. Minha avó e mãe só falavam que meu cabelo era duro, eu também
achava duro e feio. Por isso que alisava. Só que na revista o cabelo era bonito.
Bonito. Nessa época , parei de alisar, mas comecei a dar permanente. Hoje ele é
crespo sem química e só uso curtinho”. Entrevista concedida a Denise Santos, dia
25/11/2017.

Para refletirmos sobre a representação do cabelo na RB, no que tange apresentar um


cabelo a partir de uma imagem trazendo consigo um discurso social, empregamos as
contribuições de Stuart Hall (1997) sobre a representação positiva. Por meio do conceito
metodológico de Representação, o autor relata que a “Representation means using language
to say something meaningful about, or to represent, the world meaningfully, to other
people”15 (HALL, 1997, p. 01). Ou seja, a RB utilizou-se da linguagem visual para abordar
sobre cabelo que carrega um discurso social e referências de identidade de um grupo em
questão: os negros. Ainda segundo Hall, a “Representation is an essential part of the process
by which meaning is produced and exchanged between members of a culture. It does involve
the use of language, of signs and images which stand for or represent things16” (HALL, 1997,
p. 01). Nesse sentido para Hall, a concepção de cultura seria a base de um conjunto de
significados partilhados. Nesse caso, a linguagem visual só deu sentido aos leitores, pois estes
possuem significados comuns no pensar, no dizer e no sentir, e possibilitou correr a partir da
imagem um processo de “sistema de representação” ao visualizarem o cabelo. Portanto, a
representação do cabelo através da linguagem visual foi fundamental para dar sentido aos
processos produzidos pelos significados.
Hall (1997) ainda alega que há dois processos: dois sistemas de representação. O
primeiro caracteriza-se por um “sistema” no qual os objetos, pessoas e eventos relacionam-se
15
“Representação significa usar a linguagem para dizer algo significativo ou representar o mundo de forma
significativa para outras pessoas”. Tradução nossa.
16
“A representação é uma parte essencial do processo pelo qual o significado é produzido e trocado entre os
membros de uma cultura. Envolve o uso da linguagem, dos sinais e imagens que representam ou representam as
coisas”. Tradução nossa.

46
por um conjunto de conceitos ou representações que os indivíduos imaginam e que sem eles,
os sujeitos não poderiam dar significados ao mundo; o outro seria a partir da construção de
um “mapa conceitual ou um conjunto de sinais” em diversas línguas que representam esses
conceitos. Dessa forma, ao analisar o relato de Lúcia, verificamos que a RB utilizou da
representação do cabelo do negro, relacionando cabelo de maneira positiva na imagem e na
escrita por meio da mesma linguagem que possibilitou gerar signos e significados sobre o
cabelo a Lúcia, diferente do que era perpetuado até então na mídia. Portanto, respaldado pelo
compartilhamento dos sentidos e interpretações parecidas sobre o cabelo crespo da população
negra, a RB mostra pela linguagem virtual uma representação do cabelo bom que articulavam
elementos diversos e se contrapõe as ideias dominantes sobre os fenotípicos negros que
faziam o homem e mulher negra auto-negarem e não se reconhecerem orgulhosamente.
Portanto, a partir dessa representação, podemos questionar: quais as peculiaridades da
abordagem sobre o cabelo pela Raça?

Figura 4 – Primeira Revista da Raça Brasil Figura 5 – Segunda Revista da Raça Brasil
Setembro 1996 Outubro 1996

Fonte: Revista Raça Brasil, nª 1, São Paulo, Ano 1: 1996 . Revista Raça Brasil, nª 2, São Paulo, Ano 1: 1996.

47
Figura 6 – Terceira Revista da Raça Brasil Figura 7 – Quarta Revista da Raça Brasil
Novembro 1996 Dezembro 1996

Fonte: Revista Raça Brasil, nª 3, São Paulo, Ano 1: 1996. Fonte: Revista Raça Brasil, nª 4, São Paulo, Ano 1:
1996.

As quatros edições acima foram as primeiras a serem lançadas pela Editora Símbolo.
Ambas, fazem as chamadas nas capas dos assuntos que serão discutidos sobre o cabelo. A
Figura 5 aborda as possibilidaes de cortes nos cabelos; a segunda dá dicas de como cuidar e
deixá-los leves e soltos e expõe opções de pinturas; já a Figura 6 oferece 30 respostas e
soluções para tirar todas as dúvidas sobre o cabelo; e a última, mostra opções de estilos
capilares para os leitores. E as revistas das Figura 4 e 7 expõe sobre as possibilidades de
modelos e estilos capilares. Esse posicionamento da Revista não é à toa. Se antes o cabelo da
população negra era o único instumento a ser utilizado era o alisamento a fim de se
assemelhar ao cabelo do branco, a RB vinha mostrar outras possibilidades e técnicas com o
objetivo de despertar no sujeito o orgulho de ser negro e não mais sentir vergonha.
No tópico a seguir, verificam-se três modelos do uso do cabelo pela RB e em vários
momentos se encontram e se complementam. O primeiro caracteriza-se pela “onda” de usar o
cabelo de todas as formas: alisado, relaxado ou crespo; o segundo modelo enfatiza a
necessidade do uso do cabelo crespo natural; e o último, é definido e ratificado a importância
do uso do cabelo black power.

48
2.4.1 O cabelo é livre, múltiplas opções
Levando-se em conta as análises tecidas no tópico anterior, faremos, agora,
considerações sobre as técnicas e modelos do uso do cabelo propagado pela RB. Vejamos a
figura 8:

Figura 8 – Cabeça Feita e estilos

Fonte: Revista Raça Brasil, nª 3, São Paulo, Ano 1: 1996.

Sobre a cabeça, Raul Lody (2004, pp. 58) alega que a cabeça define a identidade e seu
pertencimento a um grupo, além de sua história e grupo social. Manipular os cabelos é poder
se comunicar, manifestar a beleza e o padrão estético. E ainda que o “território livre, ancestral
e contemporâneo, dinâmico e tradicional é a cabeça”. Segundo o autor, a cabeça é revista e
interpretada de maneira contínua, assumindo diversos significados e é polo fundador, centro
do corpo do indivíduo, haja vista que este só passa a ser visto por completo a partir da cabeça,
ou seja, da cabeça expandem-se os outros espaços do corpo.
A figura 8 traz a seguinte chamada: “Cabeça feita” e nas cabeças, os modelos usam os
cabelos de várias formas: curtos, longos, naturais, pintados, trançados, entre outros e que
podem ser usados cotidianamente. Dessa forma, a RB ao utilizar-se do título “Cabeça feita”,
seguido das imagens dos cabelos e do texto que reflete várias formas de manusear o cabelo,
sugere, assim, ao leitor que ele pode usar o cabelo da forma que desejar, e que pode se arriscar

49
em estilos diferentes e principalmente, estimula a mudança do visual, ou seja, mostra que há
possibilidade de não seguir um único padrão que foi imposto no Brasil desde a escravatura. E
esse posicionamento não é a toa. Como entender então, dentre essas possibilidades, o
alisamento na RB?
O alisar no contexto da RB seria um processo de liberdade, o sujeito sem imposição da
sociedade, poderia escolher entre as opções capilares que gostasse. Essa análise
corresponderia ao questionamento sobre a manipulação do cabelo como um processo de
ressignificações. Alisar o cabelo para a Raça não significaria não reconhecer-se negra ou
negro, mas uma alternativa de utilizar o cabelo como forma de expressar liberdade de escolha.
Para Gomes (2002, p. 50),

Cortar o cabelo, alisá-lo, raspá-lo, mudá-lo pode significar não só uma mudança de
estado dentro de um grupo, mas também a maneira como as pessoas se vêem e são
vistas pelo outro; o cabelo compõe um estilo político, de moda e de vida. Em suma,
o cabelo é um veículo capaz de transmitir diferentes mensagens, por isso possibilita
as mais diferentes leituras e interpretações. Desse modo, para muitos, o cabelo é a
moldura do rosto e um dos primeiros sinais a serem observados no corpo humano.

Ainda em relação às possibilidades capilares, como já foi dito anteriormente, a revista


mantém um canal de comunicação direta com o público na seção “Outras palavras” onde
recebe várias críticas, elogios e sugestões em relação às matérias. Nelas podemos perceber
que há um feedback com os leitores, por exemplo, sobre o uso do cabelo.

Estou simplesmente boquiaberta com a Edição Raça Especial. Todos merecem


parabéns. Mas gostaria de saber sobre alguns cortes e alongamentos de cabelo
exibidos nesta edição. Tem muitos penteados que sendo cabelo natural da raça
negra, não acredito que possam ser feitos de algumas formas (Revista Raça Brasil,
Ano 2, n 8).

A leitora parabeniza a RB, por outro lado, manifesta insatisfação pelos poucas alternativas na
edição em relação a penteados com o cabelo natural crespo. Nas revistas seguintes, como poderemos
observar nas próximas figuras, a RB traz opções de penteados que se pode fazer nessa textura
específica capilar. Ressalta-se também que a leitora relaciona o “cabelo natural” com o cabelo da “raça
negra”. Seria essa uma forma de identificação da leitora com o cabelo e a revista, já que a mesma
escreve para os negros brasileiros. Portanto, por meio dessa interação com o público externo, a RB
aponta e apresenta diversas formas e penteados capilares, remetendo-o como símbolo coletivo
do público negro.

50
No que lhe concerne em relação a múltiplas maneiras do uso do cabelo, a RB traz
alguns exemplos de técnicas capilares direcionadas, em especial, ao público feminino. Nas
Figuras 09 e 10, a RB expõe duas técnicas que envolvem o cabelo natural e uma fibra
artificial. Demonstrando o “antes e depois”, a revista mostra passo a passo para obter com
sucesso a técnica desejada. A figura 9 expõe o modelo de tranças feitas com fibras em
kanecalon que possibilitava um visual moderno e tranças com balanços. Já afigura 10, a
técnica chamada entrelaçamento vinha com o propósito de recuperar o brilho e glamour dos
cabelos que foram maltratados pela química do alisamento.

Figura 09 – As tranças produzidas por fio de kanecalon

Fonte: Revista Raça Brasil, nº 5, São Paulo, Ano 2: 1997.

51
Figura 10 – A técnica de entrelaçamento

Fonte: Revista Raça Brasil, nº 4, São Paulo, Ano 1: 1996.

Através dessas amostras, pode-se observar dois pontos importantes: o primeiro vem
ratificar o que a RB propõe que é a possibilidade de variações de penteados. Tanto na figura 9
e 10, o resultado permite o uso do cabelo solto, trançado, preso. Manipular o cabelo é móvel,
é livre, é opcional. Já o segundo, a análise centraliza-se que o “antes” pode parecer pejorativo
ao mostrar dois cabelos crespos com aspectos danificados, mas é ao contrário. O
posicionamento da RB mostra justamente o “antes” para frisar o desgaste obtido durante
muito tempo com o alisamento e todos os maléficos que a química poderia causar a fibra
capilar. Utiliza-se as técnicas como um meio de libertação de um padrão eurocêntrico, e,
sobretudo, além de não terem químicas, eram estruturadas por tranças que remetiam-nas a
resgatar a auto-estima feminina com um “novo” cabelo, cuidado e sem agressão.

2.4.2 Crespo sim!!!

Outro aspecto bastante peculiar na RB é a representação do cabelo crespo, nas


palavras da RB seria o “cabelo crespo natural”, que se difere do “cabelo natural”, pois este

52
seria um cabelo com fibras que continha química, mas com aspecto crespo, já aquele, seria
sem a utilização de nenhuma química. Vejamos as imagens a seguir.

Figura 11 – A técnica de Mega Hair

Fonte: Revista Raça Brasil, nº 6, São Paulo, Ano 2: 1997.

Figura 12 – O cabelo crespo natural

Fonte: Revista Raça Brasil, nº 11, São Paulo, Ano 2: 1997.

53
Na figura 11, a mulher posicionada no plano maior, mostra a mesma já com o cabelo
transformado, com química e cuidado, e o “antes” que precisava de cuidados devido ao
desgaste a apliques e processos químicos. Nessa figura o cabelo é manipulado por meio da
técnica Mega Hair que tem o intuito de dar volumes ao cabelo natural. Já na figura 12 se
distingue ao apresentar um cabelo crespo e natural, sem a utilização de relaxantes ou
alisamentos, sem a utilização de técnicas com fios artificiais, apenas a utilização de gel em
creme e corte. Ou seja, na figura 11 o cabelo apresentado como natural e com aparência de
crespo, mas com química, já a figura 12, representado como crespo natural, sem processos
químicos.
Em ambas as imagens, a RB seduz as leitoras com dicas práticas no passo-a-passo e
elava-se a auto-estima ao proporcionar o “depois” da manipulação do cabelo. Ao escrever
“veja como é fácil ficar mais bonita e mudar seu visual” ou “valorizando o cacheado natural”
a RB mostra o que antes incomodava no cabelo, incentivando-as a elevar a auto-estima com
aceitação da textura do cabelo. Em seguida, há análise de duas imagens.

Figura 13 – Aspecto capilar: Crespo, sim!

Fonte: Revista Raça Brasil, nº 20, São Paulo, Ano 3: 1998.

54
Figura 14 – Modelos capilares do crespo

Fonte: Revista Raça Brasil, nº 20, São Paulo, Ano 3: 1998.

O cabelo crespo é representado positivamente nas figuras 13 e 14 com possibilidades


de usos, penteados e técnicas capilares. Nas figuras usam-se adereços nos cabelos crespos e
também apliques com fibras sintéticas e cabelos com permanente afro. Vale destacar que além
da imagem, a RB utiliza-se do discurso que são carregados que incentiva a auto-estima, que
associa o cabelo crespo a identidade positiva quando aborda “cachos do seu cabelo, que é
lindo, chique e negro”, gerando aproximação, identificação e orgulho enquanto sujeitos
negros e seus fenotípicos.
Outra característica que nos chama atenção na RB é a reprodução dos cabelos crespos
e seus penteados. Segundo Lody (2004, p. 65), a relação com o penteado é manifestação
antiga, herança dos povos africanos, que pela cabeça, os cabelos e os penteados assumem para
o africano e os afrodescendentes a importância de resgatar, pela estética, memórias ancestrais,
memórias próximas, familiares e cotidianas. Nessa mesma direção, para Coutinho (2010, p.
27) os penteados são símbolos de pertencimento étnico. Contudo, ainda que nessas duas
figuras a seguir não remetam à África diretamente, é relevante mencionar que para além da
Raça enfatizar a manipulação do cabelo crespo, os penteados tem códigos próprios. Dessa
forma, significados dos penteados podem justificar ao expressarem formas comuns entre
indivíduos de uma mesma cultura.

55
Figura 15 – Cabelo crespo: estilos de penteados

Fonte: Revista Raça Brasil, nº 9, São Paulo, Ano 2: 1997.

Figura 16 – Penteados da Raça Brasil

Fonte: Revista Raça Brasil, nº 9, São Paulo, Ano 2: 1997.

Com o propósito de aproximar a revista ao seu público, a RB mostra penteados fáceis


de fazer nas figuras 15 e 16. Esses modelos capilares são retratados de várias formas: presos,
soltos e até com o uso do black power. A RB também ressalta que os penteados podem ser
56
feitos com o auxilio de cremes, gel e utensílios com o pente largo (pente específico para o
cabelo black power ). Ao mostrar técnicas e manipulações pertinentes ao cabelo, bem como
dicas penteados para a mulher negra, a RB mostra-se para seu público-alvo como ferramenta
importante de afirmação para aceitação do cabelo. Um desses processos de reconhecimento e
valorização dos fenotípicos é ressaltado pela Revista justamente com o uso do cabelo crespo
em forma de Black Power, como se verifica a seguir.

2.4.3 Black Power na Cabeça

Até aqui pode-se perceber que a RB representa o cabelo para construir positivamente um
outro olhar em relação aos fenotípicos para a população negra, sobretudo os cabelos, que vai em
direção contrária do que até então foi massivamente imposto por correntes racistas, atribuindo
desprezo e estereótipos aos atributos físicos dos negros denominando, por exemplo, o cabelo de
“ruim”. A RB, assim, introduz elementos para que os sujeitos destituam os preconceitos e valores
negativos que interferem na formação de uma identidade, produzindo uma identidade negra positiva
do sujeito e coletivamente, principalmente quando é pautada a assunção do cabelo crespo como
podemos perceber na figura seguinte.

Figura 17 – Black Power na cabeça

Fonte: Revista Raça Brasil, nº 9, São Paulo, Ano 2: 1997.

57
Observa-se na figura 17 usa a expressão Black Power, que como já foi mencionado
anteriormente, o cabelo solto no qual se aproxima com o cabelo natural crespo, é apresentado
por diversos modelos, inclusive igual ao corte dos líderes do Panteras negras. Além disso,
igualmente as outras imagens, a RB traz um esquema “antes e depois” para mostrar ao leitor
que o cabelo, que antes incomodava por sofrer processos de químicas, poderia voltar a ser
crespo e lindo. Embora a RB aborde técnicas inerentes ao uso do cabelo crespo, dicas práticas
de como manipular o cabelo, produtos e modelos capilares, essas características apresentam
pontos comuns: possibilidade de elevação da auto estima e o orgulho identitário. Juntamente
com a imagem, a RB traz discurso que remete ao cabelo crespo um sentido de importante e
especial do corpo negro, igualando o cabelo como um Poder Negro quando afirma: “Black
Power na cabeça” ao afirmar que cada vez mais os negros estão assumindo os seus valores.
Em suma, em todas as imagens da RB analisadas no estudo, nota-se que ela fomenta
uma representação positiva do cabelo seja ele natural, com uso químico ou natural crespo. Ao
trazerem assuntos de beleza, a RB como uma revista midiática que tinha seu público-alvo, os
negros brasileiros, que abordava temas como comportamentos, moda, e sobretudo, estética,
torna-se uma revista relevante para as mulheres negras na década de 90 e no campo da beleza,
exaltou o cabelo do negro como meio importante de afirmação positiva de identificação para
as mulheres.

2.5 O novo paradigma: da Raça Brasil à Transição Capilar

A trajetória da RB é marcada por diversas mudanças internas que ocorreram desde a


retirada do slogan inicial “a revista dos negros brasileiros”, e editoriais, ocasionando, segundo
Santos (2004), mudança até na abordagem em relação à negritude. Enquanto na primeira fase
se falava mais sobre a valorização do negro e de sua auto-estima, na segunda fase era comum
abordar questões sobre o pertencimento negro, mas sem muito destaque. (SANTOS, 2004,
p.162). Santos (2004) reforça sobre essa mudança que

Os aspectos que diferenciam a primeira e a segunda fase da revista Raça Brasil se


referem ao slogan, à capa, ao editorial e à matéria principal. O slogan A revista dos
negros brasileiros, que vinha no topo da capa da Raça Brasil, deixa de constar da
publicação a partir da edição nº 36, no quarto ano de existência da revista. A capa da
revista, nesse sentido, perde um pouco da força do seu significado. Embora o nome
Raça e as imagens de afrodescendentes tenham forte significado, o slogan reforçava
ainda mais a questão da segmentação étnica da revista, além do fato incomum de se
ter uma publicação de grande repercussão, voltada para o público negro. Em relação
à segunda fase, uma possível razão para a não existência do slogan está na opção da
58
editora em criar um novo projeto gráfico com menos elementos, apresentando cores
161 de fundo mais claras, assumindo, com isso, um perfil mais próximo ao de uma
revista de moda, deixando de ser tão voltada à variedade, como vinha sendo até
então. (Santos, 2004, pp. 161-162)

Entretanto, observamos nas edições da segunda fase que inicia em 2003 e no que
refere-se ao cabelo, a RB continuou lançando matérias que envolviam usos e técnicas
capilares como representação e símbolo relevante do sujeito negro. Além disso, não foi
observado disparidades com a representação do cabelo, texturas, modelos, cortes dado pela
revista entre a primeira e segunda fase. Contudo, pode-se pontuar algumas mudanças na
abordagem capilar: mesmo mantendo artigos que abordavam sobre o cabelo, há diminuição
nas chamadas e nos editoriais, em relação a primeira fase, como podemos notar nas duas
capas da revista a seguir.

