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SIGNIFICAÇÃO

EVISTA BRASILEIRA DE SEMIÓTICA


jgistro n9 014811
jtubro de 1987
jmero 7
-scola de Com u nicações e A rtes / U5P
B ib lio teca
SIGNIFICAÇÃO

REVISTA BRASILEIRA DE SEMIÓTICA


Registro n* 014811
Outubro de 1987
Número 7

Comissão editorial: Leonilda Ranzani de Luca


Maria de Lourdes G. Baldan
Paulo Eduardo Lopes

Jornalista responsável: Geraldo Carlos do Nascimento

Edição de texto: Paulo Eduardo Lopes

Projeto gráfico: Maria Elizabeth Leuba Salum


Marta Heloísa Leuba Salum

SIGNIFICAÇÃO - Revista Brasileira de Semiótica é uma publicação do Centro de Es­


tudos Semióticos - C.E.S. - Rua Pamplona, 1365 casa 9 CEP
01405 São Paulo (SP) - Brasil
Solicita-se permuta/On demande róchange/Exchange requested/Rogamos canje

CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS - C.E.S.

Diretoria (biénio 1987 -1 9 8 8 )

Coordenadora: Diana Luz Pessoa de Barros


Secretário Geral: LuizTatit
Tesoureiro: Paulo Eduardo Lopes

Direitos reservados à
DIFUSÃO NACIONAL DO LIVRO, EDITORA E IMPORTADORA LTDA.
Av. 9 de julho, 3.166 CEP 01406 - São Pauio (SP) Brasil 1987
Sumário
INCURSÕES PRELIMINARES PELA
OBRA DE GUAYASAMIN .. 3
Flor Marlene Enríquez López e Paulo Eduardo Lopes
{Guayasamin; Panorâmica; Construir o objeto visual; Mãos e ros­
tos; “Isto é isso”; Para concluir): os quadros do mestre equatoria­
no e as potencialidades da semiótica planar.
A REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO EM TEXTOS FÍLMICOS E
LITERÁRIOS DA AMÉRICA LATINA 12
Anna Maria Balogh
(A representação do espaço na literatura; A representação do es­
paço no cinema; Os espaços da imensidão e da solidão; A repre­
sentação do espaço e a evolução tecnológica): confrontações en­
tre as formas da representação espacial no romance, como texto
de partida, e no filme, como texto de chegada.
TALLERES LATINO AMERICANOS E
SEMIÓTICA DA CANÇÃO POPULAR . 19
Luiz Tatit
(A semiótica; A sedução; A canção: texto lingüístico e texto me­
lódico; Conclusão): contribuições da semiótica para a reflexão
sobre a canção latinoamericana.
QUINO E O MITO DE NARCISO .. 26
Eduardo Penuela Canizal
(As expansões do sujeito; A contratação dos objetos; As realiza­
ções do imaginário): um aprofundamento do conceito semiótico
de sujeito na enunciação.
CONTEXTOS POSTOS E PRESSUPOSTOS:
O LUGAR DO HISTÓRICO E DO MÍTICO NA
OBRA DE JORGE LUÍS BORGES .. 44
Edward Lopes
(Isotopias figurativas: sentido contextuai; Contextos pressupostos:
0 lugar de inscrição do mítico em Borges): um modelo para a
análise do referente em termos de contextos.

2 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


Incursões preliminares
pela obra de Guayasamin
FLOR MARLENE ENRÍQVEZ LÓPEZ
E PAULO EDUARDO LOPES
{Alunos do Curso de Mestrado
da Escola de Comunicações e Artes da USP)

Guayasamin
Um dos mais proeminentes pintores equatorianos contemporâneos,
Oswaldo Guayasamin (Quito, 1.919 - ) é autor de vasta obra em que
se reconhecem, de um lado, fortes influências dos muralistas mexicanos, de
Picasso, Portman, Mondrian e mesmo Velázquez e, de outro, uma perso­
nalidade marcante, fruto, talvez, da reiteratividade figurativa e da tensi-
vidade passional de suas telas.
A escolha de alguns de seus trabalhos para objeto dos comentários
que seguem pareceu apropriada, na medida em que tenha logrado impul­
sionar a reflexão sobre as virtudes e as limitações da análise semiótica da
pintura. Fica, também, como a consignação de uma sincera homenagem,
no contexto de uma coletânea dedicada aos autores hispano-americanos.

Panorâmica
Os trabalhos desenvolvidos a partir de meados da década passada
por um grupo de semioticistas franceses interessados nas especifiddades
caracterizadoras dos discursos visuais fixos de significante bidimensional
acabaram por demonstrar a necessidade da construção de uma metalin-
guagem própria, que por um lado fosse capaz de instrumentalizar a aná­
lise e, por outro, permitisse a integração dos resultados ao corpo teórico
de base.
É exatamente esse o projeto da semiótica planar. Trabalhando com
a pintura, a fotografia, a história em quadrinhos ou a publicidade, os se­
mioticistas adotaram como ponto de partida os pressupostos do modelo
semiótico geral, o que bem os distancia dos que praticam uma semiologia
da imagem ou uma semiótica de inspiração peirceana, por exemplo - para
ficar somente no âmbito dos modelos de análise intema do discurso.
Em linhas gerais, a principal distinção entre a semiótica planar e os
demais modelos consiste em que ela considera o sentido como uma cons­
trução discursiva e nunca como um dado a priori. As conseqüências
dessa tomada de posição foram múltiplas. Uma delas foi que a semiótica
planar tomou por tarefa escapar ao imperialismo do pensamento verbal
na decupagem das imagens; outra, foi que ela descartou a idéia de refe­
rente externo como ponto de chegada da “leitura” da imagem.

SIGNIFICAÇÃO Ne 7 - OUT 87
Construir o objeto visual
Diante de uma tela, uma leitura baseada no senso comum - isto é, o
processo de interpretação que o enunciatário realiza quando se coloca
diante de um quadro pictórico figurativo - recorta a imagem pintada,
através de uma descrição de base onomástica da figuratividade nela ins­
crita. Essa descrição consiste em atribuir à imagem da tela - formante
constituinte do discurso - o nome do designa tum correspondente esto­
cado na competência imagética do enunciatário, do qual a imagem é o si­
mulacro “analógico” ocorrencial (na pintura). A decupagem descritiva do
quadro é operada, assim, por uma referencialidade “realista”, ou seja,
guiada pela ilusão do real, pela maior ou menor equivalência entre a re­
presentação e aquilo que ela representa. Se se considera, agora, que os
formantes-tipo presentes na competência do enunciatário (= classe) e os
fonnantes-ocorrência presentes no discurso (= membros da classe) cor­
respondem, respectivamente, a actantes e atores, na metalinguagem
greimasiana, tem-se que a primeira interpretação que se realiza é uma
denominação actorializante de actantes. (V. LOPES, 1986).
Num mural como El incario y la conquista, de Oswaldo Guaya-
samin (fig. 1 ), a figura central será então reconhecida como “índio”,
por exemplo, num processo que pode ser assim esquematizado:

Duas sortes de reflexões se impõem sobre o gráfico.


a) Na medida em que a relação real de equivalência se estabelece entre o
ator (ocorrência e o simulacro actancial (tipo), o semioúcista irá absterse
de tratar do referente externo;
b) Ao mesmo tempo, a semiótica planar não concebe analisar do quê o
discurso “fala” sem proceder ao estudo de como o discurso constrói o

4 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


que ele “ fala”; por isso, não lhe é útil o conceito de signo (enquanto da­
do), substituído então pelo de formante, segmento complexo do plano da
expressão a que corresponde uma unidade do plano do conteúdo. A di­
ferença é que, na acepção dada pelos semioticistas que estudam a pintura,
o formante é pensado sempre como uma unidade sintagmática superior
na hierarquia da expressão. No exemplo acima, o formante lido como
“índio” é o resultado de uma estratégia enunciativa que o constrói, numa
manipulação veridictória, levando em conta o crivo de leitura de uma
determinada competência.
A semiótica planar atém-se, firmemente, à concretude discursiva.
• A análise do plano da expressão opera horizontalmente, locaüzando os
contrastes em que se articula o quadro —etapa descritiva de grande im­
portância quando se evita utilizar o recorte figurativo verbal - e verti­
calmente, reconhecendo categorias visuais abstratas (nível profundo da
expressão), figuras da expressão (nível de superfície) e sintagmas (ní­
vel de manifestação) (cfe. SILVA, 1985).
O modelo é gerativo: combinações das categorias compõem as fi­
guras, cuja distribuição e reiteração no espaço caracteriza os sintagmas.
• Cada um desses elementos será utilizado na análise de três grandes
componentes da expressão: o topológico (articulações espaciais), o ei-
dético (articulações das linhas, traços e pontos) e o cromático (articula­
ções das cores e valores).
Somente após a decupagem e o exame exaustivo dos elementos da
expressão é que o semioticista procederá à passagem ao plano do conteú­
do do seu objeto. Entre a polissemia do signo e a determinação conven­
cional unitária do símbolo, postula-se para os discursos visuais planares
uma relação semi-simbólica entre expressão e conteúdo: haverá, então, a
homologação categoria a categoria entre os dois planos. No mural de
Guayasamin, por exemplo, pode-se por em evidência a seguinte relação:

alto : baixo natureza : cultura

EXPRESSÃO CONTEÚDO

Mãos e rostos
Da mesma maneira, a incrível série de “rostos” e “mãos” do pintor
equatoriano, notável no conjunto de sua obra (figs. 2, 3, 4), destaca,
pela simplicidade estrutural, alguns elementos bem definidos que podem
ilustrar quanto se disse até aqui.
Nos três quadros tomados para exemplo, distinguir-se-ão, grosso
modo, três grandes campos pictóricos:
a) um campo escuro em azul ou preto, de maior homogeneidade, delimi­
tador global do espaço da tela;
b) um campo em cinza-claro ou verde, fortemente trabalhado, interme­
diário entre o campo A e o campo C;
c) um campo em marrom-escuro ou cinza-esverdeado, medianamente
complexo, que ocupa em todos os casos a região central da tela.

SIGNIFICAÇÃO N» 7 - OUT 87 5
O exame dos componentes topológico, cromático e eidético de ca­
da campo e suas relações com os outros irá valer-se da terminologia e das
distribuições hierárquicas adotadas por FLOCH (1985),
No âmbito do componente topológico, verifica-se que a principal
estruturação espacial das telas edifica-se, a nível profundo, sobre a cate­
goria /envolvente/ vs /envolvido/ - que subsume as variantes ocorren-
ciais: na maior parte dos quadros observa-se uma organização do tipo
/periférico/ vs /central/ (envolvimento concêntrico total), só havendo
uma ocorrência da organização /englobante/ vs /englobado/ (envolvi­
mento concêntrico pardal). No nível da manifestação, essas categorias
vão realizar-se, em linhas gerais, pela distribuição: campos A, /envol­
ventes/; campos C, /envolvidos/; campos B, /envolvidos/ em relação aos
campos A e /envolventes/ em relação aos campos C.
Para a análise do componente cromático, as telas podem ser divi­
didas em dois grupos básicos, segundo a distribuição das cores pelos
campos: no primeiro, os campos A, B e C são constituídos de uma cor
diferente para cada um; no segundo grupo, há uma só cor para os campos
B e C e outra cor para os campos A. Todos os quadros da série têm em
comum, não obstante, uma outra espéde de articulação cromática: as re­
giões coloridas correspondentes aos campos do tipo A caracterizam-se
pelo espraiamento cromático (homogêneo ou nuançado gradualmente),
enquanto que os campos B e C são marcados pelo esparsamento; no
primeiro grupo de telas (3 cores para 3 campos), os campos B definem
uma região cromática mista, que intercala as cores de B e de C; no se­
gundo grupo de telas (1 cor para A e 1 cor para B e C), os campos B de-
finim a intercalação cromática de A e de B/C. No nível sirnagmárim
portanto, os campos B são definíveis como zonas de contraste cromático;
no nível intermediário ou superfidal da expressão, eles correspondem a
combinações da categoria /contínuo/ vs. /descontínuo/: os campos A são
/contínuos/, os campos C são /descontínuos/ e os campos B são /contí­
nuos/ + /descontínuos/ (contrastes).
A função eidética dos campos B é também complexa. Global­
mente, eles articulam tanto os campos A quanto os campos C, estabele­
cendo entre eles conjunções e disjunções; as variações recombinantes das
categorias /longo/ vs. /curto/ e /segmentado/ vs. /não-segmentado/,
correspondentes no nível profundo a recortes significativos da manifes-

6 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


tação, compõem sintagmas designáveis como “arborescências” ou “den-
teaduras” (campos B) que, relacionados aos contrastes cromáticos e to-
pológicos, definem igual número de “anü-arborescências” ou “anti-
denteaduras” (campos A e C).
Em resumo:

CAMPOS
A B C
COMPONENTES

/envolvente/
TOPOLÓGICO /envolvente/ + /envolvido/
/envolvido/

/contínuo/
CROMÁTICO /contínuo/ + /descontínuo/
/descontínuo/

/longo/, /longo/ + /curto/, /curto/,


EIDÉnCO
/segmentado/
+
tnão-segmentado/ /segmentado/
/não segmentado/
Assim, pode-se definir o plano da expressão dos objetos da análise
como uma construção articulada de três grandes campos, em que:
- os campos do tipo A realizam as categorias profundas /envolvente/ +
/contínuo/ + /longo/ + /não-segmentado/;
- o s campos do tipo C realizam as categorias profundas /envolvido/ +
/descontínuo/ + /curto/ + /segmentado/;
- os campos do tipo B realizam contrastes entre as categorias realizadas
em A e C.
Essas provisórias análises da expressão das obras de Guayasamin
possibilitaram, apesar de pouco aprofundadas, ao menos a explicitação do
caráter complexo e mediador dos campos B em relação ao caráter mais
simples e polar dos campos A e C, pelo inventário das categorias expres­
sivas pertinentes. O que se quis demonstrar, basicamente, é a maneira
pela qual o modelo de análise semiótico efetua a descrição do objeto vi­
sual sem recorrer a um recorte “analógico” figurativo. O semioticista
trabalha com as categorias, o que lhe permite explicitar â cada passo o
processo gerativo da construção do discurso.

