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Parte II: A questão do sujeito na genealogia de Michel

Foucault

4
Capítulo I: A objetivação do sujeito por práticas disciplinares
e normalizadoras1

Pretende-se, nesta segunda parte da tese, estudar a questão do sujeito na fase


genealógica do percurso filosófico de Michel Foucault. Para tanto, analisam-se, aqui,
a objetivação do sujeito por práticas disciplinares e normalizadoras, em Vigiar e punir
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e no primeiro volume da História da sexualidade, A vontade de saber, e o que


Foucault chamou de a subjetivação do sujeito por práticas de si, nos dois últimos
volumes da História da sexualidade, O uso dos prazeres e O cuidado de si, e no
curso proferido, em 1982, no Collège de France, A hermenêutica do sujeito.
A principal característica da fase genealógica do percurso filosófico de Michel
Foucault é o fato de ele começar a analisar sistematicamente também as práticas
juntamente às teorias. Nas duas fases do seu percurso, a arqueológica, já estudada, e
a genealógica, objeto dessa segunda parte da tese, Foucault sustenta que as ciências
humanas não podem fornecer o suporte da sua inteligibilidade, não explicando
porque, em determinado momento, foram constituídas, subsistiram e passaram a
escolher determinados sujeitos, objetos, conceitos e estratégias, explicação essa a que
Foucault se dedica na arqueologia. No entanto, além disso, essas ciências também não
dão conta da matriz institucional na qual se desenvolvem e acabam por se desintegrar.
Ora, é essa matriz que Foucault passa a investigar na década de setenta, quando se
1
Este capítulo se baseia, em grande parte, nas idéias encontradas no livro sobre a trajetória filosófica
de Michel Foucault escrito por Paul Rabinow e Hubert Dreyfus. Mas não sigo inteiramente as idéias
desses autores, no que diz respeito à existência de dois processos distintos analisados por Foucault na
década de setenta, a saber, uma objetivação e uma subjetivação do indivíduo moderno a partir,
respectivamente, da tecnologia disciplinar e da tecnologia confessional. No meu entender, o processo
de objetivação predomina em ambas as tecnologias, mas na tecnologia confessional, a objetivação
seria seguida pela formação de uma subjetividade confessante.
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inicia o chamado período genealógico da sua trajetória filosófica. Nos livros da


década de sessenta, Foucault procura estudar as teorias das ciências humanas
acentuando o seu aspecto de discurso objeto, isto é, ele procura compreender a sua
história nos termos das regras que regulam e determinam o discurso dessas ciências e
que permanecem inacessíveis ao sujeito desse discurso. Mas as práticas sociais e
institucionais que estão em jogo nessas ciências apenas são analisadas na medida em
que correspondem às regras epistêmicas da sua época, permanecendo subordinadas a
uma estrutura teórica dominante. No entanto, a partir da década seguinte, Foucault
passa a considerar a prática tão fundamental quanto a teoria, procurando a
inteligibilidade das ciências humanas nas práticas estruturantes de que elas participam
e contribuem para expandir. Com efeito, nesse período, Foucault toma consciência de
que ele mesmo, enquanto pesquisador e sujeito, é em vasta medida, produzido pelas
práticas sociais que estuda e a fim de experimentar e apreender o sentido dessas
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práticas a partir de seu próprio interior, ele introduz o método genealógico, ao qual o
método arqueológico passa a se subordinar . Foucault inaugura então um nível novo
de inteligibilidade e introduz um novo método que lhe permite, além de
complementar prática e teoria, mostrar que a teoria é um componente essencial por
meio do qual a prática opera.
Em sua aula inaugural no Collège de France, em 1970, intitulada A ordem do
discurso, Foucault afirma existir uma relação de complementaridade entre a
arqueologia e a genealogia, já que o método genealógico se apóia no arqueológico e
completa o mesmo. A esse respeito, Foucault observa que:

Quanto ao aspecto genealógico, este concerne à formação efetiva dos discursos, quer
no interior dos limites do controle, quer no exterior, quer, a maior parte das vezes, de
um lado e de outro da delimitação. A crítica analisa os processos de rarefação, mas
também de reagrupamento e de unificação dos discursos; a genealogia estuda sua
formação ao mesmo tempo dispersa, descontínua e regular. Na verdade, estas duas
tarefas não são nunca inteiramente separáveis; não há, de um lado, as formas da
rejeição, da exclusão, do reagrupamento ou da atribuição; e, de outro, em nível mais
profundo, o surgimento espontâneo dos discursos que, logo antes ou depois de sua
manifestação, são submetidos à seleção e ao controle ( ... ) Assim, as descrições
críticas e as descrições genealógicas devem alternar-se, apoiar-se umas nas outras e
se completarem. 2

2
Foucault, Michel. A ordem do discurso, p.69.
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Foucault procura, nessa aula, esquivar a materialidade do discurso, uma vez que o
mesmo, enquanto campo de existência anônimo e lacunar, se encontra, ao mesmo
tempo, diretamente articulado a práticas históricas, não podendo mais ser reportado a
um sujeito constituinte, nem a uma origem que lhe prescreva um desdobramento
temporal. E a genealogia tentará reconstituir a história dos saberes, através de um
diagnóstico das relações entre poder, saber e corpo na modernidade, devolvendo ao
discurso a sua existência própria, irredutível às sínteses antropológicas.
Em Nietzsche, a genealogia e a história, ensaio redigido em 1971, Foucault
afirma que a genealogia se opõe ao método histórico tradicional, procurando situar a
singularidade dos acontecimentos longe de toda finalidade monótona. Ora, assim
como a arqueologia, a genealogia procura evidenciar as descontinuidades lá onde foi
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percebida uma evolução contínua.


