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Av. 9 de julho, 3.166 CEP 01406 - São Pauio (SP) Brasil 1987
Sumário
INCURSÕES PRELIMINARES PELA
OBRA DE GUAYASAMIN .. 3
Flor Marlene Enríquez López e Paulo Eduardo Lopes
{Guayasamin; Panorâmica; Construir o objeto visual; Mãos e ros
tos; “Isto é isso”; Para concluir): os quadros do mestre equatoria
no e as potencialidades da semiótica planar.
A REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO EM TEXTOS FÍLMICOS E
LITERÁRIOS DA AMÉRICA LATINA 12
Anna Maria Balogh
(A representação do espaço na literatura; A representação do es
paço no cinema; Os espaços da imensidão e da solidão; A repre
sentação do espaço e a evolução tecnológica): confrontações en
tre as formas da representação espacial no romance, como texto
de partida, e no filme, como texto de chegada.
TALLERES LATINO AMERICANOS E
SEMIÓTICA DA CANÇÃO POPULAR . 19
Luiz Tatit
(A semiótica; A sedução; A canção: texto lingüístico e texto me
lódico; Conclusão): contribuições da semiótica para a reflexão
sobre a canção latinoamericana.
QUINO E O MITO DE NARCISO .. 26
Eduardo Penuela Canizal
(As expansões do sujeito; A contratação dos objetos; As realiza
ções do imaginário): um aprofundamento do conceito semiótico
de sujeito na enunciação.
CONTEXTOS POSTOS E PRESSUPOSTOS:
O LUGAR DO HISTÓRICO E DO MÍTICO NA
OBRA DE JORGE LUÍS BORGES .. 44
Edward Lopes
(Isotopias figurativas: sentido contextuai; Contextos pressupostos:
0 lugar de inscrição do mítico em Borges): um modelo para a
análise do referente em termos de contextos.
Guayasamin
Um dos mais proeminentes pintores equatorianos contemporâneos,
Oswaldo Guayasamin (Quito, 1.919 - ) é autor de vasta obra em que
se reconhecem, de um lado, fortes influências dos muralistas mexicanos, de
Picasso, Portman, Mondrian e mesmo Velázquez e, de outro, uma perso
nalidade marcante, fruto, talvez, da reiteratividade figurativa e da tensi-
vidade passional de suas telas.
A escolha de alguns de seus trabalhos para objeto dos comentários
que seguem pareceu apropriada, na medida em que tenha logrado impul
sionar a reflexão sobre as virtudes e as limitações da análise semiótica da
pintura. Fica, também, como a consignação de uma sincera homenagem,
no contexto de uma coletânea dedicada aos autores hispano-americanos.
Panorâmica
Os trabalhos desenvolvidos a partir de meados da década passada
por um grupo de semioticistas franceses interessados nas especifiddades
caracterizadoras dos discursos visuais fixos de significante bidimensional
acabaram por demonstrar a necessidade da construção de uma metalin-
guagem própria, que por um lado fosse capaz de instrumentalizar a aná
lise e, por outro, permitisse a integração dos resultados ao corpo teórico
de base.
É exatamente esse o projeto da semiótica planar. Trabalhando com
a pintura, a fotografia, a história em quadrinhos ou a publicidade, os se
mioticistas adotaram como ponto de partida os pressupostos do modelo
semiótico geral, o que bem os distancia dos que praticam uma semiologia
da imagem ou uma semiótica de inspiração peirceana, por exemplo - para
ficar somente no âmbito dos modelos de análise intema do discurso.
Em linhas gerais, a principal distinção entre a semiótica planar e os
demais modelos consiste em que ela considera o sentido como uma cons
trução discursiva e nunca como um dado a priori. As conseqüências
dessa tomada de posição foram múltiplas. Uma delas foi que a semiótica
planar tomou por tarefa escapar ao imperialismo do pensamento verbal
na decupagem das imagens; outra, foi que ela descartou a idéia de refe
rente externo como ponto de chegada da “leitura” da imagem.
SIGNIFICAÇÃO Ne 7 - OUT 87
Construir o objeto visual
Diante de uma tela, uma leitura baseada no senso comum - isto é, o
processo de interpretação que o enunciatário realiza quando se coloca
diante de um quadro pictórico figurativo - recorta a imagem pintada,
através de uma descrição de base onomástica da figuratividade nela ins
crita. Essa descrição consiste em atribuir à imagem da tela - formante
constituinte do discurso - o nome do designa tum correspondente esto
cado na competência imagética do enunciatário, do qual a imagem é o si
mulacro “analógico” ocorrencial (na pintura). A decupagem descritiva do
quadro é operada, assim, por uma referencialidade “realista”, ou seja,
guiada pela ilusão do real, pela maior ou menor equivalência entre a re
presentação e aquilo que ela representa. Se se considera, agora, que os
formantes-tipo presentes na competência do enunciatário (= classe) e os
fonnantes-ocorrência presentes no discurso (= membros da classe) cor
respondem, respectivamente, a actantes e atores, na metalinguagem
greimasiana, tem-se que a primeira interpretação que se realiza é uma
denominação actorializante de actantes. (V. LOPES, 1986).
Num mural como El incario y la conquista, de Oswaldo Guaya-
samin (fig. 1 ), a figura central será então reconhecida como “índio”,
por exemplo, num processo que pode ser assim esquematizado:
EXPRESSÃO CONTEÚDO
Mãos e rostos
Da mesma maneira, a incrível série de “rostos” e “mãos” do pintor
equatoriano, notável no conjunto de sua obra (figs. 2, 3, 4), destaca,
pela simplicidade estrutural, alguns elementos bem definidos que podem
ilustrar quanto se disse até aqui.
Nos três quadros tomados para exemplo, distinguir-se-ão, grosso
modo, três grandes campos pictóricos:
a) um campo escuro em azul ou preto, de maior homogeneidade, delimi
tador global do espaço da tela;
b) um campo em cinza-claro ou verde, fortemente trabalhado, interme
diário entre o campo A e o campo C;
c) um campo em marrom-escuro ou cinza-esverdeado, medianamente
complexo, que ocupa em todos os casos a região central da tela.
SIGNIFICAÇÃO N» 7 - OUT 87 5
O exame dos componentes topológico, cromático e eidético de ca
da campo e suas relações com os outros irá valer-se da terminologia e das
distribuições hierárquicas adotadas por FLOCH (1985),
No âmbito do componente topológico, verifica-se que a principal
estruturação espacial das telas edifica-se, a nível profundo, sobre a cate
goria /envolvente/ vs /envolvido/ - que subsume as variantes ocorren-
ciais: na maior parte dos quadros observa-se uma organização do tipo
/periférico/ vs /central/ (envolvimento concêntrico total), só havendo
uma ocorrência da organização /englobante/ vs /englobado/ (envolvi
mento concêntrico pardal). No nível da manifestação, essas categorias
vão realizar-se, em linhas gerais, pela distribuição: campos A, /envol
ventes/; campos C, /envolvidos/; campos B, /envolvidos/ em relação aos
campos A e /envolventes/ em relação aos campos C.