“Isto é Isso”
Para alcançar o plano do conteúdo, a análise vai-se valer do con­
ceito de formante figurativo, quer dizer, parte constituinte do sintagma
global que, como se viu acima, é passível de homologação, no plano do
conteúdo, com categorias figurativas fornecidas pelo mundo natural.
Os campos A, B e C serão associados, pela homologia entre as categorias
de cada plano, às figuras semênicas definidas pelos lexemas “fundo” ,

SIGNIFICAÇÃO N® 7 —OUT 87 7
“mãos” e “rosto”, nesta ordem. Reiteram-se tais figuras como uma espé­
cie de marca registrada da obra de Guayasamin.
As relações entre os formantes figurativos complexos podem ser
recolocadas, reconhecendo-se, inicialmente, a oposição que as combina­
ções de sintagmas estabelecem entre um espaço externo e um espaço in­
terno, mediatizados pelo formante “mãos” (= /envolvido/ + /envol­
vente/); tomando-se o conjunto “rosto” e “mãos” como lugar de instau­
ração metonfinica de qualificações (o ser) e de funções (o fazer) defini­
doras de um estatuto “actorial”, obtém-se, aproximadamente:

espaço interno interoceptividade

espaço externo exteroceptividade

responsável, assim, por mecanismos de embreagem enunciativa, ou, mais


especificamente, pela passagem de uma estrutura actancial transitiva a
uma estrutura actancial reflexiva, no ato da enunciação.
Essa passagem é marcada pela introdução de uma reversão entre
categorias espaciais e temporais: a especialidade exteroceptiva será assu­
mida como /espaço/, enquanto que a espacialidade interoceptiva será
assumida como /tempo/. A uma reversão semântica dessa ordem corres­
ponde, como foi visto na análise preliminar, a dicotomia expressiva /con­
tínuo/ vs. /descontinuo/.
Uma série de pontos de equivalência entre o plano do conteúdo e o
plano da expressão pode ser, enfim, levantada, para chegar a identificar,
nessas obras de Guayasamin, a constante retomada do tema do relacio­
namento do homem com o mundo que o circunda, cujo fundamento é
mítico. Tem-se, assim, que o caráter constrastivo e complexo dos for­
mantes “mãos”, no plano da expressão, encontra correspondência com a
estrutura mítica do conteúdo, an que o conflito “homem”/ “mundo” é
resolvido por um instrumento mediador. Paradigmaticamente, as mãos
surgiriam como operadoras da derrubada da intransponibilidade dessa di­
cotomia, pela afirmação do caráter transformador do fazer humano. No
contexto das telas estudadas, porém, realiza-se a potencialidade contrá­
ria: as “mãos” de Guayasamin têm função disjuntiva, protetora; o tema
da intermediação é representado na figura discursiva das “mãos-escu-
dos”.

Para concluir
Sendo muito recente, a linha de estudos aberta pela semiótica pla­
nar tem por preocupação, até os dias de hoje, levantar os elementos seg­
mentais próprios à pintura, procurando compatibilizar as análise com um
modelo teórico proveniente, fundamentalmente, da lingüística. Os traba­
lhos dessa fase inaugural, por esse motivo, realizam a tarefa de integrar a
análise do discurso visual planar no âmbito de uma teoria geral do dis­
curso, obtendo resultados generalizantes.
No caso específico da pintura esse tipo de abordagem parece, no
entanto, insuficiente. A obra de pintores como Oswaldo Guayasamin não

8 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


se resume às linhas gerais definidas pela figurativização mais ou menos
esquemática de temas tão amplos quanto os que a areflisp. ensaiou detec­
tar; pouco se pode assim apreender da carga emotiva intensa que escapa
por entre as malhas da rede lançada pelo descritor, mas que o apreciador
da pintura não deixa de fruir. De fato, uma análise do discurso pictórico
que o considere simplesmente como outro discurso visual qualquer nãn
pode dar conta da poeticidade a ele inerente. A proposta que aqui parece
cristalizar é de que, a partir dos estudos já realizados até agora, a semióti­
ca planar se lance a uma outra exploração, paralelamente, da pintura en­
quanto discurso poético. Talvez essa nova empreitada já se possa con­
templar, por exemplo, na formulação do conceito de semiótica plástica,
que seria “uma linguagem segunda elaborada a partir da dimensão figu­
rativa de um primeira linguagem, visual ou não, ou a partir do signifi-
cante visual da semiótica do mundo natural” (GREIMAS et COURTÉS,
1986, pág. 169); de qualquer modo, o que aqui se gostaria de ressaltar
são as possibilidades de um estudo que enverede, por exemplo, pela aná­
lise de elementos supra-segmentais (quem sabe: prosódicos) em pintura.
Os obstáculos são muitos, no momento. Os elementos supra-seg­
mentais não são mensuráveis na pintura certamente, do mesmo modo que
na fala; como trabalhar concretamente com as sobredeterminações que
sobre o enunciado pictórico faz incidir uma enunciação “muda”? Tor­
na-se necessário, antes de tudo, desenvolver instrumentos de recupera­
ção das marcas da enunciação enunciada no plano da tela. Por ora, finali­
zam estas observações pela instalação da falta. O próximo passo da nar­
rativa é programa para um outro trabalho.

OBRAS BIBLIOGRÁFICAS
CITADAS/CONSULTADAS
FLOCH, J.-M. 1985. Petites mythologies de Foeí et de Fesprit. Pour une séniotique
plastique. Paris-Amsterdam, Hadès-Benjamins.
GREIMAS, A J . et COURTÉS, J. (org.). 1986. Sémiotique. Dictionnaire raisonné de
la théorie du langage, II. Paris, Hachette.
LOPES, E. 1978. Discurso, texto e significação. Uma teoria do interprétante. São
Paulo, Cultrix.
1986. Metáfora. Da retórica à semiótica. São Paulo, Atual.
SILVA, I.A. 1985. “ O Projeto da Semiótica Planar (Semiótica da Imagem Fixa)” .
Araraquara, fotocópia do original datilografado.

As fotos que reproduzem as telas de Guayasamin analisadas são de autoria de


EDUARDO PENUELA, a quem registramos nosso agradecimento. Agradecemos
também à Fundação Guayasamin do Equador que autorizou a reprodução das obras
do pintor.

RESUMEN
Los autores sintetizan, con ejemplo práctico, los resultados aJcanzados por la
semiótica planar an la construcción de un modelo para el análisis de los discursos
visuales planos, de un modo general, y dei discurso pictórico, en particlar. Para eso,
válense de las obras dei maestro ecuatoriano Oswaldo Guayasamin, a quien desean
rendir homenage.

SIGNIFICAÇÃO N® 7 - OUT 87 9
10 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS
FIG 2

FIG 3

SiGNIFICAQAO N9 7 - OUT 87 11
A representação do espaço
em textos fílmicos e literários
da América Latina
ANNA MARIA BALOGH
(Vice-Coordenadora do Curso de Rádio e TV
na Escola de Comunicações e Artes da USP)

PRÊMIOS. fa \ *
PIERREKAST(FRANÇA) fa & & 4» W? I .

«ksst“^"i"°r"°" g y o # M .B S com i
b S , " ” 1“ "ELH0"™"c(MJU,Ä'"i W ^m JOSÉ DUMONT
um FILME DE 7 » J i r _ REGINA DOURADO
PEDRO JORGE DE CASTRO UM A W R S U O DC ANION C HONDA B. DE PAIVA
FOTOGRAFIA: MIGUEL FREIRE • MONTAGEM: JOSÉ TAVARES DE SARROS • DIREÇÃO DE ARTE: JEFFERSON ALBURQUERQUE JÚNIOR
TRILHA MUSICAL EDNARDO • PRODUÇÃO EXECUTIVA: TARCÍSIO VIDIGAL
PRODUÇÃO: ANIMATOGRAFO CINEMA E VÍDEO, GRUPO NOVO DE CINEMA E EMBRAFILME
APOIO: UNIVERSIDADE FED ERA L DO CEARÁ/FCPC Diiiritóô embjafiime

12 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


Podemos considerar a realização de um filme como sendo um pro­
cesso cultural constituído de etapas que começa com a roteirização e
termina com a recepção por parte do público e da crítica. Nas adapta­
ções, o texto literário torna-se pré-texto para o roteiro e acresce uma
etapa ao processo.
„ Faremos aqui uma reflexão sobre a representação do espaço nas
etapas do fazer fQmico. Daremos preferência a filmes latino-americanos
adaptados de obras literárias por permitirem comparações entre os tex­
tos. Quando se fizer necessário, utilizaremos obras literárias não adapta­
das e filmes com roteiro original
Palavra e imagem são representação, existem “em lugar de”; volta­
mos às primeiras aulas da universidade. A palavra existe “em lugar de”
um conceito e não de um objeto concreto, real; trata-se de um designa-
tum, não de um referente. A literatura tampouco tem compromisso com
o real, mas sim com o verossímil. Mas as lições da universidade são con­
traditórias, pois aprendemos também que há uma literatura regionalista,
classificação vinculada a parâmetros da realidade física, dividida geogra­
ficamente.

A representação do espaço na literatura


A leitura da ensaística e da ficção hispano-americanas permite tra­
çar uma grande linha divisória no tocante à representação do espaço. No
primeiro momento, nossos escritores tentam captar o que é ‘típico’ atra­
vés de técnicas que enfatizam uma aproximação mimética ao real. O
texto se expande no descritivismo detalhista que pretende dar conta do
espaço americano denotativamente em benefício de um pretenso realis­
mo/autenticidade e em prejuízo da densidade e da função poética. No se­
gundo momento, surge a consciência da impossibilidade de expressar a
radical heterogeneidade étnica, temporal e espacial da América Latina
através do denotado, do fotográfico. A ensaística se avoluma, então, na
busca de explicações, e a ficção se transforma mediante o uso de novas
técnicas de narrar, de representar o tempo e o espaço. Muitos escritores
se dedicam à ficção e ao ensaio simultaneamente, recordamos os mais
próximos a nós, como Paz, Carpentier, Fuentes, G. Márquez, e E. Sába-
to. Na obra destes e de outros autores hispano-americanos do segundo
momento da nossa literatura, o espaço adquire valores conotados, iso-
mórficos e simbólicos e representa uma revolução na narrativa e no dis­
curso. A literatura latino-americana evolui do realismo/regionalismo
para o tão decantado realismo mágico. (Bibliog. 4 - 5 - 6 e 7).

A representação do espaço no cinema


À crítica existente sobre o cinema latino-americano é bem mais
dispersa e incipiente do que a literária. Há poucos filmes nossos passados
ao vídeo; a distribuição e a comercialização também são precárias, difi­
cultando o acesso às obras. Assim, não podemos afirmar se o cinema
passou ou não por evolução similar à da literatura, mas podemos fazer al­
gumas considerações sobre a forma de representar o espaço no cinema
que podem ser esclarecedoras também no tocante à diacronia.

SIGNIFICAÇÃO N9 7 - OUT 87 13
No que diz respeito à concepção do espaço no cinema, o descarte
puro e simples do concreto, do referencial à antiga, não parece tão sim­
ples quanto na literatura. Uma das servidões do cinema clássico é preci­
samente a de depender de um espaço concreto a ser filmado, ainda que a
representação venha mediatizada pelos enquadramentos, angulações e
movimentos de câmera e pelos cortes e efeitos de moviola. Podemos dis­
por de um espaço real anterior à filmagem (locação/externa), de um es­
paço especificamente construído para uma filmagem X (cenários, exter­
nas ou internas = estúdios), ou ainda de cenários reaproveitados de fil­
magens prévias.
A evolução na literatura se deu primordialmente através da mudan­
ça na visão de mundo e da subversão nas técnicas de narrar da maioria
dos escritores hispano-americanos. No caso do cinema, revolucionar pa­
rece bem mais difícil devido às razões que apontamos a seguir. O filme é
realização coletiva e nem o mais despótico dos diretores tem domínio to­
tal sobre sua obra. Condicionantes de produção fSmica (orçamento,
equipamentos, etc... interferem de forma muito mais poderosa na produ­
ção “semiótica” do sentido do que o leigo ou o crítico distanciado da rea­
lização possam imaginar. Pudemos comprovar esse fato nos casos em que
tivemos acesso aos roteiros e notamos reconfigurações ponderáveis nas
etapas de passagem do texto literário para o roteiro, e deste, para o texto
fOmico. A forma de representação do espaço no filme não depende ex­
clusivamente da competência do realizador, como na literatura. O cinema
depende em muito maior grau da sofisticação dos equipamentos de fil­
magem e edição para viabilizar concepções do realizador do que qualquer
outra forma de arte. Inútil imaginar soluções ou efeitos incríveis, sem
dispor de lentes adequadas, de câmeras com recursos, de grua, de ‘swit-
cher’ com boas possibilidades de efeitos e de um grande número de equi­
pamentos sofisticados e caros.
A célebre frase “ uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”, defi­
nidora do “cinema novo”, parece anacrônica. Trata-se de uma estética
válida para os anos 60, com inúmeros filmes em P & B, próximos ao neo-
realismo italiano, coerentes com a precariedade dos meios de produção e
a ideologia impulsora do movimento, mas insustentável três décadas de­
pois.
O mercado cinematográfico brasileiro abarca atualmente produ­
ções caras, hollywoodianas como “Quilombo” , de Cacá Diegues e pro­
duções muito restritas em termos de orçamento como “Tigipió”, de Pe­
dro Jorge de Castro na qual participamos na fase de adaptação/roteiriza-
ção. Ao revermos obras da filmografia brasileira e da latino-americana
(as que chegam até nós), verificamos que nenhuma delas retoma no ci­
nema o rico veio do realismo mágico literário. A maioria das adaptações
que conhecemos teve condições medianas de produção, mas não acredi­
tamos que este seja o único fator determinante para a ausência apontada.
Quais são as representações de espaço recorrentes na filmografia
latino-americana? Em que medida a representação do espaço seria defi­
nidora de nossa “latinidade” ou “hispanidad”?
A importância da concepção/visualização do espaço já foi objeto
das considerações dos realizadores. Jorge Durán, roteirista de “Pixote” e

14 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


de “Lúcio Flávio”, afirma que “escrever um roteiro.« é lidar com for­
mas” e que “um roteiro pode ser lido, mas na verdade é visto.” (Bi-
blio.ll, p.8). Na opinião do realizador francês, Godard, o espaço é fun­
damental:
"O cenário me ajuda a encontrar idéias.
Muitas vezes, mesmo, é dele que eu parto.\(...)
Eu me pergunto se é possível determinar a
locação depois da redação do roteiro. É pre­
ciso pensar no cenário antes. Freqüente­
mente um sujeito escreve, “ele entrou no
quarto”, pensando num determinado quarto.
E o filme é feito por outro que pensa num
outro quarto. Isso desiquilibra tudo. Não se
vive da mesma maneira em cenários diferen­
tes”. (Bibliog. 11, p.19).
A busca de arquétipos espaciais no cinema nos remete também à
literatura através das adaptações. Um resgate nos guardados da memória
nos leva a associar textos: “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos e Nelson
Pereira dos Santos; “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa e de
Walter George Durst e Walter Avancini (mini-série, TV); “Deus e o
Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha; “El Ilano en llamas”, de Juan
Rulfo; contos como “La siesta dei Martes”, “Un dia después dei sábado”
e “Candida Eréndira” , de Gabriel Garcia Márquez - o último adaptado
por Ruy Guerra “Tigipió”, de Herman Lima e Pedro Jorge de Castro,
apenas para mencionar os mais próximos a nós, no momento.

