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SIGNIFICAÇÃO

REVISTA BRASILEIRA DE SEMIÓTICA


*

N. o 6 - JANEIRO DE 1987
E sco la de C o m u n ic a ç õ e s e A r t e s / U SP
B ib lio tec a
SIGNIFICAÇÃO

Revista Brasileira de Semiótica


Registro n» 014811
Janeiro de 1987
Número 6

Comissão editorial: Eduardo Pefiuela Cafiizal


Leonilda Ranzani de Luca
José Luizl Fiorin)
Paulo Eduardo Lopes

Jornalista responsável: Geraldo Carlos do Nascimento

Supervisão gráfica: Horácio Martins |


Gráfica da Escola de Com. e Artes — U SP

SIG N IFIC AÇ ÃO — Revista Brasileira de Semiótica é uma publicação do


Centro de Estudos Semióticos — C.E.S. — Rua Pamplona, 1365 casa 9 —
C EP 01405 0 São Paulo (SP) - Brasil
Solicita-se permuta/On demande 1’échange/Exchange requested/Roga-
mos canje

CENTRO DE ESTU D O S SE M lO T IC O S - C.E.S.


Diretoria (biênio 1987 -1988)

Coordenadora: Diana Luz Pessoa de Barros


Secretário Geral: Luiz Tatit
Tesoureiro: Paulo Eduardo Lopes
Agradecemos ao P rof. Dr. Nilo Odália, Diretor do Instituto de Letras,
Ciências Sociais e Educação da UNESP, A raraquara, por ter colaborado
com esta edição
SIGNIFICAÇÃO N° 6 / 1985

1. E duardo Penuela Canizal


- A p re s e n ta ç ã o ................................................................................................ 3
2. D iana L uz Pessoa de B arros — Problem as de expressão: figuras de
conteúdo e figuras de e x p re s s ã o ................................................................. 5
3. W aldir Bei vidas — Sem ióticas sincréticas (o cinema) .......................13
4. Luiz T atit — A enunciação da canção popular nos limites da
narratividade .................................................................................................... 23
5. Jean-M arie Floch — Sem iótica plástica e linguagem publicitária .. 29
6. Ignacio Assis Silva — A construção do ator: do sígnico ao simbólico
................................................................................................................................51
7. Paulo E duardo Lopes: E ncenação do Indivíduo .................................59
APRESENTAÇÃO

Eduardo Penuela Canizal

N o percurso do desenvolvim ento teórico da sem iótica, principal­


m ente da sem iótica de tendência greim asiana, ganhou especial relevân­
cia o estudo do universo sem ântico, e a construção de modelos
aplicáveis à análise das form as do conteúdo constitui, ao que me
parece, o resultado mais evidente do desenvolvim ento dos pressupos­
tos gerados pela cham ada estrutura elem entar da significação. C urio­
so, no entanto, observar que, nessas andanças, o sujeito em penhado
na elaboração do discurso científico, da m etalinguagem coerente, foi
deixando à poeira dos cam inhos aquela instrum entação que, nos
com eços da glossem ática, contribuiu de m aneira decisiva para con­
solidar os m oldes em que as substâncias expressivas — a verbal, em
prim eiro plano — acom odaram , de jeito sistem ático, a relativização de
suas form as. Im portante era cam inhar no rum o das form as do conteú­
do, am pliar os percursos de sentido partindo das com binatórias lógicas
das cham adas estruturas profundas e, com isso, estabelecer instâncias
para que as dim ensões de sem iose pudessem hierarquizar-se em níveis
onde a significação de certo modo se em aranha e, às vezes, simples
coleóptero, fica p resa à intensidade dos latejos de um a luz artificial
qualquer.
H ouve, sem dúvida, avanços extraordinários e a sem iótica se
adentrou no fascinante m undo da narratologia e da discursivização,
retornando aos territórios do discurso científico — ou pretensam ente
científico — com o firm e propósito de dilatar as fronteiras d a pertinên­
cia e aperfeiçoar a capacidade operatória do instrum ental utilizado.
M as, de m odo geral, tais conquistas, inspiradas, creio, na idéia de que
existe um sistem a universal de sentido, exibem as m arcas de um a
4

carência: ao ficar de lado o plano da expressão, isto é, o estudo


rigoroso e sistem ático das form as expressivas, a dim ensão da sem iose,
em bora esquem atizada em sólidos modelos conteudísticos, surgia,
com freqüência, tortuosa e incom pleta. Os percursos de sentido e as
articulações a que ele é subm etido nos diferentes níveis construídos
pela metalinguagem vieram se alargando de modo form idável, tal com o
se constata, por exem plo, na distinção de três níveis — o fórico, e
tím ico e o patêm ico — correspondentes, respectivam ente, às estrutu­
ras profundas, às estruturas de superfície e às estruturas discursivas.
Desse ponto de vista, a dim ensão tímica da enunciação abriu para a
sem iótica áreas de estudo que não faz muito tem po eram consideradas
im próprias ao cultivo de pressupostos em que um a teoria mais estreita
depositava, com intransigência, suas crenças cientificistas.
Em virtude disso, o estudo do significante se tornou, nestes
últimos anos, um a tarefa indispensável, já que é no plano da expressão
onde a sem iose encontra seu autêntico lugar de m anifestação. Além
disso, da organização m aterial das form as significantes depende, am iú­
de, a produção de sem as inexistentes nas form as conteudísticas fixa­
das pelo hábito e pelos dicionários. E é precisam ente sobre esse ponto
que os trabalhos integrantes deste núm ero de Significação giram , ao
que tudo indica. Se, de um lado, Jean-M arie Floch analisa traços
expressivos da linguaguem publicitária para colocá-los em relação de
sem iose, destacando, nesse processo, a im portância do sincretism o e
dos m ecanismos do semi-simbólico, de outro, Ignácio Assis Silva, ao
assinalar a transform ação da função prática em função mítica, confere
aos cham ados sem as contextuais a condição de dom ínio por excelência
da atividade hum ana, se preocupa tam bém com o sem i-sim bólico e
com o sincretism o, tal com o se com prova quando define o ator com o
instância semi-simbólica onde se sincretiza a disjunção m undo natural-
/língua natural. Outro tanto ocorre no trabalho de W aldir Bei vidas, já
que, apoiando-se na solidez teórica da função sígnica da glossem ática,
chega ao que ele cham a função de sincretização e constrói um esquem a
in d isp e n sá v e l p a ra o e stu d o s iste m á tic o dos fe n ô m e n o s semi-
sim bólicos, presentes, sem dúvida, nos textos da m úsica popular a que
rem ete o artigo de Luiz T atit e nas surpresas do significante que Paulo
E duardo L opes persegue em sua análise do ensaio O Terceiro Sentido,
de Roland B arthes. N essa direção cam inha, tam bém , o artigo de Diana
Luz P essoa de B arros, principalm ente no que diz respeito ao segundo
ponto da sua proposta, onde m ostra a relevância da definição de
relações de expressão e conteúdo para os sistem as semi-simbólicos.
Problemas de expressão: figuras de conteúdo e
figuras de expressão

Diana Luz Pessoa de Barros

A m esa-redonda sobre problem as de expressão * e o trabalho que


nela apresentam os são decorrências de dois fatos. Em prim eiro lugar, a
organização da expressão e suas relações com o conteúdo encontram -
se entre as preocupações atuais da sem iótica greim asiana, voltada, nos
m om entos iniciais de seu desenvolvim ento e por razões diversas, ao
tratam ento apenas do plano do conteúdo. Em segundo lugar, o reco­
nhecim ento de sistem as sem ióticos sincréticos, como o cinem a ou a
canção popular, e daqueles de elaboração secundária, como a lingua­
gem poética ou a plástica, em que não se pode prescindir do exam e das
correlações estabelecidas entre expressão e conteúdo, apressou a
retom ada de tais estudos.
C onfundem -se, com o problem as de expressão, orientações diver­
sas, questões m uitas vezes sobejam ente discutidas e nem por isso bem
resolvidas. Selecionam os três delas, entre as mais gerais, para aqui
discuti-las: separação de expressão de conteúdo, para a análise; elabo­
rações secundárias da expressão; relações entre dois ou mais sistem as
sem ióticos. São cam inhos que já estão sendo ou, a nosso ver, m erecem
ser investigados pela sem iótica. (1)
1 — Pretendem os salientar, inicialm ente, a necessidade de anali­
sar expressão e conteúdo como organizações hierárquicas independen­
tes, m esm o quando, no caso da expressão, os objetivos da abordagem
forem a construção da significação e a recuperação dos efeitos de
sentido. M elhor dizendo, não se pode restringir o exam e da expressão
aos casos em que se procura explicar o com ponente fonético —
* Uma primeira versão deste texto foi apresentada no I Colóquio Luso-Brasileiro de
Sem iótica, realizado em Niterói, em setembro de 1984.
6

fonológico das gram áticas, solucionar dificuldades fonoaudiológicas


ou catalogar cores. É preciso tratá-la, tam bém do ponto de vista da
sem iótica.
T rabalhos práticos, especialm ente com objetos visuais e textos
poéticos verbais, têm levado os investigadores a reconhecer organiza­
ções secundárias da expressão e relações entre expressão e conteúdo
que não se confundem com a determ inação de form antes da expressão,
quase invisíveis na função única de suportarem o significado. A teoria
literária faz alusão à “ literariedade” propriedade “ singular” do fato
literário (2), mas é, sem dúvida, a pintura, lançada na aventura da
figuração e da abstração, que se coloca como lugar privilegiado para a
abordagem da questão. Em Girassóis de VAN GOGH (3), por exem ­
plo, não b asta reconhecer as figuras do vaso e das flores que m urcham
e perdem as pétalas; é preciso construir ainda oposições de expressão
crom áticas — claro vs escuro, saturado vs n ão -sa tu ra d o , puro vs
im puro, quente vs frio — , de form a — contornos rotundos vs angula­
res, regulares vs irregulares, derivados do círculo vs derivados do
retângulo — e a com binação de tais elem entos (4), da m esma form a
que na aquarela Blum en-M ythos, de K L E E (5), im porta identificar o
pássaro, a flor ou o torso de mulher, mas tam bém caracterizar distin­
ções de cor, de form a e de localização no espaço. Cabe observar que as
oposições determ inadas são form ais e que, por conseguinte, m anifes­
tações crom áticas aparentem ente idênticas podem ser consideradas,
num texto, com o ocorrências do traço claro e, em outro, do escuro.
2 — É nossa intenção m ostrar, com o segundo ponto da proposta
inicial, a relevância da definição de relações entre expressão e conteú­
do, principalm ente para os sistem as semi-sim bólicos. Os sistem as
semi-simbólicos distinguem-se dos sistem as sim bólicos (as linguagens
form ais, por exemplo) e das linguagens stricto sensu (as línguas
naturais), na acepção de Hjelm slev: as relações são estabelecidas entre
categorias e não entre term os isolados da expressão e do conteúdo.
H á, assim , conexão, em Blum en-M ythos, entre /curvo vs reto/ e
/celeste vs terrestre/, entre /alto vs baixo/ e /celeste vs terrestre/, entre
/elem entos lineares vs elem entos de superfície/ e /anim ado vs inanim a­
do/; em Girassóis, entre /claro e puro vs escuro e im puro/ e /juventude -
vs velhice/; em Desenredo, conto de Guim arães R osa (6), entre /fricção
vs| n ã o -fric ç ã o / (7) e /evasão, criação vs conservação, lim itação/; em
Os reinos do amarelo, poem a de João Cabral de Melo N eto (8), entre
/aberto e claro de/a/ vs fechado e som brio de h l e de /o/ e /natural de
vegetal e mineral vs cultural de animal hum ano/ (9).
7

Os sistem as sem i-sim bólicos, conform e observado, ocorrem co­


mo linguagens secundárias, plásticas no visual e poéticas no verbal, ou
m elhor, com o novas e superpostas relações entre o plano da expressão
e o do conteúdo. M uito provavelm ente seja a denom inação de poética
a mais adequada a tais organizações segundas da expressão correlacio­
nadas a categorias abstratas do conteúdo, quer se trate de pintura,
poesia ou dança. Agregados a linguagens, no sentido estrito acim a
referido, os sistem as semi-simbólicos dom inam -nas, m uitas vezes,
invertendo-se a hierarquia, com o parece acontecer na pintura e na
poesia “ ab stra ta s” (ou “ co ncretas” ?).
As reflexões acim a retom am questões de iconicidade e de moti­
vação, sejam elas as dos signos visuais, ditos icônicos, sejam as dos
recursos onomatopaicos do verbal, mas o caminho proposto faz apare­
cerem especialm ente procedim entos pelos quais um novo saber sobre
o m undo se instaura. Resulte tal saber de form ações ideológicas e de
condições sócio-históricas específicas ou de m arcas individuais de
estilo, surgem , de qualquer form a, a originalidade e a criatividade, do
grupo ou do indivíduo, que levam a ler o m undo de outras m aneiras: o
claro e o puro crom ático da expressão suportam os traços de vida e de
juventude (10) ou a continuidade e o ruído do / v / expressam a fuga
para o im aginário e sua recriação com o outra e “ verdadeira” realidade
( 11).
Os sistem as semi-simbólicos instalam , dessa form a, o novo, o
inesperado ou o im previsível, enquanto as relações “ propriam ente
lingüísticas” encontradas entre expressão e conteúdo no poem a ou na
instância figurativa da pintura se caracterizam pela im otivação do
convencional e pela necessariedade ou consubstancialidade d e ! Benve-
niste, garantias da com unicação.
E stam os já na terceira e últim a questão apresentada, a das
relações intersem ióticas. As relações intersem ióticas englobam , na
nossa opinião, as relações “ referenciais” vigentes entre um a sem iótica
qualquer e a sem iótica do m undo natural, o sincretism o dos quadri­
nhos, do cinem a ou da canção popular, que não será desenvolvido
n este trabalho, e, ainda, as elaborações secundárias da expressão a que
acim a nos referim os.
3 — As noções de figura e de figurativização, diluídas até agora
no texto, serão recuperadas mais detalhadam ente.
E ntendem os, com Greim as (1 2) que as relações “ referenciais”
são intersem ióticas, isto é, que categorias do plano d a expressão do
m undo natural se tom am categorias do conteúdo das línguas naturais
8