Para a análise do componente cromático, as telas podem ser divi
didas em dois grupos básicos, segundo a distribuição das cores pelos
campos: no primeiro, os campos A, B e C são constituídos de uma cor
diferente para cada um; no segundo grupo, há uma só cor para os campos
B e C e outra cor para os campos A. Todos os quadros da série têm em
comum, não obstante, uma outra espéde de articulação cromática: as re
giões coloridas correspondentes aos campos do tipo A caracterizam-se
pelo espraiamento cromático (homogêneo ou nuançado gradualmente),
enquanto que os campos B e C são marcados pelo esparsamento; no
primeiro grupo de telas (3 cores para 3 campos), os campos B definem
uma região cromática mista, que intercala as cores de B e de C; no se
gundo grupo de telas (1 cor para A e 1 cor para B e C), os campos B de-
finim a intercalação cromática de A e de B/C. No nível sirnagmárim
portanto, os campos B são definíveis como zonas de contraste cromático;
no nível intermediário ou superfidal da expressão, eles correspondem a
combinações da categoria /contínuo/ vs. /descontínuo/: os campos A são
/contínuos/, os campos C são /descontínuos/ e os campos B são /contí
nuos/ + /descontínuos/ (contrastes).
A função eidética dos campos B é também complexa. Global
mente, eles articulam tanto os campos A quanto os campos C, estabele
cendo entre eles conjunções e disjunções; as variações recombinantes das
categorias /longo/ vs. /curto/ e /segmentado/ vs. /não-segmentado/,
correspondentes no nível profundo a recortes significativos da manifes-
CAMPOS
A B C
COMPONENTES
/envolvente/
TOPOLÓGICO /envolvente/ + /envolvido/
/envolvido/
/contínuo/
CROMÁTICO /contínuo/ + /descontínuo/
/descontínuo/
“Isto é Isso”
Para alcançar o plano do conteúdo, a análise vai-se valer do con
ceito de formante figurativo, quer dizer, parte constituinte do sintagma
global que, como se viu acima, é passível de homologação, no plano do
conteúdo, com categorias figurativas fornecidas pelo mundo natural.
Os campos A, B e C serão associados, pela homologia entre as categorias
de cada plano, às figuras semênicas definidas pelos lexemas “fundo” ,
SIGNIFICAÇÃO N® 7 —OUT 87 7
“mãos” e “rosto”, nesta ordem. Reiteram-se tais figuras como uma espé
cie de marca registrada da obra de Guayasamin.
As relações entre os formantes figurativos complexos podem ser
recolocadas, reconhecendo-se, inicialmente, a oposição que as combina
ções de sintagmas estabelecem entre um espaço externo e um espaço in
terno, mediatizados pelo formante “mãos” (= /envolvido/ + /envol
vente/); tomando-se o conjunto “rosto” e “mãos” como lugar de instau
ração metonfinica de qualificações (o ser) e de funções (o fazer) defini
doras de um estatuto “actorial”, obtém-se, aproximadamente:
Para concluir
Sendo muito recente, a linha de estudos aberta pela semiótica pla
nar tem por preocupação, até os dias de hoje, levantar os elementos seg
mentais próprios à pintura, procurando compatibilizar as análise com um
modelo teórico proveniente, fundamentalmente, da lingüística. Os traba
lhos dessa fase inaugural, por esse motivo, realizam a tarefa de integrar a
análise do discurso visual planar no âmbito de uma teoria geral do dis
curso, obtendo resultados generalizantes.
No caso específico da pintura esse tipo de abordagem parece, no
entanto, insuficiente. A obra de pintores como Oswaldo Guayasamin não
OBRAS BIBLIOGRÁFICAS
CITADAS/CONSULTADAS
FLOCH, J.-M. 1985. Petites mythologies de Foeí et de Fesprit. Pour une séniotique
plastique. Paris-Amsterdam, Hadès-Benjamins.
GREIMAS, A J . et COURTÉS, J. (org.). 1986. Sémiotique. Dictionnaire raisonné de
la théorie du langage, II. Paris, Hachette.
LOPES, E. 1978. Discurso, texto e significação. Uma teoria do interprétante. São
Paulo, Cultrix.
1986. Metáfora. Da retórica à semiótica. São Paulo, Atual.
SILVA, I.A. 1985. “ O Projeto da Semiótica Planar (Semiótica da Imagem Fixa)” .
Araraquara, fotocópia do original datilografado.
RESUMEN
Los autores sintetizan, con ejemplo práctico, los resultados aJcanzados por la
semiótica planar an la construcción de un modelo para el análisis de los discursos
visuales planos, de un modo general, y dei discurso pictórico, en particlar. Para eso,
válense de las obras dei maestro ecuatoriano Oswaldo Guayasamin, a quien desean
rendir homenage.
SIGNIFICAÇÃO N® 7 - OUT 87 9
10 CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS
FIG 2
FIG 3
SiGNIFICAQAO N9 7 - OUT 87 11
A representação do espaço
em textos fílmicos e literários
da América Latina
ANNA MARIA BALOGH
(Vice-Coordenadora do Curso de Rádio e TV
na Escola de Comunicações e Artes da USP)
PRÊMIOS. fa \ *
PIERREKAST(FRANÇA) fa & & 4» W? I .
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um FILME DE 7 » J i r _ REGINA DOURADO
PEDRO JORGE DE CASTRO UM A W R S U O DC ANION C HONDA B. DE PAIVA
FOTOGRAFIA: MIGUEL FREIRE • MONTAGEM: JOSÉ TAVARES DE SARROS • DIREÇÃO DE ARTE: JEFFERSON ALBURQUERQUE JÚNIOR
TRILHA MUSICAL EDNARDO • PRODUÇÃO EXECUTIVA: TARCÍSIO VIDIGAL
PRODUÇÃO: ANIMATOGRAFO CINEMA E VÍDEO, GRUPO NOVO DE CINEMA E EMBRAFILME
APOIO: UNIVERSIDADE FED ERA L DO CEARÁ/FCPC Diiiritóô embjafiime
SIGNIFICAÇÃO N9 7 - OUT 87 13
No que diz respeito à concepção do espaço no cinema, o descarte
puro e simples do concreto, do referencial à antiga, não parece tão sim
ples quanto na literatura. Uma das servidões do cinema clássico é preci
samente a de depender de um espaço concreto a ser filmado, ainda que a
representação venha mediatizada pelos enquadramentos, angulações e
movimentos de câmera e pelos cortes e efeitos de moviola. Podemos dis
por de um espaço real anterior à filmagem (locação/externa), de um es
paço especificamente construído para uma filmagem X (cenários, exter
nas ou internas = estúdios), ou ainda de cenários reaproveitados de fil
magens prévias.
