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Foucault
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Capítulo I: A objetivação do sujeito por práticas disciplinares
e normalizadoras1
práticas a partir de seu próprio interior, ele introduz o método genealógico, ao qual o
método arqueológico passa a se subordinar . Foucault inaugura então um nível novo
de inteligibilidade e introduz um novo método que lhe permite, além de
complementar prática e teoria, mostrar que a teoria é um componente essencial por
meio do qual a prática opera.
Em sua aula inaugural no Collège de France, em 1970, intitulada A ordem do
discurso, Foucault afirma existir uma relação de complementaridade entre a
arqueologia e a genealogia, já que o método genealógico se apóia no arqueológico e
completa o mesmo. A esse respeito, Foucault observa que:
Quanto ao aspecto genealógico, este concerne à formação efetiva dos discursos, quer
no interior dos limites do controle, quer no exterior, quer, a maior parte das vezes, de
um lado e de outro da delimitação. A crítica analisa os processos de rarefação, mas
também de reagrupamento e de unificação dos discursos; a genealogia estuda sua
formação ao mesmo tempo dispersa, descontínua e regular. Na verdade, estas duas
tarefas não são nunca inteiramente separáveis; não há, de um lado, as formas da
rejeição, da exclusão, do reagrupamento ou da atribuição; e, de outro, em nível mais
profundo, o surgimento espontâneo dos discursos que, logo antes ou depois de sua
manifestação, são submetidos à seleção e ao controle ( ... ) Assim, as descrições
críticas e as descrições genealógicas devem alternar-se, apoiar-se umas nas outras e
se completarem. 2
2
Foucault, Michel. A ordem do discurso, p.69.
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Foucault procura, nessa aula, esquivar a materialidade do discurso, uma vez que o
mesmo, enquanto campo de existência anônimo e lacunar, se encontra, ao mesmo
tempo, diretamente articulado a práticas históricas, não podendo mais ser reportado a
um sujeito constituinte, nem a uma origem que lhe prescreva um desdobramento
temporal. E a genealogia tentará reconstituir a história dos saberes, através de um
diagnóstico das relações entre poder, saber e corpo na modernidade, devolvendo ao
discurso a sua existência própria, irredutível às sínteses antropológicas.
Em Nietzsche, a genealogia e a história, ensaio redigido em 1971, Foucault
afirma que a genealogia se opõe ao método histórico tradicional, procurando situar a
singularidade dos acontecimentos longe de toda finalidade monótona. Ora, assim
como a arqueologia, a genealogia procura evidenciar as descontinuidades lá onde foi
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Foucault, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Machado, Roberto. Microfísica do poder,
p.27.
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Foucault, Michel. Vigiar e punir- nascimento da prisão, p.25.
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Seria talvez preciso também renunciar a toda uma tradição que deixa imaginar que só
pode haver saber onde as relações de poder estão suspensas e que o saber só se pode
desenvolver fora de suas injunções, suas exigências, seus interesses. Seria talvez
preciso renunciar a crer que o poder enlouquece e que em compensação a renúncia ao
poder é uma das condições para que se possa tornar-se sábio. Temos antes que
admitir que o poder produz saber ( e não simplesmente favorecendo-o porque o serve
ou aplicando-o porque é útil ); que poder e saber estão diretamente implicados; que
não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber
que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder. Essas relações
de “poder-saber” não devem então ser analisadas a partir de um sujeito do
conhecimento que seria ou não livre em relação ao sistema de poder; mas é preciso
considerar ao contrário que o sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as
modalidades de conhecimentos são outros tantos efeitos dessas implicações
fundamentais do poder-saber e de suas transformações históricas. Resumindo, não é a
atividade do sujeito de conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao
poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam e o constituem,
que determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento.5
5
Foucault, Michel. Vigiar e punir-nascimento da prisão, p. 27.
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Queria ver como estes problemas de constituição podiam ser resolvidos no interior de
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Foucault, Michel. Verdade e poder. In: Machado, Roberto. Microfísica do poder, p.7.
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4.1
A objetivação do sujeito em Vigiar e punir
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Foucault, Michel. Vigiar e punir-nascimento da prisão, p.23.
