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Doopóo de

Schwartz
María Esther Maciel
Reinaldo Marques
Organizadores

BORGES
em dez textos

8SÜ/FF1..CH SBD-FFLCH-USP
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SEXTE LETRAS
POSLIT - Curso de Pós-Graduaijáo
em Esiudos Literários (FALE-UFMG)
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Copyright© 1997 POSLIT i>
Curso de Pós-Gradua^áo em Esludos Literários :

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REPRODUZIDA OU TRANSMITIDA, SEJAM QUAIS FOREM OS MEIOS EMPREGADOS,
SEM PERMISSÁO POR ESCRITO.

Colegiado do Curso de Pós-Graduagüo em Estados Literários: !


Docentes Titulares: Else Ribeiro Pires Vieira
! (coordenadora), Leda Maria Martins (subcoordenadora),
Mauricio Salles de Vasconcelos, Ruth Junqueira Silviano Brandáo,
i Sandra Regina Goulart Almeida, Vera Lucia de Carvalho Casa Nova
Discente Titular. Celina Figueiredo Lage
Docentes Suplentes: Ana Maria Clark Peres, Eliana Lourenso de Lima ,
i Reis, Haydée Ribeiro Coelho, Paulo Fernando da Motta de Oliveira
i Representante Discente Suplente: Telina Borges da Silva
Secretaria: Leticia Magalháes Munaier Teixeira
i ' $68.99.5 Capa:
Marcus Moraes i
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6 Editoragáo eletronica:
; 4 °) ^ > Pedro Sussekind/
;
Victoria Rabello
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Revisáo:
\ Mariela Cunha
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f Produgáo gráfica:
i Flávio Estrella
i
I ISBN 85-7388-075-9
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CURSO DE PÓS-GRADUACAO EM
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. Curso de Pós-Gradua9áo em Rúa Maria Angélica, 171
Estudos Literários da Faculdade loja 102 - Jardim Botánico
í Rio de Janeiro - RJ
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.
Sumário

Apresenta?áo 7

Genebra, 14 de junho de 1986........................................... 9


Eneida María de Souza
A memória de Borges........................................................ 19
Wander Meló Miranda
A astucia do dragao e a sabedoria da raposa:
o alegre cinismo da ficsao borgiana.................................. 25
liza Matías de Souza
Atlas do tempo................................................................... 31
Luis Alberto Brandáo Santos
Um piscar de olhos............................................................ 39
Mariángela de Andrade Paraizo
Nexo, mentiras e video-hype: Borges e o detetive roubado 55
Bernard McGuirk
Desnarrativizando o aparato de estado populista:
“La lotería en Babilonia” de Jorge Luis Borges................ 77
Alberto Moreiras
Lendo/lutando: Onetti com/contra Borges........................ 87
Mark Millington
Cegueira e olhares em Borges e Graciliano Ramos.......... 105
Claudio Córrela Leitáo
Poéticas do artificio: Borges, Kierkegaard e Pessoa......... 127
María Esther Maciel

Sobre os autores 139

DEDALUS - Acervo - FFLCH-LE

lil
21300103470
o t-
DI GIOVANNI, Norman T. (ed.).Borges on Writing. Nova Iorque:
E. P. Dutton, 1973.
FISHBURN, Evelyn and Hughes, Psiche. A Dictionary ofBorges.
Londres: Duckworth, 1990.
JONES, Ann. “Feminism I: Sexual Politics.In the Ccige”, inLiterary
Theory at Work: Three Texis, ed. Douglas Tallack. Londres:
Batsford, 1987 (p. 67-87).
LACAN, Jacques. “The Insistence of the Letter in the Unconscious”,
Yale French Studies, 36-7 (1966) 136.
____. “Seminar on the Purloined Letter”, Yale French Studies, 48
(1972) 40.
LOTRINGER, Sylvére. “Le Complexe de Saussure”, Semiotexte 2
(1975), 112.
RICARDOU, Jean. Le Nouveau Román. Paris: Seuil, 1973.
SHAW, D. L. Borges: Ficciones, Critical Guides to Spanish Texts.
Londres: Tamesis, 1976.
SOUZA, E. M. de. Tempo de pós-crítica: cadernos de pesquisa.
Belo Horizonte: NAPq, 1994.
TALLACK, Douglas (ed.). Literary Theory at Work: Three Texts.
Londres: Batsford, 1987.
TODOROV, Tzvetan. The Poetics of Prose. Ithaca, NY: Comell
University Press, 1977.

