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O “bandeirante destemido”

Durval Marcondes,
a psicanálise e a modernização
conservadora no Brasil

N
Belinda Mandelbaum
Stephen Frosh

uma sala de aula da Sociedade Brasileira


de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), um
pequeno retrato em branco e preto na parede
de resto vazia mostra Durval Marcondes, o
fundador da instituição, posando de frente,
montado num cavalo. Nascido em 1899, na
cidade de São Paulo, Durval viveu na ju-

Os autores agradecem a colaboração de Renata Conde


nas etapas iniciais desta pesquisa.

BELINDA MANDELBAUM é professora


associada do Departamento de Psicologia
Social do Instituto de Psicologia da USP.

STEPHEN FROSH é professor titular do


Departamento de Estudos Psicossociais do
Birkbeck College, da Universidade de Londres.

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ventude as transformações de uma sociedade paulistas e, de outro, seu conservadorismo


tradicional patriarcal, baseada na economia no plano cultural, social e político – mar-
cafeeira, com suas elites de proprietários de cou a origem da instituição psicanalítica em
terras, recém-abolida a escravidão, para uma São Paulo, com profundas reverberações no
sociedade em processo de industrialização, funcionamento institucional e em suas práti-
urbanização e modernização, nas primeiras cas clínicas, até hoje. É importante lembrar
décadas do século XX. A trajetória de Durval que essas marcas conservadoras de origem
Marcondes no campo psicanalítico em São – ou mesmo reacionárias, coniventes com
Paulo é expressão desses processos moder- períodos de ruptura do Estado democrático
nizadores, que em seu caso se fizeram na de direito –, como diversos pesquisadores já
forma da luta pela introdução da psicanálise, mostraram (Besserman Vianna, 1994; Frosh
nas primeiras décadas do século XX, como & Mandelbaum, 2017; Russo, 2012), são parte
método psicoterapêutico alternativo às práti- da história dos modos de funcionamento de
cas psiquiátricas hegemônicas no período. No grande parte das sociedades psicanalíticas
entanto, ainda que reconhecendo seu pionei- no Brasil. E que, de forma mais ampla, es-
rismo na luta pelo estabelecimento da nova tudiosos da vida social brasileira nas pri-
ciência em território paulista, procuraremos meiras décadas do século XX (Fernandes,
mostrar como isso se deu no interior de um 1975; Werneck Vianna, 1996) detectaram,
enquadre social e culturalmente conservador, no próprio interior dos movimentos de mo-
ao qual a psicanálise aqui aportada pôde se dernização, de adoção de ideias e práticas
adaptar e servir. Esperamos mostrar também novas, a preservação de estruturas sociais e
como foi no interior desse enquadre conser- culturais tradicionais. Daí tais movimentos
vador que Durval Marcondes realizou toda a terem sido englobados sob o termo de mo-
sua trajetória clínica e acadêmica, inclusive dernização conservadora, para nomear um
como professor da Universidade de São Paulo arranjo entre proprietários de terra e a bur-
durante os anos 60, na vigência do governo guesia emergente que permitiu a integração,
ditatorial civil-militar. no plano social e cultural, de novas ideias
Em artigo anterior, que tratou do viés con- e práticas oriundas dos países do Primeiro
servador presente na psicanálise brasileira ao Mundo – particularmente Europa e Esta-
longo de sua história (Frosh & Mandelbaum, dos Unidos da América –, sem que estas
2017), apresentamos evidências de como es- se fizessem acompanhar de transformações
sa ciência, tantas vezes caracterizada por sociais estruturais. Isso quer dizer que per-
sua potência transformadora e libertária, foi maneceram, convivendo com os processos de
absorvida no Brasil, desde os seus primór- modernização industrial e urbano, as velhas
dios, em práticas clínicas e institucionais que formas da produção e distribuição de rique-
operaram a serviço da manutenção do status zas, as formas tradicionais de exploração
quo, numa sociedade elitista e profundamente nas relações entre capital e trabalho, e a
desigual. No caso de Durval Marcondes, a moralidade hegemônica de uma sociedade
convivência desses aspectos aparentemente patriarcal marcada por desigualdades de clas-
contraditórios – de um lado, seu pioneirismo se, raça, sexo e gênero. E ideias e práticas
na implantação da nova ciência em terras novas, como a psicanálise, muitas vezes ser-