Figura 18 – Capa da Revista Raça Brasil Figura 19 – Capa da Revista Raça Brasil
sem chamada sobre cabelos 1 sem chamada sobre cabelos 2

Fonte: Revista Raça Brasil, nº 183, São Paulo, Fonte: Revista Raça Brasil, nº 192, São Paulo, Ano:
Ano: 2013 2014.

Em algumas revistas, a RB optou por incorporar aspectos mais gerais que envolviam a
beleza e moda, como por exemplo, maquiagem para pele negra. Nas figuras 18 e 19 por
exemplo, observa-se nas chamadas das capas diversas matérias, inclusive sobre maquiagem
pela negra, mas não há artigos que abordem sobre cabelo. Mas, apesar do pouco destaque
59
capilar na RB, o cabelo continuou sendo um instrumento importante no que tange às questões
da negritude, sobretudo, enfatizava o uso capilar de todas as maneiras.
Cinco anos depois do início da segunda fase da RB, surgiu no Brasil no ano de 2008
um novo paradigma sobre o cabelo: a Transição Capilar. Se no padrão Pluralidades Capilares
as cabeleiras das mulheres negras tinham tendências múltiplas, a transição capilar vem no
intuito de retornar plenamente ao cabelo crespo natural e desta vez, por uma via única, sem
químicas.

Figura 20- Encontro do paradigma Pluralidade Capilar com a Transição Capilar .

Fonte: Fonte: Revista Raça Brasil, nº 180, São Paulo, Ano: 2013.

60
Encontramos na edição do ano 2013, nº 180 da figura anterior, uma reportagem que
fala sobre um grupo chamado Meninas Black Power (MBP). Esse coletivo, segundo a
descrição, é formado por mulheres negras que tratam sobre o cabelo crespo e o retorno ao
cabelo natural que acorre através da transição capilar. É um grupo composto por mulheres de
todo o Brasil e se reúnem virtualmente pelas redes sociais. Caracterizamos esse momento com
o encontro entre os dois paradigmas. Mesmo com as lutas para conscientização de valorização
do povo negro por meio dos movimentos negros e também com a popularização de afirmação
positiva dos fenotípicos negros no meio midiático, a RB ressalta que ainda a dominação de
produtos químicos na sociedade brasileira. Em direção contrária, a MBP com influências de
mulheres dos Estados Unidos, retornou ao cabelo crespo com o intuito de voltar a ser o que
era antes do alisamento. Para a RB, tal fenômeno chamado de Transição Capilar além de ser
uma conscientização política, seria também um movimento estético e estilo de vida.
Aqui, observamos o encontro dos quatro paradigmas nessa edição. O retorno que
exalta do cabelo crespo começa a ganhar destaque em relação ao Cabelo Alisado, e também
traz discussões iniciais às particularidades da Transição Capilar, e ao mesmo tempo, por meio
do título da chamada do artigo, o Black Power é evidenciado e associado à autoestima,
identidade e estética dos sujeitos negros. Por meio desse encontro, chegamos aqui com alguns
questionamentos. Quais as características dos paradigmas capilares que exaltam o cabelo
crespo? Como a Transição Capilar positiva e/ou redefine a identidade feminina negra? Tal
processo seria resistência do corpo da mulher negra? Quais as características dessas
paradigmas, sobretudo a Transição Capilar, que levaram as mulheres das cidades de Salvador
e de Aracaju a passarem por esse processo? Posto isso, convidamos ao leitor a seguir conosco
nessa empreitada para refletirmos sobre o que começou a fazer a cabeleira das mulheres
negras nos dias atuais.

61
3 SOLTO, ARMADO E NATURAL: OS PARADIGMAS DOS CABELOS CRESPOS
NATURAIS COMO FORMAS DE EXPRESSÃO DE LUTA, AUTOESTIMA E
AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA

Crespo

Nada de Bombril
Meu cabelo não é esponja de aço
É crespo, moço!!!
É crespo, moço!!!
Não custa falar
Aprenda a nomear, a respeitar
A minha diferença da sua
Os meus cachinhos miudinhos, enroladinhos
Da raiz às pontas
Crescendo para o auto, volumoso e hidratado
Enquanto você fica aí julgando o ressecado,
Apelidando de duro e descendo o esculacho
No jato d’água ele escorre e deixa meus cachinhos mais amostrados
Quando seca ele é pura beleza no estilo armado
Olhando no espelho, moço
Olhando no espelho, moça
Meu black reflete a minha identidade
Mulher naturalmente bela
Sem a necessidade constante
De uma maquiagem.

Jacquinha Nogueira

3.1 A era do paradigma Black Power: o cabelo crespo como símbolo de luta e
elevação da autoestima de um povo

O cabelo crespo ao longo do tempo ganhou novos significados de valorização para


um grupo de sujeitos negros. Essa ressignificação é abordada por Jacquinha Nogueira, que
nos conduz a pensar sobre os movimentos e transformações dos cabelos naturais crespos das
mulheres negras no pós-abolição. A textura capilar crespa rompeu, transcendeu e tornou-se
instrumento de insubmissão e transgressão de uma sociedade que tinha como padrão estético, o europeu.
Nessa direção, destacamos dois paradigmas capilares do crespo que condicionaram
o cabelo como símbolo e positivou uma identidade negra: o Black Power (BP) e a Transição
Capilar (TC). Para uma melhor compreensão sobre os fenômenos que levaram as mulheres
mudar e/ou aceitar o cabelo, bem como perceber suas experiências subjetivas ao passar pelo
processo da TC, é necessário analisarmos o padrão que influenciou uma geração a assumir a

62
textura capilar natural a partir dos do meado dos anos 60 no Brasil, bem como as diferenças,
rupturas e/ou continuidades desses paradigmas que atribuem a relevância do cabelo crespo
como símbolo e afirmação da identidade para a população negra no Brasil, sobretudo da
mulher por meio da TC. Dessa forma, quais as particularidades da era BP?
“Ter orgulho de ser black”, esse foi o discurso que influenciou jovens negros no
Brasil, na década de 60 e ficou conhecido como o Movimento Black Power. Essa manifestação ocorreu
em vários Estados brasileiros e tinha muitas denominações, como: Soul, Black-music, Black
Bahia, Black São Paulo, Black Rio, entre outros. Por meio da influência das manifestações vindas dos
Estados Unidos17 e com a inserção do estilo musical soul, que foi definido como um movimento que
propagava orgulho e identificação negra18, o movimento no Brasil ganhou originalidade e novos
contornos.
O movimento possuía uma característica peculiar, pois tinha uma linguagem própria
que exibiu por meio do estilo musical soul uma forma de pensar e viver com características
semelhantes, como o discurso, a dança e o estilo. Para Peixoto e Sebadelle (2016), o
movimento tinha como ponto de partida a música e a dança, que demonstravam a elevação da
autoestima, a conscientização e a disseminação da cultura negra numa dimensão global
(PEIXOTO; SABADELHE, 2016)
Analisa-se por meio de uma perspectiva musical, Ribeiro (2008), destaca que o soul foi fundamental
para o protagonismo e consolidação do Movimento Black. Com a rejeição do estilo musical blue devido à
interferência dos cantores brancos que cantavam repertório negro e a incorporação de instrumentos
eletrificados, o blue passa por diversas modificações e adaptações musicais até chegar ao gospel que estava
ganhando espaço no universo musical dos estadunidenses. Para Ribeiro, “... ao associar-se o rhythm and
blues (música profana) ao gospel (música protestante negra eletrificada descendente dos
spirituals), temos o surgimento do soul. O soul visava o resgate para os negros de um ritmo
autenticamente negro” (RIBEIRO, 2008, p. 95). Dessa forma, a soul music ganhou espaço
nacional e internacional, que se diferiu-se dos outros por colocar um limite para a América

17
Ver capitulo 1
18
Segundo Ribeiro, o termo Soul, surgido nos Estados Unidos, é um estilo musical criado para reagir contra os
maus-tratos, a pobreza e discriminação racial, bem como por meio desse ritmo, os participantes e ouvintes do
Soul, buscavam a igualdade entre as pessoas e a elevação da auto-estima. Ainda de acordo com a autora, o estilo
Soul gerou um grande movimento de identificação da comunidade negra, seguindo um “um conjunto de regras,
códigos e convenções geralmente interpretados como da ordem do conhecimento prático, sendo compartilhados
por vários sujeitos, demonstrando assim seu caráter social. (RIBEIRO, 2008, p. 20). Ao participar desse
movimento musical no Brasil, Ribeiro pontua que “os frequentadores se reconhecem nos papeis centrais de uma
logica de alteridade” que fizeram os indivíduos sair da invisibilidade e romperam “com as estruturas do
preconceito, ocuparam espaços e, ainda hoje, carregam a bandeira de igualdade e fraternidade”. (RIBEIRO,
2008, p. 103)
63
branca, ou seja, os cantores negros utilizaram-se de termos específicos como irmãos -
brothers e irmãs - sisters, e formaram uma comunidade solidaria e fraternal que brilhava pela
alma (RIBEIRO, 2008). Sobre essa característica, podemos observar por meio da letra da
música “Mandamentos Black”, que o termo Brothers expressou atitude e comportamento para os envolvidos
no Movimento, como podemos notar por meio da letra da música:

Mandamentos Black

Brother!!!
Assuma sua mente,brother!
E chegue a uma poderosa conclusão de que os blacks não
Querem ofender a ninguém, brother!
O que nós queremos é dançar! dançar,dançar e curtir
Muito som
Não sei se estou me fazendo entender.
O certo,é seguir os mandamentos blacks,que são,baby:
Dançar,como dança um black!
Amar,como ama um black!
Andar,como anda um black!
Usar, sempre o cumprimento black!
Falar,como fala um black!
E eu te amo,brother!!
Viver,sempre na onda black!
Ter,orgulho de ser black!
Curtir o amor de outro black!
Saber,saber que a cor branca,brother é a cor da
Bandeira da paz, da pureza e esses são os pontos de
Partida para toda a coisa boa,brother!
Divina razão pela qual amo vc tbm, brother!

Eu te amo brother!!
E eu te amo brother!!! (Gerson King Combo, Augusto Cesar, Pedrinho Da Luz.
Mandamentos Black. Gravada em 1978. 04:07 min)

Nesse sentido, o Movimento Black Power juntamente com o estilo musical soul, difundiu a
valorização da identidade, a liberdade de expressão e a luta por direitos iguais para o povo negro (PEIXOTO;
SABADELHE, 2016). Assim como ocorreu com Gerson King Combo, autor da música Mandamentos
Black e cantor nos bailes do Rio de Janeiro, o movimento influenciou vários jovens brasileiros
que tinham como propósito se expressar livremente, absorver e produzir cultura.
Mas em quais locais se encontravam esses jovens para celebrar o Black Power?
Ao analisar alguns estudos, verifica-se que existiam dois referenciais de encontro e
sociabilidade dos adeptos do Movimento: nos bailes e nos salões. Os que mais se destacaram
foram os bailes do Rio de Janeiro. Segundo Peixote e Sabadelle (2016), o Black Rio foi um
fenômeno que teve proporção grandiosa e era um universo que se autossustentava. Antes

64
mesmo de ganhar exibição midiática, o baile já movimentava um mercado interno, versátil e
itinerante em vários setores: sapatos, cosméticos, estética, entretenimento e indústria
fonográfica (PEIXOTO; SABADELHE, 2016). Segundo os autores, por causa dessa agilidade
de mobilização, o movimento teve capacidade de expandir e alcançar grande quantidade de
blacks que buscavam uma maneira própria de se comportar (PEIXOTO; SABADELHE,
2016).
Figura 21- Baile Black Power

Fonte PEIXOTO; SABADELHE (2016)

Na figura anterior, nota-se um grupo de jovens negros que participavam do Baile


Black Rio na década de 70. Observamos por meio da fotografia uma característica relevante
do movimento: a aparência. Segundo Giacomini (2006), a aparência era preocupação central e
fazia parte do movimento que para além de destacar magia e sensualidade, contribuía para
promover a aproximação, afirmação e orgulho entre os jovens negros (GIACOMINI,2006).
Ainda segundo a autora, a aparência que faz parte da moda soul, tornou-se referência que
dialoga com o costume e tradição de um grupo que busca resgatar originalidade.
Na aparência, como podemos observar na imagem anterior, dois pontos se
destacavam: o primeiro é que o grupo comunga de modelos similares das vestimentas. A
roupa, dessa forma, seria um elemento importante para fomentar uma identidade comum ao
grupo. O segundo elemento que destaca-se é o uso do cabelo estilo Black Power. Totalmente
natural, o cabelo penteado e colocado alto, celebrava o orgulho negro e nas palavras de
Giacomini “trata-se de um ato politização do cabelo, a generalização de uma leitura política
do penteado: o penteado transformado em manifesto” (GIACOMINI, 2006, p. 203). Ou seja,
um manifesto político de um grupo de jovens que rejeitou um padrão estético e
comportamental imposto e afirmava a identidade negra.

65
O estilo soul se destacava pela extravagância das cores, elementos da cultura africana
e elegância dos ternos (ALVES, 2011). A aparência no geral, de acordo com Ribeiro (2008),
eram elementos distintivos que contribuíram para que todo o grupo assumisse uma postura de
protagonista numa sociedade que insistem em inviabilizá-los (RIBEIRO, 2008).
Um dos percursores da difusão do movimento soul e bailes Black foi Antônio Viana
Gomes, conhecido como Toni Tornado. Por meio da música, Tornado afirmava sua negritude,
ditava atitude e era inspiração, tornando-se um dos ícones do movimento. Bastante reprimido
pelos militares, Tornado utilizava-se da estética, estilo musical e forma de se vestir como
alternativas que possibilitavam um olhar positivo frente à questão racial. Um dos elementos
externos que mais chamava atenção era o cabelo de Tornado, como observamos na Figura
abaixo. O cabelo é colocado nesse sentido, como difusor para expressar símbolo da resistência
do Movimento Black (PEIXOTO; SABADELHE, 2016).

Figura 22- Toni Tornado e o cabelo Black Power

Fonte: PEIXOTO; SABADELHE (2016)

Outro ambiente que podemos perceber o uso do cabelo natural no Movimento Black
são nos salões de beleza. Esses, como espaços de sociabilidades, foram bastante frequentados
por jovens negros que iam em busca de mudanças, parcerias, entreterimento e descobertas
sobre o novo paradigma capilar: o estilo black power. Maia (2015) mostra a importância dos
salões em São Paulo, que por causa do movimento Black, os cabeleireiros especializaram-se
em cabelo naturais. Entretanto, por meio de relatos de histórias de vida, Maia (2015) enfatiza
66
que a era do Black Power trouxe uma busca de um grupo, pela autoestima e valores sociais
(MAIA, 2015). Segundo a autora, um dos precussores no ramo da beleza black em São Paulo
foi o cabeleleiro Gê Black Power que ao perceber a demanda de um público crescente com
interesse ao novo estilo, abriu vários salões, sendo o mais famoso na Rua 24 de maio, no
centro paulista que,

[...] virou um grande ponto de encontroo, as pessoas concentravam-se ali, no meio


da rua, aquele, assim, passou a ser considerado o novo point. Quem frenquentava o
lugar unia o útil ao agradavel, ali as pessoas ficavam bem informadas sobre as
grandes festas que iriam aontecer durante o mês, e aproveitavam para cortar seus
cabelos. Os negros estavam se assumindo, até o velho costume de usar tranças tinha
voltado à moda. Então cultura negra veio à tona, era hora de se aperfeiçoar, porque
na galeria ser negro estava virando moda Black Power. Diversos salões foram
abertos e com isso a demanda de profissionais para execer a função cresceu na
galeria grandes salões da moda Black Power (MAIA, 2015, p. 34-35)

Maia (2015) ressalta que por causa da adesão ao cabelo natural, houve um movimento
consumista que possibilitou a expansão de um mercado de trabalho em serviços
especializados entre os jovens negros de São Paulo. Contudo, o que chama a atenção na
pesquisa da autora é em relação aos entrevistados dela. A maioria dos cabeleireiros e
frequentadores entrevistados são homens. Das 55 pessoas, apenas 4 mulheres cabeleireiras
relatam suas impressões sobre o período do Movimento Black. Por meio da análise dessas
entrevistas, bem como as fotos contidas nos trabalhos de Peixoto e Sabadelhe (2016) e no de
Maia (2015), nota-se que por mais que fosse um movimento que juntou homens e mulheres
negras, a adesão, em especial, do cabelo black power foi protagonizado por homens.
Em relação ao estilo soul, para Giacomini (2006) embora fosse usada por homens e
mulheres, foi acentuada principalmente a estética masculina. O vestuário masculino foi
transformado no sentido de modernizar: calças justas, saltos plataformas que colocou a moda
dos homens em evidência (GIACOMINI, 2006).
Em outra perspectiva, de acordo com Peixoto e Sabadelhe (2016), os homens
participantes do movimento Black, suas vestimentas e estilos estéticos eram também motivos
de constantes investidas militares, principalmente por causa da adoção do cabelo natural, pois
mesmo que não utilizassem as roupas no dia-a-dia, o cabelo denunciava rapidamente sobre
quem e qual grupo determinada pessoa pertencia, como identificamos na fala de Claudio
Manoel de Souza, citado por Ribeiro (2008),

Era discriminado pela polícia militar. Aqueles ‘blackão’ que tinham um cabelão,
chegavam na Praça Sete eram raspados. Tem um amigo nosso, ele era dançarino ele teve

67
a cabeça raspada, e hoje ele é policial militar. Ele foi raspado, eles rasparam a cabeça
dele, na Praça Sete, porque o cabelo black power era conhecido como maconheiro,
maloqueiro na época. Tem até uma música do Berimbrown que fala, ‘a rapa chegou,
homem para um lado, mulher para o outro’ isso eu já passei (RIBEIRO, 2008, p. 96).