76
Desnarrativizando o aparato de estado
populista: “La lotería en Babilonia’*
de Jorge Luis Borges
Alberto Moreiras

O debate sobre a pós-modernidade latino-americana e suas


formas culturáis entrou numa segunda fase, na qual o que parece
importante é entender as conseqüéncias práticas das defin^oes
prévias para o trabalho intelectual e o político.1 Os textos canóni­
cos da pós-modernidade latino-americana devem ser relidos, tai-
vez reinterpretados, buscando a maneira pela qual sua compreen-
sáo de posicionamento histórico sirva para iluminar, e nao para
obscurecer, a nossa.
Admitido o lugar central de Jorge Luis Borges no cánone
pós-modemista, ao procurar entendé-lo a partir de, ou para, nosso
próprio tempo, nunca se sabe se a forma adequada de leitura é
histórica ou ontológica. Em rela5áo a Borges, no entanto, ao me­
nos com o Borges de Ficciones e Aleph, a leitura meramente
ontologizante é tao redutiva como qualquer leitura meramente his­
tórica. A oscilado entre historia e ontologia é urna condÍ9áo de
possibilidade para a leitura de Borges, que deveria ser considera­
do um pensador de consciencia situacional, para quem a passagem
á teoría é sempre, de antemáo, determinante; ou um pensador teó­
rico para o qual o conhecimento histórico é urna meta final. Na
velha formula9áo lukacsiana, em Borges a “ciencia” se faz “cons­
ciencia” e a “consciencia” se faz “ciencia” — entendendo “cien­
cia” ontologicamente e “consciencia” históricamente. Os intérpretes

1 Duas cole^oes recentes de ensaios latino-americanos tém conseguido a passa­


gem para esse segundo período ao esgotar as possibilidades do primeiro:
HERLINGHAUS, Hermann, WALTER, Monika (eds). Posmodernidad en la pe­
riferia. Enfoques latinoamericanos de la nueva teoría (Berlín: Langer, 1994), e
BEVERLEY, John, OVIEDO, José, ARONNA, Michael (eds). The Postmodernism
Debate in Latín America (Durham: Duke University Press, 1995).

77
nao deveriam reificar o pensamento de Borges em nenhum dos
dois polos, nem entender quaisquer dos polos de forma reificada.2
Quero 1er La lotería en Babilonia” (1941) como rea9áo á
formagáo estatal que vinha se desenvolvendo no Ocidente, re por
conseguinte na Argentina, durante os anos trinta, e como antecipa-
?áo da evolu9áo de tal forma^áo estatal até sua configura9áo pre­
sente.3 Em outras palavras, creio que “La loteria en Babilonia”
oferece urna leitura sintomática da constituÍ9áo do que podemos
chamar o estado keynesiano, o estado planificador, ou o estado
intervencionista; e oferece também urna antecipa9áo ou prognose
catastrofista do que seria a consciencia histórica do estado
keynesiano, quer dizer, o que Gilíes Deleuze chama a Sociedade
de Controle, para a qual a mais freqüente expressao alternativa,
“estado neo-liberal”, é obviamente designa9áo equivocada ou ex-
cessivamente ambigua.4 Borges aparece, entáo, como pensador
precursor do que Antonio Negri e Michael Hardt chamam, fazen-
do uso da economia política de Marx, “a subsun9áo real da socie­
dade sob o capital”.5 Poder-se-ia fazer urna leitura semelhante de
“Tlón, Uqbar, Orbis Tertius”, e inclusive de “La biblioteca de
Babel”. Mas se é certo que Borges antecipa em seu trabalho tex­
tual a evolu9áo das formas sociais, a análise crítica nao deveria
parar no ponto de descoberta de seus poderes proféticos, mas sim
deveria avan9ar, mais além, até questionar a forma particular em