(as categorias áspero vs liso e contínuo vs descontínuo servem de


exem plo), constituindo as figuras do conteúdo, e que, inversam ente,
categorias do conteúdo das línguas naturais respondem pela organiza­
ção ab strata do mundo natural (as categorias hum ano vs vegetal,
natural vs cultural e velho vs jovem exemplificam o fato). Há assim
duas dim ensões no plano do conteúdo das línguas, um a figurativa,
caracterizada por traços, mais “ concretos” das diferentes ordens
sensoriais de apreensão do m undo, e outra, mais abstrata, resultante
da organização interna da própria língua, leitura hum ana do m undo.
Os textos conservam , m uita vezes, as duas dim ensões, sob a
form a de elem entos dissem inados em percursos figurativos ou tem áti­
cos isotópicos, devendo-se entender a figurativização discursiva do
conteúdo, que caracteriza as línguas naturais e tam bém o reconheci­
m ento, nos textos visuais, dos objetos do m undo, com o um a cobertura
sem ântica mais concreta da abstração tem ática. A figura da flor que
fenece recobre, em Girassóis, o tem a do envelhecim ento, da passagem
da vida à m orte, enquanto navegação, com o mar, barcos, m astros e
velas, constitui, em Desenredo, um dos investim entos figurativos da
evasão.
R etom ando as observações apresentadas sobre as novas correla­
ções entre expressão e conteúdo nos sistem as sem i-sim bólicos, pode­
mos concluir que certas categorias ocorrem tanto com o figuras da
expressão, plásticas ou poéticas, quanto com o figuras do conteúdo, e
reconhecer, assim , dois procedim entos sem ióticos diferentes de “ con­
cretização ” de conteúdos tem áticos abstratos. A categoria do valor de
claro vs escuro pode servir de exemplo: em Girassóis, participa da
figura de expressão visual correlata à categoria do conteúdo de juven­
tude vs velhice e,em Os reinos do amarelo, pertence à figura cromática
de conteúdo que cobre o tem a da natureza e da cultura.
Os dois recursos de figurativização são em pregados separada­
m ente ou em com binações diversas, no fazer textual. Um a das possibi­
lidades é um m esm o percurso tem ático receber, no texto, investim ento
de figuras de conteúdo e de figuras de expressão do sistem a semi-
simbólico secundário. Em Desenredo, por exem plo, o tem a da evasão
está tratado tanto pelas figuras de conteúdo de navegação, quanto pela
figura de expressão de fricção contínua. Em Os Reinos do Am arelo os
conteúdos abstratos de natural vs cultural são tornados mais concretos
pelas categorias figurativas de conteúdo de claro vs escuro, de brilhan­
te vs opaco, de puro vs im puro, de estridente vs silencioso, de quente
9

vs frio, entre outras, e pelas categorias de expressão de aberto vs


fechado e de som claro vs som som brio. (13)

A figurativização da expressão e a do conteúdo, em bora realizem


o fim com um de transm itirem de form a mais concreta conteúdos
ab strato s, têm , porém , funções diferentes, se pensadas no quadro das
relações enunciativas, e geram efeitos de sentido distintos. As cone­
xões en tre expressão e conteúdo nos siste m as se m ió tic o s sem i-
sim bólicos, com o vim os, colocam em questão a leitura convencional
das coisas e propõem um novo saber sobre o m undo. Criam , portanto,
para o enunciatário, efeitos de verdade. T ornar os textos mais ou
m enos figurativos, recorrendo a figuras do conteúdo, é, por sua vez,
um dos recursos pelos quais o enunciador persuade o enunciatário do
caráter real ou irreal do m undo que procura fazer passar. A produção
da ilusão referencial caracteriza assim as sem ióticas figurativas, incluí­
das aí tam bém as que visam a causar o efeito contrário de abstração ou
de irrealidade.
Tais considerações levam -nos a repensar o problem a da iconici-
dade tam bém nos textos visuais, onde a questão está mais profunda­
m ente enraizada. O prim eiro passo parece ser reler as relações de
representação e de reconhecim ento, que ligam enunciador e enunciatá­
rio, com o um contrato fiduciário, com o um jogo de m anipulação,
persuasão e interpretação, respectivam ente. N ão se trata mais de
im itar o m undo, mas de fazer crer que isso foi feito — efeito de sentido
de real ou de referente (14) — , ao m esm o tem po que, através sobretu­
do do plástico e do poético, procura-se recriá-lo — efeito de sentido de
verdade.
E speram os ter conseguido levantar alguns dos problem as que
envolvem o tratam ento sem iótico do plano da expressão. Foi nosso
objetivo enfatizar a necessidade, tam bém do ponto de vista da sem ióti­
ca, de analisar a instância da expressão e de determ inar as relações que
se estabelecem entre expressão e conteúdo. Para tanto, abordam os
especificam ente os sistem as sem ióticos sem i-sim bólicos da poesia e da
pintura que, ao contrário do que ocorre com as linguagens e os
sistem as sim bólicos, não podem prescindir, na tarefa de construção do
sentido, da análise da expressão, nem do exam e das correlações entre
expressão e conteúdo. Para term inar, tentam os m ostrar algum as d e­
corrências da adoção de perspectiva sem iótica no estudo da expressão,
ressaltando a redefinição da questão da iconicidade em geral e nos
textos visuais, em particular, e a caracterização de figuras da expres­
10

são e de figuras do conteúdo, o que possibilita não só novas leituras do


plástico e do poético, mas tam bém o reconhecim ento de procedim en­
tos discursivos e textuais sem elhantes no visual e no verbal.

São Paulo, setem bro de 1984


11

NOTAS

1 Pensam os, sobretudo, na teoria e prática sem ióticas do visual,


desenvolvidas no Groupe de R echerches Sém io-linguistiques por
J.-M F lo ch e F Thürlem ann, principalm ente, que constituem o
ponto de partida de nossas reflexões neste trabalho.
2 V eja-se, entre outros, Todorov, T; Estruturalism o e Poética.
T radução de J.P .P aes e F. P essoa de B arros, 4a edição, São Paulo,
Cultrix, 1976.
3 A ausência de reprodução dos quadros, por dificuldades de verba,
prejudica bastante a leitura do texto. A pintura de Van Gogh está
reproduzida na coleção Gênios da Pintura, da Abril Cultural.
4 U sam os algumas das conclusões do trabalho de pós-graduação de
R osângela Vieira R ocha, apresentado no curso de sem iótica do
visual que m inistramos na Escola de Com unicações e A rtes da
U niversidade de São Paulo, no prim eiro sem estre de 1978.
5 - R etom arem os certos resultados da análise sem iótica da aquarela de
K lee, efetuada por F Thürlem ann e publicada em Thürlem ann,
Felix; Paul Klee A nalyse Sém iotique de Trois Peintures. Lausan-
ne, Ed, L Age d ’Hom m e, 1982.
6 Rosa, João Guim arães; Tutaméia ( Terceiras Estórias), 5* edição.
Rio de Janeiro, José Olympio, 1979, p .38-40.
7 A fricção e a continuidade sonora aparecem sobretudo na reiteração
do v/: “ Jó Joaquim e Viléria retom aram -se, e conviveram , convo-
lados, o verdadeiro e m elhor de sua útil vida” (p. 40).
8 Os reinos do amarelo
A terra lauta da m ata próduz e exibe/ um amarelo rico (senão o dos
m etais):/ o amarelo do m aracujá e os da m anga,/ o do oiti-da-praia,
do caju e do cajá, / amarelo vegetal, alegre de sol livre,/ beirando o es­
tridente, de tão alegre,/ e que o sol eleva de vegetal a m ineral,/
polindo-o, até um aceso metal de pele/ só que fere a vista um a mareio
o u tro ,/ e a fere embora baço (sol não o acende):/ amarelo aquém do
vegetal, e se an im al,/ de um anim al cobre: pobre, podrem ente./ Só
que fere a vista um amarelo ou tro :/ se animal, de homem: de corpo
hum ano:/ de corpo e vida; de tudo o que segrega/ (sarro ou suor, bile
íntim a ou ranho)/ ou sofre (o amarelo de sentir triste,/ de ser analfa­
beto, de existir aguado)/am arelo que no homem dali se adiciona/ o
que há em ser pântano, ser-se fard o ./ Em bora comum ali, esse am a­
relo hum ano/ ainda dá na vista (mais pelo prodígio)/ pelo que ta r­
dam a secar, e ao sol dali/ tais poças de amarelo, de escarro vivo.
12

(M elo N eto, João Cabral de; Antologia Poética, 3“ edição. Rio de


Janeiro, José Olympio, 1978, p. 28)
9 - N o prim eiro verso do poem a tem os “ N a terra lauta da m ata” ... e no
últim o verso (da prim eira estrofe) “ de um animal cobre: pobre,
po d rem en te”
10 V er Girassóis, de Van Gogh (nota 3)
11 - Ver Desenredo, de Guim arães Rosa (notas 6 e 7)
12 - G reim as, A .J.; Conditions D ’une Sém iotique du M onde N atural. In
Du Sens — E ssais sémiotiques. Paris, Seuil, 1970, p.p. 4 9 - 9 1 .
13 - Os fatos de sincretism o, que não serão abordados neste texto,
devem ser tratados, a nosso ver, nessa m esm a direção: caracteri­
zam-se com o relações entre m ateriais sensoriais diferentes (sonoro
e visual, por exemplo) que m anifestam uma m esm a form a da
expressão.
Veja-se a respeito floch, J.-M ., Sém iotique Plastique et Langage
Publicitaire. ACTES SÉM IO TIQ U ES D O C U M EN TS, U I, 26,
1981.
14 - Se nas línguas naturais apenas o plano do conteúdo mantém
relação intersem iótica com o mundo natural — excetuados os
casos de sistem as sem ióticos semi-simbólicos — , nos objetos
visuais, tam bém o plano da expressão parece estar em correlação
com o mundo sensível. N ão se deve confundir tal dependência
com cópia e sim entender “ que as qualidades do mundo natural
selecionadas servem para a construção do significante dos objetos
planares” (Greimas, A .J.: sem iótica figurativa e sem iótica plásti­
ca. SIG N IFICA ÇÃ O — R EV ISTA BRA SILEIR A DE SEM IÓ TI­
CA, N° 4, JU L H O DE 1984, p 27.) Ainda que se aceite que parte
dos significantes construídos nas sem ióticas visuais resulta da
apreensão de qualidades do mundo natural, esta constatação nada
acrescenta ao im passe criado pela “ representação” visual de
elem entos sonoros ou táteis, por exemplo. Tais procedim entos de
“ im itação” icônica precisam , portanto, ser considerados margi­
nais nos sistem as sem ióticos visuais, da m esm a form a que as
onom atopéias no verbal. O reconhecim ento de figuras do m undo
resulta, antes de mais nada, de recursos figurativos discursivos
que, com o vim os, produzem a ilusão referencial.
SEMIÓTICAS SINCRÉTICAS (o cinema).

Por W aldir Beividas

1. E stru tu ra da m anifestação

A teoria sem iótica concebe com o cam po de seu exercício teórico-


descritivo o espaço que vai desde as estruturas ab quo até as estruturas
ad quem de engendram ento da significação. N esse espaço m etodológi­
co, ela concebe a significação, anteriorm ente à sua m anifestação,
com o se articulando em níveis de profundidade e estabelece em cada
nível um pequeno cam po autônom o dessa articulação. De modo que a
significação, para chegar até nossa percepção sensitiva, na m anifesta­
ção, tom a um “ percurso gerativo” que passa pelo nível profundo, das
estruturas sem io-narrativas, e pelos níveis mais superficiais, das estru ­
turas discursivas e, mais superficiais ainda, das estruturas textuais.
(Dictionnaire).
Enfatizem os que todo esse jogo de articulações se dá anterior­
m ente à sua m anifestação propriam ente dita; isto é, ele se dá em
imanência. Isso implica que cada nova descoberta que a sem iótica
possa prom over no terreno da significação seja sem pre vista com o um a
espécie de ‘cu n h a’ que se instala 'e n tre ' a m anifestação propriam ente
dita e as instâncias que lhe são logicam ente anteriores, com o que
aum entando a distância entre o ab quo e o ad quem. N enhum a nova
descoberta, nenhum a nova articulação da significação pode se dar na
m anifestação bruta, pois esta é da ordem do dado concreto, do real, ou
do continuum am orfo de H jelm slev. A m anifestação, m esm o sendo o
suporte m aterial da existência da significação, é da ordem do dado real
e não tem em si o que H jelm slev concebia com o “ existência científi­
c a " ; só a tem as instâncias anteriores, im anentes. P ortanto qualquer
14

avanço em teoria sem iótica só pode se dar com o um trabalho em


im anência, jam ais na m anifestação.
O corre porém que, quando procuram os encontrar um lugar con­
ceptual onde estabelecer a especificidade das sem ióticas — no nosso
caso, a especificidade das sem ióticas sincréticas — esse lugar parece
ser o da instância da m anifestação. Isto é, se assum im os voluntaria­
m ente a hipótese de que as articulações da significação, nos níveis
em inentem ente sem ióticos — níveis do percurso gerativo, anteriores à
m anifestação — têm a mesma natureza, não im porta em quais lingua­
gens elas se m anifestem , terem os de localizar o cam po desse novo
exercício descritivo — o das sem ióticas sincréticas — no nível de
m anifestação.
E ntretanto, essa entrada na m anifestação — para observar aí
com o os diversos códigos se com põem e se com patibilizam na produ­
ção de um significado global e hom ogêneo — não deve ser tom ada num
sentido ontológico, isto é, um mergulho no real da significação Ao
contrário, essa entrada na m anifestação deve significar que o que se
busca aí — no exame das sem ióticas sincréticas — é um a conceptuali-
zação adequada do que se pode cham ar com o “ estrutura da m anifesta­
çã o ” E, como tal, apesar do paradoxo aparente, tam bém aqui estam os
diante de um trabalho em im anência (não existe estrutura a não ser
com o form a im anente) e não na m anifestação concreta. A estrutura da
m anifestação é um a form a im anente.
2. Form a códica ou form a de m anifestação

A instância de m anifestação pode ser entendida com o a presenti-


ficação da form a na substância, isto é, onde um texto tom a sua
existência material. Ela pressupõe im ediata e previam ente o ato da
sem iose, a “ função sem iótica” de H jelm slev, que é um a conjugação
solidária da form a do conteúdo com a form a da expressão. Presum i­
mos, pois, que seja lícito conceber a estrutura da m anifestação com o
instante (metodológico) da função sem iótica ou da sem iose, isto é, o
m om ento da entrada da form a da expressão no jogo da significação —
m om ento em que a form a do conteúdo se deixa am oldar, por assim
dizer, em face da solidariedade que m antém com a form a da expres­
são, às coerções que esta últim a carrega dada a natureza da sua m atéria
da expressão. De modo que, no caso das sem ióticas sincréticas ou
pluricódicas, caberá verm os de que modo se pode postular um a
semiose sincrética, que envolva vários códigos, cuja m atéria signifi-
cante é distinta.
15

Se a estrutura da m anifestação pode ser vista com o a entrada da


form a da expressão no jogo da significação, tem os que centrar a
atenção no plano da expressão, na form a da expressão, com os parcos
meios que a teoria sem iótica nos oferece aqui, sem a pujança da
conceptualização que a sem iótica oferece de análise da form a do
conteúdo, sua predileta.
O plano da expressão possui a sua organização — a form a da
expressão — que talvez não possa ser encarada com o articulação
única, a se dar apenas nessa instância term inal da m anifestação.
Tam bém ele teria níveis de profundidade de articulação. N outros
term os, a form a da expressão na m anifestação só pode ser postulada
com o o estágio final de um conjunto de articulações que se dá em
vários níveis de profundidade.
O ra, não nos parece adequado, nesse sentido, postular um parale­
lismo apressado entre os dois planos; dizer que tam bém na expressão
teríam os um “ percurso gerativo” estruturas se m io-narrativas, discur­
sivas, etc. O paralelism o evocado por Saussure e enfatizado por
H jelm slev é o de um acesso metodológico correspondente nos dois
planos — e não isom orfism o total, isto é, que estabeleça entre os
planos um a correlação de controle, que faça corresponder a cada
m udança num plano, um a m udança equivalente no outro.
D esse m odo, gostaria de sugerir um a hipótese de paralelism o sob
um outro viés, apoiado num texto de G reim as, cham ado “ L a structure
sém antique” (Du sens, p. 39-48).
Para indicarm os resum idam ente o que mais nos serve, Greimas
observa aí, referindo-se à língua natural, que a “ form a lingüística” é
autônom a por relação às “ form as sem ióticas” (do conteúdo e da
expressão). G eneralizando esse princípio para quaisquer linguagens,
diríam os que elas possuem um a form a códica autônom a em relação às
form as sem ióticas. De modo que, retom ando sua definição, podería­
mos repetir Greim as dizendo que toda linguagem pode ser definida
com o um a form a códica obtida na conjunção de duas substâncias
diferentes (do conteúdo e da expressão), cada um a delas com sua
form a semiótica (form a do conteúdo e form a da expressão), sendo que
é esta últim a a que erige o m undo natural em significação, e sendo
ainda que estas duas form as (códica e sem iótica) são distintas da form a
científica das m esm as substâncias.
M esmo sem espaço para com entar com mais detalhes essa tri-
partição, gostaríam os de sugerir, a partir do estabelecim ento da auto­
16

nom ia dos três tipos de form as (científica, sem iótica e códica), uma
concepção triform e de linguagem, seja para o plano do conteúdo, seja
para o da expressão, que poderíam os representar no diagram a a seguir:

form a científica
FORM A DO
form a sem iótica
CO N TEÚ D O form a códica
FORM A DA form a códica
form a sem iótica
EXPRESSÃ O form a científica

O B S.Lem brem os que o diagram a apenas explicita o lado form al de


uma linguagem, cabendo pois perm anecer implícito que tais
form as só se justificam em contraposição com as respectivas
substâncias.

