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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA


JULIO DE MESQUITA FILHO

SÃO JOSÉ DO RIO PRETO - SP


Luciani Ester Tenani
{ORGANIZADORA)

UNESP
UNlVERSlDADE ESTADUAL PAULISTA

Reitor: Prof. Dr. Antonio Manoel dos Santos Silva


Vice-reitor: Prof. Dr. Luís Roberto de Toledo Ramalho APONTE PARA

lNSTITIJTO DE BIOCIÊNCIAS, LE1RAS E CIÊNCIAS EXATAS


A SALA DE AULA
Campus de São José do Rio Preto.
Diretora: Prof Dfl Maria Dalva Silva Pagotto
Vice-Diretor: Prof. Dr. Johnny Rizzieri Olivieri

IBILCE / UNESP

São José do Rio Preto


1999
EQUIPE EDITORIAL Sumário
Coordenação: Luciani Ester Tenani
Capa: Luciana P. C. Silva e César Corrêa
Revisão: Cristiane C. Carneiro, Erru1ia Ribeiro, Graciele R. Cucolo,
Luciana, P. C. Silva, Luciani E. Tenani, Silvana M. Vicente
Apresentação ...................................................... . 07
Impressão e Acabamento: Maurício Borirn e Alex A dos Santos
Reflexões sobre o processo de truncação
Lilian C. BERTOLINO, Vanessa C. MARTINS,
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Alexandre de O. MARTINS ..................................................... 09
Algumas reflexões sobre os neologismos em
Aponte para a sala de aula/ Luciani Ester Tenani, organizadora._ Guimarães Rosa
São José do Rio Preto, SP : IBTLCE/Unesp, 1999. Cristiane CAPRISTANO, Emília RIBEIRO, Rosângela VILA..... 21
67 p.
Neologismos na Cibernética
1. Português - Brasil - Morfologia. 2.Neologismo.
3.Guimarães Rosa. I. Tenani, Luciani Ester. II. Título. Graciele R. CUCOLO, Aline 8. SANTOS.................................. 29

CDU 806.90-55 Morfologia Pluviosa ",


Elaborado por Biblioteca do IBTLCEIUNESP - CSJRP Érica M. MOLINAR!, Saulo de P. BUENO JR ...... :..................... ~38
Neologia em Canção
APONTE PARA A SALA DE AULA é uma publicação de trabalhos de alunos Margarida A. R. PONTES, Luciana PRUDENTE C. SILVA....... 50
de Graduação em Licenciatura em Letras do Instituto de Biociências, Letras
e Ciências Exatas da UNESP, Campus de São José do Rio Preto. O neologismo e a expressividade em Famigerado e
Pirlimpsiquice
Graziela A. SANTOS, Silvana M. VICENTE ............................ 59
UNESP/IBILCE
Departamento de Letras Vernáculas
Caixa Postal 136
15054-000 - São José do Rio Preto (SP)
Tel. (17) 221 23 00
http://www.ibilce.unesp.br

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Apresentação

Da vontade (e também das reclamações) dos alunos de


graduação em Letras do Tbilce/Unesp nasceu esta publicação. APONTE
PARA A SALA DE AULA foi um nome que veio com o processo: os
alunos de graduação queriam 'seu espaço', parecia injusto esperar
concluir o curso para, somente então, poder 'publicar'. Por que não
mostrar à sociedade a reflexão que aqueles que estão em formação são
capazes de produzir na Universidade Pública?

Essas inquietações brotaram fortemente durante o curso de


Morfologia Descritiva da Língua Portuguesa em 1998, de modo que a
·idéia de publicar textos de alunos de graduação, somada à qualidade dos
trabalhos realizados nesse curso, deu forma àqueles desejos. APONTE
PARA A SALA DE AULA é, pois, uma publicação de textos de
graduandos, daqueles que não se contentam em reproduzir análises, mas
buscam produzir novas reflexões e conhecimento ao retomar os estudos
já realizados sobre um dado tema.

Os textos aqui apresentados são de alunos que, além de


produzirem bons trabalhos, tornaram possível a concretização do desejo
de obterem 'seu espaço'. O que ora se apresenta mostra a investigação
sobre aspectos da formação da palavra em língua portuguesa, aponta
questões (algumas inéditas) sobre a constituição dos itens lexicais a
partir da análise do jogo que é feito com a palavra em lugares diversos:
literatura, canção, propaganda, informática, jornal etc. Pode-se dizer que
são trabalhos em que se observa a língua em uso.

A publicação de APONTE PARA A SALA DE AULA se deve


ao esforço dos alunos em organizarem os textos no formato adequado e
viabilizar sua impressão. Especial menção deve ser feita ao empenho da

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aluna Luciana P. C. Silva ao longo de todo o processo e à pronta Reflexões sobre o processo de truncação
colaboração da professora Dr8 Maria Dalva S. Pagotto, então vice-
diretora do Instituto, para a 'publicação' desta idéia. Também agradeço Lilian C. BERTOLINO
a colaboração prestada pela secretária Maria Elza O. Pires e o incentivo Vanessa C. MARTINS
dad9 pelos colegas do Departamento, especialmente, Prof Dr8 Marize Alexandre de O. MARTINS
M. Dall' Aglio Hattnher, Prof. Sebastião Carlos L. Gonçalves e Prof.
Dr. Sérgio V. Motta.
O. Introdução

O principal objetivo deste trabalho é refletir sobre a formação de


São José do Rio Preto, 15 de agosto de 1999. palavras, especificamente palavras formadas através do processo de
truncação. A sistematização desse processo é o que se verá a seguir.
r O processo de truncação consiste na junção de partes de palavras
diferentes que vão gerar uma nova- palavra com novo sentido que
Luciani Ester Tenani abrange os sentidos das palavràs-bases (Laroca,· 1994)'. No caso em
Org~l~adora deste volume
Professora do Departamento de Letras Vernáculas análise, as 1~~~s s~leç~~~das, contextualizadas, vão gerar também
lBILCE / UNESP - CSJRP um sentido .ironico e irreverente.
Um dos pontos que se deseja refletir é quanto ao
estabelecimento de relações entre essas palavras, objeto do estudo, e
outras palavras truncadas já lexicalizadas ou com maior autonomia
semântica na língua, como portunhol e brasiguaio.
Pretende-se responder questões, como: 1) Existe alguma
regularidade na formação destas palavras? 2) Qual o sentido
produzido/trabalhado pelo autor ao criar novas palavras truncadas?
3) Qual a mudança fonológica observada na truncação? É regular? 4) É
viável a busca de explicações para a não lexicalização de palavras
1
Usamos o termo 'truncação' como em Laroca (1994) sem tematizar, por acreditarmos
ser necessária uma discussão aprofundada, a pertinência em se distinguir 'palavra-
valise' de 'truncação' ou 'truncamento de sintagamas'. Discutir a adequação
terminológica para nomear o processo de que tratamos, embora seja importante, requer
a análise de fatos lingüísticos que fogem ao escopo deste artigo.

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truncadas advindas de substantivos próprios em contraposição a outras ponto da ,cadeia segmentai, uma aguda coincidência ou semelhança
que já são lexicalizadas e que não possuem em sua estrutura "partes" de fonética. E o que acontece, por exemplo, quando, das duas palavras
bases Zagallo e Gagá, surge a expressão nova Gagallo. Percebe-se que
substa,ntiv()s próprios?
há uma profunda semelhança fonética em Zaga e Gagá, ocorrendo
apenas a troca da unidade distintiva /z/ por /g/.
Essa regularidade não é verificada em palavras já lexicalizadas
1. Os dados como portunhol ou brasiguaio. Entre a palavra português e a palavra
p,c.,,,v,---,,,lt"""''' 'Au /(
espanhol, em princípio, não se percebe coincidência fonética. É possível
Já algum tempo acompanhávamos os textos do articulista afirmar apenas que, na nova palavra portunhol, há um arranjo tal que
selecionado e percebemos que, ao serem irreverentes e irônicos, esses permite a observação da eufonia.
textos tornavam-se extremamente sutis, · altamente críticos e
sensivelmente inteligentes e, assim, permitia-se nele a inovação.
José Simão, n()sso articulista escolhido (jornal Folha de São 2. A análise
Paulo), assina seus artigos com o pseudônimo de "Macaco Simão".
Inventivo, criativo e extremamente crítico, José Simão realiza É importante ressaltar que os resultados da análise do corpus
verdadeiras "apologias" no campo morfológico. Imaginou-se a seguinte não poderão ser aplicados em todas as palavras truncadas. Primeiro,
questão, enfrentada por José Simão, quando da redação de seus textos: porque o contexto em que as palavras do corpus aparecem é específico;
como dizer "isso", mas sem dizer "isso"? É quando entra o pseudônin10 segundo, porque o sentido que elas criam não é de conhecimento geral
Macaco Simão e responde: "não diga 'isso-isso' diga 'isso-aquilo', (implica uma integração relativamente profunda com o assunto) e,
invente (e intente), crie (e critique), formule novas palavras". terceiro, porque no corpus a presença de substantivos próprios na
Para responder às perguntas inicialmente colocadas, foram estrutura da truncação é constante, o que dificilmente se percebe em
palavras truncadas já lexicalizadas.
selecionadas as seguintes palavras: Cansáslico, Malanta, Naufrágua,
Imaginamos, entretanto, ser possível, partindo do ambiente
Gagallo, Tragicomédia, Tele-afonica, Moerda, Vissome, Piraci-acaba,
específico do corpus, estabelecer, além das conclusões válidas somente
Bauru-caule, Picarelização. nesse ambiente, algumas generalidades desse imprevisível processo de
A estrutura e o processo de formação de palavras como formação de palavras.
porllf!lhQl_e___ }?_!E.siguaio não _se enquadram com a pos~ível linha de
raciocínio levantada a partir da análise das palavras do corpus. Vê-se, a) Existe alguma regularidade na formação destas palavras?
ij claramente, que, em portunhol, aconteceu a justaposição das duas
j.,. primeiras sílabas da palavra português (portu) com a última sílaba da A resposta afirmativa ou negativa e suas argumentações
palavra espanhol (nhol), resultando na palavra truncada portunhol. dependerão da perspectiva em que se analisa essa regularidade.
,...~~y,_5;0•:"~'Em todas as palavras do corpus, fimdamental~ente, as duas Se se parte do ponto de vista formal e morfológico, não se
•. pala~ ?ases,EJ!fª a truncação possuem, em detenrunada parte, 01:.1 encontra, nas palavras, dados que forneçam informações precisas ou
=--~~\-0J'ê,: -''"·'"',.-,
).iÇJ?-; . ,.· J

cj'-';• 10 11
capazes de nos direcionar para uma possível linha de raciocínio que ; , A palavra Ma/anta surge da truncação do substantivo próprio
estabeleça uma regularidade categórica. Malan (sobrenome do Ministro da Fazenda do Governo de Fernando
Em palavras formadas a partir do processo de truncação, não se Henrique Cardoso) com o substantivo comum anta. O que permite a
percebe, salvo rarissímos momentos, a regularidade precisa como a l~gação, inferimos, é a coincidência do fonema /ã/, comum no nome
observada no processo de formação de palavras a partir de afixos. Por Malan (/malã/) e no substantivo anta /ãta/. O fonema /ã/ liga a parte mal
exemplo, é sabido que, em palavras derivadas de afixos, os prefixos da palavra Malan com a parte ta da palavra anta. Outra leitura seria
sempre serão acrescentados no início da palavra-base e os sufixos, em entendér a junção da parte Mal de Malan com a palavra completa anta,
seu final. Essa é a regularidade. Outro exemplo: é sabido que em o que não caracterizaria o processo de truncação ou que o caracterizaria
palavras advindas do processo de elisão, ocorre sempre a eliminação da em parte. Como já nos referimos acima, a ocorrência da independência
vogal átona final da base quando se lhe acrescenta sufixo (olhada+inha de sentido de apenas uma das bases da palavra truncada é comum; não
= olhadainha = olhadinha). Essa é a regularidade. sendo natural, ou melhor, a truncação não caracteriza a independência
Na truncação, esse tipo de afirmação categórica faz-se de muito de sentido de suas bases. Observa-se que não seria possível, levando-se
longe. É arriscado afirmar que uma palavra, advinda do processo de ~m-~i4eração o sentido que o vocábulo adquire no cofüexfo-do
truncação, forma-se exatamente pela junção das duas sílabas iniciais de a~i~ol~-5-mlisado, uma construção do tipo: Ma/burro (Malan + burro).
sua primeira palavra-base e pela última sílaba de sua segunda Pnmerro porque não há a coincidência ou a semelhança de fonemas
palavra-base, como em portunhol. entre as duas palavras (Malan e burro em nada se coincidem ou se
Dessa perspectiva, portanto, diz-se que não há regularidade assemelham, pelo menos fonemicamente ), o que, assim, impede que
categórica na formação de palavras truncadas, mas uma regularidade, aconteça a união e o sentido desejado seja gerado. Bom exemplo para
dir-se-ia, padrão, ou seja~ é possível afirmar que palavras surgidas por reforçar o argumento da coincidência ou semelhança fonêmica seria unir
meio do processo de truncação possuem em sua estrutura partes de duas Malan e asno= Ma/asno, ou seja, apesar· do estranhamento inicial, a
outras palavras-bases, cuja regularidade de formação é imprevisível. É palavra atenderia às necessidades do contexto dado no artigo do jornal
possível ainda afinnar que: se, da palavra truncada, for separada suas pesquisado. Isso só seria possível porque: 1) houve,um fonema, ainda
duas partes, pelo menos uma delas isolada, não terá valor semântico· .que único, comum às duas palavras: /a/; 2) ocorreu a eufonia ·(com
indepéndente; caso possuam, o processo de formação de palavras, então burro, além da falta de coincidência fonética, não ocorreria também
em referência, não se tratará de truncação, talvez de justaposição. Por nenhum tipo de eufonia); 3) um sentido foi conotado (para a alusão que
exemplo, na palavra sucessomaníaco há apenas a justaposição da o articulista desejava criar no artigo, Ma/asno se enquadraria melhor dd
palavra sucesso mais a palavra maníaco e as duas partes possuem um que Ma/burro).
significado. O contrário acontece, por exemplo, com a palavra truncada Há três casos, nas palavras selecionadas, em que se percebe a
a partir de Fantástico (programa dominical transmitido pela Rede Globo presença do hífen. Nesses três casos, há uma pequena variação em
de Televisão) mais o adjetivo cansativo: cansástico; se separados em -relação às demais palavras, pois considera-se tais construções como
cada um de seus 'termos' (cans ou ástico), nada significam sendo, morfologic,amente, uma única palavra e como duas palavras em
isoladamente. nível fonológico. E o caso de Tele-qfonica, Piraci-acaba e Bauru-caute.
Apesar da variação, é possível verificar a pres~nça das