A evolução na literatura se deu primordialmente através da mudan
ça na visão de mundo e da subversão nas técnicas de narrar da maioria
dos escritores hispano-americanos. No caso do cinema, revolucionar pa
rece bem mais difícil devido às razões que apontamos a seguir. O filme é
realização coletiva e nem o mais despótico dos diretores tem domínio to
tal sobre sua obra. Condicionantes de produção fSmica (orçamento,
equipamentos, etc... interferem de forma muito mais poderosa na produ
ção “semiótica” do sentido do que o leigo ou o crítico distanciado da rea
lização possam imaginar. Pudemos comprovar esse fato nos casos em que
tivemos acesso aos roteiros e notamos reconfigurações ponderáveis nas
etapas de passagem do texto literário para o roteiro, e deste, para o texto
fOmico. A forma de representação do espaço no filme não depende ex
clusivamente da competência do realizador, como na literatura. O cinema
depende em muito maior grau da sofisticação dos equipamentos de fil
magem e edição para viabilizar concepções do realizador do que qualquer
outra forma de arte. Inútil imaginar soluções ou efeitos incríveis, sem
dispor de lentes adequadas, de câmeras com recursos, de grua, de ‘swit-
cher’ com boas possibilidades de efeitos e de um grande número de equi
pamentos sofisticados e caros.
A célebre frase “ uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”, defi
nidora do “cinema novo”, parece anacrônica. Trata-se de uma estética
válida para os anos 60, com inúmeros filmes em P & B, próximos ao neo-
realismo italiano, coerentes com a precariedade dos meios de produção e
a ideologia impulsora do movimento, mas insustentável três décadas de
pois.
O mercado cinematográfico brasileiro abarca atualmente produ
ções caras, hollywoodianas como “Quilombo” , de Cacá Diegues e pro
duções muito restritas em termos de orçamento como “Tigipió”, de Pe
dro Jorge de Castro na qual participamos na fase de adaptação/roteiriza-
ção. Ao revermos obras da filmografia brasileira e da latino-americana
(as que chegam até nós), verificamos que nenhuma delas retoma no ci
nema o rico veio do realismo mágico literário. A maioria das adaptações
que conhecemos teve condições medianas de produção, mas não acredi
tamos que este seja o único fator determinante para a ausência apontada.
Quais são as representações de espaço recorrentes na filmografia
latino-americana? Em que medida a representação do espaço seria defi
nidora de nossa “latinidade” ou “hispanidad”?
A importância da concepção/visualização do espaço já foi objeto
das considerações dos realizadores. Jorge Durán, roteirista de “Pixote” e
SIGNIFICAÇÃO N2 7 - OUT 87 15
Os textos mencionados evidenciam que, em momentos fundamen
tais da narrativa e independentemente das coberturas lexemáticas/ imagé -
ticas (sertão, caatinga, “Mano”, “desierto”, “playa”...), as representações
do espaço se caracterizam pela imensidão (lembramos de “Grande Ser
tão...”). A expansão hiperbólica é manifesta através dos mais variados
recursos fümicos tais como grande angular, enquadramento em GPG,
movimentos de afastamento com câmera muito alta (grua/helicóptero),
entre outros. A impressão de que o espaço é muito vasto é, em geral,
acentuada pela /vacuidade/. Durante seqüências inteiras ou em boa parte
delas, não aparecem atores humanos e nem seres elementares que possam
direcionar o olhar do espectador. Esta representação básica em termos de
espacialidade é, em geral, acompanhada pela “lentidão” (ou o extremo
oposto: uma pressa desesperada, sem rumo) em termos de temporalidade
expressa por movimentos lentos da câmera ou dos atores, por vezes che
gando à imobilidade. O enunciado de “Vidas Secas” (Livro ==L,p.9) é es
clarecedor nesse sentido: “E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais ar
rastada, num silêncio grande”. Na transmutação fBmica, a câmera se mo
ve muito pouco na caminhada inicial e os atores andam vagarosamente.
No espaço assim representado de forma recorrente nos textos, um ator
não humano prevalece quase sempre sobre os humanos, trazendo em al
gumas obras ecos dos mitos indígenas pré-colombinos: o SOL, atualizado
direta ou metonimicamente (lembramos de “Deus e o Diabo na terra do
sol”, “Vidas Secas” e “El llano en llamas”). Nesse sentido, um outro
parágrafo de “Vidas Secas” é revelador: “Fabiano tocou o braço da mu
lher, apontou o céu, ficaram os dois aguentando a claridade do soL En
xugaram as lágrimas... conservaram-se encolhidos, temendo que a nuvem
se tivesse desfeito, vencida pelo azul terrível, aquele azul que deslumbra
va e endoidecia a gente”, (p.12). O filme transmuta o trecho em suas se
qüências iniciais, mas e m P & B com uma luz muito chapada (“clarida
de”). A representação do espaço caracterizado pela imensidão e pela ari
dez, dominado pelo sol, ocorre geralmente na dimensão pragmática da
narrativa. Trata-se de uma concepção de espaço constante quando se
atualiza o ápice do não poder/não saber dos atores ou quando suas per
formances colocam em risco os objetos-valores essenciais dos programas
narrativos (crenças, vida...) como poderemos observar nos exemplos
subseqüentes. Em “Tigipió” (F), Matilde aguarda Heitor junto ao carro
de bois desativado e à árvore seca, em frente à casa do pai a câmera sub
jetiva mostra o sertão devastado pela seca que arruinou o pai, sem que ele
ou Matilde nada pudessem fazer. Desse mesmo sertão, surge Heitor, a
cavalo, pronto para renegar Matilde que espera um filho seu. Em “Vidas
Secas” (L c F) sinhá Vitória olha da janela para a «laringa devastada e o
céu cheio de aves de arribação, sabedora de que nada poderá farar para
impedir uma nova retirada. Eréndira (F) olha para o deserto p.mp/vMfaHn
com a desolação de quem sabe que percorrerá muitos caminhos similares
prostituindo-se para pagar a dívida à avó. Nos momentos em que a au
sência de poder dos atores chega ao limite, a sua desaparição na imensi
dão do espaço parece ser a melhor forma de figurativizá-la, como no fi
nal de “Vidas Secas”, já visto, e na fuga derradeira de Eréndira ao longo
da praia (L e F). Por vezes a expansão na horizontalidade é acompanhada
de outra expansão na verticalidade através do máximo afastamento da
SIGNIFICAÇÃO Ns 7 - OUT 87 17
finalmente, se reencontrem. Se isso ocorrer, há grande probabilidade de
que a sofisticação técnica e a temporalidade voraz da TV acabem por
criar concepções espaciais radicalmente diversas. “Armação Ilimitada”,
da Globo, pode ser um exemplo paradigmático da representação espacial
mediatizada pela revolução tecnológica já processada na televisão da
América Latina. Nesse programa, a concepção do espaço é primordial
mente resultado de edição eletrônica, trucagens e efeitos sofisticados uti
lizados de maneira a não restarem praticamente vestígios de uma espa-
cialidade concreta mediatizável pela câmera, objeto de nossas reflexões
nesse artigo.
