Você está na página 1de 182

ESTRATÉGIAS EXPANSIVAS:

publicações de artistas e seus espaços moventes


Michel Zózimo da Rocha

ESTRATÉGIAS EXPANSIVAS:
publicações de artistas e seus espaços moventes

1ª edição

Porto Alegre
Edição do Autor
2011
Permite-se a reprodução parcial ou total desde que seja citada a fonte
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA, PROIBIDA A VENDA
1ª edição: 2011

Capa [Michel Zózimo da Rocha - interferência gráfica sobre ilustração do livro As


Maravilhas do Fundo do Mar]
Projeto Gráfico [Marina Bortoluz Polidoro e Michel Zózimo da Rocha]
Fotografia de Originais [Denise Helfenstein]
Tratamento de Imagens [Denise Helfenstein e Juliano Lopes]
Revisão [Fernanda Bulegon Gassen]

R672e Rocha, Michel Zózimo da


Estratégias expansivas: publicações de artistas e seus espaços
moventes / Michel Zózimo da Rocha. --- Porto Alegre : M. Z.
da Rocha, 2011.
180 p. : il.
ISBN 978-85-911696-0-3
1. Arte contemporânea. 2. Publicação de artista. 3. Espaços
moventes. 4. Publicação : Circulação. I. Título.
CDU 7.039
Catalogação na fonte – Mara R. B. Machado – Bibliotecária, CRB 10/1885

Este projeto foi contemplado pela


Fundação Nacional de Artes – Funarte
No edital Bolsa de Estímulo à Produção Crítica em Artes Visuais
Porto Alegre. RS. Brasil. 2011
Assim que for editado, lhe envio.
Malevitch
Apresentação [9]
Emblemas [17]
Jornal [33]
Cédula [49]
Valor [59]
Formato-livro [67]
Espaços moventes [81]
Imagens [95]
Feriado, de Fabio Morais [105]
Entrevistas [109]
Regina Melim [LOJA] [111]
Cristina Freire [MUSEU] [123]
Amir Brito [BIBLIOTECA] [133]
Cristiano Lenhardt [RELACIÓN ORNAMENTAL] [141]
Paulo Silveira [PUBLICAÇÃO] [147]
Maria Ivone dos Santos [TRÂNSITO] [155]
Agradecimentos [177]
apresentação
9

APRESENTAÇÃO
10
estratégias expansivas
apresentação
A década de sessenta abriga inúmeras alterações no
campo da arte, em relação ao espaço expositivo, ao modo
11

constitutivo do trabalho artístico, ao modelo de apreensão espa-


cial, ao caráter material, ao tempo de duração dos projetos
artísticos [e consecutivamente a possibilidade de novas edições
desses projetos].
Tais alterações contaminam as linguagens artísticas,
ampliando os parâmetros de abordagem da arte e as suas
derivações formais e conceituais. Aqui, podemos cogitar que
as relações entre forma e conteúdo, emergidas das práticas
artísticas dos anos sessenta, carregam questionamentos que
vão além dos fatores constitutivos da arte, deslocando as suas
fronteiras para campos extra-artísticos.
Desse modo, a permeabilidade da arte em diferentes
camadas do tecido social dialoga com as alterações físicas e
inventivas das produções de endereçamento conceitual, dos
projetos ambientais, das ações performáticas e dos eventos
banais e cotidianos de diferentes frentes artísticas.
Assim, o modo de apresentação, os lugares e a noção
estratégias expansivas

de público [que tais produções encerram] podem se articular


como motes de investigação da arte atual. Ao longo das déca-
das de sessenta e setenta, podemos observar a presença de
um estratagema que aproxima os contornos dessas produções,
o qual está ligado aos seus veículos de documentação, dis-
seminação de ideias, subversões independentes, partilha de
12 imagens ou de prolongamentos da experiência artística – a
publicação de artista.
Nessa instância, a crescente proliferação dos meios de
impressão, o uso da fotografia, a manipulação dos processos
de edição gráfica e o elogio ao texto [como prática reflexiva ou
poética] articulam-se como alguns vetores das publicações de
artista. Em um âmbito geral, essas produções se configuram
em meio impresso, com tiragens limitadas ou ilimitadas, justa-
pondo, através das artes gráficas, imagem e [ou] texto. Trata-se
de um importante veículo de difusão e de dispersão utilizado
por distintos projetos artísticos que podem empregar ou abrir
mão das estruturas convencionais de edição, de publicação,
de distribuição e de circulação.
É interessante observar que nem todas as publicações
de artista possuem o formato-livro. O meio impresso [através
de fotocópias, laser, offset, serigrafia, entre outros métodos
de impressão] se presta simultaneamente às dimensões in-
terdisciplinares de uma publicação e às suas características
distributivas.
Tais elementos, em primeira instância, são inerentes aos
significados que o termo publicação pode encerrar, articulando-

apresentação
se como ‘um enunciado impresso emitido para um grupo de
indivíduos’. Conforme já mencionado, o termo publicação de
artista não faz referência somente ao formato-livro, mas sim ao
suporte impresso e ao seu caráter múltiplo e distributivo, pres-
supondo uma edição, uma tiragem e uma provável circulação. 13
Nesse caso, livretos, jornais, revistas, objetos múltiplos,
postais, selos, cartas, folhetos, adesivos, cédulas, cartazes,
jogos, mapas, apostilas, entre outros meios, articulam-se como
veículos rizomáticos que dialogam com as sinalizações: editar,
publicar, disseminar e circular.
Indo além dos circuitos institucionais, tais publicações
podem ser abordadas como espécies de estratégias expansivas,
as quais os artistas empregam em suas poéticas. A noção de
unicidade, valoração e maleabilidade da obra são atualizadas
por produções de tiragens múltiplas, possibilitando, ao trabalho
artístico, uma porosidade em relação ao seu caráter institucional
e geográfico.
No Brasil, podemos observar que as produções, de
forte endereçamento conceitual, possuem sua gênese nos anos
sessenta, ganhando novo fôlego nesta última década. Através
desse tipo de publicação, os papéis ocupados pelo artista
são alterados em relação aos seus modos de execução, de
distribuição, de apresentação, de reflexão e, até mesmo, de
estratégias expansivas

autoria, já que algumas publicações nascem de projetos co-


laborativos. Esse tipo de produção é caracterizado por ter uma
tiragem impressa, um valor relativamente baixo e por transitar
em espaços distintos.
Nessa circunstância, cria-se um entrave material, pois
apesar de sua ampla distribuição, certos trabalhos ganham um
14 caráter de raridade, ao serem descartados por seus leitores ou
desaparecerem com a fugacidade do tempo. Em contrapartida,
podemos nos perguntar: haveria a necessidade de conservação
dessas publicações? Ou, em um espaço expositivo, qual seria
o estatuto de uma obra múltipla que só é ativada pela leitura
e manuseio? A última questão não somente interroga esse tipo
de trabalho artístico, como também coloca em xeque o modo
como os lugares apresentam tais produções.
O panorama internacional se mostra atento para esse
tipo de poética, com pesquisas que os fomentam e abrigam,
aqui exemplificados pelo CNEAI [1] ou pela mostra DO IT [2].
No cenário brasileiro, o MAC da USP [3] e a Coleção Especial
de Livros de Artistas da Biblioteca da Escola de Belas Artes da
UFMG [4] se articulam como os principais núcleos institucionais
de conservação e pesquisa.
Nesse sentido, o presente estudo reflete sobre esse
escopo da produção artística brasileira atual, levantando suas
origens e apontando os seus vetores de atuação. Ao desen-
volver este projeto, foi realizada uma pesquisa de levantamento
bibliográfico, mapeamento de lugares, de produções atuais, de
trabalhos que podem ser considerados emblemáticos e conver-

apresentação
sas com artistas, pesquisadores, críticos e curadores brasileiros.
Tal estudo pode ser apreendido como material reflexivo
e de aporte para outras pesquisas que desejem implementar
novas questões. Se antes esse tipo de produção era abordado
como periférica ou marginal, atualmente a sua abordagem cerca 15
noções de local/global, de inserção e de gestão institucional.
Os blocos textuais deste livro partiram de trabalhos
de arte para discutir as questões de circulação e de edição.
Enquanto que a noção de circulação foi abordada como um
princípio de fluxo, a ideia de edição articulou-se com as etapas
de seleção de material a ser publicado e com a possibilidade
de desdobramento de um trabalho artístico. O processo de
construção textual transitou das publicações vanguardistas aos
livros de artista editados, dos jornais às cédulas, dos espaços
moventes aos mecanismos alternativos de mercado.
Na sequência, a segunda parte do livro foi composta por
entrevistas com pesquisadores, artistas e teóricos que alimentam
as reflexões sobre procedimentos operatórios e lugares de uma
publicação de artista.
estratégias expansivas

Notas
16 [1] CNEAI - [Centro Nacional de Edição e Arte Impressa] É um centro
nacional de arte contemporânea, localizado em Chatou/França. Criado em
1997, o CNEAI promove publicações de artistas, encontros de editores
independentes, além de possuir um acervo de publicações em meio
impresso.CNEAI pode ser acessado: http://www.cneai.com/
[2] DO IT - Projeto coordenado por Hans Ulrich-Obrist, desde 1993, é
compreendido por instruções que seus artistas integrantes, entre os quais
alguns brasileiros, apresentam na forma de documentos impressos ou
proposições publicadas na internet.
DO IT pode ser acessada em: http://www.e-flux.com/projects/do_it/
homepage/do_it_home.html
[3] MAC-USP – Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São
Paulo, criado em 1963.
Pode ser acessado em: http://www.mac.usp.br/mac/index.htm
[4] Coleção Especial de Livros de Artistas da Escola de Belas Artes da
UFMG – Iniciada em 2010, está formando a primeira coleção especial de
livros de artista em uma biblioteca universitária. Outras informações em:
http://seminariolivrodeartista.wordpress.com/colecao-especial/
EMBLEMAS
Notas
[1]. MALIÉVITCH, Kazímir. Dos Novos Sistemas da Arte. São Paulo: Hedra,
2007. [p.54]
[2]. Ibid., [p.40]
[3]. Ibid., [p. 19]
[4]. TOMKINS, Calvin. Duchamp - uma biografia. São Paulo: Cosac Naify,
estratégias expansivas

2005. [p.219]
[5]. Ibid., [p.220]
[6]. Cf: Klaxon - Mensário de Arte Moderna. Volume I. São Paulo: 1922.
[p. 02]
Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/01005510#page/1/
mode/1up
Ver também: LARA, Cecília de. Klaxon e Terra Roxa e Outras Terras. São
Paulo: Ieb-USP, 1972.
18 [7]. FREIRE, Cristina; LONGONI, Ana, (Orgs.). Conceitualismos do Sul/Sur.
São Paulo: Annablume, 2009. [p.18]
[8]. DIAS-PINO, Wlademir; SÁ, Álvaro de. POEMA PROCESSO:
PROPOSIÇÃO. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e
Modernismo Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1976. [p. 422]
[9] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios
sobre literatura e história da cultura. Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1994.
[p.171]
emblemas
Em 1919, oA artista, através
Novos istemas da rte
S
1
russo Malevitch publicou o livro D
do qual observamos como a
os
19

expressão ‘sistema’ foi empregada em relação à arte moderna,


articulando-se estreitamente com a pintura e com seus modos
de representação. Por meio de tal publicação, Malevitch esboça
uma espécie de tratado sobre o Suprematismo, onde também
apresenta uma postura crítica em referência a sociedade da
época. Sobre tais aspectos, Malevitch escreve:

1
Em virtude das traduções encontramos diferentes grafias para o nome do pintor
russo Малевич – Malevitch, Malevich, Maliévitch.
A natureza será vencida, pois minhas pernas não são nada em com-
paração com as rodas criadas por mim. O trem transportará a mim e
a minha bagagem ao redor da Terra com a rapidez de um relâmpago.
Comunicarme-ei com as cidades fácil e confortavelmente. [1]

Analisando essa afirmação, podemos retomar o contexto


do século XX, onde a sociedade absorvia as transformações
estratégias expansivas

tecnológicas do período. A produção em série, as linhas de


montagem industrial e os maquinários povoavam o imaginário
das vanguardas modernas. As mídias de massa, como a foto-
grafia e o cinema, influenciavam os modelos de representação
e os modos de produção de imagens. Em outra passagem,
Malevitch escreve:
20
A intuição impulsiona a vontade para o princípio criativo. Mas, para
chegarmos até ele, é necessário se desfazer do objeto, é preciso criar
novos signos e deixar que a nova arte, a fotografia e o cinema se
encarreguem do objeto. [2]

Ao prospectar tal pensamento, Malevitch deflagra o


desinteresse pela ordem figurativa, a qual poderia encontrar um
melhor fim na fotografia ou no cinema. Em última instância,
caberia, então, aos outros processos artísticos, buscar novos
paradigmas estéticos. Devemos destacar a intensa produção
intelectual de Malevitch e o seu envolvimento com outras frentes
de vanguarda, as quais possuíam posturas díspares diante dos
novos aparatos técnicos.
emblemas
21
estratégias expansivas

22

The Blind Man


Número 1
Marcel Duchamp e Henri-Pierre Roché
NY, 1917
Do mesmo modo, não apenas o conteúdo do livro de
Kazimir Malevitch interessa para esta pesquisa, mas também
a sua elaboração no formato de uma publicação, com “tiragem
de mil exemplares em forma de uma série de litografias em
brochura”. [3]
Assim, Malevitch adota a postura de um artista que
reflete criticamente sobre a sua produção, articulando-a com
seus pares, buscando, no meio impresso, a socialização desses
pensamentos. Enquanto que a fotografia poderia influenciar o

emblemas
rompimento dos cânones tradicionais de representação, como
o fez no Suprematismo, para o Dadaísmo, a mesma era meio
livre de experimentações em colagens, cartazes ou revistas
[Boletim DADA, 391, O Homem Cego, entre outras]. 23
O Homem Cego é o nome de uma publicação que
convidava artistas e escritores para publicar seus trabalhos ou
textos reflexivos, não havendo um tema específico. A primeira
edição foi publicada em Nova Iorque, em 1917, por Marcel
Duchamp e Henri-Pierre Roché. Tal publicação, não possui um
caráter coletivo de manifesto ou um ar uniformizado ao longo
de suas páginas. Conforme podemos observar, há um futuro
incerto, anunciado em sua capa – “O segundo número de O
Homem Cego aparecerá, tão logo você tenha enviado material
suficiente para isso”. A capa do primeiro volume apresenta o
desenho de um homem cego, portando uma bengala e sendo
guiado por um cachorro, em um espaço de arte, talvez, uma
referência ao ‘puramente visual’, tão criticado por Duchamp. A
publicação O Homem Cego era vendida, por 10 centavos, pelos
artistas em galerias e em outros espaços comerciais, tendo sido
realizada apenas uma tiragem de seus dois primeiros números.
O destino de O Homem Cego foi decidido em uma partida de
xadrez, conforme Calvin Tomkins conta:
estratégias expansivas

Picabia considerava The Blind Man uma rival de sua 391, e, certa
noite, no apartamento de Arensberg, ele desafiou Roché para uma
partida de xadrez que decidiria o destino das duas revistas; a vitória
de Picabia condenou The Blind Man, que parou de ser publicada depois
de segundo número. [4]

24 O resultado da partida de xadrez e os motivos que


levaram ao fim de O Homem Cego foram divulgados em julho
de 1917, através de outra publicação chamada Rongwrong de
Duchamp e Roché. A revista Rongwrong teve uma tiragem
única, sendo composta por oito páginas em impressão p&b.
A imagem de sua capa chama a atenção por apresentar dois
cachorros cheirando as partes traseiras um do outro. Inúmeras
revistas de artistas foram publicadas entre as primeiras décadas
do século XX, sendo as mesmas carregadas de humor, insultos
e provocações. Tomkins ressalta que: “O custo de impressão
dessas pequenas e efêmeras revistas era desprezível nesses
dias, o que explica haver tantas”. [5]
emblemas
25
estratégias expansivas

26

Klaxon - Mensário de Arte Moderna


Número 1
São Paulo, 1922
No Brasil, a revista Klaxon - Mensário de Arte Moderna
[1922-1923] é uma publicação que exemplifica uma das frentes
de propagação do projeto modernista, sob a participação
dos autores: Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Oswald de
Andrade, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Rubens Borba
de Moraes, Luis Aranha, Menotti del Picchia, Di Cavalcanti,
Anita Malfatti, Sérgio Buarque de Holanda, Tarsila do Amaral,
Graça Aranha, entre outros.
As ideias geradas na Semana de Arte Moderna de 1922

emblemas
foram também disseminadas através da publicação Klaxon. Abor-
dando o modernismo brasileiro, a Klaxon é uma das principais
referências na área de projetos colaborativos, onde os seus
autores e idealizadores participavam de todas as etapas de 27
produção. Divulgando os ideais modernistas, a Klaxon apresentou
uma nova abordagem da arte que se configurava nas primeiras
décadas do século XX. O projeto gráfico da revista Klaxon
chama a atenção por ter uma estética singular em relação aos
seus pares que surgiram nas décadas de 1920 e 1930.
De modo semelhante, os seus conteúdos voltavam-se
para assuntos atuais da época, tais como a produção emergente
de crítica, tanto em artes plásticas como nas artes visuais. Nas
primeiras páginas do volume I de Klaxon [15 de maio de 1922],
podemos observar a abordagem da publicação em relação ao
cinema: “A cinematographia é a criação artística mais repre-
sentativa da nossa época. É preciso observar-lhe a lição”. [6]
Ao total, a Klaxon teve nove edições, as quais possuem
artigos e resenhas críticas sobre cinema assinados por Mário de
Andrade. A ideia de ruptura com o passado e a sua configura-
ção que se fazia ao ar do tempo tornam a Klaxon uma revista
pioneira no território brasileiro, abrindo caminhos para outras
publicações que surgiram nas décadas subsequentes: ESTÉTICA,
estratégias expansivas

A Revista, Terra Roxa e Outras Terras, Festa, Verde, Revista


de Antropofagia. É interessante observar que tais publicações
herdaram certas características das vanguardas européias do
século XX, entre elas - o coletivismo como bandeira de protesto
e ruptura com o passado, o experimentalismo como base de
criação intelectual e invenção gráfica e a produção de manifestos
28 como emblemas de movimentos.
O conjunto das publicações que surgiram nas primeiras
décadas do século XX representa os fundamentos das vanguar-
das na forma de manifestos impressos. Conforme Cristina Freire:
As publicações de artistas estão intimamente ligadas à história das
vanguardas. A difusão de manifestos, por exemplo, foi um dos usos
dessas publicações no início do século XX. Muitas vezes desconsidera-
das, as revistas foram o lugar de exibição de muitos trabalhos seminais
para a arte contemporânea. Tanto revistas como livros pertencem a
essa categoria de trabalhos de artistas capaz de articular no mesmo
plano da página, documento histórico e obra, texto e imagem, arquivo
e exposição. [7]

Em âmbito nacional, as características vanguardistas e os


manifestos reverberaram nas décadas de 1960 e 1970, através
da poesia de vanguarda brasileira. Em um manifesto, chamado
Poema-Processo Proposição, publicado no jornal O Sol, em
nove de novembro de 1967, Wlademir Dias-Pino e Álvaro de
Sá explicitam a arquitetura processual do poema como objeto
de consumo, o qual se dá nos trânsitos da linguagem – entre
a efetiva participação dos leitores-consumidores e o processo
de instauração da informação.
Ao longo do Poema-Processo Proposição, os poetas
visuais Wlademir Dias-Pino e Álvaro de Sá apontam diferen-

emblemas
ças entre “poemas reprodutíveis” e “poemas tridimensionais”.
Segundo os poetas, enquanto que os “poemas tridimensionais”
encontravam a exposição como condição de existência, os
“poemas reprodutíveis” eram próprios para serem impressos em 29
revistas, folhas soltas ou livros. Portanto, a condição física dos
“poemas reprodutíveis” tem a folha de papel como suporte e
a impressão em série como prolongamento do tempo e meio
expansivo da experiência artística.
Ainda em Poema-Processo Proposição, Wlademir Dias-Pino
diz que os “impressos pretendem uma duração maior que os
objetos-poemas”, pois os poemas reprodutíveis, conservados em
revistas, livros ou caixas-bibliotecas têm “uma maior facilidade
de exportação”. No contexto de uma publicação e em termos
de expansão territorial, podemos pensar no termo ‘exportação’,
como uma saída, um escape além das fronteiras dos processos
intermediários e limítrofes de um circuito expositivo tradicional.
POEMA PROCESSO
PROPOSIÇÃO [8]

QUANTIDADE + QUALIDADE
SÓ O CONSUMO É LÓGICA
estratégias expansivas

CONSUMO IMEDIATO COMO ANTINOBREZA


FIM DA CIVILIZAÇÃO ARTESANAL
(INDIVIDUALISTA)
SÓ O REPRODUTÍVEL ATENDE, NO
MOMENTO EXATO, ÀS NECESSIDADES
DE COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO DAS MASSAS
30
A MANIFESTAÇÃO SERIAL E INDUSTRIAL
DA CIVILIZAÇÃO TÉCNICA DE HOJE
(…)