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regularidades observadas nas demais palavras: em Tele-afônica, trunca- tendo importância primordial ao cidadão comum a invenção de uma
se o substantivo próprio Telefónica (nome fantasia da empresa máquina plantadora de café, assim, às vezes, nem na imaginação do
espanhola responsável atualmente pelas telecomunicações do estado de mesmo ela poderá ocorrer.
São Paulo) e o adjetivo afônica, no qual percebe-se: a) a coincidência De maneira parecida imaginamos a criação de palavras dentro do
fonêmica (efônica e afônica); b) a presença do hífen justamente no local corpus selecionado. Dir-se-ia que as palavras truncadas já lexicalizadas,
em que o fonema de ligação se encarregaria de unir as palavras (/f/); e c) co~o portunhol ou brasiguaio, estão para o fax-símile ou o telefone,
a dependência de um dos termos que, no caso de Tele, coincide com um asstm como as palavras selecionadas nos artigos de jornais pesquisados
2
neo-prefixo existente em português • estão para a imaginária máquina plantadora de café. Dessa forma, é
possível afinnar que palavras como portunhol foram criadas a partir de
b) Qual o sentido produzido/trabalhado pelo autor ao criar novas uma necessidade geral e que, portanto, universalizam-se e possuem 0
palavras truncadas? mesmo significado para os habitantes do Norte, do Nordeste ou do Sul
?º Brasil. Já palavras como Vissome - retirada de um dos artigos de
Para que essa relação semântica seja mais bem compreendida, Jornal - não nos conduz a fazer a mesma afirmação. E vários são os
será necessário alguns esclarecimentos que terão como objetivo m~ti~o~ ~ue não nos permitem fazer tal afirmação e que, por
contextualizar o ambiente em que tais palavras apareceram. comc1dencia, são semelliantes aos que não fazem da máquina plantadora
Sabemos que um dos fatores que motiva as grandes invenções é de café ser universalmente conhecida.
a necessidade de solucionar problemas. Diz-se até que a necessidade é a A palavra Vissome terá seu sentido compreendido se o leitor
mãe das invenções. Determinado objeto é inventado comumente para possuir todos os conhecimentos prévios a que ela alude. Da mesma
suprir a necessidade que a falta dele provoca ou para, num curto espaço forma que é fornecido a um cidadão comum, para sua perfeita
de tempo, realizar o que vários outros juntos por demais se estenderiam. compreensão, um leque de informações prévias sobre a importância e
Algumas invenções, quando criadas, dada sua necessidade, diríamos necessidade da existência da imaginária máquina plantadora de café
"humana", são de conhecimento universal. É o caso, por exemplo, do assim deve ocorrer com palavras como Vissome. Essa palavra, deslocad~
aparellio de fax-símile ou do próprio aparellio telefônico, que são de de seu contexto e apresentada isoladamente a um falante da língua, teria
conhecimento e necessidade geral e por isso mesmo foram o mesmo efeito que se solicitasse de um cidadão comum explicações
universalizados. sobre a palavra MAPLA VICADORA, sem antes llie informar que tal
Quando determinada invenção surge, por exemplo, na palavra denomina a imaginária máquina plantadora de vinte mil pés de
agricultura (uma máquina que plante vinte mil pés de café em duas café em dois minutos - recentemente inventada pela engenharia agrícola.
horas), o conhecimento de tal invenção provavelmente não se Desta maneira, para que possamos explicar o modo pelo qual
universalizará, pois, em princípio, a invenção será conhecida apenas foram construídas a ironia e a crítica nas palavras selecionadas dos
entre engenheiros agrônomos, agricultores, fazendeiros etc. Se, não jornais, após ter verificado os fatos morfológicos em evidência, seria
necessária certa abordagem do uso das palavras nos textos em que
ocorreram.
2
Laroca (1994: 87) trata os morfes tele-, auto-, foto- como prefixos e chama atenção Sabendo-se que nosso leitor nenhum conhecimento terá sobre o
para o fato de Cunha e Cintra (1985: 111) considerá-los pseudoprefixos.

14 15
Armínio Fraga um especulador).
contexto em que estavam inseridas as palavras pesquisadas, seria 2.3 - A palàvra aparece no artigo de José Simão em: E mais uma
necessário dizer, sobre cada uma delas, os dados que abaixo se seguem. reflexão sobre o Armínio Naufrágua: num país onde quenga goza e
cafetão sente ciúmes, só faltava uma raposa ética (FSP 20.03.99).
1- Em Cansástico : Outra construção possível seria (de acordo com as informações contidas
1.1- Existência de um programa de periodicidade semanal (aos em 2.1 e 2.2): E mais uma reflexão sobre o Armínio Fraga, que pode
domingos) transmitido por uma emissora de televisão (Rede Globo de provocar um verdadeiro naufrágio econômico no Brasil: num...
Televisão), cujo nome· é Fantástico.
1.2 - O articulista, infere-se pela construção da palavra truncada, cansa- Portanto, a ironia e a comicidade são . verificadas nessa
se ao assistir tal programa. possibilidade de, numa única palavra, inúmeras alusões estarem contidas.
1.3 - A palavra aparece no artigo de José Simão dessa maneira: O Percebe-se que o autor não escolhe palavras aleatoriamente, mas sim
BICHO TÁ PEGANDO! A Globo tá apelando pro Tibete! Liguei no aquelas em que os fatos morfológicos possibilitam tais construções.
"Cansástico ", e.... (FSP, 16.03.99). Supomos, pelas informações 1.1 e
1.2, que uma construção simples contendo a intenção imaginada pelo c) Qual a mudança fonológica observada na truncação? É regular?
articulista seria: O BICHO TÁ PEGANDO! A Globo tá apelando pro
Tibete! Liguei no Fantástico, que é extremamente cansativo, e... Quando se propôs essa questão, tinha-se como objetivo analisar
Mas a ironia e a crítica dão-se justamente pela possibilidade de, as transformações ocorridas na palavra truncada em relação ao acento
numa única palavra, o autor expressar toda a sua 'idéia. A comicidade fonológico.
maior acontece quando, por meio da truncação e dos fatos morfológicos Já vimos anteriormente que uma das condições aqui levantadas,
que a caracteriza (e que em parte já verificamos), há uma quase para que duas palavras-bases possam se unir, é a existência de um
metamorfose vocabular, em que o nome Fantástico se vira do avesso e fonema comum nas duas palavras-bases que se encarregará de ligar tais
mostra verdadeiramente, nele mesmo, a exaustão que toma o autor ao palavras gerando uma única palavra truncada. É interessante notar que
assisti-lo. esse fonema de liga~ão coincide exatamente com o fonema que recebe o
acento fonológico. Desse modo, observa-se que o fonema recebe o
2- Em Naujrágua: acento fonõlógico em cada palavra-base, na qual justamente se dá a
2.1- Armínio Fraga é o nome do novo presidente do Banco Central união em que a formação de uma única palavra acontece. Nota-se, por
brasileiro. Até então trabalhava com Georges Soros, especulador exemplo, que quando se localiza em Ma/anta sua, digamos, origem
internacional. (Malan + anta), verifica-se que o único acento fonológico da palavra
2.2 - Na opinião do articulista, infere-se, pela palavra truncada, que a Malan recai sobre o fonema /ã/ localizado no final da palavra e
nomeação de tal sujeito para presidente do Banco Central (Bé') determina, também, a existência de um único vocábulo formal; a mesma
aconteceu pura e simplesmente para atender interesses internacionais. O observação se dá em anta, cujo acento fonológico recai sobre o fonema
autor diz (sem dizer) que, comArmínio Fraga na presidência do BC, o /ã/, no início da palavra. Comprova-se, portanto, que, como o processo
Brasil pode sofrer, economicamente, um verdadeiro naufrágio (causado de aglutinação, a truncação une suas palavras-bases a partir do acento
pelas especulações internacionais - já que, até então, também era
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fonológico de cada uma delas: há, na palavra no_va Malanta, um ~co determinado número de pessoas. O que não se deve é desconsiderar sua
acento fonológico em lã/ (um vocábulo fonológico e um morfolog1co, existência, pois, mesmo não sendo a "máquina plantadora de café" de
portanto) em que coincide ser justamente o ponto de ligação entre as conhecimento geral, ela não deixaria de ter a sua importância.
duas palavras-bases. . . . . . Dado. este raciocínio, supomos que o processo de lexicalização
Quando, para explicitar o sentido pretendido, o articulista mclm de uma palavra ocorre, principalmente, quando nela se verifica a
o hífen em suas criações, percebe-se que o local é estrategicamente presença de substantivos próprios.
escolhido, ou seja, o hífen é incluído exatamente no ponto em que, Incorporando-se à Lmgua, a palavra não tem motivo algum para
teoricamente deveria ocorrer a união das palavras-bases. De maneira não ser lexicalizada, mas, como verificamos no decorrer do trabalho,
bastante cri;tiva, o autor não as une justamente para que o sentido dificilmente ocorrerá a incorporação à Lmgua de palavras surgidas, por
desejado não seja perdido. Vê-se, por exemplo, que em Piraci-?c~ba, exemplo, em artigos de jornais .
apesar da existência de apenas um vocábulo formal (ou morfolog1co ),
coexistem dois vocábulos fonológicos (um que recai sobre os fonemas
/si/ de Piraci e outro que recai sobre os fonemas /ka/ de acaba). Tal 3. Conclusões
estratégia é relativamente perfeita, pois, se desconsiderássemos a
existência do hífen, a palavra perderia muito do sentido que deseja A truncação é um processo de formação de palavras· que exige
. expressar no contexto do artigo pesquisado: Piraciacaba (sem o hífen) extrema criatividade de seu produtor e está intimamente condicionada
teria, mais ou menos, o mesmo sentido de Piracicaba. O que reforça a aos seguintes fatores morfológicos e fonológicos:
idéia de acabar é justamente a existência de dois vocábulos fonológicos 1) Separando-se as bases ou as 'partes' das palavras-bases em palavras
(causados pela inclusão do hífen), que terminam por direcionar o leitor ·a truncadas, pelo menos um dos termos, necessariamente, não terá
compreender a alusão feita ao verbo acabar e não simplesmente à significação própria, concreta e independente;
própria palavra Piracicaba. ·2) Coincidência fonêmica, mmima que seja, entre as palavras bases;
3) Presença de fonemas que devem coincidir com os fonemas portadores
d) É viável a busca de explicações para a não lexicalização de do acento· fonológico e que serão responsáveis pela ligação, ou corte,
palavr~s. truncadas advindas de substantivos próprios em .·das palavras-bases;
contraposição à outras que já são lexicalizadas e que não possuem. 4) A palavra truncada deverá conter, em sua estrutura, um conjunto de
em sua estrutura nenhuma "parte" de substantivos próprios? elementos relevantes de cada palavra-base, de modo que indique ao
leitor, juntamente com o contexto, as alusões a que se refere;
Reportando-nos à tese das "invenções", já citada anteriormente, 5) As palavras truncadas, salvo as já lexicalizadas, dificilmente fazem
a explicação para a não lexicalização de palavras truncadas advindas de sentidos se analisadas isoladamente;
substantivos próprios, de alguma forma, é até óbvia: quando se usa 6) A truncação possui idiossincrasias que permitem que sua formação se
determinados substantivos próprios .na criação de palavras, a tendência dê nos mais variados contextos, de maneira diversa;
natural é de que elas não se universalizem, pois tais substantivos 7) A palavra truncada, comumente, consistirá na 'metamorfose' de uma
próprios só fazem sentido em um contexto específico e para um palavra principal, cujos elementos internos (fõnicos e mórficos)

18 19

1
1
proporcionam a juntura · de duas outras palavras-bases, fonêmica,
t
• 1
Algumas reflexões sobre os D\ologismos em
fonológica ou morfologicamente
·,
semelhantes. Guimarães Rosa·