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quais a tortura pública era um ritual político, uma vez que a lei era considerada como
símbolo da vontade do soberano. Embora no suplício se pudesse encontrar a idéia de
publicidade da pena, esta se destinava a compensar o soberano lesado. Ora, tal
soberania era a soberania real e não a soberania popular definida pelo contrato social.
Com efeito, era o próprio rei que, ofendido pelo crime, se vingava dessa ofensa pela
manifestação visível da sua força, de modo que o corpo supliciado se destinava a
mostrar a verdade do crime cometido e a superioridade da força do rei atingido pela
infração.
No entanto, apesar de não ser mencionada na teoria do crime como ruptura do
pacto social, a prisão torna-se, no decorrer do século XIX, o mecanismo punitivo
dominante, impondo a cor cinza da sua monotonia e não se relacionando com a
utilidade social, mas com o controle e com a correção dos comportamentos
individuais. Foucault constata então que se a prisão pode tornar-se tão rápida e
naturalmente um meio exclusivo de punição é porque ela se enraíza profundamente
na lógica das sociedades ocidentais modernas e para dar conta da prisão em sua
evidência punitiva, Foucault desvia a sua investigação para a formação, na idade
clássica, das sociedades disciplinares.
103
8
Gros, Frédéric. Michel Foucault, p.66.
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técnicas e estratégias que transformam o ser humano num objeto a ser modelado e
não num sujeito a ser escutado. E Foucault procura analisar as sociedades
disciplinares no nível de uma microfísica do poder, examinando as técnicas
meticulosas que forjam e adestram o corpo numa objetivação do sujeito.
A disciplina, portanto, individualiza, ao mesmo tempo que controla o corpo.
Ela fabrica indivíduos enquanto técnica específica de um poder que toma os
indivíduos como objetos e como instrumentos para o seu exercício. Trata-se de extrair
do corpo, através de um sistema de sanções e recompensas, uma conduta
normalizada. E para tanto ela opera por meio de uma vigilância hierárquica
combinada com uma sanção normalizadora, dois instrumentos associados num
procedimento específico ao poder disciplinar, o exame. O objetivo da vigilância é
fazer da mesma um elemento indissociável da produção e do controle. A vigilância
hierárquica que se aplica e que se sofre é uma das técnicas principais para assemelhar
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manifestando a sujeição dos que são percebidos como objetos e a objetivação dos que
são assujeitados.
O poder disciplinar, através do exame, procura manter-se invisível na medida
em que impõe a seus objetos uma maior visibilidade. Tal visibilidade, correlata da
vigilância, constitui o elemento chave da tecnologia disciplinar. Além disso, através
do dossier, o exame transforma cada indivíduo em caso e, portanto, em objeto de
conhecimento. A vigilância permite a individualização de todos os que são
submetidos ao controle, na medida em que o exame produz dossiers com observações
extremamente detalhadas. E não apenas o poder introduz a individualidade no campo
de observação, mas ele também fixa essa individualidade objetivamente no campo da
escritura. A constituição de um vasto aparelho de documentação constitui um
elemento essencial da extensão do poder que aplica seu saber, suas investigações,
suas técnicas, não ao universal, mas ao indivíduo como objeto e efeito de um
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Não quer dizer que da prisão saíram as ciências humanas. Mas se elas puderam se
formar e produzir na épistémê todos os efeitos de profunda alteração que
conhecemos, é porque foram levadas por uma modalidade específica e nova de
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Foucault, Michel. Vigiar e punir-nascimento da prisão, p.159.