Os espaços da imensidão e da solidão


O elenco de obras mencionado manifesta similaridades na concep­
ção do espaço. Pensando nas articulações propostas por Greimas para dar
conta do campo semântico da /espacialidade/, verificamos que as obras
citadas atualizam expansões na dimensionalidade, preferencialmente na
horizontal, seja na /lateralidade/: “larguíssimo”, seja na / perspectividade/
“longuíssimo” (no cinema geralmente traduzido pela máxima profundi­
dade de campo). Essa constante parece configurar uma concepção hiper­
bólica do espaço. As seqüências iniciais e finais de “Vidas Secas” (Filme
— F) constituem um exemplo enfático do que apontamos. Na abertura do
filme aparecem em quadro apenas duas imensas faixas horizontais: céu e ca­
atinga homogeneizados pela luz chapada. Não há nenhum ator. Lenta­
mente, distinguimos um ponto vindo da máxima profundidade de campo
(“longuíssimo”) em direção ao espectador. Do grande plano geral/GPG,
passamos ao de conjunto/PC, ao plano médio/PM e ao plano america­
no/PA. O ponto vai adquirindo forma humana até distinguirmos Fabiano
e os seus. O que se perde na sucessão dos enquadramentos em termos de
lateralidade e de perspectividade, se ganha em termos de proximidade
( = identidade dos atores). No final do filme, ocorre o percurso inverso,
começando com os retirantes em PA, de lado, para irem se afastando, de
costas, diminuindo, diminuindo, até sumirem em máxima profundidade
de campo enquanto a caatinga e o céu se estendem de novo diante de
nossos olhos (“larguíssimo”).

SIGNIFICAÇÃO N2 7 - OUT 87 15
Os textos mencionados evidenciam que, em momentos fundamen­
tais da narrativa e independentemente das coberturas lexemáticas/ imagé -
ticas (sertão, caatinga, “Mano”, “desierto”, “playa”...), as representações
do espaço se caracterizam pela imensidão (lembramos de “Grande Ser­
tão...”). A expansão hiperbólica é manifesta através dos mais variados
recursos fümicos tais como grande angular, enquadramento em GPG,
movimentos de afastamento com câmera muito alta (grua/helicóptero),
entre outros. A impressão de que o espaço é muito vasto é, em geral,
acentuada pela /vacuidade/. Durante seqüências inteiras ou em boa parte
delas, não aparecem atores humanos e nem seres elementares que possam
direcionar o olhar do espectador. Esta representação básica em termos de
espacialidade é, em geral, acompanhada pela “lentidão” (ou o extremo
oposto: uma pressa desesperada, sem rumo) em termos de temporalidade
expressa por movimentos lentos da câmera ou dos atores, por vezes che­
gando à imobilidade. O enunciado de “Vidas Secas” (Livro ==L,p.9) é es­
clarecedor nesse sentido: “E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais ar­
rastada, num silêncio grande”. Na transmutação fBmica, a câmera se mo­
ve muito pouco na caminhada inicial e os atores andam vagarosamente.
No espaço assim representado de forma recorrente nos textos, um ator
não humano prevalece quase sempre sobre os humanos, trazendo em al­
gumas obras ecos dos mitos indígenas pré-colombinos: o SOL, atualizado
direta ou metonimicamente (lembramos de “Deus e o Diabo na terra do
sol”, “Vidas Secas” e “El llano en llamas”). Nesse sentido, um outro
parágrafo de “Vidas Secas” é revelador: “Fabiano tocou o braço da mu­
lher, apontou o céu, ficaram os dois aguentando a claridade do soL En­
xugaram as lágrimas... conservaram-se encolhidos, temendo que a nuvem
se tivesse desfeito, vencida pelo azul terrível, aquele azul que deslumbra­
va e endoidecia a gente”, (p.12). O filme transmuta o trecho em suas se­
qüências iniciais, mas e m P & B com uma luz muito chapada (“clarida­
de”). A representação do espaço caracterizado pela imensidão e pela ari­
dez, dominado pelo sol, ocorre geralmente na dimensão pragmática da
narrativa. Trata-se de uma concepção de espaço constante quando se
atualiza o ápice do não poder/não saber dos atores ou quando suas per­
formances colocam em risco os objetos-valores essenciais dos programas
narrativos (crenças, vida...) como poderemos observar nos exemplos
subseqüentes. Em “Tigipió” (F), Matilde aguarda Heitor junto ao carro
de bois desativado e à árvore seca, em frente à casa do pai a câmera sub­
jetiva mostra o sertão devastado pela seca que arruinou o pai, sem que ele
ou Matilde nada pudessem fazer. Desse mesmo sertão, surge Heitor, a
cavalo, pronto para renegar Matilde que espera um filho seu. Em “Vidas
Secas” (L c F) sinhá Vitória olha da janela para a «laringa devastada e o
céu cheio de aves de arribação, sabedora de que nada poderá farar para
impedir uma nova retirada. Eréndira (F) olha para o deserto p.mp/vMfaHn
com a desolação de quem sabe que percorrerá muitos caminhos similares
prostituindo-se para pagar a dívida à avó. Nos momentos em que a au­
sência de poder dos atores chega ao limite, a sua desaparição na imensi­
dão do espaço parece ser a melhor forma de figurativizá-la, como no fi­
nal de “Vidas Secas”, já visto, e na fuga derradeira de Eréndira ao longo
da praia (L e F). Por vezes a expansão na horizontalidade é acompanhada
de outra expansão na verticalidade através do máximo afastamento da

16 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


câmera alta enfatizando a grandeza do espaço e a pequenez dos atores
(=não poder), como na tomada de helicóptero afastando-se de Manoel e
Rosa que correm sem rumo pelo sertão imenso no final de “Deus e o
Diabo...” Em algumas seqüências, movimentos circulares da câmera
tentam adequar ou submeter a imensidão do espaço à fraqueza ou deses­
pero dos atores, como na queda do Menino mais Velho no início de “ Vi­
das Secas” ou na cavalgada de Diadorim pelo sertão, após saber da notí­
cia da morte de Joca Ramiro. Durante a cavalgada, a câmera gira como
se tragasse o sertão e o céu crepuscular, dando a idéia de desvario ou
tontura no impotente desespero de Diadorim. Dentre as performances
dos textos, lembramos a luta de Fabiano com o Soldado Amarelo em ple­
na caatinga (L e F), o duelo de Corisco e Antônio das Mortes em “Deus e
o Diabo...” em pleno sertão. Fabiano olha a caatinga devastada ( L e F )
antes de tomar coragem para matar Baleia. A avó de Eréndira (F) perse­
gue e consegue capturar a neta e Ulisses que dela fugiam num caminhão
em meio ao deserto, não sem antes mandar matar o fotógrafo, cúmplice
dos namorados. No final dessa seqüência também há um afastamento em
câmera alta, enfatizando a pequenez dos capturados e do morto no de­
serto árido e brilhante de sol, mas é outra seqüência do filme que nos
conduz a uma das chaves de nossas reflexões . A avó de Eréndira, senta­
da numa cadeira, em meio ao vazio e à canícula do deserto, está maqui­
nando formas de recuperar a neta em poder dos monges e diz a um pas­
sante: “Soy una pobre mujer sola en la inmensidad dei desierto”
(L,p.l23 e F). Repensando as características dos espaços analisados, bem
como de outros apenas citados (Comala e Luvina de “El llano em Ha­
mas”, por exemplo), nos damos conta de que a representação hiperbólica
do espaço em que ocorre a supremacia do sol sobre os atores humanos
em momentos de risco do relato, figurativizam a radica] solidão do ho­
mem americano em face do poder fatal da natureza (terra/sol) e da cul­
tura (ator antagonista, o outro). Lembramos de obras como “El Labe-
rinto de la Soledad”, “Cien anos de Soledad” , bem como do discurso de
Garcia Márquez na recepção do Prêmio Nobel, significativamente enti-
tulado “La Solitude de l’Amérique Latine” na tradução francesa. Essa
forma de representação é prática recorrente no cinema latino-americano,
quer se trate da transmutação de textos regionalistas clássicos, “Tigipió” ,
quer se trate de “Vidas Secas” , considerado regionalista, mas com inova­
ções que tornam a classificação imprópria (Bibliog. 7), quer, ainda, se
trate de obras como “Eréndira” , típicas do realismo mágico.

A representação do espaço e a evolução tecnológica


Como poderia o cinema latino-americano traduzir o realismo má­
gico ou o “deicídio” praticado por Gardà Márquez e analisado por Llosa
(Bibliog. 6) e que em termos de representação subverte todas as delimita­
ções lógicas do espaço, sem passar por uma revolução similar à da lite­
ratura na forma de representar a espacialidade? Aparentemente, o cine­
ma latino-americano não teve, ainda, a oportunidade de praticar essa re­
volução. Hoje, essa subversão parece mais viável na TV, infinitamente
mais dinâmica e melhor equipada para resgatar/atualizar/suplantar as
conquistas do realismo mágico, de forma que o texto literário e o fflmico,

SIGNIFICAÇÃO Ns 7 - OUT 87 17
finalmente, se reencontrem. Se isso ocorrer, há grande probabilidade de
que a sofisticação técnica e a temporalidade voraz da TV acabem por
criar concepções espaciais radicalmente diversas. “Armação Ilimitada”,
da Globo, pode ser um exemplo paradigmático da representação espacial
mediatizada pela revolução tecnológica já processada na televisão da
América Latina. Nesse programa, a concepção do espaço é primordial­
mente resultado de edição eletrônica, trucagens e efeitos sofisticados uti­
lizados de maneira a não restarem praticamente vestígios de uma espa-
cialidade concreta mediatizável pela câmera, objeto de nossas reflexões
nesse artigo.

BIBLIOGRAFIA BÁSICA
1. GARCÍA MÁRQUEZ, G. - "Losfunerales dela mamá Grande". B. Aires, Su-
damericana, 1975.
2. - “La inerefhle v triste historia de la Candida Eréndira v de su
abuela desaknada” . Buenos Aires, Sudamericana, 1972.
3. _ _ _________ - "La Sobtude de lAmérique Latine". In Nouvel Observateur,
Paris, Jan. 1983, p. 60-61.
4. GIACOMAN, H. —Homenaje a G. García Márquef’. NY, Madrid, Las Ameri­
cas Publishing Co. Inc., 1972.
5. LOPES, E. e PENUELA, E. - “O rmto e sua expressão na literatura hispano-
americana" . S. Paulo, Duas Cidades, 1982.
6. LLOSA, Vargas —“Gdrda Márquez —Historia de tat Deiddio". Barcelona,
Monte Ávila, 1971.
7. PENUELA, E. - "Duas Leituras Semiótica/’. São Paulo, Perspectiva, 1978.
8. RAMOS, Graciliano —"VidasSecas" . São Paulo, Martins Editora, 1967.
9. RENDER, A. et alii - "Espace, représentation et sênàotique de t architecture”
Paris, Editions de la Villete, 1981.
10. XAVIER, Ismail - “Sertão Mar'’. São Paulo, Brasiliense, 1983.
11. Revista "Fibne Culture?’. Rio de Janeiro, Embrafilme/MEC, ne 43,1984.

FILMOGRAFIA BÁSICA
“ TIGIPIÓ” , Cor, 35 mm, 1985. Direção: Pedro Jorge de Castro. Elenco: Regina
Dourado, Zé Dumont, B. de Paiva.
“ VIDAS SECAS” , P & B, 1962. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Elenco: Átila
Iório, Jofre Soares.
“CANDIDA ERENDIRA” , Cor, 35 mm, 1985. Direção: Ruy Guerra. Elenco: Irene
Papas, Cláudia Ohana.
“GRANDE SERTÃO: VEREDAS” , Cor, Mini-série, Globo. Rot.: Walter George
Durst. Direção: Walter Avancini. Elenco: Bruna Lombardi, Tarcísio Meira,
Toni Ramos. Obs: Embora realizada para a TV, a obra foi incluída por utili­
zar técnicas cinematográficas e não televisivas de filmagem, conforme afir­
mações dos próprios realizadores.

RESUMEN
«rCuáles son las representaciones dei espacio que se reiteran en textos fflmicos
y literários de realizadores y escritores latino-americanos?
tQué tipo de evolución se nota en esos textos a lo largo dei tiempo y cuáles
son los factores que la condicionam?
El artículo trae algnnas reflexiones sobre esas preguntas.

18 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


Tal leres latinoamericanos
e semiótica da canção popular
LU IS TATTT (Doutor em Letras - Lingüística —
pela Universidade de São Paulo
e músico do Grupo Rumo)

Tive poucas oportunidades de entrar em contato com a música his­


pano-americana. Apenas participei por dois dias do “Terceiro taller lati-
noamericano de música popular” e adquiri alguns exemplares de sua re­
vista “La dei taller.”
Não sei dizer se os participantes dos “Talleres” são de alguma
forma representativos 1 da canção popular hispano-americana (já que os
participantes brasileiros» ao que constatamos, não são representativos da
canção popular brasileira atual), porém, não deixa de ser notável que es­
ses grupos de cancionistas mantenham uma atividade dinâmica e concor­
rida completamente à margem do mercado cultural. De nossa parte,
quando não estamos integrados no mercado do disco e nos roteiros do
show business, estamos atuando paralelamente a estes, reproduzindo em
pequena (ou diminuta) escala as mesmas leis de produção e veiculação
dos trabalhos.
Os “Talleres” de música popular promovem encontros anuais, cada
vez num país da América Latina abrindo espaço para a reflexão, o deba­
te, a crítica e buscando discutir os objetivos e a função que determinam
as tarefas do músico popular enquanto artista.

A semiótica
Quando lemos os artigos de sua revista, encontramos observações
com o seguinte teor:
“Este octavo arte que es la canción popular,
tiene sus características próprias, valores
proprios y su própria historia. El intento de
su estúdio sistemático deberá ser efectuado
sobre la base de nuevosparametros, que no son
los especificamente musicales ni los literá­
rios”2
Ora, uma reflexão visando criar parâmetros específicos para a
análise da canção popular, fora da esfera de influência da música erudita
e da literatura, pode enriquecer-se com as aquisições da semiótica 3 que,
nestes 20 anos de trabalho sistemático, vem construindo um modelo
promissor de articulação do Sentido produzido pelo homem, oferecendo,

SIGNIFICAÇÃO NS 7 - OUT 87 19
ao mesmo tempo, critérios econômicos para o estudo do plano da ex­
pressão onde se distinguem os traços particulares das semióticas específi­
cas (semiótica musical, semiótica pictórica, semiótica cinematográfica,
semiótica da canção popular, etc.). Interessando-se pelo Sentido prove­
niente de qualquer atividade humana, a semiótica permite e até sugere a
verificação de práticas significantes as mais corriqueiras e dinâmicas,
rompendo com a tradição dos objetos consagrados dignos de análise (so­
natas, sonetos, epopéias, romances, quadros, etc.). E, ao propor parâme­
tros específicos para a avaliação da canção popular, a semiótica pode
contribuir para a valorização do próprio cancionista que, muitas vezes,
aceita a pecha de sub-músico ou sub-poeta:
“En la cultura traída por el conquistador eu-
ropeo, lo sutil y refinado se le ha asignado
a la música culta. Los músicos populares son
los que subestimam, su proprio arte y como
signo de calidad vocal, imitan la técnica cul-
terand’ (id., 18).