Segundo Foucault, o genealogista não investiga a profundidade, mas os
acontecimentos de superfície, os mínimos detalhes, as mudanças imperceptíveis, os
limites sutis, descobrindo que as questões tradicionalmente consideradas profundas
são de fato superficiais, pois que retiram o seu sentido de práticas de superfície.
Para a genealogia, a profundidade, a verdade e a interioridade da consciência
não passam de artifícios na construção histórica de uma unidade. A essência das
coisas, para o genealogista, foi construída peça por peça a partir de figuras
estrangeiras e o devir de humanidade é como que o resultado de uma série de
interpretações, cuja história é descrita pelo genealogista que revela os universais do
pensamento humanista como sendo o produto do aparecimento contingente dessas
interpretações.
Mas em sua genealogia, Foucault não procura, como Nietzsche, descobrir as
motivações subjetivas presentes por detrás da pretensão de objetividade. O interesse
do Foucault genealogista está voltado para a investigação da emergência simultânea
da objetividade científica e das intenções subjetivas num espaço organizado por
práticas sociais. Enquanto Nietzsche fundamenta a moral e as instituições sociais em
táticas empreendidas por protagonistas individuais, Foucault faz das motivações
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individuais o resultado de estratégias sem estrategistas, descobrindo relações de força


que se manifestam na superfície dos acontecimentos.
A história então não se desenrola a partir da vontade de um sujeito, seja
individual, seja coletivo, mas a relação de forças de uma dada situação histórica é
possibilitada pelo espaço mesmo dessas forças, isto é, pelo espaço definido por elas.
Tal espaço, para Foucault, corresponde ao resultado de determinadas práticas e ao seu
campo de atuação.
O genealogista escreve a história efetiva, rejeitando a perspectiva supra-
histórica, segundo a qual a história se desenvolve internamente numa totalização que
assegura a imagem do passado e a da existência de um fim em direção ao qual ela
progride. Essa história efetiva procura destruir a crença na identidade e na
consistência. Não há constância para o genealogista, nem mesmo o corpo é constante,
já que se pode modificar cada um dos seus aspectos desde que se utilizem as técnicas
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apropriadas. A esse respeito, Foucault observa que: “A história “efetiva” se distingue


daquela dos historiadores pelo fato de que ela não se apóia em nenhuma constância:
nada no homem _ nem mesmo o seu corpo_ é bastante fixo para compreender outros
homens e se reconhecer neles.”3
Com efeito, em sua genealogia, escrevendo a história efetiva, Foucault vai
isolar e conceitualizar o modo como o corpo se tornou um elemento essencial das
relações de poder na modernidade. “O corpo também está diretamente mergulhado
num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o
investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a
cerimônias, exigem-lhe sinais.”4
Essa articulação entre poder e saber baseada no corpo constitui um
mecanismo geral de poder de grande importância para a sociedade ocidental, a
chamada tecnologia política do corpo. Esta não se localiza numa só instituição ou
num só aparelho de poder como o Estado. Ora, embora Foucault analise algumas
instituições, sua investigação se concentra muito mais no desenvolvimento de
tecnologias de poder, a fim de isolar os mecanismos tecnológicos por meio dos quais

3
Foucault, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Machado, Roberto. Microfísica do poder,
p.27.
4
Foucault, Michel. Vigiar e punir- nascimento da prisão, p.25.
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o poder se articula com o corpo. Foucault escreverá então a história efetiva do


aparecimento e do desenvolvimento dessa tecnologia política do corpo, descrevendo
as relações entre essa tecnologia, o Estado e determinadas instituições. Mas essa
tecnologia política do corpo não se localiza nem num tipo definido de instituição,
nem num aparelho estatal, que, no entanto, têm acesso à mesma, utilizando os seus
procedimentos. O nível da tecnologia política do corpo é o de uma microfísica do
poder operada pelo Estado e pelas instituições, mas cujo campo de validade se situa
entre os mesmos e o corpo em sua força e materialidade.
Na conclusão de Nietzsche, a genealogia e a história, Foucault trata da
questão do saber, que, segundo ele, pode ser totalmente apreendido no conflito das
relações de dominação. Para Foucault, poder e saber não são estranhos entre si, mas
operam, na história, segundo um processo de fecundação recíproca. A esse respeito,
Foucault observa que:
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Seria talvez preciso também renunciar a toda uma tradição que deixa imaginar que só
pode haver saber onde as relações de poder estão suspensas e que o saber só se pode
desenvolver fora de suas injunções, suas exigências, seus interesses. Seria talvez
preciso renunciar a crer que o poder enlouquece e que em compensação a renúncia ao
poder é uma das condições para que se possa tornar-se sábio. Temos antes que
admitir que o poder produz saber ( e não simplesmente favorecendo-o porque o serve
ou aplicando-o porque é útil ); que poder e saber estão diretamente implicados; que
não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber
que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder. Essas relações
de “poder-saber” não devem então ser analisadas a partir de um sujeito do
conhecimento que seria ou não livre em relação ao sistema de poder; mas é preciso
considerar ao contrário que o sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as
modalidades de conhecimentos são outros tantos efeitos dessas implicações
fundamentais do poder-saber e de suas transformações históricas. Resumindo, não é a
atividade do sujeito de conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao
poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam e o constituem,
que determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento.5

Foucault, em sua genealogia, vai procurar apreender as relações que existem


entre poder e saber em determinadas ciências, as ciências humanas. Para ele, a

5
Foucault, Michel. Vigiar e punir-nascimento da prisão, p. 27.
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arqueologia investiga a formação discursiva de uma ciência, sua história, a posição


ocupada por ela no contexto do poder a fim de julgar a sua capacidade de descrever a
realidade. Com efeito, com a genealogia, o pesquisador pode se perguntar pelo papel
histórico e político das ciências que ele estuda. Para tanto, Foucault propõe uma nova
interpretação do poder e do saber, na qual o poder não é mais visto como um
privilégio de um grupo determinado e o saber é considerado um elemento da
transformação histórica dos diferentes regimes de poder e de verdade.
Poder-se-ia temer que esse tipo de análise histórica, que abandona categorias
objetivantes e totalizantes, conduzisse a uma espécie de subjetivismo, mas Foucault
neutraliza essa ameaça concentrando-se numa história genealógica do sujeito
moderno. Segundo Foucault:

Queria ver como estes problemas de constituição podiam ser resolvidos no interior de
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uma trama histórica, em vez de remetê-los a um sujeito constituinte. É preciso se


livrar do sujeito constituinte, livrar-se do próprio sujeito, isto é, chegar a uma análise
que possa dar conta da constituição do sujeito na trama histórica. É isto que eu
chamaria de genealogia, isto é, uma forma de história que dê conta da constituição
dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto, etc. sem ter que se referir a um
sujeito, seja ele transcendente com relação ao campo de acontecimentos, seja
perseguindo sua identidade vazia ao longo da história.6

Em toda sua obra, Foucault se dedicou a determinar a posição do sujeito, do


subjetivismo e do indivíduo moderno. A partir da década de setenta, com a
genealogia, ou melhor, com a arqueo-genealogia, Foucault passa a investigar o
desenvolvimento de técnicas de poder que são aplicadas aos indivíduos, construindo
um modo de análise das práticas culturais em que poder e saber se entrecruzam e que
constituíram o indivíduo, o sujeito, como objeto de determinados poderes e de
determinados saberes.