Apesar do hiato temporal de quatro décadas que separa


a Semana de Arte Moderna dos manifestos da poesia vanguar-
dista, podemos observar, tanto no poema de Wlademir Dias-Pino
quanto nas edições da revista Klaxon, uma confluência com o
pensamento de Walter Benjamin - presente no ensaio A Obra de
Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica. Benjamin iniciou a
escrita da primeira versão do referido texto na década de 1930,
entretanto o seu argumento permanece atual para pensarmos os
processos de reprodução de imagem dentro do sistema artístico.
Fascinado pelos poderes reprodutíveis da fotografia,
Walter Benjamin escreve: “A obra de arte reproduzida é cada
vez mais a reprodução de uma obra de arte criada para ser
reproduzida”. [9] A afirmação de Benjamin, transposta para uma
publicação, remonta o seu sentido indicial, ou seja, defende a
ideia de que o original é criado unicamente em função de suas

emblemas
cópias. Deslocando o foco de atenção dos artifícios fotográficos
para os processos de cópias a partir de um original, podemos
associar o pensamento de Benjamin aos princípios seriais de
uma publicação. De acordo com os processos reprodutíveis, 31
em uma publicação haveria um original [escrito à mão, batido
à máquina, ou um arquivo virtual], uma matriz que serve de
base para as suas cópias, todavia, este original não deveria
subestimar os seus duplos.
Assim, a distinção entre os exemplares de uma publi-
cação não ocorre a partir da análise de autenticidade entre
matriz e cópia. Nesse contexto, os atributos de unicidade,
exclusividade e raridade devem ser substituídos pelas dimensões
de multiplicidade e massificação. Diante dessas alterações, não
são apenas os processos de reprodução da imagem que devem
ser refletidos, mas também os seus modos de percepção e
de instauração no mundo. Aqui há uma dimensão política que
perpassa a obra de arte, abrangendo desde a sua produção até
a sua existência comum. Imaginar a arte acessível para uma
multidão, alterando significantemente os atributos que lhe são
inerentes, poderia configurar distorções entre ‘valor de culto’ e
‘valor de exposição’, as quais foram analisadas por Benjamin.
Nesse contexto, vale observar que as produções abor-
estratégias expansivas

dadas neste bloco de texto articularam-se como emblemas


que sinalizam certas características das publicações nascidas
no interior da arte. A publicação de Malevitch, a revista de
Duchamp e Roché, a revista Klaxon e a proposição de Wlademir
Dias-Pino e Álvaro de Sá se refletem como pontos de contato
com um pensamento que deseja o compartilhamento do
32 comum. Não obstante, a perspectiva de expor o pensamento
e a ação em arte é efetivada através do meio impresso sem
fazer distinção entre público e privado, circunstância particular
e expressão coletiva.
emblemas
33

JORNAL
Notas
[1]. TEJO, Cristiana. Paulo Bruscky: arte em todos os sentidos. Recife:
Zoludesign, 2009. [p.11].
[2]. FREIRE, Cristina. Paulo Bruscky: arte, arquivo e utopia. São Paulo:
Companhia Editora de Pernambuco, 2006. [p. 46].
[3]. BRITTO, Ludmila da Silva Ribeiro de. A Poética Multimídia de Paulo
Bruscky. Salvador: UFBA, 2009. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-
estratégias expansivas

Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes, Universidade Federal da


Bahia, 2009. [p. 73]
[4]. FREIRE, Cristina. Paulo Bruscky: arte, arquivo e utopia. São Paulo:
Companhia Editora de Pernambuco, 2006. [p. 49].
[5]. SANTAELLA, Lucia. O Pluralismo Pós-utópico da Arte. In: Revista Ars,
São Paulo, vol. 07, n. 14, p. 148-149, 2010.
[6]. SCOVINO, Felipe. Driblando o Sistema: um panorama do discurso
34 das artes visuais brasileiras durante a ditadura. In: Anais do 18º Encontro
Nacional da ANPAP. Salvador: UFBA, 2009, [p. 1856].
[7]. MEIRELES, Cildo Apud HERKENHOFF, Paulo (Org). Cildo Meireles:
Geografia do Brasil. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. [p. 60]
[8]. Cf. COHEN, Ana Paula. Editorial museumuseu. In: Jornal museumuseu.
Ano 01 n. 01, outubro de 2006, 27ª Bienal de São Paulo.
[9]. Ibid.
[10]. Cf. SANTOS, Maria Ivone dos. Editorial Jornal Perdidos no Espaço do
Centro de Porto Alegre. In: Jornal Perdidos no Espaço do Centro de Porto
Alegre. Porto Alegre, n. 02, maio/junho de 2006.
[11]. SILVEIRA, Paulo. As Existências da Narrativa no Livro de Artista. Porto
Alegre: UFRGS, 2008. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em
Artes Visuais, Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
2008. [p. 49].
jornal
O pernambucano Paulo Bruscky pode ser considerado
um dos artistas brasileiros que representa o recorte de uma
35

geração setentista, através de incursões conceituais que tentaram


aproximar proposições artísticas da vida. Ações, performances,
intervenções em espaços públicos e privados, colagens, obje-
tos, instalações, fotografias, cartazes, postais, cartas, carimbos,
livros de artista, vídeos, entre outras linguagens, caracterizam
a poética de Bruscky.
Aqui podemos ressaltar duas importantes características
que perpassam a produção de Paulo Bruscky, a palavra como
atitude poética e os meios e as tecnologias comunicacionais
como seus dissipadores. Das palavras que se tornam Poesia Viva,
performance realizada originalmente em 1977, às palavras que
comunicam projetos absurdos, como em Composição Aurorial,
anúncio publicado nos classificados do Jornal do Brasil, em
1976.
Lembremos a situação social e política, instauradas no
Brasil, na época em que Bruscky realizou tais ações. Naquele
estratégias expansivas

período, o país passava por uma distensão lenta, objetivando


a re-implantação do sistema democrático. Os termos ‘lento,
gradual e seguro’, que, teoricamente, adjetivavam o processo de
transição de um regime ditatorial para um panorama democrá-
tico, foram propostos durante o mandato do Presidente militar
Ernesto Geisel.
36 Apesar do ano de 1975 ter representado mudanças na
paisagem social brasileira, acerca da abertura do regime militar e
do retorno de exilados políticos, podemos nos questionar acerca
do adjetivo ‘seguro’. A morte por enforcamento do jornalista
Vladimir Herzog, ainda em 1975, nas dependências do DOI-
CODI, exemplifica a fragilidade de tal adjetivo, demonstrando
interesses de acobertamento da real situação implantada após
o golpe militar de 1964.
Nesse período, o uso dos serviços dos Correios, através
de trocas postais, foi um dos vetores empregados na amplifi-
cação e na circulação de mensagens, pelas quais a arte de
Bruscky se [des]materializava em comunicação e trânsito, bur-
lando o regime ditatorial. Segundo Cristiana Tejo:
Apesar da repressão, as mensagens de Paulo Bruscky urgem em ganhar
o mundo. Uma das frases mais presentes nos telegramartes expressa
bem esse sentido de urgência: “Arte do meu tempo. Tenho pressa”.
O sistema de circulação dos Correios e os novos meios que surgem
(como o fax) são a melhor maneira de furar a censura tanto da Ditadura
Militar quanto da distância territorial de seus pares. [1]

Nos anos setenta, a Equipe Bruscky & Santiago, forma-


da pela dupla Paulo Bruscky e Daniel Santiago, lançou uma
série de anúncios em jornais de média e grande circulação,
configurando uma espécie de Arte Classificada. Desse modo, a
produção de Bruscky e de Santiago nos interessa pelos jogos

jornal
criados através do uso de meios impressos pré-existentes.
Através dos anúncios publicados em jornais, a Equipe 37
Bruscky & Santiago articula uma prática pautada por uma es-
pécie de contra-informação, cujas bases de desenvolvimento
estão centradas na linguagem e na circulação desta, por meio
de atentados críticos e poéticos, inserindo-os no sistema mer-
cantil. Sobre o uso da publicação jornal, Cristina Freire observa:

Trata-se, no limite, de uma forma de fazer poesia marginal e de vê-la


circular em circuitos alternativos. Essa estratégia orienta-se pela ideia
de criar um ruído nos mecanismos de controle da informação. A página
impressa de um jornal convencional alinhava várias proposições muito
caras aos artistas naquele momento, como por exemplo, encontrar
outros espaços de exposição para troca de informações artísticas além
de galerias e museus, ir ao encontro de um público muito mais amplo
e diversificado e, finalmente, eliminar qualquer possibilidade de fazer
obra-mercadoria. [2]
Em 1976, através do anúncio Composição Aurorial, a
dupla de artistas procura patrocinadores para realizar o seguinte
projeto: “expor uma aurora tropical artificial colorida provocada
pela excitação dos átomos dos componentes atmosféricos a
100 km de altitude”.
Nesse mesmo anúncio, os dois artistas prosseguem: “A
estratégias expansivas

exposição não polui o espaço, não altera o tempo, nem influen-


cia a astrologia, é um acontecimento de arte contemporânea”.
Conforme a pesquisa de Ludmila Britto: “Segundo os artistas,
não houve nenhum interessado em patrocinar o projeto, que,
apesar de parecer absurdo e ambicioso, é perfeitamente pos-
sível”. [3]
38 Nessa perspectiva, a potência poética dos anúncios que
operam seguindo essa lógica pode estar, muito mais, na impre-
cisão do pensamento que imagina a ação proposta por Bruscky
e Santiago, do que no próprio conteúdo anunciado. Assim, o
jornal impresso se porta como meio expansivo de inserções
ruidosas, muitas vezes invisíveis. Poderíamos nos perguntar:
Quantos leitores perceberam ou viram os anúncios de Bruscky e
de Santiago? Ou de outro modo, quantos leitores apreenderam
o anúncio como uma proposição artística?
No caso de Bruscky e de Santiago, a transgressão de
certos sistemas de informação e de redes comunicacionais,
exemplificada pela arte postal ou pelos anúncios em jornais,
pode representar a ampliação do lugar social da arte.
O jornal, como veículo midiático, seria um meio de
contato com um público mais amplo, apesar desse público,
possivelmente, desconhecer a fabulação de tais anúncios. Ao
anunciar a produção ou a procura de bens, de serviços e
de estranhos projetos de máquinas e aparelhos fantásticos
[Máquina de Filmar Sonhos, Borrachas para Apagar Palavras,
Eletroencefalógrafo Musicado] deflagra-se a impossibilidade
classificatória típica do meio impresso e a sua dinâmica de
leitura. Conforme Cristina Freire:
No caso da arte classificada, este lapso, entre a leitura automática
e cega dos classificados e a pausa poética irreverente forçada pelos
anúncios non-sense, revela uma estratégia de guerrilha urbana em
favor da poesia, sufocada pelo hábito e pela mediocridade vigente. [4]
De certa forma, a subversão do modus operandi de
um jornal, através da publicação de enunciados absurdos,
configura-se pelo uso de espaços discursivos pré-existentes.
O desejo de Paulo Bruscky de ampliar as fronteiras entre arte
e vida, ao ponto de fazê-las sumir ou de torná-las invisíveis,
reflete uma lógica de pensamento em detrimento de um fazer
estratégias expansivas

manual. Investigando o emprego dos canais de comunicação,


através de produções artísticas, Lúcia Santaella constata que:

[...] o jornal como meio de registro, comentário e avaliação dos fatos


cotidianos é um produtor de cultura, mas, ao mesmo tempo, é também
um divulgador das formas e gêneros de cultura que são produzidos
fora dele, tais como teatro, dança, cinema, televisão, arte, livros, etc. [5]
40

A prática de utilizar o jornal impresso como meio de


divulgação de projetos artísticos, burlando os seus limites e as
suas estruturas convencionais, também pode ser observada em
Exposição de 0 a 24 Horas, série de Antônio Manuel, a qual fora
publicada, na forma de suplemento, nas páginas do periódico
carioca O Jornal. Conforme o seu título, a exposição durou
o tempo de exibição do jornal nas bancas. As seis páginas
que foram ocupadas por Antônio Manuel abarcaram projetos
[Urnas Quentes, O Bode, Margianos, Clandestinas, Éden e O
Galo] censurados pelo MAM-RJ, em 1973. Em uma entrevista
concedida a Felipe Scovino, Antônio Manuel diz:
Exposição de 0 a 24 Horas teve uma tiragem de 100 mil exemplares,
com distribuição nacional e foi encartado no caderno cultural de O
Jornal. Foi a maneira que encontrei para que o trabalho circulasse e
expusesse o estado de bode em que vivíamos na política e na arte. [6]

A dinâmica de circulação de um trabalho artístico,


através de redes impressas, abrangendo vasta distribuição
de informações, pode ser verificada igualmente na poética de
Cildo Meireles. Em 1970, Cildo Meireles publicou dois anúncios
na seção de classificados do Jornal do Brasil, denominando-
as Inserções em Jornais: Classificados. Na área ‘Diversos’, foi

jornal
publicado, com o endereço para possíveis contatos em anexo, o
seguinte anúncio: “ÁREAS – Extensas, Selvagens, Longínquas”.
De quais áreas selvagens, Cildo Meireles estaria falando? 41
Nas extensões territoriais da Amazônia? Não está claro se o
anúncio oferece as terras para venda ou se as busca como
lugar de posse.
Tal anúncio parece estar codificado, ou, de outro modo,
o texto estaria resumido [comprimido], conforme o padrão dos
anúncios que possuem um espaço reduzido de informação.
Sobre esta série, Cildo Meireles comenta:

O que me interessava estava muito além do jornal. Era exatamente a


questão dos mecanismos de controle de informação no interior de cada
sistema. A sua aparente liberdade poderia se afunilar drasticamente
em meios como o rádio, a televisão e o jornal, que são facilmente
controláveis. [7]
Ao apresentar as intenções que permeavam o projeto
Inserções em Jornais: Classificados, Cildo Meireles prospecta uma
clara oposição frente aos circuitos mecânicos de circulação de
informação, furando o suposto controle que há nestes mecanis-
mos. Se pensarmos que um jornal de média circulação possui
uma tiragem de dezenas de milhares de exemplares, veremos
a dimensão que uma interferência artística pode tomar. Portanto,
a efetividade do trabalho só existe em função da circulação que
lhe é inerente e da leitura que deve ser praticada.
Distintamente da inscrição de anúncios ou textos e ima-
gens em espaços do meio impresso, podemos observar o uso
integral do jornal ou de seu modelo, como espaço formativo,
através de publicações recentes, tais como o jornal museumuseu,
de Mabe Bethônico, publicado em outubro de 2006, na 27ª
Bienal de São Paulo, e do Jornal Perdidos no Espaço do Cen-
tro de Porto Alegre, do grupo Perdidos no Espaço, publicado
em maio de 2006.
No editorial do jornal museumuseu a curadora Ana Paula
Cohen explicita as condições de existência dessa publicação

jornal
através da seguinte declaração:

Esse jornal foi criado, portanto, com duas intenções principais. A primeira, 43
apresentar ao público a estrutura do museumuseu, abrindo possibilidades
de leitura, sem determinar os caminhos a serem percorridos. Estes
se configuram naturalmente dependendo do interesse, do tempo e do
tipo de aproximação de cada um às propostas do Museu. A segunda,
possibilitar ao museumuseu uma intervenção no espaço físico da Bienal
durante o evento – considerando que o jornal já funciona como pre-
sença institucional compreensível –, de forma mais coerente com suas
atividades. [8]

Assim, podemos observar a presença de um pensamento


coerente entre o projeto museumuseu e suas intenções de pes-
quisa, coleção e classificação. Ao escolher o jornal como veículo
de apresentação e de documentação, em um evento artístico
de grande reverberação, o projeto museumuseu deflagra uma
possível flexibilidade em relação ao seu tempo de duração e
às práticas museográficas. Sobre tal possibilidade, Ana Paula
Cohen questiona: “[…] porque deveriam as proposições artísticas
produzidas hoje serem mostradas em um só espaço, prontas
para serem apreendidas de uma só vez?” [9]
Indo ao encontro de Cohen, poderíamos abordar o jornal
estratégias expansivas

como um suporte distributivo capaz de atingir lugares recônditos


e distintos tipos de público. Esta parece ser também uma das
intenções do Jornal Perdidos no Espaço do Centro de Porto
Alegre, ilustrada pelo editorial, onde Maria Ivone dos Santos
destaca quem seria o público do jornal:

44 Este jornal foi pensado e dedicado a você que pode estar sentado
num dos mais de duzentos bancos dessa nossa Praça da Alfândega;
a você que pode estar assistindo distraidamente um jogo de damas ou
de cartas para passar o tempo, ou a você que está acordando nesse
momento, ou descansando, esperando, trabalhando; a você que observa
a grande quantidade de pessoas caminhando na Rua da Praia, ou
que usa o jornal como pretexto para olhar as meninas ou os rapazes;
a você que está só ou que está (bem ou mal) acompanhado; a você
que pode estar folheando este jornal à procura de notícias ou da pá-
gina policial, à procura de trabalho, amor, religião, esporte, sexo ou
diversão (mas não, parece que não é nada disso); a você que pode
estar somente atrás dos quadrinhos (onde estarão?); a você, artesão,
camelô ou que vende algo de vez em quando; a você que gostaria de
pegar um solzinho no inverno; a você que freqüenta exposições de arte
ou que visita museus, que tenta entender a diferença entre colecionar
quadros e colecionar tampinhas de garrafa; a você que não freqüenta
museus e que acha que fazer arte é coisa de alguém que apronta. [10]
O Jornal Perdidos do Centro de Porto Alegre foi o
resultado de uma oficina que agregou cerca de trinta pessoas
interessadas em pensar a arte no espaço da cidade, sendo coor-
denada por Hélio Fervenza e por Maria Ivone dos Santos, onde
os participantes podiam publicar as experiências que haviam
sido desenvolvidas durante os encontros. A oficina integrou as
atividades paralelas à exposição É hoje na Arte Contemporânea
– Coleção Gilberto Chateaubriand – MAM, realizada em 2006,
no Santander Cultural.
A Praça da Alfândega e o seu entorno localizado no

jornal
centro da capital gaúcha tornaram-se espaços de reconheci-
mento, de intervenções, de ações e proposições em arte. Larissa
Madsen recolheu todos os manuscritos anônimos que encontrou 45
durante uma hora de caminhada pela área da praça, Rosana
Bones e Katlin Jeske estenderam suas roupas em varais mon-
tados em frente ao MARGS [Museu de Arte do Rio Grande
do Sul], Cecília Dutra criou instruções para Esculturas Públicas
Temporárias, espécies escultóricas criadas com lixo e outros
materiais disponíveis, Sandro Bustamante recriou um mapa da
praça de 1840, Márcia Sousa da Rosa entrevistou mulheres
profissionais do sexo que ocupam os bancos da praça, Lilian
Minsky trocou de lugar com um vendedor de antenas [enquanto
a artista vendia antenas, o ambulante foi visitar a exposição no
Santander Cultural]. Outros participantes desenvolveram ações,
entrevistas, cartões de vista, panfletos e projeções.
Ao final da oficina, o material resultante dessas atividades
foi reunido no jornal, o qual retornou para o espaço da Praça
da Alfândega, ao ser distribuído gratuitamente no seu lançamento
no Santander Cultural. A ideia de editar e publicar as atividades
desenvolvidas pelo Perdidos no Espaço já havia sido realizada
em outros dois encontros do Fórum Social Mundial, ocorridos em
estratégias expansivas

Porto Alegre, em 2003 e 2005. Interrogações sobre questões


do espaço público e sobre trabalho coletivo foram tópicos de
investigação das relações entre arte e lugar. Partindo desses
tópicos, o jornal foi escolhido não apenas como um ponto de
extensão e de prolongamento da experiência artística, mas
também como um lugar de arte, como um espaço portátil e
46 dinâmico que poderia encontrar novos leitores, outros públicos.
Não devemos esquecer que a história moderna do jor-
nal está estreitamente ligada ao aperfeiçoamento da imprensa
periódica, a qual teve as suas técnicas de reprodução de textos
aprimoradas por Gutenberg, através dos tipos móveis. É neste
momento que a informação ganhou uma dinâmica veloz, atingin-
do um número relativamente grande de leitores. O conhecimento
e a disseminação de aprendizagem em massa alcançaram uma
larga escala de difusão por meio de técnicas reprodutivas de
informação. Atualizando essa perspectiva histórica e abordando
o jornal, como um espaço acolhedor de manifestações artísticas,
podemos pensar no regime de comunicação que perpassa a arte
atual. Ao conferirmos esse caráter comunicacional às atividades
artísticas que se validam de produções textuais e imagéticas
em meio impresso, as noções de leitura e de público de arte
alteram-se completamente.
Desse modo, os jornais de Mabe e do Perdidos jogam
com a ampliação conceitual de público e com a sua transposição
efetiva para leitor, decifrador, intérprete, pesquisador, decodi-
ficador, distribuidor, colecionador entre outros. Nesse sentido,
Paulo Silveira, destaca a abordagem do curador norte-americano
Ralph Rugoff sobre trabalhos que exigem “[...] visão forense
ou pericial de um público não mais observador (o que é muito

jornal
frequente nas publicações de artista) [...]”. [11]
Evidentemente que Silveira, ao prospectar tal pensa-
mento, se refere a um tipo específico de publicação, o qual 47
articula situações não apenas contemplativas. As reminiscências
das práticas conceitualistas, dos relatos de experiências, dos
registros verbais e das inflexões mentais incorporadas, ao longo
das últimas décadas em diferentes poéticas, podem exemplificar
certas publicações de artistas.
Embora os trabalhos abordados neste bloco de texto
possam ser reunidos sob dois conjuntos de projetos [inscrições
da linguagem em sistemas impressos pré-estabelecidos e fabri-
cação integral de um jornal], há, nos mesmos, a ideia implícita
de circulação, disseminação.
48
estratégias expansivas
CÉDULA
Notas
[1] HERKENHOFF, Paulo. Arte é Money [artigo originalmente publicado na
Galeria Revista de Arte, n. 24, março/abril de 1991, p. 60-67]. A sua versão
on-line pode ser acessada em:
http://www.museuvirtual.org.br/targets/cafe/targets/panorama/targets/teoria/targets/
texts/money.html
[2] CALDAS, Waltercio. Manual da ciência popular. São Paulo: Cosac Naify,
estratégias expansivas

2007. [p. 5]
[3] NAVES, Rodrigo. Waltercio Caldas Jr.: de papel. In: NAVES, Rodrigo. O
Vento e o Moinho: ensaios sobre arte moderna e arte contemporânea. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007. [p.465]