A sedução
Este ensaio de Luis Trochón, a meu ver, é um verdadeiro gesto em
direção à semiótica embora não haja menção a qualquer propósito neste
sentido. Depreendo isso da pertinência das observações reguladas pela
busca de um universo de sentido e de valores próprios da canção popular.
Por outro lado, parece-me que suas noções poderiam ser aprofundadas e
transformadas em parâmetros de análise extensivos à toda espécie de
canção. Vejamos:
“La relación intérprete-oyente es un hermoso
dragoneo donde la seducción y lo ritual son
aspectos implícitos en la misma” (id. 18).
Esta frase revela muita intuição. De fato, a relação intérprete-ou-
vinte é sempre um caso de sedução como, de resto, ocorre em toda co­
municação principalmente nos domínios da arte.
Um compositor ou um intérprete desempenha sempre, no mínimo,
duas funções actanciais se o considerarmos num quadro de narratividade
como nos propõe a semiótica. De um lado, ele é o sujeito que constrói um
objeto com as características daquilo que denominamos canção. Nesse
sentido, ele é o sujeito de um /fazer ser/. Ocorre que este objeto é cons­
truído não apenas para o gozo próprio (também o é na medida em que
cada canção representa uma prova de competência tecnológica) mas, ao
mesmo tempo, para ser transmitido ou transferido a alguém. Em outras
palavras, este objeto é construído também para que alguém mais o deseje.
Portanto, de outro lado, o ator (compositor/intérprete) acumula a função
de destinador persuasivo (fazer crer) ou manipulador (fazer fazer) sem
conotação pejorativa. E aqui não se trata apenas do destinador-emissor
das teorias de comunicação, mas do destinador narrativo, cuja função
precípua é despertar um /querer fazer/ no âmbito do destinatário. Se o
ator que investe a função de destinador é o compositor/intérprete, a fun­
ção complementar, a de destinatário, será preenchida pelo ouvinte.

20 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


Note-se que o êxito persuasivo deste destinador depende do êxito
simultâneo de sua atuação como sujeito que produz o objeto canção e vi­
ce-versa. Isso significa que o fazer da canção (sua composição ou inter­
pretação) visa, entre outras coisas, cativar a confiança do ouvinte, ao
mesmo tempo em que esta confiança vai servindo de base consensual
para se fixar o valor do objeto canção. Articulando paralelamente essas
duas funções actanciais (de sujeito do fazer e destinador persuasivo) o
ator vai estabelecendo o valor do seu objeto assegurado por um contrato
fiduciário.
A partir daí, temos todas as condições para compreender semioti-
camente a noção de sedução. O ator (compositor/intérprete) apresenta
pelo menos dois tipos de competência, neste caso representada sobretudo
pelo /saber fazer/. Enquanto sujeito que produz a canção, ele possui uma
competência tecnológica e, enquanto destinador, uma competência per­
suasiva.
Esta persuasão se processa toda vez que um ator-ouvinte investe a
função actancial de destinatário pois já está prevista para esta posição (a
partir de um simulacro que o destinador constrói do destinatário) uma
competência de /saber/ converter os recursos técnicos da canção em es­
tímulos estético-afetivos. Trata-se do fenômeno que denominamos
“sensibilidade” O destinador tem, por princípio, uma imagem positiva da
competência do destinatário do qual ele espera, no mínimo, sensibilidade.
Tudo isso funciona como fator de atração aos atores-ouvintes no sentido
de ocuparem uma posição concebida euforicamente.
Daí o esquema modal da sedução:
Destinador /Saber Fazer/ Destinatário /Querer Fazer!
(comp/int) (ouvinte)
onde o /fazer/ do ouvinte pode ser observado em várias buscas que ele
desencadeia para obter a canção: compra o disco, vai ao show, canta
junto, dança, etc.
Evidentemente, o /querer fazer/ do destinatário pressupõe a pas­
sagem por um /crer ser/ que não vem ao caso para o que pretendemos
aqui.

A canção: texto lingüístico e texto meiódico


Voltemos então ao artigo do compositor uruguaio.
Ao enumerar os fatores que determinam a boa inteipretação, co­
menta alguns fenômenos de expressão como o “mal manejo dei aire”, a
“respiración defectuosa” , a “emisión” o “fraseo”... e, em seguida, for­
mula outra observação de grande alcance:

“También podemos decir que el intérprete se


puede inclinar más ala palavra hablada o
a la palavra cantada, apoyarse en el juego
rítmico de los instrumentos o eludir y flotar

SIGNIFICAÇÃO N® 7 - OUT 87 21
sobre ese juego. A nivel de la entonación, el
cantante puede optar por da afinación exacta
de cada nota (donde lo que importa es cada
perla dei collar) o una afinación dudosa
(donde lo que importa es el coü a rf (i d 19)

O fato de haver uma inclinação para o discurso coloquial ou, ao


contrário, um afastamento deste, representa bem mais que um efeito
terminal sobreposto a uma canção já realizada em termos de composição,
arranjo e interpretação vocal. Representa uma alteração no próprio cen­
tro nevrálgico da canção popular, ou seja, na relação entre o componente
lingüístico (a letra) e o componente melódico <a melodia).
Uma canção próxima ao colóquio possui quase sempre um texto
lingüístico bem estruturado do ponto de vista morfológico e sintâxico ao
qual se atrela um texto melódico pouco autônomo, à maneira da entoação
de nossa fala cotidiana. Além disso, esta canção caracteriza-se pela
construção de simulacros de situaçõs enunciativas, através de inúmeros
recursos de presentificação discursiva, tudo para dar a entender que o
tempo relatado pelo texto lingüístico coincide com o tempo de execução
da canção e, conseqüentemente, que todos os conteúdos revelados pelo
intérprete estão sendo vividos por ele no mesmo instante e no mesmo lu­
gar da execução.
Em termos práticos, esses recursos se manifestam, em geral, no
emprego dos dêiticos (indicadores de enunciação) no componente lin­
güístico. A tendência já se impõe desde a relação direta EU - TU, pas­
sando pela presentificação espaço-temporal AQUI/AGORA, chegando
às marcas disseminadas pelo texto sob a forma de “imperativos”, “voca-
tivos”, “demonstrativos”, “exclamações”, “expressões estereotipadas”,
“gírias”, etc. Observemos, como exemplo, os elementos sublinhados
nesta letra de Fernando Cabrera; “El loco”.

“Saldré de aqui en pocos dias más


saldré de aqui les puedo asegurar

ahora ya llegó el momento

saca uma jeringa, carga


ym ela da”

A melodia de canção, por sua vez, é sempre um ato de embreagem


ou de engate na enunciação. Mesmo quando o texto lingüístico aponta
para o enunciado, relatando algo distante do momento enunciativo, a
melodia permanece vinculada ao intérprete como expressão de suas en­
toações verbais e mesmo de seu timbre vocal. Quando a letra traz ele­
mentos de presentificação espacial e temporal e imperativos, como a que
citamos acima, a força de deitização ou de engate enunciativo, próprio da
entoação melódica, potencializa-se ainda mais, criando no ouvinte a níti-

22 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


da sensação de uma ocorrência viva. Não é por outra razão que a melodia
que cobre esses dêiticos delineia sempre o contorno da entoação dd dis­
curso coloquial. A propósito disso, observemos ainda o estribilho da can­
ção “Xmaginate m’hijo” de Leo Maslüah onde o vocativo aparece em nível
mais grave, exatamente como no colóquio:

O afastamento do discurso coloquial representa a passagem de


prevalência das leis lingüísticas para as leis musicais. A melodia adquire
vários esquemas reiterativos operando de maneira quase autônoma.
Criam-se motivos que se estruturam em temas e estes alinhava todo o
plano da expressão da canção:

Este mesmo princípio de periodicidade rege o plano do conteúdo


respondendo pela tematização lingüística. Como no folclore “De colo­
res”, por exemplo, a ordenação das figuras cores, campos, primavera,
passarinhos, somadas com outras não citadas acima como arco-íris e lu­
zir, deixa-nos um rastro sêmico que pode ser denominado /luminosidade/
e /movimento/, dois traços vinculados euforicamente aos universais na­
tureza e vida. Se formos um pouco além, verificamos que essa organiza­
ção figurativa, que já propõe uma certa abstração mesmo neste nível, visa
a instauração de “colores” como denominador comum para vinculá-lo
(agora paradigmaticamente) a “amores” tanto no plano da expressão,
pela rima, como no plano do conteúdo, pela identificação sêmica. Resulta
disso a integração do nível cosmológico (“colores”), relativo ao mundo

SIGNIFICAÇÃO N» 7 - OUT 87 23
natural, com o nível neológico (“amores”), dos conteúdos internos ao
homem. Surge então, em plano mais abstrato, o tema que justifica toda
essa integração, o prazer, e o ator EU como seu sujeito passional:
“£ por eso los grandes amores
De muchos colores
Me gusían a m i’
Não nos importa aqui a análise em busca da tematização lingüística
mas, principalmente, o fenômeno da reiteração organizado sobre uma
base sêmica compatibilizando-se com o mesmo fenômeno que, na melo­
dia, se organiza sobre uma base motívica.
Este é um dos dois principais casos de canção que se distancia do
discurso coloquial. O outro, ao invés da periodicidade, pauta-se pelo
princípio da tensividade. É o caso das melodias que utilizam uma vasta
extensão de tessitura, grandes saltos intervalares, região aguda e ampla
duração vocálica. A oscilação de maior ou menor tensividade pode ser
verificada nas ascendências, suspensões e descendências dos tonemas (fi­
nalização das frases melódicas). Do ponto de vista lingüístico, temos as
disjunções e conjunções entre os actantes que se manifestam nos estados
passionais vividos pelos atores. Na conhecida canção “Nuestro juramen­
to” de Benito de Jesús, por exemplo, aparecem as figuras noológicas
“angústia”, “duda”, “promessa”, “tristeza”, etc. que representam pontos
demarcatórios de finalização ou desencadeamento de programas narrati­
vos, levando às últimas conseqüências o desejo de permanência da con­
junção amorosa: “y si los muertos aman, después de muertos amamos
más”

Enfim, as diretrizes de interpretação já vêm determinadas na pró­


pria composição por intermédio dos movimentos tensivos das curvas
melódicas do plano da expressão que devem assegurar as impressões
passionais fundadas pelo texto no plano do conteúdo. Por isso, neste ca­
so, quanto mais nos distanciamos do discurso coloquial mais nos importa
cada “perla dei collar”, cada freqüência tem sua pertinência tensiva.

Conclusão
Considerando esses três princípios, a deitização (aproximação do
discurso coloquial), a periodicidade e a tensividade (ambos se afastando

24 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


do colóquio), numa visão macroscópica, podemos verificar que não são
mais que três grandes estratégias persuasivas que definem a relação entre
destinador (compositor/intérprete) e destinatário (ouvinte) em sua meta
final de sedução. A interação entre os três princípios pode também ofe­
recer os critérios gerais para uma tipologia da canção popular.
Os Talleres Latinoamericanos de Música Popular já concretizaram
o que no Brasil ainda parece impossível: a criação de um espaço de refle­
xão dedicado à canção popular. Um espaço dessa natureza é por defini­
ção despreconceituoso pois inaugura um campo de exploração sistemáti­
ca antes só reservado à música ou à literatura eruditas. Tais condições
são ideais para se fazer germinar uma teoria semiótica e atingir, a médio
prazo, uma metodologia mais objetiva que assegure a transmissibilidade,
em seminários ou conferências, das intuições dos cancionistas partici­
pantes. E, sobretudo, com uma metodologia semiótica, aplicável a qual­
quer tipo de canção, pode-se evitar a cristalização de outro gênero de
preconceito (que, aliás, senti esboçar-se no “TaÚer” embora ainda pali-
damente) com relação à música de mercado, aquela que povoa e sem dú­
vida satura as emissoras de rádio. Boa ou má, esta é a canção da nossa
época e não podemos desconhecê-la. Pelo contrário, precisamos anali­
sá-la, incorporá-la e transformá-la. Ela tem Sentido. E muito.

NOTAS
1 Estamos entendendo por representativos os nomes imediatamente lembrados
quando nos referimos ao universo da canção popular do pais em questão. São os
artistas com alguma penetração popular ainda que restrita a uma faixa social bem
delimitada.

2 Este trecho pertence ao texto “ Bien cantado y bien amado” (LadeltaDer, n2 1, p.


17) do compositor, professor e redator da revista La dei taller Luis Trochòn. Es­
colhemos este artigo para servir de base às propostas apresentadas ao longo do
nosso trabalho.
3 Referimo-nos à semiótica nascida a partir da evolução do pensamento de Saussu-
re/Hjelmslev/Greimas e cuja dinâmica de pesquisa e organização das descobertas é
mantida atualmente pelo Grupo de Investigações Sêmio-lingüísticas da Escola de
Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris.
Agradeço à Marlene Enríquez sua versão para o espanhol do resumo a seguir e
suas informações sobre a canção popular hispano-americana.

RESUMEN
Apuntando contribuir para la reflexión sobre la canción popular, a partir de las
questiones formuladas en la revista “ La dei Taller” (publicada por los Talleres Lati­
noamericanos de Miísica Popular), el autor nos presenta una perspectiva de descrip-
ción, fundamentada en los parâmetros semióticos,que colocaen evidenciaalgunos pro-
cesos de construcciòn dei sentido, específicos de la canción popular. Asf, en primer
lugar, examina la relación de seducción entre el intérprete y el oyente, valiéndose de
los recursos facilitados por la sintaxis narrativa y modal. Luego, a partir dei tipo de
relación establecida entre el texto lingüístico y el texto melódico, el autor deduce tres
grandes categorias tipológicas que poderian servir de base para el análisis de las cau­
ciones elaboradas en los seminários de dichos Talleres.