Cristiane CAPRISTANO
Referências Bibliográficas Emília RIBEIRO
Rosângela VILA
KOCH, LV & SILVA, M.C.P. de S. A lingüística aplicada ao
português: Morfologia. 5.ed. São Paulo: Cortez, 1989.
CÂMARA Jr., J. .M. Problemas de lingüística descritiva. Petrópolis:
O acervo lexical de todas ~s línguas vivas se renova. A
Vozes, 1969. linguag~m evolui e as formas na· língua envelhecem tornando-se, por
_ _ Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, 197-0.
vezes, mexpressivas após um uso prolongado. Enquanto algumas
CUNHA, C. & L. F. L. CINTRA Nova gramática do português
palavi:as deixam de ser utilizadas e tomam-se arcaicas, uma grande
contemporâneo. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
quantidade de unidades léxicas são criadas pelos falantes de uma
LAROCA, M. N. C. Manual de Morfologia do Português. Campinas:
comunidade lingüística. Ao processo de criação lexical, dá-se o nome de
Pontes; Juiz de Fora: UFJF, 1994.
neologia. O elemento resultante é o neologismo. Este é o nosso objeto
~e~~o. . .
O tema para este trabalho surgiu de uma coincidência: éramos
alunas da disciplina Narrativa Brasileira e estávamos desenvolvendo
nessa disciplina, um estudo com algumas obras · de João Guimarãe;
Rosa, examinando com mais cuidado alguns de seus contos em busca de
uma leitura mais consistente. Quando, na disciplina de _Morfologia
Descritiva da Língua Portuguesa, foi-nos proposto um estudo sobre
neologismos, entusiasmamo-nos em pesquisar o tema nos textos de
Guimarães Rosa.
Guimarães foi um escritor lúcido, irreverente, inovador; seus
textos são resultado de uma profunda reflexão sobre a língua portuguesa
na busca de revitalizá-la e tornar o outrora comum, usual apenas em
arte. Nas palavras de Coutinho (1991, p. 208): ... as obras de
Guimarães Rosa abundam em combinações que parecem estranhas a
uma primeira leitura: um termo coloquial ou dialetal é usado lado a
lado a um termo erudito, uma forma arcaica aparece freqüentemente

21
20
' N
combinada a um neologismo, uma expressão da língua oral se alterna últimos.
com outra exclusivament<Íliterária, e construções clássicas e coloquiais A combinação de elementos para a formação de novos vocábulos
são empregadas às vezes em uma mesma oração. E é nisto que consiste pode dar-se por meio de vários processos. Neste trabalho estaremos
as criações literárias: o uso da palavra como ferramenta do poeta, com
. . '
mvestigando o processo de formação lexical classificado como
um fim em si mesma. Ainda usando as palavras de Coutinho (p, 205), a derivação.
tarefa de todo poeta é explorar as possibilidades latentes dentro do _Por derivação entendemos um processo de formação de palavras
sistema da língua com o que está lidando e conferir existência concreta Pº: mei~ de afixos que são agregados a um morfema lexical . Para que
N

àquilo que existia até então como algo meramente potencial. haJa denvaçao, segundo Koch & Silva (1989), duas condições devem
O corpus que motiva nossas análises foi retirado de contos dos ser preenchidas. A primeira delas consiste na possibilidade de
livros Tutaméia e Ave Palavra. Foi escolhido em função da pertinência depr~~~são sincrônica dos morfemas componentes e a segunda implica a
para o estudo e também em função da apreciação do leitor-pesquisador, possibilidade de o afixo, como forma mínima, estar à disposição dos
ou seja, escolhemos palavras que interessavam ao trabalho e a nós falantes nativos no sistema para a formação de novas formas derivadas.
mesmos. . Podemos verificar a existência de vários tipos de derivação, mas
A análise dos dados recolhidos privilegiará o contexto no qual o a que_ mteressa para nossas considerações é a derivação sufixal, tendo-se
vocábulo está inserido, já que acreditamos que sem ele a análise fica em vista que é ela a responsável pela formação de alguns verbos em
comprometida. português; e aqui delimita-se ainda mais o nosso campo de observação:
Para que as considerações que a serem feitas neste trabalho não a formação neológica de caráter verbal.
se dissolvam em análises pouco fundamentadas, acreditamos ser . As criações neológicas que resultam em formas gramaticais
importante uma explicitação maior sobre os termos que serão utilizados ve~brus (em neologismos sintáticos) partem de uma forma vocabular já
por nós. É necessário compreendermos como funciona o processo de existente, que pode ser um nome, como é o caso dos dois exemplos que
formação de palavras na nossa língua para podermos perceber as se seguem.
nuances na criação de neologismos nos textos de Guimarães. No conto Arroio-das-antas, ocorre o neologismo borralheirar
Deve-se esclarecer que a unidade léxica tem caráter neológico em De vê-la borralheirar, doíam-se, passarinho na muda, flor que ao
somente na medida em que é interpretada pelo r-eceptor. As inovações fim se fana (Tutaméia, p. 18). Este conto fala da história de Drizilda,
lingüísticas encontram certa resistência, pois a língua é um patrimônio uma mulher de quinze anos, sofredora, que depois da morte do marido
comum a todos os falantes da comunidade lingüística. Aos poucos, (assassinado pelo irmão da moça por motivo de desavença: os dois eram
novos vocábulos vão sendo encorporados e registrados nos dicionários. rivais na conquista de uma outra mulher) vai morar no Arroio-das-
Muitas das criações de Guimarães do início do século já se presentificam Antas, um lugar onde só viviam velhas e velhos. A moça foi mandada
oficialmente nos dicionários da língua portuguesa. para esta fazenda a fim de fugir das reprovas disques e piedades
Os neologismos, em geral, podem ser formados por mecanismos (Tu~améia, p. _18); p~de se dizer que ficou ali minguando, refugiando-se,
oriundos da própria língua ou por itens provenientes de outros sistemas dedicando-se as velhinhas a borralheirar.
lingüísticos. Há neologismos fonológicos (são raros) e neologismos Esta palavra surge no contexto apresentado e sua significação
sintáticos (combinam elementos). Dedicaremo-nos à análise desses transcende a definição do substantivo que permitiu a formação do verbo.

22 23
No dicionário, existem as palavras borralheira e borralheiro, ambas mulatizava foi também um nome (substantivo). Essas duas ocorrências
nomes, mas é esta última cujo sentido mais se aproxima do usado por neológicas (mulatizava e borralheirar) parecem ser motivadas pela
Guimarães: "borralheiro adj. l. aquele que gosta de ficar junto ao inexistência, no léxico, de palavras que expressassem as ações narradas
borralheiro, na cozinha. 2. que sai pouco de casa,~-v. gata -a". Observe pelo escritor. Entretanto, mais que uma necessidade prática, o que
que o próprio dicionário nos indica algo mais : "gata-a", ou seja, a ?corr~ com essas formações é uma necessidade de cunho poético, que
personagem do conto A gata borralheira ou melhor Cinderela, uma mte~c10na provocar estranhamento ao leitor. O escritor poderia ter
história recolhida do folclore europeu. esc:1to, por exemplo, que Drizilda trabalhava exageradamente, mas 0
Nessa história, também a personagem passava seus dias a limpar, efeito certamente não seria o mesmo.
cozinhar, lavar e a se dedicar aos outros, sem tempo para si própria. Uma outra forma de criar formas neológicas verbais, utilizando o
Portanto, a significação do verbo borralheirar, criado por Guimarães, me~mo process~ de derivação sufixal e com a mesma motivação, é por
vai além da definição dada ao adjetivo borralheiro no dicionário. Ele m~10 de uma remvenção de verbos já incorporados ao léxico, ou seja,
cria um verbo cuja ação está relacionada com o fato de se trabalhar ena-se uma forma verbal nova, partindo-se de uma já existente.
demais dedicando-se aos outros e em sofrimento interno. Partindo de Vejamos:
·'
uma forma já conhecida na língua (um adjetivo), o escritor cria um
vocábulo novo, com uma nova função gramatical e com sentido, embora Ilha .d~s macaco: êstes, não simples -como não houve ainda outro Jeito nem
próximo, diferente daquele da base nominal que lhe deu origem. remedro. Incessam de bulir, pinguelear, rufionar, madraçar, imitaricar,
Algo parecido acontece com a forma neológica mulatizava, que catar-se e coça-se. Também fazem quiromania, monomanias e
macaquimanhas. (Ave Palavra, p. 92).
aparece no conto Em-cidade, do livro Ave Palavra. Esse neologismo se
encontra no trecho: Ali, sentado sozinho num banco, dia-de-domingo,
Neste trecho, retirado do conto Zoo, aparecem várias palavras
um mulato meditava. Era um mulato não pernóstico, de ar não safado,
aparentemente estranhas, mas muitas delas já fazem parte oficialmente
não cafajeste, não mulatizava; só mulato mulato apenas (p. 147).
do nosso léxico. Apenas rujionar, macaquimanhas e imitaricar
Sabemos que o mulato (aquele que é filho de pai branco e mãe
constituem formas neológicas. Deteremo-nos na análise das formas
preta ou vice-versa) é, em nossa cultura, uma figura bastante verbais: imitaricar e rujionar.
estereotipada. Atribui-se aos mulatos em geral características de safado,
Aparentemente, neste trecho, Guimarães faz uma tentativa de
pedante, cafajeste, alegre, entre outras coisas. E também na literatura
elencar as características dos macacos, fazendo um levantamento de suas
brasileira, ao mulato são sempre atribuídas estas características.
ações. No dicionário, a forma vocabular mais próxima de rufionar é o
Guimarães, no trecho selecionado, apresenta um mulato que é mulato
verbo rufiar, que significa praticar atos ou ter vida de rufião. Segundo 0
apenas e, embora seja como os outros filhos de negros e brancos, não
dicionário, rufião é o indivíduo que se mete em brigas por causa de
desenvolveu as características tão próprias dos de sua raça.
mulh:res de má reputação, um indivíduo brigão que vive às expensas de
Na seqüência do texto, essa situação fica ainda mais explicitada prostitutas, um namorador, um galanteador.
Mulato e ensimesmado, cuido que lhe faltassem o desempeno, a
O poeta, ao que parece, está definindo a personalidade dos
destreza, o dom de dançar com ávida tão próprio seja dos mulatos
macacos .seguindo padrões humanos. Este verbo rufiar não é usual,
bons... (Ave Palavra, p. 147). A forma base para a criação do vocábulo

24 25

1-
pelo menos não em nossa região (noroeste do estado de São Paulo); escritos e a freqüência com que os neologismos ocorrem.
portanto, fica complicado dizer o porquê da modificação para rujionar. A cada momento de nossas leituras, deparávamo-nos com uma
Talvez, como é próprio da formação de palavras, o verbo sofra essa construção diferente, uma frase complicada, urna palavra estranha.
modificação num processo parecido com o que ocorre com o verbo Encontra~ ~egularidade em suas criações requer urna cuidadosa pesquisa
cantar em cantarolar: o último especifica o primeiro. Cantarolar é um e uma analise fundamentada dos dados recolhidos.
modo todo próprio de cantar. Assim, por analogia, rufionar seria um Embora tenhamos nos dedicado à realização da pesquisa e
tipo específico de galanteador, de namorador. . análise, recolhendo dados que nos pareceram adequados ao nosso
Em imitaricar, Guimarães cria urna nova forma verbal, partmdo projeto e interpretando-os, seguindo alguns princípios básicos da
do verbo imitar (do latim imitare), que significafazer exatamente igual formação de palavras, há ainda muito o que refletir e fazer. Falar em
o que jaz uma outra pessoa ou animal, copiar, reproduzir. Parece que, regularidade nas obras de Guimarães parece-nos, agora, bastante
ao utilizar um novo sufixo para ao verbo, Guimarães renova a complicado, tendo-se em vista que estaríamos fazendo afirmações a
significação desta palavra. Para o que ele queria significar apenas o cerca de todo o conjunto de sua obra partindo apenas da análise de
verbo imitar não serviria. lmitaricar nos remete à idéia de um imitar alguns dados.
brincando, saçaricando, fazendo graça e não urna ação meramente cópia Na verdade, o que nos foi possível fazer, em função das
de urna outra.. É a imitação de urna ação ou gesto em um clima de características deste trabalho (duração, experiência das pessoas
comédia, de choça, de troça etc. envolvidas), foi refletir sobre as possibilidades de algumas criações
Nessa última criação verbal, a motivação parece ser a mesma que vocabulares de caráter literário, segmentá-las e analisá-las em
há muito tempo levou ao acréscimo do sufixo 1-zinho/ à palavra só, decorrência do processo de formação utilizado.
formando a palavra sozinho, tão comum entre nós, mas que em outros ~ importância de ter iniciado este estudo está na análise ·que
tempos também tinha caráter neológico, ou s~ja, a necessidade de consegmmos fazer dos dados selecionados, na compreensão mais
transformar o conhecido em estranho, em diferente, em específico. aprofundada a que chegamos quanto aos processos de formação de
Observa-se que, em um mesmo processo de formação vocabular palavras e na maior familiaridade com os textos de Guimarães.
(derivação sufixal), o escritor realiza duas atividades distintas: criação
: A afirmação de que Guimarães é um poeta prosador ou vice-
vocabular de caráter verbal numa relação nome>verbo e depois numa versa nos parece clara agora. Embora não deixe de utilizar os recursos
relação .verbo>verbo. O produto é o mesmo: um verbo incomum, não
do nosso sistema lingüístico, o escritor cria neologismos singulares em
utilizado pelos falantes da língua, mas com motivações diferentes (como função da originalidade, imprevisibilidade e estranheza. Guimarães
já foi dito anteriormente). · explora as possibilidades latentes desse sistema, transformando
As criações neológicas em Guimarães surgem dos mais vocábulos gastos pelo uso em formas literárias repletas de
diferentes processos de formação vocabular. Neste trabalho, procuramos expressividade.
fazer um estudo de um aspecto desse processo para tentar demostrar um
Não_ fomos os primeiros, nem seremos os últimos, a pensar a
pouco da inventividade e ousadia desse escritor.
obra de Gunnarães sob essa perspectiva, pois ainda há muito o que se·
A reflexão sobre as criações neológicas na obra de Guimarães é pesquisar e refletir.
um projeto, sabemos agora, audacioso, tendo em vista o volume de seus

26
27

LI
', 1

Bibliografia Consultada
Neologismos na Cibernética
·.;;,,..,.,.