50
cédula
OP rojeto Cédula, 1970/1976, de Cildo Meireles,
integrante de Inserções em Circuitos Ideológicos, toma a nota
51

de dinheiro como suporte e veículo para a disseminação de


mensagens gravadas com carimbos de borracha. Assim, tal
projeto nos interessa pela ideia de gravação que carrega e por
seu movimento incontrolável dentro das trocas mercantis. O gesto
político desse projeto é intensificado pelo seu suporte e pelas
mensagens que foram gravadas nas cédulas. As perguntas e
as instruções lançadas nas notas possuem um remetente que
deveria ser mantido oculto e infinitos destinatários que seriam
desconhecidos.
Circulação e disseminação são características inerentes a
qualquer moeda que media as trocas de bens e de serviços. A
circulação do dinheiro é impulsionada pelos processos comerciais,
os quais alimentam as reservas e as atividades da economia.
Nessa perspectiva, as mensagens inscritas no Projeto Cédula
ganham o mundo pela rede de escambos, não podendo ser
controladas nem censuradas.
Operando a lógica dos múltiplos, Zero Cruzeiro e Zero
estratégias expansivas

Dollar, 1974/1978, são cédulas impressas em litografia offset,


medindo 7 x 15,5 cm e com tiragem ilimitada. Para confeccionar
Zero Dollar, Cildo Meireles contou com o apoio técnico de João
Bosco Renaud, designer gráfico da Casa da Moeda do Brasil. As
cédulas de Cildo Meireles são semelhantes aos dinheiros que lhe
deram origem, entretanto, diferem dos mesmos por terem uma
52 valoração nula e imagens estranhas ao padrão conformativo de
uma cédula verdadeira. Aqui, Zero Cruzeiro e Zero Dollar não
jogam com a falsificação de moeda, são notas impossíveis de
circularem no sistema monetário. Conforme Herkenhoff:

É o valor perturbador que Cildo Meireles introduz no sistema de arte. Há


um dinheiro no interior da história da arte brasileira, surgido em tempos
de monetarismo e de economês oficial, característicos do autoritarismo
pós-64. É parte fundamental de uma teoria dos valores da arte, trânsito
entre axiologia e mercado. [1]

Enquanto que o Projeto Cédula foi efetivamente inserido


nas transações financeiras da época, Zero Cruzeiro e Zero
Dollar não circularam no sistema econômico, agindo apenas no
circuito da arte. A tiragem desses trabalhos é ilimitada e apesar
da moeda brasileira estar datada, remetendo à sua origem ainda
no Estado Novo, a sua preleção permanece atual. Ao longo de
cinco décadas, o Cruzeiro desenvolveu um ciclo de alternâncias
em relação ao valor monetário e ao seu nome oficial como
moeda de circulação corrente. A crescente desvalorização da
moeda brasileira e a alta inflação decorrente da instabilidade
política foram importantes causas das mudanças de seu padrão.
Na época em que Zero Cruzeiro foi criado, a moeda corrente
estava em sua segunda edição. As efígies de Zero Cruzeiro são

cédula
representadas através da imagem de um índio da etnia Krahô
e da foto de um interno de um hospital psiquiátrico.
Cildo Meireles, ao criar uma moeda que possui um valor 53
nulo e ao estampá-la com duas imagens que podem sugerir
a exclusão social, coloca em jogo as dimensões de valoração
monetária e simbólica. Usualmente, o dinheiro carrega ícones
máximos que representam ou que são emblemas da nação, na
qual a moeda circula. Aqui, as duas representações inscritas
nas efígies estão fora de qualquer sistema econômico. Caso
manipulassem notas de dinheiro, os mesmos, talvez, não as
apreendessem com o devido grau de abstração que toda moeda
suscita. Do mesmo modo, poderíamos pensar o circuito onde
essas moedas circularam [museus, galerias e outras instituições]
como sendo o sistema de economia alegórica de Zero Cruzeiro
e de Zero Dollar. Nessa perspectiva, Cildo Meireles, simboli-
camente, faz de uma proposição artística objeto de mercadoria
ficcional que tem um valor nulo como moeda de troca.
Acerca do uso do dinheiro como fonte de investigação,
podemos igualmente mencionar os artistas brasileiros: Jac
Leirner [Os Cem, 1985/1987, Litlle Pillow, 1991], Waltercio
Caldas [Dinheiro para Treinamento e Notas para Ambiente, ambos
estratégias expansivas

de 1977] e Pablo Paniagua [Um Imaginário, 2005]. No contexto


desta pesquisa, os dois últimos artistas nos interessam pelo
caráter múltiplo de seus trabalhos e pelos seus trajetos através
do meio impresso.
Um Imaginário, de Pablo Paniagua é um múltiplo de
tiragem ilimitada, medindo aproximadamente 6,5 x 14 cm
54 e impresso em offset sobre papel comum. O múltiplo Um
Imaginário segue o modelo de uma cédula de Real e a sua cor
se aproxima do matiz da cédula de cinquenta reais. Jogando
com os opostos ‘real’ e ‘imaginário’, Pablo Paniagua produziu
um múltiplo que simula uma nota de dinheiro, a qual somente
é possível no campo da imaginação, articulando-se como
uma espécie de coringa. Diferente de Zero Dollar e de Zero
Cruzeiro, que temos como quantificá-las [apesar de não existirem
no circuito da economia], Um imaginário é uma cédula de valor
aberto, amplo e abstrato.
Talvez seu lugar de circulação seja somente o campo da
arte, esse campo que é tomado de convenções e contratos, ne-
gociações e construções. A cotação da moeda Imaginário inexiste
e ao mesmo tempo pode ser infinita, pois não há outros valores
de cédula, além do seu valor unitário. Um Imaginário pode valer
quanto for a sua necessidade, alcançando bens imensuráveis.
Dinheiro para Treinamento, de Waltercio Caldas, é uma
colagem feita com recortes de jornais, simulando a configuração
padrão de uma cédula. O seu título remete a um exercício fomal
de construção e a um jogo da linguagem visual. De todos os
dinheiros fabulados é o que menos se aproxima de uma cédula
oficial. Devido ao seu material, Dinheiro para Treinamento é
precário e, confirmando o seu título, não há probabilidade de

cédula
circulação. Ao mesmo tempo, o dinheiro criado por Waltercio
Caldas dialoga com o apuro da forma e com a síntese, sem
identificação alguma, dos principais elementos de uma cédula 55
comum. Dinheiro para Treinamento pode funcionar como um
esboço ou como um estudo que vislumbra ações futuras sem
corromper a sua forma-matriz.
Esse trabalho foi inserido nas páginas do Manual da
ciência popular, publicação que integrou a Coleção ABC da
Funarte, lançada no início dos anos oitenta. Manual da ciência
popular é uma publicação de artista, ilustrada com fotografias
de trabalhos, sendo acompanhadas por pequenos textos. Em
2007, a mesma ganhou uma segunda edição pela Cosac Naify,
revisada e ampliada, de capa dura, com dimensões levemente
aumentadas e papel mais encorpado, sendo menos interessante
que a primeira edição, a qual possuía uma encadernação
despretensiosa muito próxima de um manual. Nas páginas iniciais
do Manual da ciência popular, Waltercio Caldas diz:

Estamos diante da reprodução impressa, este hábito contemporâneo,


superfície onde se passa grande parte da arte da nossa época. Aqui,
em nosso caso particular, o que vai acontecer? Serão utilizados objetos
de conhecimento de todos para apresentar significados estéticos em
estratégias expansivas

circulação no cotidiano ou, em outras palavras, passearemos pelos


campos dos sentidos. [2]

Manual da ciência popular é um marco de referência das


publicações de artistas, manipulando imagem e texto de um
modo irônico. Essa publicação fala sobre os processos reprodu-
56 tíveis da imagem, tendo a fotografia como linha de inteligência.
Certos trabalhos que ilustram a publicação de Waltercio Caldas
parecem existir somente no campo da página do livro. Outros
são espécies de lições elucidativas, aqui exemplificadas pela
astuta imagem de Como funciona a máquina fotográfica.
Folheando as páginas de Manual da ciência popular, es-
quecemos que estamos diante de um manual de ciência que se
diz popular. Mas, há nele demonstrações de fenômenos óticos,
elementos químicos, estados da matéria, estudos geométricos,
entre outras experiências. Já foi dito que Manual da ciência
popular não é um manual, não possui nada de científico e não
é nem um pouco popular. Rodrigo Naves observa que:
Todo manual é um “livro aberto”. Fornece receitas e procedimentos.
Esse Manual da ciência popular não escapa à regra. Mais do que isso,
o Waltercio Caldas Jr. criou um manual de manuais, um guia prático
para a construção de guias. Um sistema de processos intermediários
que não conduz rigorosamente a lugar nenhum, um jogo de reflexos
nos leva a perder de vista a reprodução, que se transforma assim em
produção, pondo de lado toda interrogação que a repetição de um
movimento exigiria. [3]

A capa de Manual da ciência popular é uma indicação


do conteúdo que ela abriga – a sua estampa reproduz, em
abismo, um livro dentro de um livro. Manual da ciência popular

cédula
existe em função da reprodução, ideia que lhe persegue, desde
o seu interior até a sua embalagem. Essa parece ser também
uma característica das cédulas de dinheiro – existir em função 57
da reprodução, seja econômica ou ideológica.
58
estratégias expansivas
VALOR
Notas
[1]. LOPES, João Texeira. Tensões do artista e do artístico no dealbar do
novo século. In. CARVALHO, Isabel; NORA, Pedro (Orgs.). A economia do
artista. Cidade do Porto: Braço de Ferro, 2010. [p.183].
[2]. BURY, Stephen. Artists’ Multiples 1935- 2000. London: Ashgate Publishing
Limited, 2001. [p. 23].
[3]. SANTOS, Maria Ivone dos. Diante da perda do arquivo: reinvenções e
estratégias expansivas

narrativas da memória. In Revista Crítica Cultural. Palhoça, v.4, n.2 jul./dez.


2009. [p. 166].
[4]. CARVALHO, Isabel. O valor de um livro. In: CARVALHO, Isabel. NORA,
Pedro (Orgs.). A economia do artista. Cidade do Porto: Braço de Ferro,
2010. [p.25].
[5]. SILVEIRA, Paulo. A Página Violada: da ternura à injúria na construção
do livro de artista. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001. [p. 191]
60 [6]. Ibid.[191]
[7]. Ibid.[191]
Ora, mas o que vale realmente um livro que tem
uma longa duração, que foi usado, que é um objecto
no qual se projectam outros valores subjectivos? Não
sabemos – é oscilante e incerto.
Isabel Carvalho

valor
E, deditadaEdwardem 1962-1963,
Stations
a publicação T - G
wenty six asoline
Ruscha, problematiza a discussão sobre a
61

categoria livros de artista publicados, através de uma sequência


fotográfica de postos de gasolina acompanhada por legendas que
indicavam as suas localizações. A primeira tiragem de quatro-
centos exemplares, assinados e numerados, foi impressa em
papel comum, sendo a mesma comercializada por três dólares.
Já a segunda e a terceira tiragem de Twenty-six Gasoline
Stations não receberam assinatura do artista, nem numeração,
indicando uma postura crítica frente a qualquer associação que
pudesse decorrer das edições de luxo ou das séries caras e
especiais de livros de artista. Entretanto, hoje podemos encontrar,
em lojas virtuais, seus exemplares originais comercializados por
alguns milhares de dólares. A supervalorização dessa publicação
coloca em xeque as intenções do artista, ao mesmo tempo
em que demonstra o impacto da economia sobre os objetos
da arte, dos quais nem mesmo uma publicação pode escapar.
João Texeira Lopes, analisando as tensões do artístico, entre
o capital simbólico e o econômico, diz:
estratégias expansivas

Não é só a cultura que sofre o impacto da economia-mundo. É também


a economia que se culturaliza. A inflação do estético, a estetização
do quotidiano, das formas corporais, dos estilos de vida, da ‘apresen-
tação de si’, dos quadros da cultura-diversão mostram uma espécie
de transfiguração do banal onde perdem sentidos as velhas aporias
entre consumos materiais versus consumos simbólicos, objetos vulgares
versus objetos artísticos. [1]
62
É evidente que a crescente fetichização da publicação
Twenty-six Gasoline Stations decorre do estatuto que as pinturas
de Ruscha alcançaram ao longo das últimas cinco décadas.
Assim, apesar de ter uma tiragem relativamente grande, essa
publicação atingiu um alto valor em relação ao seu preço
original. Tal fato contradiz as lógicas internas de um múltiplo
que não possui, aparentemente, características sacralizantes,
problematizando o que Stephen Bury2 observa:

2
Stephen Bury, ao empregar a expressão “múltiplos”, não faz distinção entre
publicações de artistas e outros trabalhos em série. Assim, seu interesse está
voltado para produções que possuem uma tiragem relativamente expressiva,
independente de seu meio.
O múltiplo poderia ser o melhor exemplo da separação e proximidade
ao mundo real, conferindo-lhe um valor simbólico, abstrato. E ainda é
negociável, vendável e amplamente distribuído. [2]

O tempo de existência e a sua história datada tornaram


Twenty-six Gasoline Stations um objeto de colecionador, no
qual o tema ou o assunto, talvez, interessem menos que a sua
existência artística. Os levantamentos fotográficos de Ruscha,
presentes nessa publicação, dialogam com o uso da fotografia
como ‘documento trivial’ (ROUILLÉ, 2008)3, desprendido de valo-
res estéticos. Conservando o conceito e não subvertendo a sua

valor
forma, o livro de Ruscha, apreendido como suporte artístico,
tange fronteiras ideológicas, através das quais uma publicação
também consegue se valer. Nessa direção, a pesquisadora Maria 63
Ivone dos Santos, abordando a publicação de Ruscha, como
espaço político de difusão e descentralizadora da problemática
da exposição, afirma:
Os livros impressos tornam mais complexa sua inserção dentro do
que se costuma referenciar como livros artesanais feitos por artista.
Obedecem à outra lógica quanto à fatura, visto que incluem processos
de editoração e impressão industrial. Ao eliminarem igualmente o valor
atribuído a uma obra única, a uma pintura, e ao atribuir diferentes
valores a uma série fechada de fotografias, eles problematizam a ideia
de obra. O trabalho se descentra do circuito de validação e se aven-
tura em outros sistemas, como os de uma biblioteca, por exemplo. [3]
3
Cf. ROUILLÉ, André. A Fotografia entre Documento e Arte Contemporânea.
São Paulo: SESC, 2008.
Não podemos ignorar as problematizações que a publi-
cação de Ruscha impôs nas estruturas convencionais de apre-
sentação de um projeto artístico, entretanto não descartamos
a sua existência enquanto uma mercadoria de arte que, ao
longo do tempo, se tornou rara. Ao direcionar o foco para essa
problemática de mercado, poderíamos pensar na manutenção
estratégias expansivas

de novas tiragens da publicação de Ruscha. Uma nova edição


de Twenty-six Gasoline Stations poderia baixar o valor daqueles
exemplares da década de sessenta? Ou, ao inverso, tornariam
aqueles objetos mais ‘valiosos’, por serem um referencial com-
parativo? Essa prospecção nos ajuda a pensar no valor de
um livro, problema que perpassa as interrogações de Isabel
64 Carvalho:

Não é em lucro acumulado que se traduz este cálculo, porque não


especulamos esse acréscimo no retorno, procuramos apenas assegurar
que cada livro novo não coloque em risco os livros do futuro. [4]

É importante observar que Isabel Carvalho, está falando
sobre um tipo específico de publicações de artista, das quais
os seus autores são também seus editores independentes,
articulando economias de produção e de distribuição alternati-
vas em relação ao circuito editorial. A tarefa de colocar preço
em um livro, cuja edição é de autor, abarca não somente os
custos de impressão, mas todas as etapas que perpassam a
linha de produção de uma publicação. Aqui não deve haver
equivalência com o mercado livreiro que se mantém através
de grandes editoras.
Contudo, é certo que todo trabalho de arte funciona
sob outras formas de valoração. Isso é evidente em Twenty-
six Gasoline Stations e em outras publicações de artista, que
dentro de um circuito de arte, são apreendidas como obras
únicas, apesar de serem seriadas. Aqui não é só a valoração
que é inflada, mas a forma como esses materiais impressos
podem ser apresentados – dentro de caixas de vidro como um

valor
‘livro morto’. [5] Nesse sentido, Paulo Silveira, questionando a
apresentação do livro Velázquez, de Waltercio Caldas, [durante
o Panorama de Arte Brasileira 1997, no MAM de São Paulo] 65
dentro de vitrinas, pergunta: “Seria por precaução ou por mise-
en-scène?” [6]
A assinatura de Waltercio e a numeração na penúltima
página do livro Velázquez são indícios de que essa publicação
conserva ainda características de um trabalho artístico, sofrendo
[ou simulando] as habituais influências do circuito econômico que
rege o mercado da arte. Sobre esse aspecto, Silveira interroga
se o gesto de assinar e numerar: “Seria por convenção ou
seria um comentário crítico final?”. [7] As dúvidas que surgem
de tal interrogação são intensificadas pela forma expositiva que
a publicação de Waltercio infligiu. Sendo a sua assinatura um
comentário crítico final e a sua apresentação equivalendo a uma
encenação, a publicação Velázquez opera no frágil limite entre
uma ‘obra’ de arte e um livro feito por um artista.
As questões de valoração econômica estão estreitamente
ligadas à valoração simbólica, na qual as publicações de Ruscha
e Waltercio se inscrevem. Independente das cogitações sobre
edição ou tiragem, esses dois trabalhos impressos, quando
estratégias expansivas

inseridos nas práticas de mercado, se portam como objetos


estranhos, pois, agora, valem menos que uma obra única e
mais do que um livro comum.

66
valor
67

FORMATO-LIVRO
Notas
[1]. SILVEIRA, Paulo. A Página Violada: da ternura à injúria na construção
do livro de artista. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001. [p. 72]
[2]. A CASA COMO CONVÉM é o nome de um ateliê-morada de Cristiano
Lenhardt, Cristina Gouvêa, Jonathas de Andrade, Priscila Gonzaga e Silvan
Kälin, localizado na casa onde habitam ou já habitaram, em Recife.
[3]. O edital do II Concurso Mário Pedrosa de Ensaios sobre Arte e Culturas
estratégias expansivas

Contemporâneas pode ser acessado em: www.fundaj.gov.br/geral/mpedrosa/


edital2009mpedrosa.pdf
[4]. FERREIRA, Glória. Tomando licença. In: MORAIS, Fábio; CASTRO,
Daniela. ARTE E MUNDO APÓS A CRISE DAS UTOPIAS, isso mesmo, em
CAIXA ALTA e sem notas de rodapé. Santa Catarina: Par(ent)esis, 2010.
[p.05]
[5]. BELTING, Hans. Após o fim da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
[p.40]
68
[6]. Ibid. [p.37]
[7]. FORAY, Jean Michel. Art Conceptuel: une possibilite de rien. In.
Artstudio, Paris, n. 15, 1989. [p. 46].
A versão integral deste artigo, traduzida por Maria Ivone dos Santos,
encontra-se nos anexos da Dissertação de Mestrado Endemias ficcionais
e o discurso da arte como vetores da prática artística, de Michel Zózimo,
defendida em 2008 no PPGAV da UFRGS, sob orientação de Maria Ivone
dos Santos, podendo ser acessada através do endereço:
http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/13508/000649455.
pdf?sequence=1
[8]. MACLUHAN, Marshall; FIORE, Quentin. The medium is the massage: an
inventory of effects. London: Penguin Classic, 2008. [p.123]
[9]. FERVENZA, Hélio. Transposições do Deserto. Porto Alegre:, 2010. [p. 04]
[10]. Ibid. [p. 10]
formato-livro
Podemos apreender algumas publicações independentes
como projetos que se deslocam entre diferentes linguagens,
69

prospectando outras direções de apresentação por meio de


desdobramentos visuais. Assim, um trabalho de arte, como
projeto, possuiria distintos momentos, os quais seriam relativos
às suas diversas formas de apresentação. Nesse caso, um
projeto de uma ação dinâmica realizada em um determinado
local, para um tipo específico de público, pode ser reeditado na
forma de um livro. Ou de outro modo, projetos não efetivados,
em suas primeiras intenções, também podem se materializar
através do meio impresso. Da mesma forma, projetos inéditos
de publicações podem ser editados independentemente da
aprovação por incentivos públicos ou fomentos privados, para
a qual originalmente foram submetidos.
Exemplificando tais possibilidades, deseja-se abordar
três trabalhos que se efetivaram através de uma publicação im-
pressa: Transposições do Deserto, [2010, Porto Alegre] de Hélio
Fervenza, ARTE E MUNDO APÓS A CRISE DAS UTOPIAS
estratégias expansivas

– assim mesmo, em CAIXA ALTA e sem notas de rodapé, [2010,


Santa Catarina] de Daniela Castro e Fabio Morais, e Relación
Ornamental, [2006-2010, Recife] de Cristiano Lenhardt. Basica-
mente, o conjunto dos referidos trabalhos possui a linguagem
escrita que reflete ou exibe, de modo singular, pensamentos
sobre as relações entre arte e mundo, apresentando-se em um
70 formato-livro. Igualmente, a noção de edição, a qual perpassa
toda a escrita textual, impõe-se como operação simbólica de
desdobramentos de um trabalho artístico, os quais se dão em
espaços e tempos diferentes. Segundo Paulo Silveira:
O primeiro grande elemento ordinal no livro é a seqüencialidade na
percepção ou leitura. Ela é a diretriz da ordem interna da obra, en-
volvendo a interação mecânica do leitor ou fruidor. Um livro envolve o
tempo de sua construção e os tempos de seu desfrute. Cada vez que
viramos uma página, temos um lapso e o início de uma nova onda
impressiva. Essa nova impressão (e intelecção) conta com a memória das
impressões passadas e com a expectativa das impressões futuras. [1]