2 Tomo a expressao “consciencia situacional” de Frederic Jameson, (‘Third World


Literature in the Era of Multinational Capitalism”. In Social Text 15 (1987): 65-
88. p. 85. Em “Postmodernism and the Market”, Jameson se refere explicitamente
ás conotafoes sartreanas do termo: “O conceito sartreano da situado é urna ma-
neira nova de pensar a história como tal” (p. 288). Em outra passagem se refere á
consciencia situacional como “um encontró desmistificador, pupila a pupila, com
a vida diária, sem distancia e sem embelezamentos”(p. 286).
3 BORGES, Jorge Luis. Prosa Completa. Barcelona: Bruguera, 1980. vol. 1, p.
441-447.
4 Ver VILAS, Carlos. “Neoliberal Social Policy. Managing Poverty (Somehow)”
(In NACLA Repon on the Americas 29.6 (1996): 16-25), que faz um relato conci­
so das diferengas entre o estado latino-americano nacional-popular ou Keynesiano-
fordista e o neo-liberal.
5 NEGRI, Antonio, HARDT, Michael. Labor ofDionysus. A Critique ofthe State-
Fonn. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1994. p. 14.

78
que seu trabalho nao é simplesmente descritivo, mas sim crítico,
isto é, histórico, em sentido estrito.
A partir do ponto de vista que terei entáo que chamar impro­
priamente, imagino, histórico, vou me limitar a propor que em “La
loteria en Babilonia” Borges interpreta o estado keynesiano, que
na América Latina, como em outros lugares, é resultado direto da
quinta negra de 1929. Como disse Tulio Halperín Donghi,

(depois de 1929) os estados nacionais foram as únicas entidades


económicas capazes de navegar táo altos mares (...) e os estados
latino-americanos comesaram a exercer fundes e adotar técnicas
inimagináveis apenas uns anos antes (...) A multiplicidade de fun­
des estatais assinalou um abandono total dos principios do laissez-
faire que haviam guiado a política económica neo-colonial. A cons­
ciencia da emergencia da situasáo estava táo estendida que (...)
ninguém disputou a expansáo do poder estatal per se.*

A formagáo estatal que comeijou a sua nova vida depois de


1929 é o estado planificador, cuja fase mais aguda na Argentina
foi o estado nacional-popular peronista e que só encontraría seu
fim durante a crise da divida de 1982.
Do ponto de vista ontológico ou teórico sustentarei que Bor­
ges, em seu relato, radicaliza o entendimento dos fenómenos his­
tóricos até urna prolepsis do que, para ele, era o pós-contemporá-
neo: a passagem do estado intervencionista ao estado de controle
como verdade teleológica do estado moderno. Sua manifestasáo
contemporánea na América Latina, eufemisticamente chamada neo­
liberal, significou, entre outras coisas, um avan§o drásticamente
acelerado até a globalizasáo, mediante a qual a dependencia lati­
no-americana das corporales transnacionais aumenta exponen­
cialmente. Em tempos de capitalismo tardío, os estados latino-ame­
ricanos se fazem subsidiários de um aparato estatal transnacional
talvez inexistente, mas nao por isso menos eficaz, cuja fungáo é
meramente a de assegurar a reprodusáo incessante da capacidade
produtiva em e para a “integrado funcional de atividades intema-

6 HALPERÍN DONGHI, Tulio. The Contemporary Histoiy of Latín America.


Trad. John Chasteen. Durham: Duke University Press, 1993. p. 209-210.

79

cionalmente diSPersas”-7 O espectral estado de acumula9áo flexí-
n
.


vel substituí o estado nacional-popular e suas velhas legitimida­


des. O que fie* é um novo regime social de “meta-estabilidade
perpétua”8 báselo no mercado como mecanismo último de con­
i
trole. Este trabado parte da hipótese primária de que a no9áo
.
borgiana da lotería em sua última fase, lá, onde deve enfrentar o
*
limite e a possibdidade de sua própria inexistencia (lá onde a lote­
ría deixou de importar, urna vez que seus efeitos já sao plenamente
M universais), é urna alegoría de urna metástase social perpétua (o
i] que os teóricos neo-liberais chamam simplesmente “o mercado”)
como regime de controle social total. Mas minha pergunta real vai
mais além da deserto para procurar entender, através da descri-
:
. 9áo, a modalidade borgiana da crítica histórica.
“La lotería en Babilonia” é o relato que nos dá o obscuro
narrador (que está temporalmente fora da Babilonia) de urna insti­
tuto estatal altamente peculiar e de sua história: a lotería, em seu
i avatar babilónico. O narrador nos diz de inicio, no conto, que na

Babilonia “la lotería es una parte principal de la realidad” (p. 442).