ALVES, I. M. Neologismo: criação lexical. São Paulo: Ática, 1990 Graciele R. CUCOLO
BASÍLIO, M. Teoria Lexical. 4.ed. São Paulo: Ática, 1995. Aline B. SANTOS
COUTINHO, E. F. (org.) Guimarães Rosa. Coleção Fortuna Crítica 6.
i
2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. /
DANIEL, M. L. João Guimarães Rosa: Travessia Literária. Rio de O. Introdução
Janeiro: José Olympio, 1968.
FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2.ed. , O objetivo central deste estudo é apresentar a descrição da
formação de novas palavras na literatura Cibernética; dessa forma,
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
GUIMARÃES ROSA, J. Sagarana. 7. ed. Rio de Janeiro: José analisar-se-á vocábulos referentes ao léxico provenientes de outro
sistema lingüístico, que no caso são aqueles advindos do inglês.
Olympio, 1995.
Tutaméia. 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969. O processo de criação lexical -aqui observado- , que resulta em
=Ave palavra. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970. uma nova palavra, denomina-se neoJogismo., ~ relevante ressaltar que a
linguagem .cibernética é um espaço bastante ''aberto para a criação de
neologismos, uma vez que a língua usada para seus comandos é a
inglesa e, muitas vezes, não existe correspondente igual na Língua
Portuguesa.
Neologismos sintáticos supõem a combinatória de elementos já
existentes no sistema lingüístico português. Por isso, essas novas
palavras possuem tanto elementos de outros sistemas lingüísticos quanto
elementos próprios do Português.
Não se aprofundou na questão semiótica das palavras, já que não
era a proposta do trabalho, embora essas apresentassem sentidos
extremamente singulares, provocados pelo fato de serem neologismos de
textos e revistas sobre computadQres.

l. Coleta e seleção de dados

A coleta do corpus foi realizada em revistas e textos jornalísticos


apropriados ao tema da pesquisa, "o léxico empregado por· usuários de

29

28
/
I
. Como sinta?~ bloqu~ado, o composto é uma nova palavra que
microcomputadores". A escolha de tais textos não foi aleatória: buscou- se, 1:11corpora ao lexico da língua. Realiza-se a composição com um
se um vocabulário técnico que, por conseguinte, só seria encontrado em ~ o d~ duas palavras portadoras de radical. Cada uma delas conserva
revistas específicas. sua identidade de vocábulo fonológico (justaposição) ou incorpora
Pôde-se obs~rvar urna determinada regularidade em relação aos ambas em uma só (aglutinação). '
termos utilizados nas reportagens consultadas, em outras palavras, ~u~aposição e aglutinação não são duas formas diferentes de
verificou-se que já existe uma "convenção" aplicada às palavras composiçao, como se vem afirmando, mas apenas dois estágios de um
formadas, fato que, provavelmente, impede a coexistência de formas mesmo processo. Um composto pode formar-se já aglutinado como é 0
análogas, como deletàr e * deleter. caso da :ugal !to~ suprimida diante da vogal inicial de out~a palavra;
Foram consideradas somente as formações que, ao menos, contudo isso nao e uma regra.
continham uma parte característica às construções mais recorrentes no ~ . Tem-se observado que uma construção, na qual os elementos
idioma português; sendo assim, palavras como /ayout, hyperlink não estao Justapostos, tende a tornar-se c~da vez mais coesa, caminhando
serão consideradas aqui. dessa forma, para a aglutinação dos componentes. '
As razões pelas quais foram selecionadas algumas dessas Outro aspecto importante da composição é o fato de as palavras
palavras são: (a) a repetição do mesmo processo usado para formar que a f o ~ estar:m relacionadas sintaticamente por subordinação ou
vocábulos, no caso, a composição; (b) os termos deveriam conter, em coord_enaçao (relaçao entre palavra determinante e determinada). Outra
sua formação, componentes referentes à ciência Cibernética. que~tao relevante é ~ impossibilidade da formação de um outro verbo, a
Assim, dos trinta e quatro vocábulos pré-selecionados, foram partir de um composto realizado por um verbo e por um outro elemento
analisados dez. Porém, em razão da brevidade desta exposição, _Em portuguê~, afirma Carone (1988), a derivação é ~
selecionamos, a partir de nossos objetivos, alguns vocábulos: mternauta, P;~ced1men!o gramatical mais produtivo para o enriquecime~to do
ciberespacial, i1?fosfera, Compuserve, interneticamente, internet- le~co. Realiza-se sobre apenas um radical - ou base lexical-, ao qual se
telefones, café com leiternet, intranet, cyber-chapação, backupeando. articulam formas presas, os afixos.
, . . O inventário de afixos é fechado, o que significa que seu número
e hm1tado, e q~e novas criações _são raras na história da língua.
2. Composição e derivação . 1:ª tr~s fo~s de derivação: prefixai, sufixal e parassintética
(realizafªº s1multanea de preftxo e suftxo ); contudo a Nomenclatura
Segundo Carone (1988), a composição é um procedimento pelo G~amatlcal Brasileira ~boliu essa última denominação, embora ela ainda
qual uma construção sintática se imobiliza, dando origem a uma unidade exista.
cristalizada. Em decorrência, forma-se um sintagma bloqueado, com . Co~o ú~tima ressalva, faz-se necessário lembrar que composição
duas características essenciais da palavra: inseparabilidade e e de:ivaçao nao se excluem mutuamente; pelo contrário, podem
irreversibilidade das partes articuladas. E o composto, embora relembre combinar-se à vontade.
figuradamente os elementos constitutivos, tem um terceiro significado,
distinto dos de ambos. ft

31
30 l
li
3. Análise dos dados de?vação prefixai. Ent~etanto, a base lexical /espacial/ é formada por
doIS elementos: um radical /espacl, que perdeu sua desinência nominal
a) INTERNAUTA devido a uma regra fonológica, e um sufixo nominal /-ali. O processo
/inter(net)/ + /nauta/3 descrito denomina-se derivação sufixal. ·
Assim como nos itens analisados anteriormente, essa forma de
À primeira vista, esta palavra pode ser classificada como sendo significado do espaço Cibernético, foi muito encontrada nos te~os
uma derivação prefixai (tendo como prefixo /inter-/ mais a base lexical pesquisados.
/nauta/); contudo, considerando também o· critério semântico da palavra
dentro da literatura cibernética, nota-se que /inter/ não é um prefixo que
significa somente entre, mas sim a redução da palavra internet (rede de
.computadores ligados uns aos outros). Assim, pode-se concluir que o
processo utilizado para a construção, que expressa aquele que navega
J · c) INFOSFERA
/info(rmação)/ + /(e)sfera/

O vocábulo informação une-se com um outro (esfera); por haver


entre rede, é a composição por aglutinação. per_da de elementos segmentais em ambas palavras, a princípio, poder--
No que tange à recorrência dessa palavra, pode-se observar que se-ia. de~ominar o processo de formação como composição por
seu uso já se tomou freqüente, aparecendo em revistas não aglutmaçao. Entretanto, em um segundo momento, pôde-se verificar
· especializadas em Cibemértica, mas que fazem referências à informática. que, mesmo com perdas segmentais, a partícula linfá-1 pode ser
A respeito da relação sintática do composto acima, verifica-se caracterizada como um prefixo, já que essa é recorrente, especialmente,
que ocorre subordinação do adjunto adverbial de lugar internet (leia-se na linguagem cibernética, como se bem observa na música de Gilberto
"da internet") em virtude da presença do substantivo nauta (= Gil Pela Internet, no vocábulo infomaré. Dessa forma, nota-se uma
navegador). É interessante mencionar que nauta é uma forma livre, ou truncação, processo pelo qtml duas bases se unem para formar um novo
seja, é um vocábulo independente. Ao contrário do que se acredita, vocábulo e, ainda que ocorra algumas perdas de segmentos estes são
internauta não vem da palavra astronauta. A única relação que pode ser facilmente recuperados. '
feita entre ambas é que as duas são formas compostas. . Quanto à relação sintática, nota-se que, em infosfera, ocorre
subordinação do adjunto adnominal informacional, visto que a palavra
b) CIBERESPACIAL . formada poderia ser traduzida por esfera informacional.
/ciber(nética)/ + /espaç(o)/ + /ai/
d) COMPUSERVE
Considerando-se a grande recorrência da forma ciber, /compu(tador)/ + /strve/
significando a Ciência da Computação, pode-se concluir que essa já se
tornou um prefixo na língua. Por isso, a palavra ciberespacial é uma ? vocábulo computador, ao juntar-se ao verbo servir, conjugado p
na tercerra pessoa do singular do Presente do Indicativo, perde alguns i

3
Fizemos a opção de não usar transcrição fonológica e, embora entre barras, elementos segmentais que, no entanto, são facilmente recuperáveis.
mantivemos a escrita ortográfica dos morfemas em análise. Está-se diante de um processo de truncação.

32 33
Por se tratar da marca de uma empresa, essa palavra é vista em Mais uma vez, encontra-se a relação sintática de subordinação,
quase todos textos lidos. Nota-se, ainda, que há, no nome da empresa pois, mesmo não estando escrita em urna forma de adjunto adverbial, ao
Compuserve, umjogo de troca·da seqüência das palavras: o verbo servir se fazer a tradução, pôde-se ter a leitura telefones por internet.
vem após a palavra computador; entretanto essa troca não acarreta a
mudança de sentido do composto para computador serve. g) (café com) LEITERNET
No que tange à relação sintática, pode-se afirmar que o verbo /leit(e)/ + /(int)emet/
conjugado serve é o determinante, restando, assim, a condição de

J
determinado para computador. Esta relação de subordinação é ratificada No composto descrito, em ambos termos, ocorre a supressão
ao se fazer a tradução do composto: serve-se computadores. dos elementos átonos, logo, verifica-se uma truncação.
É relevante mencionar que a expressão pejorativa café com leite,
~) INTERNETICAMENTE significando pessoa incapacitada, perde essa conotação, designando um
/internet/+ /-ica-/ + /-mente/ site de receitas culinárias.
Quanto à recorrência, esse site é constantemente visitado por
O vocábulo internet, ao juntar-se o sufixo átono formador de donas de casa e por amantes da boa comida, segundo os textos lidos.
adjetivos e substantivos/-ica/, mantém sua classe de palavras. Contudo, Novamente, depara-se com uma subordinação no composto
ao receber o sufixo /-mente/, muda para a classe dos advérbios de modo. formado: leite determina internet, já que o leite (entendido como
Este processo de formação de palavras é denominado derivação sufixal. alimento) está na internet (adjunto adverbial de lugar), significando
Esse advérbio já pertence ao repertório mais usual de termos da alimento na internet. ·
Cibeméti~a, em outros termos, é comumente empregado com o valor
sintático que fora antes mencionado, encerrando todos os sentidos da . h)TNTRANET
palavra internet, como rapidez, :funcionalidade, praticidade etc. · /intra/ + /net/