6
Foucault, Michel. Verdade e poder. In: Machado, Roberto. Microfísica do poder, p.7.
100

4.1
A objetivação do sujeito em Vigiar e punir

Em Vigiar e punir, Foucault se interroga sobre a tecnologia geral de poder em


que se inscrevem determinados modos de punição. Nesse livro, Foucault constata que
se as técnicas punitivas podem evoluir, do mesmo modo os seus pontos de aplicação
também se transformam e que para que se possam apreender as transformações nas
formas de exercício do poder é necessário, além de indagar como é que se pune,
indagar ainda o que é que se pune. Segundo Foucault, modernamente, pune-se não
tanto um ato, mas um indivíduo, um sujeito: o exercício moderno da justiça não mais
se reduz à responsabilização pela autoria do crime, de modo que a justiça não
pergunta mais apenas se o acusado cometeu o crime em questão, mas investiga a
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interioridade psicológica do acusado. A justiça moderna pergunta ao acusado “quem”


ele é.
De acordo com o código penal francês de 1810, segundo Foucault, não se
pode ser, ao mesmo tempo, culpado e louco. Todo autor de ato criminal cometido em
estado de demência é desresponsabilizado. No entanto, na prática, o psiquiatra não
decide sobre a responsabilidade ou não do autor do ato, mas avalia as virtualidades do
seu comportamento. Não se pergunta se o réu é ou não é louco ou responsável, mas se
ele é ou não é perigoso, se ele pode ser curado. A justiça penal moderna não julga
mais um ato e a autoria do mesmo, mas um indivíduo em sua verdade psicológica.
Modernamente, a justiça criminal para punir deve se referir a elementos de
conhecimento, mascarando a arbitrariedade de sua função, ao se inscrever em um
sistema de cientificidade. Com efeito, não se pune mais um crime, uma infração, mas
uma individualidade psicológica, uma alma criminal e é o nascimento dessa alma de
acordo com uma tecnologia política do corpo que interessa em Vigiar e punir.
Para Foucault, o nascimento do indivíduo moderno e a emergência do
conceito científico de sociedade, formulado pelas ciências humanas, são
acontecimentos simultâneos. Em Vigiar e punir, Foucault apresenta a genealogia do
indivíduo moderno como corpo dócil e útil, mostrando uma interação entre uma
101

tecnologia disciplinar e as ciências humanas normativas. Nesse livro, Foucault


investiga o nascimento simultâneo de uma ciência social objetiva e da solidez muda
do indivíduo moderno, a fim de mostrar os efeitos e os instrumentos de determinadas
formas históricas de exercícios do poder.Segundo Foucault, o objetivo de Vigiar e
punir é: “Uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar;
uma genealogia do atual complexo científico- judiciário onde o poder de punir se
apóia, recebe suas justificações e suas regras, estende os seus efeitos e mascara sua
exorbitante singularidade.”7
A proposta de Foucault em Vigiar e punir é a de tratar os castigos e a prisão
como uma função social complexa. Ora, ao tratar da questão da prisão, Foucault
procura isolar o desenvolvimento de determinados mecanismos de poder, de modo
que a prisão se torna um problema político tanto quanto jurídico. No entanto, o objeto
de estudo do livro não é propriamente a prisão, mas o que Foucault chama de
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tecnologia disciplinar. Trata-se de estudar, em Vigiar e punir, as práticas culturais


que, manifestando-se através de uma tecnologia particular, fazem do homem, do
indivíduo, do sujeito, um objeto. Mas a prisão é a principal instituição estudada por
Foucault a fim de investigar as transformações operadas na sociedade ocidental com
relação à disciplina. Em Vigiar e punir, Foucault estuda a emergência da prisão e da
vigilância normalizadora, enquanto encarnações da tecnologia moderna do poder
disciplinar, mediante o que a sociedade trata os criminosos como objetos a serem
manipulados.
Foucault investiga inicialmente a extensão alcançada pela prisão nos regimes
penais ocidentais. A partir do século XIX, todos os gêneros de criminosos são
condenados à mesma pena: a prisão. Foucault se interroga então como a prisão
conseguiu impor a sua evidência penal. No antigo regime, a prisão não constituía uma
pena, era apenas um meio através do qual se assegurava o corpo do réu. No entanto,
alguns anos depois, a prisão torna-se uma técnica punitiva quase exclusiva e, ao
mesmo tempo que se constata, na primeira metade do século XIX, a extensão desse
modo de punição, denunciam-se os seus efeitos, isto é, sabe-se que não há
reintegração social de quem sai da prisão. Tal extensão alcançada pela prisão, ao

7
Foucault, Michel. Vigiar e punir-nascimento da prisão, p.23.
102

longo do século XIX, é ainda mais enigmática quando se consideram as grandes


mudanças teóricas sofridas pelo direito penal no fim do século XVIII. Constata-se
então uma nova definição do crime sem qualquer referência à moral ou à religião.
Pensa-se o crime como dano social e o criminoso é considerado um inimigo da
sociedade. O crime passa a ser percebido como a violação dos termos de um contrato,
cuja vítima é a sociedade em sua totalidade. Com isso, as penas são redefinidas de
acordo com a sua utilidade social. Calculam-se as penas tendo em vista a
exemplaridade e o ressarcimento do dano causado à sociedade pela infração. A
técnica punitiva funciona no nível da representação e torna-se possível desenvolver
uma tecnologia que permite ordenar corretamente ou reordenar a vida social. Para
esses teóricos, o tipo ideal de punição não é nem a tortura como na época precedente,
nem a prisão, mas os trabalhos públicos.
Tal teoria, portanto, é totalmente oposta às antigas cerimônias do suplício, nas
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quais a tortura pública era um ritual político, uma vez que a lei era considerada como
símbolo da vontade do soberano. Embora no suplício se pudesse encontrar a idéia de
publicidade da pena, esta se destinava a compensar o soberano lesado. Ora, tal
soberania era a soberania real e não a soberania popular definida pelo contrato social.
Com efeito, era o próprio rei que, ofendido pelo crime, se vingava dessa ofensa pela
manifestação visível da sua força, de modo que o corpo supliciado se destinava a
mostrar a verdade do crime cometido e a superioridade da força do rei atingido pela
infração.
No entanto, apesar de não ser mencionada na teoria do crime como ruptura do
pacto social, a prisão torna-se, no decorrer do século XIX, o mecanismo punitivo
dominante, impondo a cor cinza da sua monotonia e não se relacionando com a
utilidade social, mas com o controle e com a correção dos comportamentos
individuais. Foucault constata então que se a prisão pode tornar-se tão rápida e
naturalmente um meio exclusivo de punição é porque ela se enraíza profundamente
na lógica das sociedades ocidentais modernas e para dar conta da prisão em sua
evidência punitiva, Foucault desvia a sua investigação para a formação, na idade
clássica, das sociedades disciplinares.
103