Mesmo os adeptos abordados e presos por causa do cabelo, sob a alegação de


esconderem algo dentro do cabelo, ou serem acusados de portarem armas, devido à utilização
dos pentes-garfos de metal, os jovens continuavam a usar o cabelo alto, pois para além da
estética, era sinônimo de atitude, convicção e identificação entre os brothers. E o uso capilar
também era colocado como forma de diferenciação, ou seja, os sinais externos, como a
vestimenta e o cabelo black power permitiam reconhecer-se pelos iguais, como também se
diferenciar aos demais (GIACOMINI, 2006).
Vale ressaltar que, no Rio de Janeiro, por exemplo, no início da década de 70, mais
precisamente até 1976, o movimento Black Power foi investigado por diversas vezes pela
polícia Secreta e era visto como uma ameaça por não infligir à segurança nacional, pois eram
expostos como um grupo de jovens de “cor” que queriam se divertir e com estilos próprios,
caracterizando apenas como uma ameaça simbólica. E para puni-los oficialmente, a Política
investigavam o crime de racismo às pessoas brancas, já que estes eram minorias nesses
encontros. Dessa forma, procuravam o agente “black” financiador estrangeiro desse
movimento dentro dos bailes blacks e não desafiavam nenhuma categoria de subversão como
“terrorismo” ou “comunismo” (ALBERTO, 2016).
Entretanto, como nos conta a autora Alberto (2016), depois da publicação do artigo de
FRIAS intitulado como Black Rio: O orgulho (importado) de ser negro no Brasil, publicado
em julho de 1976, a visão da Polícia Secreta mudou em relação ao movimento BP, pois ele
entenderam por meio do artigo que os participantes da manifestação eram organizados
politicamente, com ideias separatistas que faria “um ataque ilegítimo e imoral à unidade racial
do Brasil” (ALBERTO, 2016, p. 69). Dessa maneira, tudo o que era associado ao movimento
BP, era repreendido pela Polícia da Ditadura Militar no Brasil.
Portanto, foi nesse cenário que surgiu o paradigma capilar que preconizava o uso do cabelo natural,
no qual denominados de Black Power. Dessa forma, a análise do cabelo celebrado pelo movimento Black
Power é relevante para essa pesquisa, pois nos permitir apreender sobre o contexto e processo em que ocorreu
o uso do padrão capilar totalmente natural no Brasil. Além do mais, esse paradigma nas décadas de 1960 e
1970, surgiu como símbolo de luta, elevação da autoestima e da identidade negra por uma geração de jovens
negros que aderiram a esse estilo estético, propagado em vários Estados e promovemos vários eventos de
celebração do estilo Black Power principalmente, entre os homens. Portanto, essa análise permite perceber
68
sobre as influencias, permanências e mudanças em relação ao paradigma da Transição Capilar e a cerca do
cabelo que foi utilizado por meio desses padrões.
Posto isso, deparamo-nos então com alguns questionamentos: quais são as
particularidades relativas a adesão do estilo capilar? A aceitação do cabelo totalmente natural
não é inédita no Brasil, então o que seria inovador no quesito de exaltar o cabelo natural no
movimento atual da Transição Capilar (TC)? Existe alguma permanência ou mudança em
relação à estética capilar do cabelo crespo/cacheado do paradigma antigo? E seus
participantes, se diferem em alguma questão? Os caminhos para a positivação da identidade
negra são os mesmos? Para responder a essas questões, no próximo tópico apresentaremos a
discussão sobre o atual padrão surgido por intermédio da TC, bem como as permanências,
rupturas e/ou continuidades em relação ao paradigma Black Power, já que ambos propõe a
exaltação dos cabelos crespos totalmente naturais para positivar a identidade negra e elevar
autoestima.

3.2. Afinal, qual a inovação da Transição capilar?

Outro movimento de grande importância para a exaltação do cabelo crespo é a


Transição Capilar (TC). Esse termo surgiu nos Estados Unidos (EUA) por volta do ano de
2003, era intitulado como Transitioning hair e logo configurou-se em um The natural hair
movement, ou seja, um movimento que tinha como objetivo de celebrar juntas e encorajar
mulheres em todos os cantos do mundo a retornar com o cabelo natural (THOMAS, 2013).
O cabelo natural das mulheres negras dos EUA era conhecido como nappy19, em
tradução livre, algodão. Esse aspecto capilar que parecia com tufos de algodão foram

19
Côrtes (2012), em sua tese, nos mostra o cenário do alisamento no contexto afro-americano e traz a luz a
história de Sarah Breedlove, conhecida como Madam C. J. Walker. Ela foi a primeira mulher negra no ramo do
comércio da estética negra e se conseguiu ser milionária por mérito próprio. Antes de se tornar
empresária, Madam C. J. Walker trabalhou durante anos nas fazendas de algodão, em Mississipi e observou que
tanto ela como outras mulheres que que lidavam em cultivos de algodão, desenvolviam doenças no couro
cabeludo e seus cabelos caiam por causa da pouca condição que possibilitasse o cuidado dos fios. Dessa maneira,
segundo Côrtes (2012), no intuito de ter uma compleição perfeita, Madam C. J. Walker criou uma formula que
possibilitasse o crescimento dos fios, criando um império no ramo da indústria de cosmética nos EUA. Nesse
período, Madam C. J. Walker, associava o cuidados com as madeixas com o cultivo do algodão, em virtude da
experiência no trabalho. Côrtes (2012) informa que “a idéia do cabelo como algo a ser cuidado, um bem que
requer a lida diária é muito bem sintetizado nas famosas palestras proferidas pela filantropista quando de suas
viagens pelo país para demonstração do seu sistema e recrutamento de agentes, mulheres de cor que vivenciavam
um processo de disciplinarização dos corpos, exigido pelo cenário urbano-industrial que se alastrava pelo país.”
(CÔRTES, 2012, p. 371). Côrtes (2012) ainda ressalta que Madam C. J. Walker sempre proferia em suas
palavras a seguinte mensagem: “Vocês percebem que para fazer o cabelo crescer é necessário cuidar do couro
cabeludo da mesma forma que cuidamos das sementes que plantamos nos jardins?” Ou, de forma mais direta:
“fazer o cabelo crescer é como fazer o algodão crescer” (CÔRTES, 2012, p. 369). Dessa maneira, diferentemente
69
constantemente associados a cabelo “ruim”. Dessa forma, um grupo de mulheres negras de
várias localidades dos EUA, cansadas da imposição dos alisamentos, e de terem seus cabelos
associados ao algodão de maneira pejorativa, organizaram-se virtualmente em torno de um
movimento do cabelo natural.
Por meio da socialização de documentários20 sobre o cabelo crespo nos EUA que
possibilitaram uma profunda reflexão sobre o nappy, várias mulheres dos EUA decidiram
enfatizar uma conotação positiva ao termo, assumindo o orgulho de ter um cabelo nappy21.
Diferentemente da era Black Power, o paradigma TC inova por apresentar um
protagonismo exclusivo de um grupo de mulheres negras que influenciavam outras mulheres
negras. Nos EUA, esse movimento ocorreu em virtude do histórico de imposição ocidental ao
padrão de cabelo alisado às mulheres negras. De acordo com Thomas (2013), as mulheres
negras dos EUA foram obrigadas a acreditar que o cabelo de acordo com os padrões de beleza
branco, para o cabelo ser bonito tinha que ser liso. E que ainda na atualidade, muitas mulheres
acreditam nessa ideologia.
A autora enfatiza que a corrente do cabelo liso como ideal é disseminada em imagens,
textos e práticas que muitas vezes incorporam a ideia de que o cabelo liso seria o mais belo e
atraente. As mulheres são muito mais cobradas do que homens, o ideal de mulher perfeita
afetava todas elas, então criar um grupo só de mulheres tem muito a ver com o fato de a
cobrança maior ser em cima delas. Além do mais, tinha a questão da cor, ser mulher e negra é
romper dois padrões “o de mulher perfeita e o de mulher branca”. Por isso, algumas mulheres
se sentiam obrigadas a alisar os cabelos, a TC serviu como uma forma de libertação e de
quebra do padrão de alisamento.
Thomas traz exemplos de revistas estadunidenses, como a revista apresentada na
Figura 23, que usam a palavra sofisticação com a intenção de ressaltar e hierarquizar um tipo
de cabelo em detrimento do outro. Ao utilizar tal termo, a revista direciona a leitora,
intencionalmente, ao mostrar mulheres negras que usavam o cabelo alisado como sofisticados,
para dar a impressão de que apenas tais penteados seriam possíveis somente por meio dessa
textura (THOMAS, 2013).

do pensamento de Madam C. J. Walker que associou o cabelo crespo com a possibilidade de crescimento igual
aos tufos de algodão, a sociedade racista atrelou ao termo nappy um viés negativo ao longo dos anos.
20
Documentários: Nappy Roots: Uma Viagem Através do Black Hair-itage (2008) e Good Hair (2009).
21
Devido o movimento da Transição Capilar, as informações da origem desse movimento foram investigadas em
blogs e páginas virtuais na internet. Disponível em https://www.curlcentric.com/natural-hair-movement/
70
Figura 23- Revista Black Hair

Fonte: http://blackhairmagazine.co.uk/

Thomas complementa que embora tenha abolido a escravidão, muitas mulheres


enfrentam racismo estético cotidiano. Por exemplo, elas ainda “sentem na pele” e/ou
acreditam que para conseguir emprego é necessário ter um cabelo alisado e “endireitado”. A
autora observa também que por causa da imposição ocidental de beleza, as mulheres negras
sofrem e sua autoestima é baixa, e por causa disso, tudo o que é derivado do cabelo crespo,
seja penteados ou estilos como tranças, dreadlocks ou natural, as mulheres costumam rejeitar
(THOMAS, 2013). Por esse motivo que caracterizamos aqui o movimento da TC como
questão de gênero e identidade negra. Falaremos sobre essa especificada nos tópicos a seguir.
Mas antes é necessário entender como ocorreu à difusão da TC.
Apesar dos padrões eurocêntricos persistirem na sociedade, principalmente para as
mulheres negras, nota-se uma mudança substancial a partir do ano de 2005, pois a rejeição ao
cabelo crespo diminuiu. O movimento que busca a TC se expandiu dos EUA para diversos
países do mundo via internet e forneceu incentivos, conselhos e cuidados práticos para as
todas as descendentes africanas que estavam interessadas em deixar o cabelo natural. Dessa
forma, o cyberespaço possibilitou a TC atingir um grande número de mulheres interessadas
em livrarem-se dos produtos químicos.
Pontuamos que o campo virtual se destacou dentro desse movimento com um motor
primordial para a primeira disseminação das explicações, conceitos e diretrizes em relação à
TC. E as redes sociais, tem exercido papel fundamental, pois permitem além da interação
virtual, as participantes do paradigma da TC reúnem-se em diversos encontros virtuais e

71
extrapolam para encontros presenciais que possibilitam formações de coletivos para discutir
questões relacionadas ao cabelo, atitude, identidade e ao comportamento22.
No Brasil, o movimento da TC iniciou-se partir do ano de 2008 pelas redes sociais,
precisamente, pela antiga plataforma do Orkut23. O coletivo, Meninas Black Power foram
umas das pioneiras a propagar a mudança capilar. Nota-se, pelo nome dado ao coletivo, uma
aproximação e/ou associação com o movimento surgido no Brasil no meado da década de 60.
Haveria então uma continuidade em relação ao aspecto capilar propagado pelo movimento
BP, pois como inicia o próprio artigo “querem tornar crespos os cabelos agredidos pela
química”. Dessa forma, o movimento da TC teria como herança e fio norteador os princípios
do BP em relação à estética capilar.
Em relação ao cyberespaço, o Meninas Black Power e tantos outros, logo ao se
consolidarem na plataforma no Facebook e no YouTube, tomaram projeções presenciais para
compartilhar as mudanças do antigo cabelo alisado para a aceitação da nova textura capilar,
como podemos perceber pelas falas das entrevistadas a seguir.

Eu criei o grupo Crespas e Cacheadas em Salvador. O que me levou a criar o grupo


foi a carência de informação sobre o nosso cabelo. Já conversa sobre cabelo crespo
com umas colegas via mensagem por celular e resolvemos criar um grupo no
Facebook em 2014. Poucos minutos depois que eu criei já tinha mais de mil
mulheres querendo participar do grupo. Chamei minhas amigas para me ajudar a
administrar o grupo. E assim essa rede sobre transição capilar e tudo sobre cabelo
foi crescendo. A gente fala sobre nossos anseios, tristezas, alegrias. Colocamos
todas lá em cima. As pessoas acham que é fácil, tomar atitude de cortar, deixar o
cabelo natural né não viu. Mexe com a gente toda. Tem meninas que tomam
coragem, começam, mas por uma simples fala de alguém, de um parente, uma
crítica, desistem. É complicado. Mas o legal do grupo é que sabemos por mais que a
gente seja diferente, enfrentamos as mesmas coisas viu. Nos percebemos enquanto
mulheres que consomem, falamos do nosso corpo, de maquiagem, e de tudo sobre
cabelo. Lá aceitamos todas as mulheres, até as lisas. Mas falamos sobre cabelos
crespos. Trocamos informações sobre tudo. Onde comprar, cortar, salão. Falamos de
tudo mesmo. (Sâmara Azevedo, entrevista concedida em 15 de maio de 2018)

Aqui em Aracaju, conheci uma menina que estava em Transição. Isso em meados de
2012. Achei bonito da parte dela, mas não passou pela minha cabeça fazer sabe.
Acho que dois anos depois, eu pedi a uma colega para me colocar no grupo pelo zap
(WhattsApp). Eu queria participar porque eu estava com problema de saúde
decorrente das químicas. Tenho problema respiratório e só fez piorar. Mas quando
eu entrei no grupo e me deparei com o que era Transição capilar, muita coisa
mudou. De início foi por causa de saúde, mas depois foi porque me reconheci com o
cabelo crespo, mulher, negra e linda. Então foi assim que eu conheci os grupos. Hoje
faço parte de vários, no Facebook também. (Leiliane dos Santos, entrevista
concedida em 09 de novembro de 2017)

22
Os encontros virtuais e presenciais, bem como as formações de coletivos oriundos da Transição Capilar serão
abordados na Parte III, como pontuaremos ao final dessa pesquisa, por meio do Sumário.
23
Ver Figura 21 da presente pesquisa.
72
Nota-se que o que fez Samara criar um grupo foi à falta de informação sobre o cabelo
natural na qual estava iniciando a processo de transição e Leiliane, por problemas de saúde.
Algumas mulheres que iniciaram a TC no Brasil, sobretudo em Salvador e Aracaju, optaram
por vários motivos: muitas foram por modismos, outras por apenas para aceitação do cabelo
natural, ou porque não tinham mais condições financeiras de arcar altos custos de apliques.
Contudo, observa-se nos relatos que a causa principal da adesão pelo processo da TC é em
virtude da química no cabelo, como observamos na narrativa de Angélica,

Eu deixei de ir às festas, deixei de ir aos eventos porque não conseguia ou não dava
tempo de arrumar do jeito que eu queria. Mais ou menos em 2008, 2009. Eu deixava
de sair porque meu cabelo estava molhado ou escovado. Mesmo com a entrada das
superescovas, eu deixava de fazer minhas coisas por causa do cabelo alisado, fora
que eu meu cabelo começou a ficar cair e ter corte químico 24 e eu ficava arrasada.
(Angélica O. Nascimento, entrevista concedida em 16 de novembro de 2017)

O processo de alisamento capilar era capaz de condicionar a vida social da pessoa.


Nesse sentido, percebemos que o alisamento capilar gira em torno também da aceitação e
opinião da sociedade, pois para Angélica, sair ou não de casa só era possível caso o cabelo
estivesse arrumado. Além disse nota-se na narrativa de Angélica que além do
condicionamento na vida social, o alisamento também provocou efeito colateral, com quedas
e fios fracos.
Em relação à saúde, por exemplo, foi em detrimento da química que continha no
alisamento. O procedimento conhecido como Escova progressiva ou inteligente, tinha o
intuito de ser mais eficaz do que os cremes de alisamentos e a escova comum, essa nova
técnica consistia em “revolucionar” o método de alisar, que prometia um efeito duradouro de
4 meses, no qual fazia com que os fios ganhassem mais brilho, maciez, além de possuir uma
“vantagem” em relação as escovas tradicionais: as mulheres poderiam molhar o cabelo sem se
preocupar com o aspecto capilar.

Entretanto, após a chegada da técnica de alisar, ocorreram vários contratempos. Isso


porque o alisamento trazia efeitos prejudiciais para a saúde em virtude dos formaldeídos. O
uso do formol, no início era o mais comum, entretanto seu uso era extremamente danoso à
saúde que causava às pessoas expostas ao produto, náuseas, irritação na pele, problemas

24
O corte químico é quando ocorre uma desestruturação na fibra capilar deixando os fios fracos. Por causa do
alisamento agressivo, o cabelo parte ao meio, como se estivesse cortado com uma tesoura.
73
respiratórios, queimaduras e até o óbito.25 Segundo Sá Dias (2015), mesmo com a proibição
do uso desse agente químico na escova progressiva pela Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (ANVISA), foram criados outros produtos que garantiriam o mesmo efeito, todavia,
o aspecto capilar continuaria o mesmo, ou seja, o cabelo ao passar pelo processo da química e
juntamente ao empregar o calor dos secadores e chapinhas, se tornaria fraco, quebradiços e
opacos e sofrem clareamento (SÁ DIAS, 2015). A questão do alisamento e danos a saúde
aparece no relato a seguir,

Figura 24 - Química x Transição Capilar

FONTE: Facebook/CCSaa

No início a mesma achava bonito e prático, mas com o passar do tempo, houve o corte
químico nos fios do cabelo. Ela não saía de casa, não tirava fotos e após um período de 3
meses, recuperou o cabelo e deu novamente um outro produto químico “menos” doloroso.
Todavia, com o argumento de deixa-los livres, leves soltos, resolveu parar de usar a química.
A entrevistada se diz com saudades de pentear os cabelos todas as noites, provavelmente pela

25
Em 2007 foi noticiado a morte de uma mulher que utilizou a química a base de formol no Estado de Goiana.
In: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u133214.shtml
74
praticidade de manipular o cabelo alisado, mas acaba ressaltando que é um privilégio se
deparar todos os dias com o cabelo natural dela própria. Dessa forma, não atenuando os anos
e mais anos que algumas mulheres foram reféns do padrão do cabelo alisado, a opção de não
dar mais alisantes no cabelo para as interlocutoras, favoreceu a uma aceitação do novo
método para cuidar dos cabelos de maneira natural.
Entretanto, mesmo inicialmente a decisão de participar do processo da TC pelos
grupos virtuais por moda, saúde, algumas as participantes defrontaram-se com questões e
informações para além do aspecto capilar. Consumo, corpo feminino, estética e identidade
negra são constantemente abordadas nesse espaço de discussão.

Aqui em Aracaju eu participo de dois grupos e eu amo. Sempre tem encontros com
as meninas desses grupos. E a gente fala sobre tudo. Eu gosto muito das oficinas,
tem de turbante e de maquiagem. Falamos sobre a estética para nós mulheres negras.
Coisa que eu não fazia noção. Levo a minha filha e ela se identifica também. Faço
turbante nela e saímos iguais. Sabe, o que eu aprendi é que não é só por fazer.
Falamos que colocamos uma coroa. Rola desses aprendizados nesses encontros e
nesses grupos.... Hoje me vejo como negra, não mais como moreninha (Miriam
Félix, entrevista concedida em 14 de novembro de 2017).

Nota-se na fala de Miriam que houve contato sobre questões da negritude. Embora
algumas meninas não tivessem a pretensão de falar sobre questões raciais, a TC teve um papel
importante para ressaltar, construir e afirmar uma identidade, o que caracterizamos como uma
continuidade em relação ao movimento da BP que positivava e celebrava o orgulho negro.
É dessa forma que diversas mulheres que passaram a aderir à TC em vários locais de
Salvador e Aracaju, defrontam-se com a questão: reconhecer-se como negra. Dessa maneira, o
processo da TC, para além da mudança na textura dos fios, também possibilitou um olhar para
outro, e um olhar si. A mudança capilar seria, para um grupo de mulheres no Brasil, um ponto
de partida para rever e/ou modificar interpretações sobre si, o mundo, individual e
coletivamente. Para Cíntia Castro, a TC foi uma ferramenta que modificou a sua autoestima
que a fez enxergar a si e ao outro,
A partir da transição, a minha autoestima mudou completamente, passei a me
enxergar muito mais bonita do que antes. Para além da minha idade, e do
conhecimento que estava adquirindo dentro da Universidade, a transição ajudou a
me compreender enquanto mulher negra, a me colocar nos espaços e com mais
segurança né. Não mais negar qualquer traço físico meu. Não mais achar feio ou
achar ruim ser dessa forma. Então minha autoestima foi de um extremo ao outro e de
uma forma muito positiva. Até minha forma de se vestir mudou. As referências que
eu busco nas pessoas que conheço, pela internet, inclusive para mim vestir, para
mim colocar esteticamente, parte também da questão de uma valorização
75
afrocentrada, de uma valorização negra mesmo. Então todo esse arcabouço do que é
ser negro no Brasil, ao observando essas referencias entendi que ser um
afrodescendente é belo e busco para mim como uma referência para me mostrar ao
mundo esteticamente. Isso tudo o que aprendi associo a mim e aos outros.
Compartilho todos esses conhecimentos. Eu aprendi e compartilho. A transição
possibilitou isso em mim. Mudança em todos os aspectos da minha autoestima e de
como enxergo as coisas e as pessoas ao meu redor (Cíntia Castro, entrevista
concedida em 03/03/2018).