Por certo, para preservar a hom ogeneidade descritiva da teoria


sem iótica, teríam os de ter o cuidado de procurar hom ologar essa
concepção triform e com os níveis do percurso gerativo, no que se
refere ao plano do conteúdo, o que extrapola os limites desta com uni­
cação (cf. nossa dissertação de m estrado “ Sem ióticas sincréticas (o
cinema). P osições” USP, 1983, p. 89-121)
O que im porta ressaltar aqui é a econom ia operatória que essa
hipótese triform e pode eventualm ente trazer, em term os de estraté­
gias metodológicas de exploração do plano da expressão. Para dizer­
mos de m aneira breve, ela ajudaria a delim itar as pertinências específi­
cas dentro do plano da expressão. Por exem plo, no caso do cinem a, a
descrição física da projeção das imagens na tela, da criação da imagem
através do aparato tecnológico, das coerções retinianas de captação e
percepção das imagens — mais ou m enos paralela à descrição físico-
acústica e articulatória da F onética, no caso lingüístico — seriam o
cam po da form a científica (da expressão). Por sua vez, a distinção
entre form a sem iótica e form a códica talvez acarrete um abandono da
term inologia, ora existente nas pesquisas cinem atográficas, que é
tom ada em geral de em préstim o aos cineastas, com o, por exem plo,
códigos de 'angulação’ de 'enquadram ento' travellings, closes, plon-
gé, contre-plongé, códigos de ilum inação, de m ovim ento etc. A partir
17

do ponto de vista da form a sem iótica, talvez se tenha de propor novas


pertinências, novos objetos de conhecim ento. Assim , o m ovim ento
‘interno (diegético) das personagens em cena, isto é, sua distribuição
tópica são coerções que levam a se tentar constituir um a sem iótica
proxêmica, subordinada a um a sem iótica deítica; assim tam bém poder-
se-ia p ensar num a sem iótica cinética (de K IN E T IK Ó S = que põe em
m ovimento) que observaria não só os m ovim ento 'e x te rn o s’ da câm ara
na linha horizontal (travellings) mas tam bém os do eixo vertical (angu-
lações, plongés, contre-plongés); talvez poder-se-ia pensar num a se­
m iótica fo ca l que abrangesse os enquadram entos, os closes, e assim
por diante.
E aqui, a diferença de descrição entre a form a sem iótica e a
form a códica poderia ser brevem ente enunciada da seguinte m aneira:
— A form a sem iótica seria estatuída a partir da descrição do
modo com o um a articulação na expressão (p.e. um plongé) consegue
suportar um a ‘significação’ (articulação do conteúdo) (p.e. 'rebaixa­
m ento’); isto é, o modo com o um a articulação da expressão (no nível
da form a sem iótica) é capaz de consignar um a significação (articulação
da form a sem iótica do conteúdo).
OBS.A proposição do term o consignação para a expressão visa
criar um term o equivalente ao term o ‘significação que sem pre parece
mais adequado ao plano do contéudo; seu uso no plano da expressão
quase nunca consegue deixar de revelar-se m etafórico ou oblíquo.
Assim , se para o plano do conteúdo, o jogo das articulações do sentido
desde as instâncias fundam entais (ab quó) até as instâncias ad quem-
(form a códica do conteúdo) estabelece o percurso da significação,
poderíam os dizer que um percurso paralelo se dá na expressão: pode-
riám os conceber um percurso de consignação, apoiando-nos na acep­
ção etim ológica “ m arcar com um sinal, selar’’, cuja função seria a de
‘ex citar’ os efeitos de sentido no plano do contéudo.
O term o ‘ex citar’ é proposital. N ão tem os garantias na questão de
saber se tais efeitos de sentido possam ser de fato ’criados’ pela
articulação sem iótica do plano da expressão.
Pensam os atualm ente com o mais operatório adm itir que som ente a
form a sem iótica do contéudo seja capaz de instaurar um efeito de
sentido, o qual — já que arbitrário por relação aos fatos do m undo —
necessita de um a certa ‘legitim ação’, isto é, de se ver consignado na
expressão. À form a sem iótica da expressão caberia portanto a tarefa
de ‘ex c ita r’ — na acepção etim ológica de “ fazer sair” (para fo ra, para
a percepção sensitiva)— um efeito de sentido investido (arbitrariam en­
18

te) no plano do conteúdo, conferindo-lhe legitim idade, consignando


(selando) a sua 'v e rd ad e1
— Por sua vez, a form a códica — sendo entendida com o um
prolongam ento natural da form a sem iótica, com o representação final
da form a sem iótica, isto é, com o modo de enquadram ento da form a
sem iótica num a gram ática códica de m anifestação — seria estatuída a
partir do exam e do jogo das com patibilidades e incom patibilidades dos
elem entos códicos na cadeia sintagm ática (a Fonologia sendo um bom
exem plo de com o isso se dá no caso do lingüístico). É aqui que vem os
o interesse da pesquisa de M etz quando procura propor para o cinem a
um a gram ática — que assum iríam os de bom grado com o gram ática
códica de natureza cinem atográfica — a partir do que ele cham a “ a
grande sintagm ática da faixa-im agem ” que se com põe de diversos
tipos de sintagm as (form as códicas): paralelos, solidários, em feixe,
descritivos... (A significação no cinema, p. 129-170)
3. Função de sincretização ou semiose sincrética.

N esse modelo triform e de linguagem, a sem iose ou função sem ió­


tica só pode se dar como conjunção de form as códicas (do conteúdo e
da expressão) que subsumem as articulações das form as logicam ente
anteriores (científica e semiótica) enquadrando-as num a gram ática de
m anifestação.
Ora, com o nas sem ióticas sincréticas estam os diante de uma
pluralidade de linguagens de m anifestação, ou de códigos, poderíam os
propor, a título de hipótese, que as funções sem ióticas de cada código
aí operante fossem vistas com o funtivos de um a nova função: a função
de sincretização. O próprio H jelm slev adm itia que qualquer função
poderia eventualm ente tornar-se funtivo de nova função. (Prolegóme-
nos, p. 55).
19

De modo que, representando diagram aticam ente em duas v er­


sões, teríam os:

versão A versão B

FSY

C = C O N TEÚ D O / E = EXPRESSÃ O
fs = função sem iótica / FSY = F unção de Sincretização

O bservem os que não há diferença de natureza entre essas duas


versões porque, em consonância com o pensam ento de Hjelm slev
“ con relación a los tres tipos de funciones (interdependência, determ i­
nação e constelação) cabe prever que pueden contraerlas m ás de dos
funtivos (nossa versão A); pero estas funciones ‘m ultilaterales pueden
considerarse com o funciones ‘bilaterales* (nossa versão B )” (p.58)
N otem os tam bém que a natureza da função de sincretização não
é a de interdependência, i.é ., de pressuposição recíproca entre os seus
funtivos, tal com o a função sem iótica pp. dita. Ao invés, parece-nos
mais preciso atribuir-lhe a natureza de 'constelação* na qual os
funtivos (as funções semióticas) figurem como variáveis, i.e., sem que a
p resença de nenhum a delas seja conditio sine qua non de qualquer
outra. A sua coerção não é a de pressuposição recíproca, mas a da
im plicação recíproca: se se verifica a coexistência de duas ou m ais
funções sem ióticas, num a linguagem sincrética, elas passam a impli­
car-se reciprocam ente, i.é ., a ‘entrar em fu n ç ão ’ (de sincretização), a
entrar em sincretism o. *
A hipótese aqui sugerida é, pois, a de se considerar com o semiose
sincrética a contração de um a nova função (de sincretização) entre as
funções sem ióticas particulares a cada código; e as linguagens em que
20

isso se dá (cinem a, teatro, quadrinhos) poderão com odam ente ser


enquadradas com o semióticas sincréticas.
OBS. Presum im os que essa concepção de sincretism o possa ser
útil e operacional para descrever o modo de presença e o m odo de
funcionam ento dos códigos no interior das sem ióticas pluricódicas, já
que se conserva assim a acepção etimológica de “ conglom erado h ete­
rogêneo” (de diferentes povos em defesa da ilha de C reta) — no nosso
caso, um conglom erado ou “ constelação” de funções sem ióticas que
não se pressupõem necessária e reciprocam ente tal qual um a função de
interdepêndencia, mas que apenas se implicam reciprocam ente na
obtenção de um significado comum, de uma significação hom ogênea
— em que é preservada ao mesmo tem po uma certa 'desorganização ,
i.é. um a certa autonom ia de cada povo (de cada função sem iótica) aí
participante.
Se por esta acepção etimológica, o term o consegue pôr em
evidência um a certa autonom ia dos códigos, por outra acepção — mais
utilizada em teoria sem iótica em que uma grandeza (aqui um a lingua­
gem sincrética) é capaz de subsum ir dois ou mais term os heterogêneos
em superposição (aqui os vários códigos, ou as várias funções sem ióti­
cas) — consegue-se destacar a “ fusão” aí estabelecida. N outros
term os, sincretism o presta-se a uma orientação analítica, descritiva —
preservando a autonom ia dos elem entos participantes — e a uma
orientação de síntese, de leitura — assegurando a unicidade global do
significado da linguagem sincrética m anifestante.
O sincretism o dos códigos na instância de m anifestação, i.é. a
semiose sincrética que aí se dá — obtida pela contração da função de
sincretização entre as funções sem ióticas dos vários códigos — e a
hipótese da instância comum a todos os códigos, do “ percurso gerati-
vo ” , anterior à estrutura da m anifestação, podem perm itir que as
análises dessas liguagens sincréticas não se vejam diante da inconve­
niência de postular e descrever um a significação específica para cada
código desde a instância profunda, significação que se 'som aria às
outras, igualmente obtidas na sua particularidade pelos outros códigos,
ou que se ‘ju n taria’ por algum processo de 'am álgam a ou de 'sim bio­
s e 7 coisas difíceis de serem explicadas e descritas pela teoria sem ióti­
ca, em penhada que está em conduzir sua metalinguagem descritiva o
máximo possível longe da m etáfora e da obliqüidade.
21

B IB LIO G R A FIA

G R EIM A S,A . J., 1970, Du sens, Paris, Le Seuil.


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M ETZ, C h., 1972, A significação no cinema, São Paulo, Perspecti-
va/Edusp.
A ENUNCIAÇÃO DA CANÇÃO POPULAR NOS
LIMITES DA NARRATIVIDADE

Luiz Tatit

A sem iotização dos discursos artísticos que escapam ao universo


literário tem sido um a das frentes de atuação da sem iótica de hoje. As
prim eiras incursões foram praticadas, evidentem ente, no terreno das
artes seculares com o a pintura, a arquitetura e até a m úsica que,
em bora apresentassem problem as de enorm e com plexidade por diferi­
rem radicalm ente da língua natural, m antinham , pelo m enos, um a
significação hom ogênea pois que articulada por um único sistem a.
O que predom ina, entretanto, no nosso século, são os sistem as de
significação sincréticos que surgem da com binatória de sistem as sim­
ples, quase sem pre m ediados por processos tecnológicos de produção
ou de veiculação. A princípio, a abordagem desses sistem as poderia
parecer um a outra etapa de trabalho cujo requisito principal seria
exatam ente a descrição já resolvida dos sistem as com ponentes. Verifi­
cou-se, porém , que, assim com o a análise transfrástica revelou um
plano de investigação sêm io-narrativa e sêm io-discursiva que nada tem
a ver com a som atória das frases, a descrição dos processos sincréticos
de significação tam bém independe das soluções sem ióticas obtidas por
este ou aquele sistem a. As interações, as coerções e as com pensações
m útuas dão aos sistem as de significação que operam em paralelo um
outro estatuto de verificação, por vezes, bem distante do cam po de
análise de seus sistem as com ponentes.
P ara desenvolver o nosso tem a, tom arem os aqui com o ponto de
partida o percurso que vai da instância de enunciação até as etapas
máxim as de estruturação, tanto no plano do conteúdo com o no plano
da expressão, independentem ente dos sistem as sem ióticos que ve­
nham percorrê-lo. Instância de enunciação aqui pode ser considerada a
24

situação de com unicação pressuposta por qualquer discurso e sua


definição dependeria de um a construção sem iótica tal que possibilitas­
se a im ediata correlação desta sem iose com aquela da língua natural e
do m undo natural. Como ainda estam os longe disso, só podem os tom ar
esta instância com o um pressuposto que, por ser com um a todos os
processos de significação, se constrói e se enriquece precisam ente a
partir das descobertas efetuadas pela descrição de inúm eros dom ínios
de significação.
Sem iotizando este percurso com os parcos recursos de que já
dispom os, poderíam os substituir esses term inais de com unicação entre
enunciador e enunciatário por term os de m aior funcionalidade narrati­
va, qual seja, as noções de destinador e destinatário, pois aí teríam os
um processo mais dinâmico com preendendo a transferência de objetos
de um actante a outro e visando o desencadeam ento da ação deste
último.
D entro desta ótica, pretendem os levantar aqui uma reflexão
sobre a canção popular. A constatação de que esta constitui um caso
de sincretism o de significação advém , prim eiram ente, de um a aborda­
gem fenom enológica: os elem entos mínimos para se identificar algo
com o canção, no senso com um , é a presença sim ultânea de pelo menos
um a linha lingüística e outra melódica, esta últim a podendo-se mani­
festar com maior ou m enor apoio m úsico-instrum ental.
N a trajetória oposta, direm os que a enunciação, ou seu sujeito,
se dilui em m odalidades disseminadas pelo texto lingüístico e pelo
texto melódico ocasionando relações de com patibilidade entre os dois
com ponentes. N este estágio, podem os descrever as m odalidades assi­
naladas pelo com ponente lingüístico e avaliá-las em sua concom itância
com as curvas melódicas descendentes, ascendentes e suspensivas
responsáveis pela/ A sseveração/. Assim, a com petência modal dos
actantes debreados pela enunciação lingüística é reiterada ou com ple­
m entada pelo contorno m elódico entoativo. ‘G rosso m odo’, se as
terminações (tonemas) descendentes indicam asseveração propriam ente
dita confirm ando, portanto, um a com petência adquirida, senão através
de um /poder/ou/querer/, pelo m enos através de um /saber/, as m anifes­
tações de não-descendência tonem ática devem estabelecer m atizes
m odais retratando perdas, transferências ou outras inúm eras variações
no âm bito das com petências dos actantes. O próxim o estágio, previsto
do ponto de vista teórico, com portaria a desm odalização com pleta
tanto do texto lingüístico quanto do texto melódico. Seria o caso de um
discurso lingüístico plenam ente objetivo e de dem onstração, dom inado
25