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viram para dar roupas e justificativas novas estudos de Freud sobre as histéricas para
para velhas formas de viver (Russo, 2012), tratar da origem psicogênica do sintoma
conservando-as intocadas. físico, bem como de Franz Alexander (1943,
A trajetória de Durval Marcondes, tal apud Marcondes, 1952), sobre a psicogênese
como a de outros, em sua maioria médicos, e a conversão como conceitos fundamen-
que introduziram a psicanálise em diversas tais da pesquisa psicossomática. Munido
capitais brasileiras na primeira metade do dessas leituras e de sua experiência clíni-
século XX, é expressiva desse padrão para- ca como psicanalista, Durval confronta a
doxal, modernizador e conservador, seja na medicina paulista de sua época, que, como
forma como buscaram reproduzir em solo ele discute em seu livro, privilegiava uma
brasileiro uma instituição psicanalítica que perspectiva organicista, negando assim os
seguisse de forma integral e inquestiona- fatores psicológicos na produção da doença.
da os ditames da Associação Psicanalítica Durval confronta também, como se pode
Internacional1, como em práticas clínicas depreender na mesma obra, a psiquiatria
privadas voltadas para as elites rurais e bur- hegemônica em São Paulo, que buscava na
guesas das principais cidades brasileiras, ou fisiologia dos organismos, segundo ele, as
mesmo em sua inserção no campo da saúde causas dos distúrbios mentais. Durval reivin-
pública, em que a psicanálise foi proposta dicou a entrada da psicologia na formação
como ferramenta a favor do ajustamento médica, sempre operando no interior das
social da infância pobre (Lima, 2012). É teorias e práticas psicanalíticas consagradas
nesse sentido que Durval Marcondes pode internacionalmente pela psicanálise de seu
servir como analisador – o termo é inspi- tempo, a que ele adere incondicionalmen-
rado no trabalho de Cecília Coimbra, Os te. E também em seu trabalho dirigido à
guardiães da ordem: uma viagem pelas infância, que estava no centro do projeto
práticas psi no Brasil do milagre (1995) – desenvolvimentista brasileiro durante o perí-
dos modos pelos quais a psicanálise aportou odo ditatorial do Estado Novo – como foco
e se desenvolveu no Brasil, em suas rela- de um investimento civilizatório que visava
ções com a sociedade mais ampla. Seus a eliminar traços de nosso primitivismo
artigos e livros (ver, por exemplo, Medicina social –, a psicanálise freudiana, tal como
e psicologia, de 1952) deixam entrever a lida e aplicada por Durval Marcondes no
reprodução, em seu trabalho clínico, das Serviço de Higiene Mental Escolar, onde
concepções teóricas e técnicas freudianas, trabalhou desde os anos 20, mostrava-se
com especial ênfase no campo da medici- ferramenta teórica e prática eficaz para
na psicossomática, onde ele lança mão dos alcançar o ajustamento social.
Nossas inquietações com estas aparentes
contradições presentes na história do campo
1 O jornal A Gazeta, em 5/2/1935, publicou: “O que ne-
cessitamos – foi logo declarando o Dr. Durval – é de psicanalítico brasileiro – de um lado, a psi-
um instituto de psicanálise a exemplo dos que existem canálise em sua potência transformadora e,
no estrangeiro. Tenho aqui à mão alguns prospectos
por onde o senhor poderá ver o que são tais estabe- de outro, seu uso acrítico e adaptativo, tal
lecimentos. Berlim, Londres, Viena, Budapeste, Nova como se manifesta na trajetória clínica de
Iorque, Chicago e outras grandes cidades os possuem
em excelentes condições”. Durval Marcondes, tanto em seu trabalho

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em consultório particular quanto no campo que evidenciam as teses aqui sugeridas de


da saúde pública – ganham expressão nas uma contradição apenas aparente entre a
palavras de Elisabeth Roudinesco, em con- introdução da psicanálise em São Paulo e
ferência em São Paulo no ciclo Fronteiras sua conivência com políticas sociais con-
do pensamento, em 2017, quando afirma: servadoras – ou mesmo reacionárias –, tal
como expressas na trajetória do psiquiatra
“A Psicanálise nunca conseguiu se implantar e psicanalista Durval Marcondes.
em países em que não existem democracia
e Estado de direito. Em outras palavras, UM “BANDEIRANTE DESTEMIDO”
para ter acesso ao seu inconsciente, para
que alguém possa ter a liberdade de explo-
NA PSICANÁLISE
rar seu inconsciente, é preciso um Estado
de direito e a democracia. Mas o Estado Numa biografia de Durval Marcondes
de direito, ou seja, um Estado no qual a que faz parte da coleção Pioneiros da psi-
liberdade subjetiva esteja garantida. É ne- cologia brasileira, o autor (Sagawa, 2002,
cessário ter liberdade política para poder ter p. 13) diz que “a exploração pelos bandei-
acesso às determinações do inconsciente”2. rantes das terras inexploradas foi uma ins-
piração de sua infância”. E em seu discurso
Se isso é verdade, como foi possível à na SBPSP por ocasião da comemoração de
psicanálise aportar e desenvolver-se no Bra- seus 80 anos, Marcondes contou que a mãe,
sil ao longo do século XX, com marcas de professora de escola primária, lhe explica-
seu florescimento durante os dois períodos ra na primeira infância “que bandeirante
ditatoriais – a era Vargas, nos anos 30, e a era como se chamava uma gente destemi-
ditadura civil-militar dos anos 60 a 80 –, da, nossos patrícios de outrora que não se
marcados pelo cerceamento da liberdade de contentavam com o mundo existente a seu
expressão? Ou talvez, tornando mais precisa alcance próximo e se metiam mato adentro
a pergunta: qual psicanálise desenvolveu- para descobrir e conquistar espaços e rique-
-se por aqui, com quais características, de zas no recesso desconhecido” (Marcondes,
tal modo a acomodar-se e mesmo servir 1980, apud Sagawa, 2002).
como ferramenta para as políticas sociais A imagem do bandeirante inaugura a
em curso? Vamos aos fatos que nossa pes- sua biografia para servir de modelo, ou
quisa documental e bibliográfica 3 expôs, e de moldura, para as atividades que Durval
Marcondes desenvolveu ao longo de seis
décadas de vida acadêmica e profissional,
desde os tempos de estudante da Faculda-
2 Disponível em: https://www.fronteiras.com/videos/o-
-principal-fator-para-o-desenvolvimento-da-psicanali- de de Medicina de São Paulo. Nessa mes-
se. ma biografia, lemos que em 1919 o jovem
3 Os dados aqui expostos são resultado do projeto de Durval, cursando o primeiro ano de fa-
pesquisa “Psicanálise e contexto social no Brasil: fluxos
transnacionais, impacto cultural e regime autoritário”, culdade, entrou em contato com um artigo
coordenado por Belinda Mandelbaum e Stephen
do professor de psiquiatria dr. Franco da
Frosh, com o auxílio financeiro da Fapesp (Processo
2015/11244-3). Rocha, publicado no jornal O Estado de S.