Indo nessa direção, Relación Ornamental, [2006-2010],


publicação de Cristiano Lenhardt, tem o formato de um livrinho
A6, com doze páginas que possuem textos e imagens. Impres-
so em uma única cor [azul] e com primeira tiragem de 100
exemplares, Relación Ornamental aborda o projeto Transplanta
[composto por fotografias de registro e textos autorais] e mais
dois conjuntos de fotografias, um com imagens de quartos
e outro com imagens de caminhões de mudança. Em 2006,
Cristiano enviou o projeto Transplanta para o SPA das Artes em
Recife, não sendo selecionado. O projeto de Cristiano consistia

formato-livro
em transplantar uma planta [muito provavelmente uma erva
daninha] que havia nascido em uma rachadura de um viaduto
próximo da UFPE, levando-a para a sacada de seu apartamento.
A planta possuía cerca de sete metros de altura, me-
dida aproximada da distância do viaduto até o solo, sendo 71
equivalente a altura da sacada de seu apartamento. Carregando
uma visualidade potente e uma atmosfera simbólica, o projeto
Transplanta, apesar de não ter sido realizado, foi incluído jun-
tamente com outras imagens e outros textos na publicação
Relación Ornamental. As fotografias de cômodos e de caminhões
de mudança documentavam a vida itinerante de Cristiano, segun-
do o qual, no intervalo de um ano, havia dormido em mais de
trinta quartos diferentes.
O ano de 2006 marca a mudança de Cristiano para
Recife e o contato com as experiências tropicais da cidade,
com todos os seus afetos e temores. O gesto simbólico de
transplantar uma espécie de erva daninha, que havia brotado
em uma fenda de concreto, levando-a para outro ambiente,
poderia gerar uma situação de risco para a planta, a qual pro-
vavelmente não se adaptaria as mudanças. Dispensar cuidados,
provendo água e terra fértil, talvez não fosse suficiente para
a manutenção de uma forma de vida que estava adaptada às
adversidades do seu ecossistema original. Conforme Cristiano
estratégias expansivas

Lenhardt, uma semana após o registro fotográfico, o qual ilustra


a publicação Relación Ornamental, trabalhadores da prefeitura
teriam retirado a planta do viaduto.
Durante as atividades do SPA, apesar de não ter sido
selecionado, Cristiano comercializou a Relación Ornamental, por
um real, em um local onde aconteciam ações integrantes do
72 evento. Segundo o artista, grande parte das pessoas levou a
publicação sem colocar o dinheiro na caixinha que estava ao
seu lado. Em 2010, uma segunda edição da publicação Relación
Ornamental fora feita, por ocasião da exposição A CASA COMO
CONVÉM [2], realizada na galeria Mariana Moura em Recife.
A segunda tiragem possui seis exemplares, impressos em p&b
sobre papel azul.
ARTE E MUNDO APÓS A CRISE DAS UTOPIAS – assim
mesmo, em CAIXA ALTA e sem notas de rodapé, é uma publica-
ção de Daniela Castro e Fabio Morais, de 2010, editada pela
Par(ent)esis, de Regina Melim, com tiragem de 1.000 exem-
plares. Impressa em offset sobre papel verde, a publicação de
título longo é fruto de um projeto enviado pelos autores para
o II Concurso Mário Pedrosa de Ensaios sobre Arte e Culturas
Contemporâneas, realizado pela Fundação Joaquim Nabuco,
ainda em 2010.
O projeto de Daniela e Fabio não foi premiado no con-
curso, sendo, então, editado na forma de um livro pelos próprios
autores. Segundo o edital do concurso a seleção seria “em
âmbito nacional de três ensaios, resultado de pesquisa inédita e
original, elaborados desde disciplinas e pontos de vistas diversos

formato-livro
que versem sobre o tema escolhido: ARTE E MUNDO APÓS
A CRISE DAS UTOPIAS”. [3] Daniela e Fabio usaram o tema
do concurso como parte do título de seu ensaio, empregando
a mesma grafia em caixa alta.
Jogando com a problemática do assunto, no seu sub- 73
título, os autores deixam clara a ausência de notas de rodapé,
como possíveis suportes explicativos que o tema suscita. Ou
seja, o título do ensaio de Daniela e Fabio, aparentemente, daria
conta do assunto que o livro trata, não necessitando de maiores
explanações. Nesse caso, o título é como uma frase enfática, a
qual exclama uma afirmação que não pode ser questionada. Ou
de outro modo, o título é tão problemático que não necessita
de explicações aprofundadas, as quais o tornariam redundante.
A metodologia empregada na construção do ensaio
aborda todas as palavras do tema - [ARTE], [E], [MUNDO],
[APÓS], [A], [CRISE], [DAS], [UTOPIAS], demonstrando que a
análise individualizada dos termos acarretaria no estabelecimento
de relações complexas entre os mesmos. De um modo crítico,
Daniela e Fabio estabelecem uma abordagem atualizada do
tema, por meio de um discurso bem-humorado. Em determinado
momento do ensaio, os autores se propõem a pensar a partir
do título, caso a conjunção [E] ganhasse um acento agudo,
tornando-se o verbo [É]. Outro ponto que deve ser abordado
estratégias expansivas

é a participação de Glória Ferreira na publicação, através de


uma espécie de prefácio, onde a crítica de arte e curadora
independente apresenta, aos leitores, o texto de Daniela e
Fabio. Glória Ferreira também participou do processo seletivo
do concurso e segundo as suas próprias palavras:

74 O ensaio não foi agraciado no concurso (decisão da qual não me


esquivo como um dos membros do júri), seu teor reflexivo analisa, no
entanto, de modo singular a expressão ARTE E MUNDO, discutindo as
relações entre arte e vida que daí emanam. [4]

O fato de Glória Ferreira ter sido convidada para es-


crever a apresentação da publicação pode representar uma
intenção insistente por parte dos autores, em configurar o seu
ensaio da forma que havia sido prospectado, independente
da sua aprovação e apoio institucional. E a decisão afirmativa
de Glória Ferreira, apresentando o ensaio e os seus eixos
conceituais, demonstra a relevância do projeto, apesar de sua
não aprovação. Nesse caso, a publicação de Daniela e Fabio
constitui-se por uma produção crítica que reflete sobre a relação
da arte com as outras coisas do mundo, produzindo formas
discursivas.
O que chamamos aqui de ‘discurso em arte’, Hans
Belting, astutamente, chama de “comentários sobre arte”.
Conforme Belting, o problema de abordagem da arte contem-
porânea está ligado aos seus “métodos”, onde não é mais
possível aplicar uma narrativa na história da arte, restando-nos
os comentários sobre arte – espécies de produções discursivas

formato-livro
que acompanham o acontecimento artístico, conferindo-lhe um
sentido atual, diferente dos textos históricos. [5] De outra forma,
o autor conclui seu pensamento sobre textos de artistas: “[...]
que eles naturalmente sempre escreveram, ganharam uma nova
qualidade com Marcel Duchamp, que refletia sua obra em textos 75
que logo não podiam ser mais diferenciados dela e produziam
mais quebra-cabeças do que a própria obra”. [6]
Resgatado pela arte conceitual, Duchamp desempenhou
um papel fundamental nas formulações das proposições que
interrogavam a função da arte, onde talvez a sua importância
esteja ligada, não somente ao desprendimento do objeto estético,
mas às questões do contexto artístico, se ancorando nos seus
discursos internos para balizar ou colocar em xeque as suas
próprias premissas. A produção textual de Duchamp e os seus
jogos com a língua francesa são importantes objetos de estudo
para problematizarmos questões da linguagem em arte. Desse
modo, as palavras em Duchamp, usadas nos títulos de seus
trabalhos ou nos seus escritos, poderiam se articular como espé-
cies de ready-mades linguísticos. Segundo Jean-Michel Foray:
A linguagem foi pega – naquilo que nomeamos hoje de Arte Conceitual
– seja como um ready-made, pela sua capacidade de substituir pedaços
de textos existentes aos objetos e aos materiais tradicionais; seja como
uma língua. No primeiro caso são as suas qualidades exóticas de
estratégias expansivas

escrito que são utilizadas; no segundo caso; os artistas escolhem utilizar


a língua a fim de que a experiência estética não seja mais sujeitada
exclusivamente à forma material do objeto de arte. [7]

Talvez a linguagem escrita tenha sido para a arte concei-
tual o que a linguagem pictórica representou para uma parte da
arte moderna. Mergulhada nessa perspectiva e espelhada em
76 Duchamp, a produção textual dos artistas conceituais ganhou
uma nova dimensão através de proposições, ideias esquemáticas,
postais e publicações efêmeras e baratas.
Prospectiva 74 e Poéticas Visuais, de 1977, organizadas
no Brasil por Walter Zanini em colaboração do espanhol Julio
Plaza, no MAC da USP, são duas mostras exemplares desse
contexto, exibindo investigações em xerox, offset, serigrafia,
fotografias, folders, revistas, filmes super-8 e outros processos
reprodutíveis de textos e imagens. Lembremos que essas pro-
postas curatoriais coincidem com a disseminação dos processos
reprodutíveis das máquinas fotocopiadoras. Essa observação pode
ser verificada por meio da constatação de Marshall MacLuhan
e de Quentin Fiore, segundo os quais havia chegado:
[...] os tempos da publicação instantânea. Onde, qualquer um pode
agora tornar-se autor e editor. Tomar qualquer livro, sobre qualquer
assunto e costume e fazer-lhe o seu próprio livro, simplesmente xerocar
um capítulo deste, um capítulo daquele – um roubo instantâneo. [8]

Devemos atentar para dois pontos de interesse presen-


tes na citação de MacLuhan e Fiore, as ideias de autoria e
de edição geradas pela acessibilidade do meio impresso. Há,
nesses pontos, certa lógica de autonomia do artista, a qual

formato-livro
não é subjugada pelos modelos externos de uma exposição
institucional. Em contrapartida, a noção de edição, aqui pode
ser ampliada, de um artista que edita o seu material, tomando
as decisões de escolha e de corte dos seus conteúdos, para
a ideia de edição como multiplicação e transformação de um 77
trabalho de arte. Ou seja, a ideia de re-edição, a qual já havia
sido tratada no início deste bloco de texto, aproxima-se da
publicação como um espaço de edição de projetos artísticos.
É nessa linha que a publicação Transposições do Deserto, de
Hélio Fervenza, transita.
Transposições do Deserto, 2010, é uma espécie de livreto
de capa amarela com vinte páginas de texto e tiragem de 400
exemplares em offset p&b. Tal publicação é um desdobramento
de uma ação de mesmo nome realizada em 2003, fazendo um
reenvio à outra publicação de Hélio Fervenza intitulada O + é
deserto, também de 2003. Essa última é o terceiro volume da
Série Documento Areal, coordenada por Maria Helena Bernardes
e André Severo, projeto contemplado na 2ª Seleção do Programa
Petrobras Artes Visuais, 2001. Na publicação O + é deserto,
Hélio Fervenza falava de questões investigativas que perpas-
savam a sua poética – o vazio, o deserto, os limites e as suas
fronteiras. Em 2003, ao receber o convite de Celina Albornoz
para fazer o lançamento da publicação O + é deserto, na cidade
estratégias expansivas

de Sant’Ana do Livramento [Brasil], Fervenza desenvolveu a


proposição Transposições do Deserto – um projeto realizado em
colaboração com duas escolas, uma brasileira e outra uruguaia.
É preciso notar que a cidade de Sant’Ana do Livramento
faz fronteira com a cidade de Rivera, Uruguai, possuindo uma
linha imaginária que divide os dois países e que passa pelos
78 centros das duas cidades. Conforme Hélio Fervenza:
Quando ali nos encontramos, a linha de demarcação que sinaliza os
distintos territórios pode ser traçada mentalmente, ao religarmos os
pequenos marcos brancos espalhados aqui e lá, e que indicam o seu
percurso e os limites dos países. Ela percorre ruas e avenidas, contorna
canteiros, esquinas, edifícios, monumentos, morros e árvores, passa
pelo centro das duas cidades, atravessa um parque ziguezagueia e se
insinua debaixo de nossos pés, às vezes visível, às vezes invisível.
[9]

Após a negociação com as duas escolas, Transposições


do Deserto ocorreu efetivamente:
Ele consistiu, finalmente, na realização de uma troca de professoras
entre uma escola situada no lado brasileiro e outra situada no lado
uruguaio. Simultaneamente, duas professoras de geografia proferiram em
suas línguas respectivas uma aula sobre desertos, entre às 9h e às 10h
do dia 21 de novembro de 2003. As aulas foram realizadas na escola
Rivadávia Corrêa, em Sant’Ana do Livramento, pela Professora Beatriz
Tarocco, e no Colégio Rodó, em Rivera, pela Professora Carmozina. [10]

No decorrer da publicação, Hélio Fervenza descreve


como a proposição ocorreu, oito anos atrás, expondo as
experiências de uma aula de geografia que falava sobre o
deserto, em duas línguas irmãs. O intercâmbio dos idiomas e

formato-livro
dos currículos pedagógicos, das trocas afetivas e dos assun-
tos transversais, o qual permeou o projeto Transposições do
Deserto, foi adaptado, em 2010, para uma publicação de nome
congênere. Vale destacar que a publicação é bilíngüe [português 79
e espanhol], conservando a coerência interna do projeto. Os
trechos do texto de Fervenza são dispostos nas páginas, lado a
lado, como se fossem a tradução um do outro, entretanto, em
decorrência das suas diferenças gráficas, eles se perdem ao
longo das folhas. Tal fato demonstra as sutilezas de duas línguas
que estão muito próximas, pelas grafias, pelos significados e
pelos sons, mas que em determinados pontos divergem, se
afastam, se corrompem, dadas às fronteiras que, apesar de
invisíveis, demarcam os seus limites.
Ainda em 2010, a publicação Transposições do Deserto
integrou a exposição Dois Pontos, ocorrida no Museu Murilo
La Greca, na cidade de Recife. Sob a curadoria de Fernanda
Albuquerque, a exposição foi selecionada pelo Projeto Ampli-
ficadores, reunindo nove artistas, dentre os quais estava Hélio
Fervenza. A participação do artista, nessa exposição, através de
sua publicação, atesta a dinâmica de um projeto que continua
em operação, onde os seus relatos não encontraram um limite
de extinção. Transposições do Deserto teve origem a partir de
estratégias expansivas

uma publicação e oito anos depois retornou para o lugar de


onde havia principiado – folhas impressas que abrigam escritos,
relatos e vivências em arte. Há nessa operação uma relação
de confiança, devemos acreditar naquilo que Hélio Fervenza
conta no referido livreto e imaginar um trabalho de arte que,
ao sabor do tempo, se fez invisível.
80 As três publicações brasileiras abordadas neste bloco de
texto, Relación Ornamental, ARTE E MUNDO APÓS A CRISE
DAS UTOPIAS [...] e Transposições do Deserto foram colocadas
em diálogo com questões que são decorrentes da ideia de
edição – como escolha, montagem, reconstrução e [ou] trans-
formação de um trabalho de arte ou de uma produção textual.
Aqui, não é apenas a ideia de multiplicação e de acessibilidade
que persegue essas publicações, mas também a noção de tempo
e de espaço que passa a delineá-las como projetos artísticos. O
formato-livro parece precipitar as condições favoráveis para que
essas operações ocorram, devido às suas instâncias temporais
e portáteis, convulsionando aquilo que apreendemos como um
lugar de exposição, um espaço de reflexão, um início e um fim.
formato-livro
81

ESPAÇOS MOVENTES
Notas
[1]. RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível: estética e política. São
Paulo: Ed.34, 2005. [p.43]
[2]. ALBERRO, Alexander. Conceptual art and the politics of publicity.
Massachusetts: MIT Press, 2003. [p.133]
[3]. LIPPARD, Lucy. Seis Años: La desmaterialización del objeto artístico: de
1966 a 1972. Madrid: Akal, 2004. [p. 22]
estratégias expansivas

[4]. MELIN, Regina. Exposições Portáteis. In: MARX, Daniela; SARI, Marcos.
Meio. Porto Alegre: Ed. Panorama Crítico, 2010. [p. 07]
[5]. ZANINI, Walter. A Atualidade de Fluxus. In: Ars - Revista do
Departamento de Artes Plásticas/ECA - USP, São Paulo, ano 2, nº 3,
p. 10-21, 2004. [p. 19]
[6]. Cf. HENDRICKS, Jon. O Que é Fluxus? O Que Não É! O Porquê. Rio
de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2002. [p. 170]
82 [7]. Cf. OBRIST, Hans Ulrich. Uma Breve História da Curadoria. São Paulo:
BEI Comunicações, 2010. [p. 50]
[8]. FOUCAULT, Michel. Isto não é um Cachimbo. São Paulo: Paz e Terra,
2007. [p. 60]
espaços moventes
Os espaços habituais de arte, divididos em parcelas
e parâmetros de galerias comerciais, de fundações culturais
83

ancoradas por instituições privadas, de museus institucionais e


de tentativas esparsas que davam vazão à produção de arte,
foram amplamente questionados pelas práticas artísticas das
décadas de sessenta e setenta. Havia, também, os lugares de
discussão e pesquisa, acadêmicas ou não, que ganhavam uma
dimensão relevante a partir da arte como campo de conheci-
mento. Além desses espaços, a própria cidade se mostrava
como uma arquitetura infalível de acontecimentos da arte. O
espaço aberto do campo, as paisagens desérticas, os lagos e as
florestas indicavam uma abertura para as invenções da arte. O
corpo se apresentava como motor e suporte de ações artísticas.
Arte e vida formavam um par que parecia ser indissociável. Ao
mesmo tempo, proposições conceitualistas se desprendiam de
qualquer objeto, articulando linguagem e pensamento através
de interrogações filosóficas.
É notável que esse conjunto de transformações, ocorridas
nas décadas de sessenta e setenta, ainda sublinhem certos
estratégias expansivas

aspectos da arte atual. Ao sair do restrito, do privado, a arte


parece alcançar uma dimensão mais flexível, carregada de
valores sociais e, até mesmo, políticos. Aqui a dimensão do
político em arte não se faz presente por suas qualidades visíveis,
como tema de ideologia e assunto histórico, mas sim como
‘invenção de formas sensíveis’[1], novos modos de agir e de
84 habitar. Assim, a discussão acerca das fronteiras entre público
e privado é intensificada, por uma arte que intenta ultrapassar
as suas extensões.
Algumas placas sinalizam a linha dos limites públicos, os
quais também indicam os nossos endereços. Em alguns casos,
a nossa própria morada pode ser o lugar que abriga, expõe
[ou é] arte, exemplificado pelo Merzbau de Kurt Schwitters, pelo
Museu de Arte Moderna – Departamento do Século XX, de Marcel
Broodthaers e pela Fluxshop, loja montada no apartamento de
Maciunas. Em uma escala menor e através de uma arquitetura
portátil, um espaço de arte pode ser o chapéu, como fez Robert
Filiou, uma maleta ou uma caixa em Marcel Duchamp, um
livro para André Malraux ou uma coleção de sabão para Mabe
Bethônico. A lista destes espaços é tão extensa quanto o limite
que separa o visível do prosaico ou do mundo.
Assim, a portabilidade de um trabalho de arte pode ser
verificada em Múltiplo Sala Dobradiça [2010], formato expositivo
portátil coordenado pelos artistas Alessandra Giovanella e Elias
Maroso, Espaço de Bolso [2003], múltiplo dobrável impresso
em offset, de Maria Lucia Cattani, Biblioteca de Bolso [2008],

espaços moventes
maleta-biblioteca de Luciana Paiva, Projeto Malote [2005],
maleta de Luana Veiga que viaja pelas cidades carregando,
coletando e expondo trabalhos portáteis de diferentes artistas,
Sofá, publicações coletivas coordenadas por Raquel Stolf desde
2004, Arquivo de Emergência, projeto-pesquisa da Arquivista
Cristina Ribas, entre outros. 85
Do mesmo modo, uma publicação pode ser o lugar de
uma exposição, abrigando no espaço plano de suas páginas um
projeto curatorial ou apenas um texto que descreve proposições
de arte. Nas décadas de sessenta e setenta, o curador norte-
americano Seth Siegelaub desenvolveu projetos significativos que
utilizavam a publicação como espaço expositivo. Catálogos, antes
empregados somente para divulgar exposições, nos projetos de
Siegelaub, passaram a ocupar o papel principal ou exclusivo
daquilo que seria uma exposição de arte. November, 1968, de
Douglas Huebler, Statements, de Lawrence Weiner e The Xerox
Book, ambos de 1968, são exemplos de catálogos-exposição
ou de publicações-exposição, idealizados por Siegelaub, os
quais abriam novas perspectivas para práticas artísticas através
do meio impresso. Alexander Alberro analisa The Xerox Book,
afirmando que:

Esta exposição, com o seu uso estratégico dos meios de comunicação


avançados, portanto, representou uma vigorosa crítica da obra de arte
única e autêntica que desprivilegiava e despersonalizava o processo
estratégias expansivas

de criação artística e virtualmente aboliu o limite entre a alta cultura


e a cultura massa. [2]

A publicação The Xerox Book teve a participação de


sete artistas [Carl André, Robert Barry, Douglas Huebler,
Joseph Kosuth, Sol Lewitt, Robert Morris e Lawrence Weiner],
86 os quais ganharam, individualmente, vinte e cinco páginas
para produzir uma série de trabalhos que integraria o volume
de um livro parcialmente fotocopiado. Simultaneamente, nesse
mesmo período, um conjunto relevante de revistas e periódicos
surgiram, abrindo o campo para exposições em caráter impresso
e reflexões de artistas, entre eles: Art & Language, Studio
International e posteriormente Artforum. A edição de verão de
1970 da Studio International, sob a direção de Siegelaub, abriu
as suas páginas para artistas publicarem seus projetos na forma
de esboços, textos, fotografias, relatórios e interferências gráficas
concebidas para a publicação. A crítica norte-americana Lucy
Lippard observa a relevância desse tipo de revista:
Um dos temas que discutíamos, ao final dos anos sessenta, era o papel
que as revistas jogavam. Em uma época de propostas de projetos, de
obras de foto-texto e de livros de artistas, a publicação periódica podia
ser veículo para a própria arte, em lugar de servir unicamente para a
reprodução, para o comentário crítico e para a promoção. [3]