pelos m ecanism os anafóricos, cuja distância enunciativa corresponde


àquela alm ejada pelo texto científico e, de outro lado, o caso de um
discurso melódico trabalhado única e exclusivam ente pela sintaxe
musical perdendo toda raiz entoativa.
E stas constatações prelim inares a respeito da canção popular
podem ser projetadas e articuladas pela relação destinador/destinatário
de modo a estabelecer a seguinte com unicação: um destinador (na
canção, o locutor — com positor ou intérprete —) exercendo função de
m anipulador persuasivo e munido de m odalidades das quais destaca­
mos o /saber fazer/, atinge a com petência de um sujeito-destinatário
(ouvinte) despertando-lhe um /querer fazer/, processo este já represen­
tado em sem iótica pela figura da “ sedução” (voltarem os a este ponto
mais abaixo). Para tanto, o destinador-enunciador m anobra, ao mesmo
tem po, um percurso lingüístico e um percurso m elódico que oscilam de
um a sintonia sim biótica (quando próxim os à instância de enunciação)
até um a defasagem entre si que beira a auto-suficiência (à m edida que
se afastam da instância de enunciação).
Q uando dizem os que a integração entre o com ponente lingüístico
e o com ponente m elódico se torna quase sim biótica ao se aproxim ar da
instância de enunciação, estam os correlacionando esta sem iose da
canção com a sem iose produzida pela língua natural quando em
discurso coloquial, pois é característico de am bas as sem ioses a
produção de um a texto dêitico. O em prego de im perativos, vocativos,
interjeições, advérbios, etc., associado a um a produção m elódica
adequada, ecoa com o um fragm ento de discurso coloquial, onde o
elem ento lingüístico e sua entoação exercem , em com unicação norm al,
a m esm a função inform ativa. Do ponto de vista da melodia, esta
correlação sem iótica entre um contorno m elódico da canção e um
contorno entoativo do discurso lingüístico oral corresponde à figurati-
vização melódica. As figuras melódicas coincidem , assim , com os
dêiticos lingüísticos.
O tex to da canção popular é um texto m odalizado por excelência.
Seu equilíbrio é m antido pelos m ecanism os de debreagem do com po­
nente lingüístico em contraposição com a ação de em breagem exercida
pelo com ponente m elódico. Isto significa que, para cada instauração
lingüística do enunciado, há um retorno m elódico-entoativo à enuncia­
ção (m esm o quando a frase lingüística pertence a um actante num
tem po e num espaço diferentes dos da enunciação, a entoação m elódi­
ca presentifica a enunciação pelo seu vínculo sem pre direto com o
sujeito enunciativo). Q uando o próprio discurso lingüístico opera um a
26

em breagem enunciativa, sua ressonância com o perfil m elódico provo­


ca o efeito de deitização (caso do im perativo, p/ ex.)
Voltando agora à nossa narrativização da enunciação da canção
popular e lem brando que o enunciador (locutor) exerceria no m odelo a
função de destinador m anipulador e o enunciatário (ouvinte) a função
de sujeito destinatário da com unicação, levantarem os algum as consi­
derações a respeito da ação persuasiva que caracteriza esta relação
de stinador/destinatário.
Este último estágio, evidentem ente, inexiste no universo da
canção popular, pois que o tratam ento de um discurso lingüístico em
sim ultaneidade com um discurso melódico se converte, quase necessa­
riam ente, em texto modalizado. A melodia de canção, pela correlação
que guarda com a melodia entoativa, apresenta-se sem pre com o um
índice do sujeito enunciativo que sacrifica a objetividade do texto. Em
vista disso, preferim os dizer que o ponto máximo de objetividade
atingido pelo com ponente lingüístico da canção é aquele da “ tem atiza-
çã o ” ou de despojam ento figurativo, pois a característica da ordena­
ção tem ática é exatam ente a de ser articulada por uma lógica de
m odalidades (RASTIER, 1983, 14). Do mesmo modo, a ordenação
melódica de expressão, que consiste basicam ente na criação e na
reiteração de m otivos, constituirá também um percurso tem ático de
expressão. Aliás, tal percurso seria o responsável pela form ação dos
gêneros do cancioneiro: “ sam ba” “ bolero” “ ro c k ” etc.
Tem os, portanto, um percurso enunciativo que se vai processan­
do por debreagens e por anaforizações crescentes, num m ovim ento de
desdeitização e desfigurativização melódica em proveito de um a moda-
lização dos dois com ponentes e, em sentido inverso, um percurso de
de-enunciação m arcado pelas em breagens e pelas deitizações, num
movimento de destem atização lingüística e m elódica, passando pela
modalização e atingindo, novam ente, a deitização/figurativização me­
lódica.
Dificilmente teríam os a oportunidade de verificar num a canção a
exclusividade de apenas um dos m om entos enunciativos m encionados.
A ocorrência freqüente é a alternação de predom inância desses mo­
m entos no decorrer de um a m esm a canção. Diríamos então que, dentro
do equilíbrio das com patibilidades modais entre com ponente lingüísti­
co e co m p o n e n te m elódico, o destinador de uma canção sobre-
modaliza (ou “ seduz” ) o sujeito destinatário (ouvinte) através da
presença dosada, em term os de intensidade, dos três níveis limites de
ordenação enunciativa com entados acima. Ou seja, a atuação dos
27

dêiticos e das figuras m elódicas trazem subsídios para a difícil estru tu ­


ração da instância de enunciação e significam, sobretudo, a transpa­
rência do sujeito enunciador (destinador). Aqui, pode-se dizer, se
instala a “ sedução” propriam ente dita, pois o destinador desperta o
/querer/ do destinatário em função de si próprio (ou em função da
própria figura). A ordenação de conteúdo tem ático-m odal assegura
um a m anipulação cognitiva na m edida em que o sujeito-destinatário se
convence dos conteúdos obtidos pela integração adequada entre texto
lingüístico e texto melódico. É o caso do ouvinte que se entusiasm a
com o relato lingüístico da canção. O que persuade não é a atuação
isolada do com ponente lingüístico, mas sim este com ponente modali-
zado pela melodia. Por fim , a ordenação de expressão tem ática (esta
ordenação de expressão não é apenas m elódica, mas se estende
tam bém às aliterações fônicas do discurso lingüístico) responde por
uma m anipulação pragm ática, talvez mais ao nível da figura “ ten ta­
çã o ” pois o destinador parece exercer um /poder fazer/ o destinatário
/querer/. E ste /querer/ se m anifestará, evidentem ente, por algum tipo
de fazer: dançar, m ovim entar-se ou, sim plesm ente, em polgar-se com a
percepção físico-acústica de uma regularidade que conduz ao reconhe­
cim ento de um gênero do seu agrado: um “ sam ba” , um “ ro c k ” etc.
Em outras palavras, o que se observa com um ente é a conjugação
subjacente da ordenação de expressão (tem ático-m elódica) com a
ordenação de conteúdo (tem ático-modal) e com a ordenação dêitico-
figurativa (revelando aspectos do sujeito enunciativo) que provoca no
enunciatário-ouvinte a “ euforia” de sentir um relato lingüístico ligado
a um gênero m elódico (um sam ba, por ex.) e ligado a um locutor
(intérprete), todos inteiram ente de seu agrado.
A canção popular com o discurso estético conta, no mínimo, com
esses três recursos “ euforizantes” , que poderiam ser form alizados
pela relação funcional entre um destinador e um destinatário-sujeito
narrativo no quadro de um a com unicação de objetos m odais.

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TOMÁS, N .M anual de entonación Espanola. 3* ed., M éxico, D. F. Coleccion Malaca.
1966.
SEMIÓTICA PLÁSTICA E LINGUAGEM
PUBLICITÁRIA

Análise de um anúncio da cam panha de lançamento do cigarro “ News”

I — Nota introdutória

Foi a pedido de estudantes de publicidade que estudam os um dos


anúncios da cam panha de lançam ento do cigarro “ N ew s” (1). Isso
quer dizer que não abordam os este estudo com a preocupação de
reencontrar e, menos ainda, de justificar o problem a que tentam os
elaborar há vários anos, o da sem iótica plástica. E ntretanto, muito
antes que passássem os a trabalhar com o consultor de publicidade,
pensávam os que a sem iótica plástica estava nela bem presente, na
m edida em que as condições de enunciação e os universos sem ânticos
explorados não são aí intuitivam ente muito diferentes daqueles que se
encontram estudando a pintura figurativa, a fotografia de moda ou de
“ flagrante delito”
Tivem os, e terem os ainda, ocasião de m ostrar aos publicitários o
interesse da análise sem iótica, retom ando esse exem plo do anúncio do
“ N ew s” Aqui, porém , para os sem ioticistas, desejaríam os não so­
m ente m ostrar com o se isolou sua dim ensão plástica, mas tam bém
m ostrar com o ela se articula, de um lado, com a dim ensão figurativa e,
de outro, com o enunciado lingüístico que o anúncio com porta.

II — Estudo do Significante do Anúncio

A superfície total do anúncio (figura 1, p. 45)' divide-se em


três faixas horizontais:
(1) Agência Intermarco-Conseil, 1980, campanha pela imprensa voltada para o grande
público; responsáveis: Daniel Pascal e Jean-Louis Gruibout.
30

1 a do alto com põe-se de linhas, traços e colunas tipográficas em


paralelism o horizontal;
2 a do meio apresenta-se com o um puzzle: todos os limites dos
polígonos são oblíquos;
3 a de baixo constitui-se, com o a do alto, de um paralelism o
horizontal: o do conjunto da coluna tipográfica e de sua disposição em
relação ao limite inferior do puzzle.
Se se considera apenas a faixa do meio, pode-se nela distinguir
duas áreas:
2.1. um a área de polígonos cinza que cerca...
2.2. um a área retangular colorida (ver figura 2, pg.46).
Ora, esta im pressiona pela sem elhança com a superfície total do
anúncio. M esmo se ela não é senão um a parte da grande faixa do meio
por seus limites oblíquos que se integram à rede geral, ela reproduz a
m esm a organização plástica: três faixas (relativam ente) horizontais
intercaladas:
2.2.1. uma faixa alta constituída de um paralelism o de elem entos
horizontais;
2.2.2. um a faixa interm ediária que apresenta um entrelaçam ento
de linhas com dom inância vertical;
2.2.3. uma faixa baixa com posta, com o a faixa alta. de um
paralelism o de elem entos horizontais.
O dispositivo geral do anúncio pode ser assim representado:

superfície total

faixas faixa-puzzle

intercalantes com com limites oblíquos

paralelism o horizontal intercalados

área cercante área retangular


de polígonos colorida cercada
cinza

faixas com paralelism o faixa entrelaçam ento

horizontal intercalantes intercalada


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Esse dispositivo repousa sobre dois tipos de inclusões:

inclusão

em espaço em espaço
unidimensional bidimensional

/intercalação/ /cercadura/
O fato de que é a parte inclusa que duas vezes se divide,determ ina
um certo tipo de processo topológico que se poderia denom inar “ colo­
cação em abism o”
Estudar-se-ão agora as diferentes qualidades de com posição cro­
mática e gráfica que se investem em cada uma das partes que se acabou
de isolar.
O reconhecim ento das categorias visuais exploradas nesse anún­
cio e a análise das relações entre seus term os realizados perm item
m ostrar que as partes inclusivas e inclusas da superfície total da faixa-
puzzle e da área retangular são, respectivam ente, postas em contraste
ítom a-se aqui o term o no sentido preciso que lhe deu a sem iótica
visual): quer dizer que os term os opostos de uma m esm a categoria são,
cada um, realizados por uma das duas partes em relação de inclusão
nesse anúncio.
a) organização da superfície total:
— com posição gráfica:
paralelism o de horizontais vs rede de oblíquas tangentes
— com posição crom ática:
jogo de cores puras vs jogo de valores
— disposição: intercalante vs intercalado
b) organização da faixa-puzzle:
— com posição gráfica: em aranham ento (tangências não orto­
gonais) vs tram a (tangências ortogonais)
— com posição crom ática: m onocrom atism o (gama de cinza)
vs policrom atism o
— disposição: cercante vs cercado
c) organização da área retangular:
— com posição gráfica:
paralelism o de horizontais vs rede de linhas tangentes
32

— com posição crom ática:


relações vivas vs relações m atizadas
— disposição:
irrtercalante vs intercalado

Serão feitas duas observações a respeito dessas colocações em


contraste^
1. A “ sem elhança” intuitivam ente constatada mais acim a entre a
superfície total e a área retangular revelou-se fundada: am bas são
organizadas a partir de um a intercalação em que áreas intercalantes e
áreas intercaladas se opõem pelas m esm as relações de com posição
gráfica e crom ática. O anúncio repousa assim sobre a hom ologação
dessas duas unidades: tratar-se-á, então, de descobrir que papel exerce
essa hom ologação na produção do sentido desse anúncio.
Três tipos de grafism o e três tipos de crom atism o servem para
realizar os contrastes:
— graficam ente:
a) paralelism os opõem -se a entrelaçam entos;
b) entrelaçam entos ortogonais a entrelaçam entos não ortogo­
nais;
c) sim etrias a assim etrias;
— crom aticam ente:
a) cores puras opõem -se a um jogo de valores;
b) um policrom atism o (verm elho, branco, m arrom m atizados)
a um m onocrom atism o (cinza);
c) cores puras a cores m isturadas.