BIBLIOGRAFIA BÁSICA
1. GARCÍA MÁRQUEZ, G. - "Losfunerales dela mamá Grande". B. Aires, Su-
damericana, 1975.
2. - “La inerefhle v triste historia de la Candida Eréndira v de su
abuela desaknada” . Buenos Aires, Sudamericana, 1972.
3. _ _ _________ - "La Sobtude de lAmérique Latine". In Nouvel Observateur,
Paris, Jan. 1983, p. 60-61.
4. GIACOMAN, H. —Homenaje a G. García Márquef’. NY, Madrid, Las Ameri
cas Publishing Co. Inc., 1972.
5. LOPES, E. e PENUELA, E. - “O rmto e sua expressão na literatura hispano-
americana" . S. Paulo, Duas Cidades, 1982.
6. LLOSA, Vargas —“Gdrda Márquez —Historia de tat Deiddio". Barcelona,
Monte Ávila, 1971.
7. PENUELA, E. - "Duas Leituras Semiótica/’. São Paulo, Perspectiva, 1978.
8. RAMOS, Graciliano —"VidasSecas" . São Paulo, Martins Editora, 1967.
9. RENDER, A. et alii - "Espace, représentation et sênàotique de t architecture”
Paris, Editions de la Villete, 1981.
10. XAVIER, Ismail - “Sertão Mar'’. São Paulo, Brasiliense, 1983.
11. Revista "Fibne Culture?’. Rio de Janeiro, Embrafilme/MEC, ne 43,1984.
FILMOGRAFIA BÁSICA
“ TIGIPIÓ” , Cor, 35 mm, 1985. Direção: Pedro Jorge de Castro. Elenco: Regina
Dourado, Zé Dumont, B. de Paiva.
“ VIDAS SECAS” , P & B, 1962. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Elenco: Átila
Iório, Jofre Soares.
“CANDIDA ERENDIRA” , Cor, 35 mm, 1985. Direção: Ruy Guerra. Elenco: Irene
Papas, Cláudia Ohana.
“GRANDE SERTÃO: VEREDAS” , Cor, Mini-série, Globo. Rot.: Walter George
Durst. Direção: Walter Avancini. Elenco: Bruna Lombardi, Tarcísio Meira,
Toni Ramos. Obs: Embora realizada para a TV, a obra foi incluída por utili
zar técnicas cinematográficas e não televisivas de filmagem, conforme afir
mações dos próprios realizadores.
RESUMEN
«rCuáles son las representaciones dei espacio que se reiteran en textos fflmicos
y literários de realizadores y escritores latino-americanos?
tQué tipo de evolución se nota en esos textos a lo largo dei tiempo y cuáles
son los factores que la condicionam?
El artículo trae algnnas reflexiones sobre esas preguntas.
A semiótica
Quando lemos os artigos de sua revista, encontramos observações
com o seguinte teor:
“Este octavo arte que es la canción popular,
tiene sus características próprias, valores
proprios y su própria historia. El intento de
su estúdio sistemático deberá ser efectuado
sobre la base de nuevosparametros, que no son
los especificamente musicales ni los literá
rios”2
Ora, uma reflexão visando criar parâmetros específicos para a
análise da canção popular, fora da esfera de influência da música erudita
e da literatura, pode enriquecer-se com as aquisições da semiótica 3 que,
nestes 20 anos de trabalho sistemático, vem construindo um modelo
promissor de articulação do Sentido produzido pelo homem, oferecendo,
SIGNIFICAÇÃO NS 7 - OUT 87 19
ao mesmo tempo, critérios econômicos para o estudo do plano da ex
pressão onde se distinguem os traços particulares das semióticas específi
cas (semiótica musical, semiótica pictórica, semiótica cinematográfica,
semiótica da canção popular, etc.). Interessando-se pelo Sentido prove
niente de qualquer atividade humana, a semiótica permite e até sugere a
verificação de práticas significantes as mais corriqueiras e dinâmicas,
rompendo com a tradição dos objetos consagrados dignos de análise (so
natas, sonetos, epopéias, romances, quadros, etc.). E, ao propor parâme
tros específicos para a avaliação da canção popular, a semiótica pode
contribuir para a valorização do próprio cancionista que, muitas vezes,
aceita a pecha de sub-músico ou sub-poeta:
“En la cultura traída por el conquistador eu-
ropeo, lo sutil y refinado se le ha asignado
a la música culta. Los músicos populares son
los que subestimam, su proprio arte y como
signo de calidad vocal, imitan la técnica cul-
terand’ (id., 18).
A sedução
Este ensaio de Luis Trochón, a meu ver, é um verdadeiro gesto em
direção à semiótica embora não haja menção a qualquer propósito neste
sentido. Depreendo isso da pertinência das observações reguladas pela
busca de um universo de sentido e de valores próprios da canção popular.
Por outro lado, parece-me que suas noções poderiam ser aprofundadas e
transformadas em parâmetros de análise extensivos à toda espécie de
canção. Vejamos:
“La relación intérprete-oyente es un hermoso
dragoneo donde la seducción y lo ritual son
aspectos implícitos en la misma” (id. 18).
Esta frase revela muita intuição. De fato, a relação intérprete-ou-
vinte é sempre um caso de sedução como, de resto, ocorre em toda co
municação principalmente nos domínios da arte.
Um compositor ou um intérprete desempenha sempre, no mínimo,
duas funções actanciais se o considerarmos num quadro de narratividade
como nos propõe a semiótica. De um lado, ele é o sujeito que constrói um
objeto com as características daquilo que denominamos canção. Nesse
sentido, ele é o sujeito de um /fazer ser/. Ocorre que este objeto é cons
truído não apenas para o gozo próprio (também o é na medida em que
cada canção representa uma prova de competência tecnológica) mas, ao
mesmo tempo, para ser transmitido ou transferido a alguém. Em outras
palavras, este objeto é construído também para que alguém mais o deseje.
Portanto, de outro lado, o ator (compositor/intérprete) acumula a função
de destinador persuasivo (fazer crer) ou manipulador (fazer fazer) sem
conotação pejorativa. E aqui não se trata apenas do destinador-emissor
das teorias de comunicação, mas do destinador narrativo, cuja função
precípua é despertar um /querer fazer/ no âmbito do destinatário. Se o
ator que investe a função de destinador é o compositor/intérprete, a fun
ção complementar, a de destinatário, será preenchida pelo ouvinte.