SIGNIFICAÇÃO N8 7 - OUT 87 25
Quino e o mito de Narciso
EDUARDO PENUELA CANIZAL
(Professor titular da Escola de
Comunicações e Artes da USP)

As expansões do sujeito
Uma primeira leitura de Ni arte ni parte, obra de Quino que a
Editorial Lumen, de Barcelona, publicou em 1981, pode me causar, di­
gamos, a impressão de que o conjunto de mensagens visuais ordenadas
pelo conhecido cartoonista constitui, em síntese, uma espécie de co­
mentário feito de imagens mediante o qual se fala a respeito de diferentes
manifestações artísticas: música, pintura, literatura, escultura, maneiras
de fazer humor e modos de construir prólogos. Em virtude dessas carac­
terísticas, tal comentário imagético, montado, observe-se de passagem,
com extremo esmero, transmite, para um leitor semioticista, a idéia de
que sua incrível força comunicativa se engendra na transparência deter­
minada pela função metalingüística, recurso fácil de surpreender em
quase todas as “historietas” do livro. Assim, em sua tentativa metasse-
miótíca de interpretar a pintura - melhor dito, a chamada pintura realista - ,
Quino mostra, com auxílio de uma fábula muito simples como um pintor,
numa esplêndida manhã de sol, realiza o milagre de, após ter representa­
do em sua tela as duas únicas árvores da paisagem natural que lhe ser­
viam de referente, deixar sem sombra e em perplexa solidão a
pacatez de um cidadão que, sonhadoramente mansarrão, descansava ao
amparo da altiva frondosidade daquelas arbóreas remanescências da ma­
ta: pintada, a realidade muda de lugar e se exige, orgulhosa, na superfície
de uma tela indiferente ao estado de desconcerto em que fica o herói do
bom senso ao se aperceber privado de seu objeto de valor.
Em outro de seus comentários visuais, Quino relata, com idêntica
simplicidade, a fábula dos visitantes de uma exposição que, depois de se
deter numa das obras, felicitam, cada um à sua maneira, o artista e se
despedem com elogios em que se ressalta que sua arte possui a magia de
Chagall, a poesia de Renoir, o vigor de Van Gogh, a liberdade de Pfcasso
e a delicadeza de Modigliani. Aturdido com tamanha enxurrada de encó­
mios à sua criatividade, o pintor, com desespero existencialista, exclama:
“!Yo queria ser yo!”
Essa estória, comparada à anterior, apresenta, sem dúvida, explí­
citas diferenças. Vista com mais vagar, porém, ela mostra que tais dife­
renças se definem ao nível do aparencial, já que, no atinente à narrativi-
dade, tanto o pintor existencialista quanto a personagem sanchopancesca
fecham suas respectivas fábulas em estado de disjunção. Por outro lado,

26 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


se se exploram em pormenor alguns traços desse enunciado narrativo em
que, em termos de Propp, se define a carência, não será difícil constatar
que, por meio dessa operação, o narrador ancora suas criaturas de ficção
numa estrutura profunda determ inada pela isotopia da identidade.
Somada a essa particularidade da narrativa, é de se reconhecer que, da
perspectiva da modalização do fazer, os respectivos programas produ­
zem, quando comparados, um efeito de simetrismo: o pintor assume, na
primeira fábula, o papel de um sujeito operador, ao passo que, na segun­
da, o artista existencialista é tão somente sujeito de um enunciado de es­
tado. Esse simetrismo sugere, conseqüentemente, uma relação especular
que não aparece, no caso, de modo expresso como, amiúde, ocorre em
outros cartoons de Quino. Ao nível da narratividade, contudo, a relação
em jogo reitera, sutilmente, vagos lances do xadrez da identidade: de um
lado, a perplexidade da personagem sanchopancesca manifesta um /saber
ser/, isto é, uma curiosidade, e, de outro, a exclamação do pintor exis­
tencialista atualiza um /saber não ser/, isto é, uma desilusão. Ainda desse
ponto de vista, as personagens das duas fábulas se identificam mais uma
vez se as encararmos a partir do esquema montado por Fontanille quando
diz que:
"... a modalização cognitiva tem a vantagem
de poder servir de intermediária entre as mo­
dalidades veridictórias e figuras passionais
cognitivas como a “ignorância”, a “curiosi­
dade”, a “ilusão”, etc. Na medida em que as
posições veridictórias (“verdade" “mentira”,
etc.) são termos combinados, sua colocação
no quadrado é problemática, e é conseqüen­
temente difícil construir um sistema passional
diretamente a partir da veridicção. Eis o que
se obtém a partir do Isaber ser/, a título de
sugestão:

“desespero"
Jsaber ser! A B /saber não ser/
“curiosidade” “desilusão"

/não saber não ser/ /não saber ser!


“ilusão”, “creduMade" “ignorância"1

Assim sendo, o desespero se reveste das propriedades de uma fi­


gura passional complexa, o que me leva a pensar, considerando as carac­
terísticas atribuídas às duas personagens de Quino, que os pintores das
respectivas narrativas são espaços figurativos onde tal figura se mani­
festa em termos de perda de ilusão ou em termos de um desejo de saber.
De qualquer maneira, porém, as expressões plásticas em que se realizam as
personagens recolhem tanto os conteúdos colocados quanto os conteúdos
invertidos das narrativas e com seus conflitos configuram uma espécie de

SIGNIFICAÇÃO N2 7 - OUT 87 27
situação desesperante que, ao nível do enunciado, oscila em torno de
formas conteudfcticas sobredeterminadas por /saber ser/ e /saber não
ser/. Tais formas, no entanto, podem ser relativizadas e, nesse caso, am­
pliadas semanticamente como, por exemplo, Parret faz quando define
a curiosidade valendo-se da combinatória /querer saber ser/ 2. Cabe,
entretanto, admitir, de antemão, que, em virtude da natureza sincrética
dos cartoons, o plano do conteúdo tem, evidentemente, possibilidade de
se expandir e, com isso, formar sememas em que se impliquem elementos
pragmáticos, cognitivos e túnicos.
Diante dessas particularidades e pensando nas formas narrativas e
discursivas como extremos do trecho do itinerário em que, segundo a
teoria greimasiana, se efetuam os percursos de sentido, quero antecipar
que dos fenômenos expansionais por que passam, durante os atos de lei­
tura, os conteúdos de qualquer manifestação simbólica - no caso, os
cartoons de Quino - me interessam, nesta ocasião, somente aqueles que
mantém conexão com aspectos das transformações túnicas e cognitivas, o
que me permite trabalhar com a idéia de que, ao definirem forçosamente
programas narrativos, essas transformações foram sobredeterminadas
por objetos de valor participativos, isto é, por objetos cuja principal
propriedade advém da realização de revelações de conjunção em que, no
mínimo, intervém, simultaneamente, dois sujeitos. Tal posicionamento se
deve, como pretendo demonstrar neste trabalho, a dois fatores funda­
mentais: de um lado, a isotopia do narcisismo, encarada, principalmen­
te, como um modelo que me permita estabelecer um corpus representati­
vo da obra de Quino e, de outro, a configuração da identidade que,
mesmo sendo um conjunto de significações virtuais, se toma, nas cria­
ções do autor de Mafalda, uma espécie de invariável cuja presença, em
virtude de possuir um alto teor poético, sobredetermina a ambigüidade
dos percursos figurativos em que se localizam os traços responsáveis pelo
inconfundível estilo do cartoonista argentino.3

A contração dos objetos


Ao falar do sentido e da tarefa do semioticista, Greimas, em Dn
Sens, esclarece, em nota, o que, nessa oportunidade, ele entende por
isotopia:
Por isotopia, entende-se geralmente um feixe
de categorias semânticas redundantes, subja­
centes ao discurso considerado. Dois discur­
sos podem ser isotópicos mas não isomor­
fos."*
Rastier, em Le developpement du concept d’isotopie5, consi­
dera esse entendimento genérico ao ponto de que ele permite afirmar,
por exemplo, que todos os enunciados de uma língua que coloquem em
jogo a categoria do número seriam, nesse sentido, isotópicos. Tal asserti­
va transforma a definição greimasiana em algo inútil ou quase inútil e,
mesmo sem considerar a importância dos processos subjacentes, Rastier
parte para a segunda definição de isotopia, citando, para tanto, a seguinte
passagem da Sémantique Structurale:

28 CENTRO OE ESTUDOS SEMIÓTICOS


“Uma mensagem ou uma seqüência quais­
quer do discurso somente podem ser conside­
radas como isotopia se elas possuem um ou
vários ciássemos em comum."6

Essa segunda definição, sem dúvida, apresenta, em certa medida,


maior grau de precisão, embora tenhamos de admitir, com base na fórmula
(Sq = /N i + C si/ + /N 2 + Csj/), que ela também possui imprecisões.
Assim, ao comentar a frase ie chien aboie, Rastier, para mostrar a isoto­
pia, diz que “o classema /animal/” se repete em chien e aboie, o que
catacteriza a manifestação da isotopia. Mas esse entendimento, a meu
ver, termina sendo inconveniente e estreito se não o relacionamos com os
conceitos que Greimas exprime na segunda frase da primeira definição.
Isto é, creio que para que a isotopia se configure devemos ter, certa­
mente, a repetição de um mesmo classema, mas tal repetição produz
sentido unicamente quando as frases ou os textos não forem isomorfos.
Quero deixar claro, por conseguinte, que a isotopia de le chien aboie
não me interessa pelo simples fato de que ela se realiza num espaço se-
miótico isomórfico ao nível da frase, o que faz com que a explicação de
Rastier se impregne de certa obviedade tautológica. Por isso, já que não
desejo me deter nessa controvérsia, a isotopia que me servirá de mo­
delo é a que se engendra na redundância de classemas subjacente ao de­
sespero cuja repetição, nas duas estórias que venho comentando, leva a
efeito o conflito de sentido sobredetenninado por /curiosidade/ e /desi­
lusão/.
Com base, pois, nesse modelo isotópico não me parece difícil
montar um corpus que me permita descortinar alguns dos traços mais rele­
vantes das inconfundíveis criações de Quino e entrever algo da trágica
condição humana que se oculta nas máscaras do riso. E pára que o leitor
firme a idéia de que o desespero, entendido como uma perda definitiva
da esperança, inscreve o humor do famoso cartoonista no âmbito do pa­
tético, é suficiente, acredito, transcrever a apocalíptica e derradeira cena
da Foto 1 (no final do artigo).
Tenho para mim, porém, que as redundâncias subjacentes a que se
refere Greimas podem, com certeza, servir para aperfeiçoar o modelo de
isotopia e, conseqüentemente, fazer que de sua aplicação resulte, para
benefício deste trabalho, um corpus mais reduzido e funcional. Vale di­
zer, por conseguinte, que o corpus não será estabelecido a partir de
substâncias semânticas cognitivas ou tímicas, já que a isotopia somente é
observável no espaço semântico constituído pelas formas do conteúdo -
ou seja, no espaço semântico construído por combinatórias sememáticas
diferentes em que a redundância se faz presente pela repetição de um
sema ou classema que confere a cada uma das combinatórias um traço
comum
Em Sémiologie Psychoanalytique, Maria Carmen Gear e Ernesto
César Liendo, ao estudar os fenômenos de repetição em situações tera­
pêuticas, mostram como os relacionamentos seguem, com freqüência,
moldes tipicamente narcisísticos: analistas e pacientes compartilham um
imaginário simetrismo especular e, quando menos se espera, a narrativa
que ambos vão construindo emerge desse jogo de espelhos onde os rostos

SIGNIFICAÇÃO N9 7 - OUT 87 29
dos protagonistas, coadjuvados pelos fantasmas da psicose, se confundem
e se emaranham em programas narrativos cujos objetos de valor são, no
geral, autênticas crises de identidade. As perturbações do paciente são
recebidas com certa passividade pelo analista e, com base nessa impres­
são, o próprio paciente contribui inconscientemente para criar uma at­
mosfera psicótica que, errática, invade os palcos da linguagem e envolve
os sujeitos dessa encenação numa nebulosa diluição da identidade que faz
com que o inconsciente domine, por completo, boa parte das cenas:
“É clássico dizer que na psicose, o incons­
ciente está na superfície, é consciente. É
mesmo por isso que não me parece que tenha
grande importância o fato de que ele seja ar­
ticulado. Nessa perspectiva, bastante instruti­
va em si mesma, nós podemos de início notar
que não é puramente e simplesmente, como
Freud sempre sublinhou, por esse traço ne­
gativo de ser um Unbewusst, um não-cons­
ciente, que o inconsciente tem sua eficácia.
Traduzindo Freud nós dizemos - o incons­
ciente, é uma linguagem. Que ele seja arti­
culado, não implica portanto que ele seja re­
conhecido. A prova é que tudo se passa co­
mo se Freud traduzisse um língua estrangei­
ra, e mesmo a reconstituísse por decupagem.
O sujeito está simplesmente, no que respeita à
sua linguagem, na mesma relação que Freud.
Partindo da idéia de que alguém pudesse fa ­
lar uma língua que ignore totalmente, nós di­
ríamos que o sujeito psicótico ignora a língua
que fala.”7
Tal sucede, por exemplo, na situação plasticamente encenada pelo
gênio de Quino que vemos na Foto 2 (no final do artigo). Aí a crise de
identidade se toma visível e os gestos da repetição produzem condições
significantes excelentes para que se manifeste o tipo de isotopia que real­
mente me interessa: trata-se da formação de conteúdos em que se integram
em sememas comprometidos com a subjetividade ou com classemas subja­
centes a mensagem dessa linguagem inconsciente que a personagem do
cartoon reproduzido, enquanto sujeito semiótico de um enunciado narrati­
vo, não sabe traduzir.
A vista do exposto, julgo legítimo contar com a premissa de que
a repetição de sememas formalizadores do conteúdo de desespero reite­
ra, em vários cartoons de Quino, um classema subjacente ao subconjunto
de semas conotativos de cuja seleção depende o tipo de combinatória em
que se manifesta a crise de identidade. No quadro dessa hipótese creio
não ser difícil trabalhar com o pressuposto de que, em termos de conota­
ção, a isotopia que será utilizada para a demarcação do corpus tem su­
porte em processos de analogia, isto é, em arranjos de sememas que re­
metem a significados especulares. Dessa perspectiva, parece pertinente

30 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


orientar a leitura dos cartoons para aquelas áreas das mensagens plásticas
em que

“a iconicidade em si será fincdmente definida


como a produção de um efeito de sentido de
realidade, característico não de tãfíínguagem
õü de taVsigno mas de um certo tipo de dis­
curso que explora as conotações sociais e,
entre outras, o que tal sociedade pensa de
suas diferentes linguagens quanto a suas re­
lações respectivas à realidade.” 8
Para tal fim me é necessário, por conseguinte, lidar com mecanis­
mos de categorização plástica que permitam, com certo grau de rigor,
assinalar as áreas das mensagens em que a especularidade se explicita ou
se implicita e, nesse particular, o corpus será constitufdo, principalmente,
de imagens em que a especularidade explícita é uma constante. Mas, por
outro lado, a isotopia da especularidade se reporta a um conteúdo em que
a problemática do sujeito e da identidade sempre estarão em jogo e,
nesse sentido, o corpus se reduzirá ainda mais, fazendo-se mais preciso
na iconicidade cujo efeito de sentido provém não da realidade exte­
rior, natural ou objetivamente fabricada, mas da realidade interior
em que se localizam os reinos do inconsciente.
Em “Remarques sur la fonction du langage dans la découverte
freudienne”, capítulo VII de Problèmes de Linguistique Générale,
Benveniste, argutamente, observa que o analista
“opera sobre aquilo que o sujeito lhe diz. Ele
se considera no discurso que aquele lhe
apresenta, ele o examina em seu comporta­
mento locutório, “fabulador'’, e através des­
ses discursos se configura lentamente para
ele um outro discurso que ele se encarregará
de explicitar, o do complexo oculto no in­
consciente. Da mise au jour desse complexo
depende o sucesso da cura, que testemunha
por sua vez que a indução era correta. Assim
do paciente ao analista e do analista ao pa­
ciente, o processo inteiro se opera pelo por­
ta-voz da linguagem.”9
O que mais me impressiona dessa passagem é a lucidez com que o
conhecido lingüista penetra num dos pontos relevantes e atuais da teoria
de Freud. Mas, no atinente à cura, confesso que meu interesse é muito
frágil, pois, a esse respeito, não gostaria de cair na armadilha dolorida-
mente condenada por Antônio Machado quando constata que
“En el corazón tenía
la espina de una pasión;
logré arrancármela un dia;
ya no siento el corazón.”