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Paulo sob o título “Do delírio em geral”. ciais do século XX, o primeiro professor
Nesse artigo, extraído da aula inaugural catedrático em Psiquiatria na Faculdade de
de Franco da Rocha na Faculdade de Me- Medicina de São Paulo, fundador e diretor
dicina naquele mesmo ano, “os sintomas e do Hospital Psiquiátrico do Juquery, prin-
também os sonhos [eram abordados] como cipal instituição de acolhimento de doentes
fenômenos psicológicos” (Sagawa, 2002, p. mentais, naquele período.
15). Franco da Rocha nessa aula pronun- O apoio do dr. Franco da Rocha foi
ciara-se publicamente sobre as ideias da fundamental ao jovem psicanalista que, ao
psicanálise “como um avanço terapêutico longo das décadas seguintes, teve que se
e científico de sua época” (p. 15). A pu- confrontar incessantemente com atitudes de
blicação despertou a curiosidade de Dur- “agressiva repulsa” e “fria omissão” (Saga-
val Marcondes, ainda mais que o professor wa, 2002, p. 40) por parte de seus colegas
nela integrara conhecimentos advindos da psiquiatras. É ao seu envolvimento com a
psiquiatria, da psicanálise e da literatura psicanálise que Durval atribui ter perdi-
para mostrar o componente sexual presente do a cátedra de Psiquiatria, que até 1923
não apenas na patologia, mas também “nos pertenceu a Franco da Rocha, no concurso
demais homens” (p. 16). E parece que o em que, no ano de 1936, concorreu com
jovem aluno anteviu aí o caminho a seguir Antônio Carlos Pacheco e Silva, psiquiatra
logo após concluir o curso de Medicina, organicista e crítico ferrenho das ideias psi-
estimulado pelo próprio mestre Franco da canalíticas (Assumpção Jr., 2003; Tarelow
Rocha a desbravar essa nova terapêutica no & Mota, 2015) 4. Essa divisão entre o psi-
campo dos transtornos mentais. Abriu em canalista Durval Marcondes, de um lado,
1924 seu consultório particular no centro e o organicista Antônio Pacheco e Silva,
de São Paulo e estudava sozinho psicaná- de outro, marcaria a psiquiatria paulista
lise. Diz Sagawa (2002, p. 18) que, “exceto até meados dos anos 50 e 60, período de
evidência histórica contrária a essa cons- entusiasmo e florescimento da psicanálise
tatação, o consultório particular de Durval em diversos países do mundo ocidental –
Marcondes constituiu-se na primeira clí- e no Brasil, em particular5 – e de incre-
nica psicanalítica do Brasil e, quem sabe, mento do interesse de psiquiatras por essa
da América Latina”. Como prática clínica nova terapêutica, em especial no caso dos
nova oferecida à elite tradicional e à bur- distúrbios diagnosticados como neuróticos.
guesia em ascensão, esta seria parte de seu
traço “bandeirante”, desbravador de novas
terras no campo da terapêutica dos trans-
4 No ano seguinte (1937), teria início no Brasil o governo
tornos mentais, enquanto o próprio Freud ditatorial de Getúlio Vargas que ficou conhecido como
Estado Novo. Em consonâncias com as alianças que
desenvolvia e publicava suas ideias. “Eles este governo estabeleceu com os países do Eixo, em
contam sonhos para você?”, perguntou-lhe especial Alemanha e Itália, Antônio Pacheco e Silva
manifestou ostensivamente apoio ao regime nazista
na ocasião Franco da Rocha, que, apesar e suas práticas psiquiátricas. Sobre a influência da
de entusiasta curioso, sentia que era tarde psiquiatria nazista na psiquiatria brasileira dos anos
30, ver: Costa (1983).
demais para lançar-se nessa nova atividade
5 Para um exame dos determinantes do florescimento
profissional – ele que foi, nas décadas ini- da psicanálise no Brasil, ver: Russo (2012).

