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LITERATURAS E
HUMANIDADES
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Jean Paul D’Antony
José Antonio Feitosa Apolinário
Nefatalin Gonçalves Neto
(organizadores)

INTERSEÇÕES:
LITERATURAS E HUMANIDADES

1a Edição
São Paulo
Todas as Musas
2018
Editor: Flavio Felicio Botton
Supervisão Editorial: Fernanda Verdasca Botton
Capa e diagramação: Studio Vintage Br
José Antonio Feitosa Apolinário ©
Conselho editorial
Marcio Ricardo Coelho Muniz (UFBA)
Marlise Vaz Bridi (USP/UPM)
Nalfran Modesto Benvinda (UNEAL)
Raquel de Souza Ribeiro (USP)
Roberto Henrique Seidel (UNEB)
Rogerio Miguel Puga (Universidade Nova de Lisboa)

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a prévia autorização


dos organizadores.
Este Livro foi editado com auxílio da Capes.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Kátia Aguilar CRB – 8/8898
Interseções: literaturas e humanidades/ Organização de: Jean Paul
I61 D’Antony; José Antonio Feitosa Apolinário; Nefatalin Gonçalves
Neto. São Paulo: Todas as Musas, 2018.
254p.

Bibliografia
ISBN 978-85-9583-042-4

1. Estudos literários 2. Literaturas comparadas e outras lingua-


gens I. D’Antony, Jean Paul; II. Apolinário, José Antonio Feitosa; III.
Gonçalves Neto, Nefatalin.

CDD 869.91
Catálogo Sistemático
Estudos literários 869.91; Literaturas comparadas e outras lingua-
gens 869.9.
Prefácio
_______________________________________________

O presente livro é resultante do I Colóquio Regional de


Estudos Literários, coligindo textos apresentados por
palestrantes e organizadores do referido evento ocorrido
em outubro de 2014 em Serra Talhada, Pernambuco.

Esta publicação contou com financiamento da Capes.

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Prefácio
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Prefácio
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Sumário

Prefácio, 9
Alteridades artísticas e culturais afro-americanas: Nicolás
Guillén, Solano Trindade e Nicomedes Santa Cruz
Amarino Oliveira de QUEIROZ (UFRN), 13
Pedagogia do olhar: estratégias das adaptações e o cinema
nacional na escola
Claudio Cledson NOVAES (UEFS), 33
Hoc est enim corpus meum – a leitura fílmica de Salò e a
oferta fascista sobre o sexo e os corpos no tempo presente
Francisco Vítor Macêdo PEREIRA (UNILAB), 57
A traça e o traço: a retórica discursiva em Manoel de Barros
e Guimarães Rosa
Igor ROSSONI (UFBA), 97
Desleituras literárias, reescritas da história em
As Naus, de Antônio Lobo Antunes
Jacimara Vieira dos SANTOS (UFBA), 127
Da estética da crueldade à dissimulação narrativa:
as causas secretas
Jean Paul D’ANTONY (UFRPE), 153
O sentido da história, a ausência de sentido do mundo e o
sentido da vida: alguns apontamentos sobre Nietzsche
José Antonio Feitosa APOLINÁRIO (UFRPE), 167

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Prefácio
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Ensaiando repertórios de samba: feitiços e mistérios


teórico-metodológicos
Manoel Sotero CAIO NETTO (UFRPE), 195
O retorno: ficção, identidade social e descolonização em
Dulce Maria Cardoso
Nefatalin GONÇALVES NETO (UFRPE), 217
Sobre a ficção feminina da diáspora negra: uma escrita que
oscila entre a ordem e o caos
Sueli Meira LIEBIG (UEPB), 239

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Prefácio
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Prefácio
Alvíssaras, alvíssaras!

Interjeição exclamativa positiva, o termo até pode ser um tan-


to quanto arcaico e pouco usado, contudo desconhecemos qual-
quer outra palavra em língua portuguesa que melhor expresse o
sentimento recompensador e feliz que sentimos pela realização
do I Colóquio Regional de Estudos Literários (CoREL), com o
tema Literaturas Comparadas e outras Linguagens.
Ora, a exclamação se dá, não à toa, porque pela primeira vez
realizou-se, no sertão pernambucano, um evento de alto porte
que teve como foco a integração de diversos pesquisadores de
universidades distintas com o intuito de trazer para a região uma
ação para suprir a demanda de formação diferenciada, à medida
que o ensino de Letras exige esse lugar de interdisciplinaridade,
de encontro entre as áreas em prol de novas perspectivas das
fronteiras metodológicas e teóricas. O evento contou com a pre-
sença de professores mestres e doutores, professores da rede
pública e privada de ensino, 267 discentes, vindos das regiões
circunvizinhas, desde Arcoverde (PE) até Juazeiro do Norte (CE),
tendo a presença de participantes da UFPE, UFRB, UNEB,
UFRN, UEPB, UEFS, UFBA, UNILAB, UFRPE e FAFOPST.
Baseado na manutenção e renovação das propostas de interio-
rização das Universidades Federais, o projeto de realização do I
CoREL foi além da oferta de revisão e reforço do processo de en-
sino-aprendizagem, uma vez que em sua ação de ressignificação
identitária e reordenação social do trabalho de pesquisa e exten-
são, do trabalho acadêmico, da organização curricular, buscou a
otimização das atividades de formação e aperfeiçoamento geral
da comunidade. Coordenado pelo Professor Doutor José Antônio
Feitosa Apolinário, o evento – ocorrido em setembro de 2014 –

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Prefácio
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agora coroa suas ações por meio desta publicação que reúne tex-
tos apresentados por palestrantes e organizadores em seus três
dias de ocorrência.
O evento reuniu, em um primeiro momento, professores que
mantinham algum tipo de proximidade com os estudos realiza-
dos em três grupos de estudos da UFRPE Serra Talhada: Litera-
turas e Cinemas: Confluências e Problematizações (sob coorde-
nação do Prof. Dr. Jean Paul D’Antony), O Insólito na Literatura
(sob coordenação do Prof. Me. Nefatalin Gonçalves Neto) e o
GEPEDE – Grupo de Estudos em Política, Educação e Ética (sob
coordenação do Prof. Dr. José Antônio Feitosa Apolinário). A
necessidade de estabelecer um diálogo mais frutífero entre os
mencionados grupos, balizados a partir de uma diretriz interdis-
ciplinar, concretizamos a proposta de realizar uma atividade de
relevância que problematizasse questões não apenas literárias,
mas propiciasse interlocuções críticas em um contexto humanís-
tico mais abrangente. Essa ação não somente possibilitou uma
indissociabilidade entre teoria e prática, mas sobretudo permitiu
experimentar, durante os três dias do evento, vivencias próprias
de uma comunidade investigativa.
Nessa direção, foram engendrados questionamentos, posicio-
namentos teóricos e debates a partir de diálogos com áreas afins
(Filosofia, Sociologia, Educação, História, Psicologia, Estudos
Culturais e Cinema), possibilitando um redimensionamento do
processo de ensino-aprendizagem para os alunos – tanto para os
que se interessam pelo tema como àqueles que ensejam seguir
carreira acadêmica. Cônscios da existência da carência de traba-
lhos e reflexões de natureza interdisciplinar que contemplem
intersecções nas áreas supracitadas, a presente publicação vem à
tona a fim de viabilizar o acesso a discentes, docentes e pesquisa-
dores, locais e regionais, bem como o intuito de alcançar outros
espaços, cumprindo com a função democrática de ampla disse-
minação do conhecimento e do espírito crítico-científico.

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Prefácio
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Os capítulos que compõem o presente livro versam acerca de


questões em torno das relações entre samba e identidade, do ci-
nema enquanto educação visual, passando por reflexões sobre a
filosofia nietzschiana, a estética da crueldade, a literatura portu-
guesa, as relações entre o ficcional e o social, além de questões
afro-literárias e político-ditatoriais.
Sem uma estrita cronologia de temas e assuntos, o livro versa
não pelo caos, mas por uma pluralidade de pensamentos capaz
de ampliar a visão muitas vezes circunscrita a certas práticas de
pesquisa que se fecham em visões especializadas, não possibili-
tando assim o redimensionamento entre campos de investigação
e a interlocução na produção de conhecimento. O livro, mediante
esse bloco de trabalhos, expõe a interdependência dos temas e
apresenta referências que sinalizam potenciais caminhos e pes-
quisas.
Esperamos que a maturação proposta e alcançada pelos textos
oriundos desse I CoREL beneficiem a todos aqueles que procu-
ram, seja por prazer, curiosidade ou pretensões de estudo e pes-
quisa acadêmica, um significativo suporte teórico-metodológico
mediante a diversidade dialógica ora aduzida. Ensejamos, por
fim, que as alvissaras não sejam apenas nossas, mas de cada lei-
tor desse livro, intuito final dessa publicação.

A Organização do I CoREL.
Serra Talhada, 28 de maio de 2015.

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Prefácio
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Alteridades artísticas e culturais afro-americanas
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Alteridades artísticas e culturais


afro-americanas: Nicolás Guillén,
Solano Trindade e Nicomedes Santa
Cruz

Amarino Oliveira de QUEIROZ

Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte


(UFRN).
E-mail: amarinoqueiroz@gmail.com

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Amarino Oliveira de Queiroz
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Alteridades artísticas e culturais afro-americanas
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A
visão das Américas como um espaço ao mesmo tempo
bárbaro e paradisíaco, espécie de território mítico habi-
tado por estranhas gentes afeitas a crenças politeístas,
sacrifícios humanos e práticas antropofágicas, no qual se encon-
trariam fabulosas cidades erigidas em ouro e fontes de águas
miraculosas capazes de conceder a juventude eterna àqueles que
delas provassem perdurou por muito tempo no imaginário de
exploradores e colonos. Não obstante, através dos séculos de ex-
periência colonial, a noção de América foi se desprendendo com
muito vagar desse ambiente nebuloso que caracterizou sua idea-
lização inicial, dando lugar a uma condição forçosamente menos
lendária, ainda que de contornos provisoriamente definidos. Mo-
vendo-se, pois, na sugestão de um destino fundado na diversida-
de, seus sujeitos artísticos e culturais protagonizaram constantes
e nem sempre bem-sucedidas tentativas de negociação, tal como
parecem propor os versos do poeta peruano Nicomedes Santa
Cruz dispostos a seguir:

Mi cuate
Mi socio
Mi hermano
Aparcero
Camarado
Compañero
Mi pata
M´hijito
Paisano…
He aquí mis vecinos.
He aquí mis hermanos.
Las mismas caras latinoamericanas
de cualquier punto de America Latina:
Indoblanquinegros
Blanquinegrindios
Y negrindoblancos
Rubias bembonas
Indios barbudos
Y negros lacios

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Amarino Oliveira de Queiroz
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Todos se quejan:
¡Ah, si en mi país
no hubiese tanta política…!
¡Ah, si en mi país
no hubiera gente paleolítica…!
¡Ah, si en mi país
no hubiese militarismo,
ni oligarquía
ni chauvinismo
ni burocracia
ni hipocresía
ni clerecía
ni antropofagia...
¡Ah, si en mi país... (SANTA CRUZ, 1971, p. 6).

O discurso poético de Nicomedes Santa Cruz apresenta, já na


primeira parte, indícios reveladores dessa condição de pluralida-
de que permeia a formação etnocultural do continente. Em tom
evocativo, precedido da forma espanhola possessiva singular mi,
o termo hispanizado cuate, adaptado do asteca cóatl, poderia
simbolizar e traduzir um momento inicial do processo de misci-
genação, sincretismo e interpenetração cultural verificado nas
Américas. Este vocábulo, cóatl, que em língua náhuatl significa
originalmente tanto “serpente” como “gêmeo”, é assimilado pelo
idioma do invasor no México e na Guatemala, onde, mais tarde,
passa a adquirir o sentido de “igual”, ou “semelhante”. Isto se
tornará ainda mais curioso se levarmos em conta a referência
histórica de assentamento da civilização asteca sobre a região
onde hoje se ergue a atual capital mexicana, sobre as ruínas da
antiga Tenochtitlán conquistada1.
Inicialmente tratada como um “mexicanismo” da língua caste-
lhana, a palavra cuate passou a figurar como forma dicionariza-
da, ou seja, legitimada pela Real Academia Española, mantendo

11 Uma ilustração do acontecimento compõe o emblema estampado na própria


bandeira nacional, que evoca a fixação do povo mexica: equilibrada sobre um
nopal (cactácea), surge a figura de uma águia devorando uma serpente.
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Alteridades artísticas e culturais afro-americanas
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até os nossos dias o significado de “companheiro”, “amigo ínti-


mo”, acepção reiterada por palavras sinônimas na sequência dos
versos de Santa Cruz (socio, aparcero, pata, camarada). Por
outro lado, las mismas caras latinoamericanas referidas pelo
poeta evocam claramente o processo americano de miscigenação,
apresentando-o na forma de neologismos como indoblanquine-
gros, blanquinegrindios e negrindoblancos que, por sua vez, não
somente se prestam à identificação de rubias bembonas, indios
barbudos e negros lacios como também configuram e enfatizam
o motivo geral do poema, ou seja, a diversidade, preocupação que
se fez registrar como um compromisso natural de inclusão reali-
zado pelo homem e pelo poeta Nicomedes Santa Cruz ao longo de
toda a sua trajetória:

Alguien pregunta de dónde soy


(Yo no respondo lo siguiente):
Nací cerca del Cuzco
admiro a Puebla
me inspira el ron de las Antillas
canto con voz argentina
creo en Santa Rosa de Lima
y en los orishas de Bahía.
Yo no coloreé mi Continente
ni pinté verde a Brasil
amarillo Perú
roja Bolivia.
Yo no tracé líneas territoriales
separando al hermano del hermano.
Poso la frente sobre Río Grande
me afirmo pétreo sobre el Cabo de Hornos
hundo mi brazo izquierdo en el Pacífico
y sumerjo mi diestra en el Atlántico.
Por las costas de oriente y occidente
doscientas millas entro a cada Océano
sumerjo mano y mano
y así me aferro a nuestro Continente
en un abrazo Latinoamericano (SANTA CRUZ, 1971, p. 6).

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Amarino Oliveira de Queiroz
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A perspectiva de uma América Latina unida evocaria aqui o


discurso acalentado desde o processo de emancipação política
que a própria trajetória histórica do continente se encarregou de
atropelar, mas que, ao mesmo tempo, sinaliza e reabilita através
da poesia um investimento no diverso, apostando na multiplici-
dade das vozes que o construíram.
Retomando, pois, o fio dessa História e reportando-nos à che-
gada dos portugueses à Colônia de Sacramento, no extremo me-
ridional do Brasil, Zilá Bernd (1995, p. 9) assinala que o navega-
dor Manuel Duarte Quintão, em carta dirigida à autoridade me-
tropolitana, teceria comentários acerca de um presumível caráter
de imprevisibilidade que distingue a formação cultural do conti-
nente, contrapondo-o à previsibilidade de sua experiência ante-
rior, ancorada no Velho Mundo. Tal observação, defendida pela
autora a partir de pensamento elaborado por Edouard Glissant
subsidiaria a hipótese de que justamente sobre essa imprevisibi-
lidade é que se assentariam as bases das relações literárias e cul-
turais verificadas entre as três Américas e o Caribe. Para Edouard
Glissant (1981, p. 190-201), a poética do continente poderia ser
pensada em termos de uma poética do diverso, caracteristica-
mente heterogênea, múltipla e imprevisível, como os próprios
versos de Nicomedes Santa Cruz transcritos acima parecem sus-
citar.
Em Glissant, este Diverso se opõe frontalmente à ideia de
Mesmo, que está relacionada com a de uma identidade fechada
sobre si própria, fluindo a partir de um discurso homogeneizador
e hegemônico, considerado como o único verdadeiro. O conceito
de imprevisibilidade defendido pelo escritor martinicano vai se
fundar precisamente em sua observação da realidade caribenha,
lugar de confusão e imbricamento de variadas informações cultu-
rais numa realidade nova que ele denominou, em sua Poétique de
la Relation (1990), como crioulizada, isto é, onde as culturas que
afirmam sua identidade como raiz única tenderiam a se tornar

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Alteridades artísticas e culturais afro-americanas
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compósitas, indo ao encontro de outras raízes. Sintonizando o


pensamento do escritor cubano Roberto Fernández Retamar
(1993, p. 300), para quem a ideia acerca do que seja o continente
latino-americano é um conceito em expansão – já que a América
Latina, para além do que num princípio se pretendeu que signifi-
casse, isto é, uma forma sinônima da “nuestra América“ sonhada
por José Martí, inclui não somente povos de relativa filiação lati-
na, mas também outros como os das Antilhas de língua inglesa
ou holandesa e, naturalmente, os grandes enclaves indígenas.
Neste sentido, poderíamos afirmar que todas as variáveis que
possam advir de experiências como as aqui referidas e de outras
que os tempos futuros se encarregarão de relatar parecem con-
duzir-nos, uma vez mais, em direção à possibilidade de compre-
ensão dos fenômenos culturais e literários do mundo contempo-
râneo como um extenso território do diverso e do imprevisível,
no qual a singularidade do exemplo americano e caribenho se
apresenta cada vez mais fértil e plural. Por outro lado, pelos idos
de 1978, Silviano Santiago já defendia que a grande contribuição
do continente latino-americano para a cultura do Ocidente resi-
dia na peculiaridade de poder minar, sistematicamente, as no-
ções de unidade e de pureza, uma vez que:

(...) estes dois conceitos perdem o contorno exato do seu significado,


perdem seu peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à me-
dida que o trabalho de contaminação dos latino-americanos se afirma, se
mostra mais e mais eficaz. A América Latina institui seu lugar no mapa
da civilização ocidental graças ao movimento de desvio da norma, ativo e
destruidor, que transfigura os elementos feitos e imutáveis que os euro-
peus exportavam para o Novo Mundo (SANTIAGO, 1978, p. 18).

Assimilando a impureza fundadora como estratégia discursi-


va, resistindo à hegemonia emanada pelos centros através da
subversão às regras, imbricando o “maior” e o “menor” pela reci-
clagem e reutilização, para dizê-lo ainda com palavras de
Edouard Glissant (1995), a experiência cultural e literária ameri-

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Amarino Oliveira de Queiroz
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cana estaria promovendo não apenas uma dissolução sistemática


daqueles conceitos de unidade e pureza de que nos falava Santia-
go. Mais: estaria desestabilizando as fronteiras entre o que ficou
estabelecido como forma canônica e o que fora confinado à mar-
gem ou relegado ao esquecimento, posto que, conforme reiteraria
o escritor mexicano Carlos Fuentes (1966), “vivemos em países
onde tudo está por ser dito, mas também onde está por ser des-
coberto como dizer esse todo”.
Uma das vertentes de convergência entre as escritas afro-
descendentes produzidas nas Américas durante o século XX foi a
recorrência à oralidade e à consciência identitária como elemen-
tos estruturadores dos discursos poéticos e narrativos. Interfe-
rências desta ordem fazem-nos pensar em escritores latino-
americanos de ascendência africana como o já referido peruano
Nicomedes Santa Cruz, o cubano Nicolás Guillén e o brasileiro
Solano Trindade. Nos três autores, esta relação entre oralidade e
escritura parece beber em fontes similares que vão da tradição
oral dos povos ameríndios e dos antigos griots africanos aos re-
cursos mnemônicos utilizados pelos contadores e contadoras de
histórias e suas narrativas orais em situação de performance,
ladeadas pelos ditos populares, chistes e advinhas, bem como
pelo labor dos cantadores rurais e urbanos originados numa tra-
dição oral ibérica, arabizada. Mesmo pouquíssimo lembrados no
Brasil, Solano Trindade e Nicolás Guillén gozam de uma certa
vantagem sobre Nicomedes Santa Cruz se compararmos as aten-
ções a eles dedicadas em nosso meio. Contemporâneo de ambos,
o poeta, contista, ensaísta, musicólogo, compositor, cantor, per-
former e jornalista Nicomedes Santa Cruz é um dos mais expres-
sivos nomes da cultura latino-americana em sua vertente de ex-
tração afro. Sua obra especificamente literária, entretanto, com
vários livros e trabalhos publicados em poesia e em prosa parece
não vir merecendo a devida atenção, mesmo por parte da crítica

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Alteridades artísticas e culturais afro-americanas
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contemporânea do Peru. É, pelo menos, o que assinala Martha


Ojeda em prólogo a um dos livros do autor:

La crítica literaria actual, en el Perú, no ha reconocido cabalmente la


obra del poeta, y los escasos estudios existentes, salvo excepcionales ca-
sos, se han limitado a destacar aspectos aislados de su quehacer artísti-
co. Cabe resaltar sus grandes contribuciones a la literatura no sólo por la
preservación, renovación y continuación de la décima sino también por
la incorporación de una nueva voz que refleja la realidad pluricultural
del Perú. Santa Cruz rescató la tradición decimista recopilando y fijando
las décimas que circulaban oralmente. Además, desde mediados del siglo
XX, fue el representante más importante de dicha tradición, como tal,
escribió décimas y otros poemas en cantidades significativas; sin embar-
go, su aporte a la literatura nacional es poco conocido y poco estudiado.
(...) En sus primeras décimas dio voz a la silenciada historia del negro
desde su llegada al Perú y reivindicó su aporte a la formación de la cultu-
ra nacional. En su segundo y tercer poemarios, sobresalen los temas de
preocupación nacionalista, de marcado tono comprometido (denuncia la
marginalización del indio, condena el racismo, el imperialismo y la colo-
nización africana), y finalmente se trasluce un sentimiento integracionis-
ta donde aboga por una sociedad pluricultural. (OJEDA, 2005)2

A pluriculturalidade latino-americana em suas manifestações


literárias e artísticas está presente tanto na ensaística como na
poesia de Nicomedes Santa Cruz, indissociada dos contributos
africanos, indígenas e hispânicos através da performance, da
oralidade, do vínculo da poesia com a música, a dança, a encena-
ção e o canto, ponto de vista que encontra paralelo em outros
estudos realizados sobre sua poesia. Num ensaio intitulado La
poética de Nicomedes Santa Cruz y su desafío al canon de la
literatura hegemónica peruana (2005), o crítico Carlos Orihuela
defende que a estratégia poética de Santa Cruz representaria um
primeiro caso de desafio bem sucedido ao cânone literário hege-

2 OJEDA, Martha. OJEDA, Martha. Nicomedes Santacruz, poeta peruano –


Prólogo a Canto Negro. Disponível em:
http://www.andes.missouri.edu/andes/Ciberayllu.html. Acesso em: 15 de agos-
to de 2011.

21
Amarino Oliveira de Queiroz
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mônico peruano realizado na perspectiva da negritude. Sua tese


buscou sustentação em três fatos da história cultural recente do
país:
a) O primeiro, por ter tornado possível a ampliação dos
alcances teóricos do discurso indigenista na direção de ou-
tras etnias que conformam o espectro social do Peru con-
temporâneo, nomeadamente a presença afro-peruana;
b) O segundo, por dessacralizar os gêneros da literatura
hegemônica nacional através da revisão e da recriação de
formas tradicionais da poesia, com as quais consolida uma
escritura autoral e ao mesmo tempo enraizada na tradição
literária afro-peruana;
c) O terceiro, pelo fato de que a difusão massiva de sua
produção poética e artística, valendo-se tanto do formato
impresso como dos recursos audiovisuais e mesmo da per-
formance oral, acrescente-se aqui, tenha possibilitado, de
forma eficaz, uma maior consciência sobre o componente
cultural africano no processo nacional.

Muito longe de representar uma prática poética “guetifican-


te”, isolacionista, esta experiência de Nicomedes Santa Cruz, ao
contrário, parece mais apontar para uma profunda disposição
“universalista” do ofício da poesia:

Van trazando mi camino


nuestras criollas estampas
como le inspiran sus pampas
al payador argentino.
Como cantara el beduino
a su famoso laúd,
como coplero andaluz
o trovador italiano,
yo canto como peruano
con décimas del Perú (SANTA CRUZ, 1971, p. 9).

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Alteridades artísticas e culturais afro-americanas
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Suas vinculações culturais e estéticas, assim como suas con-


vicções de ordem político-ideológica o aproximariam tanto do
poeta e militante Nicolás Guillén como do multiartista, estudioso
das tradições populares afro-brasileiras e ativista político Solano
Trindade. Guillén, que viria a assinar o prólogo de um dos livros
do poeta peruano editado em Cuba, teria também seus próprios
poemas estudados e comentados por Santa Cruz. Redirecionan-
do, pois, o nosso foco para Trindade e Guillén, é conhecido o es-
tudo que Zilá Bernd (1997) desenvolveu em torno da obra destes
dois poetas, buscando estabelecer uma relação que alinharia, em
larga medida, a escrita produzida por ambos. Estes vínculos
(“desconhecidos”, como se fez anunciar no título do ensaio, ou
“obscurecidos”, conforme preferiríamos situá-los aqui), se apoia-
riam basicamente em três vertentes que se tocam e se autorefe-
rem permanentemente:

a) A primeira, política, de filiação marxista, que os con-


duziria a um conceito integrado da América, ao engajamen-
to e, consequentemente, à militância;
b) A segunda, identitária, que se preocuparia com ques-
tões afetas à realidade etnocultural de ambos os autores,
tais como mestiçagem, sincretismo, hibridação, identidade
solidária, processo escravagista e presença africana nas
Américas;
c) A terceira, do ideal literário, que se fundaria na busca
de uma expressão americana que conciliasse os elementos
da cultura negra e da branca.

Da obra dos três autores se produziriam alguns diálogos inter-


textuais, como o aqui registrado a partir de poema de Solano
Trindade:

Nicolás

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Amarino Oliveira de Queiroz
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Nicolás Guillén
Meu irmão de Cuba
Nicolás Guillén
Onde está a burguesia
cheia de medo sem calma
burguesia bem nutrida
Nicolás Guillén
Com medo de coisa nova (TRINDADE, 1961, p. 55).

que se imbricariam com o discurso poético de vários outros


autores, a exemplo do estadunidense Langston Hughes ou do
santomense Tomaz Medeiros.
Fazendo uso do socopé, manifestação poética oral característi-
ca de São Tomé e Príncipe que se alia, em seu desenvolvimento, à
expressão dramática, ao canto, à dança e à música, o poeta To-
maz Medeiros (2003, p. 277-78) trata de realizar um diálogo in-
tertextual com Guillén, como a seu modo fizeram Trindade a par-
tir do Brasil e Santa Cruz a partir do Peru, mas agora tendo como
ponto de partida a África de língua oficial portuguesa:

Conheces tu
Nicolas Guillén
a ilha do nome santo?
Não? Tu não a conheces? (...)
Tu não conheces a ilha mestiça,
dos filhos sem pais
que as negras da ilha passeiam na rua?
Tu não conheces a ilha-riqueza
onde a miséria caminha
nos passos da gente?
Bembon, Nicolás Guillén
Nicolas Guillén, bembom (MEDEIROS, 2003, p. 45).

A disposição de Tomaz Medeiros poderia suscitar aqui co-


mentários de ordem vária. Privilegiaremos, entretanto, duas pos-
sibilidades apenas: o próprio sentido evocativo do texto, que o
aproxima do fragmento poético de Solano Trindade reproduzido

24
Alteridades artísticas e culturais afro-americanas
_______________________________________________

anteriormente, e a utilização do neologismo bembom, aglutinan-


do advérbio e adjetivo do português numa terceira forma, inten-
sificadora da qualidade funcional das duas palavras isoladas.
Este efeito torna-se ainda mais interessante pelo paralelo que
estabelece junto ao outro adjetivo, bembon, aportuguesamento
realizado por Medeiros da forma espanhola bembón. Convém
lembrar que esta expressão designa pejorativamente a pessoa
que possua lábios proeminentes, ou seja, o equivalente ao nosso
adjetivo beiçudo, numa clara referência às características anatô-
micas dos povos negros e seus mestiços em oposição à estética
greco-latina imposta como ideal de beleza pelos colonizadores
europeus.
Esta ruptura de padrões, diga-se de passagem, já fora utilizada
por outros autores como o próprio Nicomedes Santa Cruz e suas
rubias bembonas. A ressemantização do termo no contexto poé-
tico em português parece funcionar não apenas como alusão ao
próprio Guillén, que a requalificou ao longo de seu exercício poé-
tico, mas também para estabelecer uma espécie de pacto através
do qual perpassam, de maneira cúmplice, um reconhecimento e
uma celebração poética da origem, da pertença e da semelhança
na diferença.

Oh! Vem ver a minha ilha,


vem ver cá de cima
da nossa Sierra Maestra.
Vem ver com a vontade toda
Na cova da mão cheia. (...)
Conoces tú
La isla del Golfo?
Bembom, bembom,
Nicolás, bembom (MEDEIROS, 2003, p. 85).

Note-se que nestas duas últimas linhas, e finalizando o texto


poético, Tomaz Medeiros substitui a forma aportuguesada ante-
rior bembon, apoiada no pejorativo castelhano bembón, pelo

25
Amarino Oliveira de Queiroz
_______________________________________________

neologismo bembom, igualmente sonoro, musical, mas reiteran-


do afirmativamente, pela repetição intencional (e tão caracterís-
tica da poética africana) a dimensão de seu caráter qualificador.
Ao evocar o colega cubano em seu poema, utilizando-se inclusive
do idioma espanhol, Medeiros tanto o convida quanto o provoca
a (re)conhecer o pequeno país natal situado no Golfo da Guiné, o
mesmo que, durante séculos, serviu como entreposto de escravos
traficados da costa atlântica da África para as Américas e o Cari-
be. Sobre as férteis terras santomenses desenvolveram-se, em
grandes latifúndios, ciclos de cultivo do café e do cacau, coinci-
dentes sob vários aspectos com a monocultura da cana-de-açúcar
em Cuba e no Brasil.
Ainda como elemento de semelhança com o país de Guillén,
registre-se que São Tomé e Príncipe é constituído por um conjun-
to de ilhas, reais e simbólicas, que lhe prefigurariam o perfil cul-
tural híbrido e diversificado. O socopé santomense estaria, para
além do título expresso no poema de Tomaz Medeiros, como uma
sugestão rítmica de desenvolvimento e recepção da leitura, apro-
ximando as relações entre o texto escrito e a audição que dele se
possa usufruir quando de sua verbalização. A realização de To-
maz Medeiros ao fixar pela escrita o seu poema-socopé partindo
de uma manifestação corrente da oralidade, o socopé santomen-
se, aproxima-o da forma pela qual Guillén teria concebido a sua
própria poesía-son: recorrendo ao fértil território sonoro sobre o
qual se ergue a tradicional matriz cultural representada pelo son
cubano.
Aproveitando esta referência à tradição poético-musical e à
oralidade santomenses, bem como à coloquialidade explícita no
texto escrito, gostaríamos de acrescentar que, aos vínculos rela-
tados através da leitura entabulada por Zilá Bernd e descritos em
três principais vertentes, poderíamos sugerir duas outras impor-
tantes aproximações entre as obras de Solano Trindade e Nicolás
Guillén:

26
Alteridades artísticas e culturais afro-americanas
_______________________________________________

A primeira delas seria o estabelecimento de um diálogo entre


poesia e música, carregado, nos exemplos que se seguem, de ali-
terações e assonâncias, além de referências à linguagem colo-
quial:

Lá vem o navio negreiro


Com carga de resistência
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de inteligência
(Trindade, Cantares ao meu povo)
.........................................................................................................
¿Negro bembón,
negro bembón,
negro bembón.
Poqué te pone tan brabo
cuando te disen negro bembón,
si tiene la boca santa,
negro bembón? (GUILLÉN, 1986, p. 73).

A segunda das aproximações, suplementada pela anterior, se-


ria a que torna evidente a inclusão, no texto escrito, de procedi-
mentos característicos de outros códigos como os da oralidade,
valendo-se inclusive de ortografia que transgride a norma culta
da língua e os códigos da comunicação não-verbal. Esta estraté-
gia confere ao texto um caráter de arte performativa, aspecto
flagrante na produção poética de ambos os autores:

Trem sujo da Leopoldina


correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Piiiiii (...)
Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome

27
Amarino Oliveira de Queiroz
_______________________________________________

dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer (...)
Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuuu
(Trindade, Tem gente com fome)
.........................................................................................
¡Ay, negra,
si tú supiera!
Anoche te bí pasá
y no quise que me biera.
A é tú le hará como a mí,
que en cuanto no tube plata
te corrite de bachata
sin acoddadte de mí.
Sóngoro cosongo
songo bé;
sóngoro cosongo
de mamey;
sóngoro, la negra
baila bien;
sóngoro de uno,
sóngoro de tré. (...)(GUILLÉN, 1986, p. 38)

Ao realizar sua versão dos poemas de Nicolás Guillén para


uma antologia em língua portuguesa, Thiago de Mello (1986, p.
45), em nota de apoio, esclarece que Sóngoro e cosongo seriam
“vozes africanas, onomatopaicas de ritmos inventados pelo poe-
ta”. Já num ensaio de Liliam Ramos da Silva (2003, p. 160),
atendendo a vocabulário consultado, segundo ela, em outro vo-
lume de poemas traduzidos, os termos são referidos na condição
de fonemas negróides, vestígios de antigos idiomas “trazidos pa-
ra as Américas pelos escravos negros, ritmos que ainda ocorrem
na língua do povo antilhano”. A autora chama a atenção sobre
uma particularidade no título do poema, “onde é incluída por
duas vezes a palavra ‘son’, de grande importância para a poética
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Alteridades artísticas e culturais afro-americanas
_______________________________________________

de Guillén, que teve muitos de seus poemas transformados em


canções”, o que para nós pode sugerir um exemplo prático de
retorno, ou retomada, através da poesía-son de Nicolás Guillén,
do fazer poético à origem mesma da poesia africana, indissociada
da música, da oralidade e da performance.
Nos fragmentos reproduzidos acima, de Tem gente com fome
(Trindade) e de Sóngoro cosongo (Guillén), é curioso notar a dis-
posição performatizante do texto poético. Supostamente escritos
para serem lidos silenciosa e individualmente, eles avançam na
sugestão do canto, da música, da encenação e da dança, recondu-
zindo a leitura para possibilidades que poderão desembocar num
processo além da recepção passiva, tornando-a interativa, envol-
ta numa mais ampla e orgânica relação de sentidos, quer dizer,
gerando uma situação que Paul Zumthor identificaria como ato
performático.
Concordando parcialmente com Liliam Ramos da Silva (2003,
p. 160), para quem Nicolás Guillén e Solano Trindade “incorpo-
raram o vocabulário africano em seus poemas em uma constante
luta contra o esquecimento”, poderíamos argumentar que em
ambos os autores, assim como ocorrera em Nicomedes Santa
Cruz, estas relações parecem beber nas mesmas fontes: a da tra-
dição oral dos povos pré-colombianos e dos antigos griots africa-
nos trazida entre os trabalhadores escravos para as Américas;
dos contadores de histórias e suas narrativas orais em situação
de performance, ladeadas pelos ditos populares, pelos chistes,
pelas adivinhas; dos cantadores rurais e urbanos presentes tanto
no Peru (décimas, yaravíes) como em Cuba (contrapunteos, gua-
jiras) ou no Nordeste do Brasil (cantorias de viola, emboladas);
do romanceiro popular de tradição ibérica, ou seja, arabizada;
dos pregões de rua, ou pregones callejeros, assim como, segundo
já se fez apontar, do universo característico da linguagem colo-
quial da cidade e do campo, acrescentando às possíveis leituras
do texto escrito elementos outros, da comunicação não verbal.

