Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Schwartz
María Esther Maciel
Reinaldo Marques
Organizadores
BORGES
em dez textos
8SÜ/FF1..CH SBD-FFLCH-USP
i
\
¿ .01
SEXTE LETRAS
POSLIT - Curso de Pós-Graduaijáo
em Esiudos Literários (FALE-UFMG)
r 'jOl%3/
\
Copyright© 1997 POSLIT i>
Curso de Pós-Gradua^áo em Esludos Literários :
Apresenta?áo 7
lil
21300103470
o t-
DI GIOVANNI, Norman T. (ed.).Borges on Writing. Nova Iorque:
E. P. Dutton, 1973.
FISHBURN, Evelyn and Hughes, Psiche. A Dictionary ofBorges.
Londres: Duckworth, 1990.
JONES, Ann. “Feminism I: Sexual Politics.In the Ccige”, inLiterary
Theory at Work: Three Texis, ed. Douglas Tallack. Londres:
Batsford, 1987 (p. 67-87).
LACAN, Jacques. “The Insistence of the Letter in the Unconscious”,
Yale French Studies, 36-7 (1966) 136.
____. “Seminar on the Purloined Letter”, Yale French Studies, 48
(1972) 40.
LOTRINGER, Sylvére. “Le Complexe de Saussure”, Semiotexte 2
(1975), 112.
RICARDOU, Jean. Le Nouveau Román. Paris: Seuil, 1973.
SHAW, D. L. Borges: Ficciones, Critical Guides to Spanish Texts.
Londres: Tamesis, 1976.
SOUZA, E. M. de. Tempo de pós-crítica: cadernos de pesquisa.
Belo Horizonte: NAPq, 1994.
TALLACK, Douglas (ed.). Literary Theory at Work: Three Texts.
Londres: Batsford, 1987.
TODOROV, Tzvetan. The Poetics of Prose. Ithaca, NY: Comell
University Press, 1977.
76
Desnarrativizando o aparato de estado
populista: “La lotería en Babilonia’*
de Jorge Luis Borges
Alberto Moreiras
77
nao deveriam reificar o pensamento de Borges em nenhum dos
dois polos, nem entender quaisquer dos polos de forma reificada.2
Quero 1er La lotería en Babilonia” (1941) como rea9áo á
formagáo estatal que vinha se desenvolvendo no Ocidente, re por
conseguinte na Argentina, durante os anos trinta, e como antecipa-
?áo da evolu9áo de tal forma^áo estatal até sua configura9áo pre
sente.3 Em outras palavras, creio que “La loteria en Babilonia”
oferece urna leitura sintomática da constituÍ9áo do que podemos
chamar o estado keynesiano, o estado planificador, ou o estado
intervencionista; e oferece também urna antecipa9áo ou prognose
catastrofista do que seria a consciencia histórica do estado
keynesiano, quer dizer, o que Gilíes Deleuze chama a Sociedade
de Controle, para a qual a mais freqüente expressao alternativa,
“estado neo-liberal”, é obviamente designa9áo equivocada ou ex-
cessivamente ambigua.4 Borges aparece, entáo, como pensador
precursor do que Antonio Negri e Michael Hardt chamam, fazen-
do uso da economia política de Marx, “a subsun9áo real da socie
dade sob o capital”.5 Poder-se-ia fazer urna leitura semelhante de
“Tlón, Uqbar, Orbis Tertius”, e inclusive de “La biblioteca de
Babel”. Mas se é certo que Borges antecipa em seu trabalho tex
tual a evolu9áo das formas sociais, a análise crítica nao deveria
parar no ponto de descoberta de seus poderes proféticos, mas sim
deveria avan9ar, mais além, até questionar a forma particular em
78
que seu trabalho nao é simplesmente descritivo, mas sim crítico,
isto é, histórico, em sentido estrito.
A partir do ponto de vista que terei entáo que chamar impro
priamente, imagino, histórico, vou me limitar a propor que em “La
loteria en Babilonia” Borges interpreta o estado keynesiano, que
na América Latina, como em outros lugares, é resultado direto da
quinta negra de 1929. Como disse Tulio Halperín Donghi,
79
5í
cionalmente diSPersas”-7 O espectral estado de acumula9áo flexí-
n
.
■
■
81
su voluntad, contra la oposición de los ricos. El pueblo consiguió
■;
con plenitud sus fines generosos, (p. 443).