2. Percebe-se, então, que a oposição fundam ental no que tange ao


grafism o é aqui /com posição regular /vs/ com posição irregular/ e que a
oposição fundam ental no que se refere ao crom atism o pode assim se
denom inar: / com posição por saltos/ vs/ com posição por graus/.
Ora, a regularidade oposta à irregularidade, assim com o o salto
oposto ao grau representam , sobre as duas dim ensões respectivas do
grafism o e do crom atism o, a m esm a categoria últim a da descontinuida-
de oposta à continuidade. E ra aliás previsível que o estudo das áreas e
das superfícies do anúncio levasse a aí reconhecer a exploração de um a
das grandes categorias que ordenam as projeções do espaço, quer
essas projeções se façam por cores ou por entrelaçam entos de linhas.
Assim , o puzzle sem princípio de organização identificável, não
oferece, ao contrário das faixas que apresentam um paralelism o,
33

elem entos geom étricos isoláveis e concorre para produzir um efeito de


continuidade de superfície. A m esm a coisa se dá no caso da assim etria
e da ausência de entrelaçam ento ortogonal: o valor, a gam a m onocro­
m ática e o matiz exereem o mesmo papel na dim ensão do crom atism o.
A geração dos diversos elem entos reconhecidos nas unidades que
com põem o anúncio pode ser representado do seguinte modo:

descontinuidade continuidade

por saltos regularidade por graus irregularidade

cores puras
t
paralelismo
í t
jogo de valores entrelaçam ento
ou ou ou ou
policrom atism o onogonalidade m onocrom atism o ausência de
ortogonalidade

ou ou ou ou

cores simetria cores assim etria


puras m atizadas

crom atism o grafismo crom atism o grafism o

Para estudar a expressão visual deste anúncio, dividiu-se prim ei­


ro a sua superfície para determ inar o dispositivo de suas unidades, a
fim de não isolar arbitrariam ente esta ou aquela parte; em seguida,
analisaram -se as qualidades de cor e de grafism o que as definem . Esse
estudo chegou a dois resultados:
1. Sem ter, até este m om ento, recorrido à divisão pela identifica­
ção de objetos ou seres do m undo “ re-produzido” identificaram -se
três unidades em abismo: a superfície total, a faixa-puzzle e a área
retangular. O bservou-se que to d a s as trê s m an ife sta m um a co-
presença de qualidades contrárias, de cor com o de grafism o; e que
duas dentre elas (a superfície total e a área retangular) eram hom ologá­
veis.
2. Por decom posições e aproxim ações sucessivas, extraiu-se o
sistem a que serve de base a essa expressão visual e descobriu-se que
esse sistem a tem de notável o fato de que, sob todos os pontos de vista,
ele repousa sobre a exploração de um a m esm a categoria última:
34

descontinuidade vs continuidade e de que, ao mesmo tem po, cada uma


das três unidades em abismo a realiza num a m esm a relação topológica
para as duas hom ologáveis e num a relação inversa para a faixa-puzzle.
A partir de agora, é preciso atacar a análise do conteúdo do
anúncio para justificar o estudo das qualidades visuais com o qualida­
des de expressão, isto é, com o qualidades que têm algum papel na
produção do sentido: não há expressão senão em relação a um conteú­
do, não há significante senão em relação a um significado. Apenas as
qualidades visuais que exercem um papel na produção do sentido são
pertinentes para o estudo da significação. E ssa preocupação com a
pertinência é essencial e particularm ente rentável em publicidade,
porque ela perm itirá controlar quais são as variações, as transform a­
ções de cor, de disposição na página ou de desenho que provocam uma
m udança de sentido ou, ao contrário, quais são aquelas que não a
provocam .
III. - Estudo do Significado do Anúncio
Para estudar o significado do anúncio, partir-se-á dos diferentes
signos, palavras ou imagens, cujo encadeam ento constitui a m anifesta­
ção. O anúncio, tom ado em sua totalidade, representa a prim eira
página de um jornal: as palavras e os enunciados da parte superior são
dispostos como o seriam o título e a divisa de um jornal. O aspecto
jornalístico desses signos é reforçado pela utilização do “ T im es” *
com o caráter tipográfico O próprio corpo da página constitui-se de
grafem as e de imagens cuja disposição é a dos diferentes títulos, textos
e fotografias da prim eira página.
Pode-se, desde então, interrogar-se sobre o que recobre, com o
conteúdo de sentido, a noção de prim eira página de um jornal. Ela é,
evidentem ente, se se considera a totalidade de páginas de um jornal, a
prim eira: aquela em que se dão as notícias que foram consideradas
mais im portantes, mais ricas de ensinam entos ou de em oções para os
leitores; mas é tam bém a página onde, cada dia, figura o título.
Q ualquer que seja o ordenam ento das notícias, qualquer que seja o
tam anho dos títulos em função da im portância concedida aos aconteci­
m entos, título e divisa constituem o lugar onde se m anifesta a perm a­
nência do jornal. A prim eira é, então, a página em que se m anifesta
um a das características fundam entais do discurso jornalístico: o de ser
um a criação própria (no caso presente, coletiva) a partir destes “ dis­
cursos dos o u tro s” que são os acontecim entos do mundo.
* “Tim es” significa uma das famílias de caracteres empregados em tipografia (NT)
35

Tom em os agora a imagem do anúncio. Que representa ela? Um


m aço de cigarros entreaberto colocado sobre fotografias dispersas.
Elas são provas de am pliações, tal com o saem do laboratório: é o jogo
de clichês de que dispõe uma redação ou um diagram ador que inter­
rom peu, por um m om ento, o seu trabalho: selecionar, associar... A
prim eira página era o jornal pronto. Trabalho redacional ou diagrama-
ção, pouco im porta, é agora o jornal no processo de se fazer. R esta, e é
o essencial, que se trata aqui de dois percursos possíveis da perform an­
ce jornalística: criar, dar um a significação nova e particular, exploran­
do o que outros produziram e que tinha já sentido, valor.
Esses clichês esparsos sobre os quais se colocou o m aço de
cigarros não representam cenas quaisquer: são tom adas de tom adas.
Um a fila de fotógrafos “ m etralhando” um “ cam eram an” que filma
de um helicóptero: duas cenas de reportagem em pleno andam ento; as
roupas de um repórter sobre o capô de um Land-Rover, um a braçadei­
ra da im prensa e m aterial colocados diretam ente no piso de um carro:
duas cenas de reportagem por um m om ento interrom pida. Os quatro
clichês representam , em m om entos e situações diversos, o trabalho do
repórter fotográfico, prim eiro anel da cadeia do discurso jornalístico:
tam bém ele, pelo enquadram ento, a velocidade ou a profundidade do
cam po, realiza um a obra pessoal a partir dos gestos, das atitudes e das
situações significantes de outrem .
Tendo-se estudado a dim ensão figurativa do anúncio, descobre-
se um a nova “ colocação em abism o” situada desta vez no plano do
conteúdo e que representa a perform ance deste sujeito coletivo sintag-
m ático que é um “ jornal” A personalidade do jornal (aqui “ N ew s” )
funda-se sobre a perm anência de seu nome e de sua concepção de
jornalism o, que vai mesmo além do corpo da prim eira página, cada vez
diferente. Essas prim eiras páginas representam o trabalho regular e
pessoal da redação e dos diagram adores a partir daquilo que lhes
fornecem os repórteres. E stes, enfim , criam seu próprio discurso
(lingüístico ou fotográfico) a partir daquilo que lhes parece significati­
vo nos propósitos e nas ações dos hom ens.
Tinha-se extraído, no plano da expressão, um a colocação em
abism o entre três unidades: a superfície total, a faixa-puzzle e a área
retangular. O ra, é forçoso constatar que as duas colocações em abism o
não são hom ologáveis: se, por exem plo, a faixa-puzzle corresponde a
esta unidade narrativa, que é a atividade dos redatores e dos diagram a­
dores, não é a área retangular que representa a do trabalho dos
repórteres. D essa form a, deve-se propor agora a questão do papel da
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colocação em abism o das três unidades da expressão. Se elas não


servem para a expressão desta narrativa que é a produção jornalística,
elas, ao m enos, colocam em relação este objeto jornalístico, que é a
prim eira página de um jornal, e este objeto aparentem ente tirado de um
universo totalm ente outro: um maço de cigarros; e isso pelo tratam ento
das qualidades visuais das superfícies e áreas do conjunto do anúncio.
A hom ologação entre a superfície total do anúncio e a área
retangular constitui a expressão de um a colocação em correspondência
das significações de um a prim eira página de um jornal e de um m aço de
cigarros. Que é esse m aço de cigarros? Um a em balagem e um conjunto
de cigarros dos quais som ente, ou quase, os filtros são visíveis. Sobre a
em balagem estão inscritas a m arca e a divisa (as m esm as do jornal):
"‘International N ew s” ‘‘Take A Break In The R ush” assim com o a
qualidade particular do cigarro (‘‘full flav o r” “ special blend” ) e a
quantidade constante contida no maço (” 20 filter cigarettes” ). Tantas
são as m anifestações de identidade do produto que essa identidade é
concebida com o perm anência ou unicidade. Os cigarros oferecem
esses tabacos selecionados cuja m istura especial é a criação própria do
“ N ew s” N ão é sem motivo que a imagem explora essencialm ente a
cor e a textura do papel que cerca os filtros, que lem bram a m istura dos
diferentes tabacos.
Pode-se, a partir de então, com preender o papel da hom ologação
entre as qualidades de expressão da superfície total do anúncio e a área
retangular que são os significantes respectivos da prim eira página e do
maço de cigarros: da m esma form a que o jornal é um a criação pessoal
a partir de notícias selecionadas e com postas, o cigarro “ N ew s” é a
criação de um penetrante arom a particular, graças a um a m istura
especial de tabacos. O jornal e o cigarro “ N ew s” reúnem am bos
identidade e alteridade: seu caráter próprio e perm anente foi concebi­
do a partir das qualidades de “ m atérias-prim as” elaboradas por outras
pessoas.
IV.— Dimensão Plástica e Sistema Semi-Simbólico

Deve-se lem brar que a superfície total do anúncio (o significante


da prim eira página) e a área retangular (o significante do m aço de
cigarros) são form adas de três faixas que estão na m esm a relação
topológica: duas faixas intercalantes construídas em descontinuidade e
um a faixa intercalada construída em continuidade. Um m esm o con­
traste é assim realizado em cada um dos significantes e um a m esma
oposição sem ântica organiza cada um dos significados. O ra, se se
37

exam ina agora a que tipo de faixas é ligado cada term o da oposição
sem ântica, constata-se que é a m esm a reunião da oposição e do
contraste que é colocada em jogo:
expressão: descontinuidade vs continuidade
conteúdo: /identidade/ vs /alteridade/
E ssa junção, que é, repito, resultante da organização plástica da
imagem (e que não existiria mais se essa organização fosse destruída),
pode ser considerada com o um a organização “ profunda” no sentido
que as duas relações agrupadas (descontinuidade vs continuidade e
/identidade/ vs /alteridade/) são am bas situadas no nível profundo —
um a no do plano da expressão e outra no do conteúdo

Deve-se propor um a última questão. Essa reunião explica tam ­


bém a terceira unidade de expressão: a faixa-puzzle? A junção estaria,
então, no âmago da totalidade da significação m anifestada n e ste
anúncio.

N a faixa-puzzle, é a área englobante que é tratada com o continui­


dade por uma com posição em em aranham ento (não ortogonalidade das
tangências) e por um monocromatismo cinza; e é a área retangular
englobada que é tratada — em sua totalidade e em relação à área
precedente — com o descontinuidade por um paralelism o de horizon­
tais e um policrom atism o. Que representa a área englobante cinza? Os
clichês dispersos dos repórteres. A área retangular é o significante do
m aço de cigarros, colocado sobre os clichês. Ele representa, metonimi-
cam ente, a atividade do redator ou do diagram ador, mesmo que aqui
ela esteja suspensa. Ver-se-á mais adiante a significação dessa pausa.

A faixa-puzzle, como já se viu, serve para a expressão da


atividade de produção do jornal: os clichês constituem o discurso
fornecido por outras pessoas que está sendo selecionado, reunido para
com por finalm ente o discurso do jornal. Em conseqüência, reencon­
tra-se de fato o m esm o agrupam ento que estava em jogo na superfície
total (a prim eira página de um jornal) e na área retangular (o m aço de
cigarros):
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paralelism o de horizontais em aranham ento


expressão + vs+
policrom atism o m onocrom atism o

t i
descontinuidade vs continuidade
/identidade/ alteridade/

t
atividade redacional
. . t
v5 clichês-reportagem
conteúdo
(discurso próprio do jornal) (discurso dos outros)

Foi estudando o papel da hom ologação da superfície total do


anúncio e da área retangular que se colocou em evidência essa reunião
da oposição (da expressão) descontinuidade vs continuidade e da
oposição (do conteúdo) /identidade/ vs /alteridade/. A caba-se de reen­
contrar essa m esm a junção em jogo na organização da faixa-puzzle,
isto é* na imagem do anúncio. Em conseqüência, ela está bem no
âmago da significação do anúncio m anifestado visualm ente.
Mas que acontece com os enunciados lingüísticos?
Pode-se considerar que há de fato dois enunciados lingüísticos.
Um é form ado de palavras ou grupo de palavras em caracteres “ Ti­
m es” redondos,que m anifestam a identidade e as qualidades do objeto:
international News
full flavor special blend
20 filter cigarettes;
o outro é constituído pela frase tom ada com o divisa e inscrita na faixa
verm elha em “ T im es” itálicos. E ste enunciado dá, de alguma m aneira,
a identidade abstrata, ideológica, do objeto, enquanto aquele m anifes­
ta a sua identidade figurativa. O enunciado-divisa é assim para o
enunciado das qualidades figurativas o que era a dim ensão abstrata e
ideológica da hom ologação plástica em relação à dim ensão figurativa
da prim eira página e do m aço de cigarros. Estudar-se-á, pois, esse
enunciado-divisa com o o lugar da m anifestação lingüística de um
conteúdo com parável àquele da dim ensão plástica do anúncio.
Até o m om ento, esse enunciado não foi considerado senão na sua
m anifestação visual; interessou-se pela sua disposição paralela em
relação às outras linhas horizontais, pela sua cor (em contraste com o
fundo verm elho) ou ainda pela sua com posição tipográfica (em “ Ti­
m es” ). É preciso agora estudar a expressão lingüística, mais precisa­
m ente oral, a que rem ete a m anifestação visual, grafem ática. Qual é o
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sentido da divisa? O leitor é convidado a quebrar o ritm o precipitado


da vida social, a fazer um a pequena pausa em que será suspensa o que
se cham ava outrora a “ p resse” * N ão se trata de aproveitar de um
descanso concedido após o m om ento de agitação em que se deve
desenvolver uma grande atividade, fum ar um “ N ew s” é tom ar a
iniciativa de interrom per m om entaneam ente o próprio fluxo da vida
profissional... essa vida que alienaria se dela não se retom asse o
controle, precisam ente parando-a em intervalos mais ou menos regu­
lares.
Ter-se-á com preendido que a significação do enunciado lingüísti­
co repousa tam bém sobre a oposição sem ântica/identidade/ vs/ alteri-
dade/. O que o anúncio “ N ew s” propõe ao leitor é um estilo de vida
que se pode qualificar de complexo no sentido de que ele reúne dois
estados contrários: a participação na vida trepidante da sociedade
(está-se em pleno m ovimento apressado da multidão) mas tam bém a
conquista de um estilo pessoal a ela im presso. O bjeto de valor mítico,
esse estilo de vida faz que se escape assim , ao mesmo tem po, ao
isolam ento e à alienação ou à privação do eu.
Interessam o-nos aqui pela significação relativam ente abstrata da
divisa, mas é possível identificar igualm ente, num nível mais figurativo
— o da narratividade de superfície — um jogo entre a form a verbal de
“ T ak e” e a apresentação do m aço de cigarros entreaberto, com o nos
sugeriu Paolo Fabbri quando da apresentação desta análise na Escola
de Altos E studos.
Se se adm ite assim que o enunciado propõe com o objeto-valor a
adquirir pelo leitor um program a relativam ente abstrato, com preender-
se-á que esse estilo de vida (que é o do jornalism o: um jornal “ fe ch a” ;
uma redação seleciona e corta; um diagram ador reenquadra e um
fotógrafo fixa o movimento) pode ser tam bém o de toda situação em
que se tem a possibilidade de organizar o próprio tempo de trabalho.
Não é, no universo, sócio-profissional atual, a própria situação do
executivo (após ter sido outrora a do artesão)? O bserva-se que o estudo
do anúncio chega aqui a dar o perfil do destinatário da cam panha
“ N ew s” antes mesmo que ele seja reconhecível neste ou naquele
retrato profissional.
A profissão de repórter serve para um a com unicação particular­
m ente eficaz deste privilégio que representa o estilo de vida “ N ew s” ,
porque ela oferece um a figuratividade, um banco de im agens, de
situações e de ações socialm ente consideradas hoje com o excepcio-

* Há aqui um jogo de sentido, pois “presse” significa pressa e imprensa.