29
Amarino Oliveira de Queiroz
_______________________________________________

Não poderemos esquecer que foram justamente, se não estas,


experiências poéticas assemelhadas que introduziram no seio da
cultura letrada, lado a lado com ela, um espaço de resistência
para as manifestações ditas populares ou de tradição oral, ante-
cipando, por exemplo, nesses seus giros de resistência, a eclosão
da performativa poesia dub jamaicana, ou mesmo a poética ur-
bana hip hopper, tão atuante hoje entre os raperos de Lima e de
Havana como entre os autoproclamados rapentistas do Recife de
Solano. Detendo-nos em exemplos como os de Nicomedes Santa
Cruz, Solano Trindade e Nicolás Guillén, ou ampliando as nossas
perspectivas críticas na observação de uma escrita emergente que
sinaliza, através das alteridades culturais e artísticas, modos ou-
tros de produção do discurso poético e ficcional, não apenas nas
Américas e no Caribe como na África e em tantas outras realida-
des literárias contemporâneas, parece-nos pertinente dirigir nos-
sas atenções para este fazer literário que se nos configura presen-
temente, revelando-nos um processo desestabilizador do pensa-
mento dicotômico ou, quando nada, colocando em discussão a
seguinte afirmativa de Paul Zumthor (2000, p. 35): “habituados,
como somos, nos estudos literários, a só tratar do escrito, somos
levados a retirar, da forma global da obra performatizada, o texto
e nos concentrar sobre ele”, pensamento no qual a palavra poéti-
ca, ultrapassando os limites da página impressa, aciona a voz e o
próprio corpo como suportes sígnicos para a celebração do texto.

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31
Amarino Oliveira de Queiroz
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ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa
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Pedagogia do olhar: estratégias das adaptações e o cinema nacional na escola
_______________________________________________

Pedagogia do olhar: estratégias das


adaptações e o cinema nacional
na escola

Claudio Cledson NOVAES

Prof. do Departamento de Letras e Artes/DLA, da


Universidade Estadual de Feira de Santana/UEFS; Mestre
em Estudos Literários (UFBA), Doutor em Ciências da
Comunicação (ECA-USP), Pós-Doutorado na Escola de
Comunicação da UFRJ; Coordenador do Programa de Pós-
Graduação em Estudos Literários/PROGEL e do Núcleo de
Estudos em Literatura e Cinema/NELCI-UEFS.
Contato: ccnovaes.uefs@gmail.com

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Claudio Cledson Novaes
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Pedagogia do olhar: estratégias das adaptações e o cinema nacional na escola
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CINEMA E LINGUAGENS: A PRÁTICA PEDAGÓGICA E A


FORMAÇÃO DO OLHAR

A lei 13.006, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada


pela presidenta da república do Brasil, em 26 de junho de 2014,
acrescenta ao artigo 26 da Lei 9394, de 20 de Dezembro de 1996
– a Lei das Diretrizes de Base da Educação-LDB – no inciso 8º, a
seguinte redação: “a exibição de filmes de produção nacional
constituirá componente curricular complementar integrado à
proposta pedagógica da escola, sendo a sua exibição obrigatória
por, no mínimo, 2 (duas) horas mensais”.
Após a inclusão desse aditivo da LDB, houve várias indagações
sobre os dispositivos econômicos, sociais e culturais que a leitura
de filmes na escola pode impulsionar. Avaliando as discussões
nos meios de comunicação observamos pontos a refletir sobre o
tema, principalmente destacando o papel da linguagem cinema-
tográfica como potencial pedagógico. Algumas notícias veicula-
das destacam a possibilidade desta lei formar público para o ci-
nema brasileiro; outras abordam o potencial do filme na sala de
aula como estímulo para as discussões sobre temas nacionais de
maneira interdisciplinar; outras vozes são céticas quanto ao
avanço da recepção de filmes nacionais com a obrigatoriedade da
inclusão de obras no currículo escolar.
As questões apontadas na mídia por especialistas em cinema e
educação são muitas, mas não acrescentam muito sobre a ques-
tão do cinema na escola como ferramenta didática, para além do
que as pesquisas acadêmicas sobre este dispositivo didático-
pedagógico já trazem, ou mesmo ignoram as experiências do ci-
nema educativo desde o inicio do século XX, quando se discutia
institucionalmente o potencial imagético/sensitivo do cinema no
ensino formal. Uma discussão precursora sobre o cinema educa-
tivo está na obra de Canuto Mendes, que, segundo Maria Eneida

35
Claudio Cledson Novaes
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Fachini Saliba, nos anos 1920 inseriu no debate sobre o desen-


volvimento o papel do cinema para a educação dos jovens. Para a
pesquisadora:

De um ângulo mais geral, Canuto Mendes pensou a educação como um


elemento mediador do processo mais amplo de adaptação do indivíduo à
sociedade. Esta concepção de educação, como mediadora na adaptação
do indivíduo à sociedade pode ser melhor detalhada quando Canuto dis-
corria, no seu livro, sobre os efeitos morais do “cinema mercantil” sobre
as pessoas (2003, p. 109).

A obrigatoriedade do cinema na escola pela lei que foi aprova-


da recentemente não altera em si mesma a relação da sociedade
em geral e da comunidade escolar com a linguagem cinematográ-
fica. O Estado institui o mecanismo legal, que ampara os profes-
sores e professoras obstinados na prática pedagógica com o ci-
nema, mas a legitimação desta prática pedagógica mediante as
normas legislativas deve se dar por via, também, de discussões
teóricas e críticas, a partir dos conhecimentos acadêmicos gera-
dos sobre a problemática educacional no país.
Muitas vezes, a prática do cinema na escola é cerceada pela ri-
gidez da estrutura curricular ou impedida de se desenvolver por
falta absoluta de estruturas física, material e profissional ade-
quadas nas instituições escolares, a despeito da pedagogia do
olhar cinematográfico já ser prática antiga de professores que
estimulam a formação cinematográfica na escola, através de re-
des oficiais ou alternativas, articulando conhecimentos do imagi-
nário do cinema introduzidos nas práticas docentes inovadoras,
para que o procedimento seja além da exibição de filmes nas au-
las. Avaliando as práticas já existentes, fizemos algumas pergun-
tas e, ao mesmo tempo, propomos algumas respostas como al-
ternativa didática do cinema na escola: será que os legisladores
proponentes da lei, os gestores que deverão efetivá-la nas escolas
e os professores que deverão promovê-la como prática pedagógi-

36
Pedagogia do olhar: estratégias das adaptações e o cinema nacional na escola
_______________________________________________

ca obrigatória, todos eles, estão conscientes de que o cinema é


linguagem?
O cinema articula esteticamente o processo de comunicação e
expressão acionando no expectador percepções éticas sobre o
mundo, segundo cada estilo desta interlocução entre o filme e o
espectador. Como define Marcel Martin, “convertido em lingua-
gem graças a uma escrita própria que se encarna em cada reali-
zador sob a forma de um estilo, o cinema tornou-se por isso
mesmo um meio de comunicação, informação e propaganda, o
que não contradiz, absolutamente, sua qualidade de arte (2007,
p. 16). Portanto, tornar o cinema uma prática pedagógica não se
resume a apresentar conteúdos disciplinares através das ima-
gens-em-movimento, mas sim articular o conhecimento que
emerge da forma de se exprimir a realidade em linguagem cine-
matográfica, que é constituída de recursos audiovisuais no filme.
A linguagem no cinema tem particularidades que instituem
sentidos específicos e identidades audiovisuais alternativas das
coisas narradas. O leitor de cinema necessita decodificar meca-
nismos dessa linguagem, mesmo em se tratando de jovens em
formação inicial. Para tornar os estudantes parte ativa das práti-
cas de sessões obrigatórias de filmes na escola as exibições têm
de ser algo mais sistemático do que apenas proporcionar mo-
mentos de fluição do espetáculo fílmico.
A pedagogia do olhar articula a fluição do olho com a fruição
do olhar sobre o conhecimento de forma problematizadora na
escola, possibilitando a prática da leitura fílmica um momento
inclusivo de novas perspectivas formadoras, tornando a lei apro-
vada pelo Congresso mais do que simples instrumento instituci-
onal legalizador da mostra de filmes ilustrativos das disciplinas,
prática tradicional que ao invés de capacitar público para o cine-
ma nacional – como preveem os entusiastas da lei – torna as exi-
bições de filmes asseguradas pela legislação apenas um reforço
dos conceitos pré-estabelecidos sobre o cinema brasileiro, ini-

37
Claudio Cledson Novaes
_______________________________________________

bindo percepções sobre a diversidade cinematográfica dentro e


fora da indústria cultural hegemônica.
Se o cinema nacional sofrer leituras preconceituosas nas insti-
tuições escolares pode cair no mesmo dilema da leitura literária
sequestrada pela escola tradicional, que inclui as artes no currí-
culo apenas como uma discussão sobre os componentes exterio-
res das linguagens em forma de historiografias e biografias de
autores, sendo apenas um instrumento de ilustração de saberes e
não potência do conhecimento da literatura, das artes plásticas e,
agora, o que pode ocorrer com o cinema. Os métodos tradicionais
de leituras distanciam o estudante do texto, o que acontece com o
ensino da literatura e das demais linguagens das artes nas grades
escolares, pois a percepção dos sentidos da linguagem é inibida
na formação de leitores do mundo literário e artístico, por falta
de uma pedagogia olhar mais problematizadora das imagens e
imaginários pré-concebidos.
O “cinema pensa” e cria conceitos através de imagens visuais,
assim como a literatura o faz com imagens verbais. Portanto a
leitura deve partir do texto/filme e explorar as possibilidades de
ir além das simples palavras e imagens que emolduram ações,
para que o espectador/leitor possa desconstruir os significados
transmitidos de fora para dentro da obra e legitimados pelo po-
der do ambiente escolar. Como diz Julio Cabrera, “o cinema mu-
da a estrutura habitualmente aceita do saber, enquanto definido
apenas lógica ou intelectualmente” (2006, p. 21). O cinema co-
munica pela visibilidade da imagem-em-movimento, mas, ao
mesmo tempo, a imagem do simulacro nega o objetivismo da
visualidade, deslocando o logocentrismo realista fotográfico da
verdade mimética absoluta. A mesma imagem pode ter uma rela-
ção de similitude com o mundo por diferentes formas e estimular
a percepção de variações dos significados. Ítalo Calvino discute
essa paradoxal correspondência entre o mundo real e aos mun-

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Pedagogia do olhar: estratégias das adaptações e o cinema nacional na escola
_______________________________________________

dos representados nas artes, como na literatura e no cinema.


Segundo ele:

A fantasia do artista é um mundo de potencialidades que nenhuma obra


conseguirá transformar em ato; o mundo em que exercemos nossa expe-
riência de vida é um outro mundo, que corresponde a outras formas de
ordem e de desordem (...) poderíamos classificá-lo como indecidível,
como o paradoxo de um conjunto infinito que contivesse outros conjun-
tos infinitos (1993, p. 113).

O cinema remete o espectador ao processo objetivo do visual


da câmera, captando a imagem fotográfica real, mas, ao mesmo
tempo, o cenário visível quer convencer este mesmo espectador
de que a imagem é uma ilusão da realidade, simulada pela tecno-
logia e associada à arte audiovisual. A capacidade ilusória da
imagem cinematográfica é proporcional ao sentido de que a rea-
lidade do filme é construção pactuada pela ficção da montagem,
mesmo no filme documentário. O fenômeno ilusionista do real
na linguagem do cinema leva o espectador a uma interrupção do
fluxo exterior da imagem, para que ele se concentre também nos
mecanismos de construção mágica do mundo cinematográfico
que produz e reproduz o seu próprio imaginário, como se fosse
um mundo autônomo. Dessa forma, ao mesmo tempo em que o
cinema mostra o espaço de fora no seu tempo interior, o filme
ressignifica o signo exterior narrado nas imagens. O filme ensina
ao espectador/leitor que existe uma alteridade radical entre as
muitas realidades e verdades mostradas sobre o mesmo objeto-
signo. Só é possível entender o jogo ético e lúdico do cinema per-
cebendo a potência da linguagem visual que faz o tempo assumir
outra cronologia e o espaço ter outras dimensões de simulacros.
Como diz Jean-Claude Carrière, o filme fecha um ciclo de tempo
para abrir outros, e “uma hora e meia depois nós nos encontra-
mos no ponto de partida, que agora é o nosso destino” (2006, p.
112).

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Claudio Cledson Novaes
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Apreender o significado dos conteúdos produzidos pelo olhar


fílmico pressupõe que as exibições de filmes nas escolas sejam
amparadas por um treinamento do olhar. O espectador deve ser
estimulado a perceber as estratégias da linguagem audiovisual,
para compreender os sentidos das imagens projetadas no jogo de
dentro para fora e de fora para dentro da realidade, articulando
códigos da gramática audiovisual e mobilizando sentidos da/na
linguagem cinematográfica.
O objetivo central que nos interessa é discutir o potencial pe-
dagógico do cinema, indicando aos profissionais da educação
alguns caminhos teóricos e compromissos práticos para execução
da lei da exibição do filme nacional na escola. Considerando que
exibir filmes não pode ser apenas ilustração vazia e evasiva de
temas já abordados em outras disciplinas, vislumbramos que o
significado cinematográfico na formação do olhar contemporâ-
neo é fundamental para a cidadania em uma sociedade que se
alimenta material e simbolicamente por meio da comunicação
audiovisual.
A formação do olhar do espectador é a efetiva novidade que a
recente lei do filme na escola pode proporcionar. Se não for as-
sim, a prática obrigatória será mais uma repetição dos estragos
cognitivos que a instituição escolar tradicional produz nas suas
práticas pedagógicas das disciplinas do campo das artes e das
linguagens. É preciso instrumentalizar os docentes e os discentes
para o potencial lógico e as demandas reflexivas que as lingua-
gens requerem no processo formativo educacional.
O cinema como formador do olhar moderno e como lingua-
gem de massa é radicalmente desmistificador da aura do conhe-
cimento estético tradicional, sendo este viés discutido, desde os
anos 1930, em um dos primeiros textos filosóficos desveladores
do imaginário cinematográfico na sociedade de consumo, “A obra
de arte na era da reprodutibilidade técnica”. No texto em ques-
tão, Walter Benjamin anuncia o lugar do cinema na sensibilidade

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Pedagogia do olhar: estratégias das adaptações e o cinema nacional na escola
_______________________________________________

da sociedade moderna e discute como se constrói esta identidade


na comunicação audiovisual pautada na estética da tecnologia. A
pedagogia do olhar nos instrumentaliza para lermos os significa-
dos do imaginário cinematográfico e seu impacto no campo inte-
lectual e no cotidiano da modernidade. Para Benjamin:

pela primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi libe-


rada das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabi-
am unicamente ao olho. Como o olho apreender mais depressa do que a
mão desenha, o processo de reprodução das imagens experimentou tal
aceleração que começou a situar-se no mesmo nível que a palavra oral
(1993, p. 167).

O cinema-linguagem se distingue do espetáculo – entreteni-


mento, mas este último não é inconsequente, como parece super-
ficialmente analisado, pois pode apresentar danos cognitivos se
consumido na formação escolar sem a devida problematização do
seu imaginário. Os recursos estilísticos da gramática audiovisual
instigam atitudes de recepção e novas práticas pedagógicas de
assistência de filmes nas escolas. O ensino e a aprendizagem au-
diovisual devem exercitar ações que explorem os sentidos da vida
no mundo reproduzido pela imagem. A disciplinarização desta
prática por lei deve empreender a utilização do cinema na escola
sem privilegiar os filmes assistidos apenas como ilustrações de
conteúdos de outros campos disciplinares, mas sim identificar
neste conteúdo disciplinar um campo de estudo específico e es-
sencialmente transdisciplinar mobilizado pela linguagem fílmica.
Assistir filmes na escola pode ser uma prática interdisciplinar
importante, mas é essencial acionar a estética do olhar cinemato-
gráfico como problematizador dos significados apresentados nos
filmes, para potencializar o pensamento do/no cinema, através
de diálogos com a linguagem fílmica nas sessões escolares, esti-
mulando o pensamento racional e o emocional dos estudantes,
para além dos conteúdos pré-estabelecidos nas disciplinas. O
cinema possibilita a emergência de novos sentidos manifestados
41
Claudio Cledson Novaes
_______________________________________________

na forma da linguagem da comunicação cinematográfica, o que


pressupõe a leitura pelo viés da pedagogia do olhar, que, inclusi-
ve, permite ao professor praticar novos laboratórios de aprendi-
zagem, estimulando os alunos/espectadores a perceberem as
impressões dos simulacros imagéticos como formas dominantes
de comunicação no cotidiano contemporâneo, desmitificando
formas de conhecimentos compartimentalizadas em disciplinas,
para incluir no repertório da escola a liberdade da estética cine-
matográfica que parte de uma imagem visual chapada para uma
poética da imagem virtual.
Como afirma Rosália Duarte, o conhecimento sistematizado
recebe um novo tratamento quando a pedagogia se envolve com
novas práticas de ensino e recursos didáticos que desmistificam
as hierarquias entre os saberes. Segundo ela:

Apesar de mais sofisticados, do ponto de vista da atividade intelectual,


conhecimentos escolares e/ou acadêmicos não parecem ter um peso
maior do que os demais recursos utilizados na interpretação que faze-
mos de um filme quando estamos em contato com ele. Nesse momento
(e talvez somente nesse), a “magia” do cinema parece nos atingir a todos
de modo mais ou menos semelhante. (...) Tudo indica que os conheci-
mentos adquiridos pela escolarização atuam de modo mais significativo
em etapas posteriores do processo de significação, ou seja, quando dei-
xamos a sala de cinema (ou saímos de frente da tevê) e construímos nos-
sos discursos sobre o que vimos. (2002, p. 23)

TEORIAS DA ADAPTAÇÃO: UMA FERRAMENTA DA


PEDAGOGIA DO OLHAR NA ESCOLA

Como nos alerta Linda Hutcheon, o tema, os personagens e


outras unidades distintas de um referente adaptado são instru-
mentos importantes para leitura do mundo comparativamente,
pois são aferidas as correspondências entre os textos adaptados.
No entanto, para ela:

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Pedagogia do olhar: estratégias das adaptações e o cinema nacional na escola
_______________________________________________

se deixamos de considerar apenas a mídia dessa maneira e passamos a


investigar mudanças mais gerais na forma de apresentação de uma his-
tória, outras diferenças começam a aparecer no que é adaptado. Isso
acontece porque cada forma envolve um modo de engajamento distinto
por parte do público e do adaptador (2011, p. 35).

Considerando a condição acima como primordial no conceito


de adaptação, instrumentalizamos esta reflexão sobre como ado-
tar o cinema na prática escolar, a partir de análises dos parâme-
tros didáticos da nova lei que torna obrigatória a exibição de fil-
mes do cinema nacional na sala de aula do ensino básico.
O espaço disciplinar de “no mínimo duas horas mensais”, co-
mo prevê a lei, deve possibilitar um contraponto entre a media-
ção de temas de outras disciplinas através de filmes e a exibição
de filmes pelo caráter intrínseco de prazeres e de saberes que a
linguagem cinematográfica desperta por si mesma. Um dos me-
canismos mais importante para se pensar a potencialidade da
permuta de conhecimentos por meio do cinema é analisar o filme
de forma a fazer sobressair a sua capacidade de tradução e adap-
tação das várias informações e mensagens de outras disciplinas,
linguagens, ou mesmo, tomar o cinema como versão duplicada e
adaptada da realidade cotidiana. A escola pode produzir novas
leituras de mundo com a estratégia pedagógica do cinema, apro-
priando-se de mecanismos de sensibilidade mobilizados pelos
recursos das imagens cinematográficas, como a forma de recons-
tituir ideias convencionais sobre espaço e tempo; sobre a objeti-
vidade da imagem e subjetividade do imaginário; sobre a perma-
nência do concreto e a fluidez do dissoluto, tudo isto mobilizado
na mesma imagem visual cinematográfica; ou ainda, a pedagogia
do olhar estimular a percepção das convergências e divergências
entre as coisas reais e as suas simulações virtuais. Segundo De-
leuze:

A imagem-movimento tem duas faces, uma em relação ao objeto cuja


posição relativa ela faz variar, a outra em relação a um todo cuja mudan-

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Claudio Cledson Novaes
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ça absoluta ela exprime. As posições estão no espaço, mas o todo que


muda está no tempo. Se assimilarmos a imagem-movimento ao plano,
chamaremos de enquadramento à primeira face do plano, voltada para
os objetos, e de montagem a outra face, voltada para o todo. Daí uma
primeira tese: é a própria montagem que constitui o todo, e nos dá assim
a imagem do tempo. Ela é, portanto, o ato principal do cinema (2005, p.
48).

A conjunção mais fundamental do cinema com o pensamento


é saber como a reprodução dos objetos em sua totalidade na tela
é produto da montagem. Ou seja, da representação visual como
escrita. Portanto, a imagem fílmica registra mais o tempo da ação
narrativa do que a presença física do espaço mostrado na ima-
gem, o que é um contraponto fundamental, ante a lógica do ci-
nema de espetáculo que é fundamentado no movimento visual
sensitivo de uma ação no espaço. A definição do cinema por De-
leuze, como conjugação de tempo, é fundamental na pedagogia
do olhar, porque é neste sentido que o cinema se apropria do
olhar humano simulando o modo de ver do olho de uma forma
que não percebemos no olhar cotidiano. O olho é uma porta en-
treaberta do mundo externo para o nosso interior, mas essa
adaptação mecânica do objeto externo em uma sensação interna
do olhar pode ser mais ou menos limitada, a depender do grau de
formação e informação que se tenha sobre este objeto. A imagem
nos ilude de que estamos vendo a totalidade da coisa mostrada,
quando somente estamos enxergando os limites da sua constru-
ção visual limitada pela capacidade restrita do olhar humano em
captar no seu interior a complexidade do objeto exterior.
A imagem do cinema é a simulação mecânica da realidade, as-
sim como a imagem gerada pelo sistema do olho humano e inte-
grada aos mecanismos de montagem do cérebro. Mas a ação ci-
nematográfica é acrescida de novas circunstâncias pela tecnolo-
gia, que simula o movimento das imagens, contando com ajuda
da ilusão ótica proporcionada pelo olho humano diante da fuga-
cidade do tempo. A noção de tempo é fundamental nesta lógica
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Pedagogia do olhar: estratégias das adaptações e o cinema nacional na escola
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imaginária do cinema, pois é o sentido de temporalidade que


produz a sensação de realidade na reprodução e adaptação do
espaço fílmico simulado da natureza, traduzindo no olhar do ci-
nema a potência das limitações do olho humano sobre o movi-
mento do tempo. A reconstituição do simulacro temporal, como
forma do cinema adaptar na sua linguagem a fugacidade do
mundo é o processo fundador do olhar cinematográfico enquanto
instância semiótica.
Sem estes exercícios para pensar a adaptação e a simulação do
mundo no olho cinematográfico não é possível constituir uma
disciplina focada na pedagogia do olhar. Sem esta disciplina do
olhar, os objetivos da lei que obriga a exibição do cinema nacio-
nal na escola serão uma prática inócua, mesmo que o seu alvo
seja apenas familiarizar o público jovem com filmes do cinema
brasileiro. Sem serem incitados pedagogicamente a refletir sobre
os efeitos estéticos do filme, os jovens serão logo capturados pela
agenda do imaginário cinematográfico convencional, que disputa
o mercado de consumo com foco na promoção de uma memória
fílmica meramente espacial em que os movimentos das ações são
apenas simulacros ocos sem a memória do tempo. A informação
negada promove a formação de um leitor incompleto, para quem
os textos são quase sempre planos e chapados, sem profundida-
des, seja um filme, uma literatura, uma fotografia e quaisquer
outras obras de arte, pois o significado está também na forma de
adaptação da linguagem. O processo de adaptar o mundo é uma
operação estética do olho mecânico da câmera, que faz coincidir
e diferenciar os olhares sobre a realidade, tonando o filme único,
mas diverso nas interpretações. Isto reivindica da pedagogia do
olhar compreender a forma de simulação e adaptação dos espa-
ços externos ao olho na simulação da imagem-tempo no filme.
As teorias de cinema têm suas matrizes articuladas com outras
disciplinas, passando pelas ciências humanas, pelas artes plásti-
cas, pela literatura, pelas ciências biológicas e pelas exatas. O

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Claudio Cledson Novaes
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cinema não é usado somente para discutir adaptações de temas


de outras ciências, mas também como uma disciplina que institui
um sentido próprio de relacionamento com o mundo contempo-
râneo sendo, por si mesmo, uma percepção científica do mundo a
partir de mecanismos tecnológicos e de mobilizações sensórias e
cognitivas geradas nos espectadores, que passam a identificar os
objetos externos adaptados na interioridade do mundo virtual do
cinema. Este processo assume contemporaneamente a condição
de sistema de comunicação de valores objetivos e subjetivos da
realidade atual ancorada no audiovisual e traduz nos índices
imaginários os princípios de “verdades”, o que o cinema pode
demonstrar como uma ciência, pautando-se em seus métodos
semióticos. Como diz André Parente:

A análise de um conjunto de fenômenos físicos ditos caóticos dá lugar a


novos modelos de interpretação do real pelo virtual: autossimilaridade,
auto-organização, sistemas dinâmicos dissipativos. O que une as diver-
sas disciplinas que estudam os sistemas dinâmicos caóticos na matemá-
tica, na física ou na biologia é que, nelas, o mundo já não se divide em
grupos de diferentes objetos estantes, mas em grupos de diferentes inte-
rações, que se tornam mais e mais complexas quando se passa ao estudo
de sistemas abertos, os organismos vivos. Para quebrar de uma vez por
todas com o determinismo clássico e romper com a mecanologia ociden-
tal, para desatar o nó que retém o novo, a ciência contemporânea pensa
o virtual como condição de possibilidade de interações reais (2013, p.
195).

A perspectiva metodológica da suplementaridade no uso do


cinema como recurso pedagógico e da articulação da lógica virtu-
al do filme – não apenas da expressão narrativa de seu conteúdo
–, como nas demais disciplinas e linguagens, propõe articular os
campos disciplinares e problematizar os conceitos de adaptação e
de montagem. Tal ação possibilita fazer do cinema componente
curricular interdisciplinarmente constituído para problematizar
questões contemporâneas sobre a realidade desde as primeiras

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Pedagogia do olhar: estratégias das adaptações e o cinema nacional na escola
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experiências de leituras fílmicas nas escolas, como é o caso da


nova lei para exibição de filmes na escola básica.
Acionando dispositivos da pedagogia do olhar para a leitura
dos filmes, a lei do cinema na escola pode ser um processo didá-
tico valioso e inovador que contribuirá para a formação de espec-
tadores/leitores no ambiente escolar desde as séries básicas da
educação formal.

PARTE II

CINEMA NACIONAL: EXEMPLOS DA PEDAGOGIA DO


OLHAR NO SERTÃO EM MOVIMENTO

Nesta parte do artigo, propomos uma aproximação analítica


entre a “pedagogia do olhar” e a análise temática de filmes do
cinema nacional, como forma de demonstrar a formação de um
imaginário e a possibilidade de uma abordagem didática de al-
gumas imagens com o propósito de desmistificar a construção
imaginária de uma identidade no cinema.
No cinema nacional, a narrativa sertaneja aparece nas primei-
ras experiências de ficção e documentários sobre cangaço, nos
anos 1920. Mas é com o filme O cangaceiro (1953), de Lima Bar-
reto, com o roteiro escrito por Rachel de Queiroz, que temos o
primeiro sucesso internacional do cinema brasileiro.
A ação clássica das imagens maniqueístas encenadas num es-
paço imaginário social construído sobre o cangaço leva o filme à
premiação no festival de Cannes, definindo o modelo da indús-
tria cinematográfica global adaptada no Brasil pela Companhia
Vera Cruz, que segue os traços da linguagem hegemônica hol-
lywoodiana, adaptando aos temas locais. Esta obra é, ao mesmo
tempo, seguida e contestada pela intensa produção do cinema
nacional sobre o Nordeste entre os anos 1950 e 1960, período de
modernização do cinema brasileiro e o momento em que grande

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Claudio Cledson Novaes
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parte da produção de filmes é de adaptação literária, em diálogos


mais e menos instigantes entre cinema e literatura.

Um contraponto a O Cangaceiro é Vidas Secas (1963), de Nel-


son Pereira dos Santos para, em seguida, surgir os casos emble-
máticos, que vão marcar a virada da linguagem nacionalista de
vanguarda, como alternativa do cinema moderno ao modelo clás-
sico representado pelo filme de Lima Barreto. Um destes novos
modelos é o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) de
Glauber Rocha, que tem o olhar referenciado na tradição sertane-
ja, mas simultaneamente se desvia dessa tradição por um proces-
so antropofágico: Glauber dialoga antropofagicamente com a
obra de Euclides da Cunha – Os sertões –, assim como romances
de José Lins do Rego, Jorge Amado e Guimarães Rosa.
O filme de Glauber Rocha não é adaptação literária em senti-
do comum, mas sim um diálogo entre linguagens, fechando o
ciclo do cinema sertanejo nascido de um esquema clássico. Os
anos 60, auge das produções comerciais e também das obras de

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Pedagogia do olhar: estratégias das adaptações e o cinema nacional na escola
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vanguardas no cinema brasileiro, é fundamentado no imaginário


nacional-popular, adaptando da literatura e da política os temas
identitários locais redimensionando os projetos éticos e estéticos
de valorização do popular.

Filmes como os de Glauber Rocha tem a dimensão pedagógica


do olhar radical sobre a ideia de cultura brasileira, absorvendo
nas imagens em movimento as contradições politicas de uma
temporalidade engendrada pela memória colonial. Os paradoxos
deste colonialismo aparecem em imagens como a do personagem

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Claudio Cledson Novaes
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Corisco, em contraponto com as imagens de cangaceiro dos fil-


mes clássicos, como o de Lima Barreto. O mesmo personagem
nacional, ora é expressão de ambiguidades positivadoras de uma
transvaloração da cultura, ora é um produto negativo do mani-
queísmo cultural.

As imagens do sertão como emblema da nacionalidade no ci-


nema nacional contemporâneo também absorvem os modelos
históricos do cinema e incorpora a estas experiências novas for-
mas de linguagem. A experiência híbrida do filme Baile Perfu-
mado (1996), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, é produto de um
processo arqueológico das imagens nacionais sertanejas, trazen-
do ao imaginário cinematográfico contemporâneo registros ma-
teriais e simbólicos que traduzem a história do cangaço como
tempo passado, mas também como memória presente. Este filme
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Pedagogia do olhar: estratégias das adaptações e o cinema nacional na escola
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leva em consideração a ética da cultura política tradicional, bem


como elementos estéticos da arte nacional, estabelecendo con-
trapontos de imagens do acervo cinematográfico brasileiro, como
as cenas dos grupos de Lampião captadas por Benjamin Abraão,
nos anos 1930, que são ressignificadas no presente, assumindo
um formato cinematográfico em que a linguagem fílmica con-
temporânea torna a mística do rei do cangaço numa fusão de
cultura popular e manifestação pop nos primordes da era midiá-
tica. As imagens recuperadas do cangaceiro espelham persona-
gem construído em jornais, filmes e fotografias de época, o que
permite aos diretores estruturarem um tema do passado numa
verossimilhança estética com a performance contemporânea do
vídeo-clip.
Enfim, para concluir estes exemplos de como a pedagogia do
olhar é um complexo interdisciplinar que o cinema pode promo-
ver na escola, tomamos as imagens de um desenho animado, Boi
Aruá (1984), de Chico Liberato, para mostrar como a análise do
imaginário fílmico independe da sua forma, ou mesmo do seu
material de expressão para tornar o espectador um potencial
leitor de signos do real construídos na linguagem documental ou
ficcional.
No filme animado Boi Aruá, a aparente transparência da lin-
guagem realista do desenho torna-se opaca, devido à forma de
adaptação do imaginário cultural em narrativa que altera a lógica
linear da memória tradicional. A poética da oralidade no filme
gera disfunções na objetividade dos estereótipos sertanejos apre-
sentados nas imagens. O filme narra a trajetória épica do fazen-
deiro Tibúrcio em luta contra um misterioso boi, mas o percurso
épico assume o tom de provação dramática da soberbia do ho-
mem sertanejo. O boi desafiador é o “devir animal” dos fantas-
mas da memória cultural do sertão conservador e a narrativa
realista transborda o simbolismo deste imaginário para o espec-
tador através dos traços, cores e movimentos das ilustrações,

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Claudio Cledson Novaes
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principalmente quando o desafio do boi ao homem remete ao


enfrentamento interior de Tibúrcio contra a sua ostentação de
fazendeiro ancorado no tempo da memória do patriarcado oci-
dental.