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poder: uma certa política do corpo, uma certa maneira de tornar dócil e útil a
acumulação dos homens. Esta exigia a implicação de correlações definidas de saber
nas relações de poder; reclamava uma técnica para entrecruzar o sujeição e a
objetivação; incluia novos procedimentos de individualização. A rede carcerária
constitui uma das armaduras desse poder-saber que tornou historicamente possíveis
as ciências humanas. O homem conhecível ( alma, individualidade, consciência,
comportamento, aqui pouco importa) é o efeito-objeto desse investimento analítico,
dessa dominação-observação.10
O nascimento das ciências humanas, no século XIX, portanto, pode ser explicado pela
afirmação de um poder disciplinar em sua apreensão das condutas corporais. O
exame, nas instituições mais diversas, assegura a projeção dos corpos dóceis sobre
um plano de objetividade. Mas não se trata de afirmar que as ciências humanas sejam
o reflexo ideológico de uma apreensão do corpo. Poder e saber, para Foucault,
constituem um mesmo sistema histórico, onde a realidade do corpo é autenticada por
sua objetivação nos saberes e a realidade dos saberes tem seu domínio de objetos
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torre composta de largas janelas que permitem a vigilância das celas. É suficiente,
então, colocar um vigilante na torre central e em cada cela fechar um louco, um
condenado, um doente, um trabalhador ou um aluno. Na cela, o detido está só,
perfeitamente individualizado e constantemente visível. Ele se torna visível ao
vigilante e não tem qualquer contato com as celas vizinhas. O detido, no panóptico, é
objeto de informação e nunca sujeito de comunicação. O efeito do panóptico é induzir
no detido um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o
funcionamento automático do poder.
O panóptico não é apenas um procedimento sutil e eficaz de controle dos
indivíduos, mas é também uma espécie de laboratório para a sua transformação. Ele
assemelha o poder, o saber, o controle do corpo e do espaço no interior de uma
mesma tecnologia de disciplina. Através dele, é possível localizar o corpo no espaço,
repartir os indivíduos, organizar a hierarquia, administrar com eficácia o núcleo
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pode ser considerado como o lugar ideal para a transformação do indivíduo em objeto
da nova pesquisa científica e do poder disciplinar.
A emergência da sociedade disciplinar deve ser compreendida tomando como
referência os grandes movimentos históricos das populações e das riquezas. A
disciplina constitui uma nova economia do poder que se apresenta como uma
tentativa de majoração dos efeitos de poder em sua extensão, intensidade e
continuidade e se integra nos novos mecanismos de produção desenvolvidos pelo
capitalismo. Isso porque o corpo dócil forjado pela disciplina é o corpo do
trabalhador vinculado à máquina de produção. Desse modo, a tecnologia disciplinar
ganha sentido no ajustamento do corpo às normas de produção.
Ao estudar os mecanismos da sociedade disciplinar, Foucault propõe uma
outra imagem do poder. Segundo Gilles Deleuze12, Foucault é o primeiro a formular
uma nova concepção de poder que desse conta do que caracterizou o gauchisme : um
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12
Deleuze, Gilles. Foucault, pp 31 - 51.
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classes dominadas ou que ela faz servir à classe dominante; e outros que ela interdita,
isola e toma como objeto, mas também como meio de dominação.
Segundo Gilles Deleuze, em Vigiar e punir, Foucault repensa determinadas
noções e propõe assim novas coordenadas para a prática: uma outra teoria, uma outra
prática de luta, uma outra organização estratégica são as implicações desse livro de
Foucault.
4.2
A objetivação do sujeito em A vontade de saber
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comum, o biopoder.
Segundo Foucault, em paralelo à clássica passagem de uma sexualidade
relativamente livre a uma sexualidade reprimida, nos séculos XVIII e XIX, aconteceu
uma proliferação sem precedentes de discursos e de reflexões sobre o sexo. Mais do
que a história de uma repressão, Foucault mostra que houve como que uma grande
injunção polimorfa a falar de sexo para melhor canalizá-lo. O sexo se torna qualquer
coisa a ser dita. Mais do que censura, dever-se-ia falar de uma vasta incitação ao
discurso.
Além disso, Foucault não considera a liberação ou a identidade sexual como
independentes das relações de dominação em nossa sociedade, visto que, para ele, a
repressão não é a forma mais geral de dominação. Com efeito, a idéia de que se
resiste à repressão, seja dizendo a verdade, seja conhecendo a si mesmo, mantém a
dominação, já que oculta o modo de funcionamento do poder.