; : A “nova ordem”, o triunfo populista, é, portanto, o remoto
cometo da Sociedade de Controle. O estado, que nao é em princi
pio senáo a corpora^ao que administra a lotería, mantém sua ex-
traordinária expansáo — necessária para que a lotería funcione
f mais suave e consistentemente — até que chega o momento em
if que cada ato humano ocorre em fun?áo e como fun5áo do poder
l[ estatal. O narrador afirma, entáo, que a subsun9áo real e total da
I
Hi
vida na formado estatal foi conseguida, talvez para poder afirmar
a continua9áo que tal sucesso também marca o ponto em que a
forma estatal fica subsumida na realidade total da vida. Acontece
t ;
í urna inversao dialética: o estado planificador se metamorfoseou
em seu próprio espectro para melhor saturar, assim, o campo do
í
real, que é agora equivalente, em virtude da própria inversao dia
lética, ao campo do espectral. A antecipa9áo proléptica fica, as
H
H: H sim, consumada no texto de Borges. A sociedade de controle, que
é nosso presente, está prometida no texto de 1941 como conse-
í<i qüéncia teleológica do desenvolvimento do aparato do estado a
V'! II
partir de sua expansáo nacional-popular.
Se faz necessária urna obje9áo crítica, porém deveria se en
jj
i tender que é urna obje9ao crítica possibilitada pelo próprio conto.
i A distancia irónica de Borges, ou a postulada “indiferen9a” do
¡(i
narrador, nao escondem e, sim, revelam a diferen9a omnidetermi-
N I nante: a passagem de urna lotería intervencionista a urna lotería
II total é também a passagem á domina9áo total do humano; e é,
epistemológicamente, a passagem da consciencia histórica á sua
reifica9áo em ontologia. “Afirmar o negar la realidad de la tene
■
brosa corporación” é precisamente o que nao é indiferente, posto
■ que é o que abre mesmo a possibilidade da diferen9a. “Afirmar”
significa optar pela historia, e manter aberta a distin9áo entre co-
nhecimento e consciencia da experiencia; “negar” significa optar
pela reifica9áo da historia, e destruir conhecimento e experiencia.
Urna vez concedido que “Babilonia no es otra cosa que un
■i infinito juego de azares”, tudo depende agora de decidir que tal
“jogo de azares” segue um destino causado por urna determina9áo
82
em última instancia humana, posto que está orquestrado pela for-
ma9áo estatal como lugar de poder, ou que tal determina^áo hu
mana é ou se fez irremediavelmente natureza, e enquanto tal, nao
pode ser já imaginada alternativamente. A nogáo mesma de liber-
dade histórica está em jogo na decisáo metacrítica que o narra
dor nos oferece paradoxalmente ao postular que nao há decisáo a
tomar, ou que a decisáo é “indiferente”.
O que está em jogo, em outras palavras, é a possibilidade
teórica de um “fora” da ideología ou, como o formularia Louis
Althusser em sua autobiografía, “como se escapar do círculo per-
manecendo dentro dele”;9 nos termos do relato, “como escapar da
lotería permanecendo dentro déla” ou, se se deseja, como escapar
do estado de controle permanecendo dentro dele. A consciencia
propriamente histórico-crítica do conto de Borges depende da for
ma ou formas possíveis de resolu9áo de tal pergunta que o texto
ampara.
Só a possibilidade teórica de um escape pode deixar aberta a
possibilidade de mudan9a histórica e a destruyo final do que,
talvez, já vamos entendendo, através desta leitura, como o modo
de produ9áo tardo-capitalista sob a alegoría da total lotería estatal,
que para Borges nao era senáo, em 1941, urna possibilidade futu
ra. Se a lotería existe, entao, entendé-la como contingente, e nao
como necessária, é fundamental. Mas inclusive se a lotería estatal
já nao existe, o que importa nao é esse fato e, sim, dar-se conta
dele. Na formula9áo clássica de Althusser: “esse é o conhecimen-
to que temos que alcan9ar, se se deseja, enquanto falamos de den
tro da ideología, e a partir da ideología temos que tra9ar um dis
curso que tenta romper com a ideología, para ousar ser o principio
de um discurso científico (isto é, sem sujeito) sobre a ideología”.10
A propósito, pode-se perguntar se ou como Althusser have-
ria modificado sua no9áo de ideología e do aparato ideológico do
9 ALTHUSSER, Louis. The Future Lasts Forever. A Memoir. Trad. Richard Veasey.
New York: New Press, 1993. p. 319.
10 ALTHUSSER, Louis. “Ideology and the Ideological State Apparatus”. In___ .
Lenin and Philosophy and Other Essays. Trad. Ben Brewster. New York: Monthly
Review Press, 1971. p. 173.f
83
;>
; í
ííl
\i estado se houvesse lido e meditado seriamente sobre “La lotería
i ■
en Babilonia”. Mas talvez o tenha feito, e o tenha feito a um grau
incomensurável. Nunca o saberemos, ainda que isso nao devesse
ser obstáculo para postular que “La loteria en Babilonia” é urna
das fontes teóricas ou dos recursos antecipativos da nozáo althus-
seriana de ideología. Por isso convém registrar que o texto de
i!: Borges inclui urna referencia sinistra a Althusser que Borges nao
podía saber que era urna referencia a Althusser. Talvez, portanto,
j ; tenha sido Althusser quem retrospectivamente fez referencia a si
mesmo. Até o final do conto o narrador pergunta: “¿el soñador que
se despierta de golpe y ahoga con las manos a la mujer que duerme
j a su lado, no (ejecuta), acaso, una secreta decisión de la Compañía?”