Ao analisar o relato da entrevistada Cíntia Castro, observamos que a interlocutora


identifica a TC como uma ferramenta para apreender a se valorizar esteticamente. Para além
disso, a TC correspondeu ao momento em que a mesma estava vivendo e fomentou um
emaranhado de conhecimento sobre ser negra, que influenciou-a na forma de se vestir, de
cuidar de si e enxergar o outro. Todo o conhecimento adquirido nesse processo era
compartilhado, segundo Cíntia e um ponto fundamental surgido nesse momento, seria a
mudança da autoestima que se elevou, a fez enxergar a sua identidade e beleza como mulher
negra. E isso foi também possível por causa da busca de referências em relação à negritude.
E de onde vêm esses olhares? Que grupo de mulheres optou por fazer retornar ao
cabelo crespo e se deparou com questões sobre identidade? No próximo tópico
apresentaremos o perfil das mulheres entrevistadas e dos grupos virtuais sobre transição que
dialogamos nessa pesquisa.

3.2.1 Os protagonistas da pesquisa: as mulheres entrevistadas e os grupos virtuais que


abordam a transição capilar.

Inicialmente, a proposta da pesquisa era dialogar com mulheres que residiam na


cidade de Salvador e/ou região metropolitana, em função da mobilidade em realização das
entrevistas. Todavia, com a aproximação com mulheres de Aracaju/SE e São Cristóvão/SE
(grande Aracaju) devido ao desenvolvimento do mestrado presencial na Universidade Federal
de Sergipe, localizada na cidade de São Cristóvão, e principalmente, por perceber um
contingente de mulheres transicionadas e em transição em espaços físicos e virtuais,
percebemos então a relevância de ampliar a análise do estudo com mulheres em solos
sergipanos.
Desta forma, foram realizadas 14 entrevistas por meio de um questionário
semiestruturado e centrado no problema para que pudesse obter relatos que evidenciavam a
relação das interlocutoras com a Transição Capilar. Segundo Arnoldi e Rosa (2008), a

76
entrevista é uma das técnicas que é considerada uma forma racional de conduta do pesquisar,
que por meio do questionário, previamente estabelecido, dirige com eficácia um conteúdo
sistemático de conhecimentos, resultando não apenas em dados, mas em uma gama de
resultados que darão suporte a análises epistemológicas na pesquisa (ARNOLDI; ROSA,
2008).
O procedimento metodológico que utilizei para análises das entrevistas sobre a TC foi
a Fenomenologia que possibilitou uma investigação intrínseca dos fenômenos sociais. De
acordo com Bicudo, utiliza-se a fenomenologia para pensar a realidade de um modo rigoroso
que interroga relações sociais para além da aparência e investiga algo que seja característico,
básico e essencial (BICUDO, 1994). Dessa maneira, o aporte da Fenomenologia irá permitir
obter resultados significantes das experiências das mulheres entrevistadas sobre como
experienciam o retorno capilar crespo por meio da TC.
Ao considerar com ponto de partida que a mulher tem uma relação subjetiva com o
cabelo que poder levar a diversas possibilidades de análises, é necessário então situar o
fenômeno para não deixa-lo solto, ou seja, investigar direcionado sobre o que levou as
mulheres a optar pela TC e experiência das mesmas a partir dessa opção. Com o fenômeno
situado, é necessário interrogar e isso é possível, de acordo com Martins et al. (1990), uma
descrição da experiência dos sujeitos da pesquisa, como a descrição de um relato de alguém
que vivencia para o outro que não participa. Nas palavras dos autores,

Porque o pesquisador não sabe o que se passa com o sujeito é preciso que este
sujeito descreva o que se passa com ele. A descrição se dá, então, na experiência do
sujeito que está experenciando aquela situação. É desta maneira que o fenômeno
situado se ilumina e se desvela para o pesquisador. Nem sempre, porém, é possível
obter descrições feitas pelo sujeito a respeito do fenômeno que o pesquisador deseja
estudar; recorre então ele à entrevista, com muito cuidado, para não induzir
respostas (MARTINS et al.; 1990, p. 145)

Dessa maneira a escolha das entrevistadas não se deu de forma aleatória. São mulheres
que fizeram a TC e buscaram a afirmação de uma identidade negra e a partir desse retorno ao
cabelo natural, ressignificaram vários aspectos da sua vida. Das 14 mulheres entrevistadas 26, 7
foram residentes em Salvador/Ba e 7 residentes em Aracaju/Se e em São Cristóvão/Se.
Corroborando com a ideia de Lélia Gonzalez, de que é necessário identificar o negro com

26
A identificação das participantes deu-se pelo consentimento prévio por partes das mesmas e também pela da
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) (ARNOLDI; ROSA, 2008).

77
nome e sobrenome, é relevante apresentar as protagonistas do estudo, pois os depoimentos
que utilizamos para a pesquisa são fundamentais para visibilizar histórias e experiências das
mesmas (BAIRROS, 2017, p. 3). Posto isso, as da Bahia são:

Ana Paula Couto, 36 anos, Administradora, pós-graduação em


andamento.
“No início eu me lembro que senti medo, medo de cortar o cabelo. Por que
cortar o cabelo me lembrava da infância de quando minha madrinha me levou
para cortar o cabelo. Passar pela transição, eu sabia que um dos processos seria
o corte para agilizar a mudança. Hoje percebo o quanto é libertador todo esse
processo”.

Aline Santos da Silva, 28 anos, Superior em curso, maquiadora.

“Quando fiz a transição e comecei a colocar o cabelo para o auto, percebi que
as pessoas me olhavam como se tivessem agredidas. O processo é complexo,
mas não impossível e no final nos aceitamos. O que eu não entendo é a não
aceitação da sociedade. É necessário enfrentamento, e é isso que faço,
converso com as meninas para enfrentar o amanhã”.

Cíntia Castro, 28 anos, Superior completo, Professora.

“O que me levou a fazer a Transição capilar foi a falta de identificação com o


cabelo alisado, ele estava sem forma e não era prático para cuidar pois
demandava de tratamentos químicos e custo financeiro, mensalmente ou
quando a raiz do cabelo crespo apontava. O pior é que eu não lembrava mais
do cabelo. Alinhei então meu pouco tempo e dinheiro, pois estava no final
também da minha graduação e me demandava tempo, com a angustia para
conhecer esse ‘novo’ cabelo” e decidi fazer a Transição capilar”.

78
Dandara Matos , 28 anos, mestra, professora de História.
“A relação com meu cabelo era de guerra. Ao mesmo tempo em que eu me
sentia livre para fazer o que eu quiser com meu cabelo, que era um direito
meu, assim eu acreditava né, de alisa-lo, ao mesmo tempo eu ficava triste
porque meu cabelo era sempre quebradiço, não ficava bonito, a gente
precisava gastar muito para poder manter ele em um determinado padrão, e
isso não me dava felicidade. Eu queria ter um cabelo muito grande, e certo
dia quando eu consegui mantê-lo abaixo do ombro, a química destruiu em 3
meses e me deixou muito frustrada. Hoje digo para você que meu cabelo
além de me dar alegria, me dar liberdade”.

Juliana Lobo, 24 anos, superior em curso, recepcionista.

“Eu comecei aos poucos. Fui dando permanentes e usei bastantes apliques e
tranças. Depois decidi de vez passar pela Transição. Cortei e não me
identifiquei no início. Minha aceitação foi gradual. Incentivei várias amigas
e isso para mim é especial. Poder falar sobre esse processo e incentivar
outras meninas é dizer: você consegue!” Antes eu era bonita, mas hoje sou
rainha”.

Hilmara Bittencourt da Silva Borges, 25 anos, graduanda em


Letras, estudante/educadora.

“Minha Transição capilar começou devido a um ponto crucial. Há uns


três anos eu comecei a fazer um cursinho pré-vestibular. Tinha mais de
300 pessoas e muitas delas queriam fazer medicina e teve um menino,
negro e que usava dreds disse também que queria cursar. A postura dele
e a presença dele me inquietou para que eu me percebesse enquanto
negra. Nesse processo, a estética foi a primeira coisa que gritou. O cabelo
devido a negação desde criança, foi a primeira coisa que me inquietou.
Comecei a fazer coquinhos no cabelo, usar trançar e megahair. A partir desse
momento que eu entendo que começou a minha transição, de cabelo e
sobretudo, de me enxergar como negra. Foi uma transição interna,
primeiramente de busca, conhecimento e depois a transição capilar de fato”.

79
Samara Azevedo, 37 anos, pós-graduada, professora.
“Desde criança minha mãe alisava meu cabelo e tinha aquela coisa que meu
cabelo não era bom, rebelde e terrível. Quando me entendi por gente, eu
fiquei anos da minha vida dando Guanidina, imagina você... anos. Eu queria
ter os cachos da atriz Ana Paula Arósio. E aí eu fiquei grávida e não pude
mais colocar química. Então comecei a passar pela Transição. Detalhe, eu fiz
a Transição sem saber desse movimento todo. O que acontece é que fiz um
Transição de alma. Minha vida mudou, minha auto-estima apareceu, meu
amor próprio colou em mim. Esse é o nome certo: Transição de alma”.

As de Sergipe são:

Angélica Oliveira Nascimento, 31 anos, superior completo,


psicóloga.
“O que me levou a fazer a Transição Capilar foi justamente o desejo de me
assumir. De assumir meu cabelo como parte de mim né, de minha raça das
minhas origens. Foram 13 anos alisando e quando decidi as primeiras que
falaram que meu cabelo jamais voltaria a ser natural foram as cabeleireiras.
Isso me deixou insegura. Mas continuei. Quando vim estudar na
Universidade, me deparei com outras meninas e comigo mesma enquanto
negra. Decide depois de uma tentativa frustrada, novamente passar pela
Transição. E foi a melhor coisa que decidi”.

Debora Leite, 30 anos, superior incompleto, estudante.

“Bem... a maioria da minha família tem cabelo liso e desde pequena tentei
me adequar àquilo que minha família era. Me sentia um peixe fora d’água. E
quando decidi, tentei lembrar de como era meu cabelo e não conseguia. Foi
bem difícil a Transição , porque eu achava meu cabelo feio e não iria me
adaptar, mas fui resiliente e consegui. Conheci algumas meninas aqui em
Sergipe e foi importante todo o contato com as meninas desse movimento”

80
Karoline Silva Gois, 21 anos, ensino médio, auxiliar
administrativo.

“Iniciei porque fiquei inspirada no cabelo de uma amiga. Além disso, já


estava cansada de dar químicas em meu cabelo. Depois fui também
inspiração, pois inspirei minha irmã. Ajudei ela na Transição e estamos juntas
amando e aprendendo sobre o nosso cabelo”.

Leiliane dos Santos, 28 anos, superior em curso, desempregada.

“Quando eu era pequena eu tinha vergonha do meu cabelo. Eu falava para


minha mãe que era uma mata. Comecei a dar química, e quebrou todo.
Quando vi estava quase careca. Mesmo assim continuei. Anos depois, cansei
de dar química, não aguentava mais aquilo. Me deparei com um grupo de
meninas no WhattsApp e elas falavam do desejo de retornar ao cabelo
cacheado e com elas, me joguei. Hoje assumo meu cabelo crespo. É lindo né?
”.

Michele Santos Souza, 34 anos, pós-graduada, psicólogo e


consultora ambiental.
“No começo dos anos 2000, eu comecei a deixar de usar alisamento, e passei
a usar relaxamento no cabelo, depois para a Guanidina, depois para o
permanente afro e depois para o cabelo natural. Foi um processo fluido e não
sei bem quando comecei ou se isso já era uma Transição. Mas teve um
momento que decidi não dar mais permanente e fiquei natural durante muito
tempo. Só que aí, dei mais uma vez permanente, foi horrível e nunca mais.
Essa construção do meu cabelo natural foi interna e externa. Entre idas e
vindas. Hoje, participo e promovo várias discussões, encontros virtuais e
presenciais sobre cabelo crespo e cacheado”.

81
Miriam Félix, 33 anos, Ensino Médio, Auxiliar
Administrativa.

“Eu vi muitas meninas com o cabelo cacheado e isso me encorajou.


Cortei e fui ao Beleza Natural em Salvador. Esse início foi importante,
mesmo sabendo que teria química para enrolar, pois para mim não tem
problema. O que foi importante foi me libertar do alisamento, de me
sentir feia, de me sentir submissa ao padrão do cabelo liso. Estou bem
comigo mesma. Ao contrário de mim, minha filha nem cogita usar ou
ficar com vergonha do cabelo natural dela”.

Thatiana Santos Menezes, 38 anos, pós-graduada, Educadora


Social.

“Quando eu comecei a fazer Transição eu não tinha a mínima ideia do que


iria mudar de dentro para fora. Do que eu iria passar, dos meus
pensamentos. Foi o momento que meu cabelo pedia para que eu parasse de
colocar droga nele para ele respirar. Só que eu no primeiro momento não
consegui porque meus impulsos foram de fora para dentro, queria ver ele
de uma forma e não conseguia ver a raiz inchada. Aí depois, tive um
encontro com o movimento negro e vi uma fala de uma mulher e ela tocou
sobre o cabelo. A fala dela me inquietou e plantou a semente em meu coração
e a partir daquele momento comecei minha trajetória de voltar ao cabelo
natural que eu nem lembrava de como era. Resgatei a afetividade negada
com o meu cabelo”.

A escolha por mulheres negras para a pesquisa nessas regiões se deu por possuírem
grande contingente de mulheres negras autodeclaradas, segundo o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), do ano de 210, pela Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios, como podemos ver a seguir.

82
Tabela: Mulheres negras nas cidades de Salvador e Aracaju

FONTE: IBGE- Censo Demográfico 2010

Em Sergipe e Bahia a quantidade de mulheres negras é quase a metade em relação ao


total de pessoas autodeclaradas nesses Estados. Em relação às respectivas capitais, Aracaju
segue na mesma proporção das capitais, e Salvador ultrapassa a metade de mulheres negras
em relação aos homens. Esse dados só vem a ratificar outro dado em relação a mulheres e o
contato com a TC nessas duas regiões, a grande quantidade de mulheres que buscaram
referências sobre o processo de transição pela internet.
As entrevistadas, por exemplo, começaram a passar pelo processo a partir do ano de
2009. Algumas mulheres iniciaram a transição sem mesmo conhecer o termo TC, mas por
causa das redes sociais, com trocas de informações capilares, depararam-se com processo da
TC na qual estavam inseridas compartilhando particularidades sobre a TC e as relações com
os cabelos. Na Figura 25, destaca-se a pesquisa obtida pelo Google Trends, que é uma
ferramenta do Google que informa os termos mais buscados no site em um determinado
período de tempo e só ratifica a relevância de trocas de informações na internet entre as
mulheres entrevistadas.
83
Figura 25- Busca pelo termo Transição Capilar

Fonte: Google Trends

Na imagem podemos observar três pontos: o 1) em todas as regiões do Brasil houve


uma busca na internet pelo terno TC; 2) Na Bahia, há 100% de busca em relação aos outros
estados do Nordeste; e 3) Sergipe está entre os cinco Estados do Nordeste brasileiro em que
os sujeitos mais buscam na internet sobre o termo. Por meio desses dados, podemos obter tais
análises: a TC é um termo de interesse buscado na internet desde 2009, possibilitando um
contato prévio entre os sujeitos para com o tema. A Bahia, por ser um dos primeiros Estados a
organizar debates e Marchas sobre o poder do cabelo crespo, além de possuir grande
quantidade de membros em grupos virtuais em redes sociais, aparece em primeiro lugar. E
Sergipe, apesar de está em quarto lugar, mostra que o termo TC é bastante pesquisado nessa
região.
As redes sociais toraram-se um meio essencial para trocar informações sobre a
transição e obter um conhecimento sobre a TC. Sabe-se da importância desses espaços que
corroboram na construção do cabelo como símbolo identitário, dessa forma utilizaremos os
relatos de interlocutoras que dialogarão com os depoimentos das entrevistadas da pesquisa, a
saber: grupo Cacheadas e Crespas de Salvador (CCSaa), fundado em 2014 e Cabelos Crespos
e cacheados de Sergipe (CCSe), criado em 2015. Os grupos, CCSaa que reúne mais de 100
mil e o CCSe, com quase 10 mil, têm o intuito de informar e ser pontos de apoios para
mulheres que decidiram passar pela TC.

84
3.3 E porque sós as mulheres? A questão capilar e o corpo negro feminino vivido

O corpo da mulher negra, historicamente vem sendo coisificado e colocado como o


diferente, o exótico. Corroborando com essa linha de discursão, Braga (2015) traz o exemplo
da Vênus hotentote, conhecida também como Saartjie Baartan, é apresentada como exótica,
nem feia, nem bonita. Contudo, o corpo negro da Vênus negra foi constantemente associado
como anormal devido às formas físicas desproporcionais, como observamos na figura:

Figura 26 - Vênus hotentote: Saartjie Baartan

Fonte: www.historiablog.org

Baartan tornou-se animalizada em circos e em exposições exóticas em Londres.


Segundo a autora, enquanto brancos eram colocados como civilizados, normais, inteligentes e
comedidos, a mulher negra e africana, era construída como hipersexualizada cujo apetite
sexual e incontrolado era evidenciado no corpo (Braga, 2015). O discurso que legitimava
como animalesca as características de Baartan era biológico que imperava na época,
perpetuou e corpo da mulher negra, após anos, ainda continua sendo coisificado27, e manteve
o traço de selvageria, colocado em detrimento ao corpo branco em relação aos traços de
beleza, engenhosidade e progresso. Isso é evidenciado quando Bispo cita Frennete que coloca

27
Segundo Damasceno, depois de ser exposição em vida, o corpo de Saartjiet Baartman foi dissecado e sua
genitália, seu esqueleto e o molde de seu corpo passaram a ser expostos publicamente no Museu do Homem de
Paris até 1985. E quando não serviu mais à ciência, o corpo foi devolvido a sua terra natal. “A noção de utilidade
com que normalmente se tratam objetos e não pessoas ou sujeitos são usada aqui com naturalidade, como
sintoma da objetificação cristalizada do corpo feminino negro na ciência” (DAMASCENO, 2008, p. 4-5).
85
o corpo negro na perspectiva colonizada no viés do sexismo relacionando-o a diversas fantasias
eróticas e sob a lógica da dominação.

Esse primeiro toque vem acompanhado de um gemido ancestral que não


tem a ver apenas com o desejo. O gemido que se houve vem mais do inconfessável
prazer de constatar que está prestes a provar de um fruto exótico e proibido. É um
gemido que o gemedor não imaginava que fosse capaz de dar; e mais de um branco
não-racista já se envergonhou desse som gutural e semiprimal, para imediatamente
tomar consciência de que não é tão inocente quanto pensava dentro de um processo
coletivo de discriminação racial. Mas daí o sexo começa a acontecer e, pela primeira
vez, sua excitação tem a ver com raça; (...) sente o cheiro diferente exalado pela pele
escura, e, pela primeira vez tenta passear sua mão pelos cabelos da parceira, e sente
que há ali um impedimento que exige mãos ágeis e delicadas ao mesmo tempo: é a
dureza de um cabelo que não serve para anuncio de xampu, e que exige carinhos
especiais. A partir daí não tem mais o gemido inicial. O que fica apenas é a sensação
desagradável de não saber lidar com uma selva de cabelos (BISPO apud.
FRENETTE, 2000, p. 38).