Os desenhos de Chico Liberato captam a cultura do sertão em


traços que reconfiguram a aparente simplicidade das imagens
maniqueístas. As performances plásticas dos personagens huma-
nos e animais assumem as complexas metamorfoses de uma rea-
lidade fragmentada em cores e movimentos, simulando outras
camadas de leituras sobre os estereótipos da mitologia sertaneja.
No filme, os enunciados verbais são intensificados pelos silêncios
e ruídos que suplementam a língua articulada dos personagens.

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Pedagogia do olhar: estratégias das adaptações e o cinema nacional na escola
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A narrativa estrutura o enredo em falas captadas in locus em


conversas gravadas com os habitantes da região, dando o tom
documental ao desenho animado. As falas sintetizam uma ética
do sertão ao traduzir o devir humano do fazendeiro obcecado em
expressões do personagem papagaio, por exemplo, externando o
contraponto ao orgulho do fazendeiro: “êee! Deus primeiro, o boi
em segundo, fazendeiro por derradeiro!”. Assim como as másca-
ras, o preto velho e a beata traduzem a potência do devir animal
do fazendeiro em luta contra a natureza que ele afirma dominar:
“você não pega esse boi! Esse boi você não pega”.
As vozes destes personagens são sinais da luta interior do fa-
zendeiro, o que é mostrado no lema apresentado em grande pla-
no na sequência inicial do filme, que traz a personalidade de Ti-
búrcio estampada no seu retrato enquadrado na parede: “Eu por
primeiro os outros por derradeiro”.
Ao final da narrativa, após a destruição do emblema do mal e
a redenção do fazendeiro, o boi misterioso se metamorfoseia em
dócil bezerro branco e os personagens animais da fábula anunci-
am esta transformação: “Fazendeiro, fazendeiro: Deus em pri-
meiro, tu em segundo e o boi por derradeiro”, confirma o papa-
gaio. A imagem do fazendeiro redimida e mostrada no close do
novo lema no quadro afixado na parede: “Os amigos primeiro eu
por derradeiro”, o que inverte a ética de Tibúrcio, após ele vencer
o seu orgulho e convocar a comunidade de vaqueiros para a cap-
tura do Boi Aruá coletivamente. Os encorados aparecem numa
das mais belas cenas da memória poética da região, animando os
desenhos com aspectos memoriais das cruzadas e as encenações
de lutas épicas nos sertões. O filme Boi Aruá absorve este imagi-
nário tendo como diálogo o cancioneiro erudito e popular, mon-
tando estas imagens da sequência da cavalgada dos encourados
em contraponto com a poética da voz do cantador Elomar Figuei-
ra de Melo.

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Claudio Cledson Novaes
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Encerrando a jornada de provação do personagem, o filme


aciona uma pedagogia do olhar para o espectador do cinema se
tornar um leitor de si mesmo, em busca de imagens visuais e
mentais que estruturem autocríticas profundas em sua aprendi-
zagem no mundo, tendo o modo de vida sertanejo como alegoria.
Por tais exemplos, notamos que o papel fundamental da esco-
la é dar a opção de olhares autônomos sobre a realidade, medi-
ando aprendizagem de conteúdos de cada disciplina. Portanto o
cinema nacional na escola se insere nesta potencialidade institu-
cional do ensino-aprendizagem, já que a prática pedagógica não é
um momento para a diversão cinematográfica sem propósitos,
pois não há olhar inocente e sem compromissos, muito menos do
cinema. Os filmes podem ser assistidos como distração com as
ações, mas também tornar consciente uma captura inconsciente
que da indústria cultural sobre o expectador.
A potência da comunicação cinematográfica implica no com-
promisso intensificado pela objetividade da linguagem do audio-
visual, que mimetiza e substitui a dos indivíduos. Portanto, o
conteúdo aparentemente inocente de qualquer filme pode ser
problematizado como linguagem, senão a escola produz um efei-
to contrário ao seu papel: torna os estudantes prisioneiros do
olhar audiovisual, ao invés de torna-los cidadãos livres para con-
sumir quaisquer tipos de imaginários cinematográficos, sem ne-
cessariamente reproduzi-los – pois é sempre necessária atitude
crítica de transvaloração dos conhecimentos instituídos para nos
tornarmos, diante da captura emocional do olhar cinematográfi-
co, animais racionais e autônomos.

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Pedagogia do olhar: estratégias das adaptações e o cinema nacional na escola
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REFERÊNCIAS

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política. 6ª ed. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasi-
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CABRERA, Julio. O Cinema pensa – uma introdução à filosofia
através dos filmes. Trad. Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Rocco,
2006.
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Companhia das Letras, 1993.
CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Trad.
Fernando Albagli e Benjamin Albagli. Rio de Janeiro: Nova
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DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Trad. Eloisa de Araújo Ri-
beiro. São Paulo: Brasiliense, 2005.
DUARTE, Rosália. Cinema & educação. 2ª ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2002.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. André
Cechinel. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011.
LDB. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasil. Congresso
Nacional. Câmara dos Deputados. Lei nº 9.394, de 20 de de-
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MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Trad. Paulo
Neves. São Paulo: Brasiliense, 2007.
PARENTE, André (org). Cinema/Deleuze. São Paulo: Papirus,
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SALIBA, Maria Eneida Fachini. Cinema contra cinema – o ci-
nema educativo de Canuto Mendes (1922-1931). São Paulo:
Annablume, 2003.

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Claudio Cledson Novaes
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Hoc est enim corpus meum
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Hoc est enim corpus meum – a


leitura fílmica de Salò e a oferta
fascista sobre o sexo e os corpos no
tempo presente

Francisco Vítor Macêdo PEREIRA

Professor do Mestrado Interdisciplinar em Humanidades,


do Instituto de Humanidades e Letras da Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira /
UNILAB. E-mail: vitor@unilab.edu.br

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Francisco Vítor Macêdo Pereira
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Hoc est enim corpus meum
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INTRODUÇÃO

No segundo semestre de 1975, o artista e intelectual corsário


Pier Paolo Pasolini (1922-1975) desferiu, por meio de artigos e de
ensaios em inúmeros veículos da imprensa italiana, críticas per-
tinazes ao ressurgido fascismo na Itália – recidivo, então, em um
crescente elitismo, em um aburguesamento grotesco e inconside-
rado do povo italiano (em geral) e tornado evidente no indiferen-
tismo, no egoísmo e na xenofobia sem pares da nova classe média
(de maneira como antes jamais vista, aos olhos do poeta e cine-
asta corsário).
Tratava-se, ali, de uma insofreável tendência sinistra, hodier-
namente plena, arquitetada ex tunc por grupos ligados a Berlus-
coni1 e ao seu ascendente discurso de um capitalismo progressis-
ta (de exaltação ao gozo imediato, de exortação ao consumo e de
menosprezo aos valores antigos). À evidência disso converge
mais um aspecto que comprova a realidade da apreensão pre-
monitória – a qual, desde antes (do começo da década de sessen-
ta), teve Pasolini acerca daquela novíssima Itália e de seu povo

1Silvio Berlusconi (1936-) é um bilionário empresário e político neoliberal itali-


ano. Foi presidente do Conselho de Ministros (primeiro-ministro)
da Itália entre 1994 e 1995, de 2001 a 2005, entre 2005 e 2006 e de 2008 a
2011. É o acionista controlador do grupo Mediaset (RAI, Cinq, La Reppublica,
L’Espresso, entre outros) e proprietário do clube de futebol italiano A. C. Milan.
Considerado até o fim dos anos 2000 o 15º homem mais rico do mundo, ocu-
pou o cargo de primeiro-ministro durante nove anos no total, sendo o que por
mais tempo (somado) permaneceu no cargo desde o pós-guerra, e o terceiro
com mais tempo desde a unificação da Itália, atrás apenas de Giovanni Giolitti e
de Benito Mussolini, de cujo projeto de uma Italia forte ele já se declarou publi-
camente um admirador, em diversas ocasiões. Ainda hoje, mesmo com quase
oitenta anos, Silvio Berlusconi se mantém como líder do partido político Popolo
della libertà (PdL), de centro-direita, que ele mesmo fundou em 2009, como
sucessor do Forza Italia – que ele mesmo anteriormente também liderou, até
1993 (Cf. http://educacao.uol.com.br/biografias/silvio-berlusconi.htm. Acesso
em 12 Set. 2015).

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Francisco Vítor Macêdo Pereira
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horrendos (já sem alma) então surgentes (Cf. PASOLINI, 1972, p.


273). Um povo e a sua terra (antes, de imensa diversidade) então
pervertidos numa unificada caricatura horrível: republicana,
democrática, de direitos e de liberdades a mais... unanimemente
tributários às formas do consumo e do egoísmo sem precedentes.
Naquele mesmo ano de 1975, em novembro, Pasolini fora es-
tupidamente assassinado por um daqueles que parecia um sujei-
to diagnosticado por sua crítica (de repúdio ao presente bur-
guês): um jovem que, no entanto, igualmente pode ser visto co-
mo que saído dos seus sonhos, ou como mais uma das persona-
gens marginais de seus romances – àquela altura, já plenamente
real e perdidamente degeneradas. De fato, mais uma personagem
que entraria para o rol dos culpados da Justiça Italiana, apenas
como um garoto de programa que matou mais um homossexual
(uma figura tão êxule quanto à do próprio Pasolini). Entretanto,
para além dos assentamentos penais, Giuseppe Pelosi entraria
definitivamente também para a história. Ganharia fama e noto-
riedade, como aquele que assassinara Pasolini – o réprobo inte-
lectual, o cineasta do escândalo homossexual.
Um pouco antes do evento (eventual?) de sua morte, Pasolini
terminara de filmar a sua obra mais radical – testamento e aviso,
conquanto não tenha tido tempo de assistir o seu lançamento:
Salò, ou os 120 dias de Sodoma (1975). Filme o qual supera
qualquer realização cinematográfica que já tivesse sido feita an-
tes pelo corsário – em termos de transgressão estética e moral,
exponencialmente perturbador e violento. Baseado na obra Les
120 Journées de Sodome, ou L’École de Libertinage (1785), do
Marquês de Sade (1740-1814), Salò (1975) – como ficção – retra-
ta nas lentes de Pasolini os vícios, os crimes e os excessos do po-
der de um coeso e poderoso grupo de quatro comandantes sobe-
ranos, daquela que seria a Itália fascista, então aquartelados na
pequena república de Saló (historicamente, o último reduto de
Mussolini).

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Hoc est enim corpus meum
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No imaginário de Pasolini sobre esse fictício episódio da guer-


ra, quatro pervertidos fascistas detêm o poder total sobre um
grupo de prisioneiros jovens e atraentes, de ambos os sexos, e os
submetem a uma série de rituais e de abusos sexuais, de torturas
corporais e psicológicas, bem como a humilhações de toda or-
dem. Essas torturas e humilhações abomináveis (todos os tipos
de atrocidades imagináveis são cometidos, sem qualquer censu-
ra, contra os belos e acanhados jovens) são apresentadas por Pa-
solini em sequências friamente formais, as quais são inquietado-
ra e curiosamente destituídas de qualquer tensão erótica, a des-
peito da reunião e da disposição em cena dos belíssimos corpos
de ninfas e de efebos inteiramente desnudados. Todas essas se-
quências de ultrajes produzem, antes – e inequivocamente –,
aversão e repulsa ao invés de excitação. Trata-se, pois, de um
verdadeiro pesadelo (ou realidade crua?2).
As presas, por sua feita, são basicamente corpos-vítima (ou
corpos-massa) a serem mera e brutalmente aprisionados, abusa-
dos, penetrados, seviciados, torturados e assassinados. Alguns
têm os seus nomes registrados e anunciados pelos senhores, mas
exclusivamente na condição de comporem a lista dos que estão
destinados ao suplício final. Trata-se, pois, de uma identificação
de exceção, não de promoção tampouco de inclusão.
A pretexto disso, a intenção ético-estética de Pasolini foi a de,
em Salò (1975), transformar a representação sadiana do abuso e
da corrupção sem limites – do poder levado à mais radical de-
gradação em seu tempo – em uma metáfora do próprio fascismo
(e também do neofascismo, tal como fascismo ressurgido com

2 Um verdadeiro massacre e abusos de toda a sorte haveriam realmente aconte-


cido durante aquela que há de ter sido a maior matança de civis ocorrida duran-
te a Segunda Guerra em território italiano (sob a tutela do exército alemão):
entre 1942 e 1943, nas proximidades de Marzabotto, mais de setecentos e seten-
ta civis italianos, supostamente liderados pela resistência juvenil da Stella ros-
sa, foram assassinados pelas forças da Waffen-SS (a mesma divisão do exército
alemão que, um pouco mais ao norte, resguardava a ridícula republiqueta mus-
soliniana de Salò) (Cf. PASOLINI, 1976, p.125).
61
Francisco Vítor Macêdo Pereira
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força total no presente). Como ideologia e como inspiração sinis-


tras, Pasolini sugere-nos todo esse fascismo e toda essa insensi-
bilidade a invariavelmente rescenderem da disposição de todo
aquele que adora o poder como um fim em si mesmo. Trata-se
de uma leitura, portanto, a qual fundamentalmente não destoa
daquilo que preceituara o próprio Sade, cento e noventa anos
antes, a propósito da corrupção dos modos e dos comportamen-
tos setecentistas de vida do clero e da nobreza (Cf. SADE, 1785).
Salò, o le centoventi giornate di Sodoma (1975) atualiza, pois
– mais do que qualquer outra obra –, a recusa pasoliniana em
face da destruição ontológica da vida. Na verdade, essa leitura
cinematográfica da novela de Sade é concebida como a grande
representação sem licenças, ou como a metáfora mais macabra
do atual poder sem limites (ou sem mais nenhuma necessidade
de cúmplices...) que a tudo e a todos destrói. O corsário, portan-
to, nada mais denunciou nesse filme do que a inegável deteriora-
ção burguesa da individualidade em seu tempo (individualismo,
egoísmo e indiferentismo extremados). Uma destruição levada a
efeito pela integração fascista dos poderes às mais ínfimas von-
tades cotidianas, conforme as mais estúpidas feições de modula-
ção da vida ao consumo e ao hedonismo presentes. Poderes os
quais Pasolini tanto odiava, por reduzirem à mera condição de
coisa os corpos e a arrogantes imposturas os desejos de homens
e de mulheres.
Os mecanismos de uniformização (neo)fascista desses corpos-
massa – então repaginados (integrados e instrumentalizados)
pelas novíssimas ações do corpo-poder – destruíram, de fato,
todas as individualidades, e coisificaram, além de seus corpos, os
seus valores, os seus desejos e os seus pensamentos: seja como
máquina de trabalho, seja como máquina erótica – a negar-lhes
toda a individuação, toda a expressividade e toda a afetividade.
Uma máquina determinada, pois, apenas pelo desejo ciclópico de
consumir (e de, reversamente, ser consumida).

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Hoc est enim corpus meum
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Ainda sob esse aspecto, Salò (1975), realização livremente


inspirada na novela de Sade, expressa igualmente a representa-
ção absurda do sexo consumista. No curso do mesmo, a vida apa-
rece para os quatro poderosos senhores burgueses unicamente
como prazer criminoso e como êxtase sexual de poder: que se
manifesta para eles nas formas de embrutecimento e de homizia-
ção da juventude e da beleza. Como maníacos, esses donos do
poder conduzem as suas torpezas porno-extorsivas, a culmina-
rem no suplício de quase todos os jovens – os quais foram por
eles escravizados. O sexo se exprime, então, de forma ultrajante e
humilhante: como obrigação, agressividade e reificação – um
ato no qual não habita (em que não pode persistir de forma al-
guma) nenhum tipo de afetividade; e que se objetiva apenas co-
mo puro delíquio mecânico, como mera instrumentalização a
serviço da destruição.
É igualmente nesse sentido que a corrupção e a criminalização
do ato sodomítico simbolizam, tanto para Pasolini quanto para
Sade, toda a hediondez imputada aos corpos pelos regimes de
exceção. Recai sobre a usurpação do gesto do sodomita todo o
símbolo da monstruosidade actancial, uma vez que – no vitupé-
rio desse gesto (sodomítico) – resume-se o aspecto horrendo com
o qual se desenvolvem as relações afetivas e sexuais entre os su-
jeitos: como posse violenta e inconsiderada, não como reconhe-
cimento respeitoso e prazeroso de liberdade.
Para além da metáfora da relação sexual – dessa relação sexu-
al tornada compulsória e horrenda (com a qual a tolerância e a
incitação do poder consumista têm, de fato, nos encilhado duran-
te as últimas décadas) –, Pasolini cinematograficamente sugere
que todo o sexo que existe em Salò (1975) representa, também, a
alegorização das expropriações impostas a todos aqueles torna-
dos submissos (alienados e prostituídos ao hedonismo e ao con-
sumismo neocapitalistas). Tem-se em Salò (1975), então, o hor-
ror como hipérbole, em superlativo à irrealidade dessa realidade

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Francisco Vítor Macêdo Pereira
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(que é imantada pela imposição e pela superexposição sexual).


Uma desrealização que se dá em Salò (1975) com a subtração
odiosa e mortal, dos jovens corpos e de sua beleza, ao sexo-morte
(de Eros a Tânatos).
Em uma espécie de dissociação esquizoide – entre beleza e
presença da juventude que é sequestrada –, os poderes burgue-
ses atuam de modo circunstancial e ominoso sobre o sexo, os
corpos e as vontades dos sujeitos. Fazem atravessar, justamente
nessa ação – de oblíqua a obsessiva –, diversos métodos e infini-
tos rituais de manias: os quais, paradoxalmente, regozijam e
exorcizam (de todas as suas culpas) a empoderados e a desespe-
rados.
São métodos e rituais os quais, em reverso à necessidade das
condenações e dos suplícios, redimem os senhores – licenciados
– de todos os seus erros (que os imputem em faltas), ao mesmo
tempo em que promovem o necessário sacrifício de suas vítimas
– atuadas – por todos os seus erros imagináveis. Dos arrasta-
mentos, que imputem a todos em faltas, às espurcícias, que lhes
sobrevenham ao delíquio do vazio e do absurdo de suas vidas,
assaltam-se uns sobre os outros (senhores e condenados) baixo a
ordem dos poderes. Nessa conta, a juventude, a parte mais frá-
gil (sem culpa e inocente), tem de morrer – uma vez que, ferre-
toada por sua beleza, facilmente tem excluída (por intermédio da
exposição de sua presença) qualquer expressão autêntica e cons-
ciente, a qual se distinga das injunções dos poderes sobre os seus
corpos.
A subtração dos corpos da juventude e a injunção sobre a sua
beleza se verificam tanto no cenário sadiano, quanto na adapta-
ção fílmica de Pasolini, em que poder é onipresença e incitamen-
to – a não gerar, de modo algum, exclusão (nem por repressão,
nem por opressão), mas morticínio generalizado: como conces-
são da vida aos que se veem condenados a querer viver um pou-
co mais.

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Hoc est enim corpus meum
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Salò (1975) é, por isso, a metáfora do poder totalmente des-


truidor (tecnicamente mortífero, porque detentor de toda a vida
que se admite querer). A morte assume ali o lugar determinante,
como metonímia do tema sadiano do massacre de todas as pai-
xões. A aura maníaca do filme representa, ademais, o colapso da
cultura3 – além do da sexualidade, dos sentimentos e dos afetos
–, no que guarda correspondência com a novela em que Sade
esgarça a podridão e a insensibilidade sem freios dos nobres e do
clero franceses do século XVIII. Ambas as obras retratam, por
certo, a prostração de todo o ideal de solidariedade e, por fim,
igualmente de todo o liame ou culminância de sentimentos.
O aspecto absolutamente integrado e destruidor do novo po-
der, tão criticado por Pasolini, é representado, então – em sua
adaptação da obra de Sade –, na associação entre sexo e morte.
Na visão do corsário, para a sua plena realização, esse novo po-
der (unificação dos efeitos e dos dispositivos de todos os pode-
res) captura e aliena os corpos de suas vítimas, destitui-lhes de
toda e qualquer sensibilidade e transforma-os – quando não em
cadáveres – em títeres obliterados de sua própria inocência e
sexualidade. Trata-se, pois, de uma nova supressão homicida, a
qual banalmente se utiliza dos corpos de vítimas jovens como
mero instrumento de um prazer infernal – a anunciadamente
humilhá-las e torturá-las (aos seus corpos e ao seu sexo) até a
morte.
Pelo que se expõe, Salò (1975), expressão artística da vingança
do último Pasolini – em radical oposição ao status quo do pre-
sente –, certamente obteve previsíveis e muitíssimas críticas ne-

3 Pasolini considera o mundo da cultura no presente como sendo o lugar da


estupidez, da vileza, da mesquinhez e do egoísmo. Ele não pode aceitar nada do
mundo novo em que vive: nem os seus aparatos institucionais – a exemplo da
magistratura, da escola, do exército (que se unificam) –, tampouco as suas
novidades tecnológicas e as suas minorias cultas e intelectualizadas. Muito
menos apetecíveis, no entanto, lhe parecem as mídias e o seu infoentretenimen-
to idiotizante – todos, segundo ele, diletantemente fascistas (Cf. PASOLINI,
1974a, p.72-73).
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Francisco Vítor Macêdo Pereira
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gativas, as quais o autor não teve a chance de responder. Com


relação ao roteiro, o filme reproduz – conforme já evidenciamos
– o esquema geral da novela do Marquês de Sade, Les 120
journées de Sodome ou L’École du libertinage (1785), baseada –
por seu turno – na repetição infinita do número quatro.
Como obra cinematográfica de ficção, e de esquema intertex-
tual advindo da novela de Sade, Salò (1975) retrata aqueles que
teriam sido os pósteros dias da república de Salò: o reduto da
última polêmica de Mussolini (também conforme já o dissemos).
Acrescentece-se que, muito embora a narrativa fílmica seja algo
diversa do livro do Marquês, ainda assim, nela se conserva – sob
muitos aspectos – a presença do despudor sadiano, notadamente
na retratação pasoliniana do horror.
Vale ressaltar que, à época do século XVIII, a pretensão de
Sade era a de – em boa parte – exercer uma ferrenha crítica polí-
tica aos abusos dos poderes de então. Em vista disso, nesse seu
romance – em encontro à adaptação de Pasolini –, o autor fran-
cês satirizou e fulminou totalmente as instituições ora dominan-
tes: notadamente a Igreja Católica e o Poder Jurisdicional.
Sob um aspecto próximo, posto que tenha relacionado Sodo-
ma-Salò diretamente ao horror da realidade italiana da década
de 1970 (e não exatamente ao do término da Segunda Guerra),
Pasolini também se posicionou fervorosamente – ao seu modo –
de maneira anticlerical e antipolítica. Contrariamente à deturpa-
ção politológica, elitista e economicista de todos os poderes da
democracia italiana do pós-guerra, o corsário apresenta-nos em
Salò (1975) a sua crítica mais severa aos modos e aos comporta-
mentos de vida burgueses: inconsideradamente transformados
em consumismo e em hedonismo, além de ontologicamente des-
truídos – em si.
Portanto, vemos nessa mescla – do ambiente sádico com o
término da Segunda Grande Guerra – uma autêntica alegoria
pasoliniana da morte, elaborada para narrar precipuamente o

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Hoc est enim corpus meum
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horror actante da política e das distinções dos poderes burgue-


ses no tempo presente (da década de 1970).
Salò, o le centoventi giornate di Sodoma (1975) levanta-se –
em meio a tudo isso – como narrativa de provisões e de excessos
(estes resultam necessariamente das primeiras). É que, na repre-
sentação dessa imantação dispensadora e asfixiante dos poderes,
Pasolini – diretamente inspirado em Sade – retrata justamente o
solapamento de todas as instituições pelo mal incontinenti dos
excessos (burgueses e fascistas).
Para o corsário, todo o racismo, todo o ódio, toda a indiferen-
ça e todo o hedonismo do presente não resultam senão da fulgu-
ração do excessivo, da expansão ilimitada do consumo e do inci-
tamento à falsa tolerância. A sociedade pós-histórica da prolife-
ração vertiginosa das sensações (em simulacros de paixões e em
ilusões de sentimentos) de fato aprovisiona os sujeitos todos com
a sua sanha de um consumismo sem fim, com o seu afã ultrajan-
te em destruir todas as experiências populares, com o seu des-
prezo estúpido por tudo o que é arcaico e, enfim, com a sua pro-
crastinação absolutamente insensível da vida real.
Nessa leitura de Pasolini – acerca da obra sadiana – pode-se,
então, flagrar o homem: ver-se o humano degenerado em suas
melhores potências, extenuado em seus excessos e alienado a
uma vida piedosamente esvaziada de valores e de sentidos –
para além do horror e do grotesco, para além de todo o apelo
ineludivelmente humilhante. O mesmo apelo terrível diante do
qual/com o qual a obra singular do Marquês outrora insana-
mente se despira/ livremente se revestira.
Nela – na última obra de Pasolini (na última hora do seu so-
nho de morte) – vê-se o humano no extremo da dor de si mes-
mo: exulado lá onde não podem mais se aproximar os olhares da
racionalidade, largado além de onde fossilam as infinitas poten-
cialidades (então aprisionadas como poderes e como posses tota-
lizantes). É tanto desse modo que, talvez só com o Marquês

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Francisco Vítor Macêdo Pereira
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(quem sabe?), Pasolini poderia mesmo ter avaliado (sem subter-


fúgios) o horror a que nos arremete o aburguesamento de nossos
modos e de nossos comportamentos de vida: dissonantes do
inaudito deste humano e insensíveis ao paroxismo de suas rela-
ções (mantidas, no presente, com os seus pares e com os seus
ímpares – e também com todos estes e com todos aqueles ou-
tros, que lhes sirvam como ouro e como despojo).

SALÒ E SODOMA: PASOLINI, PRÓXIMO DE SADE

Pasolini aproxima-se da obra do Marquês, para a produção de


seu Salò (1975), com estes olhos: firmemente não amedrontados
frente à inefável capacidade dos poderes de (na sombra generali-
zada do intelecto e da moral, sob o signo do desenvolvimento
econômico e do progresso e baixo a concessão dos direitos a
mais) praticarem todo o horror necessário como pragmática da
mais nefasta política de produção da vida em destinação à mor-
te.
Com efeito, a volúpia dos senhores burgueses de Salò – metá-
fora do mundo e de seu consumo – não capitula ante o prazer de
consumir até mesmo a sua descendência. E diante desse horror,
é possível que se infira que – talvez com Sade – Pasolini tenha
pretendido que os sujeitos do presente (horrorizados) igualmente
pudessem se encarar mais de perto: sem terror, nem escândalo
forjado – e até sorrir, ante as extravagâncias e ante o impossível
do que avaliam do humano.
Tudo isso, presumido o fato de que o cineasta das cinzas pro-
vavelmente tivesse plena consciência de que estes homens do
presente não poderiam se reconhecer – em nenhuma hipótese –
a envergarem a condição de verdadeiras vítimas desse enredo.
Ao contrário, de modo nem tão absurdo, figurariam alguns em
perfídia: ante o que eles mesmos fariam, caso lhes fosse tocada a
outorga de desmesurado poder.

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Hoc est enim corpus meum
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No que concerne especificamente à narrativa fílmica, os even-


tos de Salò, o le centoventi giornate di Sodoma (1975) desenro-
lam-se em uma republiqueta setentrional da Itália que, como já
dissemos, realmente existiu – apesar de ter durado pouquíssimo
tempo (durante a segunda metade do ano de 1943), sob a prote-
ção de uma das divisões da Waffen-SS (tropa de elite do nazi-
fascismo alemão). Foi de fato em Salò onde Mussolini estabele-
ceu a sua última base de resistência (já no período que se anunci-
ava como o final da Segunda Guerra Mundial).
Ocorre que Pasolini tinha realmente – mais de trinta anos an-
tes – se visto envolvido em eventos que o remeteram a Salò, e o
seu irmão Guido (militante da resistência ao fascismo) teria sido
morto ali. A execução de um adolescente subversivo no filme,
antes que fosse levado ao inferno do castelo (pouco depois da
localidade de Marzabotto), seria uma alusão de Pasolini à morte
do irmão Guido.
A remissão a Salò e ao seu fascismo político não consiste, en-
tretanto, no argumento propriamente dito do filme; muito me-
nos é pretendida uma reconstituição histórica do fim da Segunda
Guerra na Itália. A obra – insistimos – é ficcional, declaradamen-
te inspirada na novela do Marquês de Sade (1785), e expressa,
para Pasolini (na conjunção crítica que ele elabora entre sadismo
e fascismo), a sua leitura – no presente de 1975 – a respeito da
expropriação e da redução dos corpos (sobretudo dos da nova
juventude) à condição de coisa, conforme também já nos repor-
tamos.
O propósito corsário é, além desse, o de expressar a relativi-
zação dos diversos tipos de violências racistas e fascistas (físicas
e simbólicas) no novíssimo ambiente de tecnologia, de democra-
cia e de consumo do tempo presente: sob o espectro dos direitos
modernos e junto à realização histórico-cultural do genocídio
burguês – a que Marx já predissera em seu Manifesto Comunista
(havia quase cento e trinta anos). Um genocídio que viria a se

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Francisco Vítor Macêdo Pereira
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desdobrar justamente nesse tempo presente (de aburguesamento


e de consumismo avassaladores), conforme também havia anun-
ciado o próprio Pasolini, desde a década de 1960.
Ao haver reinterpretado Sade, reproduzindo em seu filme –
nos três últimos círculos infernais – os mesmos tipos de violên-
cias ritualizadas que o Marquês retratara em sua novela, Pasolini
talvez pretendesse explicitar, naquele contexto, as circunstâncias
históricas nas quais se agudizavam as crescentes relações de in-
tegração e de mimetismo cultural, de decadência dos sentimen-
tos ínsitos à vida e de fascismo recorrente para o consumo: a
caracterizarem então a mutação antropológica sofrida pelo povo
italiano (desde o Pós-Guerra até o presente de democracia, de
tecnologia e de desenvolvimento da década de 1970).
As antinomias inocência/corrupção, liberdade/captação e
poder/impotência, retratadas na obra, representam dicotomias
ontológicas produzidas e geridas pelo aburguesamento incontro-
verso do presente – as quais incorporam as três temáticas domi-
nantes, correspondentes aos três últimos círculos da obra: o pra-
zer aviltado (as manias), a ordem do consumo (a merda) e a dis-
solução indiferente da vida (o extermínio).
Conforme dizíamos logo acima, em relação ao roteiro, Salò
(1975) estrutura-se em um total de quatro partes, em esquema
similar ao da Divina commedia (1304–1321), de Dante Alighieri
(1265-1321): contendo, além dos três círculos (infernais) de Sade,
um prólogo (ante inferno). Trata-se a presença do intertexto dan-
tesco de um aporte teórico-estético o qual reforça, na obra de
Pasolini, o seu verdadeiro caráter meta-histórico e ficcional.
Na realidade, o recurso alegórico ao ante inferno dantesco já
estava presente desde a obra de Sade (como crítica preliminar ao
absolutismo régio e ao terror), e para Pasolini representava (na
adaptação do tema libertino-sadiano, em Salò, 1975) a sua repul-
são à ditadura consumista do capitalismo maduro e ao fantoche
do novo estado democrático: de integração neofascista de todos

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Hoc est enim corpus meum
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os poderes, em substituição ao anterior regime nominalmente


fascista (totalitário e centralizado).
No primeiro momento, do ante inferno, quatro distintos se-
nhores pervertidos (detentores de todos os poderes) – um Magis-
trado (representante do poder jurisdicional), um Duque (repre-
sentante do poder nobiliário e político), um Monsenhor (coman-
dante do poder eclesiástico) e um Presidente (controlador do
poder econômico-financeiro) – lavram um contrato de sangue
para as suas práticas (a seu ver, anárquicas). As quais serão, em
seguida, executadas – em uma espécie de palácio ou castelo (in-
ferno) destinado à realização das torturas e das orgias.
Para a execução desse mister, os senhores põem asseclas – por
todo o país – à caça de belos e saudáveis adolescentes, de ambos
os sexos; dos quais, depois de tornados todos prisioneiros, alguns
poucos deveriam ser segregados (apenas dezesseis – oito meni-
nos e oito meninas –, após uma ainda mais rigorosa seleção). Os
quatro senhores casam então as suas quatro filhas entre si, e se
reúnem – ato contínuo – a quatro luxuriosas cafetinas (ex-
prostitutas de vulto, incluídas uma de origem francesa e a mais
terrível de origem teuta). Reúne-se, ademais (como acólitos e
amantes dos senhores), um séquito de dezesseis terríveis – posto
que vistosíssimos e viris – capatazes.
Ao ser inaugurada a entrada do inferno (castelo), é feita a lei-
tura de um regulamento severo, o qual é apresentado como dis-
ciplina aos jovens prisioneiros desses poderosos. Esse regula-
mento proíbe – acima de tudo – a demonstração de qualquer
virtude ou ato de fé, além de vedar expressamente qualquer rela-
ção sentimental, ademais de qualquer prática sexual carinhosa e
espontânea (sobretudo entre os sexos diferentes). A perversão, o
ódio e o insulto seriam as únicas expressões admitidas dali então.
Desse regulamento ninguém haveria de escapar, nem mesmo
os senhores, e a sua transgressão seria punida com a morte –
sem apelação. Essa nova lei facultava a estes quatro senhores

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Francisco Vítor Macêdo Pereira
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disporem da vida de todos ali, em qualquer momento e de qual-


quer modo que as suas paixões exigissem – devendo os corpos,
no entanto, serem preservados até a orgia final (círculo do san-
gue: das torturas e do extermínio).
Cada círculo que segue confere o protagonismo da iniciação às
suas manias e aos seus rituais a uma das distintas meretrizes
narradoras, cada qual acompanhada – em seu turno – por uma
senhora ao piano. As narradoras cafetinas expõem aos ouvintes
as perversidades mais absurdas – vivenciadas e testemunhadas
por elas mesmas, no decorrer de suas vidas de perversões liber-
tinas: com a finalidade de excitarem, ao máximo, os senhores e
de iniciarem e acostumarem os adolescentes à lubricidade e à
paixão de suas devassidões sexuais. Portanto, as narradoras têm
o papel de transmitir o seu saber degenerado aos jovens escravi-
zados, de prender – com a imantação de acicatada pornografia –
o pensamento e os desejos dos que as ouvem (sirenas do novo
capitalismo).
A sua linguagem pornográfica e cativa (comparável e tão rui-
nosamente incitante quanto os seus próprios atos lúbricos) deve-
ria proporcionar a percepção e o reconhecimento consciente das
situações orgásticas, as quais os adolescentes seriam obrigados a
reproduzir em seguida (ainda que expusessem por elas reações
de asco e de medo). Conforme categorização formulada por Pas-
sannanti (2008, p.62), em comento à obra de Pasolini, a paralisia
emotiva, a afasia ou o mutismo, as náuseas e o vômito são os úni-
cos sintomas não verbais (possíveis) como resiliência daqueles
corpos-vítima. Todavia, na eminência do massacre, esses sinto-
mas se verificam como resistência inútil – daqueles escravizados
às vexações sequazes do corpo-poder. O fato é que tais reações
servem a condimentar ainda mais a devassidão e a crueldade dos
fascistas – senhores do poder sem travas.