Essa discussão ainda permanece atual, conforme pode-


mos observar em Exposições Portáteis, texto publicado em 2010

espaços moventes
na Meio (Volume I)4, publicação que agrupa trabalhos de artistas
feitos originalmente em meio impresso. No referido texto, a
pesquisadora Regina Melim, abordando um conjunto de mostras
que se dão no espaço da publicação, observa:

Seu formato portátil (ou de bolso), tal como livros, blocos, cadernos ou 87
folhas avulsas, acrescido do baixo custo destas publicações, através de
tiragens impressas e geralmente ilimitadas para a reprodução carregam
o objetivo expresso de alargar o espectro de audiência e participação.
Além disso, o fato de poder levar consigo e poder interagir tactilmente
com esta exposição altera profundamente a forma convencional de
recepção que usualmente temos diante de um trabalho de arte. [4]

4
A publicação Meio (Volume I), organizada por Marcos Sari e Daniele Marx,
configura-se como a compilação de dez edições do projeto Meio, iniciado em
2003, na cidade de Porto Alegre. Tal projeto possibilita a seus colaboradores a
utilização de meio papel A4 para a experimentação gráfica, fotográfica, dentre
outras. Além da reunião de dez edições do referido projeto, Meio (Volume I) abriga
ainda, textos de críticos, de curadores e de artistas. Essa edição foi contemplada
pelo edital público Conexões Artes Visuais da Funarte 2010.
Além de pesquisar e refletir sobre a publicação como
espaço expositivo, Regina Melim desenvolve espécies de
propostas curatoriais mediadas por publicações editadas pela
Par(ent)esis, tais como PF, Amor Leve com Você, Coleção e
os livros Conversas e ARTE E MUNDO APÓS A CRISE DAS
UTOPIAS: assim mesmo, em CAIXA ALTA e sem notas de rodapé.
estratégias expansivas

A editora Par(ent)esis é uma plataforma independente de Regina


Melim, criada em 2006, que produz e edita projetos artísticos e
curtoriais na forma de publicações. Exemplificando, a publicação
PF [por fazer], de 2006, pode ser apreendida como uma
exposição-portátil, onde um grupo de artistas propõe aos seus
leitores atividades cotidianas ou estéticas por meio de instruções
88 e desenhos esquemáticos. Nessa ótica, podemos verificar uma
proximidade de por fazer à exposição in-progress intitulada
Do It, iniciada em 1994, sob curadoria do suíço Hans Ulrich
Obrist. A ideia de trabalho acabado, de autoria e o conceito de
exposição tradicional são, de certa forma, subvertidos por Do
It, ao agrupar instruções de performances, ações e desenhos,
instigando o público a realizar as proposições em qualquer lugar.
LOJA é outro projeto curatorial de Regina Melim que tem
a publicação como objeto central. Iniciado em 2009 e colocado
em suspensão ao final do ano subsequente, o projeto LOJA
se constituiu por um agrupamento de publicações de artista
e objetos múltiplos, oriundos de diversas regiões do país. Na
LOJA, os trabalhos eram comercializados sem acréscimo sobre
seus valores originais, sendo estes repassados integralmente
aos seus autores. As duas únicas exigências para os artistas
que tinham seus trabalhos vinculados a LOJA eram: doar um
exemplar para o seu acervo [o qual estaria disponível para o
manuseio do público] e não ultrapassar o valor de R$ 300,00.
No breve período de atividade desse projeto, houve
cinco edições em diferentes locais. A LOJA não possuía lugar

espaços moventes
fixo, era um tipo de emblema ou uma espécie de sinalização,
a qual se utilizava de estruturas físicas pré-existentes para
acomodar as suas estantes e mesas. Instalada em tais locais,
a LOJA ficava aberta por um curto período de tempo. Em uma
edição da LOJA, durante o seu fechamento, pude observar
que todo o seu material de venda cabia dentro de uma mala 89
de viagem. Naquela ocasião, associei o projeto LOJA ao modo
de existência ‘mascate’ e ao sistema de mercado ambulante.
Tal iniciativa exemplifica, através de suas operações simbólicas
e de suas negociações efetivas [agenciamento dos lugares,
curadoria dos artistas, transporte dos trabalhos, divulgação das
edições, modos de apresentação, participação do público e
comercialização dos trabalhos], uma provável expansão dos
territórios negociáveis da arte.
Assim, LOJA aponta diretamente para as experiências
prospectadas nas décadas de sessenta e setenta pelo Fluxus.
Lembremos que, encabeçado pelo artista lituano George
Maciunas, o Fluxus agrupou profissionais de diferentes áreas
e partes do mundo, da literatura à economia, realizando apre-
sentações de concertos musicais, ações visuais, improvisações,
‘produtos flux’, vocalizações, instruções, partituras, manufatura
de instrumentos estranhos, arte postal, caixas e maletas com
tiragens de edições, entre outros múltiplos. Fluxus nasceu como
um coletivo informal, sob o signo de influências e reminiscências
estratégias expansivas

futuristas, surrealistas, dadaístas, situacionistas, duchampianas,


construtivistas, zen-budistas, entre outras. Em um artigo intitulado
A atualidade de Fluxus, Walter Zanini observa:
Desde 1963 começaram a surgir edições individualizadas que deram um
outro rumo ao que era previsto para os anuários. Múltiplos compostos
de bens baratos apareciam em plena cultura da “desmaterialização”,
90 porém antagônicos ao espírito ilusionista das beaux-arts. [...] [5]

De certo modo, as edições das caixas flux, contendo


objetos industriais, filmes e materiais impressos, borram as
fronteiras entre arte e vida, através da apropriação das redes
industriais e distributivas da sociedade de consumo. Em Fluxus,
talvez, a resistência ao consumismo se efetive por uma lógica
que ‘segue’ os princípios internos da própria cultura industrial.
Entretanto, os ‘múltiplos flux’ quebram a racionalidade do sistema
de mercadorias, ao apresentar falhas e inoperâncias em seus
produtos. Podemos observar a presença de tais ruídos, através
de uma carta, redigida em 1967, onde George Maciunas comenta
as sugestões de Ben Vautier para os ‘itens flux’:
Caro Ben
Agora posso responder sua carta com as sugestões para vários itens
flux:
SÃO TODAS ÓTIMAS!!!
[…] – Lux Flux (poderia ter muitas variações, como uma lâmpada de 8
volts com um fio de 115 volts para que queimasse antes que fosse
ligada).
[…[ – Ovo Flux (talvez seja frágil demais).
[…] – Baralho de cartas que faltam (MUITO BOM e fácil!!!). [6]

espaços moventes
De um modo geral, quase todos os itens mencionados
por Maciunas são reconfigurações de produtos já existentes,
articulando-se com a noção de ready-made. Assim, as ideias de
originalidade e de edição implícitas no conceito de ready-made
fariam parte do legado que Duchamp deixou ao Fluxus. Vale 91
observar que grande parte dos ready-mades, hoje existentes,
não é original. Ao serem perdidos ou extraviados, na década
de cinquenta e sessenta, Duchamp realizou novas edições dos
seus trabalhos, assinando e datando-os conforme seus ‘originais’.
Tal fato é descrito pelo curador Pontus Hultén, ao lembrar-se
de uma exposição realizada em uma livraria, onde Duchamp
participou com seus ready-mades:

Ele me marcou profundamente. Na livraria, fizemos uma exposição – não


tínhamos nem mesmo uma Caixa-valise (1941-1948) –, mas arrumamos
algumas réplicas. Depois, Duchamp assinou tudo. Ele gostava da ideia
de que uma obra de arte pudesse ser repetida. Ele odiava obras
“originais” com preços competitivos. [7]
Por meio das novas edições dos ready-mades, podemos
cogitar que não há um original em Duchamp. Há, sim, uma
matriz de pensamento, a qual possibilita inúmeras tiragens.
Haveria diferença entre a Fonte de 1917 e suas outras edições?
Aqui podemos transpor a abordagem que Foucault desenvolve
sobre René Magritte para a poética de Marcel Duchamp:
estratégias expansivas

O similar se desenvolve em séries que não têm nem começo nem fim,
que é possível percorrer num sentido ou em outro, que não obedecem
a nenhuma hierarquia, mas se propagam de pequenas diferenças em
pequenas diferenças. [8]

O múltiplo Boîte-in-valise, realizado na década de 1940,


92 joga com a ideia de reprodução em série, similaridade e portabi-
lidade, através de réplicas de trabalhos, em escalas reduzidas,
guardados em uma caixa desdobrável. Marcel Duchamp confec-
cionou trezentos exemplares de seu ‘museu portátil’, assinando
vinte caixas que formavam uma coleção ‘Deluxe’, as quais,
segundo o artista, possuíam uma obra original misturada às
cópias. Além de réplicas tridimensionais dos ready-mades, Boîte-
in-valise guardava impressões em cor de suas pinturas e de
suas aquarelas. Nessa perspectiva, o conteúdo de Boîte-in-valise
pode ser considerado como uma espécie de já-feito que também
se propaga ‘de pequenas diferenças em pequenas diferenças’.
Outra iniciativa comercial que deve ser abordada chama-
se Fluxus Mail-Order Warehouse, consistindo-se por um sistema
de venda através de catálogo, onde os ‘produtos fluxus’ com-
prados eram remetidos pelos serviços postais. Maciunas usou
a rede de contatos da arte postal para divulgar os projetos do
Fluxus, aproveitando um amplo canal de comunicação e criando
um caminho próprio para o varejo. Talvez, tal criação possa
ser abordada como sendo uma crítica à mercantilização de
objetos únicos e aos altos valores decorrentes das características

espaços moventes
singulares que tais produções encerram.
Atualmente, existem lojas virtuais que comercializam
alguns ‘produtos flux’, disponibilizando-os para colecionadores
e para outros interessados, entretanto, especialistas em Fluxus
analisam esses itens com certa hesitação. A morte de Maciunas,
o qual se auto-intitulava como sendo o fundador do grupo, em 93
1978, parece ter extinguido boa parte do ânimo que movia o
Fluxus em suas ações irônicas, seus projetos artísticos e em
seus empreendimentos comerciais. Grande parte das iniciativas
artísticas de criação de espaços que distribuem múltiplos e
publicações articula-se como um reflexo da abertura principiada
pelo Fluxus.
Aqui, esta discussão não buscou delinear traços de
semelhanças, através de uma paridade conceitual entre os
projetos abordados, mas, sim, observou as confluências entre
‘invenção de formas sensíveis’ e ‘modos de agir e habitar’. Ao
aproximar os projetos de curadoria portátil de Regina Melim às
proposições de Siegelaub e de Obrist ou ao acolher no mesmo
ideário Duchamp e Fluxus, constatou-se que ambos não se
esgotam nas relações de originalidade e de portabilidade. Tais
projetos, buscando espaços moventes e propondo aberturas
para o escoamento da produção artística, abrem questões que
restam em suspenso. Assim, ao abordar um trabalho de arte
que simula características de um produto em série, mesmo que
estratégias expansivas

em uma micro-situação, problematizam-se as relações da arte


com as outras coisas do mundo, aquelas que, aparentemente,
o fazem funcionar.
Talvez, a ‘invenção de formas sensíveis’, das quais nos
fala Rancière, possa ser apreendida, não apenas como novas
configurações do mundo, mas também como outros modos de
94 atuar sobre esse que se apresenta. Portanto a ideia de ‘estra-
tégias expansivas’, a qual permeou as linhas de pensamento
deste livro e as escolhas dos trabalhos abordados, se afasta
do significado militarista do termo. Ao contrário, o seu sentido
subjetivo está mais próximo de investigações em arte que, de
certo modo, ampliam as margens e os territórios do privado
e do público.
IMAGENS
Grupo Perdidos no Espaço, conjunto das três edições
do Jornal Perdidos no Espaço, [2003, 2005 e 2006].
Mabe Bethônico, Jornal museumuseu, 2006.
Cristiano Lenhardt, Relación Ornamental, 2006.
Daniela Castro e Fabio Morais, ARTE E MUNDO APÓS A CRISE DAS UTOPIAS
– assim mesmo, em CAIXA ALTA e sem notas de rodapé, 2010.
Hélio Fervenza, Transposições do Deserto, 2010.
Cildo Meireles, Zero Cruzeiro, 1974/1978.
Cildo Meireles, Zero Cruzeiro, 1974/1978.
Pablo Paniagua, Imaginário, 2005.
Pablo Paniagua, Imaginário, 2005.
FÁBIO MORAIS
Feriado
[páginas propostas para esta publicação]
ENTREVISTAS
REGINA MELIM
[LOJA]
estratégias expansivas

112

Regina Melim - vive e trabalha em Florianópolis, SC.


Docente no Departamento de Artes Visuais da Universidade
do Estado de Santa Catarina. Coordena nesta mesma
Universidade o Grupo de Pesquisa Processos Artísticos
Contemporâneos. Em 2006 cria a plataforma independente
par(ent)esis para produzir e editar projetos artísticos e
curatoriais cujo formato são de publicações, tais como:
«Pf» (2006), «Amor: leve com você» (2007), «Coleção»
(2008), «Conversas: Ana Paula Lima e Ben Vautier – Tudo
pelo Ben» (2009); «Conversas: Fabio Morais e Marilá
Dardot – blá blá blá» (2009); «ARTE E MUNDO APÓS A
CRISE DAS UTOPIAS: assim mesmo, em CAIXA ALTA e
sem notas de rodapé» – Os performers (2010) e «Projeto
A2» – Diego Rayck (2010). Autora do Livro «Performance
nas artes visuais», Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2008.
Michel
Regina, começo aqui uma conversa...
Mas ela falta, precisa de eco...
As palavras escritas também podem ecoar...
A LOJA é um espaço portátil para publicações, congregando
artistas de produções distintas, com tiragens múltiplas. Ao mesmo
tempo, ela não é um espaço físico. Ela possui a mesma portabi-
lidade dos objetos que abriga [a LOJA é tão portátil quanto
um livro, uma revista, uma camiseta...]. Entendo-a como um

entrevistas
emblema, uma placa de sinalização e ativação do espaço que
temporariamente ocupa. Vejo neste processo de agenciamento
uma relação com questões institucionais da arte e, ao mesmo
tempo, informais. Estou no caminho certo? 113

Regina
Sim. Mas, também, é importante assinalar que tudo começou
quando os dois primeiros volumes da série Conversas (Ana
Paula Lima e Ben Vautier / Fabio Morais e Marilá Dardot)
estavam prontos e senti a necessidade (igual havia sido com o
PF, amor: leve com você e Coleção) de criar um circuito próprio
para eles. Não era em uma prateleira de livraria (tão somente),
porque essa série eu vejo como um modo outro de expor,
cujo lugar é o de uma publicação. Assim, surgiu a ideia de
fazer uma exposição onde pudesse inserir outras ‘exposições’,
outras publicações onde não apenas compartilharia com outras
produções, outros pares, mas poderia começar a debater sobre
esse lugar-publicação, tanto como uma exposição (cada uma
delas, independentemente) e também, no conjunto, seus modos
de expor. Além disso, uma questão sempre me perseguiu: publi-
cação tem que ser manipulada, folheada, lida. O espectador
tem que ter essa proximidade e um tempo diferenciado daquele
estratégias expansivas

usualmente estabelecido em uma mostra de trabalhos de


arte. Outra questão que também acompanha desde sempre
os projetos que desenvolvo no formato de publicações é a
possibilidade do espectador, indivíduo que visita uma exposição
dessa natureza, poder levar consigo. Poder estender esse
tempo da apreciação e leitura. Poder ativar e compartilhar essa
114 exposição em outros contextos. Desde o inicio, em 2006, quando
surgiu a primeira publicação, o PF, denominei de ‘exposição
portátil’ - termo que peguei emprestado de Walter Zanini de um
texto de apresentação As novas possibilidades, para o Catálogo
da exposição Poéticas Visuais, no MAC/USP, em 1977, porque
achei ultra adequado para o que estava propondo.
Michel
Duas questões sobre o nome LOJA...
A primeira [...] Ser uma coisa e ter como nome
a própria coisa [ser uma loja que tem o nome de
LOJA] e, no mesmo intervalo, não ser uma loja
e ter o nome de LOJA...
Regina
Então, o nome LOJA e a ideia de fazer uma exposição que
fosse como uma loja surgiu a partir dessa busca de atender as
exigências que eu mesma colocava: de possibilitar um acesso
mais direto, mais próximo do espectador e, deste poder levar
para casa cada uma das exposições-publicações. Não poderia
ser, portanto, uma exposição com publicações dispostas em
vitrines e alguns fac-similes para o manuseio, num espaço-tempo
usual de uma mostra, de um mês, dois, ou três. Não era isso.

entrevistas
Não poderia ser desse modo. Eu tinha uma referência muito
importante que eram as lojas Fluxus e no meu imaginário, pas-
sar na Canal Street, NY, em 1964, entrar e adquirir ou levar
algo que estivesse ali para ser distribuído gratuitamente, era o 115
mesmo que passar no mercado e levar frutas, ou passar na
padaria e levar pão. Tudo tratado como gênero de primeira
necessidade. Pode soar estranho, mas foi isso que me motivou.
E a logo da LOJA - um carrinho de compras, daqueles de ir
à feira - potencializava isso.
Michel
A segunda questão [...]
O nome LOJA [escrito em letras garrafais] joga com a força
que o título pode instituir. Lembro aqui do museumuseu da Mabe
B. [ressalto que estou falando sobre as suas semelhanças
constitutivas do título e não dos modos de operação do referido
trabalho]...
Regina
LOJA - assim mesmo, em caixa alta - para reforçar a ideia de
que ali o espectador vai encontrar uma série de publicações
que estão à disposição para o manuseio, venda e distribuição
gratuita.
estratégias expansivas

Michel
Observo em alguns trabalhos anteriores [PF, amor leve com você
e Conversas] - a publicação como um vetor de condensamento
de artistas e de seus trabalhos, ideias e pensamentos. Na
LOJA, isto acontece também [agora são as publicações e os
objetos múltiplos que estão agrupados sobre o mesmo escopo].
116 Como que funciona o processo de contato com os artistas que
possuem trabalhos vinculados a LOJA?

Regina
Funciona da mesma forma que os projetos anteriores que
você à pouco citou, ou seja, através de uma rede que vem
se formando, ao longo do tempo, por afetos e proximidades
conceituais.

Michel
Há um limite de preço estipulado para os trabalhos que são
comercializados na LOJA? Por quê?
Regina
Porque o que sempre me interessou nos procedimentos artísti-
cos, cujos formatos são o de publicações, é a possibilidade de
poder multiplicar, de ser uma série que se estende e passa a
lidar com outros valores, menos extorsivos, muitos deles com
valores tão ínfimos que qualquer um pode possuir. Nunca me
interessei por publicações que se apóiam em tiragens mínimas
como uma qualidade que as singularizam. A força está na
circulação e na expansão do circuito.

entrevistas
Michel
Em todo este processo - o valor dos trabalhos é repassado
integralmente aos seus autores. Isto, novamente, quebra com a 117
lógica de uma loja comum. Assim, me pergunto: A LOJA seria
um trabalho de arte que passa invisível aos olhos dos outros?
Ou é outra coisa?

Regina
A LOJA pode ser tratada como um trabalho artístico sim. Do
mesmo modo que uma exposição pode ser tratada, em muitos
casos, como um trabalho artístico. Mas tem outro lado que
gostaria de assinalar que é o fato da LOJA, assim como os
outros projetos que tenho desenvolvido, estarem todos muito
aderidos à minha prática de professora e pesquisadora na
universidade. Não consigo desvincular uma atividade da outra.
Assim, A LOJA também se traduz como uma amostragem
das prospecções de uma pesquisa acadêmica, cujo objetivo é
suscitar debates acerca dos modos de apresentação de uma
pesquisa experimental em arte. Trato a LOJA como uma expo-
sição e essa exposição do mesmo modo como se estivesse
apresentando um texto ou um artigo. Em cada edição da LOJA
estratégias expansivas

vamos ter novos passos do desenvolvimento e transformações


dessa pesquisa. Eu penso que, quando estabeleço essas duas
instâncias: pesquisa acadêmica e exposições - ambas centradas
no processo de seu desenvolvimento (que continua a cada
(a)mostra(gem)), tenho a possibilidade de visualizar situações
que, via de regra, são excluídas. Além do percurso, muitas
118 vezes restrito à condição de bastidor, o cruzamento entre uma
pesquisa realizada na universidade com exposições abertas ao
público tem gerado processos efetivamente mais dinâmicos,
acrescidos de algumas camadas que são cercadas de uma
exterioridade muitas vezes ignorada. Assim, tanto a pesquisa
acadêmica quanto as exposições tornam-se estruturas abertas e
processos contínuos de formulações e debates coletivos, dentro
e fora da universidade.