Frennete trata o corpo da mulher negra meramente como um local de saciar desejos
exóticos e “proibido”, e por fim, descreve o cabelo feminino como uma selva, já que não
conseguia passar os dedos entre os fios. Retomamos a um ponto principal: o cabelo torna-se
transgressão por não seguir ao padrão de beleza e ao consumo, não servindo nem para um
anúncio de xampu. Dessa maneira, quando o corpo feminino negro é não é invisibilizado, é
reconhecido pelas “diferenças”. Mattos (2007) afirma que devido a essas diferenças, o corpo
negro é inferiorizado e recebe estereótipos que exercem o poder de anular, ocultar a sua
cultura, por exemplo, na

[...] escolha das rainhas e princesas nas escolas, em épocas de festas juninas.
Normalmente, essas escolhas recaem no estereótipo, excluindo as meninas de pele
mais escura, cabelos crespos e nariz achatado. Quantas destas meninas já não
sonharam em ser as escolhidas e, por outro lado, quanto complexo de inferioridade
não foi introjetado a partir da discriminação de um perfil de beleza que não é
considerado ideal para rainhas e princesas? (MATTOS, 2007, p. 55).

Para Hall (1997), os estereótipos são os exemplos mais rígidos da sociedade, que
tornar-se mecanismos que são capazes de dar limites e excluir o outro, ou seja, para o autor,
os estereótipos fazem parte da manutenção da ordem social e simbólica, e estabelece “... uma
fronteira simbólica entre o 'normal' e 'desviantes', o 'normal' e 'patológico', o 'aceitável' e
'inaceitável', o que 'pertence' e o que não ou é 'Outro', entre 'insiders' e 'outsiders', nós e eles”
(HALL, 1997, p. 258). O corpo da mulher negra é apontado como o diferente e excluído, que
causa uma violência simbólica (HALL, 1997, p. 259). Portanto, como aponta Damasceno,
estereótipo, bem como o fetichismo marcam o modo como foi racionalizada a existência e o

86
corpo da mulher negra, consequentemente, foi legitimada sua presença nas hierarquias mais
baixas de ser humano (DAMASCENO, 2008, p. 4).
No Brasil, no pós-abolição, o corpo feminino negro continua a ser inferiorizado por
toda a sociedade. Segundo Silva (2015), o corpo feminino por si só já era atribuído à
ideologia machista ao relacionar a mulher à beleza com os trabalhos domésticos. A mulher só
seria bela caso cuidasse do marido, da casa e da prole. Já a mulher negra era associada à
fealdade tanto pela cor quanto aos aspectos corpóreas. O discurso que vigorava no pós-
abolição era o da boa aparência e seria um ponto chave para as brasileiras negras, “o ponto em
que essas mulheres precisariam lidar com a interpretação da 'boa aparência' seria aquele para
o qual se direcionaria a modificação da sua estética e de sua cultura adequados e ao perfil
hegemônico. (SILVA, 2015, p. 109)
Dessa forma, a banalização do corpo da mulher negra, enquanto exótico e do seu
cabelo como “feio e ruim”, construída ao longo dos anos faz com que muitas pessoas sintam-
se no direito de tocá-los. Sobre o cabelo, há relatos de mulheres que passaram pela transição
capilar e assumiram seus cabelos naturais e logo após esse procedimento encontraram pessoas
vieram tocar em seus cabelos por achar exóticos e fazem perguntas taxativas como: Ter um
cabelo assim não incomoda? É cheiroso? A água penetra seu cabelo? Essas perguntas
impregnadas de preconceito e racismo também fazem parte da vida das mulheres que
passaram pela transição e as mesmas acompanham as mulheres negras há séculos. Na música
Veja os cabelos dela, lançado no ano de 1996, podemos perceber o quanto o cabelo é
estigmatizado na letra da música Veja os cabelos de dela, interpretado pelo cantor Tiririca,

Veja os cabelos dela

Veja veja veja veja veja os cabelos dela


Parece bom-bril, de ariá panela
Parece bom-bril, de ariá panela
Quando ela passa, me chama atenção
Mas os seus cabelos, não tem jeito não
A sua caatinga quase me desmaiou
Olha eu não aguento, é grande o seu fedor
Veja veja veja veja veja os cabelos dela
Veja veja veja veja veja os cabelos dela
Veja veja veja veja veja os cabelos dela
Veja veja veja veja veja os cabelos dela
Parece bom-bril, de ariá panela
Parece bom-bril, de ariá panela
Eu já mandei, ela se lavar
Mas ela teimo, e não quis me escutar
Essa nega fede, fede de lascar
Bicha fedorenta, fede mais que gambá

87
Tiririca. Gravada em 1996. 03:26 min

Na letra, o cabelo crespo é associado à lã de aço utilizado para lavar louças e


coisificado em algo que fede. Quando o autor fala “essa nega” percebe-se que se fala de uma
mulher negra. A mulher é hipersexulizada, pois chama a atenção por onde passa e relacionada
a um animal que exale odor. Contudo, diante desses episódios, o anseio das interlocutoras de
construir uma imagem do corpo negro ganham contornos relevantes, por meio de um
movimento de aceitação do cabelo e do corpo. Dessa forma, pontuamos a especificidade
essencial para entendermos a ruptura em relação ao gênero com o movimento do Black
Power. Enquanto este era protagonizado por homens na música, entrevistas, mercado de
trabalho como em salões e até mesmo na mídia, o recente movimento foi regido por mulheres
negras que colocaram como pauta além da textura capilar, o corpo e identidade negra.
Há de se pontuar a relação do corpo feminino negro com a organização das mulheres
negras brasileiras. Segundo Santos (2016), o racismo epistêmico foi o motor que
historicamente exterminou material e simbolicamente a trajetória de vida das mulheres negras
do Brasil. Tal racismo se manifesta de forma velada que desencadeia propositalmente um
“processo de subjugação, silenciamento e extermínio dos saberes e tradições dos não
europeus” (Santos, 2016, p. 11). Para a autora, por mais que o racismo tente afastar às
mulheres negras dos recursos econômicos e políticos, elas resistem e enfrentam a exploração
estrutural da sociedade.
E uma das resistências é por meio do novo olhar do feminismo negro, que de acordo
com Carneiro (2003) veio para afirmar uma identidade política em relação ao que é ser negra.
Dessa maneira, a pesquisadora ressalta que o movimento político trás variáveis de raça,
classe, gênero e interseccionalidade que são conceitos indispensáveis para repensar a luta das
mulheres negras no país. Em relação ao conjunto de mulheres negras, ela afirma que,

Enegrecer o movimento feminista brasileiro tem significado, concretamente,


demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a questão
racial tem na configuração, por exemplo, das políticas demográficas, na
caracterização da questão da violência contra a mulher pela introdução do conceito
de violência racial como aspecto determinante das formas de violência sofridas por
metade da população feminina do país que não é branca; introduzir a discussão
sobre as doenças étnicas/raciais ou as doenças com maior incidência sobre a
população negra como questões fundamentais na formulação de políticas públicas na
área de saúde; instituir a crítica aos mecanismos de seleção no mercado de
trabalho como a “boa aparência”, que mantém as desigualdades e os privilégios
entre as mulheres brancas e negras (Grifo meu) (CARNEIRO, 2003, p.4).

88
Diante da historicidade do corpo feminino negro e as resistências por mulheres negras,
percebemos a trajetória de se pautar a afirmação positiva do corpo negro, e o cabelo sendo um
dos atributos físicos mais relevantes para que possa ser ressignificado que é ampliado para
compreender do que é ser mulher negra e percebido, principalmente como libertador, como
podemos observar na figura seguinte,

Figura 27 - O corpo da mulher negra livre de padrões

Fonte: Facebook/CCSaa

Nota-se que algumas mulheres que passam pelo processo da TC, dão “adeus” aos
padrões impostos, a negação por causa dos estereótipos, seja nas medidas corporais e /ou nos
fenotípicos e começam a aceitar o próprio corpo. A entrevistada Sâmara Azevedo revela sobre
a aceitação do seu corpo por meio da aceitação do cabelo natural.

Antes de eu ficar grávida eu era magra, mas eu não era magra meu biótipo, eu era
magra porque eu me autoflagelava. De todas as maneiras que você puder imaginar
de uma pessoa forçar a barra para ser magra, eu fazia. De vômito, de ficar 24 horas
por dia bebendo só água, de passar 24 horas por dia dormindo à base de remédio e
de comer e botar para fora, o remédio que tivesse para inibir o apetite eu tomava.
Tudo o que você puder imaginar eu fiz para me manter magra. Aí eu comecei a fazer
balé e não aceitava que eu tivesse sobrepeso e nem um quilo a mais e daí meu

89
distúrbio ficou pior. Dai eu engravidei em 2008 e parei de tomar remédios para
emagrecer. Depois que tive meu filho não senti vontade de voltar. Mas fiquei
desleixada. Sem vaidade nenhuma. Sendo que esse parar foi tudo em função do meu
filho, não na questão de eu me aceitar. Não era porque eu me amava. Eu fiquei em
um estado deplorável e quando eu olho, eu digo ‘não é possível que eu tenha
chegado a esse ponto’. Não passava batom, não usava argola, nada! Hoje eu tenho
orgulho da minha boca, do meu cabelo, da minha bunda, do meu corpo. Eu mulher,
tenho orgulho da minha negritude e de todo o meu corpo. Sabe, eu costumo dizer
que eu passei por uma transição de alma. O cabelo me tirou de uma redoma. O
processo do cabelo em 2014, eu descobri a mim mesma. Eu passei a me gostar, por
isso que eu digo que a transição foi na alma. Foi muito automático eu olhar para
mim, olhar no espelho e dizer ‘que mulher é essa!’ Teve um momento X, que foi
quando eu fui no salão para cuidar do meu cabelo, aproveitei e fiz outros
procedimentos estéticos, unha, sobrancelha e nesse dia fui encontrar com meu
esposo no shopping. Quando eu cheguei e ele me viu, eu estava de cabelo solto, toda
bonita... depois de ter sido aquela mulher largada, eu estava uma outra mulher. Meu
marido perguntou a onde eu estava [risos]. Aquela outra mulher foi, agora já sou
uma nova. E aí foi amor próprio até o talo. De uma maneira que eu digo a todo
mundo ‘eu gosto dessa dobrinha que está aqui, eu amo, eu amo esse peito, essa coxa,
eu amo tudo’. Eu posso dizer que o cabelo foi o pontapé inicial para a aceitação de
todo o meu corpo” (Sâmara Azevedo, entrevista concedida em 15 de maio de 2018).

No primeiro momento o que chama atenção no relato de Samara é a punição física por
achar que não se encaixa em um padrão. Segundo Del Priori (2000), com vontade de se
parecer com barbies ou modelos, muitas mulheres ficam doentes ao associar a magreza com
remédios, cirurgias plásticas e condiciona a identidade corporal feminina com mecanismos de
ajustes obrigatórios com beleza-juventude-saúde (DEL PRIORI, 2000). Entretanto, com
rumos diferentes destisnados ao corpo em virtude da gravidez, Sâmara ao se deparar com a
TC na gestação, caracteriza esse processo como “transição da alma”, pois para além de
mudança capilar, produz uma visão de liberdade do próprio corpo. Essa visão de liberdade ao
corpo ocorre com outras interlocutoras, como podemos perceber no relato e na imagem a
seguir.

O cabelo hoje representa liberdade e que me sinto livre tanto quanto pessoa, livre em
termos de padrões estéticos. Eu sou o que sou e ponto, sabe. Não preciso seguir
nenhuma regra e nenhuma forma para eu me encaixar em algum lugar. Eu me sinto
completamente tranquila. Livre para cuidar dele do jeito que ele é, livre para fazer
com ele o que eu bem entender. O meu cabelo é lindo do jeito que é. Por isso esse
processo e meu cabelo significam liberdade (Dandara Matos, entrevista concedida
em 9 de março de 2018).

Dandara percebeu que poderia ser livre ao deixar de seguir o padrão estético. Nota-se
que repetidamente as entrevistadas associam o cabelo natural à liberdade. Livre para assumir
o aspecto capilar e vai além, associam a liberdade capilar para além dos fios. É o que
novamente presenciamos na Figura 28. Ao assumir o uso do cabelo crespo, a interlocutora
traz também a reflexão sobre a autonomia do corpo como livre de padrões.
90
Figura 28 - Autonomia do corpo feminino negro

Fonte: Facebook/CCSaa

O que ao longo dos anos para a mulher negra foi obrigação esconder ou camuflar
características do próprio corpo que foi recorrente estereotipado, atualmente, para as mulheres
que resolveram optar pela TC, o retorno ao cabelo natural tornou-se mais uma ferramenta para
mulheres negras aceitarem e respeitar o corpo. O corpo deixa de ser “feio”, para ser livre. No
caso de Juliana, a TC foi um caminho para enxerga-se como negra.
Até 2014 eu usava mega hair. Sendo que eu nesse período estava sentindo
necessidade de mudança. Eu comecei a participar de alguns grupos e neles eu li
sobre mulheres negras e suas lutas cotidianas. Um depoimento que me chamou
atenção foi da aceitação dela com o cabelo e também com o corpo. Fui pesquisar
mais sobre essas mulheres negras e aos poucos decidi também mudar. Assim como
elas, comecei pelo cabelo e fui mudando a forma de me enxergar. Hoje, tenho esse
cabelo lindo e me amo mais. É só olhar minha rede social, mudança até nas fotos
[RISOS]. Antes eu não me aceitava, achava feio meu corpo, hoje eu aceito todo o
meu corpo, minha negritude e meu cabelo. (Juliana Lobo, entrevista concedida em
11 de dezembro de 2017)

Alguns relatos, como o de Juliana, nos leva a perceber que cabelo e corpo são
colocados por vezes como partes distintas, mas que ao mesmo tempo se complementam. Ao
passo que Juliana desvendou a beleza do cabelo e que provavelmente, elevou a sua autoestima

91
e redescobriu o amor e respeito ao próprio corpo. Corpo esse que foi negado por ela e pela
sociedade.
A investigação da TC e a relação com mulheres negras, nos leva a questionar: qual a
conjuntura se encontrava o Brasil quando chegou a TC? O contexto influenciou ou favoreceu
a disseminação das informações sobre a TC? A seguir, algumas reflexões sobre essa
indagação.

3.4 Breve reflexão sobre o contexto histórico

Era início do ano 2000. Para a população negra, o início do século XXI foi marcado
por implementações das Políticas de Ações Afirmativas no Brasil. As Ações visavam oferecer
igualdades para os grupos que eram excluídos e em processo de discriminação na educação,
no sistema de saúde e no mercado de trabalho. As ações afirmativas constituíram como uma
das estratégias para combater a desigualdade racial e visava ser uma ponte para inserção de
determinadas populações em setores da vida social, igualdades de direitos e oportunidades
(DOMINGUES, 1998).
Para a população negra do Brasil, foram projetadas medidas de curto, médio e longo
prazo, por exemplo, na educação como as Cotas na Universidade, emprego na quantidade de
contratação nas empresas, entre outras. Mesmo com o auge no início no século XXI, as ações
afirmativas tem um extenso histórico de reivindicações pelos movimentos sociais. Segundo
Medeiros, na década de 40, por exemplo, por meio da Convenção Nacional do Negro Brasileiro,
Abdias Nascimento reivindicava no Manifesto à Nação Brasileira,

Enquanto não for tornado gratuito o ensino em todos os graus, sejam admitidos
brasileiros negros, como pensionistas do Estado, em todos os estabelecimentos
particulares e oficiais de ensino secundário e superior do país, inclusive nos
estabelecimentos militares (MEDEIROS, 2005, p. 125)

Nos anos 80, Abdias Nascimento na Câmara Legislativa propôs um Projeto de Lei no
1.332, que dispunha de uma ação compensatória na qual visava implementar o princípio da
isonomia social do negro. De acordo com Medeiros, o projeto não chegou a ser aprovado, mas
as medidas direcionadas para os negros no emprego público e privado e para a educação
foram contempladas e criadas no Governo Fernando Henrique, e posteriormente também
instituídas pelo Governo Lula (MEDEIROS, 2005, p. 127).

92
A pesquisadora Ribeiro (2013) ressalta que na conjuntura das aplicações das políticas
publicas vieram para contestar todo o abandono e violência em relação a história dos negros
desde a escravidão brasileira, sobretudo com a e coisificação e invisibilização das histórias e
heranças africanas. Ribeiro (2013) ainda afirma que o Movimento Negro e a organização de
mulheres negras lutaram para colocar a questão racial na esfera pública para colocar a história
dos negros como cidadãos em um sentido diversificado no conjunto amplo da sociedade. Para
a autora,
[...] não restam dúvidas de que nessas três décadas houve um processo de
institucionalização das políticas de igualdade racial no Brasil, análises críticas são
feitas em relação ao alcance e à consolidação das mesmas. Mas, o Movimento Negro
e a organização de mulheres negras, a partir de suas formulações e proposições para
o desenvolvimento das políticas de promoção da igualdade racial, ao defender os
direitos e uma efetiva democracia racial, aproximam-se das formulações de Nancy
Fraser, ao considerar o reconhecimento e a redistribuição como estratégias para
conquista de democracia e justiça social e racial (RIBEIRO, 2013, p. 238).

Nessa perspectiva, Ribeiro (2013) destaca a importância sobre a trajetória da


Organização das mulheres negras brasileiras desde os anos 1980 nas articulações autônomas,
governamentais e multilaterais que traçou um conjunto de propostas e formulações que
visavam instituir políticas, programas e ações de enfrentamento do racismo e sexismo que
incorporavam a perspectiva de raça de políticas públicas direcionadas às mulheres. E essa luta
influenciou, segundo Ribeiro (2013), os jovens negros na atualidade que reagiram a
invisibilidade e afirmaram-se racialmente como protagonismo social, cultural e político na
sociedade.
Portanto, é no cenário das Ações afirmativas, em especial por meio das Cotas que
muitos sujeitos negros enxergaram a si e aos outros, com características positivas. Ou seja, de
acordo com Braga (2008), as ações afirmativas assumiriam um papel importante no Brasil que
para identidades que ratificava positivamente as diferenças e combateu o racismo por meio de
um discurso de orgulho negro (BRAGA, 2008). É o que presenciamos por meio da narrativa
de Angélica,
Eu lembro também que quando eu cheguei na Universidade, a da Sergipe, foi pela
cota. Eu lembro que foi pela cota de estudantes oriundos de escolas públicas e
tinham que ser “não-brancos”(risos). Ou seja, tinha que ser negros. Eu marquei essa
opção. Ao entrar por essa opção, e tomar conhecimento do contexto social do negro
e desse negro dentro na Universidade, muita coisa mudou em mim. Além disso,
nessa época eu não tinha feito a transição. Ao entrar na Universidade, eu comecei a
perceber pessoas querendo a se assumir. Eram poucas pessoas, mas tinham. Isso foi
em 2010 né. De 2010 até 2012 ocorreram várias inquietações em mim. Eu comecei a
entender o que seria ser negra e a me enxergar como negra, tanto mim, quanto em
outras pessoas. Optar pelas cotas, entender nosso contexto e me enxergar como tal,
foi um passo importante. Só que teria que ir além. Estava faltando algo, ou melhor,
faltava em mim algo para me enxergar como negra. E a primeira coisa a me
93
incomodar, foi o cabelo. Em 2012, além de estar cansada de usar química no meu
cabelo, decidi começar a minha transição. 6 meses antes eu já havia feito uma
tentativa e não consegui né, porque o processo da transição é muito doloroso . Por
você se sente feia, fica com duas texturas de cabelo. Eu só estava acostumada com
uma. Fica insegura. 6 meses depois eu estava passando pela transição, isso em
setembro de 2012. [...] Aqui na Universidade foi um ambiente em que não me senti
estranha. Foi um ambiente em que me senti a vontade para poder assumir meu
cabelo. Na Universidade existia uma diversidade de pessoas. A Universidade foi um
ambiente propicio e não lembro de ter me sentido mal, ou de ter sofrido racismo por
causa do cabelo e se aconteceu, foi algo bem velado. Por isso eu digo, que a opção
das cotas me fez inquietar e voltar ao cabelo natural me deixou mais eu mesma
(Angélica O. Nascimento, entrevista concedida em 16/11/2017).
.