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Hoc est enim corpus meum
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O CÍRCULO DAS MANIAS

O primeiro dos círculos é denominado de círculo das manias


– girone delle manie –, e tem à frente a senhora Vaccari, que
causa nos quatro poderes uma grande agitação com os seus rela-
tos. Eles exigem dela, acerca do que é narrado, extrema riqueza
de detalhes: a fim de que lhes seja inspirada a prática das mais
variadas formas de perversão sobre os jovens cativos. Incitados,
senão açulados, pelas mais cruentas histórias, os senhores se
põem a organizar os seus jogos: obrigando os jovens a comerem
de quatro, a estarem nus, a latirem e mesmo a se alimentarem do
que lhes fosse lançado ao chão. Atingem, nesse círculo, o máximo
de sua perversidade – ao exigirem dos efebos que engolissem
comida recheada com pregos perfurantes.
Com ênfase, os senhores de Salò exigiam, nessa situação, que
lhes fossem contados – com a maior riqueza de detalhes possível
e segundo uma ordem determinada e crescente de excitação libi-
dinosa – os mais diversos desregramentos da devassidão e da
perversão; incluídas as mais sutis ramificações de excrescências
e de degenerescências. Em suma: tudo o que, em língua de de-
vassidão, denominam-se paixões (em seus mais diversos matizes
e nuanças de vileza) deveria ser incitado e dilatado em narrati-
vas monstruosas. Dava-se, enfim, a circunspecção a uma imensa
e degradante espurcícia: na qual todo aquele que é degenerado
dos sentidos e celerado das ideias podia ver um encantamento
indefinidamente mais picante e mais sutil do que se estivesse
diante de algo estética e higienicamente aprazível.
É certo que dentre os degenerados do gosto e do apetite – por
esse capitalismo de ultraje e de corrupção – não faltam aqueles
que gozem com objetos rotos, corrompidos e sujos; e também os
que prefiram toda a insânia e toda a imundície – muito mais – do
que o que, na beleza e na perfeição, equivalha à formosura mais

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Francisco Vítor Macêdo Pereira
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divinal. Como se a desordem da natureza trouxesse consigo uma


espécie de condimento, de excitação: que age sobre o gênero ner-
voso adormentado, anestesiado, com talvez tantas ou mais for-
ças do que as mais singulares belezas.
As preferências desvirtuadas (mesmo doentias e perversas),
cada vez mais ordinárias na civilização presente (de consumo
frenético, de reificação dos valores e de tendências crescente-
mente egoístas e psicopáticas), equivalem – quando não a feti-
ches de crueldades – a relações não mais disfarçáveis de depen-
dência e de subserviência maníaca. Conforme o que esteve a
afirmar Pasolini, em sua premonição a propósito do genocídio
burguês e da mutação antropológica dos modos e dos compor-
tamentos de vida a uma civilização de consumo, não tardaria o
tempo em que tais relações traduzir-se-iam abertamente por
horror e por destruição (Cf. PASOLINI, 1981, p. 77).
Ao retratar em Salò (1975) – mais que o obsceno – o que há
de terrível e de funesto nas relações humanas, perguntaríamos
com Pasolini, em Sade, esse tempo de mutação do sexo e da vida,
em morte e em destruição, já não chegou? Nessa, que é a sua
última obra, em que permanece a alma cativada pela ação dos
poderes e tornada indiferente a todo o horror, não estaria Paso-
lini – nesse tempo presente de genocídio e de egoísmo em monta
– a corroborar que o horrendo, a fealdade, o grotesco e as ex-
pressões monstruosas não seriam realmente o que terminaria
por mais agradar? Ora, onde melhor se encontram essas caracte-
rísticas do horrendo do que num objeto que, de sedicioso, é con-
vertido em viciado? Do que em algo que, outrora limpo, permite-
se então ser sujamente manipulado?
Certamente, se a corrupção e a sujeira agradam no ato da lu-
bricidade, do prazer lancinante dos senhores do mundo, quanto
mais sórdidos e contaminados estes forem, mais deverão agra-
dar. Quanto mais desmesurados forem os atos a conjugarem
crime e prazer, mais o sujeito deste/a este mundo (prazenteiro e

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Hoc est enim corpus meum
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cediço) poderá, às folgas, entregar-se e gozar. Acreditar que se-


guramente exista mais prazer na sujeira de algo torpe, do que na
prática dificultosa de algo bom já constitui, por si, o motor da
excitação para muitos – nesse tempo de facilidades cruéis, de
intoxicações em quase tudo e de gostos mórbidos, sem refregas
no presente.
A singeleza, para os gostos do presente, de fato, não mais im-
pressiona – senão na condição daquilo que há de ser automati-
camente ridicularizado, rebotado e deitado à destruição. À cor-
rupção dos sentidos, são o feiume e a degradação que conferem –
pois – uma excitação bem mais firme, e a sua comoção é algo
bem mais forte. Daí a juventude – dos idos dos anos setenta – já
ter parecido a Pasolini como uma horda maciça de monstros
horrendos e criminaloides (inteiramente aburguesados, fascis-
tamente na moda e piedosamente idiotizados).
Promotores desse arrastamento (ao que é grotesco e ao que é
vil), os senhores de Salò fazem-se, assim, unânimes em exigirem
de suas luxuriantes putas narradoras as mais ínfimas circuns-
tâncias de seus relatos de intoxicação vital: a infinitamente con-
verterem-se no que lhes sirva de matéria para a irritação de seus
sentidos. Na lógica da devassidão e da perversão, quanto mais
violenta for a irritação, mais o objeto da luxúria há de se despo-
jar – a ponto de que esta irritação não o sustente mais e de que
ele perca inteiramente o seu valor.
O filósofo Jean Baudrillard (1929-2007) confere-nos, à per-
cepção dessa lógica, a inteligibilidade do sistema tecnológico e
virtual dos poderes e dos seus objetos no tempo presente, a rela-
tivizar todos os sentidos e a sua compreensão em esquemas de
ininterruptas expansões midiáticas: segundo o que uma vertigi-
nosa quantidade de estímulos e de informações deve continua-
mente gerar o entorpecimento incontrolável do máximo das ex-
periências humanas – antes distintas e mediadas autenticamente
pelos sentidos, pelos sentimentos, pelos sonhos e pela fantasia –,

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Francisco Vítor Macêdo Pereira
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e então reduzidas a um mero esquema de coisas e de sensações


precárias (sem mais nenhum valor em si) (Cf. BAUDRILLARD,
1990, p. 126).
Por isso, para os senhores desse novo e total poder do presen-
te, a ordem é seviciar, humilhar, escravizar e, enfim, destruir –
eis o que, diante de tudo e de todos, pretendem os soberanos dos
unificados poderes. Para eles, todo o desgosto que possam sentir
não passa senão da postulação sedenta de suas paixões: a serem,
sempre e de imediato, novamente saciadas. Paixões às quais a
felicidade é o que mais desagrada, precisamente porque é a feli-
cidade o que acaba de cansá-las. Para eles, de todo o desgosto
que se sinta deve nascer – só por isso – um projeto de violação
ainda mais infamante e mais ultrajante. Disso a constatação
torpe de que as suas crueldades não podem, então, nunca cessar:
até que seja atingido o mais absoluto grau de indiferença e de
insensibilidade. A propósito disso, é que toda a destruição e toda
a miséria humana – reversamente – lhes servem de alimento e
de maior estímulo.
As meretrizes são, portanto – mais que admoestadas –, adver-
tidas e mesmo coagidas a não descuidarem de detalhe algum,
por insignificante que lhes pareça. São compungidas a menciona-
rem todos os pormenores de suas experiências e de seus saberes:
cada vez que estes (na conta desta economia sádica) ajudassem a
lançar luzes sobre os caracteres ou sobre os gêneros das paixões
dos senhores fascistas. De fato, analogamente ao que sucede no
ambiente de sadismo em Salò, para a maioria imensa dos sujeitos
autômatos no presente (viciados nas ilusões de seus prazeres e
na podridão de seus pequenos poderes) é algo insuportável o
momento de enfrentarem o que lhes parece ser a perda de suas
ilusões e de seus controles.
A ideia do crime, da vituperação racista do outro – como indi-
ferente – é o que então mais inflama os sentidos, e o que suma-
mente leva os sádicos do presente à lubricidade de sua insatisfa-

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Hoc est enim corpus meum
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ção itinerante: a ponto de que a libertinagem (a liberalidade)


degrade no homem todos os sentidos de seu amor, de seu cará-
ter e de sua honestidade. A saciedade prometida pela subcultura
burguesa, de fato, só inspira à libertinagem e ao ímpeto da des-
truição: pois que exige, incontinente, que se executem todos os
desejos de forma imponderada e imediata.
Cansada das coisas simples e prosaicas, a imaginação dos
homens – exalçados à condição da pequena burguesia – se de-
saponta no presente (de promessas e de contingências jurídico-
econômicas), e a pequenez dos recursos, a fraqueza de suas fa-
culdades, a corrupção de seus espíritos os tangem a abominações
cada vez mais necessárias. Portanto, para os soberanos fascistas,
a felicidade (burguesa) só pode nascer do prazer racista da
comparação, que – por sua vez – só pode ser proporcionada pelo
espetáculo dos infelizes. É da visão de quem sofre e de quem não
goza daquilo que se tem que nasce a consistência de se sentir e
de se dizer mais feliz do que o outro.
Em qualquer situação em que a indiferença e a possibilidade
racista de discriminar e de humilhar faltarem, a (in)satisfação
hedonista ali nunca há de poder estar. Tanto é desse modo que,
para os distintos senhores empoderados, apenas o crime e a per-
versão têm charmes suficientes para inflamar – precariamente –
os seus sentidos, sem que sejam obrigados a recorrer a nenhum
outro expediente. Daí nasce a certeza do maior prazer com as
coisas mais infames. Junto a isso, não se há de olvidar que o sis-
tema dos poderes é profundo conhecedor de sua dependência
ínsita ao crime e à perversão: por isso as suas ações devem fun-
damentalmente consistir na lógica de que, quanto mais se quiser
fazer nascer o prazer, mais pavoroso há de ser o crime.
Com efeito, se a felicidade consistisse mesmo na adição à in-
teira satisfação de todos os prazeres sensuais, seria difícil al-
guém ser mais feliz do que o que foram aqueles senhores fascis-
tas. Mas como podem ser felizes, uma vez que podem se satisfa-

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Francisco Vítor Macêdo Pereira
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zer a todo o instante? Ora, não é no gozo, na fruição imediata –


do que quer que seja – que, por último, consiste a felicidade. É na
vontade e no desejo da realidade como sonho, como princípio e
como propósito de vida! Desse modo, será que a realidade é algo
possível de se construir e de se consumir, quando apenas é preci-
so desejar para ter?
Interessante que se ressalte que – em meio a todo o criminoso
processo de sevícias, que envolve o andamento desse extenso
círculo perverso das manias – os senhores discutem sobre o que
seja o amor e sobre o que seja a felicidade: e fundamentam as
suas considerações e as suas elucubrações em citações e em fra-
ses que são de Friedrich Nietzsche4, de Charles Baudelaire5, de
Roland Barthes6, de Pierre Klossowski7 e mesmo do apóstolo
legitimado, Paulo de Tarso8. Pasolini, de fato, utiliza-se de alguns
trechos notórios desses que são, no entanto, excertos de textos
muito heterogêneos9: e emprega-os no colóquio dos abomináveis

4 De A Genealogia da moral: uma polêmica (Zur Genealogie der Moral: Eine


Streischrift [1887]): “O princípio de qualquer grandeza sobre a Terra esteve
total e prolongadamente banhado em sangue” (NIETZSCHE, 1998, p. 74).
5 De As Flores do mal (Les Fleurs du mal [1857]): “Apesar do sangue que a

volúpia custa, jamais dele os céus se sentiram saciados” (BAUDELAIRE, 1995,


p.135, tradução nossa).
6 De Sade, Fourier, Loyola (1971): “Com respeito aos gostos, por extravagantes

que sejam, são todos respeitáveis. Seja porque não podemos evitá-los, seja por-
que mesmo os mais singulares e os mais bizarros – quando bem analisados –
são sempre filhos de um principe de delicatesse” (BARTHES, 1971, p. 98, tradu-
ção nossa).
7 De Sade, meu próximo (Sade mon prochain, KLOSSOWSKI [1947], 1991).
8 Epístola de Paulo aos hebreus (9,22): “De fato, podemos dizer que, conforme a

lei, quase tudo é purificado com sangue, e que sem o derramamento de sangue
não há o perdão dos pecados” (BÍBLIA SAGRADA, 1990, p. 1792).
9Nos créditos iniciais de Salò (1975), antes do prólogo, Pasolini dá a referência

dos autores e de suas obras (bibliografia essenciale) – cujos textos serão inde-
bitamente tomados em conta das considerações dos perversos. O próprio Paso-
lini adverte que alguns trechos dos textos de Roland Barthes e de Pierre Klos-
sowski serão citados no filme. Ademais dos acima já referenciados, encontram-
se nessa bibliografia conferida por Pasolini: Faut-il-brûler Sade, de Simone de
Beauvoir (Gallimard, 1955); Lautréamont et Sade, de Maurice Blanchot (Édi-

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Hoc est enim corpus meum
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comandantes. A fundamentação espúria que esse enxerto inter-


textual acaba promovendo tem, para o corsário, o escopo de reve-
lar como o vício e o ódio daqueles pervertidos do poder buscam
referência (absurda) e arrimo (indébito) numa série de justifica-
tivas teóricas – as quais, simplesmente, são por eles extorquidas
e dilapidadas da tradição.
A incorporação desse prestigioso e festejado repositório filosó-
fico-literário nos discursos imundos dos perversos – a preten-
samente também endossar-lhes a crueza dos atos – desvela,
igualmente, a crítica de Pasolini à atual deturpação do pensa-
mento e de sua tradição, igualmente por aquela que o corsário
considera como uma insuportável intelectualidade acadêmica e
nominalista (extremamente burguesa e excelentemente fascista
no tempo presente: a qual não impede ninguém de dizer, mas
que obriga todos os assujeitados a falar autoritariamente em
nome dos autores e de suas teorias).
Em meio à embriaguez de uma discussão de ideias (a propósi-
to da felicidade e da excelência), símiles a filósofos numa roda de
iluminados, os senhores fascistas tergiversam a respeito de suas
citações (da tradição do pensamento ocidental): e chegam à con-
clusão de que toda aquela filosofia deveria mesmo pertencer a
Dadá, e ser da autoria de Dadá (Dada) – que se refere à extrava-
gante autonomia do nonsense, ou à teleológica falta de qualquer
sentido. Despedem-se de seu precioso colóquio filosófico (ainda
tomados pela embriaguez de suas ideias e de todo o uísque que
consumiram) na promessa de cheirarem as cuecas uns dos ou-
tros.
Disso se percebe que essa auto exaltação – pseudo intelectual
– dos quatro soberanos pervertidos busca o seu fulcro em adulte-
radas definições aforísticas: as quais lhes sancionem a superiori-
dade sobre todos os demais – a não merecerem senão a sua vila-

tions de minuit, 1949) e L’écriture et l’experience des limites, de Philippe Sol-


lers (Éditions du seuil, 1968).

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Francisco Vítor Macêdo Pereira
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nia. O fato da sujidade e do descaro de suas ações se entretece-


rem adrede a uma rede de citações da tradição filosófica e literá-
ria não impede que estas (ações) fossilem envoltas pelos mais
torpes elementos dos sentidos.
A propósito disso, por intermédio de sua formulação chocante
e extremamente indigesta em Salò (1975), Pasolini descerra o
contato íntimo que – de fato – há (sempre houve) entremeado
em todas as experiências palacianas (elitistas): da crusta superfi-
cial dos títulos de altezas e de excelências sobre as mais excres-
centes expressões da baixeza e da vileza, a pulularem nas cele-
brações privatistas de clubes, de cátedras e de gabinetes – e a de
modo indene reproduzirem-se nos ofícios, nos cultos e nas cimei-
ras da alta burguesia.
Na realidade, os poderosos deturpam – sem nenhum laivo de
preocupação ética – a própria significação da Filosofia e da Lite-
ratura: distorcendo minazmente o extratexto de Baudelaire, de
Nietzsche e mesmo o de Paulo de Tarso – sobre os quais articu-
lam os seus nefandos discursos.
Segundo Passannanti (2008) – numa possível interpretação
foucaudiana do filme sádico de Pasolini –, a interpenetração
profana e demoníaca entre corpo literário e corpo fílmico tem a
finalidade de evidenciar o escopo dos poderes em “racionalizar e
em justificar os seus projetos delirantes, recobrindo-lhes os es-
combros com uma pátina lógica e cultural de superioridade”
(PASSANNANTI, 2008, p.62).
Pasolini deixa entrever – quando estão os senhores a falar (à
mesma moda das autoridades acadêmicas e intelectuais) – que
eles não conseguem ocultar (nem sob a pátina de sua sobeja eru-
dição) a realidade de que são eles escravos do poder e do autori-
tarismo: os quais, desesperadamente, pretendem conservar e
terem-no confundido consigo. É desse modo que encerram a ro-
dada de suas considerações – no âmbito deste primeiro círculo
maníaco – com a conclusão unânime: de que os fascistas são os

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Hoc est enim corpus meum
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verdadeiros anárquicos, os únicos que podem se obstinar (livre e


convictamente) em seus desejos, em seus pensamentos e em suas
paixões: dadá, dadá... Por fim, os senhores celebram a sua em-
briaguez fascista em mais um brinde à diletante arte do dadaís-
mo10.
Essa conclusão conscienciosa acerca da verdadeira anarquia
do poder fascista nos remete a uma elucidativa reflexão de Fou-
cault, acerca do princípio de consciência: “o ponto de focalização

10Ressalte-se que, para Pasolini, as artes e os artistas das vanguardas dadaístas,


neodadaístas, cubistas, futuristas e surrealistas – sobretudo a expressão máxi-
ma de Salvador Dali (1904–1989) – também são fascistas. Ao contrário da arte
moderna do entre guerras (que soube se tornar historicamente contemporânea
e crítica de seu próprio tempo) o dadaísmo, o neodadaísmo e o surrealismo
teriam sido, de acordo com AQUINO (2006, p.167–68), tornados apenas artifi-
cialmente contemporâneos (de uma época que não é a sua própria). Talvez por
isso mesmo, tais movimentos tenham se mostrado totalmente acríticos diante
de sua época precisa. Em Salò (1975), Pasolini utiliza-se de peças (sobretudo de
pinturas na parede e de mobiliário) as quais remetem às artes vanguardistas
futurista, cubista e dadaísta – principalmente no studio privado do senhor
Duque, no quarto do Monsenhor, no parlatório e no observatório (comuns a
todos os perversos). A decoração desses específicos ambientes, com esta arte
vanguardista, confere ênfase ao mito da nova civilização ocidental avançada e
industrializada, da qual a Itália avidamente pretendia fazer parte. É interes-
sante que se note que, nesses citados ambientes, não há a prática de quaisquer
horrores ou perversidades, não há ninguém nu e os senhores neles estão sempre
distinta e burguesamente vestidos: a darem vazão apenas a seus refinados hábi-
tos burgueses (discussões filosóficas em meio a um requintado chá, ou a um
bom uísque, sempre ao som de suave música – mesclada entre clássica e mo-
derna). Ao contrário disso, nos espaços destinados às orgias, às sevícias e às
torturas dos jovens desnudados – locais onde há latrinas, tinas com excremen-
tos e despojos de sangue – estão as peças de motivo novecentista (belas está-
tuas, quadros, painéis). Com isso, Pasolini provavelmente quisera indicar a
proletarização da arte (da Bela arte) por parte da elite intelectual, ao mesmo
tempo em que pretendera criticar a proximidade que essa (bela) arte contempo-
raneamente mantém com a indústria cultural (de massa, de merda). Nas cenas
que sucedem o abjeto casamento gay (dos senhores com os seus diletos capata-
zes), já no círculo do sangue, é que avultam ainda mais essas obras de estilo
cubista e dadaísta (quadros e afrescos). Isso revela o gosto fascista por obras
que transcendam ou que hiperdimensionem a realidade: com gráficos e gravu-
ras que guardam a pretensão de operar a síntese a priori dos traços estilísticos
da pureza, da ordem suprema, da ataraxia e da ahistoricidade (da arte pela
arte) – conforme convém ao fascismo.

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Francisco Vítor Macêdo Pereira
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do exame da consciência [...] deve ser ainda e sempre o corpo,


com todos os efeitos de prazer nele sediados” (FOUCAULT, 1978,
p. 169, grifo nosso). Portanto, o contrassenso da afirmação de
que a verdadeira anarquia é a do poder encontra imediata reta-
liação na utilização que o corpo-poder (dos senhores soberanos)
faz do corpo-vítima (da juventude manietada): este último é tor-
nado (logo que despido das atribuições de identidades, com as
quais os poderes o contemplaram/assujeitaram) num único cor-
po-massa. Já essa massa, convertida em algo informe (macerado
física e moralmente pelas ações dos poderes), torna-se o inteiro
corpo vulnerável da sociedade (integrado e unificado): o corpo a
ser totalmente profanado e humilhado – conforme se vê na se-
quência do filme, em que os adolescentes são guiados e tratados
como uma matilha (a se disporem diante da mesa de seus senho-
res adestradores).
Um pouco antes disso, no umbral desse âmbito maníaco, duas
das mais esteticamente agradáveis presas são submetidas a uma
espécie de cerimônia matrimonial, embora a consumação das
núpcias seja interrompida pelos cruéis libertinos (que interpõem
os seus corpos espúrios em meio à união daqueloutros dois: vir-
ginais e recém-desposados). Essa cena – à qual se segue a dos
jovens volvidos em cães acossados pelos poderes – estabelece o
contraste, juntamente a estoutra, do que seria o corpo nu (sacer)
frente o corpo social (massificado e alienado): a paradoxalmente
indicar a fraqueza física e a força retórica do primeiro.
O corpo desnudado (sacer), de fato – posto naquele espaço
profanatório –, tem caçada a dignidade que o poder outrora lhe
outorgara (por intermédio da concessão de identidades e de ga-
rantias falsas). Em vista disso, todo aquele que – a partir desse
momento – se rebele e não se aferre mais à promessa final de
restituição de sua dignidade (status quo ante) – de modo a não
coadunar mais com a depravação (por meio da qual são reduzi-
dos à coisa os jovens aprisionados) – já pode ser abertamente

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Hoc est enim corpus meum
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açoitado e sacrificado na frente de todos: sem que os poderes


tenham mais qualquer receio de sublevação ou de qualquer outro
tipo de reação, por parte daqueles que ora já não passam de uma
massa de jovens infelizes (informe, sem vontade e sem ação).

O CÍRCULO DA MERDA

O círculo da merda – girone della merda – se abre em segui-


da a essa cena dos jovens-cães, e tem a senhora Maggi como nar-
radora. Esse círculo se fundamenta na analidade e, sobretudo, na
escatofagia e na coprofilia. Nele, os jovens cativos devem entre-
gar aos senhores os seus excrementos, os quais serão obrigados a
ingerir, em seguida, no banquete final – oferecido em comemo-
ração às bodas do senhor Magistrado, com o mais belo dos ado-
lescentes aprisionados.
Nesse mesmo círculo espurco, os quatro senhores discutem
igualmente a validade mortuária do gesto sodomítico; que, para
eles, é o mais absoluto, no que contém de mortal para a huma-
nidade: uma vez que é intrinsecamente estéril e prazerosamente
repetível ao infinito. Ademais de também ser o mais ambíguo:
porque aceita as normas sociais (sem discrepá-las), ao mesmo
tempo em que as infringe. Ora, mais monstruoso do que o gesto
sodomita, só poderia ser o do verdugo – o qual, no entanto, so-
mente seria executado uma única vez. Cabia à inteligência fascis-
ta, pois, realizar aos seus poderes a possibilidade de matar mui-
tas e muitas vezes: até o limite da eternidade – isso se houvesse
limites.
Depois de mais das suas considerações acerca do poder, de-
cidem os senhores – no âmbito ainda do incensário à analidade –
organizar um concurso entre os prisioneiros: a fim de que fosse
eleito o cu mais belo dentre todos os jovens. O(a) dona(o) do cu
mais formoso teria como prêmio a sua condenação imediata à
morte; mas a execução do jovem vencedor não foi efetivada: jus-

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Francisco Vítor Macêdo Pereira
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tamente com o intuito de que fosse aberta a possibilidade de sua


repetição ao infinito. O culto à analidade inspira, pois, aos se-
nhores o culto à mortificação.
No lampejo de mais uma de suas excelentes lucubrações fas-
cistas, o senhor Duque chega à esdrúxula conclusão de que não
há – de que nunca houve – na humanidade amor: uma vez que o
limite do amor é o de ter-se sempre a necessidade de um cúm-
plice. Diante disso, consistiria – segundo ele – precisamente todo
o refinamento e o sentido máximo da existência fascista: dedi-
cada ao crime e à libertinagem, sem limites e sem condições.
Porque, só em se sendo fascista, devasso e criminoso, se pode ser
– ao mesmo tempo – verdugo e vítima, de tudo aquilo de terrí-
vel e de prazeroso que se puder imaginar e praticar (sem neces-
sidade de um cúmplice, portanto).
Eis, então, o que seria – segundo a percepção fascista – um
amor perfeito: um amor sem cumplicidade, um amor sem de-
pendência, um amor sem o outro, um amor em que se é (ao
mesmo tempo) vítima e verdugo de si.
A coprofagia desse círculo da merda, além de figurar a crítica
à falsidade dos bons modos burgueses e de denunciar a podridão
de seu estofo e de seus valores, descerra a inadequação teórica e a
falsidade das dicotomias (a merda é refinamento) sobre as quais
se fundam os nossos melhores e mais caros valores comuns no
presente: a lei, a religião e a educação (são todas podres por
dentro e reproduzem, no presente, a corrupção de tudo pelo po-
der, além da contaminação pela merda do seu dinheiro). Nesse
sentido, Passannanti (2008), em sua leitura foucaudiana sobre
Sade e Pasolini, elucida que:

Ao contestar o hedonismo da modernidade mediante o simbolismo da


merda, Pasolini, originalmente inspirado em Sade, dirá que o consu-
mismo é, de fato, sempre o responsável pelo regresso cultural que leva a
sociedade capitalista a monetarizar o seu próprio descarte, reinserindo-o
no ciclo produtivo, conforme mostram as cenas de coprofagia desse cír-
culo infernal. Ao fazerem os prisioneiros engolirem colherinhas de fezes,
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Hoc est enim corpus meum
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a intenção dos cruéis pervertidos – além da humilhação – é a de reinse-


rir a escória no ciclo vital (produtivo), a fim de que possa ser usufruída
coletivamente (PASSANNANTI, 2008, p.73, grifos da autora)11.

A corroborar nesse sentido, acreditamos que toda a merda


que é introduzida à força na boca dos adolescentes simbolizaria o
peculiar critério regressivo dos saberes midiatizados: por meio
do qual os meios de comunicação de massa transformaram – no
presente – todos os princípios da expressividade, da cultura e da
informação em sistemas fechados, limitados e alienados.
Há também, sob esse mesmo aspecto (de ilustrar toda a mer-
da que se é constrangido a engolir), outra cena em destaque –
que é especialmente tão notória quanto escatológica (ademais de
mórbida): a da jovem órfã cuja mãe houve de ser assassinada
para que ela ali estivesse. Assim que desnudada, esta ninfa em
prantos é obrigada a comer o excremento do senhor Duque, ex-
pelido ali na presença de todos.
Disso se pode igualmente inferir (senão ingerir) que se trata a
coprofagia representada no filme – para além de toda a insupor-
tável ojeriza – de uma pesada metáfora ao capitalismo do con-
sumo de massa, inclusive no que toca a sua produção de comida
pestilencial (fast food junkie). Afinal de contas, não é nenhuma
novidade alarmante o fato de que – ordinariamente – haja a con-
taminação por coliformes fecais em quase todos os alimentos
(sobretudo cárneos e lácteos) industrialmente processados. Por
óbvio que tudo certificado: dentro de um criterioso limite de
segurança. Portanto, sem quaisquer riscos à saúde humana.
A ordem de comer merda (mangia, mangia, mangia!), além
de remeter aos efeitos extremamente nocivos do consumismo
sobre a massa de alienados, mostraria também o modo como a
propaganda política e publicitária (como se fossem slogans co-
merciais e de motivos) condiciona a liberdade do jovem: trans-

11Essa, assim como todas as demais traduções dos originais em italiano e em


francês, são de nossa responsabilidade.
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formando, sedando e limitando a sua consciência. Para Pasolini,


as massas acríticas – de fato – compram os produtos e as ideias
que consomem apenas por aceitação passiva e por mera incons-
ciência política acerca de sua suposta qualidade e superioridade
(racistamente inculcada pela mídia). Os jovens forçados a se ali-
mentarem dos excrementos servidos nos banquetes infernais
(vigoroso caldo da senhora Maggi) expiam, pois, a sua incapaci-
dade de reagir e também a sua conformação diante dos condici-
onamentos da publicidade e da ideologia.
Pasolini certamente compreende quão chocante seria, aos es-
pectadores de Salò (1975), assistirem a coerção cênica ao repasto
merdoso. Ele admite, nesse ponto, o esperado embate do público
com a sua obra cinematográfica: a qual – ao se dar – se nega a si,
como valor moral e estético afeito ao gosto burguês (autodegra-
dando-se antes que o fosse pela integração burguesa). O corsário
então inverte e desfruta as normas que regulam a indústria cultu-
ral, ao mostrar a inaceitabilidade do novum – por meio de uma
mensagem que se autoboicota. Faz isso premeditada e conscien-
temente, afrontando – inclusive – o risco de censura, mas (sobre-
tudo) vingando-se da subcultura burguesa que se locupletara de
sua filmografia anterior.

O CÍRCULO DO SANGUE

O último de todos é, enfim, o círculo do sangue – girone del


sangue –, e tem à frente a mais terrível senhora Castelli e as suas
narrações teutas de cruezas e de morbidades. Nesse círculo, as
sevícias e as torturas têm espaço, e desenvolvem-se de maneira
hiperbólica. É mostrada uma orgia de torturas, de mutilações, de
amputações, de homicídios rituais e de atos de necrofilia (numa
possível alusão à morbidade do nazismo alemão).
Os rituais terríveis de suplício dos jovens – forçados a serem
sacrificados ao vício, ao ódio e à sujidade das perversões dos po-

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Hoc est enim corpus meum
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deres – alegorizam a angustiosa história da beleza, da juventude


e da cultura diversificada (outrora reais) do povo italiano: então
sequestradas pelo regime da democracia e pela promoção dos
sujeitos ao consumismo (intimados todos a participarem de seu
torpe mis en scéne no tempo presente: na condição de espectado-
res-presa, a serem vendidos e imolados).
Ao mesmo tempo, perante o medo, acontece uma série de de-
lações entre os submissos (bem à moda teutônica): as quais con-
duzem os devassos senhores do poder à descoberta de que – par-
te dos prisioneiros e dos colaboradores – transgredia o regula-
mento perverso. Esses acontecimentos abalam a normatividade
imposta por eles, haja vista que um essencial colaborador tam-
bém é flagrado em transgressão: enquanto mantinha um roman-
ce com a serva negra do palácio – e por isso, ato contínuo, ele
também é executado junto a ela.
Esse traidor da ordem fascista não é, contudo, morto sem an-
tes revelar aos senhores a sua íntima convicção (subversiva e
comunista): o sinal com o braço esquerdo remeteria aquele sol-
dado à jovem resistência italiana contra o fascismo, organizada
pelo grupo Stella rossa – ao qual teria pertencido Guido Pasolini
(irmão de Pasolini).
Há de se notar que, entre os adolescentes prisioneiros, alguns
terminam desenvolvendo certa cumplicidade com os poderosos:
e serão – talvez por isso – dos mais supliciados. Por óbvio que se
desenrola, diante dessa situação, certa estratégia psicológica (la-
teral e contínua) por parte dos senhores da perversão: a qual
consiste em aparentemente protegerem e favorecerem alguns
prisioneiros na frente de outros (uns em detrimento de outros), a
fim de que seja rompida a esperada solidariedade entre aquelas
que são vítimas opressas.
Interessava aos senhores lhes fosse (àqueles jovens em meio
ao medo) ainda infundida e mantida alguma esperança (egoísta):
a qual – enfim – os dispusesse uns contra os outros. Qualquer

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possível simpatia ou preferência não passavam, portanto, de


pérfida atuação: escravos da insatisfação – e por isso cruéis por-
tentosos –, os senhores seriam incapazes de estabelecer (menos
de manter) qualquer contato afetivo real com o que, para eles,
não eram senão objetos e despojos de sua libido.
Na contramão disso, alguns dos adolescentes chegam mesmo
a esboçar uma frágil rebelião, acendendo débeis esperanças: as
quais ainda os mantivessem ligados à vida no mundo exterior.
Há, inclusive, quem invoque em vão o nome de Deus ou o da
Virgem. São todos, sem indulto de misericórdia ou de compaixão,
liminarmente executados. A pianista que, no grande salão, execu-
ta peças da música clássica durante todas as sessões de narrati-
vas, de orgias e de sevícias – talvez a única alma com algum real
sentido estético naquele inferno –, boquiaberta (ou a bocejar?),
num misto indefinido de horror, de apatia e de indiferença, sui-
cida-se: defenestrando-se.
No final, os quatro senhores dão início à última orgia dos su-
plícios (mortal), realizando-a (auxiliados por seus amantes capa-
tazes) com violência total. O filme termina, pois, em uma orgia
de máxima crueldade: as vítimas são todas torturadas, mutila-
das, amputadas, defloradas, estranguladas, escalpadas, degola-
das – não sem antes de terem as suas línguas cortadas, as suas
órbitas extraídas e os seus mamilos bruxuleados. Tudo transcor-
rendo ao som das carmina burana, a famosa obra de Carl Orff12
– que Pasolini também considerava como música fascista.