Como chegou a ser parte táo principal do real é seu tema — um
1 tema, por certo, que a lógica do relato nos faz crer que lhe foi dado
pelo próprio sistema de lotería, como urna san9áo, mas do acaso.
lí ■

Na Babilonia a lotería se desenvolve históricamente, desde ser um


jogo patrocinado em sua origem por urna corpora9áo privada (o
I narrador a chama “la Compañía”) até ser a forma mesma da total
i administra9áo da experiencia por parte da “tenebrosa corporación”
(p. 447). Se no inicio a lotería é urna instituto da sociedade civil
: dependente de mecanismos de mercado, ao final a no9áo mesma
! de sociedade civil se faz impossível e insustentável, urna vez que a
i' lotería se funde á vida a tal ponto que ambas sao experimental­
mente indistinguíveis. Nesse momento, o presente da namto, os
:
resultados da lotería parecem afetar e determinar todas e cada urna

; 7 GEREFFI, Gary, HEMPEL, Lynn. “Latín America in the Global Economy:


Running Faster to Stay in Place”. In NA CLA Report on the America* 29.4 (1966):
18-27. p. 19.
8 DELEUZE, Giles. “PostScript on the Societies of Control”. \nOctober59 (1992):
3-7. p. 4.
;
!
80
£•
-
das facetas dos acontecimentos humanos e inclusive cósmicos. A
lotería, ao final de sua evolu^áo, se fez tal “parte principal da rea-
lidade” que é de fato o mecanismo primário do real.
Até o final da historia o narrador insinúa que nao se pode
decidir se deveria se considerar a lotería mecanismo primário do
real ou, ao contrário, se a lotería já é o real como mecanismo pri­
mário: “es indiferente afirmar o negar la realidad de la tenebrosa
corporación, porque Babilonia no es otra cosa que un infinito juego
de azares” (p. 447). Dado que a própria escritura do relato pode
ser (ou pode nao ser) resultado da própria lotería, a verdade de tal
afirma9áo fica infinitamente suspensa; mesmo que a própria afir-
ma9áo suspenda infinitamente a verdade, tal suspense é o próprio
suspendido, em dupla indecidibilidade. O leitordeve, entáo, fazer
preliminarmente um juízo ideológico, em confronto com ao me­
nos tres op9Óes: 1) a lotería existe e o narrador é seu inadvertido
servidor; 2) a lotería já nao existe, mas o narrador é incapaz de
decidir sobre sua inexistencia; 3) a lotería existe e o narrador nos
confunde intencionalmente. A op9áo real para o leitor nao é, no
entanto, decidir-se por urna dessas tres op9óes, ou suas nega9Óes
!
respectivas, mas sim entrar em urna ordem de decisáo alternativa
que á primeira (e falsa) op9áo a um só tempo preludia e introduz:
se a verdade do acertó do narrador ficou indefinidamente posposta
por nao poder nunca ser comprovada, o leitor deve decidir perma­
necer no perpétuo enredo, amarrado á perplexidade literária, ou
desenredar-se recusando a aceitar o dilema enquanto tal. A última
op9áo requer, como é freqüente em Borges, um complicado ato de
análise metacrítica em que toma parte a perspectiva teórica geral
do relato.
Quando a pressáo do povo pedindo igualdade logra a impo-
sÍ9áo de “urna nova ordem” na historia da Babilonia, a Companhia
aceita “a soma do poder político” e se faz estado:
El justo anhelo de que todos, pobres y ricos, participasen por igual
en la lotería, inspiró una indignada agitación cuya memoria no han
desdibujado los años. Algunos obstinados no comprendieron (o
simularan no comprender) que se trataba de un orden nuevo, de
una etapa histórica necesaria (...). Hubo disturbios, hubo efusiones
lamentables de sangre; pero la gente babilónica impuso finalmente