Michel
Do mesmo modo que a LOJA possui uma portabilidade congê-
nere aos objetos que abriga, ela também possui edições [como
uma publicação pode ter]. Já está na quinta edição?
Regina
Sim, na quinta e última edição. E o mais interessante é que
ela fecha como LOJA e como seminário, dentro de uma
universidade.
Michel
Como elas aconteceram? Os lugares e os públicos foram
diferentes?

entrevistas
Regina
Então, como o formato da LOJA, enquanto exposição, difere
daquilo que estamos acostumados a conviver, o lugar e o
público, igualmente são diferentes e com muitas variantes. A 119
primeira edição foi realizada em Curitiba (PR), no Núcleo de
Estudos de Fotografia - um lugar que é coordenado por dois
artistas, Milla Jung e Felipe Prando. A LOJA permaneceu durante
três semanas do mês de novembro de 2009, convivendo com
visitantes que ali chegaram para ver a exposição, bem como
os alunos que durante a semana assistiam aulas ministradas
por esses dois artistas. Ocupamos a sala principal, onde as
aulas são ministradas e onde os artistas trabalham. Foi um
convívio interessante, disse um dos alunos quando fizemos a
habitual conversa com o público. Em dezembro deste mesmo
ano, fizemos a LOJA em Florianópolis (SC). Durante uma
semana ocupamos uma pequena sala, no centro da cidade,
conhecida como Memorial Mayer Filho e que é destinada a
espaço expositivo. Pelo fato de ser na área central da cidade,
com um grande fluxo de pessoas, e estarmos a poucos dias do
natal, o público foi o mais diversificado possível. A LOJA tomou
aspecto de espaço de comercialização mesmo! Não parávamos
de atender, fazer pacote. Não houve a mínima possibilidade
estratégias expansivas

de fazer um debate com o público. Mas foi interessante ficar


imaginando as pessoas presenteando naquele ano com trabalhos
de arte. Em março de 2010 fomos para São Paulo montar a
LOJA no Beco das Artes - um espaço coordenado por um grupo
de artistas. Foram apenas três dias e o público foi totalmente
composto por artistas. Em abril, a partir de um convite, fomos
120 para a quarta edição num espaço de dança em Ribeirão Preto
conhecido como ONG FINAC.

E, novamente, o público foi totalmente diverso, composto grande


parte por bailarinos participantes das atividades daquele espaço.
Agora vamos para quinta e última edição, na Pinacoteca Barão
de Santo Ângelo, no Instituto de Artes da UFRGS, com um
formato compacto em sua duração, pois a LOJA estará aberta
ao público apenas no período das 10h00min às 16h30min
horas. Além disso, a LOJA vai ter também o formato (além de
loja) de um seminário. Ela abre como seminário, onde vamos
apresentar o projeto e seremos mediados pelos artistas profes-
sores, Maria Ivone dos Santos e Hélio Fervenza.
Será também uma oportunidade, de poder reunir na mesma
mesa, três artistas pesquisadoras que me acompanham neste
projeto: Maíra Dietrich, Ana Clara Joly e Tatiana Sulzbacher.
Outra parceira, desde 2006, Giorgia Mesquita - responsável por
toda a identidade visual dos projetos, não estará presente, pois
mora em Londres desde janeiro deste ano.

Michel
Por enquanto, era isso. Abraço.

entrevistas
Regina
E eu digo o mesmo, por enquanto era isso. Abraço e até breve.
121

Participaram ao longo das cinco edições da LOJA os seguintes artistas:


Alex Cabral, Aline Dias, Amir Brito, Ana Paula Lima, Ana Clara Joly, Ana
González, Anna Korteweg, Anna Paula Stolf, Brígida Baltar, Carla Zaccagnini,
Claudia Zimmer, Cleverson Salvaro, Diego Rayck, Fabio Morais, Fernanda
Gassen, Giorgia Mesquita, Glaucis de Morais, Glória Ferreira, Grupo Poro, Hélio
Fervenza, Joana Corona, João Rosa, Jorge Luiz, Jorge Menna Barreto, Julia
Amaral, Juliana Crispe, Karen Pagno, Laercio Redondo, Luize Cornelius, Maikel
da Maia, Maíra Dietrich, Nara Milioli, Márcia Souza, Maria Ivone dos Santos,
Mariana Silva da Silva, Marilá Dardot, Marina Borck, Michel Zózimo, Milla Jung,
Milton Machado, Orlando Maneschy, par(ent)esis, Paulo Bruscky, Priscila Zaccaron,
Priscilla Menezes, Rafael Adorjan, Raquel Stolf, Rosana Rocha, Sergio Basbaum,
Traplev e Yiftah Peled.
estratégias expansivas

122
CRISTINA FREIRE
[MUSEU]
entrevistas
123
estratégias expansivas

124

Cristina Freire vive e trabalha em São Paulo, SP.


Docente da Universidade de São Paulo. Atualmente
é vice-diretora do Museu de Arte Contemporânea
da Universidade de São Paulo [MAC-USP].
Publicou diversos artigos em revistas especializadas
nacionais e internacionais assim como é autora
dos livros: «Além dos Mapas. Os Monumentos no
Imaginário Urbano Contemporâneo», São Paulo,
Annablume/Fapesp, 1997; «Poéticas do Processo.
Arte Conceitual no Museu», São Paulo, Iluminuras,
1999; «Arte Conceitual», Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 2006; «Conceitualismos do Sul/Sur»
[Org.], São Paulo, Annablume, 2009, entre outros.
Michel
Bom, começo então prospectando algumas questões que pode-
riam ser tratadas na nossa conversa. O assunto da pesquisa é
publicações de artista [abordando trabalhos de artistas brasileiros
da década de sessenta até ao presente momento] que se
configuram através do meio impresso com tiragens limitadas
e ilimitadas, justapondo, através das artes gráficas, imagem
e [ou] texto. Trata-se de um importante veículo de difusão e
de dispersão utilizado por distintos projetos artísticos, os quais

entrevistas
podem empregar ou abrir mão das estruturas convencionais de
edição, publicação, distribuição e de circulação.

1] Nesse sentido, acredito que o lugar de onde falamos pode ser 125
um dos indicativos dos nossos modos de pensar a arte. Por tal
motivo, gostaria de abordar a tua experiência como professora-
pesquisadora da universidade e vice-diretora do MAC-USP. A
meu ver, dois lugares que, essencialmente, vivem de relações
dinâmicas entre pesquisa e arquivo, e que muitas vezes podem
esbarrar nos processos distributivos e de circulação, tanto da
produção intelectual, como da produção artística. Como o museu
de arte contemporânea pensa este tipo de produção que articula,
em seus processos intrínsecos, circulação, manuseio e leitura?
Cristina
Na minha atividade de ensino, nos cursos de graduação e de
pós-graduação que ministro, assim como nas minhas palestras,
nos textos que escrevo de uma maneira ou de outra meu ponto
de partida é sempre o museu. Esse é o lugar (no sentido
antropológico, histórico, arquitetônico, de onde partem minhas
reflexões etc, etc). Ou seja, meu pensamento sobre as práticas
artísticas é sempre contextualizado e volta-se criticamente para
estratégias expansivas

seu ponto de partida. Como curadores de museu, o acervo é


nosso horizonte de trabalho. Ele dá o limite e as possibilidades
de nosso trabalho e faz com que junção entre a pesquisa a
docência e a extensão (no meu caso a curadoria de exposições)
sejam tarefas absolutamente interligadas. Esse me parece o
diferencial mais significativo [...].
126
Mas mesmo dentro do Museu, há diferentes maneiras de
abordagem da arte. Assim não é o Museu que se pensa, são
os diferentes pesquisadores-curadores que pensam a partir do
acervo do museu e ao expor seus critérios podem, ou espera-
se que possam adensar a compreensão das práticas artísticas
em suas imbricações com as dinâmicas sociais e institucio-
nais. Penso que alguns conceitos devem embasar a reflexão
dentro de um trabalho de curadoria e pesquisa num acervo.
É necessário pensar antes o próprio museu, pois o museu de
arte é o narrador oficial da História da Arte, como sabemos, é
onde a modernidade foi gerada, implementada e sustentada ao
longo do tempo. É também um instrumento ótico privilegiado,
onde são recriados constantemente crenças, representações e
valores. É um lugar de visibilidade, de visualidade e também de
ocultação. É onde se cristalizam ideias. E o papel da pesquisa
deve partir da interrogação, isto é interrogar, reverter a ocultação.
Isto sugere que tudo o que se expõe, se expõe a partir de
uma convenção. Neste sentido, entendo ser fundamental para
o trabalho de pesquisa e de curadoria no museu universitário,
algumas questões:

entrevistas
A primeira, e eu acho que isto que vai diferenciar o trabalho
da pesquisa num museu de arte, do trabalho de investigação
em outros contextos, é que a obra de arte é o ponto de par-
tida. Não deve-se cair no risco de tratar a obra de arte como 127
algo isolado e autônomo, mas, sim, pensar na retórica que ela
engendra numa coleção. Essa retórica é feita de palavras e
silêncio, ou seja, de presenças e ausências. Isto quer dizer que
é significativo do ponto de vista artístico e político dar atenção
aos artistas menos conhecidos. Isto porque, muitas vezes, existe
aquela tentação mercadológica de reiterar o mesmo. E a nossa
situação num museu de arte público e universitário é justamente
resistir a essa sedução, cada vez mais forte, que o mercado e
as organizações espetaculares criam em relação ao sistema da
arte. É preciso admitir que fazemos muito, muito mesmo, por
poucas obras e fazemos pouco por centenas de milhares de
outras. Isto requer deixar um pouco de lado a expectativa do
público, já moldada pela sociedade de consumo e por meio de
uma pesquisa em profundidade levantar outras questões que
possam estar abrindo outras veredas.
Michel
2] As publicações de artista são caracterizadas por terem
estratégias expansivas

uma tiragem, um valor relativamente baixo e por transitarem


em espaços distintos. Nesta circunstância, cria-se um entrave
material, pois apesar terem uma distribuição mais ampla, certos
trabalhos ganham um caráter de raridade, ao serem descartados
por seus leitores ou desaparecerem com a fugacidade do
tempo. Em contrapartida, poderíamos perguntar: Em um espaço
128 expositivo, qual seria o estatuto de uma obra múltipla?
Cristina
‘Publicações de artista’ é uma categoria ampla que pode abarcar
muitas coisas: livros de artista, revistas editadas por artistas,
obras gráficas, sonoras e efêmeras, entre outras. Essa cate-
goria me interessa, pois basta lembrar com Walter Benjamin
em seu já antológico texto de 1935 A obra de arte na época
de sua reprodutibilidade técnica, que alerta para o fato que o
que se vinha processando ao longo do tempo, construindo, era
não apenas uma modificação nos meios de reprodução, mas
na própria imagem que envolve, necessariamente, formas de
percepção. Assim, o que interessava Benjamin não era uma
análise isolada de uma obra de arte, nas técnicas de reprodução
isoladamente, mas partir delas para pensar a sensibilidade e
as estruturas de percepção em cada tempo. Esse ‘possível’ é
necessariamente político e em muitos casos trata-se de uma
verdadeira batalha que se trava a partir de diferentes narrativas.
No museu, esse ‘possível’ passa pelo que chamamos (ou não)
de obras, pelas categorias disponíveis para sua documentação,
formas de exibição e programas de preservação. Cada vez
mais, tudo isto está no centro das problemáticas de museus

entrevistas
de arte contemporânea. Cada uma dessas funções, pois tendo
como origem um conceito de obra moderna (autônoma) ainda
pautado nas categorias herdadas das Belas Artes. Publicação de
artista, portanto como categoria dá conta de uma variada gama 129
de práticas artísticas. Tenho buscado ampliar a compreensão
do que venha a ser ‘publicação de artista’ no âmbito das
práticas museológicas. Isso quer dizer, por exemplo, reconhecer
a existência de zonas de trânsito, por exemplo, entre a reserva
técnica, a biblioteca e o arquivo no museu vis-à-vis a produção
artística contemporânea. Essas zonas, creio eu, não devem ser
obliteradas, mas avaliadas cuidadosamente em suas correlações
para que possam redefinir o papel e o lugar do museu no
século 21.
Michel
3] Ao ar do tempo, o histórico do MAC-USP, iniciado pelo
professor Zanini, já demonstrava uma especial atenção para
este tipo de produção. Não é? Na lógica do acolhimento de
experimentações em arte contemporânea, poderia comentar as
reverberações que ainda hoje ecoam?
4] As narrativas que história da arte nos apresenta, em grande
estratégias expansivas

parte, são genéricas - pois uniformizam os modos de pensa-


mento e de produção. Assim, diferenças e ruídos são excluídos.
Partindo, da arte de endereçamento conceitual [em 60 e 70]
que era produzida no Brasil e em outros países da América
Latina - quais seriam os seus desvios daquela arte conceitual,
a qual os livros já oficializaram?
130
Cristina
É certo que pensar a arte dentro do museu, envolve pensar
sempre as questões que estão embasando uma determinada
ideia de arte. A mais arraigada é essa ideia de arte que re-
monta ao Renascimento e sustenta que a obra de arte é única,
autêntica, e permanente e deve se considerada, sobretudo nos
procedimentos museológicos, a partir dos seus meios e técnicas
tradicionais: pintura, escultura, desenho e gravura. É certo que
tudo isto vai ser suspenso, do ponto de vista da sua aplica-
bilidade, a partir da segunda metade do séc. 20 e é por isso
que me interessa a coleção de arte conceitual do MAC-USP.
É com a arte conceitual que, considera mais as ideias do que
os objetos, que tudo isto entra em suspensão. A obra deixa
de ser única, torna-se reproduzível. A autenticidade é colocada
em xeque, muitas obras são realizadas por autoria coletiva,
não são permanentes, são transitórias. Em várias exposições
ocorridas no MAC nos anos 70, os artistas trabalhavam no
espaço do museu e em alguns casos ali permaneciam durante
o período todo da mostra. Isto quer dizer, ideologia que cerca
a divisão dos espaços, o espaço de recepção: museu, espaço
de criação: atelier ou estúdio se desfaz. E este museu, neste

entrevistas
momento, representava este ‘espaço operacional’. Isto é um
espaço de produção e recepção artística fundidos como arte e
vida. Dirigido pelo prof. Walter Zanini, grande incentivador da
arte de vanguarda desconstrói-se, nesse momento, a autonomia 131
do museu e da obra de arte. Outras proposições entram no
campo da definição do que deva ser ou que pode ser o objeto
de arte: a arte postal, os livros de artista, as instalações e os
vídeos. Coloca-se hoje, então, a questão extremamente im-
portante, dentro do conceito de curadoria de arte e de arte
contemporânea: o que significa conservar e o que significa
restaurar? Conservar, especialmente no conceito próprio à arte
contemporânea, sugere dar inteligibilidade aos trabalhos e o
papel da pesquisa é aí fundamental. Isto é, trata-se, sobretudo
de atribuir a estes projetos significado e valor, ao inseri-los
numa rede simbólica mais ampla. No caso da América Latina,
a história política do continente deve ser considerada. Isto
porque esta rede simbólica compreende o contexto político e
social da realização das obras, as condições de sua legitimação
ou exclusão institucional, assim como repertórios de intenções
dos artistas. Deste modo, restaurar pode significar recuperar
a função política do museu, ao reinventar suas práticas, para
que ele possa representar o lugar privilegiado estratégico,
estratégias expansivas

onde se formula cotidianamente a visualidade do nosso tempo.


Uma reflexão para finalizar: penso que nossa tarefa como
pesquisadores nos museus de arte na sociedade contemporânea,
parece ser, cada vez mais, perscrutar o horizonte, em busca
de uma outra luz que nos oriente, para além do espetáculo
dominante.
132
AMIR BRITO
[BIBLIOTECA]
entrevistas
133
estratégias expansivas

134

Amir Brito é artista gráfico e professor da


Habilitação em Artes Gráficas da Escola de
Belas Artes da UFMG. Doutorando em Artes na
UFMG, realiza pesquisas sobre livros de artista.
Participou de mostras coletivas de gravura e
de poesia visual. Em 2007 realizou exposição
individual em Campinas, na Galeria de Arte da
Unicamp. Membro da comissão organizadora
do seminário “Perspectivas do Livro de Artista”,
realizado em Belo Horizonte em 2009. Publicou
o livro de artista «As Façanhas de Um Jovem
Dom Juan» pelas Edições Andante, em 2010.
Michel
Oi Amir
Chegamos agora a pouco de SP...
Foram proveitosas as conversas no Tijuana5.
Ouvir a tua fala ajudou a pensar as questões que eu gostaria
de conversar contigo... Elas já caminhavam para esta direção
e grande parte do assunto tratado no Tijuana pode servir
de referência para a nossa conversa. Bom, em um primeiro
momento, gostaria de saber como surgiu a ideia do Seminário

entrevistas
Perspectivas do Livro de Artista, ocorrido em 2009 na UFMG,
e qual a importância deste na prospecção de uma Coleção
Especial de Livros de Artistas na Biblioteca da EBA da univer-
sidade? Como foi o processo de negociação com a Biblioteca 135
da EBA, para se inserir está coleção - a qual, muitas vezes,
parece ser inclassificável? Como começou a coleção e como
ela continua? Como se dá o processo de seleção do material
e aquisição dos livros? Como se dará o acesso ao público?

5
Projeto criado em 2007 pela Galeria Vermelho [SP], TIJUANA tem como objetivo
a apresentação de obras impressas cujo suporte as diferencia dos formatos
tradicionais de obras de arte como a pintura, a fotografia ou a escultura. No
TIJUANA, obras de arte como livros de artista, gravuras, pôsteres, vinis e DVDs
são produzidos, apresentados, e comercializados. O projeto acomoda também
lançamentos de diversos tipos de publicações de artistas e de projetos editorias,
criando com esses procedimentos uma plataforma ampla de apresentação e
discussão acerca da arte impressa.
E o que falta para isso ocorrer? Pelo que percebi, na tua fala
e no exemplares da coleção, há uma tendência pelos múltiplos
e pelas publicações... Poucos exemplares são trabalhos únicos...
Acredito que tal fato possui uma lógica interna em relação ao
lugar que os abriga - uma biblioteca. Caso fossem trabalhos
sem tiragem, o contato com o público, talvez, seria de outra
estratégias expansivas

ordem e em outro lugar?

Amir Brito respondeu as perguntas em um texto único.

Amir
136 A ideia do seminário: A pós-graduação da EBA realizava todo
ano seminários, abertos ao público, mas obrigatórios para os
alunos. A Cacau, minha orientadora, era coordenadora da pós,
e pensamos em fazer um seminário temático. Ela participou da
banca de defesa do Paulo Silveira, e tem interesse em livros
de artista, assim propusemos este tema. Depois de confirmar
a participação do Paulo Silveira e do Paulo Bruscky, os outros
convidados prontamente aceitaram participar. Era para ser um
evento pequeno, ele foi crescendo aos poucos: era para ter
apenas as mesas-redondas, mas decidimos aproveitar a vinda
dos convidados para oferecer uma palestra ou curso, pensamos
que um ou outro aceitaria esta atividade extra, sem receber
cachê, apenas bilhete aéreo e estadia, e todos toparam.
A coleção iniciou um pouco antes, e haveria uma mostra com
os livros, que também foi crescendo: inicialmente era o meu
acervo pessoal e da Cacau, e alguns exemplares recebidos
para a formação da biblioteca, depois incorporamos obras dos
convidados, e finalmente dos alunos, ex-alunos e professores
da EBA. A mostra incluiu uma instalação, obras únicas, livros
alterados, fac-similes.

O seminário foi importante para dar visibilidade ao nosso acervo;

entrevistas
outra consequência direta foi que vários participantes deixaram
obras para a nossa coleção. Algumas pessoas que foram as-
sistir às palestras também doaram livros de sua autoria. Mas,
não lembro de muitos livros que foram citados no seminário 137
que tenham sido incorporados ao acervo. O Brad Freeman
apresentou um livro chamado Belo Horizonte, de um artista
alemão, Joachim Schmid: pedimos a ele, Schmid, a doação
deste livro, e recebemos um pacote com 4 ou 5 livros diferen-
tes, alguns em alemão. Para minha comunicação, sobre livro
infantil, consegui a doação de um importante catálogo italiano,
do OPLA, que vem com um CD-Rom. O Brad enviou 120
exemplares do JAB para distribuição durante o seminário (ed.
23 a 25). Recebemos alguns livros teóricos: sobre o Bruscky,
sobre o Felipe Ehrenberg, o Artist’s Book Yearbook, e Libros
de Artista, catálogo de Martha Hellion. Demorou certo tempo
para conseguirmos apoio, colocaram empecilhos quanto à verba
para aquisição, pessoal para cuidar, espaço físico. Fizemos
um projeto em que detalhamos isso, destacando as doações
por meio de cartas-convite. A expectativa, na época, era de
receber 40 livros. A nova diretora também apoiou a causa, e
tem intenção de se especializar na catalogação deste tipo de
material. O Paulo Silveira enviou uma cópia do Artists’ books:
estratégias expansivas

a cataloguers’ manual, que copiei para a diretora. Envio um


texto inédito que conta como a coleção iniciou. Será publicado
no próximo ano, na revista da pós que tem um dossiê sobre
o Seminário. Para dar continuidade, estamos escrevendo um
projeto para a Funarte, para aquisição de obras. Fiz uma lista
de publicações que achei interessantes, que estavam na Bienal,
138 e estamos contatando os artistas, pedindo doações. Tem alguns
que se prontificam a colaborar, mas não enviam o material,
por esquecimento ou desinteresse. Aconteceu até um fato que
me deixou contrariado: alguns artistas que ficaram de enviar os
livros para a EBA, não enviaram dizendo que a edição estava
esgotada, mas enviaram depois para a Bienal, para o espaço
criado pela Marilá e o Fabio. Excelente projeto, por sinal. Ainda
não conseguimos formar um conselho curador para a seleção.
Por enquanto tem apenas eu e a Cacau, e ocasionalmente
conversamos com outros pesquisadores a respeito de alguma
obra que desafia a classificação: os catálogos que o artista
considera livro de artista, mas são apenas um bom catálogo
com um projeto gráfico orientado pelo artista (Memento Mori, de
Walmor Corrêa). Estou fazendo uma cronologia, com as obras
publicadas no Brasil desde a década de 50. Ocasionalmente,
incluo artistas estrangeiros que publicaram no Brasil (Leon Fer-
rari) e brasileiros que publicaram no exterior (Aloísio Magalhães)
Digo isso porque tenho pouca informação a respeito destes
dois casos específicos.