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A CRÍTICA LITERÁRIA PSICANALÍTICA 2002). Ou seja, inspirado em Freud e em


seu mestre Franco da Rocha, Durval expan-
E A POESIA MODERNISTA
de desde o início a aplicação da psicanáli-
DE DURVAL MARCONDES se para além do campo do tratamento dos
transtornos mentais, na direção do exame
Durval também se identificou com Franco de mitos e textos literários. Ele envia seu
da Rocha como leitor de clássicos da filoso- livro a Freud e recebe deste uma resposta
fia e da literatura – na aula inaugural acima em que reconhece o empenho de Durval em
citada, o professor se referira a Nietzsche, “despertar o interesse de seus compatriotas
Schiller e Goethe, além de outros autores para nossa jovem ciência” (Sagawa, 2002).
do campo psicanalítico como Stekel e Adler. Exemplo de seu interesse na análise psi-
Em 1926, o jovem psicanalista escreveu a canalítica de textos literários, com foco na
tese “O simbolismo estético na Literatura. literatura brasileira, é seu estudo sobre Casa
Ensaio de uma orientação para a crítica lite- de pensão, de Aluísio Azevedo, obra basea-
rária, baseada nos conhecimentos fornecidos da num fato real, um crime que sensibilizou
pela psicanálise”, publicada em livro com o Rio de Janeiro em 1876/77, envolvendo
Prefácio do próprio Franco da Rocha, que, dois estudantes. Durval enveredou também
referindo-se à “moral vigente, há séculos, pela poesia, tendo escrito poemas ao lon-
dominando no mundo civilizado”, disse que go de toda a vida. Mas não se notabilizou
“Freud saltou o Rubicon; penetrou desabu- pela obra poética. Cabe destaque para o
sadamente na região proibida” (Franco da poema “Symphonia em branco e preto”,
Rocha, 1926, apud Sagawa, 2002). Franco da que publicou em agosto de 1922 na revis-
Rocha utiliza também aqui a imagem meta- ta Klaxon, principal órgão de divulgação
fórica dos desbravadores de regiões novas, da produção dos modernistas paulistas, no
desconhecidas e proibidas6, Freud e o pró- mesmo ano da Semana de Arte Moderna.
prio Durval Marcondes, uma vez que, muito Vale a pena aqui o registro do poema para
provavelmente, este foi o primeiro trabalho que o leitor tenha algum contato com sua
de crítica literária no Brasil a fazer uso da produção poética, ainda que não seja nossa
psicanálise como instrumento de interpre- intenção comentá-lo:
tação. Nele, o símbolo é apresentado “como O que vale sim ressaltar é sua partici-
uma espécie de ‘disfarce’ oculto que faz pação, com este poema, na Semana de Ar-
comunicar conscientemente o que não seria te Moderna de 1922, um marco no debate
aceito de outra forma pela ‘resistência da sobre a incorporação de ideias estrangei-
censura’” (Marcondes, 1926, apud Sagawa, ras, em particular europeias, no desenho da
identidade cultural brasileira – desenho no
qual a psicanálise, em especial os textos de
6 É interessante notar como, nesse período de rápidas Freud de caráter social, como O mal-estar
transformações da sociedade brasileira que foram na civilização, Totem e tabu e O futuro de
as primeiras décadas do século XX, a nomeação de
movimentos pioneiros vai buscar suas referências no uma ilusão, têm um lugar central. Ainda que
período colonial, quando os bandeirantes, todos eles
colonizadores portugueses, partiram para a explora-
o Modernismo tenha sido um movimento
ção das novas terras. principalmente estético que não teve como

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Paulo, para onde levou os conhecimentos
teóricos e técnicos da psicanálise, em espe-
cial as ideias de Freud sobre desenvolvimen-
to psicossexual infantil e as contribuições
de Anna Freud no tocante à psicanálise de
crianças como processo necessariamente
pedagógico. Influenciado também pelo hi-
gienismo em voga no período no campo da
saúde pública, bem como pelo contexto de
forças desenvolvimentistas e modernizantes
no país, Durval centrou seus esforços nos
trabalhos que visavam ao desenvolvimento
infantil. As escolas públicas encaminhavam
à Inspetoria os alunos em que detectavam
Poema de Durval Marcondes transtornos de aprendizagem e personalida-
na revista modernista Klaxon de, para fins de diagnóstico e tratamento.
Baseado nas noções psicanalíticas e evo-
lucionistas do desenvolvimento psicológico,
objetivo central afrontar as desigualdades Durval vislumbrou desde cedo a importância
em nosso país, fica evidente em diversos de um trabalho preventivo com as famílias,
trabalhos literários e artísticos apresentados para que os impulsos infantis pudessem ser
na Semana de 22 – da literatura de Mário e direcionados à aprendizagem e ao desenvolvi-
Oswald de Andrade à pintura de Tarsila do mento apropriado, com vistas ao ajustamento
Amaral – a profunda penetração da psica- social, noção bastante em voga na psicologia
nálise como instrumento de questionamento brasileira das primeiras décadas do século
da moral patriarcal e sexual vigente e de XX (Portugal & Oliveira, 2011). Durval in-
resgate de uma identidade nativa para os centivava que a educação sexual das crianças
brasileiros. Não consta que Durval tenha fosse realizada por pais e professores, que
participado ativamente desse debate, sendo precisariam trabalhar com “uma soma de
sua presença circunscrita à publicação do informações e finura de tato [...] a começar
poema na Klaxon. do berço”, uma vez que a infância era per-
cebida como tão virulentamente patológica
UMA PSICANÁLISE A SERVIÇO que era preciso rapidamente ministrar-lhe as
influências corretas, para civilizá-la. Para as
DA NORMATIZAÇÃO DA INFÂNCIA crianças diagnosticadas como débeis mentais,
propôs a criação, nas escolas públicas, de
No mesmo ano de 1924 em que abriu classes especiais, prática que perdurou até
sua clínica particular, Durval Marcondes o fim do século XX, quando as políticas de
foi contratado como médico psiquiatra na inclusão no país foram críticas à separação
Inspetoria de Higiene Escolar e Educação das crianças com necessidades especiais do
Sanitária da Secretaria de Educação de São restante das turmas de alunos.