12Carl Orff (1895-1982) foi dos mais destacados compositores alemães do sécu-
lo XX. Famoso, sobretudo, por sua cantata Carmina burana. Apesar de ter
sempre (sistematicamente) se recusado a falar de seu passado, Orff é nascido de
alta família burguesa bávara, umbilicalmente ligada ao exército e ao nacional
socialismo alemão. Após a primeira execução pública das Carmina burana, em
Frankfurt, no ano de 1937, essa cantata converteu-se em um dos mais diletos
temas musicais nazistas, bastante apreciada pela cúpula do exército hitleriano
(Cf. http://de.wikipedia.org/wiki/Musik-im-Nationalsozialismus. Acesso em 20
de set. 2011).

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Há nesse momento também uma pequena leitura dos contos


de Ezra Pound13 – o poeta norte-americano que abertamente
simpatizara com Mussolini. Os poderosos, por vez, se revezam a
assistir as torturas, desde uma espécie de balcão que lhes propor-
ciona uma visão panorâmica daquele espetáculo vil (um belvede-
re). Utilizam de um binóculo potente para não perderem ne-
nhum detalhe do desenvolvimento das execuções.
Do que dessa visão infernal se segue, o filme termina com um
epílogo, no qual dois jovens colaboradores – indiferentes ao mor-
ticínio – sintonizam uma suave frequência no aparelho de rádio
da sala em que estão, dão-se as mãos, tomam um ao outro pela
cintura e improvisam uma absurda dança: ao som de Son tanto
triste, de A. Bracchi (1975), que é o motivo musical condutor de
boa parte da obra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Alegoria sinistra do fetichismo civilizacional do consumo, re-


duzido e condenado pelo moralismo e pela pudicícia da pequena
e da média burguesias como deslavada pornografia, Salò, o le
centoventi giornate di Sodoma (1975) será sucessivamente per-
seguido e proibido em diversos países (inclusive no Brasil), e só
na década de noventa torna-se disponível (para o público em
geral) na Inglaterra, nos Estados Unidos e na Austrália. No Bra-
sil, só muito recentemente – em 2008 – passou a ser comerciali-
zado.

13Ezra Pound (1885–1972) foi um poeta modernista norte-americano, autor de


diversos movimentos de disciplinamento da poesia: como o imagismo e o vorti-
cismo. Em 1924, ele se mudara para a Itália, onde as teorias econômicas que
defendera o associaram ao fascismo de Mussolini. Chegou mesmo a proferir
discursos antidemocráticos na rádio de Veneza, durante a Segunda Guerra. Em
seu tratado histórico-econômico Jefferson and/or Mussolini (1935), Pound
compara a grandeza e a inteligência do autor da declaração de independência
dos Estados Unidos às de Benito Mussolini
(Cf. http://www.poets.org/poet.php/prmPID/161. Acesso em 20 de set. 2011).

89
Francisco Vítor Macêdo Pereira
_______________________________________________

Trata-se, de fato, de um filme muito complexo e perturbador,


ainda que não exatamente pelas cenas que descrevemos ou pelo
seu sadismo, mas pelo que ele representa. É certo que a estética
do obsceno pode até matizar uma que outra tomada do filme de
Pasolini, contudo com a finalidade de se contrapor àquela que
deveras é a real sexofobia burguesa, conforme descrevera Fou-
cault em sua Vontade de saber, d’A História da sexualidade (Cf.
FOUCAULT, 1976, p.30). Disso se segue que, todas as obsceni-
dades que o filme apresenta têm um poder inegável de chocar,
mas jamais de excitar.
Ora, se o objetivo da pornografia é o de estimular o desejo e o
apetite sexual, Sodoma-Salò hiperbolicamente realiza o oposto
desse fim, a não caber – definitivamente – nessa definição. Por-
que o seu efeito, e consequentemente o seu fim, é o de gerar re-
pugnância, tensão e ojeriza. Ao revés da libidinagem e de sua
indústria, trata-se Salò (1975), com ênfase, da bomba que Pasoli-
ni detona: contra a crescente produção pornográfica do final do
século XX. O seu intento é também o da realização de uma vin-
gança: em desforra à audácia e ao ultraje dessa mesma subcultu-
ra pornográfica e burguesa em assenhorar-se e em locupletar-se
de sua filmografia erótica anterior, notadamente de sua Trilogia
della vita, ou Trittico della vita, composta por Il Decameron
(1971), I Racconti di Canterbury (1973) e Il Fiore delle mille e
una notte (1974).
Vale ressaltar que, no sentido original desse intuito – de de-
nunciar todos os poderes em suas formas mais conspurcadas –, o
Marquês de Sade igualmente produzira a sua escrita em contra
toda a moralização hipócrita e reacionária da aristocracia do sé-
culo XVIII, de modo que o seu projeto era também o de uma es-
pécie de vingança – em desfavor de todas as imprecações e ad-
moestações de uma sociedade que não o considerava senão como
um réprobo degenerado. Ambos os autores cometem, portanto,
com as suas obras, uma espécie de transgressão ético-estética:

90
Hoc est enim corpus meum
_______________________________________________

como pharmakon do excesso e do despudor (horríveis) às con-


venções da ordem e das viciações dos poderes.
Move igualmente o corsário o propósito (realizado de modo
um tanto aterrador) de denunciar aberta e corajosamente a real
perversão ética dos poderes: a se integrarem na celebração de
seus ódios e de seus horrores sem limites. Portanto, o que Salò
(1975) está a retratar não é exatamente a ameaça sobre a boa
moral sexual, mas o malbaratamento de todas as expressões de
solidariedade e de estima entre os indivíduos nas sociedades do
presente – as quais são simbolicamente reificadas e estupradas
no filme, pelo corpo-poder e por seus mecanismos de subjugação
de toda a gente (massificada, tornada corpo-massa). Conforme
Passannanti (2008):

A violência de Salò alegoriza, radicaliza e supõe à acusação a consciência


falsa do fascismo e do neofascismo, responsáveis por terem criado um
sistema de valores que reduzem à coisa toda a expressão do corpo hu-
mano (da vida, da cultura e da sociedade toda), sendo o seu instrumento
mais infame o desenvolvimento das tecnologias dos poderes, colocadas
a serviço da barbárie (PASSANNANTI, 2008, p. 93, grifos nossos).

Salò (1975) denuncia, assim, as formas atrozes às quais as or-


ganizações sociais, políticas e econômicas do presente – como em
uma espécie de nova barbárie – reduzem a existência e a expres-
sividade de praticamente todos os sujeitos. Na realidade, redu-
zem-nas a certos e restritos mandamentos (mangia! mangia!
mangia!): de modo a soberbamente imprimir-lhes (além de um
egoísmo como jamais presenciado) a nulidade de toda e qualquer
verdadeira reação e vitalidade (na medida em que as ações todas,
por todos os lados, de todas as partes parecem rumar para uma
completa corrupção).
De fato, Pasolini é dos pioneiros a perceber e a diagnosticar
esse rumo sinistro e corrompido da nova Itália, e posiciona-se
diante de todo o horror – que vinha há muito sendo anunciado –

91
Francisco Vítor Macêdo Pereira
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com a coragem total da verdade14: assume, sem nenhum medo,


as mais radicais realizações críticas, artísticas e filosóficas de seu
tempo; contrárias – e sem nenhuma concessão – a todas as brus-
cas mutações antropológicas, então em curso nos desdobramen-
tos mais recentes da história italiana (dos seus avanços burgue-
ses em retorno à barbárie). Decide-se, enfim, vital e inexcedivel-
mente, a uma existência artística e intelectual inteiramente cor-
sárias, a nisso ter de assumir o risco de pagar com o preço de sua
própria vida.
Com efeito, Pasolini via – como ninguém – que a pureza e que
a inocência burguesas, dos jovens a serem estuprados e mortos
em Salò (1975), não têm nada a ver com a cultura popular de cul-
pa marginal, de febre e de delinquência periférica: a qual outro-
ra animava os corpos, as expressões, a linguagem, os comporta-
mentos e os sonhos de vida dos rapazes e das raparigas do sub-
proletariado suburbano e rural (das precedentes obras de Paso-
lini).
Nesse mesmo sentido, de acordo com Passannanti (2008), es-
ses agora estupidamente belos e jovens destituídos de culpa, des-
tinados à condenação e ao consumo burgueses “demonstram o
ingresso da burguesia italiana em uma esfera a qual, para a audi-
ência dos anos setenta, deveria alegoricamente significar a sua
sujeição ao fetiche da mercadoria, ou verdadeiramente ao con-
sumismo totalmente acrítico” (PASSANNANTI, 2008, p.43).
Com Salò (1975), portanto, Pasolini realmente termina por
esquecer a Itália como ela era (não mais de quinze anos antes), e
acaba por aceitar a Itália nova, no que ela se transformou: em

14 A propósito do percurso em reformulação da filosofia da subjetividade em


Michel Foucault e de sua inspiração original – concernente ao desmonte da
hipótese repressiva sobre a sexualidade e à proposição de uma filosofia da co-
ragem total da verdade no presente – na vida e na obra de Pasolini, conferir a
tese de doutorado Michel Foucault, leitor de Pasolini: a propósito da ontologia
do presente (PEREIRA, 2012). Disponível em
http://tede.biblioteca.ufpb.br:8080/bitstream/tede/5595/1/arquivototal.pdf.
Acesso em 05 de out. 2014.
92
Hoc est enim corpus meum
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um espaço horrível e insuportável de vida. Com Salò, o le cento-


venti giornate di Sodoma (1975), Pasolini representa, enfim, com
toda a crueldade – com a única crueldade (contrafeita à realida-
de) com a qual seria percebido –, a sua visão apocalíptica do
presente.
A crueldade do filme não é, portanto, a do sadismo; mas a da
presença incoercível do consumismo, a da expansão falsa e in-
considerada da tolerância jurídica, a da instrumentalização estú-
pida da vida, e a da dimensão integralmente destruidora e fascis-
ta do novo poder sem limites.
A respeito desse tema da crueldade em Salò (1975), o próprio
Pasolini obtempera: “é verdadeiramente um filme cruel, de tal
modo cruel que dele (suponho) deverei, por bem, distanciar-me;
fingir não crê-lo e brincar um pouco de terror” (NALDINI, 1989,
p.306, grifos do autor).
A partir do nexo sadiano entre erotismo e retórica, entre orgia
e profecia do holocausto, Pasolini construiu em Salò (1975), en-
fim, uma alegoria: a prelevar o universo horrendo do neocapita-
lismo e de seu genocídio – o qual estabelece no corpo maniatado
o primeiro lugar de encontro e de evasão do mal.
Contudo, ainda que em meio ao horror, a sua indignação e a
sua recusa de poeta jamais deixariam de ressoar. A carnificina do
regime de Salò fez-se assumir, assim – em sua obra –, como me-
táfora do genocídio perpetrado pela civilização do consumo: a
exterminar na Itália do presente toda a autêntica expressão vital
da juventude e da cultura popular.
A componente fundamental dessa obra consiste, por último,
justamente em retratar essa nova violência (total) exercida pelos
novos poderes (totalizantes). É que, ao terem produzido a per-
missividade sexual absoluta (inculcada pelo consumismo), esses
novos poderes, em suas formas de incitação dos sujeitos uns con-
tra os outros, acabaram por reforçar a mais abjeta sexofobia,

93
Francisco Vítor Macêdo Pereira
_______________________________________________

entre os sujeitos e o seu sexo, ao invés de qualquer tipo de liber-


dade real.
Pasolini descerrou toda a falsidade, dessa infinita liberalidade
sexual no presente, através da analogia que ele empreendeu em
Salò (1975) entre sadismo e fascismo: de modo a denunciar, sem
quaisquer anteparos, as novas formas do poder político-
econômico (estabelecidas na Itália do Pós-guerra, e que puderam
abarcar a totalidade da vida social).
Diga-se que, certamente, um dos objetivos – permanecido
inalterado para Pasolini – foi o de, por fim, manter-se, com Salò
(1975), desapegado emocionalmente também de todas as impos-
turas dessa civilização de consumo (perdida no encomiasmo de
sua trajetória civilizacional): já que nela o corsário não podia
mais reconhecer a Itália onde nasceram, cresceram e morreram
todos os seus ideais.
Naquela Itália neocapitalisa, para Pasolini, nada mais poderia
ser revivificado. Por seu último ceticismo, todo mergulhado na
violência de seu tempo, é que o corsário promove – então – a
fantasia horrível, mesmo tétrica (que encontra manifestação em
sua resposta estética a esse mundo): através de seu Salò, o le cen-
toventi giornate di Sodoma (1975) – o primeiro e único capítulo
de uma Trilogia della morte (que o silenciamento definitivo de
sua vida nos privou).

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Purgatório, Paraíso. Trad. e notas: Ítalo Eugênio Mauro. São
Paulo: 34, 2004.
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seuil, 1971.

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Hoc est enim corpus meum
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BAUDELAIRE, Charles. [1857] Les Fleurs du mal. Paris: Galli-


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BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: ensaio sobre os
fenômenos extremos. Papirus, 1990.
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PASOLINI, Pier Paolo. IL DECAMERON. Direção de Pier Paolo
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95
Francisco Vítor Macêdo Pereira
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Legendado. Port.
______. I RACCONTI DI CANTERBURY. Direção de Alberto
Grimaldi. Roma: PEA s.a.s., 1972. Itália/França, cor, 121 min.
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______. IL FIORE DELLE MILLE E UNA NOTTE. Direção de
Pier Paolo Pasolini. Produção de Alberto Grimaldi. Roma:
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Legendado. Port.
______. SALÒ O LE CENTOVENTI GIORNATE DI SODOMA.
Direção de Pier Paolo Pasolini. Produção de Alberto Grimaldi
e de Alberto De Stefanis. Roma: PEA s.a.s., 1975.
Itália/França, cor, 114 min. 1 DVD. Legendado. Esp.
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Éditions du seuil, 1968.

Outros:
http://educacao.uol.com.br/biografias/silvio-berlusconi.htm.
Acesso em 12 Set. 2014

96
A traça e o traço
_______________________________________________

A traça e o traço: a retórica


discursiva em Manoel de Barros e
Guimarães Rosa

Igor ROSSONI

Professor Associado do Instituto de Letras da Universidade


Federal da Bahia (UFBA).

97
Igor Rossoni
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98
A traça e o traço
_______________________________________________

N
o campo das relações comparatistas, mas não somente,
a história da literatura, felizmente, tem dessas sineste-
sias. E mais ainda quando coisas do tipo deixam entre-
ver que – embora muito próximas – trazem, em si, profundo
abismo que as distinguem. Por outras vezes, a relação de cumpli-
cidade é tamanha que – súbito – as coisas parecem trocar de lado
e o que era mera semelhança deixa evidente puro exercício de
copulação criativa. Fatos estes são os que sugerem aproximar
Manoel de Barros e Guimarães Rosa. O ponto central de simili-
tude: o trabalho sugestivo com a linguagem, vez que – tanto um
quanto outro – lidam por, sadiamente, desestruturar o idioma. A
voz lírica em Manoel de Barros, nesse sentido, registra: “Eu que-
ria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma des-
construção. (...) Alguma coisa que servisse para abrigar o aban-
dono. (...) O abandono pode ser também de uma expressão que
tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma
palavra que esteja sem ninguém dentro” (BARROS, 2000, p. 31).
Por seu turno, elabora Guimarães: “(...) há meu método que im-
plica na utilização da palavra como se ela tivesse acabado de nas-
cer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e redu-
zi-la a seu sentido original (...)” (LORENZ, 1983, p. 81).
Em verdade, há pontos em que se tocam e vários são os traba-
lhos que buscam tornar claro este fato. Entretanto, por mais que
ocorram, o que se verifica, em proximidade, é mais uma razão
fundante – interior – do que aparentemente se possa observar.
Trata-se de uma intensa consciência de manipulação do signo
artístico tomando por razão de fundamento o fato de a palavra –
para se dispor a serviço da arte; do deslumbramento – carecer da
perda de vícios, de viços e entretecer-se de nascedouro e inaugu-
ramentos. Deste modo, o que promovem não é outra coisa senão
a prática do mesmo exercício de consciência que – exteriormente
– representa desviar a palavra da própria palavra e, a partir dela,

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Igor Rossoni
_______________________________________________

criar linguagens que – pela serena/contundente natividade que


explodem – embora aparentemente próximas, em nada se identi-
ficam. Por este motivo, limitar Barros à sombra de Rosa – como
parece ser corrente entre determinado segmento da crítica – é,
no mínimo, deixar-se tomar por impressão superficial. O próprio
poeta se manifesta acerca do fato; respeitoso, mas evidenciando
completa autenticidade. Menciona não se incomodar. Ao contrá-
rio, sente-se honrado. Refere que possuem coisas em comum e
que partilhavam a sadia brincadeira de arrombar as gramáticas.
Por isso julga serem – ao mesmo tempo – parecidos e muito dife-
rentes.
Deste modo, o leitor está diante de uma profícua oportunida-
de de aventurar-se em dois universos que sugerem, mas que não
são. De duas atividades que buscam levar os limites da língua a
situações de insuspeitas emergências. Então, de por muito pró-
ximo, queda-se ao perigo de conferir a ambos atitudes idênticas.
Contrariamente, o jogo que se apresenta evidencia movimento de
paralelas – o par de invenções da palavra: os desfazeres: o sertão
e o pantanal; um certo Manuelzão, outro tanto Bernardo; o sabor
mítico dos gerais, o saber aquoso e fértil das primeiras rasteja-
ções; o jagunço, o bugre; as plantas e lugares de mil nomes, os
limbos-lesmas e caracóis. E lá, somente lá – no limite entre o
provável e o improvável – se encontram no prover aparentemen-
te regional – expresso e des(trans)locado – vertido à sublimidade
do ser tão universal.
Quanto à especificidade crítica também parece vivenciarem
sortilégio de aproximação. Vera Novis destaca que o desequilí-
brio entre o interesse crítico manifestado pelos primeiros livros e
pelo último segmentou em duas partes o conjunto de narrativas
de que compõem a obra de Guimarães Rosa. Assim, a evolução
toma vulto com os contos de Sagarana (1a Ed. 1946. Texto defi-
nitivo: 5a ed., 1958). Passa pelas novelas de Corpo de baile (1a ed.
1956, em 2 volumes; depois desmembrado em Manuelzão e Mi-

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A traça e o traço
_______________________________________________

guilim, 1964; No Urubùquaquá, no Pinhém, 1965 e Noites do


Sertão, 1965) e atinge o ápice no romance Grande sertão: vere-
das (1956). De certo modo, o último publicado em vida – Tuta-
méia (1967) – foi considerado como repetição, involução e re-
gressão, vez que encarnou o avesso da monumentalidade, valori-
zando, aparentemente, o mínimo, o quase-nada (NOVIS, 1985, p.
22). Por seu turno, Barros parece estar vivenciando processo se-
melhante. Embora “descoberto” e projetado na grande mídia
somente em 1984 pela voz de Millôr Fernandes – “Estou apre-
sentando hoje, a vocês, um poeta, Manoel de Barros, de Mato
Grosso do Sul. Não é novato. De vida tem mais de 60 anos. De
poesia, o dobro...” (Revista Istoé, 1984) – Barros já havia publi-
cado 7 livros. Desde então uma avalancha de textos vem sendo
produzidos, evidenciando – geralmente – a qualidade criativa do
escritor.
Deste modo, por todos estes encontros e desencontros, o que
parece mesmo ligar Barros e Rosa não são os textos, nem mesmo
a vontade primitiva de lidar com a palavra, ao des-palavrarem a
língua. O que sugere tornar Barros a Rosa e/ou Rosa a Barros é o
gosto pela invenção da realidade. Ou melhor, pela reativação da
perdida realidade maculada pelo exercício da humanidade. As-
sim, criam mundos prenhes de significância original. Cada qual
no eito das próprias lidas conscienciais. Frutificadas da mesma
ferida. Então, em ambos, emergem das palavras – mesmo as
mais despercebidas – uma luminescência que culmina por com-
por tecidos de fazer corar, réstia de correição que atravessa e une
e estende diálogo entre espaços transfigurados em um sertão e
outro – apantanadamente líquido e dinâmico.
Um certo ar de cumplicidade pousa sobre esses escritos. Aí –
do aproximado – a transformação de um em outro. As línguas
quase a se tocarem. Roçarem-se no descontínuo descompasso
constituído por abandonos e livramentos.

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Igor Rossoni
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Se por um lado, há a assertiva registrada por Gracia-


Rodrigues de que “a força da literatura de Guimarães Rosa ad-
vém da multiplicidade de fatores linguísticos manipulados pelo
escritor no caudal de suas narrativas, enquanto a força da poe-
sia de Manoel de Barros decorre da concentração imagística de
suas metáforas” (2006, p. 123, grifos meus); por outro, muitos
são os críticos que atestam que da prosa de Guimarães Rosa
transborda poesia. Neste sentido, iconiza em prosa – pelo louco
uso das palavras – um ritmo afeito ao universo poético propria-
mente dito. Por sua vez, a poesia de Barros permite entrever um
tom precoce de conversa de beira de estrada, como ao longe, ca-
sal de aves desovando matagais – pé-ante-pé – num exercício
prosa(ico) de composição. O mesmo parece se dar com os restos
que de lesma registram passagem no tempo e no espaço da letra.
Ou ainda, nas infindas evoluções que compõem a casa-palavra
dos caramujos. Assim, a poesia de Barros copula-se em sutil de-
sabamento para a prosa. E quanto mais prosa(ica) se manifeste,
sugere maior fertilidade poética.
Em verdade, não há novidade ou mesmo extra-ordinariedade;
apenas constatação do fato. Dizer-se que de Rosa emana prosa
poética e que de Manoel de Barros verte poesia de cunho narrati-
vo em nada acrescenta aos dois universos criativos. Entretanto,
não é este o foco que se pretende abordar, e sim o de que em am-
bos o lugar de coisa se transfigura em lugar de outra coisa, carac-
terizando-se assim em lugar não convencionalizado, ou seja, em
não-lugar. Em outros termos, no prosador mineiro especifica-se
o exercitar da proeminência do gênero épico em passagem ao
gênero lírico; exatamente o inverso da realidade projetada pelo
poeta (sul) mato grossense. Deste modo, o lugar da prosa se
imiscui fertilmente com o da poesia, tonificando – na subversão
de gêneros – a transfiguração do lugar da escritura.
Guimarães Rosa inicia travessia – a bem dizer – em 1937,
quando vence o concurso da Academia Brasileira de Letras com o

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A traça e o traço
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livro de poemas Magma (inédito até 19971). Entretanto, a pri-


meira publicação só ocorre em 1946, com o livro de narrativas
curtas Sagarana, vencedor do prêmio da Sociedade Felipe
d’Oliveira. O dado biográfico não se reveste aqui de importância
maior a não ser para frisar o fato de que a mudança de gênero do
“primeiro” escrito para o restante da obra perpassa pela consci-
ência veiculada em 1965, em palestra com Gunter Lorenz. A pas-
sagem é deveras extensa, entretanto, pela validade do pronunci-
amento, plenamente justificável:

LORENZ: (...) Depois desses antecedentes nada literários, começou a


escrever relativamente tarde. O que o levou a se tornar escritor? Em re-
sumo, como chegou a escrever, já não muito jovem, Sagarana, seu pri-
meiro livro de contos e que se tornou imediatamente um sucesso sensa-
cional? Conte-me alguma coisa sobre este processo de sua vida.

GUIMARÃES ROSA: Bem, antes devo dizer que sua suposição não é
totalmente certa. Comecei a escrever, quando ainda era bastante jovem;
mas publiquei muito mais tarde. Veja você, Lorenz, nós, homens do ser-
tão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso sangue narrar estórias;
já no berço recebemos esse dom para toda a vida. Desde pequenos, es-
tamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos ve-
lhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que às
vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel. Deste modo a gente se habi-
tua, e narrar histórias corre por nossas veias e penetra em nosso corpo,
em nossa alma, porque o sertão é a alma de seus homens. Assim, não é
de estranhar que a gente comece desde muito jovem. Deus meu! No ser-
tão, o que pode uma pessoa fazer do seu tempo livre a não ser contar es-
tórias? A única diferença é simplesmente que eu, em vez de contá-las,
escrevia. Com isso pude impressionar, mas ainda sem perseguir ambi-
ções literárias. Já naquela época, eu queria ser diferente dos demais, e
eles não souberam deixar escritas suas estórias. Isto, é claro, impressio-
na e dá reputação. É lógico que, sendo criança, a gente se sente então
muito orgulhoso disso. Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava

1 Para informações mais precisas sobre a referida obra consultar: LEONEL,


Maria Célia. Guimarães Rosa: Magma e gênese da obra. São Paulo: Ed. UNESP,
2000; e, principalmente, STESSUK, Silvio. Breviário rosiano. Tese de Douto-
rado, Assis: FCL/UNESP, 2005.

103
Igor Rossoni
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tudo o que podia e comecei a transformar em lenda o ambiente que me


rodeava, porque este, em sua essência, era e continua sendo uma lenda.
Instintivamente, fiz então o que era justo, o mesmo que mais tarde eu fa-
ria deliberada e conscientemente: disse a mim mesmo que sobre o ser-
tão não se podia fazer “literatura” do tipo corrente, mas ape-
nas escrever lendas, contos, confissões. Não é necessário se apro-
ximar da literatura incondicionalmente pelo lado intelectual. Isto vem
por si só, com o tempo, quando o homem chega à sua maturidade,
quando tudo nele se amalgama em uma personalidade própria. Quem
cresce em um mundo que é literatura pura, bela, verdadeira, real, deve
algum dia começar a escrever, se tiver uma centelha de talento para as
letras. É uma lei natural, e não é necessário que atrás disto haja ambi-
ções literárias. Tive certa vez um professor2 que fazia tudo menos litera-
tura; entretanto, escrevia contos magníficos. Assim são as coisas e assim
comecei eu também. Quando mais tarde chegou o tempo em que eu não
quis continuar escrevendo, instintivamente, eu que quis ser “poeta”, co-
mecei a fazê-lo conscientemente. A princípio foram poemas...

LORENZ: Isto quer dizer que começou sua carreira como lírico?

GUIMARÃES ROSA: Não, tão mal não foi. Entretanto, escrevi um li-
vro não muito pequeno de poemas [Magma], que foi até elogiado. Mas
logo, e eu quase diria que por sorte, minha carreira profissional começou
a ocupar meu tempo. Viajei pelo mundo, conheci muita coisa, aprendi
idiomas, recebi tudo isso em mim, mas de escrever simplesmente não
me ocupava mais. Assim se passaram quase dez anos, até eu poder me
dedicar novamente à literatura. E revisando meus exercícios líricos, não
os achei totalmente maus, mas tampouco muito convincentes. Princi-
palmente, descobri que a poesia profissional, tal como se deve
maneja-las na elaboração de poemas, pode ser a morte a poe-
sia verdadeira. Por isso, retornei à “saga”, à lenda, ao conto
simples, pois quem escreve esses assuntos é a vida e não a lei
das chamadas regras poéticas. Então comecei a escrever Sagarana.
Nesse meio tempo haviam transcorrido dez anos, como já lhe disse; e
desde então não me interesso pelas minhas poesias, e rara-
mente pelas dos outros. Naturalmente digo isso, porque é um dado
biográfico, pois não aconteceu que, um belo dia, eu simplesmente deci-
disse me tornar escritor; isso só fazem certos políticos. Não, veio por

2Expediente que traz à lembrança Padre Ezequiel, preceptor de Manoel de


Barros.

104
A traça e o traço
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si mesmo; cresceu em mim o sentimento, a necessidade de es-


crever e, tempos depois, convenci-me de que era possuidor de
uma receita para fazer verdadeira poesia (LORENZ, 1983, p. 69-
70, grifos meus).

Portanto, está-se diante de uma postura alicerçada em consci-


ência e partido críticos formais de ordem fundamental. Deste
modo, em princípio, não se trata de relegar a segundo plano o
poema, materializado na produção rosiana por Magma; muito
menos – em consequência – autodesprestigiá-lo como certa par-
te da crítica assim o encara. O que há é somente a prática do que
assevera, ou seja, o exercício de volver – na vida e na expressão
literária – aos princípios originais do contar e ouvir, resultando
daí numa fala-escrita com a qualidade poética que se ilumina
desde então.
Por seu turno, em trajeto paralelo ao de Rosa, Manoel de Bar-
ros tem na poesia a forma de caminhar de costas – “Eu não ca-
minho para o fim, eu caminho para as origens”–; de infantilizar a
língua, de encontrar no entre de recordações e infâncias uma
“língua de brincar”. Deste modo, inicia passos neste mundo –
coincidentemente – em 1937, com a publicação do livro Poemas
concebidos sem pecado, e desde lá já deixa transparecer, em
primeiro, um modelo escritural próprio e inaugural, bem distante
da linguagem disposta no livro de poemas não publicado Mag-
ma, premiado naquele ano pela Academia Brasileira de Letras.
Em verdade verificável, se de lá Rosa reinventa a língua, o faz por
si, mas em segundo momento em relação à já elaborada por Bar-
ros. Desde então, Barros só faz repetir – como procedimento re-
tórico – a inovação de uma forma mágica e particular que, longe
de aproximá-lo da linguagem de Guimarães Rosa, o singulariza
em profundidade3. O que parece verter a linguagem de Barros à

3Para informações mais precisas e aprofundadas sobre o fato, sugere-se a con-


sulta de GRACIA-RODRIGUES, K. De corixos e de veredas: a alegada similitu-
de entre as poéticas de Manoel de Barros e Guimarães Rosa. Tese de Doutora-

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Igor Rossoni
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sombra da de Rosa, por parte obscurecida da crítica, se deve ao


sucesso diametralmente oposto do reconhecimento de ambos.
Isto é, se Barros só ganha notoriedade pública em meados dos
anos de 80 – por texto eufórico de Millôr, mas também pelo infe-
liz artigo de Marcelo Coelho na imprensa escrita; [“o escuro o
iluminava”] que culminou em chamar a atenção sobre o autor
pelo avesso –, já com seis ou sete livros publicados; Rosa vive a
experiência no repentino, desde 37; ampliando o reconhecimento
a cada nova investida.
Como paisagem de amparo, Barros volve atenção ao berço de
origem: o pantanal. Diz: “Pantanal é o lugar da minha infância.
Recebi as primeiras percepções do mundo no Pantanal. Meu
olhar viu primeiro as coisas no Pantanal. Minhas ouças ouviram
primeiro os ruídos do mato. Meu olfato sentiu primeiro as ema-
nações do campo. E assim com os outros sentidos. O que eu te-

do. Araraquara: FCLAr/UNESP, 2006. Entretanto, deixa-se aqui registrado,


entre outras situações, duas imagens meramente pontuais que corroboram o
nublar dos olhares mais superficiais da crítica: Logo na primeira página de
Grande sertão: veredas se lê conceito-“definição” de sertão que se alastra em
outros tantos determinativos, ao longo daquela narrativa, adquirindo colores
intensamente diversas, no entanto, apontantes para sempre e mesma razão de
fundamento: “O Urucúia vem dos montões oeste. Mas, hoje, que na beira dele,
tudo dá – fazendões de fazendas, almargens de vargens de bom render, as va-
zantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda
virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho.
Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães é questão de
opiniães... O sertão está em toda parte” (ROSA, 1984, p. 09, grifo meu).
Manoel de Barros, em “Mundo renovado” constante em Livro de Pré-coisas se
lê: “No pantanal ninguém pode passar régua. Sobre muito quando chove. A
régua é existidura de limite. E o pantanal não tem limites. (...) Alegria é de
manhã ter chovido de noite! As chuvas encharcaram tudo. Os bagoaris e os
caramujos toros...” (BARROS, 1985, p. 31-2, grifos meus). Ou ainda, entre pas-
sagem do poema “Auto-retrato falado”, de O livro das ignorãças: “Não fui para
a sarjeta porque herdei uma fazenda de/ gado. Os bois me recriam./ Agora
eu sou tão ocaso...” (BARROS, 1993, p. 103, grifo meu) e passagem de “Entre-
meio com o vaqueiro Mariano”: “Tinha para crescer respeito, aquela lida jogada
em sestro e avesso. Mas a paciência, que é do boi, é do vaqueiro. E Mariano
reagia, ao meu pasmo por trabalho tanto, com a divisa otimista do Pantanal: –

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A traça e o traço
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nho de preciso são as primeiras emanações que Aristóteles cha-


maria de nossos primeiros conhecimentos” (MARTINS; TRI-
MARCO; DIEGUES, 2006, p. 31). Ao que sugere ser bem isto que
emana das palavras gorjeadas pela voz do poeta: de antes, a
(re)invenção dos sentidos primeiros.
O fato de ser na poesia o meio de busca ao primitivo-
essencial4, dialoga de modo sine qua non com a prospecção tem-
poral, tanto no estado de realidade quanto no de inventividade5;
talvez por isso destine projeto criativo a partir da memória re-
cordante e das “iluminuras” d’infância. Um azo além, ou aquém
[o resultado denota-se no mesmo], o estabelecimento deste topos
de inventividade perpassa pelo tempo, amplamente estendido
pela poesia de Manoel de Barros. De sorte, há nela além de ex-
plosão de garças em revoada de tardes, toda transitividade narra-
tiva do tempo esvaindo do então ao agora. Este fato sugere expor
de modo singular a função épico/narrativa que emana de todo
produto elaborado pelo poeta. Como recurso retórico para tal
finalidade, associa-se ainda o fato de Barros nutrir apreço especi-
al ao recurso da metalinguagem, exercício que, em si, tonifica o
aspecto épico, vez que – no tempo – faz volver a linguagem sobre
a própria linguagem; o fazer sobre o próprio fazer.
Assim, se o Pantanal é o lugar; a poesia é o não-lugar onde o
lugar lhe esplende a natureza mais insólita e original: concebe-o

Aqui, o gado é que cria a gente...” (Estas estórias/Ficção completa, p. 777,


grifo meu).
4 Atitude que norteou a criação da “Vanguarda Primitiva”, movimento que visa

a “transformar o grau de conhecimento em índice de desenvolvimento humano


através da fascinação pelo primitivo” (MARTINS; TRIMARCO; DIEGUES,
2006, p. 31).
5 Questionado sobre o tema mais recorrente na arte poética, Manoel resposta:

“Acho que ser gente é o tema tão mais recorrente. Ou não ser gente. Se o tem-
po não é humano eu humanizo. Amarro o tempo no poste para ele parar.
Boto a Manhã de pernas abertas para o sol. Me horizonto para os pássaros.
Uma ave me sonha. O dia amanheceu aberto em mim” (id. p. 30)

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Igor Rossoni
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untando memória e infância, e nele se emancipa. Afinal: fala e


escreve “Absurdez”6.
Ao retomar o partido aqui ensejado, visa-se caminhar pouco
mais rumo ao interior das destacadas atitudes construtivas; con-
siderando então, na inversão, a consagração possível de transfi-
guração de metas: Barros e o sucesso poético e Rosa e o evento
narrativo. Para tanto, toma-se, respectivamente, fragmento do
poema “Mundo pequeno”, de Livro das ignorãças (1993) e de
excerto pontual de Grande sertão: veredas (1956), observando-
os aos avessos.