I (p. 446).
í
i
Como se sabe, no domingo 16 de novembro de 1980, pela
’
manhá, Althusser se descobriu a si mesmo na posigáo desse so-
nhador borgiano. Ñas palavras de Althusser:
1
3
Emergi depois de urna noite profunda que nunca fui capaz de me
Ui i
dir e me encontrei ao pé de minha cama, de roupáo, com Helena
? estendida á minha frente, e eu massageando seu pesado e sentindo :
f:{ urna intensa dor em meus antebrazos, sem dúvida por causa da mas- !
sagem. Entáo me dei conta, sem saber porque, exceto por seus olhos
imóveis e a ponta deplorável de sua língua entre seus dentes e lá- i
bios, que estava morta.11 :
;
Enigmáticamente a prónria teorizado althusseriana do dis
curso do inconsciente como discurso da “Ordem do significante f
humano”12 se relaciona com sua própria inscrizáo em um texto
borgiano que é também um texto sobre o Outro como significante
absoluto. O narrador de “La lotería en Babilonia” compara os tra
badlos da Companhia aos trabalhos de Deus (“ese funcionamiento
silencioso, comparable al de Dios” [p. 446]), assim como, para
Althusser, “o interpelamento dos individuos como sujeitos pres-
i
. 11 ALTHUSSER, Louis. The Future Lasts Forever. A Memoir. Op. cit. p. 253-254.
12 ALTHUSSER, Louis. “Freud and Lacan”. In___ . Lenin and Philosophy and
Other Essays. Op. cit. p. 213.
=
84
——• -- I
supóe a ‘existencia’ de um Sujeito Outro central e Único”.13 Po-
rém concluo a aparente digressao.
A posi^áo do narrador em “La lotería en Babilonia” é objeti
vamente constitutiva da ideología em termos althusserianos. A ide
ología é para Althusser urna cond^áo necessária do que ele chama
a “reprodu9áo das forjas produtivas”. Com efeito, quer a lotería
exista real ou espectralmente, a missáo do narrador é total e abso
lutamente ideológica. Poderia ser um servidor inadvertido da com-
panhia, em posyo portanto de trabalhador, ou um colaborador
avisado, e assim um agente de explora9áo. De qualquer maneira,
serve aos mesmos interesses:
85
m II! :
!
O narrador de “La lotería en Babilonia” nos conta uma histo
ria monstruosa, porque alcanza todas as historias possíveis ao
ili! mesmo tempo que mata todas, esvaziando-as de autonomía: se a
ífí lotería ordena e determina qualquer acontecer humano, todas as
} historias sao simplesmente essa historia. A administra9áo total da
vida mediante uma lotería infinita e incessante implica que a vida
m . se encontra totalmente desnarrativizada, posto que responde em
l i
cada um de seus momentos a uma ordem que emana de cima. Des
l de a perspectiva da lotería total, a vida é sempre de antemao
í I heterónima, “no otra cosa que un infinito juego de azares”.15
:¡ i Paradoxal, mas inevitavelmente, no entanto, táo total
r desnarrativiza9áo da existencia como apoteose da ideología nos
1 devolve uma possibilidade alternativa de entendimento. A clausu
.
i; ra final do relato, isto é, a conquistada alegoriza9áo da totalidade
social, como sempre de antemao alienada, sempre de antemao de-
I t sapropriada, “redirige”, em palavras que Jameson aplica a outro
I , contexto, “nossa aten9áo á mesma historia e a variedade de situa-
•I a
1 : 9oes alternativas que oferece”.16 Certamente nao há, no texto de
Borges, afirma9áo alguma de autonomía humana — só há, na di-
¡i mensáo metacrítica do texto, algo assim como uma burla ou um
ml
m ■ dissimulado questionamento do principio de heteronímia radical
j.¡! ■
Íí .
15 A insistencia final de Althusser sobre a desnarrativiza5áo resulta interessante
neste contexto: “meu objetivo nunca é contar a mim mesmo histórias, que é a
i única definifáo de materialismo que nunca descrevi” (Future. p. 169); “ ‘Nao cair
em me contar contos’, todavia permanece para mim como única definido do
materialismo” (Future. p. 221).
. 16 JAMESON, Fredric. “Postmodernism and the Market”. In ZIZEK, Slavoj (ed.).
■
Mapping ¡deology. Londres: Verso, 1994. p. 288.
j 86
:
f
visible, ubicuo en el espacio y firme en el tiempo; pero hemos
consentido en su arquitectura, tenues y eternos intersticios de
sinrazón para saber que es falso”.17 Tais falsidades destroem a on-
tologia. Na destruirlo da ontologia a historia retoma, e com ela, a
consciencia histórica.
87