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Em seu trabalho com transtornos da in- val Marcondes, integrada à concepção de


fância no Serviço de Higiene Mental Escolar ajustamento social proposta no Brasil por
temos, de acordo com Lima (2012, pp. 89-90): Arthur Ramos (Figueira, em preparação).
Essas ideias, em sua aplicação no campo
“A concepção de infância que atravessa os da educação, Durval levou para a formação
escritos de Durval Marcondes se limita ao de educadoras sanitárias nos anos 30, em
desenvolvimento psicológico. Porém, essa seu curso de Higiene Mental na Faculdade
concepção, aparentemente simples, constitui a de Higiene e Saúde Pública, onde criou a
superfície que cobre uma série de complexas Especialização em Higiene Mental Escolar.
articulações em que aninha a compreensão Foi nesses cursos de Educação Sanitária que
que ele tem da criança. O desenvolvimento Durval Marcondes conheceu a socióloga Vir-
é evolução, ou seja, a ontogênese repete a gínia Bicudo e a psiquiatra Lygia Alcântara
filogênese, passa pelos mesmos estágios de do Amaral, ambas educadoras sanitárias e
evolução da humanidade, desde o mais pri- posteriormente integrantes do primeiro gru-
mitivo até o mais civilizado. Assim sendo, po psicanalítico de São Paulo, formado no
ele é estudado não para ser conhecido, mas início dos anos 40 em torno de Durval, na
para poder ser monitorado e colocado nos sua própria residência e consultório. É bem
trilhos da norma. Esta norma se assenta nu- provável que tenha sido graças a não ter sido
ma compreensão naturalizada de sociedade aprovado para a cátedra de Psiquiatria da
como lugar de harmonia e ordem para onde Faculdade de Medicina e ao seu mais pleno
o desenvolvimento psicológico, este sim, mo- direcionamento para as práticas no campo da
vediço e perigoso, deve convergir. [...] Assim educação e da higiene mental que Durval te-
sendo, a sociedade é entendida não em suas nha se dedicado a transmitir ideias e técnicas
contradições, mas como um todo natural e psicanalíticas a profissionais não médicos, e
harmônico em sua organização, no qual se que isso tenha sido decisivo na composição
quer inserir os indivíduos, incutindo-lhes as desse primeiro grupo psicanalítico, ao qual
normas sociais de conduta que garantam es- se juntou também Frank Philips, na época
ta suposta harmonia. A psicanálise freudia- funcionário da Light, empresa multinacional
na, ao se voltar para a sexualidade infantil de energia elétrica em São Paulo, que se
entendida como central na constituição do interessara por psicanálise a partir de uma
psiquismo, acaba por ensejar essa conexão palestra da dra. Adelheid Koch8 que assisti-
com a ideia de desenvolvimento psicológico”. ra na Faculdade de Direito. Desde então, a
formação psicanalítica em São Paulo abriu-
Esta espécie de psicanálise adaptativa era -se para profissionais não médicos, o que
característica da psicologia do ego norte-
-americana7, inspiração importante de Dur-
8 Adelheid Koch foi a primeira psicanalista a vir da
Europa para o Brasil, com a finalidade de ser analista
didata e supervisora desse primeiro grupo psicanalíti-
co de São Paulo. Ela aportou no Brasil em 1937, graças
7 A psicologia do ego norte-americana veio a ser sis- a tratativas entre Ernst Jones, na época presidente da
tematicamente criticada nas últimas quatro décadas Associação Psicanalítica Internacional (IPA), e Durval
por psicanalistas lacanianos e estudiosos do campo Marcondes. Ela assim escapava, com sua família, da
da teoria crítica (ver, por exemplo: Jacoby, 1975). ameaça nazista em ascensão na Alemanha.