O primeiro ponto que observamos no relato de Angélica a opção pelas cotas foi
relevante para começar a pensar em sua negritude, e esse primeiro passo deu-se a partir da
mudança capilar. Olhar-se enquanto negra era ter seu cabelo natural. A entrevistada reconhece
que entrar na Universidade e optar pelo sistema de cotas foi o primeiro passo a sua
autoafirmação. O cabelo, portanto, foi colocado com símbolo de reconhecimento da
negritude, surgido por meio das cotas.
Esse fator foi recorrente nas análises abordadas por Santos (2005). Ao analisar o
projeto chamado Passagem do Meio, ação afirmativa desenvolvida na Universidade Federal
de Goiás que visava estimular a permanência e incentivo aos estudantes de graduação,
percebeu as discussões sobre as relações raciais e desigualdades, proporcionaram mudanças
profundas na vida acadêmica e pessoal dos alunos. Antes de ingressarem apenas três alunos se
autodeclararam negros, isso devido à militância no movimento negro antes da Universidade.
Contudo, na metade do curso, o projeto já havia proporcionado aos estudantes uma mudança
radical na percepção histórica social e racial, e afirmavam-se como negros e enxergando seus
traços fenótipos. Percebe-se então que o reconhecimento oriundo das ações afirmativas
perpassam sempre pelas a apreensão dos traços físicos, cor da pele, nariz, cabelo (SANTOS,
2005).

94
Figura 29 - Mulher negra e as cotas

FONTE: Facebook/CCSaa

Dois pontos chamam atenção no relato da integrante do grupo CCSaa, na figura 29, o
primeiro é sobre a necessidade de mulheres negras adentrar a Universidade. A mesma afirma
que apesar de ter dificuldade da ocupação desse espaço, oriundo do racismo, é necessário
ocupar a Academia e um dos caminhos seria cotas raciais. O segundo é que ao começar sua
mensagem “ser negra, crespa e mulher”, a interlocutora faz uma espécie de “convocação” no
grupo ao associar que além de ser mulher, negra, ter a característica do cabelo crespo seria
relevante para se pensar as mulheres negras na Universidade.
Para Bernandinho (2000), falar das ações afirmativas é abranger para uma constituição
de identidade negra no Brasil. Para o autor, essa constituição se dá para além do perceber os
referenciais positivos, a construção da identidade negra se faz necessário quando o outro-
diferente não a reconheça de forma negativa e não isoladamente. Dessa forma, as ações
afirmativas permitiram, sobretudo por meio das Cotas na Universidade, redefinir a imagem do
95
grupo em questão. Nesse sentido, o cabelo torna-se, nesse processo de efetivação das ações
afirmativas no Brasil, um ponto significativo na construção positiva enquanto reconhecimento
da negritude.

96
4 O CABELO CRESPO É IDENTIDADE, É RESISTÊNCIA!

Símbolo de resistência

Preta desde que nasci,


Mas só descobri o valor da minha pele quando cresci

Me negaram o direito de ser quem eu sou


Me ensinaram que meu cabelo é ruim
Até me faziam achar que era um castigo ser assim

O tempo passou e informação virou arma contra toda opressão


E hoje minha palavra reflete minha cor, vivência, minhas dores,
minha essência

E me irritam quando dizem que meu cabelo é moda


O fato é que fugimos do padrão e que o Crespo incomoda

E o turbante não é fantasia moça, só para usar quando está em


evidência

E ver meu povo preto no poder é o que quero


Poesia que recito, corpo que grita, alma que expresso
E peço nada além disso, representatividade e sucesso.
Maiara Silva

4.1 Zona de tensão: reflexões sobre a construção e/ou afirmação da identidade negra
por meio do simbolismo do cabelo crespo

Até aqui analisamos que o aspecto capilar do corpo feminino negro foi ressignificado
na contemporaneidade e como reconfigurou o mundo vivido de mulheres negras, da
imposição e aceitação dos paradigmas capilares em torno do cabelo crespo. É esse sentido
que, na epígrafe, as palavras da autora descrevem a potencialidade do poder do símbolo
capilar e o poder de resistência das populações negras dentro da sociedade. Dessa maneira,
para compreender essa reconfiguração, faz-se necessário refletir sobre as zonas de tensão em
relação à identidade e as estratégias de resistências em torno do cabelo.
Para isso, refletiremos nesse capítulo sobre o paradigma Transição Capilar, não no
sentido de percebemos apenas ela como processo efetivo de ressignifição, mas por está em
vigor no cenário capilar das mulheres negra, tornando-se ferramenta de análise emblemática
que traz em seu curso posicionamentos atuais de sujeitos sociais que vivenciam tal paradigma.
Dessa maneira, a transição capilar, para além da mudança da textura do cabelo torna-
se um processo complexo no qual podemos caracterizar como um período de zonas de tensão.
Esses conflitos são gerados por intervenção e modificação do cabelo, quando o indivíduo sai

97
do padrão imposto ideal, e se depara com o padrão real, que deixa de ser apenas questão
capilar e revela-se ao afetar a vida do sujeito. Para Gomes “a consciência ou o encobrimento
desse conflito, vivido na estética do corpo negro, marca a vida e a trajetória dos sujeitos. Por
isso, para o negro, a intervenção no cabelo e no corpo é mais do que uma questão de vaidade
ou de tratamento estético. É identitária” (GOMES, 2008, p. 21). É o que nota-se na narrativa
de Karoline,

Quando eu decidi fazer a TC, eu me deparei com várias outras mudanças. Por
exemplo, me enxergar como negra e enxergar as outras também. Além disso, as
outras pessoas me enxergavam como tal. Meus próprios parentes apontavam para
me e ao falar do meu cabelo, falavam da minha cor. Por exemplo “você não é negra,
porque usar o cabelo assim? Meu cabelo estava para o alto. O que eu fazia? Jogava
mais o alto”. (Karoline Silva de Gois, entrevista concedida em 08 de novembro de
2017).

Ao sair do padrão de beleza imposto, o período da TC é capaz de gerar conflitos tanto


na esfera pessoal quanto nas relações interpessoais. Para Karoline, os conflitos desencadeados
a partir da TC serão ressignificados, transformando-se em auxílios para enfrentar desafios
internos, como conhecer a própria identidade; e externas, ao se deparar um o racismo
proveniente do cabelo crespo e suas esferas.
Esses conflitos surgem em vários momentos da transição, que para Gomes (2017) são
fases de transformação capilar e sobretudo, trânsitos impactam a vida da pessoa. Segundo a
autora, a TC é um ritual que é caracterizado por fases que são capazes de marcar uma pessoa
ou um coletivo e ao mesmo tempo propicia mudanças. Dessa maneira, a autora caracteriza a
transição em três períodos: a) Primeiro Trânsito- Experiências e memórias da infância; b)
Segundo Trânsito- Na margem; c) Terceiro Trânsito- o cabelo como Renascimento (GOMES,
2017).
O primeiro ponto, a autora ressalta sobre o constrangimento pessoal de muitas
mulheres ao optar por alisar o cabelo. Esse desejo da manipulação era movido pela intenção
de esconder ou disfarçar. No segundo trânsito é relacionado ao momento em que mulheres
abandonam o alisamento, ou seja, é momento da transição capilar que as pessoas não estão
“lisas”, nem “crespas”, que ela nomeia como deslocamento do processo estético. O último
trânsito torna-se o momento de relações interpessoais e descobertas como o novo cabelo.
Portanto, Gomes (2017) define que TC é dotada de uma capacidade remodeladora e de
reinvenção sobre formas de interação e identificação coletiva e individual, bem como torna o
cabelo um símbolo capaz de levar a negritude (GOMES, 2017). É por meio dessa negritude
que a interlocura pontua a seguir,
98
Figura 30- Identidade e cabelo crespo

FONTE: Facebook/CCSaa

Para a participante do grupo, aceitar a negritude juntamente com o orgulho e


valorização faz parte do processo de assunção do cabelo crespo. Dessa forma, é relevante
constituir os pontos de vistas sobre o processo identitário para que possamos entender as
estratégias individuais e coletivas desenvolvidas pelas mulheres do é se enxergar como
mulher negra por intermédio da TC. Nesse sentido Ana Paula relata,

Eu brincava muito com a barbie, e eu me lembro que pegava um lenço e fazia de


cabelo. Eu ficava penteando e imaginava que meu cabelo era grande e liso, dessa
forma eu queria me associar a barbie. A memória que tenho era que ela loira e lisa e
eu queria ser também. Eu não tinha inveja de coleguinhas de escola, mas tinha
vontade de ser igual a boneca. Agora, quando eu decidir deixar meu cabelo natural,
pelo fato de eu ser adulta, ter conhecimento e serenidade, me ajudou bastante para
me reconhecer como negra e não me estranhar tanto. O que antes eu associava
cabelo bonito e liso ser o cabelo da boneca branca, hoje eu entendo cabelo crespo
como belo e isso faz parte de me entender como mulher negra. Foi uma decisão,
pensada e vivida. Eu acho que a decisão de voltar a sua origem, se reencontrar
enquanto uma pessoa negra, ela tem que ser amadurecida e compreendida, e voltar a
ter o cabelo crespo faz parte desse entendimento. (Ana Paula Couto Alves, entrevista
concedida em 07 de março de 2015).

Ana Paula rememora o cabelo na infância. O cabelo que era da mesma é negado para
dar lugar ao cabelo liso e com isso lembra que queria ser igual à boneca. O processo de
construção da identidade negra para Ana Paula faz a partir do momento em que aceita seus
fenótipos do jeito que são. Ou seja, o encontro com a identidade é algo sentido, vivido e
pensado para obter a compreensão do que é ser mulher negra.
99
Segundo Munanga (2009, p. 19) “a recuperação dessa identidade começa pela
aceitação dos atributos físicos de sua negritude antes de atingir os atributos culturais, mentais,
intelectuais, morais e psicológicos, pois o corpo constitui a sede material de todos os aspectos
da identidade”. A questão de se enxergar o corpo, sobretudo o cabelo como parte desse
corpo, significa resgatar o autoestima, valorizar o corpo negro que há séculos foi inferiorizado
e relacionava a cor da pele, bem como o cabelo com aspectos morais dos povos negros, como
analisamos na entrevista de Aline,

Me falavam assim: Você é último tom do marrom. Você não é preta. Você é
moreninha. Você é escurinha e seu cabelo é ruim. Isso fez com que eu não gostasse
de mim, do meu cabelo. E como eu não vivia no ambiente onde se falava sobre isso,
minha família não falava sobre ser negro e na minha própria família reproduz
discurso racista, então eu não sabia que eu era uma menina negra. Com isso eu
alisava meu cabelo e me via como moreninha. Eu lembro que quando eu era criança,
chamavam a gente de formiga: eu, minha mãe, meu pai. Diziam que as formigas
pareciam com a gente. E hoje, na verdade, quando eu comecei a usar turbante,
depois cortei o cabelo, ao me olhar no espelho, foi ai que vi que sou negra. Claro
que não foi instantâneo. Mas essa percepção foi minha e também da minha família.
O cabelo foi um ponto inicial para me ver como negra. Fui estudar sobre isso. Tomei
consciência viu. Me ver como negra foi entender o contexto social que eu vivo
entendeu, estudar sobre as nossas histórias, tentar modificar as estruturas racistas e
fazer com que as meninas também tenham essa consciência? Fazer um canal no
youtube, falar sobre cabelo e a questão de negritude veio disso (Aline Santos da
Silva, entrevista concedida em 16 de junho de 2018).

No caso de Aline o processo de negação da pessoa negra ocorreu fora e dentro do


ambiente familiar. Ora a família não debatia sobre aspectos raciais com Aline, ora era
mencionada por colegas de maneira racista com a cor de sua pele. Contudo, o processo de
construção e positivação de uma identidade negra de Aline que ocorreu na fase adulta, veio
por meio do conhecimento, como também do olhar de si mesma e do outro. Nesse sentido,
além da busca pela identidade negra por meio dos fenótipos, alguns autores associam a
construção da identidade por uma relação dinâmica do sujeito e o grupo que compartilham as
mesmas percepções, como pondera Leiliane em sua narrativa,

Para mim foi uma libertação. Liberdade de me ver como sou. Antes me sentia como
uma escrava. Não me reconhecia como sou hoje. Antes eu era moreninha e usava
cabelo alisado. Nossa, quando comecei a transição... comecei porque estava cansada
das químicas, mas depois quando cortei o cabelo e me vi no espelho, me vi como
mulher negra. Corri nos grupos e fui ler os depoimentos das outras meninas sobre
isso. (Leiliane dos Santos, entrevista concedida em 09 de novembro de 2017).

Nesse sentido, Munanga (2009) caracteriza que o processo de construção da


identidade nasce por meio de uma consciência das diferenças entre nós e outros. A identidade
100
funcionaria como uma ideologia que permite aos seus membros se definirem em
contraposição aos membros de outros grupos, visando uma conservação do grupo como
entidade distinta. Para Nilma Lino Gomes (2008), o processo identitário é conflitivo quando
colocado nós, eu e o outro, mas necessário, pois o eu se constrói no ponto de vista do outro,
ou seja, nem sempre uma imagem social corresponde com a autoimagem e vice-versa. Nas
palavras da autora,

[...] a construção da identidade negra como um movimento que não se dá apenas a


começar do olhar de dentro, do próprio negro sobre si mesmo e seu corpo, mas
também na relação com o olhar do outro, do que está fora. É essa relação tensa,
conflituosa e complexa que este trabalho privilegia, vendo-a a partir da mediação
realizada pelo corpo e pela expressão da estética negra. Nessa mediação, um ícone
identitário se sobressai: o cabelo crespo. O cabelo e o corpo são pensados pela
cultura. Por isso não podem ser considerados simplesmente como dados biológicos
(GOMES, 2008, p. 27)

A construção da identidade dessa forma é compreendida com olhar para dentro, mas
também pelo olho de quem está de forma. Dessa forma seria um processo com relação tensa,
conflituosa e complexa que se da pela busca da identidade por meio de uma a inteiração
negociada durante toda a vida social do sujeito por meio de um diálogo, entre o eu e o outro
(GOMES 2008). Nesse sentido, em relação a identidade com o olhar do sujeito e do mundo,
Woodward (2014) pontua que a identidade assume um caráter relacional, ou seja, para que a
identidade exista, é preciso entender o que se encontra fora dela, por intermédio também de
outras identidades, de algo que ela não é, mas que entretanto, fornece condições para que ela
exista. É possível então pensar que esse processo ganha corpo quando refletem sobre a própria
identidade negra dentro dessa relação.
Posto isso, Nascimento é incisiva ao afirmar que a identidade é uma encruzilhada
existencial entre o sujeito e a sociedade, pois segundo a autora, ambos vão se constituindo
mutuamente. Para agir, o sujeito agrega referenciais que possibilitará um relacionamento com
o outro, com o mundo e consigo mesmo. De acordo com a autora, esses referenciais serão
obtidos pelo sujeito por um processo da própria experiência de vida e das representações em
grupo (NASCIMENTO, 2003).

Passar por esse processo é uma reconexão imediata. É o sentimento, é a convicção, é


a realidade de ser negra né. Porque até quando eu era mais nova era complicado usar
o termo inclusive negra, muito menos preta. No ambiente na qual eu participava
tinha um resquício de dúvida de usar o termo “negra”, mesmo eu sendo negra e
minha família sendo negra. Então após a transição capilar não tem como você se
encarar mais enquanto negra né. Fica lógico que essa é sua cor e que você vai ter
que lidar com isso. Comecei a olhar o que as outras meninas estavam passando
101
nesse momento. Minha família mudou também. Minha mãe e meu irmão
começaram a passar por esse processo. Me enxergar, enxergar eles e a nós como
negros é compreender tudo o que vem junto com isso e que a gente sabe que vem
muita coisa acompanhando o fato de sua estética ser negra, principalmente se seu
cabelo for natural e você se coloca também como negro. Então eu passei a me
enxergar dessa forma com muito mais força e muito mais orgulho. Antes eu não
tinha, mas hoje é orgulho, mais respeito, uma força incrível. Olhar meu corpo,
minha forma de ser, aceitar meus padrões. O meu cabelo me deu forças para isso.
Voltar a ter o cabelo crespo para mim foi sinônimo de reconhecimento do meu eu.
Eu olhava para as meninas que passaram por isso e comecei a entender. Via nelas o
que queria enxergar em mim. Eu respeitava a minha ancestralidade. E então fui
procurar compreender isso, por que se eu sou negra é porque existiram outras
pessoas antes de mim, então eu acho que esse processo foi conduzido a partir de
uma série de identificações mesmo, respeito e valorização, tudo isso. (Cíntia Castro,
entrevista concedida em 03/03/2018)

Cíntia Castro relata que quando pequena não se enxergava como negra no ambiente
que em vivia, nem mesmo tratava sobre questões raciais. O processo de construção da
identidade após a TC foi conjunto com a família. Aceitar a identidade negra para Cíntia é
aceitar o corpo, a estética e principalmente, perceber isso nos outros, que no caso foi à própria
família e as mulheres que estava passando pelo mesmo processo. Dessa forma, a construção
da identidade entendida nesta pesquisa, por meio da analises dos relatos é percebida como um
processo que envolve o plano simbólico por meio da mudança como também na esfera real
por intermédio do contato com o outro, da troca, conflito e diálogo.