Ao comentar a importância da reorganização dos mecanismos de poder como


condição fundamental para a compreensão dessa evidência penal da prisão, Frédéric
Gros observa que:

A submissão dos corpos e o controle dos gestos, o princípio de vigilância exaustivo, a


empresa de correção dos comportamentos e de normalização das existências, a
constituição de um corpo útil e vinculado à ferramenta de produção, a formação de
um saber ( ciências humanas) dessas individualidades regradas e submissas, todo esse
conjunto participa de uma vasta técnica geral de poder que progressivamente se
estende e se intensifica nas nossas sociedades contemporâneas.8

A forma de punição característica da prisão é considerada eficaz quando


produz corpos dóceis e úteis. Tal punição tem por objetivo uma modificação do
comportamento do corpo e da alma por meio da aplicação precisa de técnicas de
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poder e de saber. Trata-se de adestrar, de exercitar e de vigiar o corpo do criminoso.


Mas a prisão é apenas um exemplo dessa tecnologia da disciplina, da vigilância e do
castigo, não passando de uma expressão claramente articulada de práticas mais gerais
que visam disciplinar os indivíduos e as populações.
O que interessa a Foucault são as próprias técnicas disciplinares. A disciplina
é uma técnica que funciona de modo a ser recuperada e utilizada em determinadas
instituições, mas ela não se reduz a essas instâncias. A disciplina, para Foucault, é
uma tecnologia política do corpo. A disciplina opera essencialmente sobre os corpos e
o que caracteriza as sociedades disciplinares é a forma do controle do corpo, na qual
este é percebido como objeto a ser analisado e fragmentado. A tecnologia disciplinar
visa forjar um corpo dócil, que pode ser submetido, utilizado, transformado e
aperfeiçoado. A disciplina é uma anatomia política, na qual o corpo é repartido no
espaço e no tempo; o comportamento é controlado desde materialidade do gesto; e as
forças são combinadas num acúmulo. Toda essa tecnologia do poder disciplinar
fabrica um corpo dócil e submisso, um corpo útil, reduzido a uma pequena
individualidade controlável. Trata-se da elaboração de um micropoder fundado no
corpo como objeto a ser manipulado. A disciplina utiliza um certo número de

8
Gros, Frédéric. Michel Foucault, p.66.
104

técnicas e estratégias que transformam o ser humano num objeto a ser modelado e
não num sujeito a ser escutado. E Foucault procura analisar as sociedades
disciplinares no nível de uma microfísica do poder, examinando as técnicas
meticulosas que forjam e adestram o corpo numa objetivação do sujeito.
A disciplina, portanto, individualiza, ao mesmo tempo que controla o corpo.
Ela fabrica indivíduos enquanto técnica específica de um poder que toma os
indivíduos como objetos e como instrumentos para o seu exercício. Trata-se de extrair
do corpo, através de um sistema de sanções e recompensas, uma conduta
normalizada. E para tanto ela opera por meio de uma vigilância hierárquica
combinada com uma sanção normalizadora, dois instrumentos associados num
procedimento específico ao poder disciplinar, o exame. O objetivo da vigilância é
fazer da mesma um elemento indissociável da produção e do controle. A vigilância
hierárquica que se aplica e que se sofre é uma das técnicas principais para assemelhar
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os indivíduos no interior do espaço disciplinar. No entanto, para que o sistema


disciplinar funcione faz-se necessário um critério que permita unificar as operações,
consolidando as suas sanções de um modo específico. Tal critério é a sanção
normalizadora definida como uma espécie de micropenalidade do tempo, da
atividade, do modo de ser, dos discursos, do corpo e da sexualidade. Ora, a norma
tenta atingir a interioridade das condutas individuais, investindo a totalidade da
existência, de forma difusa, sinuosa e indireta. Com essa especificação das condutas
mais tênues da vida cotidiana, tudo se torna penalizável e objeto da atenção
disciplinar. E a micropenalidade dos sistemas disciplinares constitui a instância de
inscrição das condutas normalizadas no corpo, revezada por um dispositivo de saber
que difunde e instila essas normas, enunciando-as como verdades das condutas
prescritas pelo poder disciplinar. Foucault parece dizer que, após o século XIX, a
verdade é normalizadora e que é a norma que define o acesso à verdade. E o exame
aparece como a forma verídica do poder disciplinar, sendo precisamente em suas
técnicas que as ciências humanas irão procurar os seus métodos. O exame combina
as técnicas da vigilância e da sanção normalizadora, unindo num mesmo
procedimento as duas formas de poder e saber possuídas pelo indivíduo e
105

manifestando a sujeição dos que são percebidos como objetos e a objetivação dos que
são assujeitados.
O poder disciplinar, através do exame, procura manter-se invisível na medida
em que impõe a seus objetos uma maior visibilidade. Tal visibilidade, correlata da
vigilância, constitui o elemento chave da tecnologia disciplinar. Além disso, através
do dossier, o exame transforma cada indivíduo em caso e, portanto, em objeto de
conhecimento. A vigilância permite a individualização de todos os que são
submetidos ao controle, na medida em que o exame produz dossiers com observações
extremamente detalhadas. E não apenas o poder introduz a individualidade no campo
de observação, mas ele também fixa essa individualidade objetivamente no campo da
escritura. A constituição de um vasto aparelho de documentação constitui um
elemento essencial da extensão do poder que aplica seu saber, suas investigações,
suas técnicas, não ao universal, mas ao indivíduo como objeto e efeito de um
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entrecruzamento entre o poder e o saber. Este indivíduo é resultado de


desenvolvimentos estratégicos e múltiplos no campo do poder e no das ciências
humanas.
Em Vigiar e punir, Foucault se pergunta sobre o nascimento das ciências
humanas da seguinte maneira: “O nascimento das ciências humanas? Aparentemente
ele deve ser procurado nesses arquivos de pouca glória onde foi elaborado o jogo
moderno das coerções sobre os corpos, os gestos, os comportamentos.”9
Segundo Foucault, as ciências humanas constituíram-se inicialmente no interior de
instituições de poder como os hospitais e as prisões. Tais instituições necessitavam de
discursos e de práticas novos que foram desenvolvidos por essas pseudo-ciências
dentro do contexto mais amplo da tecnologia disciplinar. Isso significa que a prisão e
as ciências humanas desenvolveram-se numa mesma matriz histórica, a das
tecnologias de poder-saber investidas na prisão. A esse respeito, Foucault observa
que:

Não quer dizer que da prisão saíram as ciências humanas. Mas se elas puderam se
formar e produzir na épistémê todos os efeitos de profunda alteração que
conhecemos, é porque foram levadas por uma modalidade específica e nova de

9
Foucault, Michel. Vigiar e punir-nascimento da prisão, p.159.
106

poder: uma certa política do corpo, uma certa maneira de tornar dócil e útil a
acumulação dos homens. Esta exigia a implicação de correlações definidas de saber
nas relações de poder; reclamava uma técnica para entrecruzar o sujeição e a
objetivação; incluia novos procedimentos de individualização. A rede carcerária
constitui uma das armaduras desse poder-saber que tornou historicamente possíveis
as ciências humanas. O homem conhecível ( alma, individualidade, consciência,
comportamento, aqui pouco importa) é o efeito-objeto desse investimento analítico,
dessa dominação-observação.10

O nascimento das ciências humanas, no século XIX, portanto, pode ser explicado pela
afirmação de um poder disciplinar em sua apreensão das condutas corporais. O
exame, nas instituições mais diversas, assegura a projeção dos corpos dóceis sobre
um plano de objetividade. Mas não se trata de afirmar que as ciências humanas sejam
o reflexo ideológico de uma apreensão do corpo. Poder e saber, para Foucault,
constituem um mesmo sistema histórico, onde a realidade do corpo é autenticada por
sua objetivação nos saberes e a realidade dos saberes tem seu domínio de objetos
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aberto por técnicas de poder. De acordo com Foucault, o sistema saber-poder


equivale a um domínio da realidade histórica que se especifica em verdades objetivas
regradas pela norma e em materialidades corporais investidas pela tecnologia
disciplinar.
Se a micropenalidade pode ser considerada um instrumento da normalização
das condutas, o princípio da vigilância e do controle é como que a garantia da
submissão do corpo a uma, por assim dizer, maquinaria de poder. A fim de estudar a
disciplina, Foucault descreve dispositivos de poder, nos quais o comportamento
regrado aparece como o produto de uma mecânica anônima de poder. Um exemplo é
a descrição cuidadosa do panóptico de Bentham empreendida por Foucault.
Foucault toma o panóptico de Jeremy Bentham como modelo exemplar da
tecnologa disciplinar. Este pode ser aplicado a uma multiplicidade de instituições e de
problemas. Segundo Foucault, o panóptico é “o diagrama de um mecanismo de poder
conduzido a sua forma ideal.”11
O panóptico é composto de um pátio com uma torre no centro e com uma
construção em forma de anel, na periferia, dividida em níveis e celas. Cada cela tem
duas janelas. Uma permite que a luz atravesse a cela por inteiro e a outra dá para a
10
Foucault, Michel. Vigiar e punir-nascimento da prisão, p.252.
11
Foucault, Michel. Vigiar e punir-nascimento da prisão, p.253.
107

torre composta de largas janelas que permitem a vigilância das celas. É suficiente,
então, colocar um vigilante na torre central e em cada cela fechar um louco, um
condenado, um doente, um trabalhador ou um aluno. Na cela, o detido está só,
perfeitamente individualizado e constantemente visível. Ele se torna visível ao
vigilante e não tem qualquer contato com as celas vizinhas. O detido, no panóptico, é
objeto de informação e nunca sujeito de comunicação. O efeito do panóptico é induzir
no detido um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o
funcionamento automático do poder.
O panóptico não é apenas um procedimento sutil e eficaz de controle dos
indivíduos, mas é também uma espécie de laboratório para a sua transformação. Ele
assemelha o poder, o saber, o controle do corpo e do espaço no interior de uma
mesma tecnologia de disciplina. Através dele, é possível localizar o corpo no espaço,
repartir os indivíduos, organizar a hierarquia, administrar com eficácia o núcleo
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central e as redes de poder. O panóptico é uma tecnologia de individualização dos


grupos que pode ser aplicada onde quer que seja necessário assujeitar os indivíduos e
a população a uma grade que os torne produtivos e observáveis.
A tecnologia do panóptico percebe, permite e resume a tendência do poder de
ser despersonalizado, difuso, relacional, anônimo e, ao mesmo tempo, totalizador das
diversas dimensões da vida social. Isso faz com que o panóptico constitua o modelo
exemplar do poder disciplinar, o modelo de um ritual meticuloso de poder que,
através do seu funcionamento, estabelece o lugar onde uma tecnologia política do
corpo pode funcionar.
A tecnologia disciplinar impõe progressivamente o seu critério de
normalização como o único modelo, ao qual se sacrificam a lei e outras normas
exteriores ao poder. Tal tendência é particularmente clara no sistema penitenciário.
Segundo Foucault, o tema do panóptico encontrou na prisão o lugar privilegiado para
a sua realização e a concentração dos procedimentos panópticos favoreceu a
emergência e a aplicação, nas prisões, de determinadas disciplinas intelectuais. O
novo sistema penitenciário, surgido, na Europa, no século XIX, serviu como um
laboratório para a constituição de um corpo de saber sobre o crime e o criminoso e
108

pode ser considerado como o lugar ideal para a transformação do indivíduo em objeto
da nova pesquisa científica e do poder disciplinar.
A emergência da sociedade disciplinar deve ser compreendida tomando como
referência os grandes movimentos históricos das populações e das riquezas. A
disciplina constitui uma nova economia do poder que se apresenta como uma
tentativa de majoração dos efeitos de poder em sua extensão, intensidade e
continuidade e se integra nos novos mecanismos de produção desenvolvidos pelo
capitalismo. Isso porque o corpo dócil forjado pela disciplina é o corpo do
trabalhador vinculado à máquina de produção. Desse modo, a tecnologia disciplinar
ganha sentido no ajustamento do corpo às normas de produção.
Ao estudar os mecanismos da sociedade disciplinar, Foucault propõe uma
outra imagem do poder. Segundo Gilles Deleuze12, Foucault é o primeiro a formular
uma nova concepção de poder que desse conta do que caracterizou o gauchisme : um
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questionamento do problema do poder, dirigido tanto contra o marxismo quanto