f) INTERNET-TELEFONES Nesta palavra, não se hesita em afirmar que o processo


/int~rnet/ +/telefone/+ /-s/ empregado para formá-la fora a derivação prefixai, uma vez que /intra-/
é um prefixo, significando dentro, já dicionarizado e reconhecido pela
Em um processo de compos1çao por justaposição, dois Gramática Normativa.
vocábulos conservam seus elementos segmentais, ao serem ligados por Intranet foi encontrada em apenas um texto pesquisado, sendo o
um hífen. Nessa nova e única palavra, ainda é possível detectar flexão de título do mesmo; porém o vocábulo dentro da rede, isto é, rede interna
número (plural) em telefone. de comunicação via computador, não é uma inovação para a ~teratura.
Sendo esse um dos novos recursos oferecidos pela internet
(telefonemas que podem ser dados via computador), sua divulgação é
ampla, atingindo todas as revisms e jornais da área.
1
34 35
r J
i) CYBER-CHAPAÇÃO de cnaçao recente) estudados for~ antes empréstimos lingüísticos.
/cyber/ + /chap(ar)/ + /-ação/ Esses perderam tal status por "aceitarem", incorporarem elementos
próprios da língua portuguesa, como o verbo deletar.
Embora se afirme que cyber é um prefixo, sua grafia ainda não Pode-se observar também que determinadas palavras que não
está totahnente regularizada (grafado ora com -i, ora com -y) e pode ser são prefixos (e. g.: ciber-), segundo os dicionários consultados, estão
encontrada facilmente. Por não estar dicionarizado como prefixo, não há prestes a se tomarem, em razão de sua constante recorrência. Essas
uma regra quanto ao seu emprego na escrita (com ou sem hífen). palavras ocasionam uma convergência entre derivação e composição, ou
Cyber-chapação é um vocábulo formado por uma derivação seja, o que antes era composição, passa a ser entendido como um
prefixai. Mas pode-se observar que chapação é um deverbal processo de derivação. Diante desse fato, a afinnação de Carone (1988)
progressivo, formado por sufixação (chapação, chapar). sobre o inventário de afixos, ao menos de prefixos, ser fechado,
Essa palavra, que possui o significado de ficar drogado com a limitado, com raras criações, não parece ser completamente verdadeira.
Cibernética, foi encontrada em um texto que reunia as gírias mais A explicação para o acima descrito seriá a dinamicidade do sistema
empregadas pelos jovens que utilizam computadores. lingüístico, propenso a constantes mudanças. _
Por último, quanto à formação de palavras que não soam de
j) BACKUPEANDO maneira agradável, natural para os ouvidos, é importante lembrar que os
/back/+ /up/ + /-eando/ recursos que propiciam o surgimento de novos vocábulos no idioma
português estão à disposição de qualquer falante e que, a aceitação ou
O radical /backup-/, proveniente do inglês back up significando não desses - que cumpram as regras dos dispositivos da língua-, é uma
cópia, recebe o sufixo formador de verbos da primeira declinação /-ai, questão meramente estética, de cunho pessoal.
na forrria de gerúndio /-ando/. A vogal e é "incorporada à base lexical,
graças à pronúncia portuguesa, que sempre apoia sua sílaba final em
uma vogal. Assim, tem-se um processo de derivação sufixal. Referências Bibliográficas
A respeito da recorrência da forma backupeando, que significa
fazer uma cópia-reserva, pode-se dizer que ela não é somente ALVES, I. M. Neologismo: criação lexical. São Paulo: Ática, 1990.
encontrada na literatura cibernética: usuários de computadores BASÍLIO, M. Teoria Lexical. 4.ed. São Paulo: Ática, 1995.
empregam tal palavra diariamente, como fazem com vocábulos ·como CARONE, F. B. Morfossintaxe. São Paulo: Ática, 1988.
enter, delete, dar um control. KEHDI, V. Morfemas do Português. São Paulo: Ática, 1~90.
Formação de Palavras em Português. São Paulo: Atica, 1992.
SANDMANN, A. J. Morfologia Lexical. São Paulo: Contexto, 1992.
4. Conclusão

A análise sincrônica dos mecanismos utilizados na formação de


palavras que foi feita demonstra que alguns dos neologismos (elementos

36 37
%
f/,

'
Morfologih Pluviosa 4
Não me chovas, maria, mais que o justo
Érica M. MOLTNARI chuvisco de um momento, apenas susto.
Saulo de P. BUENO JR
Nãº. me inundes de teLJ llq1Jicl9_plasma, ·:,,

não sejas tão aquático fantasma!

5
Iniciamos este artigo, apresentando o texto a ser analisado. Os f Eu lhe dizia - em vão - pois que maria
números que· aparecem no poema indicam como agrupamos os versos quanto mais eu rogava, mais chovia.
para análise. . j
ft. E\chuveirando atroz em meu caminho,
o deixava banhado em triste vinho,
CASO PLUVIOSO \
que não aquece, pois água de chuva
1
mosto é de cinza, não de boa uva.
'A CHUVA me irritava. Até que um dia
descobri que maria é que chovia.
6
Chuvad~ira maria, chuvadonha, ·
A chuva era maria. E cada pingo \ chuvintientá, chuvil, lfLiv[meclonhãJ
de maria ensopava o meu domingo. '7:~

Eu lhe gritava: 'Párª! E ela, chovendo,


2 poças dágua geladaiateêendo. ·.
E meus ossos molhando, me deixava
como terra que a chuva lavra e lava.
L 7
Choveu tanto maria em minha casa -
Eu era todo barro, sem verdura ...
que a c.9rrenteza forte criou asa
maria, chuvosíssima criatura!
e um rio se formou, ou.mfilJlãO sei,
'3
sei apenas que nele me afundei.
Ela chovia em mim, em cada gesto,
pensamento, desejo, sono, e. o resto. 8
E quanto mais as ondas mele~,
Era chuva fininha e chuva grossa, as fontes de maria mais chuvavam, .:.e
matinal e noturna, ativa... Nossa!
de sorte que com pouco, e sem recurso,
as coisas se lançaram no seu curso,
e era o mundo molhado e sovertido
sob aquele sinistro e atro chuvido.
38
39
9
Os seres mais estranhos se juntando
aborrecimento para os alunos, quando feito com as palavras isoladas.
na mesma aquosa pasta iam clamando
Listas e mais listas de vocábulos vão sendo exemplificadas sem o
contra essa chuva, estúpida e mortal contexto em que elas foram inseridas.
catarata 0amais houve outra igual).
O objetivo deste trabalho é analisar os processos que formam as
10
palavras justamente no texto em que elas foram usadas e até criadas pelo
Anti-petendam cânticos se ouviram.
Que nada! As cordas dágua mais deliram, seu escritor. É por este motivo que as palavras do poema de Drummond
ganham sentidos em todo o texto e não isoladamente. Propomos, então,
e maria, torneira desatada, desenvolver um trabalho, atando a função poética da linguagem, a
mais se dilata em sua chuvarada. criação artística, aos os processos de formação da língua formal e,
também, a outras formações que o eu-poético vai desenvolvendo no
11
Os navios soçobram. Continentes decorrer do poema. .
já submergem com todos os viventes, O corpus é um longo poema, constituído de vinte seis estrofes e
cinqüenta e seis versos e, em função da análise a ser feita, foi separado
e maria chovendo. Heis que a essa altura, blocos de duas, três ou quatro estrofes (indicados por linhas pontilhadas
· delida e fluida a humana enfibratura; e enumerados). São todos versos decassílabos, numa grande elaboração
do poeta. Portanto, o poema apresenta uma estrutura fixa: é constituído
e a terra não sofrendo tal chuvência,
comoveu-se a Divina Providência, de um título, vinte e seis estrofes de dois versos cada, e todos com dez
sílabas métricas.
e Deus, piedoso e enérgico, bradou: No primeiro bloco, aparece a relação entre chuva e maria. O eu-
Não chove mais, mana! - e ela parou. poético destaca a palavra chuva, colocada em maiúscula, e, longo em
seguida, presentifica a grande metáfora do texto: A chuva era maria; ele
logo afirma, ou seja, deixa bem explicito o que é a causa da sua
Tendo como objetivo a realização de um trabalho sobre irritação. Também é importante observar a colocação de Maria em letras
formação de palavras, abordando, principalmente, os aspectos formais
minúsculas. Talvez maria seja qualquer mulher ou todas as mulheres.
envolvidos nos processos de formação de palavras da língua portuguesa,
· No segundo bloco, há uma projeção subjetiva do eu-poético
buscou-se o texto Caso Pluvioso, de C. Drummond de Andrade, para
análise. quando ele diz: E meus ossos molhando. Aqui ocorre a interiorização
subjetiva que vai começando a tomar o sentido da chuva maria. Osso
Por que um texto literário e não umas palavras soltas de várias
compõe a parte interna do corpo humano, aquilo que fica no interior do
frases? Essa questão merece ser respondida, logo no início do trabalho,
indivíduo. Assim, maria vai interiorizando-se no eu-poético. A chuva
porque tal procedimento coloca-se em evidência uma característica do
cultiva o seu interior e depois retira tudo aquilo que foi cultivado: me
ensmo da língua portuguesa. O ensino da Gramática torna-se um
deixava/ como terra que a chuva lavra e lava.
· Uma outra palavra surge no poema, adjetivando a personagem
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41
maria: chuvosíssima criatura. Existe aqui um processo de formação de atroz em. A construção da palavra chuveirando é outra manifestação
palavra por derivação sufixal, constituído por um morfema lexical, artística, em que a palavra chuveiro, no sentido de jorrar, aguar, é
lchuv-1, do substantivo chuva, mais os sufixos 1-osa/ e l-íssimal entre os evidenciada. No morfema lexical lchuveir-1, do substantivo chuveiro, é
quais houve uma elisão da vogal /ai do primeiro sufixo. O ~so de l- acrescentado a vogal temática /-ai do verbo chuveirar, mais a
íssimo/, com base substantiva, não é muito comum na nossa lú1gua, mas desinência modo-temporal 1-ndo/ de gerúndio. Sentido este que gera
entra como um reforço para caracterizar a personagem maria dentro do uma ação que teve começo antes e ainda continua. É o que ocorre com a
contexto. Esse sufixo, com grau superlativo, acaba intensificando a chuva maria. O seu ato pegajoso é constante, contínuo, pois é
qualidade da chuva maria. comparada a um chuveiro que não pára de pingar no caminho do eu-
No terceiro bloco, destaca-se os adjetivos que maria vai poético. É bem observável o uso da palavra chuveiro relacionada sempre
recebendo do eu-poético: Era chuva fininha e chuva grossa, matinal e com a palavra chuva, porque, assim como foi dito acima, a palavra
noturna, aliva... Nossa! Ressaltado pelo ponto de exclamação, maria é chuveirando é derivada do substantivo chuveiro, que por sua vez deriva
presença tanto de dia como de noite, o que começa a projetar uma certa do morfema lexical /chuv-1 da palavra chuva, mais o sufixo de gerúndio.
característica de maria, porque ela está presente a todo o momento, de Também é expressa mais uma característica negativa de maria,
um modo ou de outro. E também o nono verso reforça a própria que vai sendo definida como uma causa que irrita. Ela é um sumo que
presença .de maria pelo verbo chovia em mim, que dá a idéia de não dá boa uva: chuva -mosto é de cinza; e também pelas palavras triste
presença freqüente, contínua sobre ele. vinho, cinza.
No quarto bloco, estrofes sete e oito, o eu-poético projeta o seu Neste ponto da análise é importante comentar o caráter
discurso diretamente a maria : Não me chovas, maria, mais que o justo pejm:ativo que os processos de formação de palavra vão delineando. A
chuvisco de um momento, ressaltado pela projeção do eu do nono verso. partir do que afuma Basílio (1995), podemos dizer que o eu-poético
Aqui surge uma outra palavra que é de grande importância dentro utiliza-se de processos de derivação com a finalidade de indicar atitudes
poema. A palavra chuvisco resulta de um processo de derivação sufixal subjetivas. Esses processos morfológicos ficam a serviço da função
cm que há a base substantiva /chuv-1 mais o sufixo /-isco/. denotado; expressiva da linguagem e vão sendo desenvolvidos nos outros versos
diminutivo. Dentro desta intenção de projetar a imagem de :naria como seguintes.
uma pessoa presente a todo momento, ele restaura a chuva maria fininha No sexto bloco, aparece um grande número de processos de
para que ela se apresente apenas em poucos momentos, como um formação de palavras que definem e geram várias características de
chuvisco. Aqui o eu-poético começa a aborrecer-se da presença de maria: Chuvadeira maria, chuvadonha,lchuvinhenta, chuvil,
maria; é o começo de um pedido de afastamento de uma pessoa pluvimedonha!. A pejorativização de maria é intensificada por estas
gr~denta, como percebemos pelo adjetivo líquido plasma do décimo palavras, com o uso da base /chuv-1 acrescida de sufixos. O sufixo 1-
qmnto ve:so e, também, pelo adjetivo chuvinhenta do vigésimo quarto deiral designa o agente maria na intensificação do seu trabalho de
verso, mais a frente. provocar uma chuva que irrita. O sufixo 1-donhal caracteriza um hábito
O quinto bloco é formado por três estrofes. O eu-poético constante de maria na vida do eu-poético; e também esse sufixo é usado
com~nt_a a perseverança e insistência de maria, que nem se importa com na formação da palavra pluvimedonha, que tem como base o morfema
as suplicas dele: quanto mais eu rogava, mais chovia./ E chuveirando lexical /pluvi-1 do substantivo pluvial e nos remete à chuva. Sua