SIGNIFICAÇÃO N® 7 - OUT 87 21
sobre ese juego. A nivel de la entonación, el
cantante puede optar por da afinación exacta
de cada nota (donde lo que importa es cada
perla dei collar) o una afinación dudosa
(donde lo que importa es el coü a rf (i d 19)
SIGNIFICAÇÃO N» 7 - OUT 87 23
natural, com o nível neológico (“amores”), dos conteúdos internos ao
homem. Surge então, em plano mais abstrato, o tema que justifica toda
essa integração, o prazer, e o ator EU como seu sujeito passional:
“£ por eso los grandes amores
De muchos colores
Me gusían a m i’
Não nos importa aqui a análise em busca da tematização lingüística
mas, principalmente, o fenômeno da reiteração organizado sobre uma
base sêmica compatibilizando-se com o mesmo fenômeno que, na melo
dia, se organiza sobre uma base motívica.
Este é um dos dois principais casos de canção que se distancia do
discurso coloquial. O outro, ao invés da periodicidade, pauta-se pelo
princípio da tensividade. É o caso das melodias que utilizam uma vasta
extensão de tessitura, grandes saltos intervalares, região aguda e ampla
duração vocálica. A oscilação de maior ou menor tensividade pode ser
verificada nas ascendências, suspensões e descendências dos tonemas (fi
nalização das frases melódicas). Do ponto de vista lingüístico, temos as
disjunções e conjunções entre os actantes que se manifestam nos estados
passionais vividos pelos atores. Na conhecida canção “Nuestro juramen
to” de Benito de Jesús, por exemplo, aparecem as figuras noológicas
“angústia”, “duda”, “promessa”, “tristeza”, etc. que representam pontos
demarcatórios de finalização ou desencadeamento de programas narrati
vos, levando às últimas conseqüências o desejo de permanência da con
junção amorosa: “y si los muertos aman, después de muertos amamos
más”
Conclusão
Considerando esses três princípios, a deitização (aproximação do
discurso coloquial), a periodicidade e a tensividade (ambos se afastando
NOTAS
1 Estamos entendendo por representativos os nomes imediatamente lembrados
quando nos referimos ao universo da canção popular do pais em questão. São os
artistas com alguma penetração popular ainda que restrita a uma faixa social bem
delimitada.
RESUMEN
Apuntando contribuir para la reflexión sobre la canción popular, a partir de las
questiones formuladas en la revista “ La dei Taller” (publicada por los Talleres Lati
noamericanos de Miísica Popular), el autor nos presenta una perspectiva de descrip-
ción, fundamentada en los parâmetros semióticos,que colocaen evidenciaalgunos pro-
cesos de construcciòn dei sentido, específicos de la canción popular. Asf, en primer
lugar, examina la relación de seducción entre el intérprete y el oyente, valiéndose de
los recursos facilitados por la sintaxis narrativa y modal. Luego, a partir dei tipo de
relación establecida entre el texto lingüístico y el texto melódico, el autor deduce tres
grandes categorias tipológicas que poderian servir de base para el análisis de las cau
ciones elaboradas en los seminários de dichos Talleres.
SIGNIFICAÇÃO N8 7 - OUT 87 25
Quino e o mito de Narciso
EDUARDO PENUELA CANIZAL
(Professor titular da Escola de
Comunicações e Artes da USP)
As expansões do sujeito
Uma primeira leitura de Ni arte ni parte, obra de Quino que a
Editorial Lumen, de Barcelona, publicou em 1981, pode me causar, di
gamos, a impressão de que o conjunto de mensagens visuais ordenadas
pelo conhecido cartoonista constitui, em síntese, uma espécie de co
mentário feito de imagens mediante o qual se fala a respeito de diferentes
manifestações artísticas: música, pintura, literatura, escultura, maneiras
de fazer humor e modos de construir prólogos. Em virtude dessas carac
terísticas, tal comentário imagético, montado, observe-se de passagem,
com extremo esmero, transmite, para um leitor semioticista, a idéia de
que sua incrível força comunicativa se engendra na transparência deter
minada pela função metalingüística, recurso fácil de surpreender em
quase todas as “historietas” do livro. Assim, em sua tentativa metasse-
miótíca de interpretar a pintura - melhor dito, a chamada pintura realista - ,
Quino mostra, com auxílio de uma fábula muito simples como um pintor,
numa esplêndida manhã de sol, realiza o milagre de, após ter representa
do em sua tela as duas únicas árvores da paisagem natural que lhe ser
viam de referente, deixar sem sombra e em perplexa solidão a
pacatez de um cidadão que, sonhadoramente mansarrão, descansava ao
amparo da altiva frondosidade daquelas arbóreas remanescências da ma
ta: pintada, a realidade muda de lugar e se exige, orgulhosa, na superfície
de uma tela indiferente ao estado de desconcerto em que fica o herói do
bom senso ao se aperceber privado de seu objeto de valor.
Em outro de seus comentários visuais, Quino relata, com idêntica
simplicidade, a fábula dos visitantes de uma exposição que, depois de se
deter numa das obras, felicitam, cada um à sua maneira, o artista e se
despedem com elogios em que se ressalta que sua arte possui a magia de
Chagall, a poesia de Renoir, o vigor de Van Gogh, a liberdade de Pfcasso
e a delicadeza de Modigliani. Aturdido com tamanha enxurrada de encó
mios à sua criatividade, o pintor, com desespero existencialista, exclama:
“!Yo queria ser yo!”
Essa estória, comparada à anterior, apresenta, sem dúvida, explí
citas diferenças. Vista com mais vagar, porém, ela mostra que tais dife
renças se definem ao nível do aparencial, já que, no atinente à narrativi-
dade, tanto o pintor existencialista quanto a personagem sanchopancesca
fecham suas respectivas fábulas em estado de disjunção. Por outro lado,
“desespero"
Jsaber ser! A B /saber não ser/
“curiosidade” “desilusão"
SIGNIFICAÇÃO N2 7 - OUT 87 27
situação desesperante que, ao nível do enunciado, oscila em torno de
formas conteudfcticas sobredeterminadas por /saber ser/ e /saber não
ser/. Tais formas, no entanto, podem ser relativizadas e, nesse caso, am
pliadas semanticamente como, por exemplo, Parret faz quando define
a curiosidade valendo-se da combinatória /querer saber ser/ 2. Cabe,
entretanto, admitir, de antemão, que, em virtude da natureza sincrética
dos cartoons, o plano do conteúdo tem, evidentemente, possibilidade de
se expandir e, com isso, formar sememas em que se impliquem elementos
pragmáticos, cognitivos e túnicos.