contra as concepções burguesas, na forma de lutas locais, específicas, cujas relações e
a unidade necessária só poderiam vir de uma transversalidade.
Em Vigiar e punir, Foucault sugere o abandono de certos postulados que
marcaram a posição tradicional da esquerda: o postulado da propriedade; o postulado
da localização; o postulado da subordinação; o postulado da essência ou do atributo; o
postulado da modalidade e o postulado da legalidade.
Foucault abandona o postulado da propriedade, segundo o qual o poder seria
uma propriedade de uma classe que o teria conquistado. Foucault mostra, então, que o
poder não é uma propriedade, mas uma estratégia, cujos efeitos não podem ser
atribuídos a uma apropriação, mas a disposições, manobras, táticas, técnicas e
funcionamentos, de modo que ele se exerce mais do que se possui. Isso não nega a
existência das classes e de suas lutas, mas traça um outro quadro das mesmas.
Foucault abandona o postulado da localização, segundo o qual o poder, sendo
poder do estado, seria localizado no aparelho estatal. Foucault mostra, então, que o
estado seria o efeito de conjunto ou a resultante de uma multiplicidade de
engrenagens e de focos situados em um outro nível. Para Foucault, as sociedades

12
Deleuze, Gilles. Foucault, pp 31 - 51.
109

modernas se definem como sociedades disciplinares e a disciplina não se identifica


com uma instituição ou com um aparelho porque ela é um tipo de poder, uma
tecnologia que atravessa os aparelhos e as instituições, fazendo com que funcionem
de uma outra maneira. O poder, segundo Foucault, é local, no sentido em que ele
nunca é global, mas, ao mesmo tempo, ele não é global ou localizável porque é
difuso.
Foucault abandona ainda o postulado da subordinação, segundo o qual o poder
seria subordinado a um modo de produção como a uma infra-estrutura. Embora seja
possível traçar uma correspondência entre os regimes punitivos e os sistemas de
produção, é difícil ver na mesma uma determinação econômica em última instância.
Isso porque é toda a economia, por exemplo, o atelier, a usina, que pressupõe os
mecanismos de poder em sua ação sobre os corpos e as almas, sobre as forças
produtivas e as relações de produção.
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Foucault abandona o postulado da essência ou do atributo, segundo o qual o


poder seria uma essência ou um atributo qualificador dos que o possuem. Para
Foucault, o poder não tem essência, mas é operatório e não é atributo, mas relação. A
relação de poder, segundo Foucault, é o conjunto de relações de forças que passa
pelos tanto pelos dominantes quanto pelos dominados.
Foucault abandona ainda o postulado da modalidade, segundo o qual o poder
agiria por violência ou ideologia, reprimindo ou enganando. Segundo Foucault, o
poder não age por ideologia, mesmo quando ele atinge as almas e não age por
violência, mesmo quando ele pesa sobre o corpo. Foucault não ignora nem a
repressão, nem a ideologia, mas, para ele, elas não constituem a luta de forças, mas a
poeira levantada pelo combate.
Foucault abandona também o postulado da legalidade, segundo o qual o poder
do estado se exprimiria na lei, concebida como a cessação de um conflito, e se oporia
a ilegalidade, por exclusão. Foucault substitui esta oposição lei-ilegalidade por uma
correlação ilegalismos-leis, segundo a qual a lei consiste numa composição de
ilegalismos que ela diferencia na medida em que os formaliza. Para Foucault, a lei é
uma gestão de ilegalismos: alguns que ela permite, possibilita ou inventa como
privilégios da classe dominante; outros que ela tolera como compensação para as
110

classes dominadas ou que ela faz servir à classe dominante; e outros que ela interdita,
isola e toma como objeto, mas também como meio de dominação.
Segundo Gilles Deleuze, em Vigiar e punir, Foucault repensa determinadas
noções e propõe assim novas coordenadas para a prática: uma outra teoria, uma outra
prática de luta, uma outra organização estratégica são as implicações desse livro de
Foucault.

4.2
A objetivação do sujeito em A vontade de saber
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Depois de Vigiar e punir, Foucault organiza seu trabalho na década de setenta,


entrecruzando dois conceitos: o de hipótese repressiva e o de biopoder. No primeiro
volume da História da sexualidade, A vontade de saber, Foucault ataca a hipótese
repressiva, isto é, a formulação, segundo a qual, a verdade se opõe intrinsecamente ao
poder e desempenha um papel de agente liberador. A fim de neutralizar a hipótese
repressiva, Foucault desenvolve uma interpretação das relações entre sexo, verdade,
poder, corpo e indivíduo, denominando essa síntese de biopoder.
Segundo a hipótese repressiva, a sociedade européia passou de um período,
aonde o corpo e o discurso sobre o sexo se expressavam com certa liberdade, para um
período de repressão e moralismo crescentes. Para Foucault, aqueles que acatam a
hipótese repressiva foram seduzidos pela facilidade com a qual se pode fazer
coincidir o crescimento da repressão e a ascensão do capitalismo. Igualmente
sedutora na hipótese repressiva é a idéia de que liberação sexual ou a resistência à
repressão seria o resultado de uma luta política desafiadora contra os poderes
estabelecidos. Ora, isso indica que a hipótese repressiva está ancorada numa tradição
para quem o poder é constrangimento, negatividade e coerção, uma tradição para
quem as forças do poder impedem a formação do saber na medida em que funcionam
111

como um instrumento de repressão e de interdição da verdade e, portanto, de negação


da mesma. Para essa tradição, a verdade do discurso se opõe ao poder enquanto
repressão e a verdade e o poder são radicalmente estranhos um ao outro. Daí que o
dizer a verdade corresponda a desafiar transgressivamente o poder repressivo.
Foucault define essa representação do poder como jurídico-discursiva. De acordo
com essa representação jurídico-discursiva, o poder é dominação e interdição, é
repressão e a repressão corresponde à imposição da lei que exige a submissão. Para
Foucault, essa visão do poder faz parte do discurso característico das sociedades
modernas, em razão do que ele chama de benefício do locutor, por meio do qual, o
locutor faz pose de intelectual universal, invoca um futuro libertador, diz a verdade e
promete o prazer, instalando–se num lugar privilegiado: fora do poder, mas dentro da
verdade. Foucault recusa, portanto, em A vontade de saber, a concepção do poder
como uma instância repressiva.
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Foucault questiona a hipótese repressiva, procurando empreender uma