No início do século XVIII, a sexualidade se torna um discurso ligado aos
discursos e às práticas de poder. Surge então uma incitação para se falar de sexo,
correlativa à preocupação da administração com o bem estar da população, e a
atividade sexual se submete a classificações empíricas e científicas no contexto mais
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amplo do cuidado com a vida. Isso é ilustrado pelo surgimento nessa época de um
interesse no estudo estatístico da população.
No século XVIII, a noção de população faz a ligação da questão do sexo com
a questão do poder. Já, no século XIX, o discurso sobre o sexo é reformulado em
termos científicos, dando lugar à explosão de discursos sobre a sexualidade. Isso liga
a sexualidade a uma forma de saber e permite que se estabeleçam conexões entre o
indivíduo, o grupo, o sentido e o controle. Progressivamente, a sexualidade passa a
ser considerada a essência mesma do indivíduo, o núcleo da identidade pessoal. A
sexualidade se torna, então, o lugar do desdobramento de um desejo que funciona
como revelador da verdade do sujeito desejante, de modo que o sexo coloca em jogo
um sujeito e a verdade do seu desejo. O indivíduo é persuadido de que através da
confissão ele poderia conhecer-se a si mesmo. E os segredos do corpo e da alma
passam a ser conhecidos graças aos médicos, aos psiquiatras e a todos a quem se
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O poder, para Foucault, não é nem violência, nem coerção, mas um jogo entre as
tecnologias disciplinares e as tecnologias do eu.
A tecnologia do eu opera a partir da crença de que o indivíduo pode, com a
ajuda de peritos, dizer a verdade sobre si mesmo. Isso acontece na medicina, nas
ciências psiquiátricas, na justiça, na educação, nas relações amorosas. A idéia de que
a confissão permite a descoberta da verdade se expressa fortemente no interesse
contemporâneo com relação à sexualidade. Com efeito, é no corpo e em seus desejos
que reside a forma mais profunda de verdade sobre o indivíduo. É por isso que desde
a penitência cristã até as ciências da sexualidade, segundo Foucault, os desejos do
corpo são considerados a matéria privilegiada da confissão. Foucault define essa
evolução como uma injunção para transformar em discurso os desejos do corpo e da
alma.
Essa injunção à confissão dos desejos foi se multiplicando, ao longo da
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13
Foucault, Michel. História da sexualidade I – a vontade de saber, p.149.
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relação à norma, mas eram condenadas como infrações jurídicas. A partir do século
XIX, inventam-se perversões relativamente a uma norma natural. A
homossexualidade e a infidelidade, por exemplo, não são mais consideradas
transgressões de códigos jurídicos, mas uma natureza viciada. E a sexualidade
desviante não é mais da competência dos juízes, mas dos cientistas que detêm as
normas.14
É assim que o desenvolvimento das ciências humanas e seus métodos e das
chamadas sexualidades periféricas expandem a confissão a domínios em que as
relações de poder e saber atuam no sentido de transformar o indivíduo, o sujeito, em
objeto de conhecimento para si mesmo e para os outros. A tecnologia disciplinar
objetivava o sujeito, transformando-o num corpo dócil e mudo; já a tecnologia da
confissão transforma o sujeito num objeto que deve falar, transformando-o, ao mesmo
tempo, no sujeito de uma sexualidade. Ora, essa objetivação, seguida da formação de
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Na década de setenta, Foucault desenvolve a sua análise em duas direções. Na primeira
direção, Foucault vai empreender uma microfísica do poder ou uma anatomopolítica, investigando as
estratégias e as práticas por meio das quais o poder modela cada indivíduo. Na segunda direção,
Foucault vai investigar uma biopolítica, isto é, a gestão política da vida. Em sua análise da disciplina,
Foucault constata que as disciplinas são exteriores ao discurso jurídico da lei. Com efeito, as
disciplinas implicam um discurso sobre a regra natural, sobre a norma. Entre o século XVIII e o XIX,
as disciplinas definem um código que não é o da lei, mas o da normalização, referindo-se a um
horizonte teórico que não é mais o do direito, mas o campo das ciências humanas. A norma
corresponde à emergência de um biopoder que se aplica, a um tempo, aos indivíduos e as populações,
correspondendo a uma configuração de poder que é a do século XX