Uma parte da informação foi recolhida de catálogos de ex-


posição, como o Tendências do Livro de Artista no Brasil,

entrevistas
realizado no CCSP em 1985 (curadoria de Annateresa Fabris e
Cacilda Teixeira da Costa); Ex-Libris/Home Page, Paço das Artes,
São Paulo, 1998 (curadoria de Giselle Beiguelman); Livro-objeto:
A Fronteira dos Vazios (curadoria de Marcio Doctors, evento 139
paralelo a Bienal de Veneza, 1993 / Centro Cultural Banco do
Brasil – CCBB–RJ, 1994 / MAM–SP, 1995); BRASIL: sinais de
arte – livros e vídeos 1950-93 Milão, Veneza, Florença e Roma,
1993 (curadoria de Paulo Herkenhoff).

Repare que faz dez anos que não acontece uma grande mostra
só de livros de artista no Brasil. O público tem acesso aos livros,
mas não pode retirar da biblioteca. Ainda não definimos como
será o manuseio, se precisa de luva, se um funcionário vira a
página. Vamos conversar com o pessoal da conservação, e as
bibliotecárias do setor de livros raros, para ver como procedem.
Talvez adotemos um procedimento assim para obras delicadas,
em pequena tiragem. O Mário Ishikawa pediu algumas garan-
tias de conservação das obras, antes de decidir se faz uma
doação. O material ainda não está catalogado, temos cobrado
para agilizar isso, havia outra prioridade, que era a catalogação
de livros novos, para os cursos do Reuni, do governo federal.
estratégias expansivas

Sim, obras sem tiragem costumam ter tratamento de obras


de arte - acesso restrito, o manuseio é impensável. Não é o
perfil da nossa coleção, a ideia desde o início era ter os livros
ordinários, que qualquer pessoa pode comprar.

140
CRISTIANO LENHARDT
[RELACIÓN ORNAMENTAL]
entrevistas
141
estratégias expansivas

142

Cristiano Lenhardt vive e trabalha em Recife.


Formou-se em Artes Plásticas pela UFSM/RS em
2000. Professor da Faculdade Aeso em Recife
- PE. Participou do espaço Torreão de 2001 a
2003. Integra o grupo «Laranjas» e «A Casa
como Convém». Principais exposições: «7ª Bienal
do Mercosul - Grito e Escuta» 2009; «Paço das
Artes – Temporada de Projetos» 2009; «Prêmio
Projéteis Funarte» 2007-2008; «Programa de
Exposições Centro Cultural São Paulo», 2008;
«Abre Alas - Galeria A Gentil Carioca» - Rio de
Janeiro, 2008; «Prêmio Concurso vídeo-arte da
Fundação Joaquim Nabuco» - Recife 2007; «SPA
das Artes» 2007 e 2004 – Recife; «Fiat Mostra
Brasil» - São Paulo 2006.
Michel

Cris,
A Relación Ornamental é uma publicação de artista muito
especial para mim...

Quando um volume dela chegou pelo correio - foi uma surpresa.


Ela contaminou o meu processo de criação e o meu modo
de ver e entender o trabalho artístico [como uma massa de

entrevistas
pensamento que não dissocia a imagem, da documentação, do
texto...]. Enfim, das relações da arte e da vida. Já se passaram
quatro anos de sua publicação [ela foi editada em setembro de
2006]. Parece-me que esta publicação marca uma fase da tua 143
vida - de mudança de Porto Alegre para Recife. Dos encontros
felizes...Tem interesse em falar um pouco sobre esta publicação?
Na capa da «Relación Ornamental» há uma fotografia de um
trabalho teu, chamado «Transplanta»? É isso, não é? Fale sobre
este trabalho que está na capa e que perpassa os textos das
páginas internas da publicação? Como que nasceu a ideia de
publicar? Ela tinha uma tiragem, ou tu foi fazendo e não contou?
Como foi a sua distribuição? Restam algumas?

A formatação do texto de Cristiano Lenhardt foi conservada


conforme seus originais.
Cristiano
Obrigado Michel, o que vc fala sobre como vc recebeu Relación
Ornamental, para mim nesse momento é muito importante.
Estou numa fase esquisita, me sinto um outro que ainda não
conheço, que ainda não sou amigo, mas convivo diariamente,
ignorando-me.
estratégias expansivas

É bom saber de mim, saber como toco os outros. Estou estranho


hoje, fotograma velado, papel molhado. Mas não desgosto por
completo, sinto uma curiosidade do por vir, sinto esperança, mas
não me sinto, estou por fora de mim, não me permiti entrar
em mim ainda, o eu desconhecido, sei lá quem, é interessante
144 também, é a vida numa vibração que desconhecia.
Transplanta foi um projeto para o SPA das artes aqui em Recife.
Havia uma planta que nasceu e cresceu no meio de um viaduto
em frente a UFPE. Essa planta vinha até quase o chão, numa
altura de aproximadamente 7 metros. Minha intenção era trans-
plantá-la para a sacada no terceiro andar do apartamento que
estava morando em Recife.

Fiz umas fotos com o Jonathas para anexar ao projeto e na


semana seguinte trabalhadores da prefeitura removeram a
planta do viaduto. A ideia original já não era mais viável, mas
havia uma série de observações e reflexões que tratavam da
minha chegada nessa nova cidade, pensei em reunir em um
pequeno livrinho.

Antes de eu chegar no Recife fiquei indo e vindo entre Rio


Grande do Sul, Rio e Recife. Parava em casa de amigos,
parentes e hotéis, ao todo foram mais de trinta camas diferentes
em um ano. Abrigos e despedidas em uma profusão de senti-
mentos.

entrevistas
Por esse tempo escrevi de um lugar em que me encontrava,
a felicidade e a transformação.

Meu encontro com o mundo tropical foi impactante, senti os os- 145
sos aquecidos. A vontade era de fazer essa descoberta circular.
Para mim, escrever é encontrar um lugar onde uma espécie de
intuição se aproxima do verbo e encoraja o fabular, destrava
o limite entre o real e o artifício. Um encontro com algo que
está bem mais adiante de mim.
Fiz 100 livrinhos, um tanto eu vendi por 1 real durante o SPA
das artes em 2006, outro tanto eu dei a amigos e artistas.

Um abraço, Cris.
Nota
Em 2010, foi produzida uma segunda tiragem de Reláción Ornamental para
a exposição A CASA COMO CONVÉM na Galeria Mariana Moura [PE],
espaço que, a partir de janeiro de 2011, abriga a BANCA [projeto móvel e
independente concebido pela arquiteta Cristina Gouvêa e por Silvan Kälin,
apresentado e comercializando trabalhos múltiplos e impressos de artistas.
estratégias expansivas

146
PAULO SILVEIRA
[PUBLICAÇÃO DE ARTISTA]
entrevistas
147
estratégias expansivas

148

Paulo Silveira é professor adjunto de história da arte


no Instituto de Artes da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, e ex-coordenador
de editoração da Editora da UFRGS. Desenvolve
o prosseguimento das pesquisas de mestrado e
doutorado, com foco na estética, contexto histórico
e funções do livro de artista, assunto sobre o
qual publicou o livro «A página violada», 2001
(Fumproarte/Prefeitura de Porto Alegre e Editora da
UFRGS), atualmente em segunda edição. É membro
da ANPAP, Associação Nacional de Pesquisadores
em Artes Plásticas, e do CBHA, Comitê Brasileiro de
História da Arte. É integrante do grupo de pesquisa
Veículos da Arte, UFRGS/CNPq.
Michel
O termo publicação, em sua origem, não consegue se desvincular
do conceito-livro, no sentido de um vetor que publica algo. Aqui,
seus desdobramentos de ações ainda ecoam - editar, espalhar,
circular, manusear, ler. Neste sentido, este tipo de produção
em artes visuais pode, muitas vezes, passar de um estatuto
de obra única para um estado de múltiplo, o qual convulsiona
certas questões da arte. Assim, sem perder as características
congêneres do conceito-livro, o qual lhe dá origem, algumas

entrevistas
publicações de artistas, ao mesmo tempo, podem se afastar da
formatação padrão de um livro?

Paulo 149
A formatação padrão de livro é uma das apresentações possíveis
de uma publicação de artista. Existem as revistas, jornais,
folhetos e outras conformações, que geralmente associamos aos
formatos gráficos de leitura. Entretanto, acho (de fato não tenho
certeza) que o termo ‘publicação’ não tem sua origem ligada
ao livro. Acredito que esteja ligado à etimologia de ‘público’. E
editar tem relação com entregar, pôr fora, apresentar, mostrar.
Sempre é bom lembrar que éditos não são livros, mas decisões
ou proclamações vindas oficialmente a público, que se fazem
saber em voz alta (neste caso, voz impressa). A ideia de
publicação me parece associada à ideia de divulgação, efetivada
pela entrega ao público de algum tipo de material multiplicado
por equipamentos gráficos. É objetivamente funcional (e palpável,
diferente de difusão, por exemplo). Tornar público é uma
ação que vem em oposição ao permanecer privado. Podemos
insolentemente atribuir julgamentos como correto ou incorreto,
bom ou mau, etc., mas não há arrogância em perceber uma
existência mais ativa ou mais passiva de uma obra, no todo ou
estratégias expansivas

em seus detalhes. Se um livro de artista é uma peça única, ele


carece (por opção conceitual, por impraticabilidade técnica, por
impedimento civil, por mediocridade, etc.) da mais importante
oportunidade que lhe é oferecida, a reprodutibilidade como
qualidade não mais alternativa, mas inerente a sua concepção.

150 Michel
Indo ainda na mesma direção da pergunta anterior, algumas
publicações de artistas, concebidas para terem um preço
relativamente baixo, circularem por distintos lugares e serem
manuseadas ao sabor da leitura, com o passar do tempo,
ganham outro estatuto [retornam ao meio em que foram criadas
e conseqüentemente perdem as suas características de objetos
do mundo]. Aconteceu isto com a publicação Twenty-six Gasoline
Station, do artista Ed Ruscha e com tantas outras. A possi-
bilidade de o artista manter uma tiragem constante poderia
quebrar com essa lógica? [Parece-me que o Cildo Meireles
ainda faz tiragens da notas Zero Cruzeiro...]
Paulo
A lógica da mais-valia e do fetiche é constitutiva de qualquer
mercado de trocas. Ela pode, sim, ser aplacada pela impressão
por demanda, pela reedição ou outras soluções. Mas sempre
haverá um comprador disposto a pagar mais por um rebento
da primeira impressão ou mesmo um exemplar de uma edição
espúria.

Michel

entrevistas
Poderia falar sobre alguns trabalhos, na arte brasileira, que tu
considera como sendo emblemáticos da publicação de artista
[tiragem e circulação]?
151
Paulo
Há alguns livros que são muito importantes, como os livros
- objetos de Augusto de Campos e Julio Plaza; o Manual da
Ciência Popular, de Waltercio Caldas (com reedição inclusive
em inglês); a produção histórica e marginal de livretos feitos em
fotocopiadoras; e algumas edições atuais (e às vezes luxuosas)
de editoras maiores e com público cativo. Temos, também,
o material postal de Paulo Bruscky e seu círculo, os periódi-
cos criados e mantidos por artistas (muitos sequer passaram
dos números iniciais), os registros fonográficos (esses mais
raros), os objetos inclassificáveis e a memorabilia em geral (de
qualquer natureza ou grau de ‘artisticidade’, do Zero Cruzeiro
aos cartazes de exposição). Esse é um território em que obra
plástica, documento, crítica, política e anedota se misturam, e
que aguarda uma prospecção intensa, construída com metodo-
logia e seriedade. É um campo ainda em aberto, mas com
pesquisas de alto gabarito acadêmico surgindo.
estratégias expansivas

Michel
E sobre os seus espaços de inscrição [como que estes trabalhos
transitam em diferentes meios do social]
Paulo
Os espaços de inscrição são os de domínio das trocas culturais:
152 você compra ou faz escambo de bens símbolicos. O circuito é
segmentado e faz parte de uma união de grupos específicos,
com escala de valores diferenciados. Acredito que o trânsito
desses impressos e artefatos esteja facilitado pelo colecionismo
contemporâneo de produtos e subprodutos indiciais ‘alternativos’,
um hábito aceito com grau elevado de aprovação social.
Michel
E, de um modo específico, sobre os lugares considerados
artísticos nos quais estas produções se inscrevem...
Paulo
Neste caso prefiro uma distinção entre um local ser específico
da arte ou ser artístico. Estas produções quase que apenas se
inscrevem nos lugares (solenes ou alternativos) da arte e nos
“lugares artísticos” (neste último caso as aspas são uma ironia,
uma afetação). Entretanto, elementos como o humor, a narra-
tividade ‘estilizada’ ou a presença facilitadora de signos culturais
urbanos podem favorecer a oferta para grupos de consumidores
não necessariamente interessados nas dimensões sublimes da
arte ou de seus príncipes (os artistas). O consumidor aqui pode
ser uma pessoa física (leiga ou iniciada) ou uma instituição

entrevistas
(mesmo exterior ao sistema artístico).
O cenário dito street, por exemplo, consome, devolve ao sistema
e consome novamente uma retórica visual com elementos híbri- 153
dos do temperamento adolescente, da comunicação de massa
e da arte intermidial, num resultado que se coloca entre uma
expressão meramente confusa e recursos já muito estudados
pela publicidade gráfica e audiovisual. E nós, consumidores
eruditos de bens simbólicos, assistimos pranchas de skate
galgando paredes de museus de arte e antropologia. No final
das contas, é justo: você me empresta o seu pódio e eu lhe
empresto o meu. O lugar alternativo se funde ao espaço do
sagrado.
estratégias expansivas

154
MARIA IVONE DOS SANTOS
[TRÂNSITO]
entrevistas
155
estratégias expansivas

Artista plástica e pesquisadora. Seu trabalho se articula


156 com contextos urbanos e expositivos, desenvolvendo peças
gráficas, objetos, fotografia, vídeo, instalacões, ações urbanas
e publicações. Doutora em Artes pela Universidade de Paris
I Panthéon - Sorbonne. Professora no Departamento de Artes
Visuais e no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do
Instituto de Artes da UFRGS. Coordena o Grupo Veiculos da
Arte, juntamente com Hélio Fervenza. Desenvolve a pesquisa As
Extensões da Memória: a experiência artística e outros espaços
e coordena o Programa de Extensão Formas de pensar a
Escultura – FPES / Perdidos no espaço – DAV-IA/UFRGS.
Mantém o site www.ufrgs.br/artes/escultura. Organizou em
2004, juntamente com Alexandre Santos, o livro A Fotografia
nos processos Artísticos Contemporâneos, editado pela SMC
de Porto Alegre e a Editora da UFRGS. Organizou em 2009,
juntamente com Joerg Bader (Centro de fotografia de Genebra/
HEART de Perpignan, França), as Jornadas Preparatórias do
Seminário Internacional Ponto de Vista: Lugares, Práticas e
políticas das publicações em Arte. Ensaios críticos e Publicações
de artistas, no Museu da UFRGS em Porto Alegre.
Michel

Olá Ivone
Gostaria de estabelecer uma interlocução contigo, a partir de
alguns questionamentos... Atento para o que segue, ressalto
que as questões são amplas. E desta forma, podem ser refi-
nadas pelas direções que tu escolher. Nosso assunto é sobre
publicação e sobre o que está além dele - reflexões, ações,
posições e pesquisa em arte.

entrevistas
Isto não é uma pergunta.
Vejo uma estreita relação entre os grupos Perdidos no Espaço e
Veículos da Arte - a caminhada, a circulação, o trajeto que uma 157
proposição artística desenha ao ser lançada em circunstâncias
de espaços [públicos e privados]. Enquanto que o Perdidos
[projeto originário do Grupo de Extensão - Formas de Pensar a
Escultura da UFRGS] acolhe participantes eventuais e público
externo à Universidade, o Veículos é um Grupo de Pesquisa
formado por professores e pesquisadores, todos vinculados, de
alguma forma à instituição.
Poderia falar um pouco sobre estas duas experiências coletivas?

Maria Ivone
Posso falar dos Perdidos no Espaço que define a condição na
qual nos encontrávamos em Porto Alegre em meados de 2002.
Este nome surgiu como um apelido carinhoso ao Programa de
Extensão denominado Formas de Pensar a Escultura - FPES,
coordenado por mim no Departamento de Artes Visuais da
UFRGS. Desde o inicio nosso objetivo foi criar um ambiente
para praticar e discutir as expansões da arte, partindo de es-
paços pré-definidos no âmbito de cada ação e da articulação
estratégias expansivas

de diversas posições e pontos de vista dos participantes. Em


2002-2 inscrevemos uma ação de extensão visando explorar
o Campus central da Universidade. A partir de uma primeira
incursão iniciamos um laboratório para pensar e produzir inter-
venções, ações para aquele local. O objetivo inicial era propor
algumas ideias na forma de projetos, exercitando um pouco
158 este formato para as ideias e as argumentações.
De natureza efêmera, muitas dessas práticas implicaram a
necessidade de observar, mapear, registrar o processo de algum
modo, o que gerou uma infinidade de documentos e uma ação
reflexiva potente, decorrentes de caminhadas, propostas, imagens
e das aproximações sensíveis com aquele local tão estranho.
No campus as diferentes unidades e seus prédios, e os equi-
pamentos urbanos foram sendo construídos paulatinamente,
acolhendo o processo de expansão da própria universidade,
sem um real planejamento. Usamos inicialmente a web para
guardar o material que vínhamos produzindo. No site começamos
a publicar os processos e os resultados destas ações. Em
2002, Andrei Thomaz, à época nosso aluno na escultura, criou
e programou o site que segue sendo muito ativo, tornado-se
desde então um lugar de compartilhamento e de trânsito das
questões levantadas pelas práticas e ações que propomos. [...]
O programa FPES - Perdidos no Espaço agregou pessoas de
horizontes diferentes, alunos de graduação das artes, alunos do
mestrado, artistas e comunidade externa. Esta mistura foi se
mostrando profícua, elevando o nível das propostas e também

entrevistas
das reflexões delas decorrentes. Com a realização do III Fórum
Social Mundial para Porto Alegre em janeiro de 2003, decidimos
propor a realização de um projeto dentro do módulo temático
Mídia, Cultura e Contra-Hegemonia, apoiados financeiramente com 159
uma pequena verba destinada pela ADUFRGS e contando com
a parceria da PROREXT e do Museu da UFRGS. Realizamos
as intervenções no campus e publicamos 1000 exemplares
do primeiro jornal dos Perdidos, o número zero. O jornal teve
ampla distribuição durante o Fórum e também depois. Ali já
havia um trabalho de teorização que se iniciava visto que
recebemos diversas contribuições. Nós mesmos havíamos nos
encarregado de gerar um canal de difusão para nossas propostas
e inquietações, criando nosso próprio jornal. [...] Propusemos
também no Museu da UFRGS um seminário inscrito como
atividade do PPGAV, no qual participaram Geraldo Orthof da
UnB - Brasília, Julio Castro do projeto Prêmio Interferências
Urbanas / Santa Teresa – Rio de Janeiro, o professor José
Dallo Frota da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, entre
outros. Nossa ideia foi olhar para as experiências da arte na
sua relação com os lugares e contextos e as experiências
coletivas que surgiam. Isto possibilitou uma conexão importante
entre aspectos da arte e os temas sociais do Fórum, e
estratégias expansivas

surpreendentemente atraiu um público muito significativo, que


veio ao Fórum inicialmente mais por seu enfoque social. A sala
esteve lotada. O programa deste seminário evidencia nosso
interesse por pensar dinâmicas coletivas.
Uma intensa agenda de trabalho animou as atividades do FPES
160 em 2003 e 2004, tais como encontros, o projeto Espaço de
Montagem, os cursos de extensão que resultaram no desenho
de outras ações. Os Perdidos não pararam de pensar e de
produzir o que tornou possível encaminhar outra proposta para
o Fórum de 2005 (e desta vez bem mais organizados), que
intitulamos Efeitos de Borda: Subjetividade e Espaço Público.
A proposta envolveu um processo de discussão coletivo am-
pliado, oportunizando que os integrantes se colocassem de
uma forma mais propositiva e menos dependente de nossa
coordenação. Claudia Zanatta e Andrei Thomaz organizaram a
Mostra de vídeos. Luciana Mannoli trabalhou de forma muito
competente no site, criando interfaces visuais que permitiram a
maior internacionalização dos conteúdos e de nossa agenda. A
programação e as sinopses dos vídeos, workshops e debates
que propusemos aparecem no site em três línguas, português,
inglês e francês. Silvia Livi traduziu grande parte dos conteúdos
do site para o inglês. No Jornal eletrônico reunimos contribuições
excelentes e geramos um fórum de discussão muito profícua,
sendo o site uma publicação, entendida no seu enfoque amplo.
Em maio de 2005, reunimos os participantes das diversas
propostas criando a plataforma Perdidos no espaço, na qual
trazíamos para consulta pública uma vasta documentação bem

entrevistas
como tínhamos uma mesa com um representativo acervo de
publicações que havíamos reunido ao longo do tempo. [...]