O universo discursivo de Manoel de Barros cheira a corixos,


camalotes, restos de lesmas e dilurimentos de orvalho anoiteci-
dos. E mais, se constrói a partir do proporcionar desvirtuamen-
tos nevrálgicos nas orações a ponto de torná-las tecido onde as
coisas mais naturais escapam entre-dedos – em aves amanheci-
das – que crescem por construírem nidificações nos desvãos da
palavra. Apesar disso, ainda há algo que distingue – se é que as-
sim se pode designar – a poesia da poesia de Manoel de Barros.
O conveniente é que este destinar é tornar a poesia mais afeita à
palavra sonsamente proseada. Uma conversa às avessas, em que
o tino da compreensão carece de deitar fora o prumo das coisas e
a linearidade dos acontecidos. Então, a poesia de Manoel de Bar-

6 No poema “Um songo” registra: “Aquele homem falava com as árvores e com
as águas/ ao jeito que namorasse./Todos os dias/ele arrumava as tardes para os
lírios dormirem./Usava um velho regador para molhar todas as/manhãs os rios
e as árvores da beira./Dizia que era abençoado pelas rãs e pelos/pássaros./A
gente acreditava por alto./Assistira certa vez um caracol vegetar-se/na pe-
dra./mas não levou susto./Porque estudara antes sobre os fósseis/linguísticos/e
nesses estudos encontrou muitas vezes caracóis/vegetando em pedras./Era
muito encontrável isso naquele tempo./Até pedra criava rabo!/A natureza era
inocente.//P.S.:/Escrever em Absurdez faz causa para poesia/Eu falo e escrevo
Absurdez./Me sinto emancipado.”

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A traça e o traço
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ros se qualifica pelo tom da pretensa prosa que dela emana. Nes-
te sentido, parece significativo a recorrência a personagens e coi-
sas que se desenvolvem em tempo e espaço quase que narrativo,
meio que descritivo, ainda que altamente acometido da mais sin-
gular manifestação de poeticidade: modo singelo pelo qual o ver-
bo “pega delírio” (BARROS, 1993, p. 15). Pensa-se, neste momen-
to, na figura avoada do avô, criando espinhos por debaixo das
unhas. Ou mesmo Bernardo, ser entre árvore e arremedo de
aves: “(Bernardo consegue esticar o horizonte usando três fios de
teias de aranha. A coisa fica bem esticada)” (BARROS, 1993, p.
97). E ainda mais outras coisas-personagens que povoam e se
deliciam – garças, rãs, andarilhos, conchas, lodos, limbos, cara-
cóis, lamas, lagartos, pedras, rios, tardes entortadas, ciscos, gos-
mas, – tidos e retidos em histórias de acontecimentos. Todos
eleitos à condição de personagens em dinâmico percurso no fre-
mir do universo primal de Manoel de Barros. Assim, naquelas
águas tudo sugere ser vezo de proseio e gorjeações.
O discurso realiza tamanha tarefa. Os versos equiparam-se a
frases e os ritmos interiores vão se aproximando de pausas e frei-
os mais ligados à respiração e à ordem de pronunciamento do
que de qualquer outro intento de segmentação poemática. Então
a fala ganha notoriedade. O artefato oral destila uma potenciali-
dade em que o leitor participa da conversa como ouvinte, e – em
simultâneo − como interlocutor. Assim, tudo em Barros parece
adquirir polivalência discursiva e quase-informativa.
Toma-se por aplicação o fragmento VII de “Mundo pequeno”.
Ao retirar-se o formato original de distribuição em versos, assim
se constitui:

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a be-
leza das frases, mas a doença delas. Comuniquei ao Padre Ezequiel, um
meu Preceptor, esse gosto esquisito. Eu pensava que fosse um sujeito es-
caleno. – Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me
disse. Ele fez um limpamento em meus receios. O Padre falou ainda:
Manoel, isso não é doença, pode muito que você carregue para o resto da
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Igor Rossoni
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vida um certo gosto por nadas... e se riu. Você não é de bugre? – ele con-
tinuou. Que sim, eu respondi. Veja que bugre só pega por desvios, não
anda em estradas – pois é nos desvios que encontra as melhores surpre-
sas e os ariticuns maduros. Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de agramática (BAR-
ROS, 1993, p. 87).

Pois bem, sugere-se dispor diante de uma conversa. Estranha,


mas uma prosa que dá conta de determinado acontecimento. Aí a
coisa verte a duas. Por isso o estranhamento. Em primeiro lugar,
o modo como vem construída, tecendo tecido afeito à prosa. Nes-
te sentido, há deslocamento espaço-temporal. Há personagens e
transformações. O ritmo se mostra – aparentemente – desprovi-
do de sentido e pulsação interiores – atributos da poética da mo-
dernidade. Ao contrário, deixa-se conduzir por uma dinâmica
retórica que se assemelha a do simples relato. Por enquanto, apa-
rentemente. Assim se observa a utilização de discursos variados
– pensando em Genette – tanto em relação à distância: discurso
direto [“Você não é de bugre”]; discurso indireto livre [“Há ape-
nas que saber errar bem o seu idioma”] quanto no que se refere
às modalizações: discurso avaliativo [“Manoel, isso não é doen-
ça”]; discurso figurado [“Eu pensava que fosse um sujeito escale-
no”]; discurso modalizado [“... pode muito que você carregue
para o resto da vida um certo gosto por nadas...”]; discurso avali-
ativo com espírito de modalizado [“Esse Padre Ezequiel foi o meu
primeiro professor de agramática”]. Acrescenta-se ainda a utili-
zação de procedimentos que caminham na contramão do fazer
poético. Barros se vale de construção por aposto – “um meu Pre-
ceptor” – intercalando oração explicativa que assume função de
esclarecimento – para melhor informar/referencializar – o inter-
locutor. Além disso, versa em consequencialidades ao utilizar
recursos retóricos da natureza de “pois”, “veja que”, “me disse”,
“falou ainda”, “ele continuou”, “eu respondi”, vez que poesia a
nada serve, nada explica, nada justifica, nem representa. Apenas,
apresenta.
110
A traça e o traço
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Por instituir variedade discursiva, constrói o tecido a partir do


diálogo. E diálogo só se viabiliza no decurso de determinado
tempo. Poesia, segundo Paz, consagra o instante, apesar do fato e
do próprio tempo de ocorrência. Fixa o tempo na atualização do
momento de vivência poética. O que se verifica neste caso é uma
espécie de narração que se inicia num tempo passado – “Desco-
bri aos 13 anos...” e culmina – por aquisição e transformação –
na consciência do tempo presente. Tamanha consciência vem
demarcada no discurso pela transformação ocorrida quando da
passagem indireta do “descobrimento” do “prazer nas leituras”
para a exercitação direta do promover, em si, doença nas frases:
“Que sim, eu respondi”. Assim, a promoção de um salto de qua-
lidade: do ver ao fazer a tal-da-coisa.
Este parece ser o gancho que abre passagem para a segunda –
e concomitante – instância estranhada. O salto aqui é mais sutil
que a passagem da leitura à ação do fazer bem o “erro” nas frases.
Então, o leitor é tomado por outra sorte de angústia que aflora do
interior do texto e o deixa sem explicação diante dos fatos, agora,
apresentados. Portanto, não se trata mais do modo como são
veiculados, mas, do espírito que anima e antecede tal apresenta-
ção. Aí a tamanha subversão. Um quê de inexprimível, de indizí-
vel explode do conjunto, aparentemente prosaico e reveste todo o
tecido de um magma de limbo, e coisas rastejantes. Sensações
experimentadas e não visualizadas: ensinamen-
to/aprendizado do próprio fazer poético: um limpamento
em todos os receios. Exercício metalinguístico da vivência do
poético no que têm de maior essencialidade. Aí o nó provocado
na garganta. Tudo entra em franco estado de suspensão. Respira-
ção perde fôlego e o texto dinamiza-se em pleno artifício de pro-
vocar desvios. Mais ainda, constituir-se no próprio desvio: a na-
tureza primeira da expressão poética: “Poesia é quando a tarde
está competente para dálias” (BARROS, 1993, p. 13) ou exercitar
o “Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao pente fun-

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Igor Rossoni
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ções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma
begônia. Ou uma gravanha” (BARROS, 1993, p. 11).
Deste modo, três instâncias se verificam presentes neste exer-
cer do procedimento criativo: primeiro, o estabelecimento da
natureza descritiva e épica do dizer; segundo, a eclosão – desde-
dentro da frase – de algo que se lhe escapa e se manifesta como
lugar de virtude exponencial de espontânea essencialidade; e
terceiro – pela confluência inebriante dos estados anteriores –, a
consagração do não-lugar como lugar sem limites, comunhão
imperceptível entre o aqui e o agora, disposição intervalar do
silêncio como sonoridade fundamental do espaço do sucesso pre-
sentificado, transfigurado de sagração original de coisa-em-si.

Por devido turno, Guimarães Rosa, em entrevista a G. Lorenz,


se autodelineia reacionário, vez que busca retornar à origem da
língua, onde a palavra ainda está nas entranhas da alma, para
poder iluminá-la segundo a própria vontade (LORENZ, 1983, p.
84). Expressa também que “cada palavra é, segundo sua essên-
cia, um poema” (LORENZ, 1983, 89).
Deste modo, detemo-nos – especificamente – em uma delas:
“Nonada” (ROSA, 1982, p. 9). Palavra-poema que abre o texto
em prosa e permite de si e em si – inauguralmente – afloramen-
tos de poesia.
Desde cedo o leitor se depara com uma sequência que, no mí-
nimo, soa estranhada. A princípio são seis as letras que a com-
põem, configuradas segundo despretensiosa ordenação de con-
soantes e vogais. No entanto, uma mirada mais atenta pode con-
duzir a outra validade. Observa-se o fato de, ao ordenar três blo-
cos silábicos – (1): consoante [N] e vogal fechada [O]; (2): repeti-
ção da primeira consoante [N], vogal alterada e aberta [A] e (3):
alteração na terceira consoante [D] e conservação da segunda

112
A traça e o traço
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vogal [A] com tonificação abrandada em relação a do segundo


bloco – a sequência sugere um trabalho construtivo que se apro-
xima de instância rítmica que parece capaz de copular – num
mesmo segmento – duas instâncias exemplares. Por um lado,
lembra associações rítmicas externadas por justaposições de sí-
labas fortes e fracas que sugerem modular as construções poemá-
ticas da tradição. Por outro, deixa entrever pulsação interna, uma
vibração rítmica que – pensando nos intervalos entre sílabas,
segundo Osip Brik, e não nelas em si – ambientalizam e dão sus-
tentação aos versos livres da modernidade. Assim, o que se têm
aparenta-se com o exercitar a língua em várias potencialidades.
De arcaísmos a uma infinidade de modulações de letras com in-
tuito de atingir o nascente da língua – inaugural – prenhe de
revelações. Em outras palavras, parece haver – na contextura
deste termo – a união da tradição com a modernidade poética.
Procedimento singular que se sugere algo diverso ao evidenciado
em Barros e – estranhadamente – revela um tempo que se mos-
tra sem tempo; abertura para visualização de uma coisa que se
arredou da sistematização normativa de tempo qualquer. Assim,
abre-se um universo imperioso onde – em diálogo monologado –
um ex-jagunço exaspera pacientemente as próprias inconvictas
vivenciações: “O senhor sabe o que o silêncio é?/ É a gente mes-
mo, demais” (ROSA, 1982, p. 415).
Ao retomar o termo em discussão, é prudente notar que a
aventura percursiva das consoantes – N/ N/ D – ocorre em sen-
tido inverso ao das vogais – O/A/A. Deste modo, o termo assim
se configura, resultado associativo em que – segundo Jakobson –
o jogo de seleção e combinação sugere obedecer a uma ordem, no
mínimo, intrigante. O tom da irreverência, entretanto, parece
advir da força fonética que recai sobre as vogais. Assim, está-se
diante de uma variada composição de sons em tonalidades dife-
renciadas. Inicia com uma sonoridade oclusa – [NÔ] – voltada e
fechada em si mesma, viabilizando sentido possível de soturni-

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Igor Rossoni
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dade, mistério, resguardo e clausura: – “O senhor acha que mi-


nha alma eu vendi, pactário?!” (ROSA, 1982, p. 460). A continui-
dade se estabelece a partir da manutenção da mesma consoante
mas – em ruptura completa com o movimento anterior – agora,
determinando bloco silábico inteiramente claro, aberto – [NÁ] –
feito grito de profundo livramento; deslocando possibilidade de
sensação para paragens outras onde brilho e intensidade preen-
chem todos os espaços da palavra. Uma luminosidade inteira-
mente nova e bem aventurada: “O diabo não há! É o que eu digo,
se for...” (ROSA, 1982, p. 460). E fecha com alteração da conso-
ante e ruptura moderada pelo abrandamento que se estabelece a
partir da manutenção da vogal do segundo bloco – [DA] – em
tom de amenização. Estabelece-se pois, com este abrandamento,
a manutenção da luminosidade detectada – ansiosamente –
quando da deflagração do segundo bloco, apenas que – neste – o
brilho decai ao ritmo da ordem tangencial do fazer humano. Pa-
rece, portanto, decair de tom – ofuscar-se de um tanto – mas,
garantir a sensação de restabelecimento de uma ordem toda ela
fruto de extremos iconizados pela travessia do primeiro ao se-
gundo bloco: “Existe é homem humano” (ROSA, 1982, p. 460).
Assim, também como relativização de sentidos e acontecimentos
sugeridos pelo abrandar da última sílaba, têm-se a relativização
da própria condição humana, onde tudo se sucede regido pelo
atributo da inconstância e da imprevisibilidade, ao ponto de que
tudo é em tudo movediço e parte do grande percurso de busca à
essência mais íntima do próprio homem. Deste modo o todo –
feito palavra-poema – culmina por expressar o máximo de signi-
ficado com o mínimo de significante e abre-se para diálogo mais
intenso e implicado: o encontro no e com o último período que
fecha – sem encerrar – o discurso de Rosa: “Travessia” (ROSA,
1982, p. 460). Rumo ao infinito.
Assim, “Nonada” – que abre as mais de 400 páginas do gran-
de ser – tão de nós mesmos – contém, sintetiza a polifonia que se

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A traça e o traço
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percebe irradiada na conversação de Riobaldo. E de todos os ou-


tros que são aludidos a partir destes falares. Assim, desde a pro-
cura do Grivo, de “Cara-de-Bronze” – que vaza os tamanhos ge-
rais, profanos e míticos – à cata de algo que, mesmo encontrado
e vindo-de-retorno, lá sempre esteve – em toda parte –; e aludi-
do, no muito sem querer (vezo de irradiante ironia), pela fala
transversada do vaqueiro Adino: “Aí, Zé, opa!” (ROSA, 1969, p.
126). Ou seja, o delineio de uma composição de fuga-santificada
e arremesso rumo à própria essencialidade: apo éZ ia!:

A poesia que é mais uma vivência do que um tempo (...). O substantivo


exemplar. Onipotente abre e fecha os mundos (...) como quem fizesse
nada. Ou do nada fizesse tudo. A só virtude da palavra sem mais pala-
vras. Poesia antes de mais nada (XISTO, 1983, 117).

No caso específico de “Nonada” parece que a picada primeira


se enveredou de si em si mesma. E o tino de procura não se fez
necessário por nele propriamente ser. Então, o poeta não precisa
mais falar. Deixa que outro fale por ele. Instaura voz para a fala-
ção do narrador: o novo Grivo redivivo nas tramas guturais e
retóricas de Riobaldo.
O todo textual em prosa debanda à poesia – paralelamente ao
detectado em Barros – e evolui, constrói maioridade a partir des-
te, irreversivelmente minimalizado, poema: “Nonada”.
Uma leve referência ao termo pode ser encontrada na última
obra publicada por Rosa: Tutaméia (1967) ou Terceiras estórias.
Trata-se de texto criativo por enigmático, por isso – como anteri-
ormente mencionado – gerador de um desequilíbrio entre o inte-
resse crítico manifestado sobre os primeiros livros e o oposto em
relação a este último. Como se sabe, o rebento foi considerado
repetitivo, involutivo e regressivo, justamente pelo fato de Tuta-
méia primar pelo mínimo, pelo descomunal. Trata-se, realmente,
de construção polêmica: o livro apresenta dois títulos, quatro
prefácios, dois índices antecedidos por duas epígrafes suposta-

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Igor Rossoni
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mente apócrifas e ainda um glossário. É neste que o leitor se de-


para com uma referência – ainda que indireta – ao termo. En-
contra-se à página 184 (ROSA, 1985) – embutido no quarto pre-
fácio denominado “Sobre a escova e a dúvida”: “tutaméia: no-
nada [grifo meu], baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta, qui-
quiriqui, tuta-e-meia, mexinflório, chorumela, nica, quase-nada,
mea omnia”. Nada além. Uma primeira leitura ainda provoca
certo sentido de perplexidade e perdição. No entanto, com o pas-
sar dos olhos, algo começa a fazer sentido na relação entre os
dois títulos da obra, os dois índices e as duas possibilidades de
similitude entre o primeiro e último sentido que o autor confere a
“tutaméia” quando da confecção do glossário: respectivamente,
“nonada” e “mea omnia”. Deste modo, o primeiro índice –
abrindo fisicamente a obra – traz a seguinte disposição TUTA-
MÉIA (TERCEIRAS ESTÓRIAS). O segundo índice – fechando-a
– apresenta TERCEIRAS ESTÓRIAS (TUTAMÉIA). Portanto,
capta-se um intuito consciente de estabelecer uma relação espec-
tral entre os elementos apresentados. Ao seguir esta linha de lei-
tura localiza-se “nonada” como pertencente ao grupo de coisas
ambientadas pelo primeiro índice e “mea omnia” ajustada às do
segundo. Assim, pode-se pensar que – por coerência – “nonada”
refere-se, num primeiro momento, ao inverso de “mea omnia”,
ou seja, “quase-nada”, “coisa pouca” etc.; vez que “mea omnia”
traduz-se por “tudo em mim”. Entretanto, nada pode garantir –
com precisão – uma dedução deste naipe. E aí esta pequena in-
vestigação se incrementa de maior expectativa. Isso ocorre, pois
Rosa se vale de símiles – afinal elabora um glossário – e dentro
dele parece não obedecer as regras que se destinam à construção
de tal organismo. Quer dizer, como destinar a um deles – exata-
mente a “tutaméia” – significados que não obedecem à condição
de similaridade: “quase-nada” e “tudo em mim”? Neste caso, sim
e ambiguamente, dispondo-se justo ao feitio da construção es-
pectral da obra e não da de um glossário propriamente dito. Por-

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A traça e o traço
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tanto, e por mais uma vez, o leitor se depara com o enigmático,


com o paradoxal; suspendendo-se a oportunidade de afirmação
sobre toda e qualquer coisa que seja.
Ao considerar que – realmente – “nonada” seja relativo a
“pouca coisa” ou “quase-nada”, penetra-se numa vereda que –
desde o primeiro passo – nos atola até o pescoço. Como crer que
o todo universo de “grande sertão” se afine a um “quase-nada”,
ou uma “pouca coisa”. Parece contra senso. Por outro lado, dei-
xar de assim pensar conduz a uma reflexão de que, diante da
eternidade do espírito, coisas deste tipo são mesmo pouco ou
ainda quase nada. Entanto, a procura se reveste de isso mesmo:
imaginação. Irreverência e genialidade criativa. Nesse revolvi-
mento todo, ainda a possibilidade de o termo abrir e fechar os
mundos, defendida por Xisto (1983, p. 117).
“Nonada” poderia também ser entendida por, simplesmente,
mais uma aglutinação de termos: “non” e “nada”, como defende
Nilce Sant’Anna Martins em As muitas palavras de João Guima-
rães Rosa:

Nada; coisa sem importância.// Forma arcaica resultante da aglutinação


de non + nada. É a palavra que abre o romance, constituindo sozinha a
primeira frase e a primeira estranheza. Reaparece mais cinco vezes, sen-
do a última no parágrafo final. Heloísa Vilhena de Araújo diz: “A palavra
‘nonada’ que inicia o livro, poderia, assim, ser a indicação de que o mun-
do de Grande sertão: veredas estaria, numa imitação da Criação, sendo
criado ex-nihilo” (2001, p. 337).

Aí mais dois caminhos se apresentariam. Ou a demarcação


dêitica de determinado local, denominado “nada”; ou instância
de maior amplitude transmutando-se o pensamento de uma to-
pologia geográfica para condição de outra – ageográfica. De um
espaço que é sem espaço e sem tempo: uma transcendência de
lugar – referindo-se à pertinência metafísica – reflexo de dada
condição de vacuidade profícua e emergente. Isto parece condu-
zir a algum encaminhamento mais seguro, embora misterioso e

117
Igor Rossoni
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obtuso. Ao menos deixa entrever uma instância atípica, qual seja:


a que não se determina por topografia única e materializada. Em
verdade, está-se prestes a atingir o entendimento de que “nona-
da” é muito mais uma condição de essencialidade do que de rela-
tividade. Muito mais do âmbito da universalidade que da regio-
nalidade. Assim, se evidencia como signo altamente motivado
pelo assédio da poesia que dele emana e se/nos abre para um
mundo de plural e vastíssima significação. Portanto, “nonada”
está muito para a poesia do que para o entendimento lógico e
referencial que – por ventura – se busque. Em verdade, por mais
que se atribua isto ou aquilo ao termo, ele parece dar-de-lado.
Deixar por aquiescer. Tomar por de-súbito efervescimento. Aí o
deparar com o nada, há pouco disposto. O nada extremamente
eloquente. Um lugar que é sem-lugar. Um estado em que a vali-
dade das coisas se manifesta pela superação delas mesmas. Onde
o verdadeiro fruto é nada-mais-nada-menos que o todo se cons-
truindo a partir do todo já formado. Aí o início de tudo do “Gran-
de sertão”. A estória toda sintetizada – feito “leitmotiv” – num só
termo. Automacerado, imbricado, implicado, amalgamado de si
em si mesmo. Então, o grande diálogo-monologado de Riobaldo
insere-se no entre do que busca e o que significa a veracidade
plena da junção das coisas da matéria com as que dela escapam e
culminam por envolvê-la por completo: “(...) E me inventei neste
gosto, de especular ideia. O diabo existe ou não existe? Dou o
dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoei-
ra; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo
por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o
barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigo-
so...” (ROSA, 1982, p. 11). O tamanho discurso de Rosa ao prati-
car a crença de que:

Sou precisamente um escritor que cultiva a idéia antiga, porém sempre


moderna, de que o som e o sentido de uma palavra pertencem um ao ou-
tro. Vão juntos. A música da língua deve expressar o que a lógica da lín-

118
A traça e o traço
_______________________________________________

gua obriga a crer. Nesta Babel espiritual de valores em que hoje vivemos,
cada autor deve criar seu próprio léxico, e não lhe sobre nenhuma alter-
nativa; do contrário, simplesmente não pode cumprir sua missão. Estes
jovens tolos que declaram abertamente que não se trata mais da língua,
que apenas o conteúdo tem valor, são pobres coitados dignos de pena. O
melhor dos conteúdos de nada vale, se a língua não lhe faz justiça (LO-
RENZ, 1983, p. 88).

Por isso, “explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os


crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos
avessos...” (ROSA, 1982, p. 11). É deste o tempo/espaço que toma
vulto na coisa-pulso de “nonada”. Algo que paira desde sempre e
em constante mutação. Local onde vige a liberdade mais primei-
ra e perene. De tão libertária cria enconfusamentos nos olhos das
gentes e promove perplexidades e perdições diante de nós mes-
mos. Vivência disto? No quando se pega pensando em mesmo
nada e, assim mesmo, sentir-se senhor de tudo. No quando, sem
mais nada a fazer, desprender-se de todas as amarras que alicer-
çam as regras e verificar-se – sob súbito – que o ínfimo, aos mol-
des de Manoel de Barros, é tão imenso quanto a maior conquista
que se possa intensamente realizar. E tudo isso por um só-cisco
de fração de segundo. Milimétrica mensura. Num único pisco.
Quando por mais que se caminhe, experimentar o gozo de se sa-
ber não ter dado passo algum. Aí o verdadeiro regozijo que a ati-
tude criadora – a poesia – permite experimentar/vivenciar. Êta,
sentido-de-Deus este aqui. Bem ali, no frente/avesso de todas as
coisa. Ali, nonada: metáfora de união de todas as coisas: iminên-
cia entre o real e o para-real, o local e o distante, os campos e os
gerais. Enfím: nós mesmos.

Por fim – do jogo de avessos e travessuras; traças e troços – o


que de resto há entre Barros e Rosa é mesmo uma enxurrada de
fazer en-cantamentos e deslimtes.
119
Igor Rossoni
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Desleituras literárias, reescritas da história
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Desleituras literárias, reescritas da


história em As Naus, de Antônio
Lobo Antunes

Jacimara Vieira dos SANTOS

Doutora pela UFBA.


E-mail: mara_vie@yahoo.com.br

127
Jacimara Vieira dos Santos
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Desleituras literárias, reescritas da história
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A
obra literária As naus sugere um modo avesso ao épico
de Camões e, não obstante, ironiza e desconstrói a saga
dos heróis nacionais ainda que seja transparente o con-
tato com os paradigmas do poema camoniano, levado a contraste
pelo narrador.
Chama, porém, a atenção, o modo como outras referências li-
terárias são personificadas pela ficção, de maneira derrisória.
Neste sentido, é curiosa a maneira como o romance aborda a
figura de Cervantes e o clássico, Dom Quixote:

Ao segundo almoço conheceu um reformado amante de biscas e suecas e


um maneta espanhol que vendia cautelas em Moçambique chamado
Dom Miguel de Cervantes Saavedra, antigo soldado sempre a escrever
em folhas soltas de agenda e papéis desprezados um romance intitulado,
não se entendia porquê, de Quixote, quando toda gente sabe que Quixote
é apelido de cavalo de obstáculos (...). (ANTUNES, p. 20, 1988)

A concepção literária que exalta a criação do clássico de Cer-


vantes passa a figurar no plano do romance, em primeiro lugar,
de forma metalinguística, como se pode aduzir. Porém, o real
histórico de que se vale o romance de António Lobo Antunes para
a referência literária, se mostra como interlocutor de épocas –
épocas diferentes com problemas comuns – cuja caracterização é
certo descompasso e estranhamento frente ao tempo, às inven-
ções e mudanças próprias, sejam elas moinhos de ventos, que
alegórica e fantasmagoricamente parecem gigantes, sejam as
naus que já não têm portos certos e ancoraram num período
muito distante do atual, assistindo ao passar do tempo contem-
plativamente.
A presença de Dom Quixote na ficção de António Lobo Antu-
nes, obra considerada o protótipo do romance moderno, ganha
importância para a nossa análise porque sinaliza aspectos fun-
damentais sobre a discussão acerca da dessacralização da reali-

129
Jacimara Vieira dos Santos
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dade, conforme analisa Michel Foucault, em As palavras e as


coisas:

A ficção desenganada das epopéias transformou-se no poder representa-


tivo da linguagem. As palavras acabam por se fechar na sua natureza de
signos. Dom Quixote é a primeira das obras modernas, pois nela se vê a
razão cruel das identidades e das diferenças zombar incessantemente
dos signos e das similitudes; pois a sua linguagem rompe a velha intimi-
dade com as coisas, para entrar nessa soberania solitária de ser abrupto,
donde só sairá convertida em literatura. A semelhança entra, assim, nu-
ma era que é para ela a do contra-senso e da imaginação. (FOUCAULT,
1966, p. 73)

Os aspectos apontados por Foucault parecem , de modo sub-


liminar, dispor-se na obra de António Lobo Antunes. Acredita-se
haver, neste ponto, em As naus, um volteio metacrítico, haja vis-
ta o paralelo da representação da obra de Camões, sob a ficciona-
lização em que este se torna O homem de nome Luís, e devida
epopéia, que é posta ao lado do romance moderno de Miguel de
Cervantes, fomentando várias discussões acerca da representação
literária que atravessaram os tempos.
Ao lado da justaposição de cronologias diferentes, concernen-
tes a cada personagem, dentro do romance, considera-se haver o
trabalho de re-elaboração da realidade, associações e dissocia-
ções que ampliam a textualidade e as condições interpretativas.
Conveniente é notar o modo como as duas personagens são des-
critas a partir de peculiaridades fisionômicas. Para Camões, “Era
uma vez um homem de nome Luís, a quem faltava a vista es-
querda” (p.19); e, para tratar de Cervantes, “um maneta espa-
nhol” (p.20), de modo que ambos são tomados a partir das res-
pectivas e constatáveis faltas (olho e mão).
A configuração física de Camões poderia estar associada a ou-
tro tipo de leitura (ou, mais uma vez, desleitura), excetuando-se a
verossimilhança de que se vale o narrador para especificar o ho-
mem de nome Luís correspondente ao Luís Vaz de Camões, que,

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Desleituras literárias, reescritas da história
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de fato só tinha um dos olhos. Assim, pode-se inferir que pelo


lado simbólico, o narrador privilegia, sobretudo, a visão sobre o
mundo, pois à época de Camões é marcante o influxo da transi-
ção de uma visão teológica do mundo para uma outra visão que,
se não rompe com o ideal teológico, forçosamente sofre modifi-
cações por conta, principalmente, da experiência das viagens e
dos Descobrimentos.
A mão1 faltosa a Cervantes não chega a torná-lo caricato, mas,
ao contrário, frisa-lhe a presença hábil, literal manipulação, cujas
mãos – se em par, tornaria ainda mais expressiva a capacidade
artística.
O encontro de Camões com Cervantes é também simbolica-
mente importante ao considerar-se que o primeiro como repre-
sentante da épica e o segundo a representar o romance moderno.
Sob este prisma, as personagens protagonizam discussão subli-
minar acerca das batalhas e dos heróis, em que, ao se concordar
com a afirmação de Octavio Paz (1982, p. 275) – “O herói épico é
um arquétipo, um modelo” – vê-se que os heróis modernos já
não correspondem ao que deles se espera:

No herói pelejam dois mundos, o sobrenatural e o humano, mas essa lu-


ta não implica ambigüidade alguma. Trata-se de dois princípios que dis-
putam a alma e um deles acabará por vencer o outro. No romance não
há nada semelhante. Razão e loucura em Dom Quixote, vaidade e
amor em Restignac, avareza e generosidade em Benigna formam uma

1 Walter Benjamin, em Magia e Técnica, Arte e Política (1994, pp. 220-


221), apresenta uma interessante leitura acerca do papel simbólico dessa corre-
lação física: “A alma, o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo.
Interagindo, eles definem uma prática. Essa prática deixou de ser familiar. O
papel da mão no trabalho produtivo tornou-se mais modesto, e o lugar que ela
ocupava durante a narração está agora vazio. (Pois a narração, em seu aspecto
sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narra-
ção, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência
do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito). A antiga
coordenação da alma, do olhar e da mão, que transparece nas palavras de Va-
lery, é típica do artesão, e é ela que encontramos sempre, onde quer que a arte
de narrar seja praticada.