SIGNIFICAÇÃO N® 7 - OUT 87 31
Talvez em virtude disso, desejo reler o fragmento de Benveniste
procurando me desviar das trilhas por onde, tranqüila, costuma caminhar
a ingênua clarividência. Prefiro vagar nas entrelinhas carregando sempre
a expectativa de quem vive com a idéia fixa de se encontrar com os fan­
tasmas da sigmficância ou do sentido obtuso, como queria Roland Bar-
thes. Ao proceder dessa maneira, sinto que as palavras de Benveniste me
envolvem numa espécie de labirinto feito de espelhos —imaginários es­
pelhos - e, de repente, sem saber exatamente o porquê, tenho a sensação
única de quem convive com a certeza de que as imagens do “complexo
oculto no inconsciente” se refletem, com mais ou menos nitidez, nesse ou­
tro sintagma em que se declara que “o processo inteiro se opera pelo porta-
-voz da linguagem”. Fico, enfim, seduzido pela visão de que essa primeira
frase é a imagem que ganha fantasmagórica corporalidade através do “por­
ta-voz da linguagem” e, ao atingir esse estado, me apercebo para entrar, com
plenitude, nos domínios da significação que se vislumbram nas entrelinhas.
Não creio, contudo, que tal atitude seja fruto de um excesso de fantasia ou de
uma falsa alucinação. Acredito firmemente na minha intuição e acaricio a
certeza de que na questão da ordem simbólica, como reconhece Américo
Vallejo10, está presente uma questão relativa ao ser do sujeito, uma espécie
de carência constitutiva que, enquanto fenômeno do inconsciente, deixa
marcas na enunciação e nos enunciados por onde circula o desespero do
pintor existencialista do pacato cidadão sanchopancesco e, evidentemente,
do atlético operário que, colérico eaturdido, não rompe suaaparente identi­
dade no espelho porque o espelho não lhe devolve a imagem que ele, de­
pois desses rodeios, possa estraçalhar.

Em suma, quero crer que, depois desses rodeios, possa, finalmente,


apontar o traço responsável pela homogeneidade do corpus por mim
estabelecido: trata-se de cartoons em que o espelho, de um lado, irradia
efeitos de realidade aparencial produzidos pela iconicidade que faz de­
les objetos facilmente reconhecíveis e habituais, e, de outro, exibe pro­
cessos de ruptura onde se localizam marcas da enunciação que a
teoria semiótica, em nome de paranóicas imanências, não quis, no
geral, analisar. 11

As realizações do imaginário
A enunciação converte a língua em discurso ou, em outras pala­
vras, a enunciação, enquanto operação semiótica, sobredetermina um su­
jeito e, conseqüentemente, traz à baila os enigmáticos sintomas da identi­
dade camuflados no que Benveniste denomino» instâncias discursivas.
Nelas e mediante um constante jogo de contrastes, os indícios da identi­
dade se escondem, assim como, desdenhada por Narciso, se escondeu,
vergonhosa desse desprezo, a ninfa Eco, sutilmente sugerida nesta passa­
gem de “De la subjectivité dans le langage”:

“A consciência de si só é possível se ela se


prova por contraste. Eu somente emprego eu
me dirigindo a alguém, que será em minha

32 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


alocução um tu. Ê esta condição de diálogo
que é constitutiva da pessoa, porque ela im­
plica em reciprocidade que eu me torne tu na
alocução daquele que por sua vez se designa
por eu. É a í que nós vemos um princípio cu­
jas conseqüências devem ser desenvolvidas
em todas as direções. A linguagem só é pos­
sível porque cada locutor se coloca como
sujeito, devolvendo a si próprio como eu em
seu discurso. Desse fato, eu postula uma ou­
tra pessoa, aquela que, sendo exterior a
“num”, toma-se meu eco ao qual eu digo tu e
que me diz tu . A polaridade das pessoas, tal é
na linguagem a condição fundamental, em
que o processo de comunicação, do qual nós
partimos, não é senão uma conseqüência
pragmática. Polaridade aliás muito singular
em si, e que apresenta um tipo de oposição de
que não encontramos em nenhuma parte, fo ­
ra da linguagem, equivalente. Essa polarida­
de não significa igualdade nem simetria: “e-
go” tem sempre uma posição de transcendên­
cia relativamente a tu; entretanto, nenhum
dos dois termos se concebe sem o outro; eles
são complementares, mas segundo uma opo­
sição ‘‘interior/exterior ’, e ao mesmo tempo
eles são reversíveis. Procure-se um paralelo:
não se encontrará. Única é a condição do
homem na linguagem.”12

Quero crer, por conseguinte, que a relação eu: tu não soluciona o


problema da subjetividade: ela funciona, falando metaforicamente, como
se fosse a entrada dos rochedos cavernosos em que a ninfa das águas se
abrigou à espera de alguém que a chamasse, à espera, portanto, de uma
voz que ela, do fundo do seu esconderijo, repetiria, distante, imitando,
com sua resposta, a imagem sinestética do narcisismo. Agindo dessa ma­
neira, Eco provava o que muitos e muitos séculos depois intuía Freud ao
dizer que, em essência, “uma palavra é, em última análise, o resíduo
mnêmico de uma palavra que foi ouvida.” 13 Nesse aspecto, não há como
negar a perspicácia e o alcance das intuições de Benveniste, embora seja
de se admitir, por outro lado, que, em nome de uma semiótica geral, a
grande maioria dos semioticistas que estudaram os processos de enuncia­
ção tenha caído na armadilha de se encantar, ingênuos, com o eco das
palavras como se ele fosse a “realidade” De modo que, nesse quadro de
valências, a relação eu:tu, enquanto máscara do sujeito e da sua identida­
de, foi utilizada, principalmente, para formular questões cuja solução
nunca ultrapassou as fronteiras impostas pelo imperialismo do referente,
já que, a partir de um entendimento relativamente estreito de alguns con­
ceitos de Benveniste, os semioticistas da enunciação vincularam o cha­
mado “appareil formei du discours” ao aqui e ao agora de uma dimen-

SIGNIFICAÇÃO N5 7 - OUT 87 33
sâo espaço-temporal pertencente, segundo eles, ao sujeito da enunciação.
Essa paradoxal atitude me levou a pensar que a dualidade eu:tu, quando
vista em termos de um aqui-agora determinados única e exclusivamente
pela exterioridade, constitui, na verdade, o plano da expressão de um
sistema de relações cujos valores de semiose ficam sem definição, ao que
tudo indica, pelo simples fato de que da oposição exterior/interior é
considerada tão somente um elemento. Dessa perspectiva teórica, pois,
da expressão da subjetividade faria parte o eco da identidade, razão pela
qual a relação eu:tu seria, em termos freudianos, apenas uma representa­
ção de palavra desvinculada, ao que tudo indica, da representação de
coisa.
Tenho para mim, diante do exposto, que uma leitura pautada por
esses princípios empobrece o trabalho interpretativo do enunciatário. Tal
se poderá constatar, por exemplo, se aplicarmos ao cartoon de Quino re­
produzido na Foto 3 (no final do artigo) o modelo referencial da enuncia­
ção formulado desta maneira por Jean-Pierre Desclés:
“Os enunciados declarativos têm por valor
referencial situações. Certas situações são
estáticas, ou, mais propriamente, estativas,
outras são dinâmicas. As primeiras permane­
cem estáveis durante um certo intervalo tem­
poral onde nem começo nem fim são contem­
plados. Por exemplo o enunciado:
(1) João está em Paris
admite uma proposição subjacente:
(1’) “ João estar-em Paris”
que é verdadeira sobre um intervalo temporal
aberto ]e, d[:

Em cada instante do intervalo ]e, d[, o valor


de (V) é “o verdadeiro”
Sob o nome de proposição, nós entendemos
aqui designar uma expressão constituída por
operações de predicação; ela tem por valor
lógico ora “o- verdadeiro”, ora “o-falso”
Um enunciado é então uma expressão lin­
güística constituída por dois tipos de opera­
ções: as operações de predicação e as opera­
ções de enunciação, A enunciação contribui
para fixar as coordenadas referenciais da
proposição subjacente ao enunciado, quer
dizer, para determinara posição da proposição
no espaço referencial do enunciador.” 14

Em primeiro lugar, se a enunciação contribui para fixar as coorde­


nadas da proposição subjacente ao enunciado, o cartoon acima reprodu­
zido coloca em questão, numa leitura baseada na isotopia narcisista, as

34 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


coordenadas referenciais de Desclès: assim, uma das proposições subja­
centes ao enunciado poderia ser, usando os conceitos desse autor, 2 se­
nhores - sentar - à - mesa e 1 garçom-estar-em-pé em-bar-diante-
dum-espelho. No caso, a operação de enunciação conduz a um resultado
dilemático devido ao fato de que, basicamente, a referencialização da
proposição ou proposições em questão, a valorizar tão somente um espa­
ço relativo à exterioridade do enunciador, projeta, no espaço semiótico
propriamente dito, marcas que contradizem os valores da dimensão am­
biental ou exterior: no espelho não se reflete a imagem de uma das
personagens, fenômeno que, de modo explícito, contraria os princípios da
realidade situacional representada pelo sujeito enunciador. Mesmo que,
na condição de enunciatário dessa mensagem, eu tentasse analisar o plano
do conteúdo seguindo o modelo de enunciação enunciada de Manar
Hammad, seria
“a distinção /enunciação/ vs /enuncia­
do/ provém do plano do conteúdo, e ela é in­
diferente a sua expressão."15
Prefiro, no que diz respeito ao trabalho desse autor, ficar com as
idéias que me sugere o que ele chama de 1’effet de miroir du discours,
pois, nelas, encontro elementos metalingüísticos capazes de me auxiliar,
de maneira decisiva, na compreensão do importante papel que desempe­
nha o mito de Narciso - especialmente o narcisismo primário a que se
refere Freud em seu estudo Uma introdução ao narcisismo - no cartoon
de Quino.
O chapéu no cabide, a inclinação do garçom, a acentuada gestuali-
dade da personagem que faz o pedido, o maço de cigarros sobre a mesa,
enfim, os componentes da cena refletidos no espelho e a ausência da
personagem de paletó preto na superfície desse mesmo espelhoconsti­
tuem, mesmo em conjunto, um “effet de miroir du discours” ,mas, no
caso, um efeito que produz uma espécie de configuração alucinatória
cujo conteúdo se relaciona, em certa medida, com o sentido procurado
por Lacan em “Le point de capiton” quando diz:
“O sujeito escuta com seu ouvido alguma
coisa, mas o que ele escuta existe ou não
existe? É evidente que não existe, e que por
conseqüência, é da ordem da alucinação,
vale dizer de uma percepção falsa. Isso é su­
ficiente?" 16
Creio que o cartoon de Quino responde negativamente à pergunta
laraniana, embora o que me interessa não é precisamente a denotação da
resposta: o que me intriga é o fato de que, mesmo sendo fruto de uma
percepção falsa, a alucinação nasce de uma percepção. Ela se faz
presente na representação plástica da cena do restaurante quando per­
cebo que a imagem da personagem do paletó preto se ausenta da super­
fície do espelho: acredito, pois, que se noto a ausência é porque a perce­
bo e essa percepção não é, exatamente, uma percepção verdadeira. Por
outro lado, assim como o sujeito que escuta pode escutar algo que não

SIGNIFICAÇÃO N* 7 - OUT 87 35
existe - o eco, por exemplo, não me prova a existência da ninfa das
águas o sujeito que vê pode, por sua vez, ver algo que não existe ou
que não está lá. A esse respeito é significativo constatar que o próprio
Lacan afirme que
“O olhar não se situa simplesmente ao nível
dos olhos. Os olhos podem muito bem não
aparecer, ser mascarados. O olhar não é o
rosto de nosso semelhante, antes porém, a ja­
nela da qual nós supomos que ele nos espia.
É um x, um objeto diante do qual o sujeito se
toma objeto."17
Talvez a ausência da imagem refletida no espelho seja, na arquite­
tura da mensagem plástica, a abertura que deixa passagem para o lugar
de onde o autêntico sujeito da enunciação espreita e, sendo assim, a per­
cepção referida somente é falsa no que diz respeito aos referentes que
integram o universo da exterioridade, já que, em termos de uma referen-
cialidade pertencente à topologia do inconsciente, essa mesma percepção
encontre razão de existência em perceptos que não são fixados pelos po­
deres da consciência. Nessa hipótese, o effet de miroirdos cartoons de
Quino mereçam uma leitura que arme o tear com que o enunciatáno en­
trelace contextos formadores das configurações da identidade.
No desenho da Foto 4 (no final do artigo) é possível observar esse
effet de miroir em que a subjetividade se oferece ao leitor através das
rupturas especulares: nem sempre o espelho reflete a “realidade que lhe
foi colocada na frente e nem sempre a “realidade” que lhe foi colocada na
frente ocupa, na superfície do espelho, o lugar que os chamados fenôme­
nos de ótica lhe determinam. Ocorre com essa realidade algo semelhante
ao que Lacan assinala ao dizer que quando
“você vê um arco-íris, vê alguma coisa intei­
ramente subjetiva. Você o vê a uma certa
distância, atravessando sobre a paisagem.
Ele não está lá. É um fenômeno subjetivo. E
no entanto, graças a um aparelho fotográfi­
co, você o registra sem dúvida objetivamente.
Então, o que é isso? Nós não sabemos mais
muito bem - não é? —onde está o subjetivo,
onde está o objetivo. Ou então não seria que
nós temos o hábito de fazer em nosso curto
entendimento uma distinção muito sumária en­
tre o objetivo e o subjetivo? O aparelho foto­
gráfico, um aparelho subjetivo, inteiramente
construído com o auxílio de um x e de um y
que habitam o domínio onde vive o sujeito,
quer dizer, aquele da linguagem?” 18
Parece, pois, que as idéias de Lacan não vão de encontro ao pen­
samento de Benveniste sobre a linguagem e a subjetividade. Nesse par-
cular, creio que, no cartoon em questão, o effet de miroir estrutura,

CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


36
com esse jogo de indefinições e rupturas, o percurso de uma configura­
ção discursiva relacionada com a complexa problemática da identificação.
Assim temos, em termos metalingüísticos, o seguinte esquema orientador
da leitura:

-C onfiguração discursiva [“identificação”]

- Definida como Processo pelo qual um indiví­


duo assimila um aspecto, uma
propriedade, um atributo do
outro e se transforma, total ou
parcialmente, segundo o mo­
delo dessa pessoa, já que a
personalidade se constitui e se
diferencia por uma série de
identificações.