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não aconteceu em outras partes do mundo, das mulheres, dando assim novas vestes
inclusive em cidades brasileiras como Porto psicanalíticas às velhas concepções da vida
Alegre e no Rio de Janeiro, onde apenas social tradicional; e, de modo ainda mais
nos anos 70, sob forte pressão dos psicólo- explícito, em sua postura como professor
gos, as Sociedades de Psicanálise filiadas à de Psicologia Clínica da Universidade de
IPA abriram suas portas para a formação São Paulo durante o período da ditadura
de não médicos. civil-militar (1964-1985).
Ou seja: Durval Marcondes foi pioneiro
na prática clínica da psicanálise em São A DOCÊNCIA NA USP
Paulo, lutou por décadas pela criação de
uma sociedade de formação psicanalítica,
EM TEMPOS DITATORIAIS
que finalmente, em 1944, viria a ser a
primeira filiada à Associação Psicanalítica Segundo Oliveira (2005), em 1934, por
Internacional na América Latina; levou co- ocasião da fundação da Universidade de São
nhecimentos da psicanálise para o campo Paulo, Durval Marcondes compôs o proje-
da saúde pública, em especial no atendi- to de uma cadeira de Psicanálise que, no
mento psicológico a crianças; participou da entanto, não pôde avançar. A autora cita
Semana de Arte Moderna de 1922; criou a um artigo escrito sobre isso pelo próprio
Clínica Psicológica da Universidade de São Durval, no jornal Diário da Noite, de 12
Paulo. Por outro lado, este “bandeirante de junho de 1934:
destemido”, identificado com aqueles que
“não se contentavam com o mundo exis- “Segundo Marcondes, a sugestão foi retirada
tente a seu alcance próximo”, foi também do projeto originário de criação da Univer-
conservador em todos os âmbitos: nos mo- sidade, sem ‘que o autor da ideia o soubesse
dos como fez uso da psicanálise em seus como, nem de quem fora o dedo de gigante’.
trabalhos ligados à saúde mental – numa Assim, por ação de ‘fortes correntes con-
perspectiva de educação de crianças cen- trárias, que ninguém sabe de onde provêm’,
trada na ideia de ajustamento social e que uma vez mais os sonhos de Marcondes não
pressupunha uma família e as funções de se realizaram” (Oliveira, 2005, p. 117).
cada um de seus membros nos moldes da
família tradicional burguesa; em sua di- A psicanálise veio a ser introduzida nos
vulgação da psicanálise na mídia impres- meios acadêmicos paulistas pela primeira
sa – como articulista semanal do jornal vez na Escola Livre de Sociologia e Polí-
Folha da Manhã 9, em que tratava como tica de São Paulo, em 1939, no curso de
autoridade científica de temas como criação graduação em Sociologia, sob a responsa-
de filhos e modos adequados à etiqueta bilidade de Durval Marcondes, tendo como
assistente Adelheid Koch. Nesse curso, a
psicanálise era ensinada como instrumento
9 O jornal Folha da Manhã era dirigido na época por Na- de compreensão dos fenômenos sociais e
bantino Ramos, advogado, defensor do Estado liberal como método que visava a melhorar as
e participante da criação da Sociedade de Psicanálise
em São Paulo. condições de ajustamento psíquico dos in-

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divíduos. Ao longo dos anos 1940, a bi- “Eu acho que naquela época o pessoal da
bliografia adotada dentre as obras freudia- Clínica não aceitava a princípio nenhuma
nas ditas sociológicas procurava destacar reforma. Eles não tinham uma participação
a problemática cultural para dar conta do realmente acadêmica, eles não tinham ideia
percurso que introduz o indivíduo no gru- do que estava se passando. Acho que eles
po e na história coletiva (Oliveira, 2014). eram contra qualquer possibilidade de mu-
No final dos anos 50, Durval Marcondes dança. A impressão que eu tinha na época é
foi convidado a organizar a especialização que a Clínica era uma coisa completamente
em Psicologia Clínica do curso de Psicolo- fora da universidade, separada”.
gia da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras da Universidade de São Paulo, para Esta alienação sugerida pelo depoente, do
onde levou como professores e supervisores “pessoal da Clínica” em relação ao que se
alguns dos psicanalistas da Sociedade Bra- passava na universidade em anos de regime
sileira de Psicanálise de São Paulo, criada ditatorial, perseguição, prisão, tortura e mor-
como Grupo Psicanalítico de São Paulo em te de diversos alunos e professores, parece
1944 e reconhecida pela IPA em 1951. confirmar-se no relato a Sagawa (2002) de
Na especialização em Psicologia Clínica, um discípulo próximo de Durval Marcon-
Durval dava as aulas teóricas de psicanálise des, o psicanalista Ryad Simon, que também
– principalmente textos clínicos de Freud – e veio a ser convidado pelo mestre para ser
os alunos realizavam os estágios de atendi- professor de Psicologia Clínica na Univer-
mento no Serviço de Higiene Mental Escolar, sidade de São Paulo. Conta Simon:
sob a supervisão de Judith Andreucci, Virgí-
nia Bicudo e Lygia Amaral. Ensinando-a na “Por uma dessas coincidências sempre inex-
Universidade, Durval conferia à psicanálise plicáveis, no dia da ocupação estudantil da
brasileira um estatuto científico e acadêmico. sede da Faculdade de Filosofia, na Rua Maria
Ex-alunos de Durval Marcondes nos anos Antônia, Durval estava dando uma aula teóri-
60 lembram dele como um professor de per- ca a alunos de Psicologia. Era no período da
sonalidade autoritária e conservadora. É o tarde. Os estudantes amotinados invadiam as
que registra Ester Zita Botelho na tese de salas de aula, interrompiam-nas e expulsavam
doutoramento Os fios da história: recons- alunos e professores. Um grupo adentrou a
trução da história da psicologia clínica na sala onde Durval lecionava. O representante
USP, defendida em 1989 no próprio Instituto dirigiu-se ao mestre: ‘Viemos comunicar-lhe
de Psicologia da USP. Ester entrevistou diver- que estamos ocupando a Universidade’. E
sos ex-alunos do curso de Psicologia Clínica Durval, impávido: ‘Pois eu lhes comunico
para reconstituir essa história, e boa parte de que eu estou ocupando esta sala’. Diante da
seu relato centra-se no ano de 1968, marco firmeza de Durval, os invasores recuaram
do movimento estudantil que ganhou uma e aguardaram que ele ministrasse sua aula
especificidade singular nas relações entre até o fim, embora lívido e indignado. Dur-
alunos e professores do curso de Psicologia val foi o último professor a deixar o prédio
Clínica da Universidade de São Paulo. Diz ocupado da antiga Faculdade de Filosofia”
um de seus entrevistados: (Simon, 1982, apud Sagawa, 2002).