81
su voluntad, contra la oposición de los ricos. El pueblo consiguió
■;
con plenitud sus fines generosos, (p. 443).
; : A “nova ordem”, o triunfo populista, é, portanto, o remoto
cometo da Sociedade de Controle. O estado, que nao é em princi­
pio senáo a corpora^ao que administra a lotería, mantém sua ex-
traordinária expansáo — necessária para que a lotería funcione
f mais suave e consistentemente — até que chega o momento em
if que cada ato humano ocorre em fun?áo e como fun5áo do poder
l[ estatal. O narrador afirma, entáo, que a subsun9áo real e total da
I
Hi
vida na formado estatal foi conseguida, talvez para poder afirmar
a continua9áo que tal sucesso também marca o ponto em que a
forma estatal fica subsumida na realidade total da vida. Acontece
t ;
í urna inversao dialética: o estado planificador se metamorfoseou
em seu próprio espectro para melhor saturar, assim, o campo do
í
real, que é agora equivalente, em virtude da própria inversao dia­
lética, ao campo do espectral. A antecipa9áo proléptica fica, as­
H
H: H sim, consumada no texto de Borges. A sociedade de controle, que
é nosso presente, está prometida no texto de 1941 como conse-
í<i qüéncia teleológica do desenvolvimento do aparato do estado a
V'! II
partir de sua expansáo nacional-popular.
Se faz necessária urna obje9áo crítica, porém deveria se en­
jj
i tender que é urna obje9ao crítica possibilitada pelo próprio conto.
i A distancia irónica de Borges, ou a postulada “indiferen9a” do
¡(i
narrador, nao escondem e, sim, revelam a diferen9a omnidetermi-
N I nante: a passagem de urna lotería intervencionista a urna lotería
II total é também a passagem á domina9áo total do humano; e é,
epistemológicamente, a passagem da consciencia histórica á sua
reifica9áo em ontologia. “Afirmar o negar la realidad de la tene­

brosa corporación” é precisamente o que nao é indiferente, posto
■ que é o que abre mesmo a possibilidade da diferen9a. “Afirmar”
significa optar pela historia, e manter aberta a distin9áo entre co-
nhecimento e consciencia da experiencia; “negar” significa optar
pela reifica9áo da historia, e destruir conhecimento e experiencia.
Urna vez concedido que “Babilonia no es otra cosa que un
■i infinito juego de azares”, tudo depende agora de decidir que tal
“jogo de azares” segue um destino causado por urna determina9áo

82
em última instancia humana, posto que está orquestrado pela for-
ma9áo estatal como lugar de poder, ou que tal determina^áo hu­
mana é ou se fez irremediavelmente natureza, e enquanto tal, nao
pode ser já imaginada alternativamente. A nogáo mesma de liber-
dade histórica está em jogo na decisáo metacrítica que o narra­
dor nos oferece paradoxalmente ao postular que nao há decisáo a
tomar, ou que a decisáo é “indiferente”.
O que está em jogo, em outras palavras, é a possibilidade
teórica de um “fora” da ideología ou, como o formularia Louis
Althusser em sua autobiografía, “como se escapar do círculo per-
manecendo dentro dele”;9 nos termos do relato, “como escapar da
lotería permanecendo dentro déla” ou, se se deseja, como escapar
do estado de controle permanecendo dentro dele. A consciencia
propriamente histórico-crítica do conto de Borges depende da for­
ma ou formas possíveis de resolu9áo de tal pergunta que o texto
ampara.
Só a possibilidade teórica de um escape pode deixar aberta a
possibilidade de mudan9a histórica e a destruyo final do que,
talvez, já vamos entendendo, através desta leitura, como o modo
de produ9áo tardo-capitalista sob a alegoría da total lotería estatal,
que para Borges nao era senáo, em 1941, urna possibilidade futu­
ra. Se a lotería existe, entao, entendé-la como contingente, e nao
como necessária, é fundamental. Mas inclusive se a lotería estatal
já nao existe, o que importa nao é esse fato e, sim, dar-se conta
dele. Na formula9áo clássica de Althusser: “esse é o conhecimen-
to que temos que alcan9ar, se se deseja, enquanto falamos de den­
tro da ideología, e a partir da ideología temos que tra9ar um dis­
curso que tenta romper com a ideología, para ousar ser o principio
de um discurso científico (isto é, sem sujeito) sobre a ideología”.10
A propósito, pode-se perguntar se ou como Althusser have-
ria modificado sua no9áo de ideología e do aparato ideológico do