131
Jacimara Vieira dos Santos
_______________________________________________

única teia. Não se sabe nunca onde terminam os ciúmes e onde começa o
amor para Swann. Por isso nenhum desses personagens pode ser real-
mente um arquétipo, no sentido em que o são Aquiles, Cid ou Rolando.
Épica de heróis que raciocinam e duvidam, épica de heróis du-
vidosos, dos quais ignoramos se são loucos ou prudentes, santos ou
demônios. Muitos são céticos, outros, francamente rebeldes e anti-
sociais, e todos em aberta ou secreta luta contra seu mundo. Épica de
uma sociedade em luta consigo mesmo. (PAZ, 1982, p. 275)

Enquanto o herói antigo, aquele mesmo que Camões elege pa-


ra protagonizar seus cantos, representativos de uma comunida-
de, estava empenhado em restabelecer a ordem e a justiça, o he-
rói novelesco se diferencia bastante deste modelo. A transição do
herói épico para o romanesco também traz outro conteúdo notá-
vel para a análise da linguagem literária, pois para Octavio Paz
(1982, p. 276), “O realismo do romance é uma crítica da realida-
de e até uma suspeita de que seja tão irreal como os sonhos e as
fantasias de Dom Quixote”.
No decurso da desleitura, o processo entrópico se mostra pre-
sente, dando impressão imediata de desorganização e desordem,
pondo em plano paralelo obras díspares, de tempo diferenciados,
pertencentes a gêneros literários nitidamente distintos. Entretan-
to, os autores, convertidos em personagens ficcionais, são trata-
dos como homens de seu tempo que convivem com problemas e
concepções atuais. As angústias existenciais, as insuficiências, os
anseios, as faltas e toda a porção humana que se mostra nas per-
sonagens frente ao mundo, exigem que o homem esteja em cons-
tante movimento de adaptação e sofre o impacto de forças e ten-
sões peculiares à respectiva época. Assim sugerem estar Camões
e Cervantes, no romance de António Lobo Antunes. E quando
depois Cervantes se retira, voltando posteriormente apenas como
lembrança do homem de nome Luís, deixa um rastro de intrigan-
te ambigüidade simbólica:

132
Desleituras literárias, reescritas da história
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Ao décimo trunfo de copas o das cautelas levantou-se, Buenas noches,


senhores, que tenho de ir a Espanha acabar o meu livro, só consigo rever
provas com o sol cigano de Madrid à cabeceira, prometo enviar pelo cor-
reio um exemplar autografado a cada um (...). (ANTUNES, 1988, pp. 21-
22)

A subversão temporal, que permite ao narrador de As naus


revisitar Cervantes, dispõe também em paralelo o estatuto do
romance, pois, como frisado, passa do épico de Camões à obra
apontada como sendo inaugural do romance moderno. No con-
texto ficcional criado por António Lobo Antunes, Cervantes é um
jogador e está de passagem em zona portuária, enquanto almeja
a terra natal e as singularidades que lhe servem de inspiração,
como o sol cigano de Madrid a mostrar um entrelaçamento entre
o autor e a obra, num símbolo de pertença e de referência de ori-
gem, da própria terra. Paralelamente, o trecho focalizado mostra
que há contato entre a literatura da Espanha e a literatura portu-
guesa, tanto quanto houve um convívio entre as culturas destes
países em tempos de unificação dos reinos (União Ibérica). A
comunicação entre a ficção e a realidade se condensa no romance
de António Lobo Antunes, embora, paradoxalmente, venha a
romper similitudes e desafiar os princípios de realidade.
Octavio Paz (1982, p. 277) afirma que “A desarmonia entre
Dom Quixote e seu mundo não se resolve, como na épica tradici-
onal, pelo triunfo de um dos princípios, mas por sua fusão. Essa
fusão é o humor, a ironia. A ironia e o humor são a grande inven-
ção do espírito moderno.” Deste modo, às questões propostas se
juntam os elementos derrisórios que contribuem para instaurar
novas depreensões que desdobram e justapõem probabilidades
frente à realidade.
O romance aparece como gênero literário em contato com a
realidade, conforme expressa o pensamento de Mikhail Bakhtin
(1993, p. 211), ao afirmar que “Em literatura, o processo de assi-
milação do tempo, do espaço e do indivíduo histórico real que se

133
Jacimara Vieira dos Santos
_______________________________________________

revela neles, tem fluído complexa e intermitentemente.” E deste


ponto o teórico partirá para análise do cronótopo no romance.
O contato com a realidade em nada desmente as possibilida-
des de dessacralização da mesma, pois a conexão é mantida exa-
tamente para tornar possível a sua desconstrução. A paródia, a
ironia e o humor é que, dentro desta esfera, assumem caráter
transruptivo frente à realidade. Na análise de Mikhail Bakhtin há
uma pista importante acerca da relação cronotópica da paródia
existente em Dom Quixote:

Em Dom Quixote, é característico o cruzamento paródico do cronótopo


do “mundo estrangeiro maravilhoso” dos romances de cavalaria com a
“grande estrada do mundo familiar” do romance picaresco.

Na assimilação do tempo histórico, o romance de Cervantes tem enorme


significado, o que, naturalmente, não é determinado somente por este
cruzamento dos cronótopos que conhecemos, tanto mais que nele o ca-
ráter dos cronótopos se modifica radicalmente: ambos recebem um sig-
nificado direto e participam de modo totalmente novo do mundo real.
(Bakhtin, 1993, P. 278)

Segue-se à narração da saída de Cervantes do cenário de As


naus uma observação poética do narrador (o homem de nome
Luís) que não estabelece qualquer relação com as premissas an-
teriores ou posteriores: “A tonalidade das ondas contra a pedra
mudara, agora transparente e doce como o som dos teus olhos”
(p.22)2. A gratuidade da linguagem poética nesse trecho do ro-

2 No contexto de que esta frase foi retirada, encontramos (pp. 21-22): “Ao déci-
mo terceiro trunfo de copas o da cautelas levantou-se, Buenas noches, senhores,
que tenho de ir a Espanha acabar o meu livro, só consigo rever provas com o sol
cigano de Madrid à cabeceira, prometo enviar pelo correio um exemplar auto-
grafado a cada um, e eles notaram então, surpreendidos, que as pessoas e a
bagagem haviam desaparecido do porto: sobrava o escuro, um desertor suplici-
ado numa espécie de palco para edificação das gentes e alimento dos corvos, e
um candeeiro aceso num edifício de socorros e afogados ou de escritório marí-
timo, desses que o ministério das pescas, o Infante navegador e a Polícia Judici-
ária plantavam litoral abaixo para vigiar ao mesmo tempo o contrabando de
haxixe e as manobras dos bucaneiros flamengos. A tonalidade das ondas
134
Desleituras literárias, reescritas da história
_______________________________________________

mance parece interferência da passagem do escritor espanhol, a


influenciar enlevos de poeticidade, quebrando a preponderância
de toda a paisagem degradante do porto onde se encontram os
personagens e pondo em suspenso as misérias pessoais e materi-
ais que os cercam, de modo que alude à dimensão simbólica dos
homens e à capacidade de transformar, pela linguagem e criati-
vidade artística, a realidade imediata.
A História se encontra com a literatura e esta última constitui
um documento histórico no encontro do homem de nome Luís
com Cervantes, que cercados estavam de outras personagens de
referencialidade histórica. E como tempo, lugar, memória e his-
tória se condensam em As naus, as desordens exteriores se mes-
clam ao caos internalizado no homem de nome Luís e o contato
com a literatura portuguesa:

O homem de nome Luís permaneceu séculos observando o jogador


que se afastava no passinho prudente dos subtis conhecedores do acaso
até sumir-se, pardo no céu pardo, além do renque de arbustos paralelos
a uma linha de comboio e se perder na desordem iluminada da cidade.
Então sentou-se na urna com a água aos seus pés sem lograr destingui-
la, salvo o ofegar do rio que se distanciava e avançava, e onde desembo-
cavam os esgotos de Lixboa e os sonetos pastoris do poeta Fran-
cisco Rodrigues Lobo, suicida do Tejo pescado numa rede como um
sável de bigodes. (ANTUNES, 1988, p.22) (grifos nossos)

A historiografia literária estabelece, assim, uma relação evi-


dente com a memória nacional que, no romance, aparece agluti-
nando expressões literárias díspares, mas que se assentam no
tempo como a constituir uma tradição e dar a impressão de

contra a pedra mudara, agora transparente e doce como o som dos


teus olhos. O reformado ganhou a centésima quadragésima nona implacável
partida quando já nem as pintas das cartas se diferençavam e se adivinhava o
valor das quinas por um decepcionado eco na alma, após o que recolheu o bara-
lho, se despediu e foi embora, lamentando, para não se comover, que com par-
ceiros assim, que nem o número de pontos decoram, qual é o raio de gozo de
vencer uma bisca. (grifo nosso)

135
Jacimara Vieira dos Santos
_______________________________________________

atemporalidade. Observa-se, pois, que quando o narrador afirma


que O homem de nome Luís permaneceu séculos observando
o jogador que se afastava no passinho prudente dos subtis co-
nhecedores do acaso até sumir-se (...), não indica apenas dada
maneira hiperbólica de tratar o tempo como também se relaciona
com a superposição de histórias dentro do romance antuniano. A
cômica contradição está embutida na afirmação de poder haver
conhecedores do acaso.
Francisco Rodrigues Lobo3, sendo um dos mais representati-
vos discípulos de Camões, a quem é atribuído o papel de inicia-
dor do Barroco em Portugal4, confirma a focalização dos cânones
nacionais portugueses pelo romance. Contudo, é a vertente en-
trópica quem emaranha o tempo e a situação, de modo que está o
mestre a contemplar o rio onde morreu o discípulo. Conforme
registra a História, Francisco Rodrigues Lobo realmente morreu
afogado, mas, ao contrário do que afirma o narrador, não teria se
suicidado (e ao se contar cronologicamente o tempo, a fim de
esmiuçar as nuances dessa entropia temporal, essa morte teria

3 De acordo com a composição narrativa de As naus, intui-se que há paridade


entre a passagem do romance ora analisada e os versos iniciais do poema Fénix
Renascida I: Fermoso Tejo meu, quão diferente / Te vejo e vi, me vês agora e
viste: / Turvo te vejo a ti, tu a mim triste / Claro te vi eu já, tu a mim contente
(...).
Massaud Moisés, em A literatura Portuguesa (1972, p. 107), registra que Fran-
cisco Rodrigues Lobo “Nasceu por volta de 1589, em Leiria, cuja beleza natural
inspirou parte da obra. Talvez cristão-novo, morreu afogado no Tejo, em fins de
1622”.
4 Permeia a obra de António Lobo Antunes muitas referências ao Barroco, per-

mitindo asseverar que isso ocorre pela importância que o Barroco assume na
configuração do pensamento cultural português. Apesar de críticas e de monta-
gens derrisórias feitas pelos narradores de As naus, a presença do Barroco faz
com que ele ocupe um lugar demasiado importante na obra. Uma pista para
essa interpretação encontra-se nas considerações de Michel Foucault (1966, p.
76): “No início do século XVII, nesse período que, justificada ou injustificada-
mente, se denominou por barroco, o pensamento deixa de se mover no elemen-
to da semelhança. A similitude já não é a forma do saber, mas antes a ocasião
do erro, o perigo a que nos expomos quando não examinamos o local mal ilu-
minado onde se estabelecem as confusões”.

136
Desleituras literárias, reescritas da história
_______________________________________________

acontecido em 1621). A ficcionalização do destino do escritor


remete à própria liberdade literária de reorientar e de recriar
enredos, como a marcar a ausência de obrigatoriedade em cor-
responder à realidade histórica.
Torna-se elucidativa a referência aos sonetos, sobretudo por-
que, segundo a historiografia literária portuguesa, a obra em pro-
sa de Francisco Rodrigues Lobo, intitulada Corte na Aldeia trata
de maneira didática sobre a vida na Corte, enquanto, ao mesmo
tempo, simboliza a frustração da nobreza portuguesa quando da
extinção da corte nacional durante a dominação filipina. No per-
curso da desleitura dos clássicos, deve-se observar a dupla inscri-
ção do contexto, em que o homem de nome Luis está em contato
com Francisco Rodrigues Lobo, porque a articulação cronotópica
deste caso não pode descuidar de que aquela poesia pastoril está
no esgoto de Lixboa. Desse modo, tanto pode representar uma
visão desdenhosa a respeito do clássico canônico que, afinal, teve
como destino o esgoto, como significar a avassaladora degrada-
ção do Tejo, dos lugares representativos para a nação portuguesa
e para a literatura.
A força da criação literária de Cervantes permanece no fluxo
de consciência do homem de nome Luís, quando começa a reas-
sumir a função de narrador, em evidente desleitura intertextual-
mente colocada, em meio à ironia e ao humor:

Urinei a pensar no relojoeiro surdo-mudo, de pupilas de Charlot, cerca-


do por centenas de cucos furiosos, que consertava molas microscópicas a
dez metros do meu emprego, a pensar em Dom Miguel de Cervantes Sa-
avedra que nos gritava por vezes episódios esquisitos de Dulcinéias e
moinhos e acrescentava, excitadíssimo, a palpar o lápis no casaco, Vou
enfiar isto no meu livro, vou enfiar isto no meu livro (...) (ANTUNES,
1988, pp 23-24)

O homem de nome Luís age em favor de um enredo paralelo


para Cervantes, entrecruzando o destino de ambos e nele pen-
sando, durante a banalidade da ação excretória, evidenciando a

137
Jacimara Vieira dos Santos
_______________________________________________

presença do realismo grotesco. Corrobora-se, portanto, a deslei-


tura sob o estratagema retórico, a desviar do modelo épico ca-
moniano cujo tributo à heroicidade e à beleza passa a ser substi-
tuído pela desarmonia das imagens grotescas.
De uma perspectiva conjuntural no cerne desta análise, a “voz
estridente” que se verifica em As naus enceta o riso disfórico, que
pode assumir feições amargas, horripilantes e grotescas, condu-
zindo à quebra da monotonia da realidade ao tirar as coisas do
lugar e desafiar as lógicas da ordenação:

O grotesco deve aliviar-nos da beleza e, com sua “voz estridente”, afastar


sua monotonia. Reflete a dissonância entre os estratos animais e os es-
tratos superiores do homem. Reduzindo os fenômenos a fragmentos,
manifesta que o “grande todo” nos é perceptível apenas como fragmento,
visto que o “todo” não concorda com o homem. O que é o todo? É signi-
ficativo que a resposta falte ou seja confusa. É uma transcendência vazia,
mesmo se puder ser concebida de maneira cristã, como acredita Victor
Hugo. Para ele só existem seus fragmentos nas caricaturas do grotesco e,
mesmo estas, já nada têm a ver com o riso. O riso do grotesco, assim in-
terpretado, cede lugar ao riso irônico ou à horripilação. Torna-se trejei-
to, excitação provocante e estímulo de uma inquietude à qual a alma
moderna aspira mais que à distensão (FRIEDRICH, 1978, p. 33).

O grotesco, por trazer distorções (sob caricaturas e exageros),


abre condições para que se note a dilacerante transformação ope-
rada quando há rupturas entre aquilo que se crê e aquilo que se
vê – contrariando o postulado do humanismo cristão – , como
realidades fundadoras ou pretensamente arquetípicas.
A permanência da imagem de Cervantes se mistura àquilo que
o homem de nome Luís tem por fazer prioritariamente, que é
cuidar do enterro do pai:

Acabei de urinar no momento em que uma locomotiva arrancou confun-


dindo o seu apelo com o apelo dos barcos, e tornei para o cais sem saber
o que fazer com o trambolho da urna a que o maneta das cautelas, num
impulso absurdo de artista, prometera um poema, Apeio-me do cavalo
em Madrid, tranco-me em casa e escreve-o num segundo, não custa na-

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Desleituras literárias, reescritas da história
_______________________________________________

da, ora que espiga, copio tudo em papel de carta de avião e dentro de um
mês está cá (ANTUNES, 1988, p. 24-25).

Há quebra no equilíbrio da vida do homem de nome Luís, sem


saber o que fazer com o trambolho da urna que leva o corpo do
pai – que é pai e pátria numa acepção simbólica – e a quem ain-
da quer tecer louvores, como aquele poema prometido por Cer-
vantes. A Literatura é aqui tomada enquanto arte (impulso ab-
surdo de artista) e torna-se reelaborada disjuntivamente no
momento em que Cervantes é um cavaleiro, como a criação, Dom
Quixote.
Em seguida, quando a narrativa começa a focalizar o casal
anônimo de Retornados, observa-se o marido reconsiderar men-
talmente os cinquenta e três anos na Guiné-Bissau, não sendo
dispensada a oportunidade de criticar estilos literários e de ofe-
recer pistas de desleituras de autores canônicos, a despeito, por
exemplo, de Bocage:

No decurso desses cinqüenta e três anos construíram-se mais umas de-


zenas de capelas imediatamente em ruína, um bairro para os operários
da fábrica de sonetos gongóricos e para os cronistas desem-
pregados que catavam cedilhas da barba, e um sistema de esgotos
eternamente entupido de embriões de sapos. (...). O piso inferior primei-
ro ocupado por um vedor da fazenda, que negociava à socapa das polí-
cias do reyno em irmãos siameses e miudezas de estanho, a seguir por
um poeta de cabeleira empoada e sapatos de presilha e tacão alto que
se gabava de ter sido amigo do glorioso defunto Manoel Maria Bar-
bosa Du Bocage, eu que vi nascer nos botequins do Rossio os mais be-
los improvisos do meu tempo (...) (ANTUNES, 1988, p. 50, grifos nos-
sos).

Aqui é possível que o jogo da ironia expressa também se co-


munique com a própria reflexão sobre a tessitura do romance,
pois ao criticar os modelos prontos, repetidos, identificáveis e
artificializados que parecem feitos em série, numa fábrica, o nar-
rador demonstra o modo como um romance – metalinguistica-

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Jacimara Vieira dos Santos
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mente tomado – pode condensar várias formas e desafiar a rigi-


dez dos padrões que determinam os chamados estilos literários.
Deve-se, neste ponto, lembrar que para alguns teóricos do
romance o que o faz se diferenciar da poesia épica, especialmente
da epopeia, é que esta se volta para uma forma poética, focaliza o
passado remoto, presume uma narrativa e sustenta a ideia de
essência e de verdade, ao passo que o romance dialoga preponde-
rantemente com as questões do presente e do indivíduo, trazendo
a sombra das questões da própria sociedade. Se, conforme pre-
sume-se, As naus é romance que encerra leitura do épico camo-
niano ao avesso, com sentido de desleitura, infere-se haver pon-
tes comunicativas entre tais desleituras e a reflexão subentendida
acerca dessas questões. Para Walter Benjamin (1994, p. 202):
“Devemos imaginar a transformação das formas épicas segundo
ritmos comparáveis aos que presidiram à transformação da cros-
ta terrestre no decorrer dos milênios. Poucas formas de comuni-
cação humana evoluíram mais lentamente e se extinguiram mais
lentamente”.
Ao citarmos Walter Benjamin também é preciso ressaltar que
o filósofo analisa o estatuto do narrador e o esvaziamento comu-
nicativo das experiências que norteavam, antes da Modernidade,
a narrativa. Em paralelo, Benjamin atribui o entorno histórico
correlato à ascensão da burguesia e à reorganização da sociedade,
a partir do capitalismo, as bases que propiciaram a consolidação
do romance. É ainda significativo para nossa análise o fato de
Walter Benjamin ressalvar o papel da memória na instituição das
diferenças entre a narrativa primitiva, a forma épica e o romance.
Não obstante, é manifesta a ocorrência de reminiscências e da
memória individual permeada pela memória cultural ao longo do
romance antuniano.
A crítica à historiografia literária vai persistir em As naus
mostrando-se entropicamente: “Um amigo da fábrica de sone-
tos gongóricos, chamado Jerónimo Baía, descreveu-lhes acon-

140
Desleituras literárias, reescritas da história
_______________________________________________

tecimentos medonhos, sodomias, envenenamentos, rimas cru-


zadas, récuas de prisioneiros de algemas enxotados à coronhada
para o mato.” (p.53 – grifos nossos). Deste modo, alinham-se as
formas de violência física ao crime de natureza moral e sexual
(sodomias), ao ato analogamente condenável de fazer rimas cru-
zadas.
No encontro de Pedro Álvares Cabral com Diogo Cão, vê-se
semelhante crítica, porém voltada às formas clássicas: “Explica-
va-me a melhor forma de estrangular revoltas de marinheiros,
salgar a carne e navegar à bolina e de como era difícil viver nesse
árduo tempo de oitavas épicas e de deuses zangados.” (p. 65,
grifos nossos).
Novamente, há um reinscrição das questões literárias conden-
sadas como forma e estilo que, ali verificadas pelo narrador, se
mostram anacrônicas, dignas de revisão no contexto da trans-
missão cultural5. Mas, ao se referir a tais formas também se está
trazendo para o presente e para a memória os elementos referi-
dos.
Como símbolo da recusa de valores sociais degradados e como
forma de acionar a memória da literatura nacional, a derrisão de
Gil Vicente aparece no plano narrativo de As naus: “Uma carroça
de comediantes marchava a duzentos metros, num pandemônio
de gaitas, para um baptizado no paço, e lá ia o ourives Gil Vicente
a gesticular no meio de diabos e pastores.” (p. 91). Esta é uma
alusão não só a Gil Vicente como também ao sentido crítico e

5 Também frisamos uma contundente crítica à literatura em duas outras passa-


gens: “Arrepiou-o a idéia de se encontrar casado com uma aluna de solfejo, e
mais ainda se afligiu quando ela lhe respondeu numa voz cheia das consoan-
tes românticas de uma ortografia antiquada” (p. 138), seguida de outro
indicativo de antipatia do narrador frente ao Romantismo: “Incapaz de suportar
o absurdo de ser tio-avô da própria mulher, tentou reanimar-lhe a memória
com as lembranças de Bissau, a morte da filha, os longos cacimbos a dois, a
dama do andar debaixo que perseguia melgas com tacões de botina, a récita de
inauguração do Cine-Teatro por uma troupe de Coimbra que representou a

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Jacimara Vieira dos Santos
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provocador assumido pelo riso, tão evidente nos escritos dele. Gil
Vicente, enquanto personagem da ficção, é ourives, o que indica
trato laboral com o que encerra valor, com o ouro, nos processos
alquímicos do escritor. Os diabos e os pastores que cercam o tea-
trólogo representam os tipos e as personagens criadas por ele,
nos autos – encerra, possivelmente, reverberação crítica ao pen-
samento maniqueísta vigente em Portugal, acerca de Bem e Mal,
entre o sagrado e o profano, no digladiar imaginariamente e per-
pétuo entre o Demônio e o Pastor das vulneráveis ovelhas cristãs.
Para Maria Thereza Abelha Alves (2002, p. 11), “Sempre que a
realidade e a utopia se encontram, Gil Vicente pode ser atualiza-
do por autores mais modernos, pois o discurso teatral do autor
reflete anseios universais e, em consequência, eternos.”. Nesse
sentido, vale lembrar que as desleitura indicam outros tipos de
leitura, que nem sempre irão apontar satirização ou desapreço,
embora possam ser avessas, contrárias e contrastivas em relação
ao autor, ao estilo, ao conceito literário ou à obra que é tomada.
As navegações e os Descobrimentos impelem os homens a
pensar limites, pois ambos os ampliam. Contudo, o contexto é de
rupturas e novidades, a exemplo de se nomear o território encon-
trado por Novo Mundo, em que a influência da teologia continua
existindo e incidindo na literatura portuguesa da época, confor-
me percebe-se em Camões e Gil Vicente.
Ainda no plano das rupturas aduzidas no romance de António
Lobo Antunes, há outra aparição de Camões e de Gil Vicente – e
neste caso é válido observar que a referência a Camões não se faz
na ficcionalização nominal como o homem de nome Luís, mas
explicitamente como Camões – a encontrarem apoio financeiro
no socialmente emergente e recém-enriquecido Manoel de Sousa
Sepúlveda:

Dama das Camélias para um público receptivo às berrarias do amor, sa-


turado de suor e emoção” (Idem, grifos nossos)

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Desleituras literárias, reescritas da história
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Emprestou dinheiro a D. João de Castro para urbanizar Goa, forneceu a


Camões a possibilidade de uma edição de bolso de Os Lusíadas, com bai-
larinas nuas na capa, publicada numa colecção de romances policiais,
ajudou o poeta lírico Tomaz António Gonzaga na benfeitoria de seu co-
mércio de escravos (...)

Apesar de milionário e mui privado de el-rei nosso senhor, que o sentava


à beira durante os autos e farsas de Gil Vicente, que lhe aparecia às vezes
no bar de bolsos cheios de apontamentos(...) (ANTUNES, 1988, pp. 128-
129).

É sobressalente o indicativo da questão de impasse na esfera


da criação, da distribuição e do consumo da literatura e mesmo
da profissionalização do ofício de escritor, conforme ocorrido no
século XVIII. Entretanto, todos os personagens escritores que
aparecem no romance têm atividades paralelas de sustento,
guardando, muitas vezes, relações estratégicas com o poder.
Tomaz António Gonzaga, também presente no cenário, foi po-
eta e político liberal brasileiro, protagonizando a Inconfidência
Mineira, devido à divergência frente à atuação da Coroa portu-
guesa e, não obstante, veio a escrever poemas satíricos contra as
autoridades e a sociedade do seu tempo, além de ter escrito poe-
mas de amor com reflexões sobre o destino. Ironicamente, é co-
locado na ficção como comerciante de escravos.
Em As naus, a cooptação de personagens símbolos da histori-
ografia nacional com vistas à desleitura põe em paralelo as trocas
recíprocas entre literatura e história no assentamento do imagi-
nário nacional. As descrições de fatos e personagens mesclam o
trágico e o humorístico de forma que incitam uma avaliação dos
ícones do passado:

O dono, um homenzinho pequenino, de boné à lá Lenine na calva, res-


pondia ao nome de Nuno Álvares Pereira e fora, na juventude, condestá-
vel do reyno e a seguir religioso em São Domingos, antes de se cansar de
missas e Te Deuns cantados a bater o queixal numa nave gelada, devol-
ver à ordem as sandálias que lhe aleijavam os pés e o burel que lhe cau-
sava urticária sem o defender do frio, recuperar a gabardina profana,
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Jacimara Vieira dos Santos
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pedir um empréstimo ao Duque de Bragança, seu genro, adquirir a Boite


Aljubarrota na esquina da Avenida Almirante reis com a primeira tra-
vessa do Largo, e enterrar-se na mesa mais afastada da porta a observar
o escuro, na companhia de um capilé aguado,escutando, imune às repre-
ensões da filha, a orquestra que tocava, num estradozito oblíquo, as can-
tigas de D. Dinis (ANTUNES, 1988, p. 130).

Não somente o fulcro na figura de um ícone da Independência


portuguesa, Nuno Álvares Pereira, é posto em questão, como o
narrador passa a induzir que se extraiam novos significados acer-
ca de velhas e conhecidas versões da realidade. Há incessante
dessacralização, especialmente porque, de fato, consta que a per-
sonalidade de referências, no plano da realidade, tenha sido bea-
tificado pelo papa Benedito. Tal sacralização é também deslida,
em outro sentido que não o da canonização sacrossanta, confor-
me aquela que ocorre com D. Dinis, cuja importância histórica
para Portugal é análoga à de Nuno Álvares Pereira, vez que o
primeiro pôs fim às guerras entre Portugal e os reinos cristãos,
além de ter dado à língua portuguesa estatuto jurídico oficial e
ter impulsionado o comércio, a arte e a agricultura.
Dom Dinis foi, ainda, um dos grandes representantes da tra-
dição trovadoresca galaico-portuguesa.
Predomina, no entorno do que é narrado, um panorama em
que os valores materiais guardam interface com a sociedade con-
temporânea, apontando para uma desorganização funcional que
reflete o caos dos rumos da nação (simbolicamente, nau à deri-
va). Há, assim, concomitantemente, reinvenção dos vínculos his-
tóricos sob essa desleitura.
Ao consubstanciar as ambiguidades citadas, depara-se outra
desleitura voltada à literatura de Fernão Mendes Pinto que, nos
registros da História foi explorador e escritor português que vi-

144
Desleituras literárias, reescritas da história
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veu na China e no Japão por dezessete anos, sendo autor de Pe-


regrinação6:

O único branco do bairro vendia bíblias, postais eróticos e gira-discos no


porta a porta da cidade, chamava-se Fernão Mendes Pinto, possuía uma
cabana na areia atulhada de refugos de equinócio e recordações da Ma-
lásia, sentava-se à beira da água a comover-se com os crepúsculos, fez-
me sócio no comércio de evangelhos e uma tarde ao chegar mais cedo ao
musseque por causa de uma sinusite insidiosa, encontrei-o nu, em cima
da rãzita transparente da chinesa que sorria para o tecto a sua doçura
inalterável. O mandarim, cercado de paus de incenso, contemplava o ca-
cimbo pelos buracos do adobe. Fernão Mendes Pinto, sem parar o traba-
lho, acenou-me Boa noite a resfolegar, e só ao vestir as ceroilas, ainda de
barba despenteada e mão incerta, se interessou pelo número de Epísto-
las vendidas (ANTUNES, 1988, p.100-101).

Fernão Mendes Pinto aparece na banalidade da vida cotidia-


na, sendo flagrado em ato sexual com uma mulher chinesa. Des-
cuidando de se vestir e se recompor, passa do sexo diretamente à
indagação acerca dos negócios e dos lucros. A composição do
cenário narrativo permeia-se de ambigüidades, apontando para a
sensibilidade, vez que a personagem se emocionava com o por do
sol (sentava-se à beira da água a comover-se com os crepúscu-
los) e cercava-se de incensos, imagem que pode estar associada a
atos meditativos e enlevos espiritualizados; contrapostas ao mus-
seque, em si, em sua caracterização de favela, aos buracos do
adobe e à apresentação social da personagem, (despenteado e
nu).
A ordinariedade a que Fernão Mendes Pinto é convertido,
passando a ser apenas um comerciante de bíblia e de postais eró-
ticos, indica o apagamento da diferença entre o sagrado e o pro-
fano quando postos na balança dos ganhos de compra e venda,
conforme reforça o narrador, ao tratar de comércio e negócios:

6 Encontramos a mais conhecida obra de Fernão Mendes Pinto também intitu-


lada como Peregrinações.

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Jacimara Vieira dos Santos
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Na véspera de um dia qualquer, ao procurar à noite, em Campolide, pa-


pel e ossinhos de frango nos caixotes do lixo, encontrou de novo Fernão
Mendes Pinto que saía da cave desatinada de uma discoteca de cabo-
verdianos, pendurados, logo abaixo da carteira de verniz, do sovaco de
uma mulata submergida em raposas acrílicas. Vivia agora de uma cons-
telação de residenciais e de pensões para fidalgos africanistas em des-
graça, e projectava alargar a sua indústria explorando os bairros de má
morte do Intendente, da Avenida Almirante Reis e da Casa da Moeda,
perto de bares de putas e de dancings equívocos, em que as luzes er-
guiam das trevas, ao ritmo da música, pedaços de rostos protuberantes
como peixes de alcofa (ANTUNES, 1988, pp. 103-104).

A expansão ultramarina e todas as aventuras e empreendi-


mentos portugueses ao longo dos tempos, são condensados nas
passagens de As naus para dar a tônica do destino das persona-
gens da narrativa. Mas, sobretudo através do modo como Fernão
Mendes Pinto ocupa um destacado lugar no romance vê-se que a
desleitura subentendidamente proposta descerra os malefícios e
as atrocidades que moveram as ações expansionistas, o que, em
última análise, afronta e quebra a realidade histórica. Na condi-
ção de retornados é que os personagens experimentarão a misé-
ria e a decadência, alterando posicionamento de consagração,
glória e riqueza transferidas para as páginas da história.
A obra de Fernão Mendes Pinto coaduna o vínculo com o câ-
none literário e o valor histórico que lhe é atribuído, que impli-
cam na aplicabilidade de seus escritos para estudos da história,
no âmbito da cultura portuguesa:

Para além do pescador havia por toda parte recordações de via-


gens orientais, lanternas japonesas, divindades esculpidas em estalac-
tites de rocha, um fragmento do pulmão esquerdo do Buda num tubo de
ensaio de hospital rotulado a adesivo, e a mecha de cabelos de um prín-
cipe etrusco fechada num medalhão. Fernão Mendes Pinto mos-
trou-lhe o maço, já batido à máquina, das suas viagens cauda-
losas (Qualquer dia entrego esta bodega toda a um editor), ti-
rou a garrafa de drambuie de um armário repleto de alforrecas cartilagí-
neas sob o óleo comovente de um menino a chorar, e à oitava bebida

146
Desleituras literárias, reescritas da história
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convidou o padroeiro de Setúbal para dirigir uma das sucursais do seu


negócio, um edifício destroçado nas traseiras da Academia Militar, e não
te dou nem uma semana para o pores como deve ser (ANTUNES, 1988,
p. 104, grifos nossos).

Os indícios das fontes reais que constituem a ficção não se an-


coram, em As naus, na simples pretensão de reproduzir, mas de
representar de modo a conferir uma nova perspectiva de inter-
pretar o sentido dos marcos fundadores da nação portuguesa,
onde infere-se um desacordo com a pomposa descrição feita pe-
los registros oficiais. A situação do escritor não é imune à história
e ao contexto histórico: nesta desleitura, Fernão Mendes Pinto
depende do mercado editorial e, no próprio quarto, está cercado
de objetos-fontes que lhe comprovam a ida ao Oriente e respecti-
vas peregrinações mundo a fora, quase a constituir um museu.
No entanto, os mesmos elementos de comprovação documental
da viagem empreendida pelo escritor atende ao dispositivo de
moldar as imaginações acerca da realidade histórica da nação,
conforme análises de Lília Moritz Schwarcz, no prefácio à edição
brasileira de Comunidades imaginadas (2008, p.15), de Benedict
Anderson:

Pensemos nos Estados coloniais e em três instituições fundamentais no


sentido de moldar as imaginações: os censos, os mapas e os museus.
Juntos, como mostra Anderson, eles conformaram profundamente a
maneira como o Estado imaginava seu domínio, a natureza dos seres por
ele governados e a geografia de seu território (e, portanto, a legitimidade
em relação ao passado). Juntos, também, eles criaram realidades unifi-
cadas, por mais distintas que fossem; categorias raciais claras onde os
grupos se misturavam e se fundiam; histórias seqüenciais e lógicas; ma-
pas e fronteiras fixos. Os censos, mais que espelhar, construíram reali-
dades claras e rígidas, permitindo prever políticas para essas populações
devidamente imaginadas. Os mapas estabeleceram limites, demarcaram
espaços e constituíram um novo discurso cartográfico capaz de compro-
var a vetustez das unidades territoriais. Por fim, não se pode descurar da
importância da imaginação museológica e dos serviços arqueológicos co-
loniais que se conformaram como instituições de poder e de prestígio.