40

nais: observação direta do que se passa no m undo, criação intelectual


ou estética, viagens (nas imagens suficientem ente contrastadas na
im pressão, pode-se ler sobre um dos clichês, no alto do cartão postal
colocado diretam ente sobre o capô do Land-R over, “ M ongólia” e
“ C oréia” ), meios sofisticados (helicóptero, L and-R over, câm aras re-
flex), privilégios (braçadeira “ Im prensa” ), roupas descontraídas (im­
perm eável com cinto, blusão)... O propósito do estudo é isolar o tipo
de relação entre expressão e conteúdo colocado em jogo na produção
do sentido do anúncio, o que implica abordagem m etodologicam ente
bem distinta daquela praticada principalm ente por R. B arthes em seu
artigo de 1964, “ R etórica da im agem ” (a respeito das “ M assas Panza-
ni” em C om m unications, n° 4). Aliás, já se terá notado que uma
dim ensão “ retó rica” tem certam ente sua pertinência e sua im portância
— ela assegura a eficácia da com unicação do conceito (em publicidade,
designar-se-ia assim , o estilo de vida /identidade/ /alteridade/ asso­
ciado ao cigarro a ser lançado) — mas que ela aí m ostra seus limites:
não é ela que está na origem do sentido ou, se se quer, que construiu o
conceito. A retórica da imagem não intervém senão no m om ento em
que o “ conceito” se torna figurativo.
Voltem os à definição mais “ ab strata” do estilo de vida que o
enunciado lingüístico m anifesta. Trata-se, com efeito, de perceber que
esse enunciado reúne já, em seu contéudo, a /identidade/ à desconti-
nuidade e a /alteridade/ à continuidade: a continuidade caracteriza o
processo temporal que é o “ rush” * (da vida social); assim como a
descontinuidade distingue o dos “breaks” ** que constituem o ritmo
pessoal conquistado, ou a conquistar. H á aqui continuidade e desconti­
nuidade no tem po (significado), enquanto o estudo da dim ensão visual
do anúncio tinha já isolado a descontinuidade e a continuidade no
espaço (significante). N ão obstante, por ter feito um rápido retorno à
imagem a fim de m ostrar sua retórica, tenha-se aí encontrado repórte­
res que enquadram e fixam um a redação que suspendeu por um
m om ento sua seleção de clichês.
Assim , reencontra-se a oposição descontinuidade vs continuida­
de no plano do contéudo do enunciado lingüístico e ela aí articula os
dois aspectos da tem poralidade própria do estilo de vida associado ao
cigarro “ N ew s” A oposição, com isso, “ abandonou” o plano da
expressão? Se sim, o agrupam ento das duas oposições seria, então, de
natureza diferente no enunciado lingüístico.
* “ Rush” significa pressa, precipitação, tropel, grande movimento, (NY>
** “ Break” quer dizer interrupção, intervalo. (NT)
41

De fato, o que há de notável nesse anúncio é que a oposição


descontinuidade vs continuidade perm anece, entretanto, um a oposição
da expressão e que ela aí se junta, além disso, com a m esm a oposição,
sem ântica, ideológica: /identidade/vs/alteridade/.
Que ocorre, então, com a expressão sonora do enunciado lingüís­
tico? Ela apresenta-se com o um a organização binária: dois grupos de
três sílabas constituem “ Take A Break In The R ush” Se se exam ina a
natureza fonética de cada um dos dois grupos, percebe-se que o ritm o
do prim eiro repousa sobre consoantes oclusivas, isto é, consoantes
cuja articulação com porta um a oclusão do canal oral seguida de uma
abertura brusca:
Ta/ce A Break
e o que o ritm o do segundo grupo se assenta sobre constritivas,
quer dizer, consoantes cuja articulação não com porta mais uma
oclusão seguida de um a abertura, mas um a constrição:
In The Rush
Para ser preciso, o encadeam ento de consoantes com eça aqui por
uma nasal (n), isto é, uma oclusiva, mas que pode ser “ contida” (por
sua posição final na sílaba): uma sem i-oclusiva a segue (th), depois
vêm uma constritiva vibrante (r) e uma constritiva fricativa (sh).
Assim, essas diversas produções sonoras realizam , na prim eira parte,
um efeito de descontinuidade e, na segunda, um efeito de continui­
dade.
Se se consideram agora essas duas partes, essas duas unidades da
cadeia da expressão sonora com o os form antes (os significantes) das
duas unidades sem ânticas, que são, de um lado, o convite a tom ar a
iniciativa de um a parada e, de outro, a micro-narrativa da vida social,
reencontra-se a junção das duas oposições tal com o ela tinha sido
extraída no estudo da m anifestação visual do anúncio:
expressão: descontinuidade vs continuidade
conteúdo: /identidade/ vs /alteridade/
Depois de um a tal análise — e som ente depois — percebe-se que
o fato de haver um m aterial sonoro e um m aterial visual para a
expressão do anúncio não implica que seja preciso considerá-lo com o
constituído de um a mensagem lingüística e de uma m ensagem icônica.
N esse anúncio, m aterial sonoro e m aterial visual m anifestam a m esm a
forma de expressão, a mesma estrutura de qualidades independente­
m ente de suas m anifestações.
C om preende-se melhor, de outro lado, com o podem constituir-se
as sinestesias, essas correspondências de sons, cores e perfum es. Elas
não são de fato senão as m anifestações em m ateriais sensoriais dife-
42

rentes dos m esm os conjuntos de qualidades de expressão correlaciona­


das a este ou àquele conceito, quer essas correlações se façam por
categorias (nos sistem as sem i-sim bólicos), quer unidade por unidade
(nos sistem as simbólicos).
Pode-se representar, afinal, a relação entre a expressão e o
conteúdo do anúncio da seguinte m aneira:
D im ensão visual Dimensão lingüística
do anúncio do anúncio

com posição em yJ com posição em


regularidade irregularidade
ou ou
E xpressão

cromatismo cromatismo consoantes consoantes


por saltos por graus oclusivas constritivas
/

descontinuidade continuidade
---------------------- vs ------------------
/identidade/ /alteridade/
\
C o n teú d o

discurso discurso iniciativa participação


pessoal de outrem de uma no
parada movimento da
multidão
perm anência prim eiras
do jornal páginas quotidianas
ou ou
esco lh a clich ês
redacional trazidos
ou ou
fotografias vs acontecimentos
43

Serão feitas algumas observações sobre essa form a tão particular


de relação entre plano de expressão e plano de conteúdo.
1. A significação desse anúncio repousa sobre um certo tipo de
linguagem, cham ada “ sem i-sim bólica” ; as linguagens semi-sim bólicas
caracterizam -se não pela conform idade de elem entos da expressão e
do conteúdo isolados, mas pela conform idade de certas categorias
desses dois planos. Citam-se geralm ente com o form as semi-sim bólicas
singnificantes as form as prosódicas e certas form as de gestualidade. O
/sim/ e /não/ correspondem assim , em nosso universo cultural, à
oposição dos m ovim entos da cabeça sobre os eixos verticalidade vs
horizontalidade. A sem iótica visual pôde m ostrar a im portância das
organizações semi-simbólicas na pintura figurativa com o na pintura
ab strata e propôs cham ar “ linguagens plásticas" as linguagens visuais
que m anifestam uma sem iótica semi-simbólica (1).
O que há de notável no anúncio aqui estudado é que o mesmo
sistem a semi-simbólico, a mesm a junção de um a oposição de expres­
são e de um a oposição de conteúdo foi constituída a partir de duas
linguagens de m anifestação que não só diferem entre si pelos m ateriais
em que se realizam , mas tam bém se distinguem am bas do sistema semi-
simbólico, pois a imagem figurativa e o texto rem etem , direta ou
indiretam ente, a estes dois sistem as simbólicos que são, respectiva­
m ente, o mundo natural e língua natural.
Pela reunião de um a oposição de expressão independente de todo
m aterial de m anifestação e de um a oposição de conteúdo situada num
nível abstrato, ideológico, o anúncio não só produz seu sentido, sua
“ m ensagem " para além da distinção texto/im agem , mas tam bém ele
se dá a possibilidade de se realizar em m últiplos registros de expressão
ou de conteúdo (tem as ou universos figurativos) e produz enfim , se
essa possibilidade é explorada, seu efeito de sentido de riqueza e de
criatividade.
2. O esquem a de representação da relação entre a expressão e o
conteúdo do anúncio não explica um fenôm eno observado quando do
estudo do enunciado lingüístico: a oposição descontinuidade vs conti­
nuidade, que se tinha isolado e situado sobre o plano da expressão para
a dim ensão visual do anúncio, articula tam bém a tem poralidade do
estilo de vida valorizado na frase “ Take A B reak In The R ush” D essa
form a, poder-se-ia crer que a expressão visual e o conteúdo lingüístico
devem ser hom ologados. De fato, após o estudo da expressão lingüísti-

(1) Uma coletânea de análises que ilustram a importância dessa problemática deve
aparecer sob o título Introdução âs linguagens visuais. Do abstrato ao figurativo.
44

ca sonora e um a rápida volta sobre as ações representadas na imagem,


notou-se que a oposição descontinuidade vs continuidade, tanto para a
frase com o para a dim ensão visual do anúncio, é utilizada não só com o
oposição de expressão, mas tam bém com o oposição do conteúdo
(desta vez relativam ente superficial). R epetim os, tal fenôm eno não
deve surpreender: um a linguagem é antes de tudo um a rede de rela­
ções, de oposições conceituais — de “ categorias sem ânticas” na
term inologia sem iótica; elas podem , então, servir para constituir o
plano da expressão ou o plano do conteúdo... ou ainda (com o é o caso
aqui) a expressão e o conteúdo, criando um efeito de m otivação do
signo, de perm eabilidade dos dois planos da linguagem norm alm ente —
e teoricam ente — unidos de m aneira totalm ente arbitrária.

3. A publicidade seria o refúgio da poesia? Para justificar a


incongruência de tal questão, notar-se-á que o fato de a significação do
anúncio repousa sobre a acoplagem de oposições de expressão e de
conteúdo pode ser considerado com o característica da produção poéti­
ca, no sentido que, com o na poesia m anifestada lingüisticam ente, o
anúncio joga (a) com a indentificação de articulações paralelas e
correlatas que envolvem os dois planos, expressão e conteúdo, (b) com
a colocação do enunciado em sistem a: Rom an Jakobson diria com a
“ projeção do eixo paradigm ático sobre o eixo sintagm ático”
Adem ais, poder-se-ia dizer que esse anúncio é “ p oético” pelo
tipo de discurso que ele produz. Com efeito, a análise sintáxica
narrativa que dele se pode fazer (a proposição de um estilo de vida
com plexo, isto é, ao mesmo tem po /identidade/ e /alteridade/ dá esse
discurso com o um discurso abstrato, enquanto, sem anticam ente, é um
discurso figurativo, ao menos em sua dim ensão mais explorada: a
dim ensão visual. Esse privilégio concedido à dim ensão visual e à
exploração de sua figuratividade para com unicar um a m ensagem abs­
trata, ideológica, faz desse anúncio um enunciado m uito próxim o dos
enunciados m íticos ou sagrados que, usando do m esm o tipo de discur­
so, ao m esm o tem po, sintaxicam ente abstrato e sem anticam ente figu­
rativo, produzem um efeito de sentido de verdade.

V — Os outros anúncios da campanha

O anúncio que acaba de ser estudado não é a única m anifestação


da cam panha de lançam ento do cigarro “ N ew s” E ntre a m eia dúzia de
outros, dois som ente retom am o tem a da reportagem . Um (figura 3)
representa em uma m esm a faixa-puzzle central um maço de cigarros
45
a %
deitado sobre clichês e tam bém — o que é novo — sobre seus contatos;
um cigarro está tirado do m aço e colocado ao longo do seu lado direito.
O outro anúncio (figura 4) representa o maço em pé. Seu perfil está
inscrito em baixo do único clichê, o dos repórteres que “ m etralham ”
N esse anúncio, m enciona-se a indicação “ 20 filter cigarettes” em um a
pequena faixa branca oblíqua a cavaleiro do clichê e da divisa. O
anúncio foi m uitas vezes publicado na quarta página de capa de
revista; ele é, então, circundado de um a cercadura verm elha. Os
outros anúncios (figura 5) apresentam tam bém o m aço em pé, mas
sobre uma espécie de m ostrador abstrato cujo fundo vertical, para
certas pessoas, constitui-se da faixa superior do anúncio estudado: o
paralelism o horizontal do “ título” e da “ divisa”
A partir do estudo com parativo das diferentes dim ensões visuais
desses anúncios, pode-se notar que som ente o anúncio que representa
o m aço deitado sobre clichês e contatos (fig. 3) reproduz o tratam ento
plástico do anúncio estudado (fig. 1). E crem os dever insistir nisso: o
mesmo tratam ento plástico é reproduzido, em bora a parte inclusa na
faixa-puzzle não seja só a área retangular do m aço, mas as duas áreas
disjuntas do maço e do cigarro. Em outras palavras, a m esma estrutura
plástica, o m esm o jogo de contrastes gráficos e crom áticos e de suas
disposições aí se reencontram , ao passo que os signos m udaram , que o
plano da m anifestação constitui-se, figurativam ente, de um a outra
cadeia de unidades significantes. Tal exem plo m ostra a independência
de fato — de direito, estava adquirida teoricam ente por definição — da
form a plástica em relação à sua realização em signos. Se se considera,
enfim , o m undo publicitário (e se se fala sua linguagem), vê-se o
partido que, praticam ente, dele pode tirar o “ criativo” no que tange à
“ declinação” possível do anúncio estudado.
Interessem o-nos agora pelo anúncio que foi, m uitas vezes, publi­
cado na quarta página da capa (figura 4). Dois elem entos aí se encon­
tram , que subvertem a organização da dim ensão visual em relação à do
anúncio estudado:
a) a cercadura verm elha exclui toda possibilidade de hom ologa­
ção da superfície total do anúncio e da área do m aço de cigarros. Ora,
todos se lem bram de que era essa hom ologação que fundava, segundo
nossa posição, a significação profunda do prim eiro anúncio e, ao
m esm o tem po, o valor do m aço de cigarros “ N ew s” ;
b) a pequena faixa branca oblíqua rom pe o paralelism o da divisa e

* Contato significa conjunto de provas, fotográficas dispostas numa mesma prancha


para que se selecionem as que se deseja.
46

sobretudo a separação entre a faixa superior e faixa central; bem mais,


essa faixa oblíqua se constitui com o espaço incluso em relação ao
conjunto de todo o anúncio — espaço inclusivo. A disposição geral da
superfície total do prim eiro anúncio é, então, inteiram ente destruída.
Se se verifica que, em relação ao anúncio estudado, o m aço de
cigarros perde assim toda sua riqueza sem ântica, dois outros elem en­
tos, figurativos desta vez, dissociam -no da “ n arrativ a” desenvolvida
pelos dois anúncios (figuras 1 e 3) que representam vários clichês de
reportagem :
a) a inscrição do perfil do maço de cigarros no único clichê que
aparece, o dos repórteres “ m etralhando” , não o apresenta mais com o
m aço utilizado pelos jornalistas — enquanto, nos outros anúncios, ele
estava colocado sobre o capô do Land-R over ou, em todo caso, jogado
po r um redator ou um diagram ador sobre um m onte de clichês e/ou de
contatos;
b) sua posição em pé, enfim , antes o apresenta, se se pode dizer,
do que o deixa em condição de ser apanhado para tirar o cigarro que
está ligeiram ente de fora — e é, aliás, nessa posição em pé que o m aço
é colocado em um decor abstrato, se com parado com os outros
anúncios (figura 5).
O que nos im portava de fato neste (extrem am ente rápido) estudo
com parativo era m ostrar com o a form a plástica, que determ ina a
significação do anúncio estudado, podia ser reencontrada, apesar de
certas transform ações — no nível dos signos — e, outras vezes,
perder-se desde que a organização crom ática e gráfica fosse diferente.