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O episódio relatado ocorreu dentro de um Então os estudantes trouxeram documen-
contexto que se tornou também um marco tos oficiais, folhas que aqueles professo-
da resistência estudantil à ditadura. Em ju- res preenchiam como se houvesse alguns
lho de 1968, os alunos da Universidade de seminários e cursos que na verdade não
São Paulo ocuparam o prédio da Faculdade estavam ocorrendo, e todas as assinaturas
de Filosofia, lá permanecendo até outubro, eram falsas, para justificar a existência
quando um pedágio na rua para arrecadar das disciplinas que na realidade não eram
fundos para um congresso estudantil aca- ensinadas. Então, foi um grande problema.
bou por desencadear uma verdadeira guer- […]
ra campal com estudantes da conservadora Eles eram de direita, eu diria que eles
Universidade Presbiteriana Mackenzie, que estavam tentando provocar a intervenção
ficava do outro lado da rua. Nesse confron- do exército na universidade. Tornaram-se
to, um aluno morreu. O episódio relatado muito desagradáveis conosco; algumas
pelo discípulo de Durval deixa claras sua pessoas que foram negociar com Durval
resistência à ocupação e sua oposição aos Marcondes, ele pediu para deixarem sua
estudantes que, na época, eram porta-vozes casa de uma forma muito desagradável.
da luta pela democracia. E ele fez algo que me deixa muito triste,
Como parte de nossa pesquisa sobre a eu não gosto de falar sobre isso, embo-
psicanálise no Brasil durante o período di- ra parte disso esteja nos arquivos da So-
tatorial, entrevistamos também ex-alunos de ciedade [de Psicanálise]. Durval escreveu
Durval Marcondes na Universidade de São uma carta para meu pai pedindo-lhe para
Paulo. Reproduzimos a seguir o que ouvi- me conter, e fazia algumas ameaças sobre
mos de um deles, que em 1968 participava trazer meu nome para o pessoal da segu-
ativamente do movimento estudantil: rança e para o exército, etc., e meu pai
respondeu a Durval e esta carta está nos
“Os professores de Clínica e Psicanálise arquivos da Sociedade [...] eu acho que
eram considerados de extrema direita. No quando Durval Marcondes morreu, fazia
início, não ocupamos a clínica, mas nos parte de seus arquivos10. Meu pai respon-
deparávamos com muitas queixas sobre deu dizendo que eu era independente, que
como a psicanálise era ensinada na uni- eu era adulto, ele não faria isso e lamen-
versidade... eu diria uma situação muito tava que Durval estivesse assumindo tal
desagradável e informações desagradáveis​​ posição, assumindo esse papel; ele criticava
sobre essas pessoas. Durval por fazê-lo. Durval estava muito
[Você diria algo mais sobre isto?] ligado ao que costumávamos considerar a
Eu posso dizer sim, eu posso. Naquela direita naquele momento.
época, o que os estudantes estavam di-
zendo era que aqueles professores – Dur-
val, Virgínia e outros – também estavam
10 Encontramos a carta original nos arquivos de Durval
praticando psicanálise em suas clínicas Marcondes, no Centro de Memória da Sociedade
particulares, mas o contrato que tinham Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em fevereiro de
2019. Os dizeres da carta confirmam a fala de nosso
com a universidade era de tempo integral... entrevistado.

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[…] Ele era muito, muito próximo dos oficiais