9 ALTHUSSER, Louis. The Future Lasts Forever. A Memoir. Trad. Richard Veasey.
New York: New Press, 1993. p. 319.
10 ALTHUSSER, Louis. “Ideology and the Ideological State Apparatus”. In___ .
Lenin and Philosophy and Other Essays. Trad. Ben Brewster. New York: Monthly
Review Press, 1971. p. 173.f

83
;>
; í

ííl
\i estado se houvesse lido e meditado seriamente sobre “La lotería
i ■
en Babilonia”. Mas talvez o tenha feito, e o tenha feito a um grau
incomensurável. Nunca o saberemos, ainda que isso nao devesse
ser obstáculo para postular que “La loteria en Babilonia” é urna
das fontes teóricas ou dos recursos antecipativos da nozáo althus-
seriana de ideología. Por isso convém registrar que o texto de
i!: Borges inclui urna referencia sinistra a Althusser que Borges nao
podía saber que era urna referencia a Althusser. Talvez, portanto,
j ; tenha sido Althusser quem retrospectivamente fez referencia a si
mesmo. Até o final do conto o narrador pergunta: “¿el soñador que
se despierta de golpe y ahoga con las manos a la mujer que duerme
j a su lado, no (ejecuta), acaso, una secreta decisión de la Compañía?”
I (p. 446).
í

i
Como se sabe, no domingo 16 de novembro de 1980, pela

manhá, Althusser se descobriu a si mesmo na posigáo desse so-
nhador borgiano. Ñas palavras de Althusser:
1
3
Emergi depois de urna noite profunda que nunca fui capaz de me­
Ui i
dir e me encontrei ao pé de minha cama, de roupáo, com Helena
? estendida á minha frente, e eu massageando seu pesado e sentindo :
f:{ urna intensa dor em meus antebrazos, sem dúvida por causa da mas- !
sagem. Entáo me dei conta, sem saber porque, exceto por seus olhos
imóveis e a ponta deplorável de sua língua entre seus dentes e lá- i
bios, que estava morta.11 :
;
Enigmáticamente a prónria teorizado althusseriana do dis­
curso do inconsciente como discurso da “Ordem do significante f
humano”12 se relaciona com sua própria inscrizáo em um texto
borgiano que é também um texto sobre o Outro como significante
absoluto. O narrador de “La lotería en Babilonia” compara os tra­
badlos da Companhia aos trabalhos de Deus (“ese funcionamiento
silencioso, comparable al de Dios” [p. 446]), assim como, para
Althusser, “o interpelamento dos individuos como sujeitos pres-

i
. 11 ALTHUSSER, Louis. The Future Lasts Forever. A Memoir. Op. cit. p. 253-254.
12 ALTHUSSER, Louis. “Freud and Lacan”. In___ . Lenin and Philosophy and
Other Essays. Op. cit. p. 213.
=
84

——• -- I
supóe a ‘existencia’ de um Sujeito Outro central e Único”.13 Po-
rém concluo a aparente digressao.
A posi^áo do narrador em “La lotería en Babilonia” é objeti­
vamente constitutiva da ideología em termos althusserianos. A ide­
ología é para Althusser urna cond^áo necessária do que ele chama
a “reprodu9áo das forjas produtivas”. Com efeito, quer a lotería
exista real ou espectralmente, a missáo do narrador é total e abso­
lutamente ideológica. Poderia ser um servidor inadvertido da com-
panhia, em posyo portanto de trabalhador, ou um colaborador
avisado, e assim um agente de explora9áo. De qualquer maneira,
serve aos mesmos interesses:

a reprodu9áo das for9as produtivas requer... a reprodu9§o de sua


submissáo as regras da ordem estabelecida, isto é, a reprodujo da
submissáo á ideología dominante para os trabalhadores, e a repro-
du9ao da capacidade de manipular a ideología dominante corneta­
mente para os agentes da explora9áo e a repressao, de modo que
estes últimos também colaborem “com palavras” á domina9áo da
classe dirigente.14