Diante dessas particularidades e pensando nas formas narrativas e
discursivas como extremos do trecho do itinerário em que, segundo a
teoria greimasiana, se efetuam os percursos de sentido, quero antecipar
que dos fenômenos expansionais por que passam, durante os atos de lei
tura, os conteúdos de qualquer manifestação simbólica - no caso, os
cartoons de Quino - me interessam, nesta ocasião, somente aqueles que
mantém conexão com aspectos das transformações túnicas e cognitivas, o
que me permite trabalhar com a idéia de que, ao definirem forçosamente
programas narrativos, essas transformações foram sobredeterminadas
por objetos de valor participativos, isto é, por objetos cuja principal
propriedade advém da realização de revelações de conjunção em que, no
mínimo, intervém, simultaneamente, dois sujeitos. Tal posicionamento se
deve, como pretendo demonstrar neste trabalho, a dois fatores funda
mentais: de um lado, a isotopia do narcisismo, encarada, principalmen
te, como um modelo que me permita estabelecer um corpus representati
vo da obra de Quino e, de outro, a configuração da identidade que,
mesmo sendo um conjunto de significações virtuais, se toma, nas cria
ções do autor de Mafalda, uma espécie de invariável cuja presença, em
virtude de possuir um alto teor poético, sobredetermina a ambigüidade
dos percursos figurativos em que se localizam os traços responsáveis pelo
inconfundível estilo do cartoonista argentino.3
SIGNIFICAÇÃO N9 7 - OUT 87 29
dos protagonistas, coadjuvados pelos fantasmas da psicose, se confundem
e se emaranham em programas narrativos cujos objetos de valor são, no
geral, autênticas crises de identidade. As perturbações do paciente são
recebidas com certa passividade pelo analista e, com base nessa impres
são, o próprio paciente contribui inconscientemente para criar uma at
mosfera psicótica que, errática, invade os palcos da linguagem e envolve
os sujeitos dessa encenação numa nebulosa diluição da identidade que faz
com que o inconsciente domine, por completo, boa parte das cenas:
“É clássico dizer que na psicose, o incons
ciente está na superfície, é consciente. É
mesmo por isso que não me parece que tenha
grande importância o fato de que ele seja ar
ticulado. Nessa perspectiva, bastante instruti
va em si mesma, nós podemos de início notar
que não é puramente e simplesmente, como
Freud sempre sublinhou, por esse traço ne
gativo de ser um Unbewusst, um não-cons
ciente, que o inconsciente tem sua eficácia.
Traduzindo Freud nós dizemos - o incons
ciente, é uma linguagem. Que ele seja arti
culado, não implica portanto que ele seja re
conhecido. A prova é que tudo se passa co
mo se Freud traduzisse um língua estrangei
ra, e mesmo a reconstituísse por decupagem.
O sujeito está simplesmente, no que respeita à
sua linguagem, na mesma relação que Freud.
Partindo da idéia de que alguém pudesse fa
lar uma língua que ignore totalmente, nós di
ríamos que o sujeito psicótico ignora a língua
que fala.”7
Tal sucede, por exemplo, na situação plasticamente encenada pelo
gênio de Quino que vemos na Foto 2 (no final do artigo). Aí a crise de
identidade se toma visível e os gestos da repetição produzem condições
significantes excelentes para que se manifeste o tipo de isotopia que real
mente me interessa: trata-se da formação de conteúdos em que se integram
em sememas comprometidos com a subjetividade ou com classemas subja
centes a mensagem dessa linguagem inconsciente que a personagem do
cartoon reproduzido, enquanto sujeito semiótico de um enunciado narrati
vo, não sabe traduzir.
A vista do exposto, julgo legítimo contar com a premissa de que
a repetição de sememas formalizadores do conteúdo de desespero reite
ra, em vários cartoons de Quino, um classema subjacente ao subconjunto
de semas conotativos de cuja seleção depende o tipo de combinatória em
que se manifesta a crise de identidade. No quadro dessa hipótese creio
não ser difícil trabalhar com o pressuposto de que, em termos de conota
ção, a isotopia que será utilizada para a demarcação do corpus tem su
porte em processos de analogia, isto é, em arranjos de sememas que re
metem a significados especulares. Dessa perspectiva, parece pertinente
SIGNIFICAÇÃO N® 7 - OUT 87 31
Talvez em virtude disso, desejo reler o fragmento de Benveniste
procurando me desviar das trilhas por onde, tranqüila, costuma caminhar
a ingênua clarividência. Prefiro vagar nas entrelinhas carregando sempre
a expectativa de quem vive com a idéia fixa de se encontrar com os fan
tasmas da sigmficância ou do sentido obtuso, como queria Roland Bar-
thes. Ao proceder dessa maneira, sinto que as palavras de Benveniste me
envolvem numa espécie de labirinto feito de espelhos —imaginários es
pelhos - e, de repente, sem saber exatamente o porquê, tenho a sensação
única de quem convive com a certeza de que as imagens do “complexo
oculto no inconsciente” se refletem, com mais ou menos nitidez, nesse ou
tro sintagma em que se declara que “o processo inteiro se opera pelo porta-
-voz da linguagem”. Fico, enfim, seduzido pela visão de que essa primeira
frase é a imagem que ganha fantasmagórica corporalidade através do “por
ta-voz da linguagem” e, ao atingir esse estado, me apercebo para entrar, com
plenitude, nos domínios da significação que se vislumbram nas entrelinhas.
Não creio, contudo, que tal atitude seja fruto de um excesso de fantasia ou de
uma falsa alucinação. Acredito firmemente na minha intuição e acaricio a
certeza de que na questão da ordem simbólica, como reconhece Américo
Vallejo10, está presente uma questão relativa ao ser do sujeito, uma espécie
de carência constitutiva que, enquanto fenômeno do inconsciente, deixa
marcas na enunciação e nos enunciados por onde circula o desespero do
pintor existencialista do pacato cidadão sanchopancesco e, evidentemente,
do atlético operário que, colérico eaturdido, não rompe suaaparente identi
dade no espelho porque o espelho não lhe devolve a imagem que ele, de
pois desses rodeios, possa estraçalhar.
As realizações do imaginário
A enunciação converte a língua em discurso ou, em outras pala
vras, a enunciação, enquanto operação semiótica, sobredetermina um su
jeito e, conseqüentemente, traz à baila os enigmáticos sintomas da identi
dade camuflados no que Benveniste denomino» instâncias discursivas.
Nelas e mediante um constante jogo de contrastes, os indícios da identi
dade se escondem, assim como, desdenhada por Narciso, se escondeu,
vergonhosa desse desprezo, a ninfa Eco, sutilmente sugerida nesta passa
gem de “De la subjectivité dans le langage”:
SIGNIFICAÇÃO N5 7 - OUT 87 33
sâo espaço-temporal pertencente, segundo eles, ao sujeito da enunciação.
Essa paradoxal atitude me levou a pensar que a dualidade eu:tu, quando
vista em termos de um aqui-agora determinados única e exclusivamente
pela exterioridade, constitui, na verdade, o plano da expressão de um
sistema de relações cujos valores de semiose ficam sem definição, ao que
tudo indica, pelo simples fato de que da oposição exterior/interior é
considerada tão somente um elemento. Dessa perspectiva teórica, pois,
da expressão da subjetividade faria parte o eco da identidade, razão pela
qual a relação eu:tu seria, em termos freudianos, apenas uma representa
ção de palavra desvinculada, ao que tudo indica, da representação de
coisa.