Houve um momento em que o reitor da do exército, mas eu acho que ele não fez
universidade – que era um homem muito isso, isso é uma crença, não é algo que
decente, um homem muito honesto – foi eu saiba, não diretamente. Eu não acho
nomeado pela ditadura. Na época eu não que ele entregou nomes a eles, mas pro-
diria que ele era um esquerdista, mas era vavelmente quando ele estava bravo com
um liberal – ele tentou reconciliar os alu- a esquerda e com pessoas, ele daria todas
nos e professores da Clínica. Assim, Durval, as coordenadas a eles [ao exército] para
Virgínia e outros dois de que não lembro, identificar e localizar a pessoa, mas eu
eu e mais alguém que era diretor do grêmio não acredito que ele iria, como outros,
estudantil também, fomos ao reitor... e então dar nomes. Você tem O livro negro da
eles apresentaram todas as suas reclamações, universidade11, Durval não está lá como
reclamações horríveis sobre nós. Daí mostra- alguém que denunciou pessoas. É minha
mos as listas das disciplinas com os dados crença pessoal, eu não acho que ele de-
falsificados, foi muito fácil ver que tinham nunciou diretamente, que ele deu nomes”.
sido falsificadas porque eram idênticas, e
então o reitor se dirigiu a eles dizendo: ‘Ou Outros episódios como este, relatados por
vocês se demitem ou eu vou ter que demi- ex-alunos seus, parecem confirmar a pos-
tir vocês’, e eles decidiram renunciar como tura reacionária de Durval. Citamos aqui
um grupo. É claro que o que eles contam uma assembleia organizada entre alunos e
às pessoas sobre isso é algo completamen- professores do Instituto de Psicologia para
te diferente, eles diziam que coisas muito tratar de questões curriculares, mas que foi
desagradáveis aconteceram;
​​ algumas dessas interrompida pela notícia de que uma aluna,
pessoas ficaram com raiva de mim e das Iara Iavelberg, militante na luta armada, fora
pessoas associadas a mim, especialmente capturada pelo exército pouco antes:
um psicanalista que é da Sociedade também,
e que ensinava Psicologia Clínica na USP, “Houve uma assembleia, na ocasião da
Ryad Simon, ele dizia coisas horríveis sobre prisão da Iara Iavelberg, em que, embora
mim por escrito, coisas horríveis. fosse outra a nossa pauta, propusemos fa-
[Escritas onde?] zer um abaixo-assinado de professores e
Em algumas teses, tese de doutorado, porque alunos solicitando providências ao reitor.
a ocupação da Clínica e a história da Psico- A reação de Durval Marcondes, apoiado
logia Clínica na universidade foram temas por parte do pessoal da Clínica, foi de
de diversas teses [...] ele diz que eu era um dizer que tinha vindo à assembleia para
filho da puta e coisas desse tipo sobre mim. discutir currículo e não política”.
[O que você diz como que confirma algo
que ouvimos, rumores nos corredores do
Instituto de Psicologia, dizendo que Dur-
11 O livro negro da USP: o controle ideológico na universida-
val Marcondes denunciou algumas pessoas de foi publicado pela Associação dos Docentes da USP
à segurança e ao exército. Você sabe algo em 1979, fruto de pesquisa sobre os fatos decorrentes
do impacto da ditadura civil-militar na universidade a
sobre isto?] partir de 1964.

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O ocorrido consta em ata de Assembleia como prática social, na medida em que foram
Geral da Psicologia de 29/6/1968, que inclui conservadoras, normatizadoras e autoritárias.
o registro da fala de Durval Marcondes na Como sugerimos, seus modos de importação
ocasião12: “Não vim aqui para tomar parte e incorporação da psicanálise nas primeiras
em movimento político”. décadas do século XX reproduzem padrões
Iara morreu assassinada, possivelmente que estudiosos da cultura brasileira nome-
dentro do Destacamento de Operações de aram de modernização conservadora, um
Informação – Centro de Operações de De- amplo processo de rápidas transformações
fesa Interna (DOI-Codi) de Salvador, Bahia, culturais que deixaram intocadas estruturas
logo depois. econômicas, sociais e políticas no país. Isso
pode ser visto na teoria do desenvolvimento
CONSIDERAÇÕES FINAIS que ele utilizou (ao enfocar a infância como
um período de adaptação e socialização em
normas culturais), em sua abordagem das
A posição de Durval Marcondes como famílias e mais especificamente das mulhe-
fundador e sua grande influência no desen- res e, ainda mais ostensivamente, em seus
volvimento da psicanálise no Brasil fazem modos autoritários de ensino e suas atitudes
dele um importante analisador do destino da em relação a alunos politicamente engajados
psicanálise brasileira. No geral, sua reputação em oposição à ditadura brasileira. Marcondes,
no cenário brasileiro continua alta, com sua evidentemente, não foi o único psicanalista
autoapresentação como um “bandeirante des- a agir assim ou ter essas atitudes, mas sua
temido” sendo aceita e largamente celebrada posição influente no movimento psicanalítico
no movimento psicanalítico. Há certamente brasileiro o torna fundamental na documen-
alguns fundamentos para isso: Marcondes tação das tendências conservadoras desse
foi claramente um fundador das sociedades movimento, em especial como sinalizador
psicanalíticas brasileiras e trabalhou diligen- da posição adotada em relação à ditadura
temente para ajudar a estabelecer a psica- pelas sociedades psicanalíticas brasileiras
nálise como uma força importante dentro oficiais. Precisamos ser cuidadosos, ao que
da psiquiatria brasileira, bem como (mais parece, para não presumir que aqueles que
tangencialmente) na esfera cultural. Contudo, são “bandeirantes” em certos territórios se-
suas atitudes e ideias também foram caracte- rão necessariamente progressistas ou mesmo
rísticas da orientação da psicanálise brasileira democráticos em outros.

12 Uma cópia do registro da ata encontra-se na tese de


doutorado referida, onde encontramos esta informa-
ção.

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referências

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