42 43
fonnação surge a partir de um processo de composição, que pega a base e da confirmação de sua parte, que mergulhou nesta imensidão de
de pluvial, /pluvi-1, com base da palavra medo, em que já está aborrecimento com a pegajosa e importuna maria: sei apenas que nele
acrescentada o sufixo /-onli_l/; fonnando, assim, um neologismo. Em me afundei. ,.
chuvinhenta forma-se a base /chuv-1 mais o sufixo diminutivo 1-inhal e Uma ruptura é feita no oitavo bloco do poema. O eu-poe~1co
o sufixo 1-ental, qqe marca a idéia de uma característica dupla, deixando começa a demonstrar que há uma mudança no curso da narra~1va;
a formação de um adjetivo com grande produtividade de pejorativização Encontramos, neste bloco, a formação da palavra chuvavam que nao e
de maria. Outro processo de fo~ção de palavra interessante é o da aceitável dentro da Gramática Nonnativa Brasileira, pois o verbo chover
palavra chuvil. Por meio da base do substantivo /chuv-1, da palavra é um verbo impessoal e, portanto, invariável, não tendo sujeito na
chuva novamente, é colocado o sufixo /-ili, fonnador de um adjetivo terceira pessoa do plural. Sem contar que a sua fonnação é feita _c~m .º
por intermédio de um substantivo, que tem o valor de referência, radical do verbo chover mais a vogal temática /-ai e uma desmencm
semelhança. Mas pela situação do contexto, podemos inferir que o eu- modo temporal do pretérito imperfeito do indicativo, o ~ue_ s~ria
poético procura dar um sentido pejorativo de uma pessoa vil; portanto, impossível, pois não existe a primeira pessoa do presente do md1cativo
desprezível, sem importância, comum como o próprio nome Maria. A que geraria este modo temporal, e a desinência número pessoal d:
palavra pode ser formada por um processo de composição, em que duas terceira pessoa do plural/-m/. Mas o próprio Celso Cunha (1995) nos da
bases diferentes (/chuv-1 + /-vil/) se fundem, evidenciando um uma observação: É claro que, em sentido figurado, ambos os verbos
neologismo. Ponto em que se pode dizer que a presença da função que exprimem fenômenos da natureza como os que, designam vozes de
poética é estabelecida, através de uma de suas características: o animais podem aparecer em todas as pessoas. E o caso do t~~o
surgimento da ambigüidade no texto pela formação dessa palavra. poético. Dentro do processo de construção do poema, o eu-~oet1co
Assim, a construção da palavra mostra o selecionar e o combinar de trabalha com a criação de uma nova palavra para gerar o sentido e a
palavras que geram sentido, que dá uma adjetivação a maria. Pode-se ação da chuva maria. Portanto, ele cria o verbo chuvar e, a partir daí,
falar em uma criação lexical, um neologismo. dentro do texto, pode-se aceitar a conjugação do verbo chuvavam: o
Fechando este bloco, o eu-poético encerra a fase de diálogo com morfema lexical /chuv-1 mais a vogal temática de primeira conjugação l-
uma exclamação: Pára. O que não resolve o seu problema, pois a ação a/ mais as desinências modo-temporal e número pessoal 1-vaml.
de maria é incessante: E ela, chovendo, poças d'água gelada ia Definitivamente encontram-se palavras fora do eixo de chuva
tecendo. Aqui outras duas formações de palavras apontam para o que apontam para a caracterização disfórica que é a ação e a presença da
sentido de continuidade, de uma ação que não é interrompida pelos atos chuva maria. Primeiro é mostrado a situação a que chegaram as ações
de maria: a fonnação dos verbos no gerúndio chovendo e tecendo, de maria, deixando o todo da situação molhada, quando ele afirma: e
formados a partir dos radicais dos verbos chover, lchov-1, e do verbo era o mundo molhado e sovertido; e depois as palavras sinistro e atro
tecer, /tec-1, juntamente com o~ sufixos de desinência modo temporal I- chuvido. Sínistro indica mau agouro; funesto; de má índole. Já em atro
ndo/ e a vogal temática /-e/. chuvido há a palavra atro que é um adjetivo que designa negro, lúgubre;
No sétimo bloco, vê-se a grandiosidade dos atos de maria, que tenebroso, funesto. Aqui pode-se relacionar o sentido de disforia que é a
vão sendo gerados pelo sentido da palavra correnteza, e da gradação de presença de maria com esses adjetivos. Também aparece ~ma outra
rio e mar. Outro aspecto de importância é a manifestação do eu-poético, fonna de processo de fonnação de palavras. O verbo chuvar e usado na

44 45
~ '1'

palavra chuvido. Numa primeira leitura, aparece wn processo de


l
não sofrendo tal chuvência. Ao morfema lexical lchuv-1 do verbo
derivação por sufixação, em que à base /chuv-1 do verbo chuvar é chuvar, é acrescentado o sufixo l-ência/, que forma o substantivo,
acrescido o sufixo de particípio /-ido/. No entanto, se se considerar o gerando o sentido de resultado da ação da chuva. Tal criação é bem
. contexto, nota-se que a palavra chuvido pode assumir, também, a função fortalecida pela rima com providência do verso seguinte: e a terra não
sintática de substantivo, pois está sendo caracterizada pelo adjetivo atro. sofrendo tal chuvência, /comoveu-se a Divina Providência. É projetado
No nono bloco, existem palavras que remetem ao sentido de que a terra, os outros lugares, outros espaços não sofrem dessa
chuva e, portanto, ao sentido de água maria. É o que se vê com as insistente chuva maria, e o eu-poético apela para uma força divina para
palavras aquosa pasta, uma chuva maria que se tornou um líquido o livrar desse incômodo chamado maria: e Deus, piedoso e enérgico,
grosso e melento, e "catarata", o que remete para o sentido de bradou: /Não choves mais, marial - e ela parou., dando wn fim a
incessante e ininterrupta presença. Os adjetivos também têm importância catarata maria que não parava de molhar o seu interior, tanto de dia
para acentuar a disforia que é a chuva maria: ela é uma chuva estúpida e como de noite.
mortal catarata. Outro aspecto é a mudança de percurso que segue a Feita as análises de algumas palavras, considerando o contexto
narrativa. Começa existir uma posição de tentar acabar com essa chuva em que ocorrem, pode-se fazer uma abordagem geral do poema. O
maria, principalmente, com a palavra contra, que inicia o começo do próprio título apresenta um processo de formação de palavra, em que é
verso trigésimo nono do poema. E, logo depois, aparecem os adjetivos usado a base da palavra pluvial e acrescentado o sufixo 1-osol, termo
negativos sobre maria. que tem o sentido cheio da substância água. Portanto, pode-se inferir
Depois dos apelos pronunciados nas estrofes anteriores, o que, logo no começo do poema, é mostrado wn índice de uma estória
décimo bloco mostra que eles não foram ouvidos. E maria insiste na sua que vai acontecer, e, depois de ter lido o poema, compreende-se o que
torneira desatada em que ela mais intensifica a quantidade de ser significa este caso cheio da chuva maria.
chuvinhenta. Usando palavras como torneira desatada que se dilata, o Dentro de uma estrutura fixa, o poema é bem elaborado, pois
eu-poético alcança o máximo em quantidade com a construção da apresenta em todos os seus versos uma métrica decassílaba, com a
palavra chuvarada, em que ocorre um processo de derivação sufixal. formação de palavras conhecidas e desconhecidas que exploram o tema
Usando o infinitivo do verbo chuvar, ele forma wn substantivo com o do poema. Para elaborar este poema, o eu-poético utiliza-se do processo
sufixo ./-ada/, dentro do contexto, gerando um sentido de duração de derivação com uma função exclusiva de indicar atitudes subjetivas.
prolongada pela dilatação da torneira desatada de maria. Ele vai usando esses processos morfológicos para salientar a função
No último bloco, formado com as quatro últimas estrofes, chega- expressiva da linguagem, função esta que tem a finalidade de mostrar
se ao desfecho da atuação de maria. A prática de maria é ainda uma atitude emocional do eu-poético em relação à enunciação. Através
contínua, como no verso de número quarenta e sete: e maria chovendo. das palavras chuva, chover, chuveiro ele vai criando os adjetivos de
O gerúndio chovendo é formado através do processo de derivação maria e os seus estados: chuvossíma, chuvisco, chuveirando,
sufixal, em que se usa a base do verbo chover. A atuação de maria é chuvadeira, chuvadonha, chuvil, chovendo, chuvido, chuvarada,
mantida até o final do poema, em que o eu-poético se vê obrigado a chuvência etc.
fazer um apelo. Também aparece outro processo de formação de palavra Ele utiliza recursos da derivação sufixal, como os superlativos,
por derivação sufixal, no primeiro verso da penúltima estrofe: e a terra para intensificar o significado dos signos, numa atitude de desqualificar a

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imagem da chuva maria, reforçaIJ.ctb o sentido disfórico do texto com a CUNHA, C. Nova gramática do riortÚguês contemporâneo. Rio de
pejoratividade. Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
Assim, as funções da linguagem também vão sendo tecidas no DRUMMOND, C. de A. Obra completa. Companhia Aguilar Editora;
texto com extrema coerência. A função emotiva é manifestada pelo eu- Organizada por Afrânio Coutinho, 1964 - Viola de Bolso I (1950 -
poético, a função, expressiva da linguagem é representada pelos 1955) Prima & Contra-Prima (p. 374).
processos de formação de palavras, e, assim, presentifica-se a
preponderância da função poética, o que caracteriza o tipo de texto
estudado.
Outro aspecto, que é de grande importância neste texto e que
poderia ser explorado, é o campo semântico das palavras, que está todo
voltado para o signo da água. Já, no título do poema, há a água:
pluvioso e depois no decorrer do poema: pingo, inundes, aquático,
líquido, banhado, mosto, poça, rio, mar, aquosa, catarata, ondas,
navios etc. Todos esses vocábulos ocorrem de modo a convergir para o
que mais lhe irrita: a chuva maria.
Aqui cabe responder, de novo, a pergunta colocada no início do
presente trabalho. Por que ensinar a língua matem.a com vocábulos
isolados, tentando mostrar o processo de formação das palavras? Pode-
se ensinar a língua portuguesa através dos textos, que prendem o aluno-
leitor interessado no que ele quer dizer, e mostrar o significado das
transformações da língua,· enquanto processo que evolui e modifica-se.
Depois pode-se analisar a origem das palavras, seu processo de
formação, seus constituintes fonêmicos (se for o caso), sua colocação
gramatical, o uso formal e informal que possam ter. Assim, o aprendiz
pode interessar-se pela leitura de textos, livros, jornais. E aí está a
oportunidade de o ensino da língua materna ser trabalhado de modo a
mostrar toda a sua utilidade e importância no uso da linguagem, por
exemplo, na literatura.

Bibliografia Consultada

BASILIO, M. Teoria Lexical. 4.ed. São Paulo: Ática, 1995.

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Tudo seu azul tudo céu aiul e furta-cor
Neologia em Canção Tudo meu amor tudo mel tudo amor e ouro e sol
Na televisão na palavra no átimo no chão
Quero essa mulher solamente pra mim mas muito mais
Margarida Amália R. PONTES Rima pra que faz tanto mas tudo dor amor e gozo:
Luciana PRUDENTE C. SILVk
Outras palavras.

É por meio das palavras que formamos enunciados e fazemos um. Nem vem que não tem vem que tem coração tamanho trem
uso tão automático das mesmas, que não paramos muito para pensar Como na palavra palavra a palavra estou em mim
E fora de mim quando você parece que não dá
nelas. O acervo de todas as línguas vivas se renova e enquanto umas Você diz que diz em silêncio o que eu não desejo ouvir
palavras deixam de ser utilizadas (arcaísmos), outras são criadas pelos Tem me feito muito infeliz mas agora minha filha:
falantes da comunidade. Como a língua é um patrimônio de toda uma
comunidade lingüística, a todos dessa comunidade é facultado o direito Outras palavras.
de criatividade léxica. Entretanto é através dos meios de comunicação
Parafins gatins alphalus sexonhei da guerrapaz
de massa e das obras literárias que os neologismos recém-criados têm Ouraxé palávoras driz okê cris expacial
· oportunidade de ser difundidos e, eventualmente, lexicalizados. Projeitinho imanso ciumemortevida vidavid
É por meio, então, das canções a prosa impúrpura do caicó de Lambetelho o frúturo orgasmaravalha-me Logun
Chico César e Outras Palavras de Caetano Veloso, que o presente Homenina nel parais de felicidadania:
trabalho se propõe a estudar a criação léxica, analisando cómo se
formam alguns dos processós neológicos nos respectivos contextos Outras palavras.
musicais. Busca-se, por meio da análise morfológica, justificar os
possíveis caminhos de leitura das obras em questão. A seguir, a primeira
canção a ser analisada. O texto da canção acima, Outras palavras, já de início, explicita
um desejo de criar sensações positivas, nada ácidas, "cica ", ou tristes,
nada negativas. Dessa forma, Outras palavras, título e também refrão, é
Canção 1 a expressão clara da proposta poética da canção: o abandono da
Outras palavras · linguagem desbotada e desgastada,. buscando uma nova linguagem, que
seja mais alegre, mais rica e criativa. Então, essa riqueza pode surgir de
Nada dessa cica de palavra triste em mim na boca empréstimos lingüísticos, misturando-se diferentes idiomas: Hiperestesia
Travo trava mãe e papai alma buena dicha louca Buarque voila tu sais de cor; ou graças a paralelismos e trocadilhos:
Neca de sono de nunca jamais nem never more Tudo seu azul tudo céu tudo azul e furtacor/Tudo meu amor tudo mel
Sem dizer que sim pra Cílu pra Dedé pra Dadi e Dó tudo amor e ouro e sol (grifos nossos). Dessa forma, a canção sob
Crista do desejo o destino deslinda-se em beleza:
Outras palavras.