VI — Conclusão
A semiótica plástica: uma reflexão sobre a liberdade irreprimível dos
‘‘fabricantes de imagens”

H á alguns anos, tentam os definir a autonom ia e a im portância de


um a “ sem iótica plástica” ao lado de um a sem iótica figurativa. Por
seus jogos de constrastes ou de ritm os, o tratam ento gráfico e crom áti­
co de um a imagem opera, m uitas vezes, um a supra-segm entação,que
rearticula os signos figurativos, na m aioria das vezes lexicalizáveis, e
dota de form antes o discurso “ profundo” do enunciado, discurso
tímico, mas sobretudo axiológico. E ssa pesquisa, com eçada pelo estu­
do do estatuto sem iótico dos contrastes na fotografia de Edouard
Boubat (Icf.i J.-M . Floch, “ Sém iotique poétique et discours m ythique
47

Figure 1
48

Y iguxe 5 a

Píyurc Sc
49

Filvcre 3 firure 4
50

en photographie” D ocum ents et Pré-publications du C entre Interna­


tional de Sém iotique et Linguistique, U niversidade de U rbino, 94,
junho de 1980), depois desenvolvida pela análise de pinturas figurati­
vas ou não (jcf. “ K andinsky: sém iotique de un discours plastique non
figuratif ” C om m unications, Seuil, 34, 1981), levava a pensar que essa
liberdade, sem pre conservada pelo artista a despeito das coerções de
um a figuratividade im posta m uitas vezes por sua inserção em um
processo de com unicação, podia exercer-se da m esm a m aneira em
publicidade. Pode-se interpretar a elaboração dessa “ sem iótica plásti­
c a ” com o o desejo de exaltar o poder criador dos fotógrafos e
desenhistas — até m esm o dos redatores e dos poetas — sem pre livres,
em últim a instância, de enriquecer ou de subverter o m aterial figurati­
vo, ou m esm o, m uitas vezes, retórico, que se lhes propõe ou impõe.
Jean-M arie Floch
U .R .L . 7
T radução — José Luiz Fiorin
Instituto de L etras, Ciências Sociais e Educação
U N E S P — A raraquara
A construção do ator: do sígnico ao simbólico

I. Assis Silva

E stas são as linhas gerais de uma hipótese que vimos desenvol­


vendo segundo a qual o ator é construído pelos procedim entos discur­
sivos com o uma figura narratológica, ou m elhor, com o um a figura-
ator, a qual, por isso m esm o, surge com o o lugar por excelência de
constituição da intersemioticidade. Com isso querem os significar que
os procedim entos discursivos fazem da figura-ator um a instância semi-
simbólica, onde a disjunção mundo natural / língua natural é sincreti-
zada.
O conjunto desses procedim entos é por nós visualizado com o um
percurso que nos leva do sígnico ao simbólico, ou m elhor, com o um
trabalho de transform ação que nos leva de um estado sígnico a um
estado simbólico. Não estam os interessados aqui nos símbolos este­
reotipados (“ figés” ) com o por exem plo /rosa/ “ am or” , /cruz/ “ cristia­
nism o” /m eia-lua/ “ íslam ism o” mas nos símbolos construídos pelo e
no texto. Por exem plo, não estam os preocupados com as virtualidades
simbólicas que /agulha/ tem em língua portuguesa, mas com os valores
simbólicos efetivam ente explorados pelo e no A pólogo m achadiano.
Por outras palavras, não nos interessam os sím bolos, mas a simboliza-
ção, ou seja, o processo de desconstrução de um simbolismo estereoti­
pado para a construção de um simbolismo novo.
Esse trabalho surge com o um ato de linguagem que nos leva de:
a) um estado lexical r e s ta d o discursivo.
b) um estado descritivo re s ta d o narrativo.
Para transform ar a entidade lexical /agulha/ em entidade discursi­
va, em protagonista do discurso, esse trabalho de sim bolização proce­
de a um a verdadeira refuncionalização que transform a, por exem plo, a
52

função prática da superatividade de /cabeça/ em função mítica. Vejam ,


por exem plo, o que acontece no texto m achadiano:
— “ Você fu ra o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um
pedaço ao outro, dou feição aos b ab a d o s...” (linha à agulha)
Insistência na função prática: furar o pano;
Insistência na função mítica: unir, dar feição, dar form a.
— “ Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante,
puxando por você que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e
m an d o ...” (agulha à linha)
Insistência na função mítica: posição de com ando — poder
fazer.
N a perspectiva narratológica (do projçto sem iótico em desenvol­
vim ento no Groupe de Recherches Sém io-Linguistiques da E H E SS e
C N R S, Paris), essa refuncionalização sim bolizadora é suscetível de
form ulação em term os de sintaxe actancial com o a colocação em
andam ento de um PN (Program a N arrativo), com o um fazer ser que
cham a à existência um novo estado narrativo. D esse prism a a refuncio­
nalização surge como um fazer transform ador que incide sobre dois
estados:

—— ► B
(Estado i) Fazer transform . (E stado 2 )
I
I
I I
agulha Agulha
(1. port.) (Apólogo)
1
I
tr. m órficos tr. func. prát. tr. func. míticos

figuras configuração prát. config. mítica


(não-signos) (simbolismo “ figé” ) (símbolo novo)

Distinguem -se na organização do sem em a (Pottier, Greimas) um a


parte constante e um a parte variável e, no interior desta, um a parte
feita de sem as genéricos — a qual constitui a base classem ática — e
um a parte feita de sem as específicos (figurativos) para os quais propu­
sem os reservar o nome de semas contextuais
53

Constante Variável
específica específica ■*» genérica genérica
cosmológica cosm ol. -► noológica noológica
exteroceptiva exteroc.-*- interoceptiva interoceptiva
aclassemática classematizável classemática
Base sêmica Semas contextuais Base classemática
< e x tr e m id > + <su p erat.> <verticalidade> <m aterialidade>

’’cabeça de cachoeira”

Para G reim as (1966: 65), as figuras sêm icas que constituem o que
estam os cham ando de base sêmica, situam -se no interior do processo
de percepção, onde constituem percepts puros e representam a face
externa da percepção, representando a contribuição do MN (ou m elhor
de um a sem iótica particular) para o nascim ento do sentido 1. É desse
ângulo que a base sêm ica é classificada de cosm ológica e exteroceptiva
enquanto a base classem ática é classificada de noológica e interocepti­
va. A essa luz, o conjunto form ado pelos sem as contextuais assum e a
característica de lugar ou instância de mediação entre o âm bito daquilo
que é representado pela base sêm ica (digamos, âm bito do M undo
N atural) e o âm bito daquilo que é representado pela base classem ática
(domínio do lingüístico, ou m elhor, do sem iótico por excelência).
Em trabalho anterior (Assis Silva 1975: 178), levantam os a hipó­
tese segundo a qual o trabalho textual propriam ente dito teria com o
ponto de partida a reconfiguração classem ática, o que repercutiria
im ediatam ente e sobretudo na parte variável figurativa (específica).
H oje, tendo em vista a distinção, não polar mas relativa, entre dim en­
são pragm ática e dim ensão cognitiva do discurso, pensam os que a
incidência predom inante sobre o específico ou sobre o genérico não
pode ser determ inada a priori. Tem de ser encarada à luz de um a
tipologia de discurso ainda inexistente, mas cuja prim eira articulação
teria de levar em conta a oposição entre pragm ático e cognitivo. D esse
ângulo, em discursos que privilegiem a “ m undanização” da língua (ou
m elhor, do sem iótico), a incidência m aior seria sobre o figurativo,
acarretando um a sorte de figurativização do classem ático cujo efeito
de sentido seria um a espécie de “ mise entre paren th èses” da língua
para sim ular um a apreensão não m ediatizada do m undo; em discursos
que privilegiem um a “ idiom atização” ou m elhor, um a sem iotização do
m undo, a incidência maior seria sobre o classem ático, o que redunda­
ria num a sorte de classem atização do figurativo, cujo efeito de sentido
seria um a espécie de “ mise entre p aren th èses’' do M undo, um a sorte
54

de evanescência de sua referencialidade. Com isso. nossa colocação


contem pla um a tensão entre os dois m ovimentos sem retirar aos sem as
contextuais o seu papel discursivo propriam ente dito de instância ou
lugar de mediação entre as duas m acrossem ióticas: M undo N atural e
Língua N atural. Com efeito, desse ponto de vista, o conjunto form ado
pelos sem as contextuais constituiria, a nível de discurso, o dom ínio por
excelência de m anifestação da atividade organizadora que o hom em ,
via L N , exerce sobre o MN. Assim, o trabalho discursivo sim ula, a
cada produção textual, o trabalho de leitura do M undo pela Língua
N atural.
Sem as contextuais: domínio por excelência de m anifestação da ativida­
de hum ana de reconfiguração da relação LN x MN.
Visto na distância entre entidade virtual (entidade no sistem a) e
entidade realizada, o trabalho de construção do símbolo pode ser
concebido com o um percurso que, partindo do signo em “ estado de
dicionário” (feito de contextos m ínimos, ou m elhor, de contextos
virtuais), procede à sua colocação em contextos atuais, ou seja,
recontextualiza-o, constituindo assim o símbolo, ou mais precisam ente
o semi-símbolo (ou signo-símbolo):

Signo ----------------------------------------------------------------► Sím bolo

“ em estado de (Re) contextualização em contexto novo


dicionário”

E ssa recontextualização é tarefa da discursivização (=colocação


em discurso) da qual resulta a construção do ator. Ela sobrepõe
(reveste) a um a configuração diagramática2definível pela G ram ática
Fundam ental e pela G ram ática N arrativa, um a cobertura classem ática
e um a cobertura figurativa, explicitáveis — parece-nos — em term os
de um rearranjo figurativo, subjacente à constituição do percurso
figurativo, e de um rearranjo classem ático, responsável pela organiza­
ção do percurso tem ático:
Estadoj: SÍGNICO DISCURSIVIZAÇÀO Estado2: SIMBÓLICO
(Re) Contextualização

semas nucleares
constantes semas
específicos
nucle­
cosmológicos ares
exteroceptivos

base sêmica
aclassemáticos

semas
Rearranjo figurativo = ATOR contex
tuais^
^ Percurso figurati-
semas contextuais
variáveis v0: Fig j Fig2 -» Fig3

base sêmica expandida


------------------

específicos
cosmológicos
exteroceptivos aporte
classematizáveis
simbólico

semas contextuais
NARRATOLOGICA

T I

__________ y \ __________
OUI1UIU1 OJX3JUOO UI3 BUI3U13S
classe­

r
dassetnas Rearranjo classemático ra s
Percurso temático:
FIGURA

variáveis
genéricos temai —>• tema2 -> tema 3
noológicos
interoceptivos
classemáticos
(*) neutralização da oposição

base classemática
55
56

E nquanto lugar construído pelo e no discurso (que é egocentra-


do), a figura-ator^ revela-se com o o lugar por excelência de constitui­
ção da intersem ioticidade, isto é, com o o lugar ou instância semi-
sim bólica onde se sincretiza a disjunção M N /LN . Tal sincretism o
sim boliza a construção pelo hom em e para o hom em de um lugar
dotado de sentido para o seu ser/estar-no-m undo: as figuras narratoló-
gicas com que ele puntua (baliza) suas narrativas são a representação
m iniaturizada desse encontro. P ara não alongar mais a questão, volte­
mos rapidam ente ao Apólogo m achadiano. Os rearranjos figurativos e
classem áticos a que são subm etidos aí a agulha e a linha m anifestam
percursos tem áticos e figurativos opostos:

percursos temáticos percursos figurativos


1. exercer atividade utilitária vs. exer­ 1. furar o pano vs. ligar,
cer atividade estética; dar feição (= dar forma);
2. comandar vs. ser comandado 2. ir adiante vs. vir atrás;
ter poder) 3. ir entre os dedos da costureira,
3. ser alvo de consideração vs. no­ unidinha a eles vs. ir no corpo da
breza; baronesa;
4. ter status vs. não ter status. 4. fazer parte do vestido e da
elegância vs. ser espetada no corpinho;
ir para o salão de baile vs. ficar
na saleta de costura; dançar com
ministros e diplomatas vs. ir para
o balaio das mucamas.

E ntram ando-se, esses percursos configuram a transform ação


a) da agulha com o uma caminhada:
- da fala ao silêncio;
- da atividade à passividade ;
- do lugar “ distinto” ao lugar ínfimo ;
b) da linha com o um a cam inhada:
- do silêncio à f a la ;
- da passividade à ativ id ad e;
- do lugar “ distinto” (saleta) ao lugar nobre (salão de baile).
A tenuadas as oposições entre o objetual (que aponta para o M N) e o
hum ano (que é do âm bito da LN ), agulha e linha surgem com o
s ím b o lo s, respectivam ente, do trabalho e da fruição do trabalho
(alheio).
57

NOTAS
(1) O Mundo Natural não é um mundo falado; sua existência enquanto significação não
depende exclusivamente da aplicação de categorias lingüísticas sobre ele; como a
língua, ele é natural no sentido de que é anterior ao indivíduo; como a Língua
Natural ele é uma macrossemiótica, no sentido de que deve ser considerado como
um lugar de elaboração e de exercício de múltiplas semióticas (Cf. Greimas e
Courtés 1983: 291).
(2) Essa configuração diagramática é a estrutura actorial que é, de acordo com nossa
hipótese, constituída de três diagramas-suporte: a) diagrama-suporte estenogramáti-
co: tensões sêmicas nucleares (de natureza lógico-conceptual); b) diagrama-suporte
narrativo: tensões actanciais (de natureza antropomórfica); c) diagrama-suporte
topológico: tensões eu vs. não-eu/tensões aqui vs. não-aqui/tensões agora vs. não-
agora.
(3) Uma figura é — segundo Geninasca (1981: 15) — um lugar construído e meio
privilegiado de manipulação e de comunicação de estruturas relacionais hierarqui­
zadas.
Referências bibliográficas
(1) Assis Silva, I. (1975) — “ A configuração semântica do texto” . Revista de Cultura
Vozes, Vol. LXIX, N° 3, pp. 171-180; (2) Geninasca, J. (1981) - “ Place du figuratif”
Actes Sémiotiques: Bulletin, n° 20: pp. 5-15; (3) Greimas, A. J. (1966) Sémantique
strucuturaie, Paris: Larousse; (4) Greimas, A. J. & J. Courtés (1983) — Dicionário de
Semiótica — Tradução, São Paulo: Cultrix.
Araraquara, Dezembro/1984
ENCENAÇÃO DO INDIVÍDUO
Notas sobre um ensaio de Roland Barthes

Paulo E duardo Lopes

O artigo de Roland B arthes intitulado “ O Terceiro S entido” (m


B arthes, 1984) coloca de saída um a dificuldade para o estudioso de
sem iótica interessado em conhecer as diretrizes que a semiologia
imprime à abordagem do visual: em contraste com a extrem a preocu­
pação do sem ioticista quanto à escolha e utilização de critérios episte-
mológicos, indispensáveis para a constituição de um coerente corpo
teórico, a análise do semiólogo deixa “ a m elhor parte à intuição do
descritor (ou do scriptor■)” (Greim as e C ourtés, 1983). De fato, o
estudo de B arthes é pontilhado de m etáforas, descrições sensoriais,
aparentes contradições; antes de constituir aquilo que o sem ioticista
cham aria de discurso científico — onde o sujeito científico possa
funcionar com o um sujeito qualquer, com o um autôm ato — o discurso
b a rth e s ia n o é um a escritu ra : “ linguagem única, indireta, auto-
referencial e auto-suficiente” (Perrone-M oisés, 1983). O próprio B ar­
thes, n ” ’0 Terceiro S entido” , reconhece que não pode apreender o
seu objeto — o sentido “ ob tu so ” — através de um a m etalinguagem
rigorosa; o sentido obtuso, diz ele, é um a “ captação p o ética” , e
“ chegará a existir, a entrar na m etalinguagem do crítico” N o seu livro
sobre R oland B arthes, L eyla Perrone-M oisés explica que, com o teóri­
co, ele buscava sem pre subverter as expectativas, desautom atizar o
leitor “ pelas surpresas do significante” U m a das “ táticas” usadas
para surpreender seria, segundo o próprio B arthes, “ introduzir, no
discurso conceituai, significantes sensuais. A introm issão do corpo
num discurso do puro intelecto perturba, salutarm ente, a ‘seriedade', a
‘objetividade’ e a ‘boa consciência' desse discurso”
* Tema de palestra proferida em Araraquara (SP), durante o encontro do Centro de
Estudos Semióticos de 26.04.86.