Tenho para mim, diante do exposto, que uma leitura pautada por
esses princípios empobrece o trabalho interpretativo do enunciatário. Tal
se poderá constatar, por exemplo, se aplicarmos ao cartoon de Quino re
produzido na Foto 3 (no final do artigo) o modelo referencial da enuncia
ção formulado desta maneira por Jean-Pierre Desclés:
“Os enunciados declarativos têm por valor
referencial situações. Certas situações são
estáticas, ou, mais propriamente, estativas,
outras são dinâmicas. As primeiras permane
cem estáveis durante um certo intervalo tem
poral onde nem começo nem fim são contem
plados. Por exemplo o enunciado:
(1) João está em Paris
admite uma proposição subjacente:
(1’) “ João estar-em Paris”
que é verdadeira sobre um intervalo temporal
aberto ]e, d[:
SIGNIFICAÇÃO N* 7 - OUT 87 35
existe - o eco, por exemplo, não me prova a existência da ninfa das
águas o sujeito que vê pode, por sua vez, ver algo que não existe ou
que não está lá. A esse respeito é significativo constatar que o próprio
Lacan afirme que
“O olhar não se situa simplesmente ao nível
dos olhos. Os olhos podem muito bem não
aparecer, ser mascarados. O olhar não é o
rosto de nosso semelhante, antes porém, a ja
nela da qual nós supomos que ele nos espia.
É um x, um objeto diante do qual o sujeito se
toma objeto."17
Talvez a ausência da imagem refletida no espelho seja, na arquite
tura da mensagem plástica, a abertura que deixa passagem para o lugar
de onde o autêntico sujeito da enunciação espreita e, sendo assim, a per
cepção referida somente é falsa no que diz respeito aos referentes que
integram o universo da exterioridade, já que, em termos de uma referen-
cialidade pertencente à topologia do inconsciente, essa mesma percepção
encontre razão de existência em perceptos que não são fixados pelos po
deres da consciência. Nessa hipótese, o effet de miroirdos cartoons de
Quino mereçam uma leitura que arme o tear com que o enunciatáno en
trelace contextos formadores das configurações da identidade.
No desenho da Foto 4 (no final do artigo) é possível observar esse
effet de miroir em que a subjetividade se oferece ao leitor através das
rupturas especulares: nem sempre o espelho reflete a “realidade que lhe
foi colocada na frente e nem sempre a “realidade” que lhe foi colocada na
frente ocupa, na superfície do espelho, o lugar que os chamados fenôme
nos de ótica lhe determinam. Ocorre com essa realidade algo semelhante
ao que Lacan assinala ao dizer que quando
“você vê um arco-íris, vê alguma coisa intei
ramente subjetiva. Você o vê a uma certa
distância, atravessando sobre a paisagem.
Ele não está lá. É um fenômeno subjetivo. E
no entanto, graças a um aparelho fotográfi
co, você o registra sem dúvida objetivamente.
Então, o que é isso? Nós não sabemos mais
muito bem - não é? —onde está o subjetivo,
onde está o objetivo. Ou então não seria que
nós temos o hábito de fazer em nosso curto
entendimento uma distinção muito sumária en
tre o objetivo e o subjetivo? O aparelho foto
gráfico, um aparelho subjetivo, inteiramente
construído com o auxílio de um x e de um y
que habitam o domínio onde vive o sujeito,
quer dizer, aquele da linguagem?” 18
Parece, pois, que as idéias de Lacan não vão de encontro ao pen
samento de Benveniste sobre a linguagem e a subjetividade. Nesse par-
cular, creio que, no cartoon em questão, o effet de miroir estrutura,
- Percurso figurativo 1 2 3
4r ^ -Jr
estágio narcisismo narcisismo
do primário secundário
espelho
SIGNIFICAÇÃO N® 7 —OUT 87 37
"O chiste comporta no mais alto grau o ca
ráter de uma “idéia súbita” involuntária. Ig
nora-se o instante que precede o traço cômi
co que se vai disparar e que não se necessita
rá revestir de palavras. Experimenta-se antes
alguma coisa indefinível, que se assemelharia
a uma ausência, a uma supressão súbita da
tensão intelectual, depois de repente o chiste
surge, quase sempre paramentado das pala
vras que o revestem "19
Não é outra a impressão que fica quando notamos a ruptura que se
estabelece entre o espelho e a personagem do paletó preto. Esse arranjo
ou combinatória plástica faz rir, como faz rir um chiste. Mas, quando
cessa o riso, percebemos que tanto na gestualidade da personagem
quanto na ausência de sua imagem no espelho o cartoon expressa algo
indefinível: de um lado, a perda súbita da tensão intelectual conota, ao
nível da enunciação e do enunciado, a presença de algo inconsciente
que projeta marcas na enunciação e se representa nas personagens, e,
outro, o caráter involuntário de o chiste que se configura na cena denun
cia a invisibilidade presente do sujeito barrado, isto é, Quino traz ao
espaço material da expressão a dimensão imaginária do narcisismo pri
mário. Não se trata, portanto, de representar, considerando a oposição
exterior/interior, o que a semiótica, em geral, admite como referente.
Trata-se de representar, isso sim, a subjetividade tal como definida por
Lacan e, em parte, por Benveniste. Ou, para ser mais preciso, o que mi
nha interpretação quer mostrar é que, nesse desenho e nos outros do cor-
pus, aparece representada plasticamente a barra que a relação imagi
nária estabelece entre o sujeito (S) e o Outro (Autre) neste conhecido
esquema lacaniano.
Aí temos a interrupção
“da fala plena entre o sujeito e o Outro, e seu
desvio pelos dois mim, a e a ’, e suas relações
imaginárias. Uma triplicidade é aqui indica
da no âmbito do sujeito, que recobre o fato
de que é o mim do sujeito que fala normal
mente a um outro, e do sujeito, sujeito S, em
SIGNIFICAÇÃO Ns 7 - OUT 87 39
NOTAS
1 Fontanille, J.: Le Désespoir, Documents, ne 16,1980, p.21.
2 Cf. Parret, H.: Éléments pour une typologie raisonné des passions, Documents,
IV, 37,1982.
3 Não faz parte deste trabalho, por razões de compreensão, um estudo pormenori
zado das formas narrativas e discursivas dos cartoons.
4 Greimas, A.J.: Du Sens. Éssais Semiàtiques, Paris, Seuil, 1970, p. 10.
5 Cf. Rastier, F.: Le développement du concept disotopie, Documents-, III, 29,
1981,p.6/9.