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50
análise realiza metalinguagem, ou seja, utiliza a própria língua como
instrumento para falar da língua, ao mesmo tempo diz e jàz o que diz. no novo vócábulo. Aliás, justamente por causa deste recurso, foi
possível identificar as prováveis origens desta neologia. O sentido de
No verso quase João Gil Ben muito bem mas barroco como eu, palávoras seria, então, o de "palavras venenosas, ferinas, perigosas" e a
a canção parece sinµJ.izar que a reinvenção das palavras não pode ser classificação morfológica, a de substantivo.
gratuita, que é preciso haver uma preocupação estética. Criando um belo O vocábulo ciumortevida, formado pela junção de três bases,
trocadilho entre os nomes de alguns compositores importantes da ciúme, morte e vida, é um misto de truncação e composição
canção popular brasileira: João Gil Ben - João Gilberto, Gilberto Gil e coordenativa (justaposição), pois apenas a primeira palavra perde
Jorge Ben, o texto aponta uma maneira de criação que se inspira na elementos estruturais, enquanto as duas outras estão apenas justapostas.
sensibilidade estética e rítmica, compondo um estilo que soma à bossa Ciumortevida = ciu(me) (truncação) + morte + vida (composição
de João Gilberto, à leveza de Gilberto Gil e ao suingue de Jorge Ben, a coordenativa). O significado do neologismo criado parece ser: ''o ciúme
tendência barroca, essencialmente inquieta, do próprio Caetano Veloso e é morte e é vida, é um sentimento ambíguo, que tem um lado positivo e
a sensibilidade profunda de Chico Buarque de Holanda (hiperestesia outro negativo".
Buarque). O neologismo seguinte vidavid é formado por um encaixe entre
Selecionamos para análise algumas palavras que nos permite as bases vida e David, de modo que ambas, que aparentemente teriam
observar como se dá o processo de .reinvenção de palavras. perdido elementos, têm, na verdade, elementos em comum: Vidavid =
A palavra ouraxé admite a combinação: Ouraxé = our(o) axé. vida+ David. A função desse novo vocábulo, no contexto, mais do que
Esta seria resultado do processo de truncação (com perda de elementos articular sentido, parece ser a de brincar com as palavras que possuem
apenas da primeira palavra), graças à combinação das palavras ouro e praticamente as mesmas sílabas, em posições invertidas, ligando
axé (cumprimento por meio do qual se deseja coisas boas ao próximo), inclusive a última base da palavra anterior (vida). Aproveitando-se da
sendo que esta, embora já muito conhecida, ainda não foi lexicalizada. idéia de anagrama, a canção cria ritmo e musicalidade na sua própria
Cabe observar que existe uma relação sintagmática, em que o letra: Ciumortevida vidavid. Observando a realização dessa "corrente"
determinado é axé e o determinante é ouro, que inclusive vem de sons, nota-se que ocorre uma nova divisão das fronteiras das
anteposto. Talvez a melhor solução fosse classificar essa neologia como palavras: ·'-vida vidavid'' ~ "-vidavida vi", ou seja, "vida, vida, eu vi".
composição sintagmática, embora haja perda de elementos de uma das Feita a análise de alguns neologismos presentes na canção
bases. De qualquer forma, o sentido que se pode visualizar para o novo Outras Palavras, passamos a analisar o processo de construção/criação
vocábulo é o de "felicitação muito valiosa, gloriosa". de palavras, selecionando da canção a prosa impúrpura do caicó alguns
Outro vocábulo que merece atenção é palávoras, para o qual casos.
uma hipótese de análise é de palavra-valise pela combinação dos termos
palavra e víboras. Palávoras = palav(ra) + (vib)oras. Em relação a esse Canção2
neologismo, é interessante observar que, embora a segunda palavra a prosa impúrpura do caicó
tenha perdido suas três primeiras letras (vib-), o seu acento prosódico
ah! caicó
(de palavra proparoxítona para a Gramática Normativa) foi conservado arcaico
· em meu peito catolaico
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53
tudo é descrença e fé oriundas do inglês e do francês respectivamente. Esse estrangeirismo é,
ah/ caicó pois, formado pela compd"sição de duas bases substantivas cash + coeur,
arcaico unidas pelo princípio da coordenação, isto é, -a justaposição de dois
meu cashcoeur mallarmaico substantivos. Nesse caso, interpretamos essa palavra como a
tudo rejeita e quer
é com é sem
insensibilidade do coração diante do capitalismo selvagem. No entanto, a
milhão e vintém canção nos sugere que, no plano da expressão, há a ambigüidade, se
todo mundo e ninguém considerarmos o sistema lingüístico francês, entre cash [kaf] e cache7 ·
pé de xique-xique [kaf], já que a pronúncia das duas palavras é a mesma. Podemos supor
pé de flor algo que guarda o coração, pois o verbo cacher em francês possui esse
relabucho velório
videogame oratório significado, além da associação à palavra cache-coz8, echarpe que
high-cutt simplório 'guarda' o pescoço, e nada mais sutil do que o dinheiro para guardar,
amor sem fim desamor esconder o coração. Se esse vocábulo cashcoeur fosse escrito
sexo no-iê cachecoeur, então seria um caso de composição subordinativa, pois ao
oxente oh/ Shit verbo cache (terceira pessoa do singular do presente do indicativo) se
cego aderatdo olhando pra mim
subordinaria o objeto direto coeur.
moonwalkman
O vocábulo malarmista9 é dicionarizado: "adj. que diz respeito
Há um trocadilho sugerido pelo título da canção - (a prosa 4
ao poeta francês Stéphane Mallarmé (1842-1898) ou a sua escola dos
impúrpura do caicó) em relação ao fil~e A ~osa Púrpura do Cair~ • simbolistas; s.m. e f. partidário sequaz dessa escola". Nesse caso,
Isso porque o vocábulo rosa esta contido na palavra P:osa, malarmista, formado por meio da derivação sufixal, possui o sufixo l-
demonstrando a economia do sistema lingüístico, além de o vo:abulo ista/ que é um dos mais fecundos formadores de adjetivos e de
caicó estar ligad~ semanticament: à palavra Cairo: ambos são cidades substantivos. Geralmente esse tipo_ de sufixo forma substantivos
produtoras de algodão. , . , designativos da filosofia pregada por alguém, por personalidades, por
Em relação ao vocábulo caschcouer, podenamos classifica-1~ associações ou ainda por doutrinas. Podemos concluir, então, que à
5
como · um estrangeirismo, sendo as palavras-base cash e coeur palavra-base Mallarmé foi acrescentado o sufixo 1-ico/, originando o
neologismo sintático derivacional mallarmaico, em que a vogal a é
apenas um elemento de ligação. Em relação ao sintagma cashcoeur
4 The Purple Rose ofCairo - filme escrito e d!rigido por ~oody Allen ~ue des~v.olve ~e
forma brilhante O tema da fascinação e da ahenação no cmema, atraves de Cectlta (Mia mallarmaico, podemos relacioná-lo à corrente formalista que define a
Farrow). Esta, durante a depressão americana, numa cidadezin~a de N_ova ~ersey, escola malarmista como algo que distancia as coisas do coração,
trabalha como garçonete para sustentar o marido alcoólatra (Dany Atello). Sono _cmema
é que ela foge da realidade, se inebriando num mundo de r_omance e fantasia. E é ovoide, moteur central de la circulation du sang. 2- Siege des sentiments profunds, siege
assistindo a um filme que ela encontra Tom Baxter (Jeff Dantels), o homem dos seus des pensées intimes.
7
sonhos. Ele é fictício, mas não se pode ter tudo! Cache n. f. (de cacher). Lieu secret pour cacher qqch ou pour se cacher.
8
s Cash (Mot. Angl.) _ argent liquide- (s. dinheiro em espécie, pronto pagam~nto.) Cache-col n.m. inv. i;:charpe courte et étroite.
9
6 Coeur n. m. (lat. Cor, cordis). 1- Organe thora cique,creuxer musculatre, de forme Dicionário Caldas Aulete, Editora Delta, 1980, voL III.

54 55
~
despersonalizando o homem e colocando a poe;ia cada vez mais ligada à cashcoeur .mallarmaico, high-cult (haicai), que se tornam, assin1, uma
questão do dinheiro. Talvez seja por isso também o trocadilho sugerido metáfora da própria corn~hsição.
no plano de expressão entre cash e cache. Assim, interpretamos o
conjunto cashcoeur, como algo que distancia as coisas do coração ao Ao criar o neologismo, o emissor tem, muitas vezes, plena
mesmo tempo em que o protege. consciência de que está inovando, gerando novas possibilidades léxicas,
Continuando ainda na quarta estrofe da música, há o vocábulo quer pelos processos de formação vernaculares, quer pelos empregos de
videogame. No Novo Dicionário Aurélio de português, apenas estrangeirismos. Estes últimos são evidenciados na segunda música,
encontramos as seguintes expressões: videojone e vídeo-teipe. Essas denotando, assim, os contatos entre as comunidades lingüísticas
entradas de dicionário nos revelam até certo ponto a coerência existente diferentes. Embora, na primeira canção, não tenha ocorrido esse tipo de
na criação do vocábulo videogame em que ocorre a união de duas processo neológico, existem entrelaçamentos entre palavras e até entre
,
palavras-base: vzdeo 10 + game 11 . N esse caso, esse processo se d'a no estruturas de diferentes idiomas, como em Hiperestesia Buarque voila
nível sintático da língua de origem, uma vez que se supõe a combinação tu sais du cor, Travo trava mãe e papai alma buena dicha louca,
de elementos já existentes no sistema lingüístico. Outra questão que se artificio que enriquece bastante a canção. Uma questão a ser comentada
há de levantar é o fato de serem bases oriundas do sistema lingüístico do em relação aos estrangeirismos é a possibilidade da inserção deles no
inglês e, por isso, classificado como um estrangeirismo. Esse vocábulo, léxico do vernáculo, dando origem, assim, aos empréstimos lexicais.
embora muito difundido, ainda não foi dicionarizado. Entretanto, em relação às duas canções ora analisadas, não foi
encontrado nenhum caso de estrangeirismo que já tenha se transfomiado
em empréstimo lexical.
A análise das duas canções permite observar que o interesse Aliás, quanto à inclusão dos neologismos em obras
pelos processos neológicos atribui um forte caráter metalingüístico aos lexicográficas, sabemos que os lexicógrafos agem muitas vezes
textos, tomando-os intensamente poéticos. Na primeira canção, o título arbitrariamente, isto é, unidades léxicas muito usadas são esquecidas e
Outras Palavras acaba funcionando como um smommo de outras, pouco difundidas, chegam a fazer parte dos dicionários. Dois
"neologismos", pois denuncia ou justifica a existência de uma estrofe casos de neologismos bastante conhecidos e não dicionarizados foram
inteira -de vocábulos novos e que, não por acaso, é a. última, como se encontrados: videogame, na segunda canção, e axé, na primeira. Por
fosse a confirmação de uma experiência lingüística que o texto anuncia isso, não podemos, a priori, identificar as criações léxicas que chegarão
desde o seu início. a incorporar-se ao código de uma língua, pois, além dos fatores
Em relação à segunda canção, a prosa impúrpura do caicó, a lingüísticos, existem os extralingüísticos, como tendências políticas,
metalinguagem também constitui uma manifestação da sensação de econômicas, culturais que interferem freqüentemente e ajudam a
novidade provocada pelo emprego de uma criação neológica. Dessa determinar a possibilidade de incorporação de unidades léxicas.
forma, o compositor da canção introduz formas neológicas do tipo É interessante, finalmente, notar que, além do aspecto de o
.1
neologismo estar intimamente ligado à questão da metalinguagem no
'º Video- s. televisão, a relativo à televisão, de televisão. corpus analisado, ele também se constitui num poderoso instrumento
11 Game- s. jogo, prazer, divertimento, brincadeira; caça, presa; competição esportiva. para os artistas em geral, poetas, prosadores, compositores de canção,

56 57
para diminuir a dificuldade que o ser hwnano ~m d~ explicar e nomear
coisas que são, por sua própria natureza, inexp~áveis
. . ou inomináveis. O \eologismo e a expressividade
-.......
em Famigerado e Pirlimpsiquice

Referências Bibliográficas Graziela A. SANTOS


Silvana M. VICENTE
ALVES, I. M. Neologismo: criação lexical. São Paulo: Ática, 1990.
BASÍLIO, M. Teoria Lexical. 4.ed. São Paulo: Ática, 1995.
CAMARA, Jr. l .M. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Este trabalho consiste em urna análise módica sobre processos
Vozes, 1970. de criação de palavras (neologismos) nos contos Famigerado e
Pirlimpsiquice, de João Guimarães Rosa. Analisaremos basicamente
dois dos principais processos, a derivação e composição, procurando
estabelecer urna relação entre sua atualização e a expressividade
resultante, enquanto efeito que se liga à própria natureza do texto
literário.
A dinâmica dos processos de formação de novas palavras em
urna língua é essencial para o seu enriquecimento lexical. Além das
necessidades de uso ou de comunicação, a atualização do neologismo
atende às necessidades expressivas dos falantes, assim como dos
escritores, que se esmeram na elaboração do texto para causar o máximo
efeito. Os aspectos morfológicos inovadores, contudo, não só destacam
uma particularidade formal, mas também refletem-se em outros níveis
lingüísticos, como o sintático e o semântico. Procuraremos, na medida
do possível, explicitar as contribuiçõés formais ao sentido inovador e
múltiplo que uma nova palavra pode atualizar.
Segundo Alves (1992), o neologismo pode ser formado por
mecanismos oriundos da própria língua, por processos autóctones ou
por itens lexicais provenientes de outros sistemas lingüísticos. Na língua
portuguesa, tais recursos têm sido amplamente empregados, diacrônica
(evolução do latim) e sincronicamente; por outro lado, outros sistemas
lingüísticos têm contribuído para o enriquecimento do léxico por meio
de empréstimos. Individualmente, a todos os membros de uma