51
60

Assim , será a partir da constatação dessa peculiaridade do discur­


so barthesiano, e sobre as prim eiras reflexões realizadas, que o presen­
te trabalho p roporá dois cam inhos com plem entares entre si, no intuito
de tecer algum as observações para debate: tom ando por hipótese que a
aplicação da gram ática sem iótica pode ajudar na com preensão de
discursos m uito com plexos, com o é o caso, efetuar um ligeiro esboço
de análise narrativa do artigo de Roland B arthes, através da descrição
do percurso realizado pelo objeto do sa b e r — o “ sentido o b tu so ” ; e
um a tentativa de apontar os lugares teóricos que os conceitos em itidos
ocupariam dentro da teoria-padrão greim asiana.

Organização textual)

O ensaio de Roland B arthes se inicia com a descrição de um


fotogram a pinçado do filme Ivan, o Terrível, de S.M. E isenstein, onde
são distinguidos três níveis de sentido: o da “ com unicação” , o da
“ significação” *e o da “ significância” Explorando este últim o nível,
oferece um a extensa lista de definições e de exem plos, para chegar a
afim ar que:
1) o terceiro nível de sentido, o sentido obtuso, só pode ser encontrado
no fotogram a (enquanto parte constituinte do film e) e só nele pode ser
percebido;
2) o terceiro sentido caracteriza o “ fílm ico” — aquilo que, no film e,
“ não pode ser descrito, é a representação que não pode ser represen­
tad a” .
Assim, parece que, apesar de fundam entar a sua análise na
imagem fixa, B arthes está perseguindo na verdade um elem ento carac-
terizador da linguagem do cinem a, do filme com o um todo. Se se
adm ite, com Greim as, “ que o discurso em ciências hum anas obedece
às regras da organização narrativa” e que, portanto, “ a narrativa
científica se define (...) com o a transform ação de um não-saber/em um
saber/” (Greim as, 1976), pode-se m arcar no discurso barthesiano o
m om ento inicial, pressuposto, em que um sujeito e um objeto de fazer
cognitivo se instalam pela colocação da questão: o que é que caracteri­
za a linguagem do filme cinem atográfico? E ste instante, aliás, pode ser
vislum brado no discurso quando B arhes propõe| que o “ m ovim ento”
* N ível da comunicação: ‘‘Onde se acumula todo o conhecimento que me fornecem o
cenário, os trajes, as personagens, as suas relações
N ível da significação : “ Um nível simbólico. Este nível está ele próprio estratificado. Há
o simbolismo referencial (...) o simbolismo diegético (...), o simbolismo eisensteiniano
(...) e há, por fim, um simbolismo histórico (...)” . Estes dois níveis compõem o “ sentido
óbvio"
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do filme “ não é de modo nenhum anim ação, fluxo, m obilidade, ‘vida'


cópia, mas apenas a arm ação de um desdobram ento perm utativo” ;
aqui, jogando com a oposição entre as categorias do /contínuo/vs/des­
contínuo/, estabelece-se um percurso que pode ser esquem atizado da
seguinte m aneira:

filme filme = totalidade descontínua


= totalidade *
contínua fotogram a

Figura 1

onde se registra uma prim eira m udança no estatuto formal do discurso:


exercendo o seu fazer cognitivo sobre o objeto filme, o sujeito reco­
nhece aí a existência de unidades discursivas menores — os fotogramas
— que passarão então a servir de suporte a um novo discurso cogniti­
vo. N a etapa seguinte, virá a descrição dos elem entos fotogram áticos
com o articuláveis em níveis de sentido e a exploração do terceiro nível,
com o na Figura 2

filme filme = totalidade descontínua


= totalidade
fotogram a = totalidade contínua
contínua
fotograma = totalidade descontínua

filme == totalidade descontínua


fotograma = totalidade descontínua
, , /-+> l 9 nível
elementos / —>■ 29 nível
discursivos 3 $ njvej ^

figura 2

O estatuto actorial do terceiro sentido

Percebe-se assim um determ inado percurso do actante-objeto,


constituindo o seu papet actancial, à m edida que o sujeito do discurso
cognitivo exerce o seu fazer. As etapas do percurso m arcadas nas
figuras acim a correspondem aos m om entos em que essa perform ance
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do sujeito se efetiva negando a instância de m anifestação do o b je to e


buscando a sua instância im anente. O jogo de m odalizações e sobre-
m odalizações aléticas e epistêm icas através do qual essas passagens se
verificam não será e stu d a d o n o âm bito deste trabalho; ver, a respeito,
o item 3.7 da “ Sem iótica do D iscurso C ientifico” em que G reim as
com enta O parecer e o ser (in Greim as, 1976).
A partir da passagem em que o fotogram a-objeto passa a ser
descrito em term os de níveis articulados de sentido, B arthes tom a
aquilo que denom ina terceiro nível de sentido — o “ nível da significân-
cia” ou “ sentido o btuso” — com o objeto, referencializando o prim ei­
ro e o segundo níveis com o preocupações de estudo para, respectiva­
m ente, um a “ sem iótica da m ensagem ” e uma “ segunda sem iótica ou
neo-sem iótica” Se se aceita a term inologia greim asiana para a análise
do discurso científico, pode-se dizer que aqui term inam o fazer taxio-
nôm ico e o fazer program ático do sujeito cognitivo, e tem início o seu
fazer com parativo.
Para B arthes, o sentido obtuso ultrapassa o sentido óbvio (pri­
meiro e segundo níveis) sem negá-lo ou confundi-lo. O sentido obtuso é
“ errático ” “ teim oso” “ fugidio” ; “ obriga a interrogar” ; “ faz desli­
zar a leitura” ; “ abre o campo do sentido” ; “ é da raça dos jogos, das
brincadeiras, do carnaval” ; “ estabelece um diálogo” ; “ confunde”
“ tem em oção” ; “ é pastiche e fetiche” ; “ é inquietante como um
convidado que se obstina a ficar sem dizer nada lá onde não têm
necessidade d ele” ; enquanto que o sentido óbvio “ fulm ina a ambigüi­
dade (...) pelo acréscim o de um valor estético, a ên fase” Para Bar­
thes, “ o sentido óbvio é sempre em Eisenstein a revolução” Percebe-
se que, por oposição à inexorabilidade que a descrição confere ao
sentido óbvio, a principal característica a ser destacada no sentido
obtuso é um a espécie de m obilidade, de anim ação. “ O sentido obtuso
não pode m ovim entar-se senão aparecendo e desaparecendo” diz
B arthes; ele pulsa, ele parece ser descrito com o um a entidade dotada
de vida. O discurso barthesiano pode ser lido, então, através da
articulação dos valores fundam entais da /dinam icidade/ vs /estaticida-
de/, sendo o prim eiro deles euforizado no contexto ocorrencial de uma
narrativa da vitória (cf. Greim as, 1976). No nível discursivo, essas
categorias muito am plas vão constituir os papéis tem áticos do discurso
objetivo: o que B arthes cham a de sentido óbvio realiza o tem a da
imposição, isto é, do direcionam ento da leitura do enunciatário (tem a
que recobre a categoria da/estaticidade/); e o seu sentido obtuso realiza
o tem a da possibilitação, ou seja, daquilo que perm ite variações no
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movimento interpretativo do enunciatário (tem a que recobre a catego­


ria da/dinam icidade/). É assim que o terceiro sentido “ chegará a
existir, a entrar na metalinguagem do crítico” : com o um ator, dotado,
com o se viu acim a, de um papel actancial — objeto de querer-saber —
e de um papel tem ático — realização discursiva do tem a da possibili-
tação.
O estudo sobre “ O Terceiro Sentido” , ao cabo destas observa­
ções, pode ser entendido com o um percurso coerente que vai:
a) do todo para a parte: do film e-fluxo para o filme arm ação de
fotogram as; daí para o fotogram a-suporte de três níveis de sentido; e
b) da im posição para a possibilitação (de sentido), ou do estático para o
dinâmico.
Por um determ inado ângulo, am bos os percursos são redutíveis e
hom ologáveis entre si; de fato, pode-se postular que o grande tem a que
enfeixa os dem ais, neste discurso, é o da colocação em cena de um
sujeito — enquanto individualidade que se afirm a pela sua capacidade
de, em diálogo com um outro sujeito (representação do todo), enunciar
originalm ente. Ou, nas palavras do próprio B arthes: a diferença está
em “ que cada relação, pouco a pouco (é preciso tem po), se originalize:
reencontre a originalidade dos corpos tom ados um a um , quebre a
reprodução dos papéis, a repetição dos discursos (...)” (a p u d Perrone-
M oisés, 1983).

Proposições teóricas
B arthes individualiza o seu discurso, num outro nível, detonando
com a descrição de seu objeto um a série quase inum erável de paráfra­
ses. Contam -se por volta de setenta definições diferentes para o seu
“ sentido ob tu so ” em um a dúzia de páginas do trabalho. O terceiro
sentido, segundo B arthes, “ é o nível da significância” e seu discurso
enfatiza este m ecanismo. Se a significância é o “ trabalho de diferen­
ciação, estratificação e confrontação que se pratica na língua, e
deposita sobre a linha do sujeito falante um a cadeia significante
com unicativa e gram aticalm ente estru tu rad a” (J. K risteva), “ trabalhar
a língua é então explorar com o ela trabalha” (Todorov e D ucrot, 1972)
— e é esse o sentido que escritura assum e em B arthes.
A idéia de diálogo está em butida no conceito de significância.
R etom ada de M. Bakhtin, é colocada por K risteva em term os de
intertextualidade; B arthes fala em dialogismo e interlocução: “ o senti­
do obtuso está fo ra da linguagem (articulada), m as contudo no interior
da interlocução” É por isso que “ nem a simples fotografia nem a
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pintura.figurativa podem assum ir (o fílmico, o terceiro sentido), p o r­


que lhes falta o diálogo, a referência ao horizonte diegético, a possibili­
dade de configuração” do filme.
P ercebe-se que B arthes está tratando, na verdade, de problem as
relativos à tensão dialética que se estabelece entre as m icrounidades
constituintes do discurso (no caso, o fotogram a) e o próprio discurso,
enquanto m acrounidade constituída (o filme), no m om ento da sua
interpretação pelo enunciatário. À procura do lugar de m aior liberdade
para o fazer interpretativo, ele fixa a sua atenção sobre o pólo
constituinte, caracterizado por, isoladam ente, ser o suporte de senti­
dos virtuais, pela rem issão que com porta a um elem ento transdiscursi-
vo — as possibilidades de “ diferenciação, estratificação e confronta­
çã o ” oferecidas pelo código. É evidente que não se trata de negar que
o sentido seja estabelecido pela seleção que a configuração discursiva
realiza de um a dentre outras possibilidades do código a que cada
unidade se relaciona, mas enfatizar o instante privilegiado de possibili-
tação que a interpretação encontra no paradigm a. Se nem m esm o o
punctum que B arthes descobre na fotografia (em A câm ara clara)
pode ser idêntico ao sentido obtuso, é porque no desenrolar de um
discurso fílmico este sentido pode pulsar, isto é, m ovim entar-se com ­
pondo um percurso que estabelecerá com o percurso paralelo do
sentido óbvio um a relação tensiva; e, portanto, a distância do conceito
de punctum para o conceito de sentido obtuso será tanto m aior quanto
maior for a tensão entre a imposição de uma interpretação pelo
contexto e as possibilidades de uma interpretação pelos códigos, as
quais a idéia de sentido obtuso evidencia ou privilegia. T rata-se aqui,
pois, de pensar de modo específico a problem ática do código.
Se se postula esta questão no âm bito do discurso barthesiano,
pode se encontrar aí novam ente a oposição entre o todo e a parte,
agora vista com o sociedade vs indivíduo. E ntão o código vem a ser,
finalm ente, um grande discurso social, o u : o discurso do outro que o
discurso individual introjeta, inscrevendo-se no universo social pelo
trabalho de articulação tímica, que o filtra. O conceito de com ponente
tímico abre portas para um cam po ainda muito pouco explorado em
term os sem ióticos, que é o do conceito psicanalítico de inconsciente. É
possível que o estudo de Roland B arthes esteja indicando justam ente
nessa direção quando fala das possibilidades do fazer interpretativo do
enunciatário. “ O inconsciente é o discurso do O utro” , escreve L acan;
“ é esse capítulo de minha história que é m arcado por um branco ou
ocupado por um a m entira: é o capítulo censurado” Ou seja, o incons-
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ciente inaugura-se por uma interdição. N o entanto, se o indivíduo só se


pode expressar pela referência a um código, vale dizer, pelo discurso
do outro, é tam bém através desse código que o seu inconsciente vai
poder expressar-se. C om o? A través do “ estoque e das acepções do
vocabulário[ — código] que me é particular” ; e “ nos rastros, enfhn,
que conservam inevitavelm ente as distorções, necessitadas pela em en­
da do capítulo adulterado nos capítulos que o enquadram , e das quais
m inha exegese restabelecerá o sentido” (L acan, 1978).
L ugar ao m esm o tem po de interdições, im posições e de possibili-
tações, o código pode ser trabalhado em sua relação com o contexto-
ocorrência, pelo m ecanism o com plexo da significância, de m aneira a
perm itir a originalização do discurso, ou a restauração exegética do
inconsciente. Pode-se afirm ar que B arthes, em sua genialidade, procu­
ra vislum brar as figuras discursivas do inconsciente m anifestadas na
imagem fílmica. Avança, para isso, a seu m odo, certos procedim entos
m etodológicos que hoje em dia a sem iótica visual tenta form alizar,
com o é o caso das propostas de análise através de inventários de
categorias eidéticas e suas relações, constituindo conjuntos semi-
simbólicos. Evidencia-se, assim , que o retorno a semiólogos do porte
de um R oland B arthes justifica-se plenam ente, e é de grande interesse
para o sem ioticista: a intuição com que contava o semiólogo permitia-
lhe, muitas vezes, alcançar fronteiras que a sem iótica, em sua cami­
nhada, apenas com eça a transpor.
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