6 Greimas, AJ.: Sémantique Structurale, Paris, Larousse, 1966, p.53.
7 Lacan, J.: Le Séminaire (Livre III-L es Psychoses), Paris, Seuil, 1981,p.20.
8 Floch, J-M.: Petites Mythologues de Foeil et de Fesprit. Pour une Sénüotique Plas
tique, Éditions Hades-Benjamins, Amsterdam, 1985, p.12.
9 Benveniste, É.: Problèmes de linguistique générale, Paris, Gallimard 1966, p.
75/76. _____ ____________ ______________
10 Cf. Vallejo, A. e Magalhães, L.C.: Lacan: Operadores de Leitura, São Paulo,
Perspectiva, p.78.
11 Utilizo, para a constituição do corpus, somente os seguintes livros de Quino: Dé-
jenme Inventar, Yo que usted..., Mundo Quino, Ni Arte Ni Parte, Gente en su sitio
e Bien, Gradas Y Usted?
12 Benveniste, É.: op. dt„ p.260.
13 Freud, S.: O Ego e o ld fe outros trabalhos), O.C., v. XIX, Rio de Janeiro, Imago
Editora, 1976, p.34.
14 Desclés, J-P.: Représentation des Connaissances, Documents, VII, 69,1985, p.5.
15 Hammad, M.: “V énonciation: Procès et Système” , in Langages, ne 70 1983,
p.45.
16 Lacan, J.: op. dt., p.293.
17 Lacan, J.: Le Séminaire (Livre I: Les écrits techniques de Freud), Paris, Seuil,
1975,p .245.
18 Idem, p. 91.
19 Freud, S.'. Le mot d’esprit et ses rapports avec ï inconscient, Paris, Gallimard, p.
278.
20 Lacan, J.: Le Séminaire (Livre III: Les Psychoses), op. cit., p.23.
As reproduções fotográficas dos desenhos de Quino foram feitas por Eduardo Pe-
nuela e as traduções dos originais franceses são da responsabilidade de Paulo Eduar
do Lopes.
RESUMEN
El presente trabajo se vale de un modelo isotópico inspirado en la teoria
greimasiana para establecer un corpus que se compone de varios cartoons de Quino.
El análisis de ese corpus tiene como principal objetivo la elaboración de un itinerário
de lectura que nos pueda revelar que Ias marcas de Ia enunciación no sem sencilla-
mente signos dei narcisismo secundário, sino, esencialmente en los mensajes especu
lares, vestigios de algo que, en la teoria freudiana, se relaciona con los procesos dei
narcisismo primário.
FOTO 2
SIGNIFICAÇÃO N9 7 —OUT 87 41
FOTO 3
FOTO 4
FOTO 5
SIGNIFICAQÄO NS 7 - OUT 87 43
Contextos postos e pressupostos:
o lugar do histórico e do mítico
na obra de Jorge Luís Borges
EDWARD LOPES
(Professor Titular do Instituto de Letras,
Ciências Sociais e Educação da UNESP -
Departamento de Literatura)
SIGNIFICAÇÃO N9 7 - OLÍT 87 45
2.2 - A referência que é réplica do plano de conteúdo de um re
ferente intratextual constitui uma paráfrase intratextual;
a que for réplica do seu plano de expressão, constitui um
paragrama intratextual;
3 - A função referencial, com que vamos nos preocupar neste traba
lho, é constituída de paráfrases intertextuais e intratextuais (não nos
deteremos, pois, na consideração da função poética, constituída de
paragramas inter e intratextuais).
Eis um resumo visual de quanto se viu até aqui:
Citação Isotópica
A figura -ocorrencial que, como isto que A figura-tipo que se recorda, ao ler o
se lê, aqui e agora, recupera a informa Sg2 da referência, como aquilo que se
ção contida no Sgl, interiorizando no leu, lá, então, no Sgl, como figuração
Dx. citada no contexto de Dx
RÉPLICAS
Figuração cita Figuração cita
da em outra da em outro dis
Réplica do Réplica do parte do mesmo curso Dy
Intertexto Intratexto discurso Dx
REFERENTE
Do Plano Do Plano Do Plano Do Plano REFERENTE DO
deExpr. deCont. deExpr. deCont. DO CONTEXTO
CONTEXTO PRES
POSTO SUPOSTO
PARAGRA- PARÁFRA- PARAGRA- PARÁFRA
MA INTER- SE INTER- MAINTRA- SEINTRA- INTRATEXTO INTERTEXTO
TEXTL. TEXTL. TEXTE. TEXTE.
\
Intertexto que é Intertexto que ê
constituinte de uma rràcronar-
uma micronar- rativa
Sg*/Dx/ vs Sgl/D x/
SIGNIFICAÇÃO N» 7 - OUT 87 47
-com o referente intertextual, sg1, citado, o segmento que alude,
através dos gritos de guerra, a outro discurso, Dy, que trata das batalhas
de Cagancha e índia Muerta, travadas há um século atrás:
Sg*/DxJ vs SgVDy/
SIGNIFICAÇÃO Ne 7 - OUT 87 49
outro na menção explícita ao espaço anterior aos tempos da Conquista,
barro de América no conquistada aún”, o terceiro na declaração “estoy
en mil ochocientos y tantos”, e o quarto na afirmativa “esto es lo mismo
de hace treinta anos:
SIGNIFICAÇÃO N» 7 - OUT 87 51
- a identidade extensional, mítica e imanente, de espaços históricos dife
rentes, a nível de manifestação:
“Todas las partes de la casa están muchas
veces, cualquier lugar es otra lugar” (La
Casa de Ásterión)
- a identidade duracional, mítica e imanente, de tempos históricos dife
rentes, a nível da manifestação:
"Nada puede ocurrir una sola vez..." (El In-
mortal)
“„.Otálora comprende, antes de morir, que
desde el principio lo han traicionado, que ha
sido condenado a muerte, que le han permiti
do el (...) triunfo por que ya lo daban por
muerto, porque para Bandeira estaba muer
to ”
(El Muerto)
RESUMEN
El trabajo intenta aclarar el concepto de isotopta figurativa delmensageen
cuanto sentido contextuai, que resulta de la aplicación de los mecanismos de replica-
bifídad y átatividad a las distintas partes dei discurso. Ésías se asocian, asf, en el pro-
ceso de lectura, como ona espécie de replicas unas de otras, cuyo sentido sólo se per-
cibe cuando uno las lee complementariamente referidas unas a otras, como segmento
relatum citante (la réplica que se está a leer como esto, aqui, áhora) vs. segmento
correlato citado (el de que uno se acuerda, al leer el relatum, como aqueüo que leyó,
aM, entonces, en
(1) en otra parte dei mismo mensage (el correlato funciona entonces como un intra-
texto, o contexto puesto - es decir, en construceidn, por la lectura, en el presente
discurso) o
(2) en otro mensaje (el correlato constituye, en ese caso, un intertexto, o contexto de