As frases fináis do relato (“Es indiferente afirmar o negar la


realidad de la tenebrosa corporación...”) parecem, nao á primeira
vista, simplesmente servir as estratégias de reprodu9áo do poder
do estado na preserva9áo da hegemonía social do sistema da lote­
ría. Assim, o sonhador sempre estrangulará a sua mulher, depois
de tudo. Mas algo mais vem também a ser dito.
Como ato textual total, “La lotería en Babilonia” é urna con­
tribuyo a mais á reprodu9áo das for9as de trabalho no sentido
althusseriano, quer dizer, para apoiá-la ideológicamente ao fomen­
tar ou a submissáo á lotería ou sua naturaliza9áo como equivalente
á vida mesma (“Babilonia no es otra cosa que un infinito juego de
azares”)? Ou é mais propriamente, ao contrário, urna forma de
abertura ao processo sem sujeito da historia, o fora do interpela-
mento pelo aparato da lotería, a ruptura da ordem do significante?

13 ALTHUSSER, Louis. “Ideology and the Ideological State Apparatus”. Ibidem.


p. 178.
14 Ibidem. p. 132-133.

85
m II! :
!
O narrador de “La lotería en Babilonia” nos conta uma histo­
ria monstruosa, porque alcanza todas as historias possíveis ao
ili! mesmo tempo que mata todas, esvaziando-as de autonomía: se a
ífí lotería ordena e determina qualquer acontecer humano, todas as
} historias sao simplesmente essa historia. A administra9áo total da
vida mediante uma lotería infinita e incessante implica que a vida
m . se encontra totalmente desnarrativizada, posto que responde em
l i
cada um de seus momentos a uma ordem que emana de cima. Des­
l de a perspectiva da lotería total, a vida é sempre de antemao
í I heterónima, “no otra cosa que un infinito juego de azares”.15
:¡ i Paradoxal, mas inevitavelmente, no entanto, táo total
r desnarrativiza9áo da existencia como apoteose da ideología nos
1 devolve uma possibilidade alternativa de entendimento. A clausu­
.
i; ra final do relato, isto é, a conquistada alegoriza9áo da totalidade
social, como sempre de antemao alienada, sempre de antemao de-
I t sapropriada, “redirige”, em palavras que Jameson aplica a outro
I , contexto, “nossa aten9áo á mesma historia e a variedade de situa-
•I a
1 : 9oes alternativas que oferece”.16 Certamente nao há, no texto de
Borges, afirma9áo alguma de autonomía humana — só há, na di-
¡i mensáo metacrítica do texto, algo assim como uma burla ou um
ml
m ■ dissimulado questionamento do principio de heteronímia radical
j.¡! ■

— isto é, até certo ponto, também uma afirma9áo (nao-humanista?)


fj do potencial humano de liberdade.
Mi
fli “Los ignorantes suponen que infinitos sorteos requieren un
tiempo infinito; en realidad basta que el tiempo sea infinitamente
!í: : subdivisible, como lo enseña la famosa parábola del Certamen con
la Tortuga” (p. 445). Em outro texto sobre o paradoxo grego Borges
diz: “Nosotros (la indivisa divinidad que opera em nosotros) he­
mos soñado el mundo. Lo hemos soñado resistente, misterioso,

Íí .
15 A insistencia final de Althusser sobre a desnarrativiza5áo resulta interessante
neste contexto: “meu objetivo nunca é contar a mim mesmo histórias, que é a
i única definifáo de materialismo que nunca descrevi” (Future. p. 169); “ ‘Nao cair
em me contar contos’, todavia permanece para mim como única definido do
materialismo” (Future. p. 221).
. 16 JAMESON, Fredric. “Postmodernism and the Market”. In ZIZEK, Slavoj (ed.).

Mapping ¡deology. Londres: Verso, 1994. p. 288.

j 86
:
f
visible, ubicuo en el espacio y firme en el tiempo; pero hemos
consentido en su arquitectura, tenues y eternos intersticios de
sinrazón para saber que es falso”.17 Tais falsidades destroem a on-
tologia. Na destruirlo da ontologia a historia retoma, e com ela, a
consciencia histórica.

Tradugao: Denise Araújo Pedron


e Marcos Antonio Alexandre

17 BORGES, Jorge Luis*“Avatares de la Tortuga”. In .. op. cit. p. 204.

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