genealogia da mesma. Investiga, então, como ela apareceu e que papel ela
desempenha na sociedade moderna. Para tanto, ele vai interpretar seus componentes
como elementos essenciais do jogo que se opera entre a verdade e o poder na época
moderna.
Em sua genealogia da hipótese repressiva, Foucault situa, no século XVII, o
aparecimento do biopoder como uma tecnologia política coerente. Essa é a época em
que o cuidado com a vida e o crescimento das populações tornam-se uma
preocupação central do Estado e em que surge uma nova forma de prática e de
racionalidade política. Foucault mostra que o biopoder se constituiu, no início da
época clássica, em torno de dois pólos principais, que permaneceram distintos até o
século XIX, quando se confundem para formar as tecnologias de poder atuais. O
primeiro pólo diz respeito à espécie humana. O segundo diz respeito ao corpo
enquanto objeto a ser manipulado. Os esforços para compreender cientificamente a
espécie humana tornam-se objeto de atenção política e uma tecnologia do corpo como
objeto de poder toma forma, o poder disciplinar. Esses dois pólos do biopoder _
controle da espécie e controle do corpo_ são reunidos numa preocupação do século
XIX com o sexo. Com efeito, nessa época, novas formas de poder entram em jogo,
112

instaurando um discurso sobre o sexo e introduzindo novas táticas de controle das


práticas sexuais. O sexo se torna a construção por meio da qual o poder reúne a
vitalidade do corpo à das espécies. Essa colocação do sexo em discurso, Foucault vai
denominar de dispositivo da sexualidade, afirmando que a emergência desse discurso
faz parte do processo de expansão do biopoder.
Para Foucault, a sexualidade é um dispositivo histórico. Ao longo do século
XIX, a sexualidade se torna objeto de investigação científica, de controle
administrativo e de preocupação social. Liga-se então à emergência de uma estratégia
de poder que juntou o indivíduo e a população na expansão do biopoder, da qual a
sexualidade é, ao mesmo tempo, o instrumento e o efeito. Com o dispositivo da
sexualidade, o biopoder passa a atingir o corpo e a alma do indivíduo, operando por
meio de uma tecnologia particular, a confissão por meio da introspecção ou do
discurso. Tal tecnologia assemelha o corpo, o saber, o discurso e o poder num lugar
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comum, o biopoder.
Segundo Foucault, em paralelo à clássica passagem de uma sexualidade
relativamente livre a uma sexualidade reprimida, nos séculos XVIII e XIX, aconteceu
uma proliferação sem precedentes de discursos e de reflexões sobre o sexo. Mais do
que a história de uma repressão, Foucault mostra que houve como que uma grande
injunção polimorfa a falar de sexo para melhor canalizá-lo. O sexo se torna qualquer
coisa a ser dita. Mais do que censura, dever-se-ia falar de uma vasta incitação ao
discurso.
Além disso, Foucault não considera a liberação ou a identidade sexual como
independentes das relações de dominação em nossa sociedade, visto que, para ele, a
repressão não é a forma mais geral de dominação. Com efeito, a idéia de que se
resiste à repressão, seja dizendo a verdade, seja conhecendo a si mesmo, mantém a
dominação, já que oculta o modo de funcionamento do poder.
No início do século XVIII, a sexualidade se torna um discurso ligado aos
discursos e às práticas de poder. Surge então uma incitação para se falar de sexo,
correlativa à preocupação da administração com o bem estar da população, e a
atividade sexual se submete a classificações empíricas e científicas no contexto mais
113

amplo do cuidado com a vida. Isso é ilustrado pelo surgimento nessa época de um
interesse no estudo estatístico da população.
No século XVIII, a noção de população faz a ligação da questão do sexo com
a questão do poder. Já, no século XIX, o discurso sobre o sexo é reformulado em
termos científicos, dando lugar à explosão de discursos sobre a sexualidade. Isso liga
a sexualidade a uma forma de saber e permite que se estabeleçam conexões entre o
indivíduo, o grupo, o sentido e o controle. Progressivamente, a sexualidade passa a
ser considerada a essência mesma do indivíduo, o núcleo da identidade pessoal. A
sexualidade se torna, então, o lugar do desdobramento de um desejo que funciona
como revelador da verdade do sujeito desejante, de modo que o sexo coloca em jogo
um sujeito e a verdade do seu desejo. O indivíduo é persuadido de que através da
confissão ele poderia conhecer-se a si mesmo. E os segredos do corpo e da alma
passam a ser conhecidos graças aos médicos, aos psiquiatras e a todos a quem se
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confiam os pensamentos e as práticas relacionados ao sexo.


Foucault considera a confissão, particularmente a confissão que o indivíduo
faz da sua sexualidade, um componente essencial das tecnologias desenvolvidas para
controlar e disciplinar o corpo, a população e a sociedade. O objetivo da investigação
de Foucault em torno da confissão é compreender como funciona essa tecnologia,
estudar o tipo de discurso e as técnicas que supostamente revelam o eu profundo do
indivíduo. Essa promessa de revelação do eu exerceu historicamente um poder de
sedução que provocou a sujeição a relações de poder que são mal percebidas e das
quais é difícil se liberar. O desejo do indivíduo de conhecer a verdade sobre si mesmo
o incita à confissão que é colocada em discurso, instaurando um conjunto de relações
de poder entre o indivíduo e aqueles que interpretam o seu discurso e se sentem
capazes de extrair a verdade do mesmo.
Foucault investiga o papel da ciência nas relações entrecruzadas entre a
confissão, a verdade e o poder. Isso porque em razão do desenvolvimento de métodos
científicos, o indivíduo tornou-se um objeto de conhecimento para si mesmo e para os
outros, um objeto que diz a verdade sobre si mesmo a fim de conhecer-se e de ser
conhecido. Esse processo no qual a ciência se integra nas tecnologias do eu é próximo
ao das tecnologias disciplinares que transformam o indivíduo em corpo dócil e mudo.
114