- Percurso figurativo 1 2 3
4r ^ -Jr
estágio narcisismo narcisismo
do primário secundário
espelho

A identificação, enquanto aspecto virtual, permite que sejam reali­


zadas tantas leituras quantos forem os percursos figurativos levantados.
No que diz respeito ao corpus deste trabalho, é evidente que poderiam
ser levantados muitos outros percursos figurativos, devido à opacidade
poética da obra de Quino. Mas, sendo minha intenção me deter tão so­
mente em percursos que atualizem particularidades semióticas relaciona­
das com o narcisismo, a tarefa de leitura ficará, evidentemente, reduzida,
limitada mesmo âs marcas da enunciação e à maneira como elas se dei­
xam perceber em textos plásticos. Cabe advertir, no entanto, que as mar­
cas que aqui me interessam fazem parte da interioridade, isto è,d a subjé- ^
tividade que se implica no que Lacan entende pòr sujeito barrado ($).
Justifico essa minha opção porque julgo que o narcisismo primário, tal
qual pensado por Freud e estudado por Green e Lacan, se vincula a esse
tipo de subjetividade. Quanto ao percurso do narcisismo secundário, mi­
nha proposta de leitura não lhe dará tanta atenção, já que ele, ao que tudo
indica, constitui um iconismo de fácil percepção.
Ao situar a figura formada pela ausência da imagem refletida no
espelho no percurso figurativo do narcisismo primário, tenho para mim
que essa figura emparenta, no atinente ao significado, com algumas das
idéias de que se vale Freud para definir o chiste, como, por exemplo se
constata nesta passagem:

SIGNIFICAÇÃO N® 7 —OUT 87 37
"O chiste comporta no mais alto grau o ca­
ráter de uma “idéia súbita” involuntária. Ig­
nora-se o instante que precede o traço cômi­
co que se vai disparar e que não se necessita­
rá revestir de palavras. Experimenta-se antes
alguma coisa indefinível, que se assemelharia
a uma ausência, a uma supressão súbita da
tensão intelectual, depois de repente o chiste
surge, quase sempre paramentado das pala­
vras que o revestem "19
Não é outra a impressão que fica quando notamos a ruptura que se
estabelece entre o espelho e a personagem do paletó preto. Esse arranjo
ou combinatória plástica faz rir, como faz rir um chiste. Mas, quando
cessa o riso, percebemos que tanto na gestualidade da personagem
quanto na ausência de sua imagem no espelho o cartoon expressa algo
indefinível: de um lado, a perda súbita da tensão intelectual conota, ao
nível da enunciação e do enunciado, a presença de algo inconsciente
que projeta marcas na enunciação e se representa nas personagens, e,
outro, o caráter involuntário de o chiste que se configura na cena denun­
cia a invisibilidade presente do sujeito barrado, isto é, Quino traz ao
espaço material da expressão a dimensão imaginária do narcisismo pri­
mário. Não se trata, portanto, de representar, considerando a oposição
exterior/interior, o que a semiótica, em geral, admite como referente.
Trata-se de representar, isso sim, a subjetividade tal como definida por
Lacan e, em parte, por Benveniste. Ou, para ser mais preciso, o que mi­
nha interpretação quer mostrar é que, nesse desenho e nos outros do cor-
pus, aparece representada plasticamente a barra que a relação imagi­
nária estabelece entre o sujeito (S) e o Outro (Autre) neste conhecido
esquema lacaniano.

Aí temos a interrupção
“da fala plena entre o sujeito e o Outro, e seu
desvio pelos dois mim, a e a ’, e suas relações
imaginárias. Uma triplicidade é aqui indica­
da no âmbito do sujeito, que recobre o fato
de que é o mim do sujeito que fala normal­
mente a um outro, e do sujeito, sujeito S, em

36 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÔTICOS


terceira pessoa. Aristóteles fazia notar que
não se deve dizer que o homem pensa, mas
que ele pensa com sua alma. Assim também,
eu digo que o sujeito se fala com seu mim.”20
Enfim, parece-me que o percurso figurativo do narcisismo primá­
rio abre possibilidades de leitura que não existem nesse jogo alucinatório
que, em nome da pertinência semiótica, foi armado por alguns seguidores
da teoria greimasiana aplicada às manifestações visuais. No caso dos
cartoons de Quino que integram o corpus deste trabalho, a ruptura que o
cartoonista cria ao quebrar o princípio de correspondência entre imagens
referenciais e imagens especulares serve para provar que, mesmo pare­
cendo paradoxal, as marcas da enunciação não se explicam tão somente a
partir da relação com o aqui e o agora do enunciador: é necessário, se
queremos penetrar em camadas mais fundas da significação, reconhecer
que o inconsciente faz parte, também, do universo referencial. Dessa
maneira, as configurações da identificação e a imensa riqueza de seus
percursos figurativos na arte de todos os tempos e lugares descortina no­
vos horizontes para as análises semióticas.
É mister, por conseqüência, trazer ao campo das práticas de leitura
instrumentos teóricos que se engendrem num entendimento mais amplo
dos processos de produção e recepção dos textos artísticos. Trazer, como
fez Luc Régis em seu excelente ensaio Le seara fié et le tatoué. Appro­
che d ’un système semi-symbolique (Documents, VII, 64,1985), novas
formas de homologação que auxiHem, de maneira original, nos exercícios
de leitura. Por isso, e sem maiores pretensões, desejo finalizar este tra­
balho apresentando, com base no já exposto e tomando como texto ob­
jeto o desenho da Foto 5 (no final do artigo), uma, a meu ver, sugestiva
forma de homologação. Para tanto, parto da idéia de que, nesse texto vi­
sual, o dilema da identificação, além de se tornar mais dramático em função
de uma visão descontínua do presente, desencadeia, com a ruptura ditada
pela não coincidência de imagens e momentos referências com imagens
e ações refletidas no espelho, um processo de regressão mediante o qual
a subjetividade passa a fazer parte do espaço semiótico. Outra vez, pois,
o sujeito barrado ($) é representado por esse tipo de rompimento, o que
me permite estabelecer a invariável desta homologação:

la identidade das imagens la não correspondência


refletidas com as imagens de imagens por causa da
referenciais externas! ruptura!

“Narcisismo secundário” “Narcisismo primário”

Tal princípio, em suma, orienta uma leitura sistemática de boa


parte da obra do famoso artista argentino. É só navegar com ele para vi­
ver a grande aventura de que a gente, enquanto enunciatário e sujeito da
leitura, sonha estar singrando o m are nostrum da subjetividade.

SIGNIFICAÇÃO Ns 7 - OUT 87 39
NOTAS
1 Fontanille, J.: Le Désespoir, Documents, ne 16,1980, p.21.
2 Cf. Parret, H.: Éléments pour une typologie raisonné des passions, Documents,
IV, 37,1982.
3 Não faz parte deste trabalho, por razões de compreensão, um estudo pormenori­
zado das formas narrativas e discursivas dos cartoons.
4 Greimas, A.J.: Du Sens. Éssais Semiàtiques, Paris, Seuil, 1970, p. 10.
5 Cf. Rastier, F.: Le développement du concept disotopie, Documents-, III, 29,
1981,p.6/9.
6 Greimas, AJ.: Sémantique Structurale, Paris, Larousse, 1966, p.53.
7 Lacan, J.: Le Séminaire (Livre III-L es Psychoses), Paris, Seuil, 1981,p.20.
8 Floch, J-M.: Petites Mythologues de Foeil et de Fesprit. Pour une Sénüotique Plas­
tique, Éditions Hades-Benjamins, Amsterdam, 1985, p.12.
9 Benveniste, É.: Problèmes de linguistique générale, Paris, Gallimard 1966, p.
75/76. _____ ____________ ______________
10 Cf. Vallejo, A. e Magalhães, L.C.: Lacan: Operadores de Leitura, São Paulo,
Perspectiva, p.78.
11 Utilizo, para a constituição do corpus, somente os seguintes livros de Quino: Dé-
jenme Inventar, Yo que usted..., Mundo Quino, Ni Arte Ni Parte, Gente en su sitio
e Bien, Gradas Y Usted?
12 Benveniste, É.: op. dt„ p.260.
13 Freud, S.: O Ego e o ld fe outros trabalhos), O.C., v. XIX, Rio de Janeiro, Imago
Editora, 1976, p.34.
14 Desclés, J-P.: Représentation des Connaissances, Documents, VII, 69,1985, p.5.
15 Hammad, M.: “V énonciation: Procès et Système” , in Langages, ne 70 1983,
p.45.
16 Lacan, J.: op. dt., p.293.
17 Lacan, J.: Le Séminaire (Livre I: Les écrits techniques de Freud), Paris, Seuil,
1975,p .245.
18 Idem, p. 91.
19 Freud, S.'. Le mot d’esprit et ses rapports avec ï inconscient, Paris, Gallimard, p.
278.
20 Lacan, J.: Le Séminaire (Livre III: Les Psychoses), op. cit., p.23.

As reproduções fotográficas dos desenhos de Quino foram feitas por Eduardo Pe-
nuela e as traduções dos originais franceses são da responsabilidade de Paulo Eduar­
do Lopes.

RESUMEN
El presente trabajo se vale de un modelo isotópico inspirado en la teoria
greimasiana para establecer un corpus que se compone de varios cartoons de Quino.
El análisis de ese corpus tiene como principal objetivo la elaboración de un itinerário
de lectura que nos pueda revelar que Ias marcas de Ia enunciación no sem sencilla-
mente signos dei narcisismo secundário, sino, esencialmente en los mensajes especu­
lares, vestigios de algo que, en la teoria freudiana, se relaciona con los procesos dei
narcisismo primário.

40 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


As fotos reproduzidas nesta página e na seguinte foram tiradas de:
Quino. 1983. Déjenme inventar. Barcelona, Editorial Lumen

FOTO 2

SIGNIFICAÇÃO N9 7 —OUT 87 41
FOTO 3

FOTO 4

42 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


© Quino, 1983

FOTO 5

SIGNIFICAQÄO NS 7 - OUT 87 43
Contextos postos e pressupostos:
o lugar do histórico e do mítico
na obra de Jorge Luís Borges
EDWARD LOPES
(Professor Titular do Instituto de Letras,
Ciências Sociais e Educação da UNESP -
Departamento de Literatura)

Isotopias figurativas: sentido contextuai


É tentadora a idéia de conceber a isotopia da mensagem como o
sentido contextualmente construído por meio do mecanismo da citação.
Nessa ordem de idéias, poder-se-ia afirmar que qualquer parte de um
discurso cita alguma outra, funcionando uma delas como um relatum
citante e a outra como o seu correlato citado:
- o relatum citante localiza-se como um segmento segundo, sg2, naquela
parte do discurso que se está a ler como isto (= este assunto), aqui e
agora, que leio neste preciso instante da enunciação;
- o correlato citado localiza-se como um primeiro segmento, sg1, que
percebemos, ao ler o relato citante do sg2, como aquilo (= aquele as­
sunto) que li (ou que lerei), lá, então, no contexto do discurso X (Dx).
É através da citação isotópica que vem a realizar-se, sintagmati-
zando-se na mensagem, a replicabilidade, essa propriedade paradigmá­
tica do código que possibilita a construção do texto mediante a interpre­
tação de uma parte da mensagem por outra parte. Assim, o sentido do
relato citante, o sg2 do discurso Dx, é dado por sua relação com o corre­
lato citado, o sg1, que se toma como o contexto de Dx. E, como tudo o
que tem sentido exprime-se no mínimo duas vezes no interior da mesma
mensagem (o que se exprime uma única vez não tem sentido), diremos
que toda e qualquer parte de um discurso só adquire uma forma e um
sentido quando a interpretamos, na prática significante da leitura, como
uma réplica, que opera a metamorfose reconfigurativa de alguma outra
parte do contexto da mesma mensagem.
Nestes termos, a réplica (o sgO constitui tuna referência para um
referente (o sg1) portador da informação contida em um contexto que
ela, réplica, se encarrega de interiorizar no discurso da mensagem.
Mas, se o lugar da referência não causa nenhum problema, uma
vez que ela se define no próprio segmento-objeto que se está a ler, a cada
instante, como isto, aqui e agora, já o lugar do referente varia na de­
pendência da variação dos contextos que localizemos para o discurso Dx.
No nosso modo de ver, os discursos contêm contextos postos e
contextos pressupostos:
- o contexto pressuposto de um discurso Dx é outro discurso, Dy;
em sentido amplo, todos os demais discursos (Dy, Dz,..., Da,...) com os

44 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


quais Dx se articula para constituir a totalidade de uma cultura (uma
cultura = todos os discursos, verbais e gestuais, produzidos por uma comu­
nidade); e, de modo mais restrito, é contexto pressuposto ocorrencial
de um discurso Dx todo e qualquer outro discurso, Dy, que Dx cite, di­
reta ou indiretamente, e do qual nos lembremos perante Dx, associando-
0 a ele, por estar, esse outro discurso Dy, estocado em nossa competência
de enunciatários como referente atual de Dx, em nossa cultura (atual =
pronto, em vigência e disponível em competência);
- o contexto posto de um segmento do discurso Dx é outro segmento
do mesmo discurso Dx, quer dizer, todos os demais segmentos que em
Dx restaram depois que dele extraímos, por meio de nossa performance
interpretativa, o segmento (sg2) cujo referente (sg1) queremos conhecer.
Sendo referência, assim, o segmento que se está a ler como opera­
dor da recuperação de uma informação citada, originalmente contida em
um contexto, e sendo referente, por conseguinte, a informação recupe­
rada de um contexto (nunca uma “coisa da realidade extradiscursiva”
como pensa a falácia realista), podemos reconhecer dois diferentes tipos
de referentes, conforme sejam eles segmentos correlatos de um contexto
posto ou pressuposto:
1 - O sg1 que provenha de um contexto pressuposto (i. é, de outro dis­
curso), constitui um referente intertextual para a referência do
sg2, em Dx;
1.1 - Da articulação da referência com um referente intertextual
resulta um intertexto, que funciona, na textualização, como
o interpretante do contexto pressuposto da referência
(sg2):
Interpretante Sgl/D y/ vs Sgf/D xl
do contexto ----- 1----------------- 1-----
pressuposto (ou — 4 4
intertexto) do Referência vs Referente
sg2 no Dx Intertextual
no Dy
1.2 - A referência que é réplica do plano de conteúdo de um refe­
rente intertextual constitui uma paráfrase intertextual; a
v que for réplica do seu plano de expressão, constitui um pa-
ragrama intertextual;
2 - O sg1 proveniente de um contexto posto (= de outra parte do mes­
mo discurso, Dx) constitui um referente intratextual para a refe­
rência sg2, em Dx;
2.1 - A articulação da referência com um referente intratextual
produz um intratexto, que funciona, na textualização, como
o interpretante do contexto posto da referência (sg2):
Interpretante Sg2/D x/ vs SgVD x/
do contexto — I J
posto (ou in- Referência vs Referente
tratexto) do sg2 do Dx Intratextual
no Dx

SIGNIFICAÇÃO N9 7 - OLÍT 87 45
2.2 - A referência que é réplica do plano de conteúdo de um re­
ferente intratextual constitui uma paráfrase intratextual;
a que for réplica do seu plano de expressão, constitui um
paragrama intratextual;
3 - A função referencial, com que vamos nos preocupar neste traba­
lho, é constituída de paráfrases intertextuais e intratextuais (não nos
deteremos, pois, na consideração da função poética, constituída de
paragramas inter e intratextuais).
Eis um resumo visual de quanto se viu até aqui:

Citação Isotópica

Sg* - REFERÊNCIA Sgl -REFERENTE

A figura -ocorrencial que, como isto que A figura-tipo que se recorda, ao ler o
se lê, aqui e agora, recupera a informa­ Sg2 da referência, como aquilo que se
ção contida no Sgl, interiorizando no leu, lá, então, no Sgl, como figuração
Dx. citada no contexto de Dx

CONFIGURAÇÃO FIGURAÇÃO CITADA


CITANTE NO Dx NO CONTEXTO DE Dx

RÉPLICAS
Figuração cita­ Figuração cita­
da em outra da em outro dis­
Réplica do Réplica do parte do mesmo curso Dy
Intertexto Intratexto discurso Dx

REFERENTE
Do Plano Do Plano Do Plano Do Plano REFERENTE DO
deExpr. deCont. deExpr. deCont. DO CONTEXTO
CONTEXTO PRES­
POSTO SUPOSTO
PARAGRA- PARÁFRA- PARAGRA- PARÁFRA­
MA INTER- SE INTER- MAINTRA- SEINTRA- INTRATEXTO INTERTEXTO
TEXTL. TEXTL. TEXTE. TEXTE.