4.2 Como resistir? O simbolismo do cabelo crespo

A relação das mulheres negras com o cabelo é constituída por um universo de


ressignificações marcado por múltiplos significados nos quais elas se apropriam de suas
experiências atribuindo sentidos aos usos e negações dos aspectos capilares crespos.
Experiências essas que são marcadas pela memória, sensibilidade e o sensorial que ao
dialogarem entre si, abrem possibilidades que afetam e vivenciam contextos tanto nos âmbitos
individuais como nos contextos coletivos. Ao utilizar o corpo negro, sobretudo o cabelo como
expressão estética, cultural e política, as mulheres negras reivindicam transformações,
proporcionando, dessa forma, novos modos de subjetivação. Hilmara Bitencourt ressalta sobre
esse posicionamento,
A luta coletiva em prol do cabelo crespo é para assegurar para que as
mulheres possam ser quem elas são. Nós lutamos pelo direito de ser quem nós
somos. Sim, temos o direito de alisar o cabelo, de fazer o que quiser, mas sem
imposição. Da mesma forma que podermos ser o que quiser, de aceitar ser negra, da
boca grande, do cabelo crespo e para cima. As crianças precisam crescer se aceitam
do jeito que elas são e se futuramente, elas crescerem e resolverem mudar, não serão

102
por imposição política, vai ser porque elas querem e por ser um desejo pessoal delas.
E é bom frisar que falar da estética negra, do movimento de mulheres em torno do
cabelo... por que é muito atacado como se fosse o grupo de mulheres que falam só
sobre cabelo, como se cabelo não fosse nada. Para a gente, isso foi negado a vida
toda. Não é artificial. E não é mesmo. Todos esses aspectos que falei, faz parte da
nossa subjetividade e isso é importante porque constrói quem nós somos, né
(Hilmara Bitencourt, entrevista concedida em 13/09/2017)

O símbolo em torno do cabelo crespo tem se configurado por profundas


transformações pelas mulheres negras, principalmente em virtude aos contextos econômicos,
culturais, políticos e afirmações contra hegemônicos estéticos. Dessa forma, as mulheres
negras buscam, por meio das estratégias, não somente resistir à imposição hegemônica, mas
direito de utilizar a estética da forma que quiserem, a afirmação do corpo como elemento
essencial dos posicionamentos do movimento de mulheres negras e igualdade em relação ao
mercado de cosmético, por exemplo. Essas resistências então são atreladas à subjetividade, às
criatividades, às experiências singulares, as relações de poder e à experimentação. Assim, ao
resistirem, tornam-se autoras e protagonistas de suas próprias histórias.
Contudo, é preciso compreender sobre como se procedeu as estratégias de resistências
das mulheres negras em torno da experiência vivida com o retorno do cabelo crespo.
Destarte, acerca das formas de resistir ao longo da história, buscou-se suporte nos estudos
Thompson (1998), Scott (2013) e Gomes (2008) que subsidiaram discussões teóricas acerca
dos movimentos dinâmicos das estratégias de resistências seja elas coletivas ou individuais,
públicas ou até mesmo ocultas.
Thompson (1998) ao discutir sobre os costumes da população inglesa do século XVIII
considera a cultura como um elemento central que se manifesta no cotidiano da classe
trabalhadora. Os estudos de Thompson (1998) afirmam que as relações do povo inglês eram
conflitantes e tinham como peculiaridades as formas negociar, agir e fazer escolhas
autônomas. Essas características só foram possíveis, segundo o autor, por causa de
resistências e acomodações das tradições, como também mudanças de comportamentos que
ganharam consolidação por causa da emergência do capitalismo industrial na Inglaterra.
Essas resistências são compreendidas por Thompson (1998), como práticas e são
reformuladas por meio da experiência. Através dessas ações, as camadas populares
constantemente entraram em confronto com as classes dominantes, colocando em evidência a
hegemonia de poder. Vale salientar que o autor compreende os povos trabalhadores como
sujeitos históricos com motivações racionais, autônomas e coerentes.

103
Nessa perspectiva, Thompson (1998), mostra três características da ação popular. A
priemira é a tradição anônima ou terrorismo individual numa sociedade que se encontra em
total dependência ou clientelismo e que toda resistência aberta pode resultar em retaliação.
Algumas dessas resistências são incêndio criminoso, o gado jarretado, tiro na janeira, árvores
derrubadas, roubos de cães, cartas anônimas, entre outros. Para Thompson (1998), essas
resistências “eram capazes de acabar com qualquer ilusão de deferência e de considerar seus
governadores de um modo bem pouco sentimental ou filial” (THOMPSON, 1998, p. 64). A
segunda ação prática é caracterizada como um contrateatro, ou seja, da mesma forma que os
governantes afirmavam a sua presença por um teatro, os plebeus empregavam sua presença
em um teatro de ameaça e sublevação. Com atitudes cheias de significados, quase como um
ritual, colocava, por exemplo, uma bota num patíbulo, a iluminação das janelas, o
destelhamento de uma casa para contestar contra o poder. Por meio dessas linguagens, os
governantes já imaginavam se tinha ou não popularidade nas regiões.
E por fim, o terceiro motim popular era em relação à capacidade de ação direta rápida
e fugaz, como ação da multidão. Juntar-se a grande público, pontua Thompson (1998), era
outra maneira de se tornar anônimo. A grande multidão encobria os anonimatos, a sua
capacidade de ação e seus feitos teriam que ser imediatos ou se não, poderiam sair
fracassados. O escritor afirma que a multidão era em geral disciplinada, tinha objetivos claros
e sabia negociar com as autoridades e acima de tudo, empregava sua força com rapidez, ou
seja, sabiam o que estavam fazendo e eram coerentes.
Já Scott (2004) analisa a dominação, resistência e as formas de subordinações sociais
sistemáticas e complexas nas quais os sujeitos ao longo da história estiveram impostos. A
teoria central observa que a possível aceitação das dominação por meio da subordinação já
seria estratégia de resistência, sobretudo, de sobrevivência e de simulação. Esses simulacros
ocultam revoltas que constantemente são colocadas em avaliação e criticadas em espaços
públicos vigiados pelos dominadores.
Comungando da mesma posição que Thompson (1998), Scott sugere que a simulação
da ordem dominante e da deferência pelas normas devem ser vistas como um teatro em que se
encena a submissão às regras das elites, não somente para proteção dos dominados, mas
também como formas de retórica para obter vantagens em virtude das normas que permeiam
o discurso oficial. A contestação à dominação, segundo Scott (2004) vai do murmúrio à
ameaça anônima, da ação também anônima como sabotagem, caças e incêndios como a
inversão de valores de inversão de rituais como o carnaval, entre outros.

104
Para analisarmos os enlaces das resistências contra o poder, Scott (2004) considera
relevante compreender o discurso público e oculto tanto dos dominadores quanto dos
dominados e tais discursos vivem em fronteiras constantes de lutas e conflitos ordinários no
dia-a-dia no âmbito das relações de poder.
Em relação aos dominados, os discursos fazem parte das estratégias de resistência. O
discurso público, segundo o autor, seria um modelo de conduta que sobrepõe qualquer
opinião individual ou coletiva dos subordinados e apresenta como característica principal um
tom conciliador para produzir justificativas convincentes para a hegemonia. Pode ser visto
como um “autorretrato das elites dominantes tal como elas gostariam de serem vistas”
(SCOTT, 2004, p. 48). Então resistir se caracterizaria como uma forma acentuada e simulada
na aceitação e subordinação dos dominados em relação à imposição às normas.
O discurso oculto, por sua vez, consiste em enunciados, gestos e práticas e tem lugar
nos bastidores. Dessa maneira, para perceber sobre os por menores desse discurso, o autor
elenca três características do discurso oculto: a primeira é que o discurso sempre é destinado a
um determinado espaço social e pessoas; o segundo comporta um conjunto de práticas
diversas e o terceiro é que o discurso oculto vive fronteira com as formas disfarçadas de
dissidência pública do discurso público. Segundo Scott (2004) é nesse universo que perpassa
o infrapolítica das camadas populares. Para o autor, o termo infrapolítica designa
infraestruturas que contém alicerces culturais e estruturais da ação e visa objetivos
estratégicos que permitem a população resistir a um adversário que possivelmente triunfaria
em um confronto aberto.
Para compreender a infrapolítica nesse contexto, o autor exemplifica que esse termo é
utilizado para depreender sobre a ruptura declarada do movimento black power nos anos 60.
O contexto de exaltação da cultura e política negra nesse contexto obteve sucesso não
somente pela movimentos dos adeptos do movimento, mas também por causa dos discursos
dos estudantes, clérigos e párocos que se desenvolveram fora de cena. Para tal, as resistências
que ocorreram nessa conjuntura se deram tanto de maneira declarada como disfarçada, como
podemos analisar os aspectos de resistência e dominação no quadro a seguir.

105
Quadro 2: Dominação e resistência

DOMINAÇÃO E RESISTÊNCIA

DOMINAÇÃO DOMINAÇÃO DE DOMINAÇÃO


MATERIAL ESTATUTO IDEOLÓGICA

Apropriação de Humilhação, Justificação da


cereais, impostos, desfavorecimento, escravatura, da
PRÁTICAS DE trabalhos, etc insultos, ataques à servidão, do sistema
DOMINAÇÃO dignidade de castas, de
privilégios, etc. por
parte dos grupos
dominantes
Petições, Afirmação pública Contra ideologias
FORMAS DE manifestações, de dignidade através públicas de
RESISTÊNCIAS boicotes, greves, de gestos, propagação de
PÚBLICA ocupações de terras e indumentária, valores igualitários,
DECLARADA rebeldias declaradas discurso, e/ou revolucionários ou
atentado explícito de negação da
aos símbolos do ideologia dominante
estatuto dos
dominantes
Formas quotidianas Discurso oculto de Desenvolvimento de
FORMAS DE de resistências, por raiva, agressão, e subculturas
RESISTÊNCIA exemplo, caça discursos de dissidentes, por
DISFARÇADA, furtiva, ocupações, dignidade exemplo, religiões
DISCRETA, deserção, evasão, disfarçados, por milenaristas <hush
OCULTA, lentidão no trabalho. exemplo, rituais de arbors> dos
INFRAPOLÍTICA Resistência directa agressão, histórias de escravos, religiões
por rebeldes vingança, uso do populares, mitos de

106
disfarçados, por simbolismo bandoleirismo social
exemplo, carnavalesco, boatos, e de heróis
apropriações sob rumores, criação de populares, imagística
disfarce, ameaças um espaço social do mundo às avessas,
dissimuladas ou autônomo para a mitos do <bom> rei
anónimas afirmação da ou do tempo anterior
dignidade ao <jugo normando>
Fonte: (SCOTT, 2004, p. 272)

Por meio das análises sobre resistências desencadeadas por Scott (2004) percebemos
que as resistências tantos as abertas quanto às disfarçadas são constatadas pela subjetividade e
experiências vividas pelas camadas populares e que a todo tempo revela-se dinâmica, o que
torna sua interpretação mais complexa. Trata-se de verdadeiras proezas realizadas em um
universo onde a subordinação sistemática provoca uma reação ao ato dominante por meio da
resistência. Importante ressaltar, de acordo com o autor, que as normas foram ditas a partir de
cima e as resistências têm o intuito tanto de simular com as concordâncias dos dominadores
quanto de forma aberta. Estes, quando rompem a fronteira com a elite, recuperam a voz e
dignidade, bem como conseguem mobilizar novos tipos de instrumentos para desafiar e alterar
as relações de poder e seu discurso hegemônico.
As ponderações de Thompson (1998) e Scott (2004) nos fazem questionar em relação
como então seria a resistência em relação ao cabelo das mulheres negras? Sobretudo porque
ao manipula-lo, tornou-se zona de tensão entre a autoimagem e a imagem por meio do olhar
do outro. É imprescindível tal análise para o viés das questões raciais.
Segundo Silva (2015, p. 32) “... os corpos negros, num espaço de significação onde
memórias, tradições, valores, posição e situação social são evidenciados e interpretados a
partir de seus gestos, atitudes corporais e características físicas”. Como então essas atitudes
são externalizadas por meio de resistências de mulheres negras em um viés de liberdade do
corpo, denúncia ao racismo estético, exclusão social e dignidade humana no tempo presente?
Segundo Hall (2003), resistir de certa forma representa ameaça e negociação com a ordem
dominante, mas não no sentido de conflitos de classes, mas sim, equilibrar as relações de
poder. De acordo com Gramsci, conforme citado por Hall (2003),

Negociação, resistência, luta: as relações entre uma formação cultural subordinada e


uma dominante, onde quer que se localizem nesse espectro, são sempre
intensamente ativas, sempre opostas num sentido estrutural (mesmo quando essa
107
"oposição" for latente, ou experimentada simplesmente como o estado normal das
coisas ...). Seu resultado não e dado, mas construído. A classe subordinada traz para
esse "teatro de luta" um repertorio de estratégias e respostas — formas de lidar com
situações e resisti-las. Cada "estratégia" no repertorio mobiliza certos elementos
materiais, sociais [e simbólicos]: os constrói como suportes para as diversas formas
de vida das classes, [negocia] e resiste a continua subordinação das mesmas. Nem
todas as estratégias tem o mesmo peso; nem todas são potencialmente contra
hegemônicas (HALL, 2003, p. 229).

Compreendemos, portanto que as resistências são estratégias desencadeadas por uma


reação das populações que historicamente vem sendo imposta a uma ideologia que faz negar
para aceitação determinada cultura. Dessa forma, as relações que se firmaram entre o corpo da
mulher negra e o cabelo como elemento corporal de diferença, instituíram como referência de
normalidade. Contudo, mesmo com apropriação das normas hegemônica da estética branca
pelas mulheres negras brasileiras, ocorreu no pós-abolição uma reação estruturada por meio
de espaços de resistências. Espaços esses que foram fomentados, por exemplo, por meio da
disseminação dos paradigmas capilares, bem como o uso do cabelo natural, como veremos no
tópico a seguir.
Anteposto, ressaltamos que as populações negras desenvolvem, historicamente,
estratégias de resistência, combate ao racismo e à discriminação racial. Infelizmente temos
que admitir que o processo de rejeição e/ou aceitação é continua e implica numa
negação/afirmação por vezes parcial por causa da imposição é da proposição racista e a
rejeição à história inscrita no seu corpo. Então, resistência no âmbito estético para as mulheres
negras é mais complexo, principalmente na sua subjetividade e a identidade.
Nesse caminho, é relevante trazer a luz o estudo de Gomes (2008) sobre os espaços de
salões étnicos como locais que não expressam somente estilos de penteados, beleza ou
modernidade, como reprodução do pensamento de branqueamento, mas um espaço de
resistências de mulheres e homens negros. Resistência no fato de se tornar uma ferramenta
para expressar a corporeidade e recriar a cultura ancestral africana. Dessa forma, a pesquisa
da autora não revela a ida desses sujeitos em busca da vaidade ou aparência, mas um campo
que apresenta um corpo negro por meio da linguagem e do social que expressa símbolo
indentitário e resistência cultural. Para Gomes (2008),

Essas identidades foram (e têm sido) ressignificadas, historicamente, desde


o processo da escravidão até às formas sutis e explícitas de racismo, à construção da
miscigenação racial e cultural e às muitas formas de resistência negra num processo
não menos tenso – de continuidade e recriação de referências identitárias africanas.
É nesse processo que o corpo se destaca como veículo de expressão e de resistência
sociocultural, mas também de opressão e negação. (GOMES, 2008, p.21)

108
É nessa dinâmica aceitação e negação que, como já pontuamos no tópico anterior, a
trajetória dada ao cabelo crespo pelas mulheres negras apresenta contradições e tensões
próprias do processo identitário. Contudo, por meio de estratégias de resistência, as mulheres
desenvolve um sentimento de identificação, pertença e autonomia. Nesse sentido a seguir
iremos discutir sobre os espaços de resistências que circulam diálogos e caminhos para o
posicionamento do uso do cabelo crespo como símbolo que representa mais do que parte
corpórea.

4.3 Os Espaços de resistências em torno da questão capilar

Ao analisar a trajetória do cabelo crespo entre as mulheres negras no pós-abolição é


notória o processo de ressignificação, da negação a aceitação, do alisado ao cabelo crespo
natural. As mudanças são evidentes, como já pontuamos por meio dos paradigmas capilares,
nas quais, podemos perceber as transformações, principalmente pelo derradeiro padrão, a
Transição Capilar. Assim como ocorreu no Black Power, na Pluralidade Capilar, ou pelo
Alisamento Capilar até os dias atuais, essas modificações geraram uma grande movimentação
da relação das mulheres negras com o cabelo crespo, seja com criação de laços sociais, rede
de comunicação e conhecimento, estímulo a um comércio estético, uso político do símbolo
capilar e afirmação da identidade.
Destacaremos as resistências ocorridas a partir da Transição Capilar entre as mulheres
de Salvador/BA e Aracaju/SE. Para tal, as mulheres que aceitaram o uso do cabelo crespo
estabeleceram estratégias de resistências em espaços sociais como em redes virtuais,
presenciais e transcenderam esses locais que se figuraram em grande circulação de
informação. E essa dinâmica nos motiva a entendê-la. Observemos o seguinte relato.

109
Figura 31: As práticas de resistência nos grupos sociais

Fonte: Facebook/CCSe

Nas palavras acima podemos destacar vários significados relevantes abordados pela
adepta e membra do grupo virtual de CCSe. O primeiro é em relação ao uso de cremes
alisantes como possibilidade de se adequar aos padrões do cabelo liso. O que nos chama
atenção é em relação à frase “trabalho de pentear”. Ao refletirmos sobre a palavra “trabalho”
nos remete a labuta, fardo ou algo que seja exploração. Segundo Gomes (2008), essa relação
do cabelo x trabalho vem desde a época da escravidão quando o negro era forçado a trabalhos
forçados e eram coisificados. Para a autora, nos dias atuais “trabalho” pode ser percebido
como uma não realização pessoal. Ou seja, mesmo com os novos contornos devido a
ressignificação, manusear os fios capilares crespos está impregnado na sociedade como um
esforço, dificuldade ou impossibilidade. O segundo é sobre a baixa autoestima e a
complexidade de encarar o processo de transição. Como já falamos no II capítulo, a TC
possibilita uma construção e modificação do entendimento individual e ao autoconhecimento
enquanto mulher, negra que vive em uma sociedade eurocêntrica. Segundo Matos (2016),

110
O momento da transição capilar é de fato desafiador, é momento onde a mulher é
exposta a um aspecto físico que talvez ela não tenha nem lembrança, além de ter que
lidar com as críticas em diversos meios, acredito que por ser um processo tão
chocante a transição promove uma radical modificação no modo como a mulher se
percebe e como perceber a sociedade. (MATOS, 2016, p. 15)

A TC marca um início não somente do uso do cabelo crespo, mas uma transformação
na vida social e na subjetividade, (des) construindo novas visões em torno da autoimagem. E
o terceiro é que a TC a aproxima e remodela as relações raciais ao enfrentar uma sociedade
que impõe um norte eurocêntrico. E por fim, nota-se a relevância do grupo virtual, pois
possibilitou a coragem para encarar a TC e, sobretudo, a elevação da autoestima. Percebe-se
que esse espaço coletivo é essencial para a circulação do processo capilar, pois permite a
construção de autoaceitação, apoiado por outras mulheres. Adiante, observaremos o relato de
angélica,
Certo dia, fui a rua procurar um salão de depilação. A rua estava vazia porque
era algum feriado. E me deparei com um salão de beleza. O vidro era fumê, mas
dava para enxergar duas mulheres dentro desse salão. Bati uma vez e uma falou:
fulana, tem uma moça chamando aí na porta. Eu bati novamente e a outra olhou...
ouvi nitidamente quando a outra falou: eu não vou atender não, do jeito que as
coisas estão hoje e com o cabelo assim. Eu sair desnorteada e paralisei na primeira
reação. Comecei a chorar e entrei em contato com as meninas para saber o que eu
poderia fazer em relação a isso. Esse processo é como se fosse, inicial, uma ferida, e
que agora esta cicatrizando. E como esse episódio é como se alguém mexesse na
ferida que está curando... não é fácil. Fiquei mal um mês. Mas foi preciso continuar.
Eu, meu cabelo é um enfretamento nessa sociedade que insiste em replicar o
racismo. Uso minha estética para enfrentar a sociedade todos os dias. Por mais que
eu seja atingida, eu sei que minha imagem atinge muito mais muitas meninas que
querem passar ou estão passando pelo mesmo que eu. E isso é muito mais
importante. Esse ciclo que estamos. Eu usei o cabelo mais para o auto ainda. O
enfretamento é um paliativo que a gente percebe que surte efeito né, e um efeito
muito grande. Eu acredito. Acredito na gente e nas próximas gerações (Angélica O.
Nascimento, entrevista concedida em 16 de novembro de 2017).