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comunidade é facultado o direito de criatividade léxica, mas é através narrativa. Segundo Tomachevski (1971), desfecho é parte constituinte
dos meios de comunicação de massa e de obraf literárias que os da intriga, enquanto situação final que não acarreta um novo movimento
neologismos recém-criados têm oportunidade de serem reconhecidos e, dramático. Sua atualização, na introdução da narrativa, :funciona como
eventualmente, difundidos. índice da frustração com relação à reconciliação dos interesses na
A seguir,' selecionamos algumas dessas "novida~es supressão do conflito. A subversão criativa do código teatral pelo
morfológicas" nos textos de Guimarães Ro~a, con:i:orme a ~ersp~cttva protagonista e narrador corresponde, dessa forma, à subversão da
previamente explicitada, com o objetivo de mventanar o ~1~r numero própria narrativa, enquanto superação das expectativas e recriação de
possível de ocorrências distintas e ex~mplares e, pr~nctpalmente, t1ma atmosfera tomada pelo simbólico e até mítico. A experiência
relevantes para a transmissão do sentido movador e :nativo do te~to original é recriada em toda a sua expressividade pela linguagem literária.
literário rosiano. Para efeito didático, a análise será onentada pelo ttpo
de processo de formação de palavras envolvidas, seguido do trecho em
que a palavra em análise está inserida. b) Derivação prefixai e sufixal
Subiu em si, desagravava-se num desafogaréu (Famigerado, p.396).

a) Derivação prefixai
Por meio da co-ocorrência de processos morfológicos, a união
• . ?
Tivemos culpa de seu indesfecho, os escolhidos para representar. de prefixo e sufixo a uma base garante que haja um acréscimo de
(Pirlimpsiquice, p.415). 1 variados significados à mesma base pelo prefixo e atribuição de uma
idéia acessória, sem alteração de classe gramatical, pelo sufixo. Cada
Quanto· ao neologismo indesfecho, ao morfema lexical f!ec~-1 uma das formas derivadas é primeiro uma forma livre, uma palavra
mais desinência nominal /-oi junta-se o prefixo latino Ides-/, que md1ca comum. No exemplo acima, por meio da derivação sufixal, à palavra
separação. ação contrária. Esse vocábulo, cuja formação se _dá por fogo é acrescido o sufixo aumentativo /-réu/, dando origem, com o
derivação prefixai, serve de base para a for~ação deu~ neolog1smo, ~ apagamento da desinência nominal /-oi, à base nominal dicionarizada·
qual será formado também por prefixação. A base nominal desfecho, e jogaréu. Por um processo de derivação prefixai, a ela é agregado o
acrescida o prefixo latino /in-1, indicando negação, privação. O tom de prefixo latino Ides-/ (separação, ação contrária) seguido de vogal de
negativa perpassa a expressão em questão, reforçado pelos morfemas ligação a, originando o neologismo desafogaréu. Assim, uma vez
/in-1 e Ides-/. derivada a palavra fogo pelos processos de prefixação e derivação acima
A formação de neologismos por derivação prefixai é um descritos, teremos a criação de uma nova palavra. Esta produzirá um
processo bastante produtivo no português contemporâneo. Ao uni~-se a efeito bastante marcante, uma vez que o prefixo nega o substantivo
uma base como acima, pode-se notar que o prefixo exerce a :funçao de agregado a um sufixo aumentativo. Assim, a negação atribuída ao
acrescent~r ao vocábulo variados significados. No texto literário, esse vocábulo por meio do prefixo Ides-/ causa um estranhamento reforçado
recurso morfológico mostrou-se bastante expressivo, e sua significação ainda mais pelo teor exagerado daquilo que se nega.
transcende o nível frasal, sendo um indicativo da própria estrutura

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e) Derivação parassintética d) Composição por justaposição

E quem disse que, no outro dia, seguinte, domingo - dia! íamos tornar a
Esse processo ocorre quando o prefixo e o sufixo juntam-se ensaiar, ensaiar, ensaiar, senhor, mas - com reboluços, as horas curtas,
simultaneamente a uma base nominal. Embora não seja muito produtivo poucas: a missa demorada, a gente ganhando pão-de-me/ e biscoilos no
no português contemporâneo, aparecem de forma especial na obra de café, tendo-se de ajudar a arrumar o teatro, a caixa-do-ponto verde,
Guimarães Rosa. Nesse processo, é fundamental que os dois afixos se repintada fresca, as muitav moças e senhoras aparecidas. (Pirlimpsiquice,
incorporem ao mesmo tempo à palavra-base. p.418).

Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos O vocábulo composto caixa-do-ponto é resultante de um
dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de processo de composição por justaposição. Morfologicamente, os
resguardo. (Famigerado, p.393). elementos componentes do novo vocábulo são: substantivo +
(preposição+ artigo) + substantivo.
O vocábulo encantoável é tipicamente formado por uma Levando em conta o contexto da frase e, em princípio, a dificil
superposição de camadas binárias, estando dicionarizado apesar do uso recuperação do sentido do neologismo, podemos interpretá-lo como un1
incomum. A partir da base nominal canto, agrega-se um sufixo verbal, vocábulo metafórico, relacionado ao paradigma de teatro, vocábulo este
·ou seja, um morfema classi:ficatório de primeira conjugação mais o que antecede caixa-do-ponto verde. Lembramos que uma das funções
morfema flexional de infinito é um prefixo grego /en-1, que indica da vírgula é separar elementos que exercem mesma função sintática
posição anterior, originando a forma /en + canto + a + ri. À palavra (Cunha, 1985), o que supomos ocorrer no isolamento do sintagma
derivada por parassíntese, que sofreu o processo de verbalização dando nominal caixa-do-ponto verde. Essa forma de atualização do sintagma
origem ao vocábulo encantoar, junta-se o sufixo 1-(á)vel/, que tem como em relação ao seu antecedente parece fazer com que as duas unidades
função formar adjetivo a partir de verbos, dando-lhe um sentido de passem a manter entre si uma relação virtual de substituição (Dubois,
possibilidade de praticar ou sofrer uma ação. 1973). Essa influência somada à constituição do narrador-personagem
Curiosamente, o verbo encantoar está dicionarizado: "pôr em enquanto reprodutor de discurso-oficial na sua condição de 'ponto'
um canto; afastar do convívio; apartar do trato social; pôr-se a um (pessoa que nos teatros diz as peças em voz baixa aos atores a fim de
canto; fugir do mundo" (Ferreira, 1985). À base verbal, formada pelo que a representação transcorra conforme o previsto), conduz-nos à
processo de derivação parassintética, agrega-se o sufixo 1-ável/ conclusão de que se trata da caixa em que a pessoa se posiciona para
enfatizando-se a idéia da possibilidade de estar num canto, acuado, desempenhar sua função de 'ponto'.
sentido esse que o contexto frasal sugere, intensificando a idéia de Assim, como a ocorrência pão-de-mel, caixa-do-ponto pode ser
constituição de um espaço em que o conflito possa defensivamente ser compreendida como uma palavra autônoma e a atualização do hífen
controlado pelo narrador-protagonista. apontaria para a composição de um neologismo. Tais ocorrências
estariam no texto literário, portanto, antecipando a composição de novas
lexias, enquanto palavras originalmente em vias de lexicalização.
Exemplifica-se aqui a importância do texto literário para a antecipação e
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a propagação de novas formas, que progressivamente possam estar
presentes no domínio dos falantes. Neste caso, somente pela atualização Com relação ao neologismo estrepuxada, ocorrendo de forma
do hífen é que se formaliza a composição de um novo vocábulo. particular, é impossível apontannos para uma intenção significativa mais
concreta, podendo ter sido atualizado por extensão à estrebuchada,
vocábulo este que caberia perfeitan1ente no contexto. Estrebuchar
e) Composição por justaposição: base não-autônoma/base significa "agitar muito com os pés e as mãos, debater-se, mexer muito"
autônoma (Ferreira, 1985). Essa interpretação basearia-se na constatação de que
há apenas a mudança de um fonema na base. Os fonemas /p/ e/b/
Contra aí estava com o figado em más margens; pensava, pensava. também são muito próximos, oclusivas bilabiais surda e sonora,
Cabismeditado. Do que, se resolveu. (Famigerado, p. 394). respectivamente. Outra interpretação seria baseada na aglutinação das
bases estrepar + puxada, com seus respectivos morfemas classificatório
Para que cheguemos no processo de composição do vocábulo e flexional (para estrepar) e derivacional (para puxada). O vocábulo,
cabismeditado, é interessante observar que o radical primitivo meditar formado por aglutinação, conservaria o morfema· lexical de /estrep-/
significa "submeter a exame interior; ponderar; estudar, considerar, acrescendo o morfema lexical /pux-1 mais o sufixo derivacional /-ada/.
refletir; concentrar intensamente o espírito em algo; refletir, pensar" Qualquer que seja a análise, um sentido disfórico seria dado ao
. (Ferreira, 1985). É um ato que se processa a partir do sistema nervoso, constituinte vida. Na gíria brasileira, estrepar significa dar-se mal e
obviamente localizado na cabeça, vocábulo este cujo correspondente em puxada pode denotar "deslocamento à força, algo exaustivo, cansativo"
latim é caput, itis, com a variante cabis, que passa para o português (Ferreira, 1985). Neste caso, o neologismo desempenha a função de
como radical latino preso, que tem como função entrar na composição qualitativo do sintagma, reforçando, conforme nossa leitura, o
de novos vocábulos. significado eufórico que a vida passa a assumir enquanto contígua ao
A forma inusitada vem, portanto, intensificar o sentido da agente que opera uma verdadeira transformação da linguagem teatral,
reflexão em curso. O trecho selecionado demonstra também que o conforme sugestão da seqüência narrativa e da linguagem literária, na
próprio andamento rítmico da frase contribui para o estabelecimento do progressiva renovação, (re)atualização, recriação do código estético.
sentido ~e construção progressiva de uma idéia, sentido 'reforçado' pela
dupla ocorrência do vocábulo pensava. Além do efeito mencionado, vale A seguir, apresentamos um exemplo que foge à qualquer
explicitar que a nova lexia cabismeditado é o único constituinte da frase intenção classificatória de nossa parte.
nominal.
O que frouxo jà/ava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São
Ão, travados assuntos, inseqüentes, como dificultação. (Famigerado, p.
t) Composição por aglutinação 394).

Assim perpassando, com a de nunca naturalidade, entrante própria, a A formação do neologismo Ão será considerada um caso à parte
valente vida estrepuxada (Pirlimpsiquice, p. 421). dentro dos processos de formação de palavras. O segmento ão é uma

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forma presa que, neste caso, é atualizada como base lexical, ocorrendo a Pela leitura dos .textos analisados, o leitor parece estar sendo
lexicalização do sufüm aumentativo Ião/. Este segmento está conduzido, ao mesmo tempo em que acompanha a construção de uma
diretamente relacionado com a expressão são. Este vocábulo é vivência plena do narrador-personagem, a buscar o lúdico e a descoberta
classificado como substantivo masculino; é a forma apocopada de santo, pessoal. Assim, a conquista do lúdico no nível lingüístico
usada antes de nomçs que principiam por consoante. Como pode-se (particularmente o nível morfológico que analisamos), é indicativa da
observar, há nomes de santos que terminam por ão, como por exemplo transformação da própria subjetividade da personagem e narrador.
São Sebastião e São João, bastante presentes no imaginário coletivo. A Podemos :finalmente confirmar que o léxico da língua não é um
forma ão do novo vocábulo parece manter a significação de reverência, sistema fechado. O falante ou qualquer pessoa que lida com a língua tem
santidade e o estranhamento ainda é maior devido à forma são ser a faculdade de criar neologismos e deles fará uso de acordo com os seus
empregada quando, por regra, deveria ser santo, já que o vocábulo intuitos comunicativos ou expressivos. Nos textos de Guimarães Rosa, o
seguinte é iniciado por vogal. espaço do texto literário é explorado no sentido de causar a máxima
A atualização desse neologismo é bastante expressiva no expressividade, estranhamento, e, portanto, a função poética firma-se
contexto. É comum, dentro da cultura brasileira, a denominação de por meio de procedimentos que transcendem a função referencial da
lugares por meio de nomes religiosos. São Ão parece encaixar-se linguagem.
reforçando uma noção de distanciamento, de isolamento espacial.
· ·São Ão sugere a materialização de uma busca do narrador pela
transmissão de um sentido simbólico vivo na cultura brasileira. Assim, a Referências Bibliográficas
significativa forma lúdica com a qual o narrador manipula seu texto
sugere que, mais de que a revelação de uma subjetividade, busca-se os ALVES, I. M. Neologismo: criação lexical. São Paulo: Ática, 1990.
sentidos universalmente íntimos de cenários, espaços e tempos. CUNHA, C. & CINTRA, L. Nova Gramática do Português
Por meio das análises acima realizadas, esperamos ter Contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
explicitado, ainda que brevemente, como as mesmas podem contribuir DUBOTS, J. Dicionário de Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1973.
de forma efetiva para a percepção de que modo alguns aspectos FERREIRA, A. B. H. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de
lingüísticos particulares podem corroborar na edificação de um efeito de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
sentido múltiplo e "encantatório", próprio da linguagem artística, na sua ROSA, J. G. Pirlimpsiquice e Famigerado. ln: Ficção Completa. Rio de
transgressão do código de uso comum pelos falantes. Em outras Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
palavras, Guimarães Rosa demonstra um profundo conhecimento da
estrutura da Língua Portuguesa, tanto diacrônica como sincronicamente,
de modo a conduzir com maestria o processo de criação literária durante
o qual a matéria lingüística passa a se constituir como verdadeiro meio
ou procedimento utilizado para o reforço da sensação que é produzida
pelos diversos níveis de organização textual.

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