\
Intertexto que é Intertexto que ê
constituinte de uma rràcronar-
uma micronar- rativa

Fig. 1 - 0 Mecanismo Dialógico da Citação Isotópica

46 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


Deixando de lado, no restante do artigo, os paragramas, vamos nos
ater unicamente às paráfrases, réplicas do plano de conteúdo dos refe­
rentes inter e intratextuais dos contos de Jorge Luís Borges.

Contextos pressupostos: o lugar de


inscrição do mítico em Borges
Utilizando a Fig. 1, acima, como modelo operacional, podemos
isolar dois diferentes referentes (sg1) para a obra de Borges, conforme os
localizemos no interior do mesmo discurso - referente intratextual, do
contexto posto - ou de outro discurso - referente intertextual, do con­
texto pressuposto.
Vejamos, inicialmente, o conto intitulado La Otra Muerte. Nele
se conta que um entrerriano natural de Gualeguay, Pedro Damián, por­
tou-se como um covarde na batalha de Masoller, em 1904, da qual esca­
pou para nela voltar a combater, nas imagens do delírio que precedeu
a sua morte, em 1946, quando, sonhando-se na figura de um herói, Da-
mián comandou a carga final da cavalaria e foi mortalmente baleado no
peito.
Escolhendo como sg2, relato citante, de referência, o segmento
da morte de Damián como um herói, na batalha de 1946, identificamos:
-com o referente intratextual, sg1, citado, o segmento que narra a
morte de Damián como um covarde, na batalha “real” de 1904.
A articulação

Sg*/Dx/ vs Sgl/D x/

constrói o interpretante do contexto posto, que fixa a interpretação:


a morte de Damián em 1946 anula a morte dele em 1904, permi­
tindo-lhe passar de covarde a valente, o que é um modo de recu­
perar a imagem heróica da sua antiga identidade,
que dá o sentido posto da referência (sg2).
É o que consta, aliás, no dizer do narrador borgiano:
“Damián se portó como un cobarde en el
campo de Masoller, y dedicó la vida a corre-
gir esa bochomosa flaqueza (...). Pensó (...):
Si el destino me trae otra bataüa, yo sabré
mereceria. (...) y el destino al fin se la trajo,
en la hora de su muerte. La trajo en forma de
delírio (...). En la agonia revivió su bataüa, y
se condujo como un hombre y encabezó la
carga final y una bala lo acertó en pleno pe-
cho. Así, en 1946, por obra de una larga pa-
sión, Pedro Damián murió en la derrota de
Masoller, que ocurrió entre el inviemo y la
primavera de 1904.”
(La Otra Muerte)

SIGNIFICAÇÃO N» 7 - OUT 87 47
-com o referente intertextual, sg1, citado, o segmento que alude,
através dos gritos de guerra, a outro discurso, Dy, que trata das batalhas
de Cagancha e índia Muerta, travadas há um século atrás:

“Algo me hizo preguntar qué gritaba el guri


Damián. - Malas palabras - dijo el coronel
que es lo que se grita en las cargas.
- Puede ser - dijo Amaro -, pero también
gritó” Viva VrquizaT
Nos quedamos callados. Al fin, el coronel
murmuró:
- No como si peleara en Masoller, sino en
Cagancha o índia Muerta, harâ un siglo.”

A articulação da referência com o referente, ou seja,

Sg*/DxJ vs SgVDy/

morte de Damián grito de “UrquizaT'


como um herói, nas batalhas de Cagancha
no delírio de 1946 e índia Muerta,
de um século atrás

constrói o interpretante do contexto pressuposto, que fixa a interpreta­


ção:
a batalha heróica de Damián em 1946 reproduz as batalhas de
Martin Fierro, de um século atrás, permitindo-lhe, reconvertido de
covarde em valente, recuperar a imagem heróica da sua identidade
social - quer dizer, mítica - de gaúcho,
o que constitui o sentido pressuposto da referência, sg1 (coisa, de
resto, que é explicitamente homologada pelo narrador de La Otra
Muerte:

“Damián, como gaucho, tenda obligación de


ser Martin Fierro

Os contextos pressupostos das ficções de Borges incluem, como


este acima demonstra, muitas vezes um fazer primordial, quer dizer, o
gesto fundador de uma divindade, um ser mítico ou um herói que, por
considerar-se autor de uma performance exemplar exprime, nela, um
modelo de comportamento para os atores de um relato, que repro­
duzirão esse fazer ao viver sua própria história. Veja-se, a propósito,
o jogo referencial tramado entre a referência (sg2) de Borges e o refe­
rente intertextual (sg1), de José Hemández:

48 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


REFERÊNCIA, em Borges REFERENTE INTERTEXTUAL,
Sg2: "De Alguien a Nadie” em Hernández
In: Otras Inquisiciones Sg1: Martin Fierro, VII
"Un gaucho alza a un moreno "Por fin, en una topada
con el cuchiüo, en el cuchillo lo alcé
lo tira como un saco de huesos, y como un saco de güesos
contra el cerco lo largué.

lo ve agonizar y morir, Tiró unas cuántas patadas


y ya cantó pa el camero.
Nunca me pude olvidar
de la agonia de aquel negro.
se agacha para limpiar el acero, Limpié elfacón en los pastos,
desata su caballo desaté mi redomón,
y monta despacio, monté despacio y salí
para que no piensen que huye.” al tranco pa el canadõn.”

Através do procedimento dessa reescritura, Borges monta, em seus


relatos, verdadeiras metamorfoses reconfígurativas de nobres e anti­
gos arquétipos míticos. Repetindo o arquétipo gestual fundado ao fa­
zer prim ordial do ente mítico, o ator humano de Borges se desliga do
tempo profano, do espaço imanente, e entra em contato com o tempo
mítico, do espaço transcendente, divino. Como diz o narrador, na conti­
nuação do trecho:
"..para que no piensen que huye. Esto que
fite una vez vuelve a ser, infinitamente; los vi-
sibles ejércitos se fiteron y queda un pobre
duelo a cuchiüo, el suefio de uno es parte de
la memória de todos."
("De Alguien a Nadie")
A reiteração do gesto primordial, ocorrido in ilk> tempore, ante­
rior mesmo à fundação da temporalidade, transpõe o ator humano para a
temporalidade transtemporal - a duração - do mito. Fundindo-se, aqui,
todos os tempos, é comum que surjam, ratão, relacionados a eles, vários
contextos pressupostos. É o caso do trecho a seguir, em que vemos fu­
sionarem-se quatro contextos pressupostos, um na alusão ao segmento
de abertura da 1 P arte do Quixote:
REFERÊNCIA, em Borges REFERENTE INTERTEXTUAL,
em Cervantes
Sg2: Historia de la Eternidad: Sg1: Don Quijote (1,1):

"Una suerte de gravitación fami- "En un lugar de la Mancha, de


liar me alejó hacia unos barrios cuyo nombre no quiero acordarme
de cuyo nombre quiero siempre (—)■”
acordarm ef...).”

SIGNIFICAÇÃO Ne 7 - OUT 87 49
outro na menção explícita ao espaço anterior aos tempos da Conquista,
barro de América no conquistada aún”, o terceiro na declaração “estoy
en mil ochocientos y tantos”, e o quarto na afirmativa “esto es lo mismo
de hace treinta anos:

"La tarde que precedió a esa noche, estuve


en Barracas (...). Su noche no tenía destino
alguno; como era serena, salí a caminar y re­
cordar (...). Una suerte de gravitación fami­
liar me alejâ hacia unos barrios de cuyo
nombre quiero siempre acordarme (...). No
quiero significar asi el barrio mio, el preciso
âmbito de la infanda, sino sus todavia miste­
riosas inmediaciones; confin que he poseído
entero en palabras y poco en realidade, veci-
no y mitológico a un tiempo. (...). La marcha
me deJÔ en una esquina (...). La visión (...)
parecia simplificada por mi cansancio. La ir-
realizaba su misma úpiddad. La calle era de
barro elemental, barro de América no con­
quistada aún. (...). Me quedé mirando esa
senciüez. Pensé(...): Esto es lo mismo de ha*
ce treinta anos/...) en ese ya vertiginoso si­
lencio no hubo más ruído que el también in-
temporal de los grillos. El fácil pensamiento
Estoy en mil ochocientos y tantos dejó de ser
unas cuantas aproximativas palabras y se
profundizó a realidad. Me senti muerto, me
senti percibidor abstrato dei mundo f...).No
creí, no, haber remontado las presuntivas
aguas dei Tiempo, más bien me sqspeçhé
possedor dei sentido (...) de la palabra
eternidad.
Sólo después alcancé a definir esa imagina-
ción. La escribo, ahora, asi' Esa pura repre-
sentación de hechos homogéneos noche en
serenidad, parecita límpida, olor provinciano
de la madreselva, barro fundamental -n o es
meramente idêntica a la que hubo en esa es­
quina hace tantos anos; es, sin parecidos ni
repeticiones; la misma. Et tiempo, si podemos
intuir esa identidad, es una delusión; (...) la
vida es demasiado pobre para no ser también
inmortal.”
(História de la Eternidad)

Se fixamos para referência, sg2, do trecho aqui transcrito, o relato


introdutório, la tarde que precedió a esa noche - a tarde do passeio do
narrador pelas ruas de Barracas —, então os sentidos pressupostos que
constituem os referentes possíveis para essa referência são os de que o

50 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS


passeio dessa tarde foi contemporâneo, sim n ltan eam en tc, (n) da-
ouele fim de dia que precedeu a noite mencionada, (b) da infancia
do narrador, (c) do Dom Quixote, (d) dos tempos pré-colombianos,
anteriores è Conquista, (e) e de mil oitocentos e tantos. Essa con-
temporaneidade transtemporal” do conto está fundada sobre ^ a r g u ­
mento paradoxal: o de que as circunstâncias de ancoragem daquela
noite eram não somente idênticas às de outros entardeceres, senao que
eram as mesmas.
Freqüentemente os contextos pressupostos funcionam na obra ae
Borges como o espaço de localização de arquétipos e símbolos míticos
construídos sobre diversas figuras da repetição que, fundamentadas em
um argumento paradoxal semelhante a esse - um enigma da cabala,
uma proposição herética, um dogma perverso, uma revelação gnostica,
»ma hipótese esotérica - são a seguir aplicadas aos componentes da dis-
cursivização, operando a identificação dos atores, dos espaços e dos tem­
pos narrativos. É, pelo menos, o que acontece em EI ínmortal, onde
Borges trabalha uma divertida doutrina da compensação, enunciada na
fórmula “não há coisa que não esteja compensada por outra , para, ran
seguida, armar o conto como um silogismo: admitida a premissa maior
consubstanciada nesse argumento das compensações, segue-se (como, de
resto, viu-se acontecer nos exemplos retro citados):
- que todas as coisas se repetem infinitamente, como réplicas umas de
outras:
“No hay cosa que no esté como perdida entre
innumerables espejost’ (El ínmortal)
- de modo que a História é uma escandalosa sucessão dos mesmos acon­
tecimentos,
“Nada puede ocurrir una sola vez" (El In-
mortal),
essa regra da repetição sendo apta, portanto, para ser elevada, muito
naturalmente, à condição de procedimento de composição.
É, de fato, com o emprego dela, que Borges costuma estabelecer o
necessário vínculo entre o nível de manifestação discursiva e o nível ima­
nente, semionarrativo, de seus relatos. Assim, aplicado aos componentes
da discursivização, o procedimento da repetição do arquétipo m ítico
localizado no contexto pressuposto produzirá:
- a identidade actancial, mítica, de nível imanente, de atores históricos
bem diferentes, a nível da manifestação:
“Un solo hombre Ínmortal es todos los hom-
breJ’ (El Ínmortal)
“Damián, como gaucho, tenia obligación de
ser Martín Fierro." (La Otra Muerte)
“Al errar por las lentas galerias
Suelo sentir con vago horror sagrado
Que soy el otro, el muerto, que habrá dado
Los mismos pasos en los mismos dias."
(Poema de los Dones)

SIGNIFICAÇÃO N» 7 - OUT 87 51
- a identidade extensional, mítica e imanente, de espaços históricos dife
rentes, a nível de manifestação:
“Todas las partes de la casa están muchas
veces, cualquier lugar es otra lugar” (La
Casa de Ásterión)
- a identidade duracional, mítica e imanente, de tempos históricos dife­
rentes, a nível da manifestação:
"Nada puede ocurrir una sola vez..." (El In-
mortal)
“„.Otálora comprende, antes de morir, que
desde el principio lo han traicionado, que ha
sido condenado a muerte, que le han permiti­
do el (...) triunfo por que ya lo daban por
muerto, porque para Bandeira estaba muer­
to ”
(El Muerto)

RESUMEN
El trabajo intenta aclarar el concepto de isotopta figurativa delmensageen
cuanto sentido contextuai, que resulta de la aplicación de los mecanismos de replica-
bifídad y átatividad a las distintas partes dei discurso. Ésías se asocian, asf, en el pro-
ceso de lectura, como ona espécie de replicas unas de otras, cuyo sentido sólo se per-
cibe cuando uno las lee complementariamente referidas unas a otras, como segmento
relatum citante (la réplica que se está a leer como esto, aqui, áhora) vs. segmento
correlato citado (el de que uno se acuerda, al leer el relatum, como aqueüo que leyó,
aM, entonces, en
(1) en otra parte dei mismo mensage (el correlato funciona entonces como un intra-
texto, o contexto puesto - es decir, en construceidn, por la lectura, en el presente
discurso) o
(2) en otro mensaje (el correlato constituye, en ese caso, un intertexto, o contexto de

A continuación se estudian algunos de los intertexíos basados en mitologemas


argentinos de que derivan, a la vez, la pluri-isotopía y la típica figuratividad de los
relatos de Jorge Luís Borges.

52 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS

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