Podemos destacar dois aspectos do relato de Angélica. O primeiro é em relação a


racismo por causa do cabelo que a entrevistada comenta. O simples fato de ela usar o cabelo
crespo natural foi fato de impossibilidade de ela ser atendida pelas mulheres que trabalhavam
no salão. Para Moore (2007) nas sociedades atuais, os recursos vitais para o ser humano
depende a vários acessos como à educação, estruturas de lazer, oportunidade a emprego, entre
outros. Só que o racismo é capaz de vedar acesso a tudo “limitando para alguns, segundo seu
fenótipo as vantagens, benefícios e liberdades que a sociedade outorga livremente a outros,
também em função de seu fenótipo” (MOORE, 2007, p. 15). Dessa forma, de acordo com o
autor, o racismo blinda todos os privilégios que são destinados a sociedade hegemônica, ao
tempo que, por causa do fenótipo, “fragiliza, fraciona e torna impotente o segmento
subalternizado” (MOORE, 2007, p. 15). Mesmo que no primeiro momento a situação racismo
111
tenha fragilizado a entrevistada, a mesma entrou em contato com a rede de meninas que
usavam o cabelo crespo e após reflexão, ela percebeu a importância da imagem como uma
estratégia poderosa para enfrentar a sociedade, usando o cabelo mais ainda para o auto. Logo,
assumir o cabelo crespo é uma possibilidade de contestar ao padrão hegemônico de beleza e,
sobretudo, constitui-se em uma ferramenta de expressão que tem o intuito de estimular outras
meninas a assumir essa postura como alternativa também de resistência individual e coletiva
Posto isso, apresentaremos dois espaços estratégicos de resistências.

4.3.1 Os espaços de sociabilidades por meio das mídias sociais

Antes de falarmos sobre a potencialidade e visibilidade que espaços virtuais que


possibilitam a divulgação sobre a assunção do cabelo crespo, é relevante abordarmos sobre a
pesquisa do historiador no campo virtual.
A internet no advento da nova ordem social, econômica e política, possibilitou a
circulação de informação e comunicação em rede. O ciberespaço, portanto, tornou-se um
espaço para consultas on-line e até mesmo off-line como importantes canais para acesso e
distribuição de informações para os historiadores. Lucchesi ressalta que, a internet coloca em
discussão a mobilidade e os novos tipos percursos que se abrem para os historiadores nos
marcos da “cultura digital”. Dessa maneira, a autora pontua que,

[...] a concepção da Web como uma estrutura aberta, uma mídia, um meio ou
espaço de interação, comunicação, cooperação e produção. Espaço por tanto onde se
pode viajar virtualmente entre um e outro texto ou arquivo de dado e, ao mesmo
tempo, espaço onde hoje se dá também a etapa escrita da História, a produção
(LUCCHES, 2012, p.4).

É fundamental para os historiadores encontrarem e estabelecerem o contato com os


dados disponíveis, pois a internet trouxe de fato diversas novidades epistemológicas para a
pesquisa histórica. Quando trazemos o estudo sobre a o cabelo das mulheres negras em os
espaços virtuais, canais no youtube, blog, refletimos para além da estética e cuidados com os
fios. Portanto, as reflexões sobre atitude, comportamento, sócio-político são importantes para
a análise epistemológica. É válido ressaltar que ter a internet como local privilegiado da
pesquisa vai além da escolha metodológica, é uma análise para perceber o movimento
dinâmico que um grupo de mulheres formaram em torno do cabelo e que possibilita a
ampliação do entendido de vários fatores como percepção da negritude, autonomia, por
exemplo. E tudo que é socializado nesses espaços sobre o cabelo da mulher negra configuram
atos de resistência, a ser passível de análise.

112
Figura 32: Resistencia e liberdade nos grupos virtuais

Fonte: Facebook/CCSaa

O espaço virtual se caracteriza como resistência, pois é um local onde as mulheres


sentem-se acolhidas e podem socializar aspectos pontuais sobre o cabelo. Não apenas sobre
cuidados, mas afirmação enquanto mulheres que usam e resistem a uma sociedade que a todo
momento impõe o uso de uma estética capilar lisa. Notamos no início do relato da participante
as palavras “cabelo natural”, “resistência” e “ato político” que evidência transformação
individual como instrumento na composição identitária e estratégia para resistir
coletivamente. Vejamos outro relato:

113
Figura 33: Apoio e identidade negra

Fonte: Facebook/CCSaa

O texto da participante evidencia o quanto a corrente sobre a transição para o cabelo


natural tem bastante efeito. Nota-se que tudo o que foi socializado no grupo serviu de apoio
na fase de transição. Esse espaço acolhe, as mulheres que participam desabafam sobre o
cotidiano, ajudam ou falam simplesmente apenas sobre cabelo. Voltar ao cabelo crespo evoca
pertencimento e sentimento de libertação, além de potencializar a autonomia e eleva a
autoestima. Além de enxergarem como mulheres negras, se conscientizam do poder que tem.
Para Lopes e Figueiredo (2018),

Dentro desses grupos mulheres se sentem acolhidas, para falar de suas


experiências com o processo de transição capilar e aceitação do cabelo, sobre
cuidados com os cabelos naturais, enfim, para falar de si, com outras mulheres que
possuem vínculo apenas no espaço virtual e, encontram apoio em muitas situações, o
que se configura como um mecanismo de ação para possibilitar a autonomia
(LOPES; FIGUEIREDO, 2018, p. 10).

Essa autonomia, portanto, implica em assumir o cabelo da forma que entender e ter
possibilidade de optar por esse uso. Resgatar um modelo estético capilar natural é inverter um
padrão que até então era convencionado como o melhor. Nessa perspectiva Silva (2016)
ressalta que para as populações negras, a estética capilar crespa constrói sua própria
referência, auto representação e por meio do simbolismo, valoriza e revertem estigmas
produzidos para subjugarem as pessoas negras. E esse processo de afirmação no espaço
virtual como estratégia para resistir na utilização do cabelo crespo, ultrapassa fronteiras. É o
que demonstraremos no próximo tópico.

114
4.3.2 É preciso resistir: conhecimento e troca de experiências nos encontros
presenciais

Outros espaços que foram constituídos como estratégicos pelas mulheres que fizeram
transição capilar foram os encontros presenciais que ocorrem sempre com pautas de discussão
específicas. Dessa forma, as mulheres negras se encontram foram do ciberespaço para
compartilhar por meio de relatos inicialmente sobre cabelo, e posterior, outros assuntos que
emergem por intermédio do aspecto capilar, em uma rede mútua criada dentro dos grupos
virtuais. Auxiliar umas as outras por meio das experiências pessoais e coletivas, como
podemos perceber na fala de Juliana Lobo e de Débora Leite,

Então, no processo da transição, vi no grupo que haveria um encontro


presencial. De início fiquei um pouco relutante para ir, pois na minha cabeça já
bastava minha participação no grupo. Mas depois decidi ir. Chamei outra amiga e
fomos juntos. E eu gostei bastante. Foi mais do que eu esperava, porque além de eu
ter contato com as meninas, conheci outras coisas como as meninas que vendem
seus produtos, oficinas e conversas. Isso tudo foi me fortalecendo né, para eu me
entender (Juliana Lobo, entrevista concedida em 11 de dezembro de 2017).

Em 2014 decidi parar de alisar meu cabelo depois que conheci algumas
meninas aqui em Sergipe que já estavam no movimento do crespo e aí eu resolvi
parar de alisar. A princípio, eu fiquei cinco meses sem alisar, mas eu não consegui
ficar com as duas texturas e voltei a alisar. Mas depois eu tomei a iniciativa que se
eu realmente quisesse encrespar eu deveria logo cortar o cabelo. E assim eu cortei,
fiquei com o cabelo bem curtinho. Fui para Salvador, trancei, foi assim. Mas o que
eu quero falar também é que foi bem importante eu ter o contato com as outras
meninas. Na faculdade, por exemplo, eu via poucas meninas na UFS, mas o pouco
que via era um incentivo. Então eu tomei coragem e cortei logo o cabelo. Fui
também a alguns encontros em Aracaju. Esse contato com as meninas desse
movimento foi muito importante. Costumo falar que esse processo é um processo
que a autoestima é renovada a todo instante e coletivamente (Debora Leite,
entrevista concedida em 07/11/2017).

Os encontros presenciais, portanto, tem a finalidade principal resistir, sobretudo apoiar


essas mulheres em relação à aceitação que lhes foram negadas pelos padrões eurocêntricos ao
longo dos anos. Encontros esses que conferem uma nova matriz de acolhimento capaz de
ajudá-las a construir uma autoestima. Espaços esses que são construídos coletivamente, como
observamos com as imagens a seguir.

115
Figura 34: Aniversário de 2 anos do CCSaa

Fonte: Facebook/CCSaa

Figura 35: 2º Encontro do CCSe

Fonte: Facebook/CCSe

As imagens acima são chamadas de encontros dos grupos virtuais que analisamos na
pesquisa. A primeira imagem é o anúncio do 2º encontro do grupo de Salvador realizado no

116
Pelourinho, em Salvador no ano de 2016. E a segunda imagem é do anúncio do 2º encontro do
grupo de Sergipe realizado no ano de 2015. Sobre esses encontros, Lopes e Figueiredo (2018)
ressaltam que,
Considerando a nossa participação em eventos presenciais organizados pelos
Coletivos de mulheres negras crespas e cacheadas, é possível inferir que os
encontros mantém uma mesma dinâmica: vendas e fabricação dos mais diversos
produtos pelas empreendedoras ou afroempreendedoras, venda de produtos
cosméticos específicos naturais fabricados à mão, especialmente para os cabelos
crespos e cacheados, oficinas, variados alimentícios, depoimentos e bate-papos
sobre vivências de preconceito ou racismo que enveredam pela questão estética, bem
como palestras as quais geralmente são feitas por mulheres negras, crespas e
cacheadas que estão à frente dos grupos no Facebook ou espaços de canais no
Youtube. As temáticas e abordagens perpassam pela compreensão de mundo de cada
uma dessas mulheres sobre aceitação, transição capilar e empoderamento, além de
questões que envolvem o combate ao machismo, racismo e outras formas de
violência. (LOPES; FIGUEIREDO, 2018, p. 10).

Em relação a essa dinâmica que as autoras mencionam, percebermos no relato da


participante do grupo, sobre o primeiro encontro do grupo de Sergipe,

Figura 36: Relato sobre o 2º Encontro do CCSe

Fonte: Facebook/CCSe

117
Continuação da Figura 36

Nota-se nas palavras de Michele que no encontro ela poder perceber um “multi-
encontro”, ou seja, um espaço que englobou vários conteúdos, como dança e contação de
história, cuidados com os cabelos, discussão sobre racismo e sexismo, oficina de turbantes,
vendas de produtos com afroempreendedores28, lanches e desapegos de roupas. Um encontro
que visa resistir e empoderar29 com viés acolhedor. Nota-se que o aspecto capilar tem
propiciado um encontro que enaltece o cabelo em suas múltiplas dimensões, herança de um
movimento de mulheres negras que lutam pela aceitação e valorização dos cabelos crespos.
Sobre a importância da construção do encontro e seu processo de transição capilar, Michele
relata que,
A transição me deu uma força coletiva que eu não tinha. Aqui em Aracaju a
gente tem um grupo no Facebook de cabelos crespos e cacheados e a gente tentava
se encontrar por algum tempo. Isso em 2014. Começamos também a se organizar
pelo WhattsApp. E nunca tinha tido um encontro daquele tamanho em Aracaju e a
partir dali a gente começou a se ver, a se olhar nos olhos, a contar as nossas histórias
e ver que são historias totalmente parecidas. E tipo, todo mundo ficou estupefato,
porque velho como é que não tinha um encontro desse? Não tinha se visto nas ruas
antes? E partir daí começou a ganhar corpo, e ganhou o sentido de militância para a

28
São pessoas que abrem seus próprios negócios e trabalham em eventos abertos e fechados, de maneira
autônoma, e seus produtos são voltados para valorizar a origem e cultura negra.

118
questão se se enxergar negro, inclusive a partir da estética que não é qualquer coisa e
que não é só estética, né? (Michele Santos, entrevista concedida em 11/03/2018)

Nota-se sobre a importância da construção dos grupos sobre cabelos naturais e a


necessidade de extrapolar o campo virtual para o presencial. Foi importante para Michele e
para as outras pessoas que participaram do encontro, visualizar demais adeptas do retorno
capilar. Vale ressaltar que nem todas as mulheres que participam do grupo virtualmente ou em
encontros presenciais tem uma relação direta de aceita-los como eles são pelo viés político em
associação ao histórico movimento de lula e direitos das mulheres negras, contudo, como
salienta Matos e Silva (2014), esse ambiente, tanto o virtual, como o presencial, representa
um movimento afrodiásporico que fomenta o diálogo entre mulheres que podem falar sobre
sua história, sua infância, relação pessoal com o cabelo e preconceitos sofridos, se
constituindo como estratégia de resistência. De acordo com as autoras,

Esse espaço se torna parte da vida dessas mulheres que começam uma nova
história, com uma consciência baseada numa autoestima construída através de
sofrimento e sacrifício, a partir do momento em que resolvem abandonar os padrões
dominantes da estética branca e assumir a textura de seus cabelos crespos, o formato
de seus cachos e o aspecto que é considerado bagunçado por muitos (MATOS E
SILVA, 2014, p. 227).

Para Matos e Silva (2014) o fenômeno de aceitação do cabelo crespo como um todo,
implica em resgatar um modelo estético e reconhecer o próprio cabelo dentro de uma
conjuntura histórica que convencionou um padrão como o ideal e bom na sociedade e que
“foram décadas de busca para o alcance desse ideal estético por parte daqueles cujos
pertencimentos raciais obstaculizavam a sua efetiva padronização” (MATOS E SILVA, 2014,
p. 218). Portanto, as ações iniciadas do campo virtual e direcionadas para o presencial, vão
muito além do cabelo e que remetam as ações de afirmação estética que segundo Matos e
Silva(2014), constitui um movimento estético político, que dissemina a história das mulheres
negras, de luta e resistência. É o que Thatiane Menezes evoca em seu discurso:
Eu fico me perguntado... Por que meu cabelo natural, do jeito que ele é
causa estranhamento? Quando eu tinha cabelo liso, modificado e artificial, ele era
elogiado. Agora, para muitos é motivo de deboche. Então para mim hoje, meu
cabelo é autoestima, é exemplo. Eu, mulher negra uso meu cabelo natural, sou
exemplo para as demais. Me sinto exemplo vivo caminhando pela rua. Sabe o que é
isso? É resistência. É luta. O cabelo é luta. Quando chegamos em qualquer
lugar e mesmo assim continuamos com a boca fechada, estamos discursando.
Você compreende isso? O cabelo fala por si só. Isso é muito impactante
(Thatiana Menezes, entrevista concedida em 20/07/2018)

119
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Escrever as considerações finais nos dias que antecedem aos festejos que reverenciam
a orixá Iemanjá, é bastante representativo. A importância da representação feminina negra
tem força, resiliência e através do poder da ancestralidade, nos faz acessar informações do
passado, do presente e do futuro. Dessa maneira entendo que enquanto mulher negra e
historiadora, atravessei fronteiras de conhecimento e ao estudar sobre a ressignificação
capilares das mulheres negras no pós-abolição, fez parte de mim. É relevante falar que vários
estudos já foram fomentados por diversos historiadores, antropólogas, sociólogas, mas é
instigante quando eu trago essa discussão enquanto lugar de fala. Para além disso, poder
colocar em evidência narrativas de mulheres negras é compreender que podemos dialogar em
um universo bem amplo.
Posto isso, quero compartilhar sobre o projeto Belezas Crespas30, que desenvolvi no
decorrer do último ano de pesquisa do Mestrado, no bairro Nordeste de Amaralina, onde
resido na cidade de Salvador. Esse projeto visou refletir sobre o cabelo crespo como símbolo
de resistência e reconstrução de uma identidade negra entre meninas de 10 a 19 anos. Em
parceria com a antropóloga Mai Meincke, a relações públicas Adriele do Carmo e o fotógrafo
Lipe Costa, o projeto foi desenvolvido em duas partes: no primeiro dia ocorreu uma oficina
que consistia em uma roda de conversa com as crianças envolvidas para falarmos sobre os
aspectos históricos em torno da questão capilar natural e a luta das mulheres negras no Brasil
e no segundo dia foi realizado um ensaio fotográfico pelo bairro no qual possibilitou
questionamentos positivos e a elevação da autoestima das participantes em relação a suas
cabeleiras.
Desenvolver e participar de um projeto de tal relevância, na comunidade onde moro,
com crianças que diversas vezes já negaram seus cabelos naturais e tiveram suas autoestimas
dilaceradas, e que ao participarem do projeto puderam vivenciar vários aspectos da estética
capilar que permitiu compreender que é uma característica que nos aproximam. É isso que é
dialogar e atravessar fronteiras do conhecimento.
Vimos nas linhas dessa dissertação que o cabelo é uma parte fenotípica do corpo
humano, ou seja, um sinal diacrítico que assume significados e torna-se representação por
meio da ressignificação que caracteriza o cabelo crespo como símbolo da identidade das
populações afro-diaspóricas, sobretudo das mulheres negras, no Brasil. Dessa maneira, a

30
Disponível em https://belezascrespas.46graus.com/
120
pesquisa nos levou a reflexão sobre os fenômenos que levaram um grupo de mulheres negras
a assumir o cabelo crespo e como o mesmo tornou-se expressão de luta contra o racismo,
redefinição da identidade feminina negra e estratégia de resistência. Para tal reflexão,
analisamos os paradigmas capilares Cabelo Alisado, Pluralidade Capilar, Black Power e
Transição Capilar para poder entender a influência em torno do cabelo para a subjetividade
dessas mulheres.
No percurso desse estudo, ao considerar as vozes, o silêncio e os olhares das 14
mulheres entrevistadas, seus relatos possibilitaram compreender sobre as múltiplas dimensões
que refletem o cabelo em suas subjetividades, como o diálogo com o corpo feminino,
afirmação de identidade, insurgência de um movimento virtual e presencial em torno da
questão capilar. Essas subjetividades foram fundamentais para que as nossas entrevistadas
pudessem ressignificar o cabelo positivamente no contexto atual.
Com a ancoragem nessa premissa, a análise dos paradigmas capilares foi importante
para perceber como eles são compreendidos desde o alisamento até a aceitação e uso do cabelo
natural. Essa trajetória foi pautada por movimentos de mulheres que lutaram pelos seus
direitos e nessa direção, buscou-se evidenciar a intrínseca relação entre a ressignificação do
cabelo para essas mulheres à questão capilar que tem como principal característica, uma luta
coletiva, de valorização e emancipatória.
Poder escrever por meio da metodologia da História do Tempo Presente permitiu
descortinar múltiplas vertentes que nos levou a compreender sobre os diversos elementos que
unem as mulheres negras no pós-abolição no processo de resistência, identidade e luta contra
uma perspectiva hegemônica que impôs um padrão estético capilar de beleza branco.
Por fim, que na verdade, haverá continuação, há de destacar outra questão muito
importante que essa dissertação instigou em mim. Foi o contato intenso com diversas
mulheres negras. Quem elas são? O que elas pensam sobre o movimento em torno do cabelo?
E é exatamente nesse ponto que eu gostaria de finalizar. São mulheres que fazem parte de um
movimento estético diásporico que por meio de um processo de aceitação do cabelo,
começam uma transição de dentro para fora, que possibilita liberdade e descoloniza tanto o
corpo como o pensamento. Entretanto, não quero apresentar conclusões fechadas, mas poder
provocar novas possibilidades de analises no que concerne ao uso e aceitação do cabelo
crespo que se constitui em uma intersecção de transformações, buscas e reinvenções.
Portanto, o convite está feito!

121
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