O poder, para Foucault, não é nem violência, nem coerção, mas um jogo entre as
tecnologias disciplinares e as tecnologias do eu.
A tecnologia do eu opera a partir da crença de que o indivíduo pode, com a
ajuda de peritos, dizer a verdade sobre si mesmo. Isso acontece na medicina, nas
ciências psiquiátricas, na justiça, na educação, nas relações amorosas. A idéia de que
a confissão permite a descoberta da verdade se expressa fortemente no interesse
contemporâneo com relação à sexualidade. Com efeito, é no corpo e em seus desejos
que reside a forma mais profunda de verdade sobre o indivíduo. É por isso que desde
a penitência cristã até as ciências da sexualidade, segundo Foucault, os desejos do
corpo são considerados a matéria privilegiada da confissão. Foucault define essa
evolução como uma injunção para transformar em discurso os desejos do corpo e da
alma.
Essa injunção à confissão dos desejos foi se multiplicando, ao longo da
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história, e refinando os seus procedimentos. Desde o século XIII, quando se ordenava


aos cristãos a confissão, pelo menos uma vez por ano, da totalidade de seus pecados,
as coisas se transformaram. O campo e o lugar da confissão se ampliaram, pois, desde
o século XVI, a confissão passou a se estender a outros domínios que não os
religiosos e, desde as suas origens cristãs até a atualidade, a confissão se tornou uma
tecnologia geral de poder. Da preocupação cristã com o sexo, surgiu a pressuposição
de que o sexo é significante e de que o indivíduo deve confessar seus pensamentos e
práticas sexuais se ele quer conhecer o estado da sua alma. Para Foucault, no entanto,
é no século XIX, principalmente, que a confissão é inserida na matriz do poder. Nessa
época, o indivíduo é persuadido de que ele deve confessar seus desejos a
determinadas autoridades, os médicos, os psiquiatras e os pesquisadores das ciências
humanas.
No século XIX, verifica-se um cruzamento entre a sexualidade e as ciências
humanas. A medicina, a psiquiatria e a pedagogia colocam o desejo no discurso
científico. Segundo Foucault, os teóricos das ciências humanas estabeleceram uma
conexão entre a produção de verdade e as práticas do poder por intermédio do sexo.
O sexo constitui, então, a unidade histórica por meio da qual é possível ligar as
ciências humanas às práticas normativas do biopoder.
115

A expansão da tecnologia da confissão constitui uma série de ciências, onde


os métodos clínicos do exame e da escuta tornam a sexualidade um campo de
significação. Nessas ciências, determinados métodos de exame exigiram do sujeito
que ele se exprimisse na presença de uma autoridade com poderes para interpretar o
seu discurso. A criação de uma estrutura científica para dar conta do sexo implica que
apenas aquele que recebeu uma formação científica é capaz de compreender o que é
dito. No paradigma da confissão, quanto mais o sujeito fala, mais a ciência progride,
mas o sujeito não é o árbitro final do seu discurso, uma vez que ele não conhece e
nem pode conhecer o enigma da sua própria sexualidade. Apenas um outro pode fazer
aparecer a verdade da sexualidade do sujeito. Desse modo, a função do cientista que
escuta o discurso é decifrá-lo, constituindo, por meio da interpretação da confissão,
um discurso de verdade. A interpretação e o sujeito se implicam mutuamente: as
ciências interpretativas partem da hipótese de que existe uma verdade profunda que é,
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a um tempo, conhecida e escondida e a função do intérprete é a de trazer essa verdade


ao discurso. Uma parte do poder das ciências interpretativas diz respeito ao fato de
elas se dizerem capazes de revelar a verdade do psiquismo do sujeito, da sua cultura e
da sua sociedade, pretendendo, ao mesmo tempo, que a verdade descoberta escape ao
campo do poder. Mas, embora essas ciências se considerem numa posição de
exterioridade com relação ao poder, o fato é que elas são parte integrante do poder e
de seus dispositivos. A esse respeito, Foucault observa que: “Ironia deste dispositivo:
é preciso acreditarmos que nisso está nossa liberação”13
Foucault contesta, neste primeiro volume da História da sexualidade, a
imagem de uma mecânica repressiva do poder. Em A vontade de saber, o poder não é
concebido como uma instância de interdição, mas como uma instância de produção
de saberes, como foi visto anteriormente, e também de formas de sexualidade. Isso
porque essa colocação do sexo em discurso, além de constituir determinadas ciências,
se acompanha da invenção de novas formas de sexualidade. Ao se procurar, por meio
da confissão, detectar formas recalcadas de sexualidade, acaba-se por suscitá-las. Até
o século XVIII, os códigos jurídicos contemplavam apenas a sexualidade do casal e
as formas inaceitáveis de sexualidade não eram denunciadas como desvios com

13
Foucault, Michel. História da sexualidade I – a vontade de saber, p.149.
116

relação à norma, mas eram condenadas como infrações jurídicas. A partir do século
XIX, inventam-se perversões relativamente a uma norma natural. A
homossexualidade e a infidelidade, por exemplo, não são mais consideradas
transgressões de códigos jurídicos, mas uma natureza viciada. E a sexualidade
desviante não é mais da competência dos juízes, mas dos cientistas que detêm as
normas.14
É assim que o desenvolvimento das ciências humanas e seus métodos e das
chamadas sexualidades periféricas expandem a confissão a domínios em que as
relações de poder e saber atuam no sentido de transformar o indivíduo, o sujeito, em
objeto de conhecimento para si mesmo e para os outros. A tecnologia disciplinar
objetivava o sujeito, transformando-o num corpo dócil e mudo; já a tecnologia da
confissão transforma o sujeito num objeto que deve falar, transformando-o, ao mesmo
tempo, no sujeito de uma sexualidade. Ora, essa objetivação, seguida da formação de
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uma subjetividade, foi permitida pela confissão, enquanto tecnologia de extração e


formulação da verdade. Tal objetivação-subjetivação é como que o resultado direto
do dispositivo da sexualidade, o agenciamento concreto possibilitado pelo controle,
pela disciplinarização e pela normalização dos corpos, das populações e da sociedade,
através do qual foi possível articular os elementos essenciais do biopoder, como o
corpo, os discursos, o saber e o poder.

14
Na década de setenta, Foucault desenvolve a sua análise em duas direções. Na primeira
direção, Foucault vai empreender uma microfísica do poder ou uma anatomopolítica, investigando as
estratégias e as práticas por meio das quais o poder modela cada indivíduo. Na segunda direção,
Foucault vai investigar uma biopolítica, isto é, a gestão política da vida. Em sua análise da disciplina,
Foucault constata que as disciplinas são exteriores ao discurso jurídico da lei. Com efeito, as
disciplinas implicam um discurso sobre a regra natural, sobre a norma. Entre o século XVIII e o XIX,
as disciplinas definem um código que não é o da lei, mas o da normalização, referindo-se a um
horizonte teórico que não é mais o do direito, mas o campo das ciências humanas. A norma
corresponde à emergência de um biopoder que se aplica, a um tempo, aos indivíduos e as populações,
correspondendo a uma configuração de poder que é a do século XX

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