É importante salientar que o programa de extensão Formas de 161


Pensar a Escultura nasceu também com a vocação de dialogar
com outras disciplinas, visto que, como artistas, nos interes-
sava compreender, por exemplo, os enfoques do urbanismo, da
arquitetura, da geografia e da psicologia social contemporânea,
mas também, de qualquer outro saber que pudesse trazer
alguma contribuição às situações e questões confrontadas.
Roçávamos questões comuns e produzíamos desdobramentos
diferenciados. Segue sendo prioritário para os FPES atuar no
campo da arte e entender como agimos e que contribuições,
por sua vez, nosso modo de inserção poderia trazer para as
questões da cidade. Através da arte passamos a produzir um
conhecimento pela vivência e prática de um determinado lugar.
Penso que a dimensão complexa que o programa foi tomando
nunca reduziu sua potência criativa. As ações artísticas que
foram propostas tiveram como consequência uma crescente
problematização das práticas do campo da arte. A atividade
crítica é de fato muito mais trabalhosa e segue nos exigindo
até hoje um esforço suplementar.
estratégias expansivas

O programa se nutre de uma metodologia recorrente, reunir


pessoas em torno de um contexto dado, estabelecer um pólo de
discussão que permita as expressões individuais e as coletivas
se manifestar e produzirem um pensamento, ação, etc. Sempre
houve um espaço privilegiado para a leitura e para discussões
162 de questões da arte. Tivemos que estudar muito, indo atrás de
referenciais teóricos para circunstanciar a complexidade do que
fazíamos. Desde 2002 observamos detidamente os enfoques
referenciais na história da arte, revisitando desde as caminhadas
surrealistas até as teorias Situacionistas, os projetos contem-
porâneos envolvendo arte e espaço político. Estudamos o que
vinha ocorrendo ao longo do século XX, no plano internacional
e na realidade brasileira e latino-americana (Oiticica, Barrio, o
espaço NO) para citar apenas alguns exemplos. Observamos
de que forma os artistas vinham se relacionando com os con-
textos urbanos, explorando certa forma de agir e inventando
uma política que investia em sistemas da circulação, nos fluxos
da cidade e na comunicação (Paulo Bruscky, Cildo Meireles,
Muntadas, Hans Haacke, Barbara Kruger, Jenny Holzer). Desta
forma passamos a definir na universidade um campo disciplinar
que atentava as questões advindas da experiência cotidiana e
da subjetividade, explorando formas de ocupação do espaço.
Passamos a observar mais atentamente as práticas do espaço
urbano como conteúdo curricular da escultura, tanto na gradu-
ação em Artes Visuais (Disciplina de Laboratório da Linguagem
tridimensional) quanto no PPGAV-UFRGS, com a criação da
disciplina Ações públicas: arte e contexto, ambas por mim

entrevistas
ministradas. Passamos a escrever e a publicar mais, sempre
atentos a fragilidade de nosso assunto e vendo de que forma
a arte se relaciona com os eventos efêmeros, com os lugares
e contextos nos quais se insere. Isto tudo tem agregado uma 163
dimensão política às nossas reflexões. […]

Podemos hoje ter uma distância crítica e ver que rumos tomaram
as coisas e como tudo isto foi crescendo. Para mim, a questão
da autonomia e da heterogeneidade de pontos de vista segue
sendo crucial. Eu vejo esta questão como projeto de arte,
pois sabemos que os processos de normalização social e de
apaziguamento, alguns produzidos pela indústria cultural ou
por políticas públicas, por vezes neutralizam iniciativas em sua
potência transformadora. Os pontos de vista hegemônicos (e não
me cabe julgar) têm vindo na esteira das grandes produções
artísticas que aterrisam e se formam em Porto Alegre: abertura
de centros culturais, criação do museu Iberê e consolidação
do projeto político da Bienal do MERCOSUL. Um sistema com
um formato mais vertical difere do processo de investigação
ao qual nos propomos que é de fato mais horizontal e aberto.
Acredito que a arte é um processo de pensamento original,
estratégias expansivas

uma localização do discurso que traz consigo uma posição do


sujeito artista. Pois o nosso projeto guarda esta preocupação
investigativa e formativa, visto que aposta no afloramento de
processos singulares. Produziu-se de fato, ao longo destes anos,
uma intensa circulação de ideias. Sonhamos e trabalhamos
muito, protagonizando situações importantes para a cidade.
164 Trabalhamos o compartilhamento de energias, com altos e
baixos, num formato um pouco distinto do viés produtivista da
indústria cultural. Passamos a agir de forma mais organizada
para criar num ambiente cultural que vem se tornando mais
complexo. Soubemos nos beneficiar dos ares transformadores
do Fórum Social Mundial de 2003 e de 2005. Os jornais, e
como veremos, nosso site surgem como um lugar de acesso
público para estes gestos e ideias tão esparsas. A difusão, e
isto é muito importante frisar, abriu um caminho para ações
mais consequentes que foram sendo praticadas no ensino da
arte. Houve uma escuta e uma abertura para problematizações
teóricas mais consequentes. Basta ver a produção do grupo de
Pesquisa para constatar o quanto tem sido feito e os esforços
individuais e coletivos. Fazemos muito em meio as demandas
do ensino na graduação e na pós-graduação na UFRGS, o que
por si só denota nosso ritmo e nosso fôlego. Esbarramos em
questões logísticas, na lentidão da própria universidade, mas
temos dedicado muito tempo para melhorar nossa estrutura
de trabalho, para que o que fazemos não seja uma questão
individual, mas sim uma construção institucional de melhores
condições para os projetos editorias e outros que queremos
empreender. Recentemente apoiei iniciativas editorias de nos-

entrevistas
sos ex-alunos. Vi nascer e crescer a Revista Panorama Crítico
(2009), a Investigação 11 (2010) e tornar-se livro o que começou
como um zine, o Meio (2010) organizado por Sari e Daniele
Marx, entre outros tantos projetos. Isto tudo se encontra num 165
mesmo movimento que busca potencializar iniciativas de artistas
valorizando a arte como um saber.
O Grupo de pesquisa Veículos da arte nasceu pela reunião de
um grupo de mestrandos e doutorandos (Hélio, Paulo, Paula,
Solana, Mariana e eu) em 2006. O Hélio me convidou para
partilhar a coordenação do grupo com ele em 2007. O Paulo
Silveira, doutorando orientado pelo Hélio, organizou o Ciranda,
uma publicação que reunia artistas convidados a produzirem um
capítulo visual. Destaco que o livro foi um projeto pioneiro visto
que aliava a prática da publicação no interior de um projeto de
tese em HTC, produzindo uma experiência curiosa, visto que o
Paulo de certa forma testava seu assunto, as narrativas visuais,
propondo aos artistas pensar os encadeamentos de imagens
formando um capítulo. Ao lado de análises de narrativas visuais
canônicas (O livro de Ruscha, por exemplo), havia este projeto
que propunha observar distintos processos narrativos, como
laboratório. Foi à primeira publicação aprovada pelo conselho
estratégias expansivas

editorial da UFRGS que privilegiou um livro exclusivamente


feito de conteúdos visuais, tendo sido impresso pela editora da
UFRGS, na coleção Visualidade do PPGAV.
O grupo se dispõe a por em prática modos de compartilhamento
da arte pensando nos processos criativos, mas também na
166 mobilidade e no trânsito destes veículos (livro, jornal, cartaz,
DVD ou outro meio de difusão). O trânsito tem sido nosso
ponto nevrálgico. Há um movimento que os veículos, como
experiência artística, trouxeram para a pesquisa em arte que
passa a pensar estas iniciativas geradas por práticas nômades,
portáteis, transportáveis. Os Veículos enquanto grupo se estrutura
a partir do processo do livro Ciranda. Um seminário da pesquisa
do PPGAV reuniu todos os participantes. Na sequência houve
outras iniciativas dos seus membros. Solana Guangiroli propôs à
Pinacoteca, por mim coordenada em 2006-2007, uma mostra de
livros de artista. A proposta trazida reunia parte da importante
coleção de livros de Carlos Romero e de livros da editora
Instantes gráficos de Buenos Aires. Estes eventos foram
sucedidos pela viagem que o Hélio fez a Mar del Plata em
2007, levando na maleta toda uma exposição (intitulada Vehículos
del Arte: conexiones al Sur) que ocupou a Villa Victória, antiga
casa da Victoria Ocampo, numa ação igualmente agenciada por
Solana Guangiroli. Desta exposição participaram os membros
do Grupo até então (Hélio, Paula, Mariana, Solana, Mario e
Carlos Romero). A Exposição da Villa Victoria apresentava
propostas envolvendo diversas linguagens. Eu fui a Mar del
Plata em novembro daquele ano para ministrar um workshop

entrevistas
na Universidade e discutir a prática da caminhada. Reunimos
naquela ocasião um grupo de 12 arquitetos artistas. Este foi um
bom laboratório, que infelizmente não resultou em publicações
por motivos econômicos e burocráticos, mas do qual guardo 167
agradáveis lembranças.

O Grupo de pesquisa foi se alterando pela saída de alguns


membros e entrada de outros. Para mim algumas questões
foram se precisando quando comecei a chamar convidados para
os Seminários da pesquisa do PPGAV, Mabe Bethônico que
publicou os jornais no projeto museumuseu, Joerg Bader que se
dedica a organização de publicações de artistas que trabalham
com a fotografia. Convidamos também a Leila Danziger para
falar sobre suas intervenções em jornais e mais recentemente
mostramos a LOJA que reuniu Regina Melim e seus bolsistas
em Porto Alegre (2009). Alguns destes contatos frutificaram
em interlocuções muito ricas, que prosseguem hoje em outras
frentes. Nos Veículos optamos por um modo de agir autônomo,
centrado nos modos de circulação da prática artística, dando
especial ênfase às publicações e ações.
Em 2009 eu propus as jornadas Pontos de vista, junto com Joerg
estratégias expansivas

Bader (Perpignan). Algumas questões gerais se apresentaram


então. Que formas e que lugares surgem hoje para a prática
artística contemporânea e para a crítica na França e no Brasil?
Uma publicação de artista pode encontrar seu lugar político?
Como formatar os modos de relação com seu público e com
os sistemas artísticos, tendo como ideia original, a circulação
168 da obra? Que bases são necessárias a fim de constituir um
exercício crítico, tomando em conta a aproximação de duas
culturas e a exploração recíproca de meios de comunicação
que dizem respeito às ideias da prática e da crítica em arte?
Outras questões foram sendo trazidas à medida que íamos
observando o que ocorria quando o artista passava a ser o
editor de conteúdos que ele dispunha e agenciava, sem aspirar
à aura da “obra de arte”. O objetivo das Jornadas preparatórias
foi de trabalhar no levantamento de um elenco de temas e de
agentes, artistas e pesquisadores teóricos que vem buscando
criar condições de constituir visibilidade e problematização a
proposições da arte que dão especial atenção a exploração
de outras iniciativas e da difusão. Com a publicação a arte se
abre a outros sistemas. Que olhar crítico se produz com este
tipo de prática e como se discutem e se agenciam as questões
implícitas ao sistema de artes no Brasil, ao sistema de arte
vigente? Como a prática crítica discute, expõe, amplia, enfim,
faz existir de fato ações da arte? Deixo claro que compartilho
esta dúvida enquanto leitora e público, inquieta em ver como se
indexam estas iniciativas na história da arte. Depois dos anos
60, mais especialmente nos 70 já vemos emergir um olhar mais
consequente sobre o leque amplo de ações não inicialmente

entrevistas
reconhecidas como arte. No plano teórico o livro de Osborne,
Conceptual Art, reposiciona estas ações e dá uma amostragem
de experiências conceituais mostrando que este movimento abriu
um leque novo de ações para a arte que passa a se inserir em 169
outros sistemas, no político, nos temas sociais e nos sistemas
da comunicação. Lippard havia aberto o caminho para pensar
na desmaterialização da obra de arte. Nos anos 70 proliferam
os escritos de artista o que evidencia uma tomada de posição
do artista que tem por impacto tencionar a função crítica e os
lugares da crítica. (Oiticica entre outros tantos artistas elencados
na publicação organizada pela Glória Ferreira e Cecília Cotrin
e em revistas de arte americanas e européias).

As publicações, e especialmente as experiências ligadas


às primeiras redes, a arte postal e as publicações, zines,
livros, edições de quintal abriram possibilidades de difusão do
pensamento anti-hegemônico, sendo aquele período no Brasil,
lembremos, marcado pelo controle da ditadura política. Cristina
Freire pontua estas questões com pertinência, no seu livro
Poéticas do Processo - arte conceitual no museu, e continua o
trabalho nos textos e curadorias que vem realizando (Bruscky,
Padín) e no livro Conceitualismo do Sul-Sur. As publicações de
estratégias expansivas

artistas funcionam como uma rede que permite o intercâmbio


de ideias. De Bruscky no Brasil a Ditborn no Chile. De Ana
Bella a Ferrari, um intenso intercâmbio de ideias permitiu a
arte de transitar por continentes e trafegar emprestando tanto
imagens das mídias quanto do mundo. Para Ditborn, por
exemplo, agenciar suas “pinturas aeropostales” era a forma
170 encontrada de burlar com a censura imposta pela ditadura no
Chile. Ao emprestar as vias de transporte dos correios ele
utilizava um modo de circulação fora da arte. Hoje, em tempos
de naturalização de todos os gestos, os fatos vistos pela lógica
do evento, haveria que reposicionar estes gestos num contexto
histórico visto que contribuíram para expandir os lugares da arte.
E também penso que os processos midiáticos que vemos no
formato evento contribuem para uma política de indistinção, (por
não dedicar o tempo a estas reflexões) mastigando o trabalho
do público e o anestesiando de alguma forma.
As publicações históricas as quais me referi acima parecem estar
longe, mas ao abrir um computador nos deparamos novamente
com sua lógica, visto que está circulando nas redes, está fora
do trânsito hegemônico da informação. Explico esta expressão
emprestada dos temas do III Fórum Social Mundial para dizer
que as regras do circuito de validação de uma obra, suas
qualidades e sobrevivência passa pela natureza do gesto que
visa à exaltação do autor, mas tem por consequência produzir
invisibilidades (por ofuscamento) sobre outras manifestações.
Como é possível ocupar um lugar diante do processo de
indistinção ao qual é submetida à prática da arte? O que

entrevistas
produz o artista?
Assim, pensando, percebi que por mais que as publicações e
suas redes venham sendo assumidas por um mercado editorial 171
ou por sistemas indexadores, há no ato de difusão uma potência
subversiva intrínseca e incontrolável dada pela transitorialidade
do veículo, pela capacidade de chegar a distintos pontos, e
que pela leitura e interpretação que prescinde a um leitor, outro
sujeito que cria lugar para o objeto pela leitura. Assim, quando
o artista se investe em editor de um mundo que ele deseja dar
a ler, ele pode selecionar o mundo em filtro vermelho (Rennó),
extrair o texto de um jornal (Danziger) deixando as imagens
soltas pela folha, ou apor outros escritos a esse suporte. Ele
pode alterar a percepção aplicando filtros sobre as imagens
(Waltercio), ou se ocupar de ver o mundo sob uma ótica outra,
como nos documentos e devaneios de Bernardes no livro Vaga
em Campo de rejeito, ou nas ruminações de escritos volumosos,
visíveis blocos duros a digerir de Severo, ou na criação de
dicionários para as sensações de Coutinho. Basbaum produz
relatos performáticos de seus sistemas relacionais, quando faz
transitar seu NBP. Hélio faz uma dupla tomada de posição no
seu livro O + é Deserto, onde relata e retoma numa prosa rara
estratégias expansivas

e necessária, este olhar lúcido do artista. Eu citei apenas um


grupo de experiências que me ocorrem dentre inúmeras outras
que estão atuando pela difusão.
Quais diálogos estabelecidos entre estes grupos? Quanto às
questões relacionadas à ideia de coletivo penso ser muito
172 importante enfatizar que nos Perdidos os processos individuais
são estimulados da mesma forma que os coletivos. Nos Veículos
a questão passa por um viés problemático, de afinidades intelec-
tuais. Em ambos os casos unimo-nos para agregar forças e
dialogar, criando um ambiente, acreditando na potência das
iniciativas que cada qual vai empreender como agente de uma
transformação, como artista-pesquisador, questão que deveremos
avaliar caso a caso.

Michel
Muitas vezes, espaços de ações e reflexões se ampliam, na
medida em que escapam dos domínios do restrito, daquilo
que não é público. Assim, como uma publicação pode ser
considerada uma forma política de intervenção no mundo?

Maria Ivone
Michel, eu teria vontade de esmiuçar tua dúvida. Tua questão
me coloca diante de duas frentes amplas. O político e o comum.
Do que pode ser visto para além da política entendida como
consenso, mas como exercício do espaço público e democrático.
Cabe a arte revelar a singularidade da posição de quem fala?
Vermeer era político assim como Hans Haacke? Cada qual

entrevistas
enunciava seus conteúdos sob certas formas. Considero que
as publicações são de fato práticas políticas assim como outras
formas. Para os artistas contemporâneos a difusão representa
a possibilidade de exercer autonomia conquistada à duras 173
penas. Publicar é uma forma de ser e de estar no mundo que
se endereça diretamente a um leitor. Isto não é pouca coisa
desde Gutenberg.

Hoje vejo outras questões surgindo numa paisagem marcada


pelas infindáveis possibilidades geradas pela técnica de edição.
Qualquer um pode ser um editor, inclusive o artista? O que
define a potência política de uma publicação? Como medir
a potência política de uma publicação? De forma geral toda
publicação contribui para a difusão, mas um artista como Oiticica,
por exemplo, nos dá um sentido do exercício de autonomia e
conhecimento que se pode ter. O artista exerce sua posição
de fato e temos que sempre levar em conta os contextos de
inserção destes gestos. Percebo então uma ligação direta entre
a prática enunciativa, teórica ou performativa, e seu veículo,
como uma alternativa concreta para o artista ou grupo, de
criação de um espaço político, que encontra um veículo de
difusão democrático. Olhar portativo, o texto do artista pode
estratégias expansivas

produzir ressonâncias na medida em que contagia outros agentes


enunciativos a ocuparem suas posições no espaço público. [...]

174 [Esta entrevista encontra-se disponível na íntegra no site: www.ufrgs.br/artes/escultura]


Jornal Perdidos no Espaço no III Fórum Social Mundial - 2003
[Número 0, janeiro, Porto Alegre, Brasil, 2003]
Equipe editorial: Maria Ivone dos Santos, Fernando Falcão, Hélio Fervenza,
Glaucis de Morais e Mariana Silva da Silva e Fabiana Wielewicki. Colaboraram:
Departamento de difusão Cultural da UFRGS, Elida Tessler, Muriel Caron,
Julio Castro, Cristina Ribas, Paulo Reis, Monica Hoff, Andrea da Costa Braga,
Stéphane Huchet, Maria Helena Bernades, Fernando Lindote, Cláudia Zanatta,
Alexandre Moreira, Raquel Stolf.
Jornal Perdidos no Espaço no V Fórum Social Mundial
[Número 1, janeiro, Porto Alegre, Brasil, 2005]
Equipe editorial: Maria Ivone dos Santos, Hélio Fervenza, Gláucis de Morais e
Mariana Silva da Silva. Colaboraram: Maria Helena Bernardes, Daniele Marx,

entrevistas
Monica Narula, Cláudia Zanatta, PORO, GIA, Stéphane Huchet, Cristina Ribas,
Daniela Cidade, Gláucis de Morais, Grupo URBOMAQUIA, Muriel Caron, Mari
Linnman, Fabiúla Tasca, Hélio Fervenza, POIS, Mabe Bethônico, Raquel Stolf,
Elaine Tedesco.
Jornal Perdidos no Espaço no Centro de Porto Alegre 175
[Número 2, maio / junho, Porto Alegre, Brasil, 2006]
Equipe editorial: Maria Ivone dos Santos, Hélio Fervenza, Glaucis de Morais e
Mariana Silva da Silva. Colaboraram: Melissa Flores, Sandro Bustamante, Larissa
Madsen, André Venzon, Rosana Bones, Katlin Jeske, Cecília Fonseca Dutra,
Márcia Sousa da Rosa, Lilian Minsky, Ana Becher, Janaina Czolpinski, Marcio
Lima, Bitta Marin, Fabrizio Rodrigues, Jaqueline Peixoto, Eduarda Gonçalves,
Fernanda Gassen, Michel Zózimo, Pablo Paniagua.
Nota: Todos os textos publicados nos jornais impressos encontram-se também nos
jornais eletrônicos do site: www.ufrgs.br/artes/escultura/. Nos jornais eletrônicos
se agregam outros colaboradores: (2003) Orlando da Rosa Farya, Mariana Silva
da Silva, Patrícia Franca, Arteconnexion (FR), Geraldo Ortoff, Arte Construtora.
(2005): Pablo Paniagua, Lilian Minsky, Georg Schöllhammer (Áustria), Janaina
Bechler, Maria Ivone dos Santos. (2006) Alfonso Santos.
estratégias expansivas

176
AGRADECIMENTOS

A contemplação deste projeto no edital Bolsa de Estímulo à Produção

agradecimentos
Crítica em Artes Visuais, pela Fundação Nacional de Artes, em 2010,
possibilitou seu pleno desenvolvimento. A contribuição de todos
os envolvidos, durante os curtos seis meses de realização desta
pesquisa, foi fundamental para torná-la possível. Não posso deixar de
mencionar os nomes de todos aqueles que, de alguma forma, estão 177
presentes neste livro: Amir Brito, Cristiano Lenhardt, Cristina Freire,
Denise Helfenstein, Fabio Morais, Fernanda Gassen, Juliano Lopes,
Maria Ivone dos Santos, Maria Lucia Cattani, Marina Polidoro, Pablo
Paniagua, Paulo Silveira, Regina Melim e Valserina Bulegon Gassen.
[Kartika].[Papel Pólen Bold 90g/m²].[Offset].[2.000 exemplares]
Para Circe, Nãna e Fernanda.

Michel Zózimo da Rocha


ideiasquenaoderamcerto@gmail.com
É artista e pesquisador, integrante do Grupo de
Pesquisa Veículos da Arte UFRGS/CNPq.
Doutorando em Artes Visuais - PPGAV/UFRGS.
Mestre em Artes Visuais - PPGAV/UFRGS.
Especialista em Arte e Visualidade - UFSM.

Você também pode gostar