147
Jacimara Vieira dos Santos
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As desleituras mencionadas incorporam críticas e reflexões


que não se desvinculam da forma paródica e irônica capaz de
esmiuçar as bases e as espessuras histórico-sociais que alimen-
tam os espectros e os vultos históricos. A atenção à presença de
Fernão Mendes Pinto no romance deve-se, ainda, ao caráter de
desconstrução evidenciado, acerca da opinião mais comum sobre
esta personagem histórica, que lhe confere uma boa dose de tole-
rância étnica, política e religiosa, quase insinuando a ausência de
preconceitos e deixando invisível o empenho em dilatar a fé e o
império cristão, apesar de também criticar com ferocidade os
excessos de mando.
As questões ora levantadas tocam diretamente a elaboração de
Mendes Pinto, em Peregrinação, conforme afirma Francisco
Ferreira de Lima:

São muitas as passagens de Peregrinação em que se pode ler referências


a escravos. Ao se desfazer de suas riquezas para entrar na Companhia de
Jesus, por exemplo, Mendes Pinto se desfaz também de seus escravos,
pois, de acordo com o padre Aires Brandão (CATZ, 1983:51), “tinha mui-
tos escravos seus cativos, os quais todos forrou, mandando a cada um
por si que dali em diante a só Deus conhecessem por Senhor”.

Não se infira daí, entretanto, que antes desse gesto de despojamento,


Mendes Pinto fosse um homem violento e cruel. A escravidão era algo
tão pacífico que até mesmo a ordem religiosa de que ele foi um dos
membros possuía grande número de escravos do Brasil e em Angola,
como informa BOXER (1992:317). Isso para não falar nos missionários
seculares que participavam diretamente do tráfico (LIMA, 1997, p. 58).

Também a Ásia vinha de um convívio com a escravidão ao


longo dos tempos o que, certamente, poderia ter reforçado para o
viajante a ideia de escravidão enquanto situação comum ou de
prática universal. O ato de libertação dos escravos, por parte de
Fernão Mendes Pinto, vem a consubstanciar no mesmo que o
despojamento de um bem, a fim de compor o rito de passagem

148
Desleituras literárias, reescritas da história
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para a vida religiosa, cujos bens, teoricamente, são de outra natu-


reza que não a material.
Por servir-se do passado para questionar o presente da nação
portuguesa sob a forma das temporalidades heterogêneas obser-
váveis em As naus, o narrador faz a desleitura da herança cultu-
ral da literatura moderna:

Ao alcançarmos, de garrafa no sovaco, o largo, ou o que eu pensava um


largo, diante da estação dos comboios, vi apenas uma humidade de gai-
votas, espiões castelhanos sob as camionetas de descarga junto ao rio, e
dezenas de Fernandos Pessoas, muito sérios, de óculos e bigode, a
caminho de empregos de contabilista em prédios pombalinos de beirais
de loiça, roídos pelo cancro do caruncho e por baratas envernizadas se-
melhantes a sapatos de casamento com antenas” (ANTUNES, 1988, p.
158-159, grifos nossos).

As dimensões humorísticas desta passagem no romance toca à


obra de Fernando Pessoa e devido vínculo com a imagem de Por-
tugal, principalmente nas celebrações aos feitos patrióticos en-
contrados em Mensagem. Mas, também, é digno de observação
que o literato foi o responsável por introduzir as correntes mo-
dernistas e futuristas naquele país – um país que o narrador se-
gue apontando como anacrônico – e que também somente um
ano antes da morte Fernando Pessoa passou a publicar em língua
portuguesa (tendo antes se valido do inglês para um maior alcan-
ce da obra).
Quando analisa os imaginários da lusofonia em estreita rela-
ção com a realidade histórica portuguesa, Eduardo Lourenço
afirma:

É essa sacralização da língua, essa ontologização do laço que liga uma


língua a uma pátria, que serve de referência aos que assim julgam, nas
pisadas de Pessoa, cumprir o mais nobre exercício de patriotismo, ou an-
tes, de nacionalismo. Que Pessoa tenha sido nacionalista – todos sabe-
mos que se definiu enquanto autor de Mensagem como “nacionalista
místico” –, é inegável, e que, ainda jovem e com êxtase diante de Portu-
gal reencontrado, senão descoberto, tivesse sido exaltadamente “patrio-
149
Jacimara Vieira dos Santos
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ta”, um pouco à maneira de Pascoaes, também não pode duvidar-se. Mas


há uma diferença, direi um abismo, sobretudo na perspectiva original de
Pessoa, entre ser um nacionalista místico – quer dizer, o arauto e o so-
nhador de uma pátria essencialmente espiritual, ou, se se quiser, mesmo
cultural – e o místico nacionalista, o simples apologista, para não dizer
fanático fundamentalista, de uma nação na sua singularidade empírica,
convertida em ídolo e elevada a paradigma de universalidade. (LOU-
RENÇO, 2011, p. 187)

A exaltação ao caráter nacional embute-se nas várias repre-


sentações históricas e em seus veículos. Conforme sugerem as
desleituras de As naus, a realidade constitutiva não se faz apenas
através da História propriamente dita, mas da instrumentaliza-
ção da literatura, de referências do passado, de heroicizações
duvidosas ou estratégicas e de outros elementos dispersos na
própria representação da realidade.
Quando novamente são postos emparelhados os vultos histó-
ricos e os literatos canônicos, forjando uma trivialidade, põe-se
em evidência a interação entre ambos. Neste caso, é o ícone his-
tórico e messiânico que é Dom Sebastião quem será dessacraliza-
do, em encontro trágico com Oscar Wilde, representante da lite-
ratura inglesa (apesar de Wilde ter nascido na Irlanda):

Foi então que topamos com um grande aparato militar de castelhanos


protegendo a tenda aliada de barracas de feira, centenas de estandartes,
bandeiras e cozinhas de campanhas, cirurgiões que amolavam bisturis e
ilusionistas que divertiam a tropa, e uma sentinela nos informou que o
rei Filipe se reunira com os seus marechais na rulote do Estado-Maior a
combinar a invasão de Portugal, porque D. Sebastião, aquele pate-
ta inútil de sandálias e brinco na orelha, sempre a lamber uma morta-
lha de haxixe, tinha sido esfaqueado num bairro de droga de Marrocos
por roubar um maricas inglês, chamado Oscar Wilde, um saquinho de li-
amba (ANTUNES, 1988, p. 179, grifos nossos).

O papel alegórico de D. Sebastião em associação com situa-


ções banais e contraventoras, questiona e desafia a construção
social sobre os cânones históricos, satirizando e problematizando

150
Desleituras literárias, reescritas da história
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os próprios postulados. D. Sebastião é caracterizado como um


drogado qualquer, despojado e presumivelmente desocupado e
inútil, a dar trabalho e a trazer confusões por causa do vício, cri-
ando incidentes diplomáticos, comprometendo as ações do Esta-
do e deixando Portugal suscetível à invasão pela Espanha. Essa
caracterização rompe completamente com a imagem da mítico-
fundacional de D. Sebastião, cujo esperado retorno guarda espe-
ranças messiânicas. O traço verossímil da vida de Oscar Wilde,
juridicamente condenado pela homossexualidade, aparece como
construção caricata, sob o adjetivo de maricas, compondo o ce-
nário de uma vida urbana decadente e violenta.
Diante dos aspectos abordados, considera-se que a ficcionali-
dade inflige ao real princípios particulares de leitura e decodifi-
cação do mundo, do tempo e da espacialidade telúrica e geopolí-
tica. A condensação temática do romance ora estudado, fulmina
a aparente indissolubilidade das fronteiras do real e do verossí-
mil, incorporando, entretanto, componentes históricos, factuali-
dades e dados oficiais reprocessados no plano narrativo.
Ante a pretensa verdade e precisão histórica, a versão ficcional
problematiza os outros lados e busca perfurar as aparências sem
desfigurar a totalidade da forma, promovendo interpretação cria-
tiva da realidade.

REFERÊNCIAS

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões


sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Trad. Denise
Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
ALVES, Maria Theresa Abelha. Gil Vicente Sob o Signo da Derri-
são. Feira de Santana: EdUEFS, 2002.
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BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética: A Teo-
ria do Romance. São Paulo: UNESP/HUCIEC, 1993.
151
Jacimara Vieira dos Santos
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BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios


sobre literatura e histórica da cultura. Trad. Sérgio Paulo
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CERTEAU, Michel. A escrita da História. Trad. Maria de Lour-
des Menezes. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2008.
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Pensar a Literatura no Séc. XXI. Braga: Publicações da Fa-
culdade de Filosofia – Universidade Católica Portuguesa,
2011.

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Da estética da crueldade à dissimulação narrativa
_______________________________________________

Da estética da crueldade à
dissimulação narrativa: as causas
secretas

Jean Paul D´ANTONY

Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em


Literatura e Cultura da UFBA. Professor da Universidade
Federal Rural de Pernambuco – Unidade Acadêmica de
Serra Talhada (UFRPE/UAST).
E-mail: jeanpauldantony@yahoo.com.br

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Jean Paul D’Antony
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Da estética da crueldade à dissimulação narrativa
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Sedutor involuntário
Lançou uma frase no ar, como diversão,
E essa frase fez cair uma mulher.
Nietzsche.

A mola deflagradora do que chamamos crueldade está cingida


em toda a pulsão do universo diegético do conto A Causa Secre-
ta, do escritor Machado de Assis. Como um estímulo tenaz, o
leitor se reconhece obrigado a ceder e desvelar seus impulsos
sádicos através das pulsões da narrativa machadiana inserida
poeticamente na estética da crueldade. No conto em questão, por
exemplo, estas pulsões empurram o leitor até Nietzsche em sua
declaração de que

ver-sofrer faz bem, fazer-sofrer mais bem ainda – eis uma frase dura,
mas um velho e sólido axioma, humano, demasiado humano (...). Sem
crueldade não há festa: é o que ensina a mais antiga e mais longa histó-
ria do homem – e no castigo também há muito de festivo (NIETZSCHE,
2001, p. 56).

A partir desta afirmativa nietzschiana devemos entender que o


que chamamos de pulsões nos remete, em primeiro plano, ao
lugar comum, e indubitavelmente não esgotado, da ironia ma-
chadiana. Neste conto, “ver-sofrer faz bem, fazer-sofrer mais
bem ainda” são pulsões que já conduzem os primeiros indícios da
ironia machadiana e se inserem na fusão entre a temática e a
linguagem, e de imediato são redimensionadas pelo narrador ao
advertir, no primeiro parágrafo, que “Como os três personagens
aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de con-
tar a história sem rebuço.” Questionemos, então, a sutileza dessa
dissimulação que, em pequenas doses ácidas, transtornará a nos-
sa sensibilidade, nossos estágios de consciência, e o teatro das
nossas verdades quando, de repente, nosso olhar de leitor se per-
der ou se perceber frentes as curvas sádicas dessa narrativa. Des-

155
Jean Paul D’Antony
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sa forma, a causa secreta, tecelã de esclarecimentos e tantas es-


peculações, também repousará nosso olhar no eterno movimento
de indagação a que Machado nos conduz e em pedaços da geo-
grafia niilista drummondiana na poesia ‘Especulações em torno
da palavra homem’:

Mas que coisa é homem,


que há sob o nome:
uma geografia?

um ser metafísico?
uma fábula sem
signo que a desmonte?
(...)
Como vive o homem,
se é certo que vive?
Que oculta na fronte?

E por que não conta


seu todo segredo
mesmo em tom esconso?

Por que mente o homem?


mente mente mente
desesperadamente?

Por que não se cala,


se a mentira fala,
em tudo que sente?

Por que chora o homem?


Que choro compensa
o mal de ser homem?

Mas que dor é homem?


Homem como pode
descobrir que dói?

Há alma no homem?
E quem pôs na alma

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Da estética da crueldade à dissimulação narrativa
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algo que a destrói?

Como sabe o homem


o que é sua alma
e o que é alma anônima?

Para que serve o homem?


para estrumar flores,
para tecer contos?
(...)
Que milagre é o homem?
Que sonho, que sombra?
Mas existe o homem? (DRUMMOND, 1998, 215-9)

No itinerário narrativo de A Causa Secreta, a ironia nos arre-


messa à estética da crueldade não apenas na evidência do título,
mas na representação de um narrador sádico que desfruta do
prazer de conduzir o leitor pelas sinuosidades e conveniências
dos espaços vazios e dos silêncios de uma narrativa inquiridora,
acentuando a íntima relação entre autor e o leitor na forma-ação
do sádico, do inquieto e do investigativo. Por isso, o artifício do
flashback já nos envolve súbita e sorrateiramente na amostra
gratuita de que o “tempo é de contar a história sem rebuços.”.
Nos narradores machadianos, o velho ditado popular “cavalo
dado não se olha os dentes” deve ser minuciosamente indagado.
Nada é gratuito em Machado, principalmente se vir anunciado
como uma causa secreta. A crueldade declarada por Nietzsche é a
crueldade traçada nos círculos e nas migalhas viciosas que o lei-
tor machadiano se sustenta. Lembremos Ricardo Piglia (1994, p.
37) quando afirma que “um conto sempre conta duas histórias”:
uma história visível e outra história secreta, sendo que o autor
precisa ter em foco a segunda história a fim de que a primeira
apresente os elementos da história secreta que se está narrando,
de modo elíptico. Destarte, a tensão criada no solo fértil desses
elementos constitui as duas histórias e deve ser mantida até que

157
Jean Paul D’Antony
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a história secreta desponte, ou não. O que era acessório na histó-


ria visível se mostra essencial à história secreta.
No tangente ao conto em questão, as migalhas vão desenhan-
do aos poucos, na poética do trágico, quem é a figura sádica e
sombria do Fortunato: ele que é o centro nervoso da história in-
vestigada tanto ao olhar debruçado do leitor quanto ao olhar cu-
rioso de Garcia. Este, conforme o narrador

possuía , em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os


caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser su-
premo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um
organismo. (ASSIS, 1961, p. 312-3)

Em verdade, a narrativa produz o efeito de vertigem, uma


obliqüidade que representa o teatro circular do conto. Ao mesmo
tempo em que Garcia é narrado ele também se apresenta como
narrador – aquele que espreita cada movimento de Fortunato.
Fortunato, aquele que em si traz em sua substantivação o signo
referencial da fortuna irônica: a desdita. Ele é sempre evidencia-
do e descrito da física à psicanálise pelos olhos científicos e dis-
simulados da tessitura narrativa e pelo amigo,

“Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro.” (...)


(ASSIS, 1961, p.310)

Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranqüilamente,


estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos
no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e
tinham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira es-
treita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta,
ruiva e rara. (...) (ASSIS, 1961, p. 311-2)
A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho,
duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. (AS-
SIS, 1961, p.313)

O narrador heterodiegético machadiano tece a ironia no mo-


mento em que transfere a estética da produção do olhar, do nar-

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Da estética da crueldade à dissimulação narrativa
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rar, para o Garcia desde o primeiro momento em que “Garcia, em


pé mirava e estalava as unhas”. Neste caso, consoante Benjamin,
“o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria
experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas nar-
radas à experiência dos seus ouvintes.” (1994, p. 201). Deste mo-
do, a narrativa machadiana “mergulha a coisa na vida do narra-
dor para em seguida retirá-la dele” (BENJAMIN, 1994, p. 205) e
arremessá-la mimeticamente no corpo do leitor para compor seu
teatro de crueldade nas diversas inervações do seu estado psíqui-
co, social, cultural e emocional. Composição que sai do seu clí-
max estrategicamente relocado no início da história para ser te-
cida, fibra a fibra, e redimensionada no clímax do tempo da ação,
na tensão exata do agora acontecendo ao nosso narrar paralelo e
cruzado à sádica mutilação do rato.
No efeito e na provocação machadiana, a causa secreta a ser
ou não decifrada ou digerida

Exige a eficácia terapêutica por meio de tratamento cruel: a procura das


contradições destruidoras através de recurso sistemático da [aparente]
dissonância. A crueldade é, portanto, a expressão do conflito primordial
e incessante que dilacera o homem e o mundo (GOMES, 2004, p. 144,
grifo nosso).

A partir da mutilação sádica do rato qual também nos remete


a uma espécie de paródia da ciência, podemos observar a aloca-
ção do sujeito machadiano sempre na perspectiva do réu frente a
um júri laborioso. Neste labor, o mal-estar e o prazer se tornam
irremediáveis no fazer narrativo do leitor, na medida em que
tanto o narrador quanto o leitor se tornam testemunhos e res-
ponsáveis pelas pulsões de morte (Thanatos) e de vida (Eros)
freudianas1, a primeira servindo-se da segunda, na relocação do

1Conceitos desenvolvidos no “Além do princípio do prazer”, do próprio Sig-


mund Freud.

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Jean Paul D’Antony
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fazer literário em Fortunato para o fazer-se vívido e vivenciado


na ação catártica.
Novamente repousamos a questão sobre a estética da cruelda-
de. Tanto o prazer na mutilação do rato quanto o ato vouyer de
apreciar a sua Maria Luísa definhando – ações que promovem o
êxtase da vivência sádica e da ironia machadiana – gotejam o
mesmo ácido rodriguiano que Ismael, em Anjo Negro, gotejou
nos olhos pueris de Ana Maria, muito embora ao invés de cegar
este ácido literário torna nosso olhar mais cru frente às nossas
máscaras pudicas no processo dialético de como somos deus e o
diabo ao mesmo tempo. Quanto a isso, José Régio nos ajuda a
compreender um dos vieses dessa estética machadiana através de
fragmentos da sua poeticidade trágica em Cântico Negro:

A minha glória é esta:


Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
(...)
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
(POEMAS DE DEUS E DO DIABO)

A descrição lenta, ‘deliciosamente longa’ e minuciosa do nar-


rador implícito e do narrador Garcia no gozo sádico de Fortuna-
to, transporta o olhar do leitor e seus estágios de consciência à
proximidade de uma lente cinematográfica: a lente é humanizada
no ver de Garcia, o leitor é transportado aos olhos de Garcia na
cena ritualística da tortura e introjetada, lentamente, em nossas
inervações:

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Da estética da crueldade à dissimulação narrativa
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Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre


a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre
o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja
ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No
momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das
patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo,
e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a pri-
meira. Garcia estacou horrorizado.
Mate-o logo! disse-lhe.
— Já vai.
E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que tra-
duzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a ter-
ceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a cha-
ma. O miserável estorcia-se, guinchando, ensangüentado, chamuscado, e
não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os nova-
mente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas
não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha medo, com to-
da aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata;
Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os
olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao des-
cê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para
salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida.
Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para
fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto pra-
zer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata
ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sen-
sação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o intei-
ramente esquecido. Isto pôsto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo
mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um re-
síduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-
lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair
o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e san-
gue. (ASSIS, 1961, p. 318-9)

E, neste instante, percebe-se na advertência de Renato Cor-


deiro Gomes

que o personagem [agora Fortunato] adverte é que crueldade não es-


tá em mimetizar uma realidade cruel e sua violência, mas na capacidade
da linguagem de não essencializá-la; não há certezas apaziguadoras, (...)

161
Jean Paul D’Antony
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a ‘verdade’ comporta múltiplos aspectos e está relativizada à perspectiva


do sujeito que a enuncia (2004, p. 145, grifo nosso).

É no trajeto do olhar garciano, a partir desta verdade relativi-


zada pela linguagem (metalinguagem) em sua dimensão pictóri-
ca, onde acompanhamos o espetáculo da heteronímia que conso-
ante Robson Coelho Tinoco, no texto Os heterônimos (possíveis)
em Machado de Assis,

Machado já arruma, ou desarruma, suas histórias na intenção de mistu-


rar e fundir leitores em personagens. Na verdade, a maior parte delas já
como que nascia com três personagens (aqui a manifestação de sua hete-
rônima) constantes: o leitor, o narrador e o próprio autor. Nessa fusão, o
leitor adentra a matéria narrada como sendo um personagem que, sem
ser avisado, vê-se “puxado” para dentro de uma vida que poderia muito
bem ser extensão da sua própria – aqui a fabulosa riqueza autoral de
Machado: ele inventa vidas reais. Seria, no entender de alguns estudio-
sos, o caminho percorrido do romance-texto para o romance-vida.
(1999, p. 60)

Na ousadia das polissêmicas vozes é que se concentram as


ironias secretas dos vários Machados, dos vários Machados bru-
xos que convivem travestidos, dentro e fora do texto, em Capitus,
em Quincas Borbas, em Fortunatos, em tantos Brás, em Deolin-
dos, em Helenas, em Bentinhos, em Cândidos Neves, em Jacobi-
nas etc etc. Pessoas machadianas que dependem uma da outra
para dilatar os olhares, ou o olhar, diante das nossas dissonantes
faces humanas e humanizadas na expressão da linguagem literá-
ria, sarcasticamente inquiridora mas que, sem dúvidas, já regis-
tra a marca da modernidade através da simbologia do ‘outro’
como uma multidão que autentifica nossos espelhos e nossa
identidade. Jean-Pierre Vernant afirma que

No face a face da frontalidade, o homem firma-se em posição de simetria


em relação ao deus; mantém-se sempre em seu eixo; esta reciprocidade
implica ao mesmo tempo dualidade – o homem e o deus que se encaram
– e inseparabilidade, ou até identificação: a fascinação significa que o

162
Da estética da crueldade à dissimulação narrativa
_______________________________________________

homem já não pode desviar seu olhar ou o rosto do Poder, que seu olho
perde-se no do Poder que também o olha, que ele é projetado no mundo
que este poder preside. (VERNANT, 1988, p. 103)

Neste face a face da nossa frontalidade está o festivo nietzs-


chiano colocado no início da nossa digressão, está o festivo dis-
simulado e identitário de Garcia ao saciar sua fome investigativa
na fortuna sádica de Fortunato. E já que Nietzsche afirmava que
“no castigo também há muito de festivo”, Riobaldo proverbiava
que “Ser ruim, sempre, às vezes é custoso, carece de perversos
exercícios, de experiência” (ROSA, 1956, p. 170) . Daí, Fortunato
ratifica mais uma vez a estética da crueldade nas últimas pulsões
da narrativa quando exercitava seu olhar no definhamento de
Maria Luísa e expunha seu

Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minu-


to de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só
quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que esta-
va outra vez só. (ASSIS, 1961, p.320)

Pois bem. Logo após, quando o leitor acredita não mais ser ar-
rebatado com tantos auto-retratos da geografia do que é o ho-
mem, Garcia agora como objeto de investigação e gozo sado-
masoquista é vaidosamente observado por Fortunato, “morden-
do os beiços” ao olhar o amigo inclinado

ainda para beijar outra vez o cadáver [de Maria Luísa]; mas então não
pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter
as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irre-
mediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo
essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente
longa. (Idem, p. 321)

Nesse teatro de crueldade, onde a crítica e a teoria literária se


fundem no espelho da função da arte, é que a expressão da cons-
ciência literária na ironia se faz mais pulsante, nos jogando de
um lado para o outro nas suas nuanças de causas secretas tão
163
Jean Paul D’Antony
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maestrinas das significantes implosões e explosões que nos nar-


ram tal qual somos, aparentamos ser, pretendemos ser, escon-
demos sendo, dentro do real-textual tanto quanto no textual-real
machadiano. Desse lugar, nos deparamos mais uma vez com
aquele espanto ingênuo do que sempre há de se apresentar das
cortinas desse teatro humano, admitindo a possibilidade nietzs-
chiana de que no ver-sofrer faz bem, fazer-sofrer mais bem ain-
da: é que “Há tanta coisa horrível no homem!... Já por muito
tempo a terra foi um hospício!...” (NIETZSCHE, 1998, p. 82).

REFERÊNCIAS

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autor. Rio de Janeiro: Record, 1998.
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. A Causa Secreta. Rio de
Janeiro: Editora José Aguilar, 1961.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios
sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo
Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
GOMES, Renato Cordeiro. Narrativas e paroxismos: será preci-
so um pouco de sangue verdadeiro para manifestar a cruel-
dade?. In: Estéticas da crueldade. Org. Ângela Maria Dias,
Paula Grenadel. Rio de janeiro – Ed. Atlântica, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral: uma
polêmica. Trad. Paulo César de Souza. – São Paulo: Compa-
nhia das letras, 1998.
PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. In: O laboratório do escri-
tor. São Paulo: Iluminuras, 1994.
RODRIGUES, Nelson. Teatro completo de Nelson Rodrigues, 2:
peças míticas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janei-
ro. Livraria José Olympio Editora, 1956.

164
Da estética da crueldade à dissimulação narrativa
_______________________________________________

TINOCO, Robson Coelho. Os heterônimos (possíveis) em Ma-


chado de Assis. In: Com Textos, Universidade de Brasília,
1999.
VERNANT, Jean-Pierre. A Morte nos Olhos – Figurações da
Grécia Antiga: Ártemis, Gorgó. Trad. Clóvis Marques. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.
http://www.releituras.com/jregio_cantico.asp. Acessado em
18/03/2009 às 01:32h.

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Jean Paul D’Antony
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O sentido da história, a ausência de sentido do mundo e o sentido da vida
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O sentido da história, a ausência de


sentido do mundo e o sentido da
vida: alguns apontamentos sobre
Nietzsche

José Antônio Feitosa APOLINÁRIO

Professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco –


Unidade Acadêmica de Serra Talhada (UFRPE/UAST).
E-mail: tonyapolinario@gmail.com

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José Antônio Feitosa Apolinário
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O sentido da história, a ausência de sentido do mundo e o sentido da vida
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Se um filósofo pudesse ser niilista, ele o


seria porque encontra o nada por trás
de todos os ideais do ser humano 1.

O excessivo otimismo no progresso característico do projeto


filosófico moderno e sua límpida certeza de um percurso históri-
co no qual o homem é posto na condição de timoneiro, tornam-se
problemáticos a um tipo de pensamento que almeja recolocar a
questão do sentido da história, higienizando-se de concepções
histórico-teleológicas e historiográfico-cumulativas. O pensa-
mento do jovem Nietzsche constitui então, no tocante à moderna
visão da história, uma tentativa crítica que intenta trazer à tona o
problema que esta visão encerra, posicionando-se como capaz de
alimentar uma perspectiva do tempo, da história e da vida, apor-
tada em outra compreensão. Dito isto, algumas indagações se
fazem necessárias: que outra compreensão emoldura a reflexão
nietzschiana acerca destes três elementos destacados? Será ela
suficientemente promissora no ultrapassamento do viés moder-
no que indica um sentido histórico baseado na progressiva esca-
lada da humanidade para um telos? Previamente, poderíamos
salientar que a resposta à primeira questão residiria na visão
nietzschiana de uma história a serviço da vida junto à assevera-
ção da eternidade, e, quanto à segunda questão, deixemo-la a
cargo da apreciação dos argumentos com os quais enfatizaremos
os desenvolvimentos das ‘ruminações’ nietzschianas.
Nietzsche é um dos responsáveis pela demolição dos postula-
dos mais prezados pela tradição filosófica desde Sócrates, em
nome do redimensionamento do próprio papel da filosofia, até
então presa às amarras metafísicas e a todo cabedal axiológico
oriundo destas. Com efeito, pode-se dizer que até ele, a mesma
pairava destituída de uma avaliação que pusesse os valores sub-

1NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Trad. Paulo César de Souza.


São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 81 § 32, IX. Doravante esta obra

169
José Antônio Feitosa Apolinário
_______________________________________________

jacentes a seus construtos no lugar em que o martelo crítico pu-


desse golpeá-los, descortinando-os em seu vir a ser histórico,
cultural e fisiológico. Destarte, no terreno de sua Genealogia da
Moral, fez-se necessário desnudar as ‘verdades’ fundantes da
moralidade com vistas à abertura de meandros para a aceitação
incondicional da vida, instituída como único critério de avaliação
legitimador da crítica genealógica enquanto crítica do valor dos
valores. É nesse sentido que tal filosofia representa a sísmica
desforra filosófica contra a moral2 a favor da intensificação da
vida, por instaurar uma autêntica exigência, “enunciemo-la, esta
nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais,
o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão”
(NIETZSCHE, 2001, p. 12, § 6)3. Vê-se o reposicionamento do
próprio filosofar tencionado por Nietzsche, e como, a partir de tal
transformação de perspectiva, nasce um projeto que alija aspec-
tos reputados crepusculares postos pela metafísica clássica e pela
moderna consciência reflexiva.
Sendo assim, reunir motivações para denominar a filosofia ni-
etzschiana como filosofia do valor significa considerar “sua di-
mensão crítica, destacar o fato de que tematizar os valores é jus-

será referendada com a sigla CI, seguida da página, do parágrafo e do capítulo.


2 Em Nietzsche, moral é um conceito bastante abrangente, não designando

apenas o objeto especulativo do campo ético, mas, as coisas humanas de um


modo geral, desde pensamentos, atos e sentimentos. Por conseguinte, não se
limita à teia dos costumes, mas a tudo que constitui o humano, inclusive as
condições fisiológicas que o ser humano manifestou/manifesta no transcorrer
do desenvolvimento da cultura, assinalando que o horizonte de compreensão
em que Nietzsche de coloca é precisamente o do corpo, do orgânico. Em suas
palavras, “estados morais são estados fisiológicos” (NIETZSCHE, F. Sämtliche
Werke. Giorgio Colli e Mazzino Montinari (Org.). Kritische Studienausgabe
(KSA). Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1999. v. IX, 6 [445], p. 313. Grifo
do autor. Doravante os aforismos póstumos serão referendados com a sigla
KSA, seguida do volume, do número do aforismo e da página.), e ainda, em
Ecce Homo, escreve o filósofo: “todos os preconceitos vem das vísceras” (NI-
ETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.
38, II § 1).
3 Doravante esta obra será referendada com a sigla GM, seguida da página, da

parte da obra e do respectivo parágrafo.


170
O sentido da história, a ausência de sentido do mundo e o sentido da vida
_______________________________________________

tamente questionar os valores, suspeitar do valor dos valores”


(MACHADO, 2002, p. 85). A produção das ideias modernas es-
teve sempre associada à tácita aceitação do que Nietzsche desig-
nou como “preconceitos dos filósofos”. Nelas haveria a persistên-
cia da crença intocável na oposição de valores, nas dicotomias
por intermédio das quais a filosofia julga acessar privilegiada-
mente o real, o que justificaria uma estreiteza da consciência, não
num sentido kantiano, mas com relação à diretriz axiológica da
qual partem os filósofos ao admitir pólos opostos: “é a partir des-
ta sua ‘crença’ que eles procuram alcançar seu ‘saber’, alcançar
algo que no fim é batizado solenemente de ‘verdade’. A crença
fundamental dos metafísicos é a crença nas oposições de valo-
res” (NIETZSCHE, 2001, p. 10, § 2, grifos do autor).
Em razão da identificação deste problema, a empresa nietzs-
chiana adere ao procedimento genealógico, em detrimento da
arquitetura de uma fundamentação da moralidade, pois, o sen-
timento moral é o locus desde o qual os valores são erigidos, pos-
suindo uma origem e pertencendo a um contexto histórico, não
podendo ser mais fundados em quaisquer âmbitos transcenden-
tes (Deus, alma, razão,...). Numa radical postura filosófica, Ni-
etzsche critica veementemente a noção de fundamento e do exer-
cício filosófico como aquele que ascende ao fundamento, levado
às últimas consequências no seio da modernidade. O distancia-
mento do pensamento ocidental como investigação filosófica do
fundamento é uma das vigas mestras que posicionam Nietzsche,
bem como Heidegger no início do século XX, fora do contexto
moderno. Como bem observa Gianni Vattimo, ambos “não po-
dem criticar esse pensamento em nome de uma outra fundação,
mais verdadeira” (VATTIMO, 1996, p. 7). A adoção por Nietzsche
de uma perscrutação interpretativa que parte efetivamente dos
campos da história, da cultura, da fisiologia e da filologia, para
dizer alguns, denota a experiência de uma alternativa de estrutu-
ração do pensamento filosófico distinta do modus hegemônico de

171
José Antônio Feitosa Apolinário
_______________________________________________

pensar filosoficamente até então. “Filosofar histórico” é um dos


possíveis títulos concebidos por ele para ilustrar sua maneira de
interpretação filosófica, no ambiente do qual também a própria
história enquanto ‘objeto’ mereceria um crivo crítico.
É na luta entre a antiga Weltanschauung, apoiada numa com-
preensão naturalista e cíclica do mundo em seu curso, e a visão
linear pós-cristã da história instituída na época moderna, que
reside a problemática na qual se situam os questionamentos ni-
etzschianos sobre a história, fazendo-os figurarem como antípo-
das de seu tempo. Aqui tentaremos tornar claras as considera-
ções do filósofo em questão, na medida em que estas destituem o
alcance ontológico que assume a história fundada no prisma ju-
daico-cristão enquanto história da salvação, para então ser enfa-
tizada como a “busca de uma condição de perfeição intramunda-
na e, depois, progressivamente, como história do progresso”
(VATTIMO, 1996, p. 13). Nesse meandro, examinaremos os ar-
gumentos do jovem Nietzsche, à época professor de filologia clás-
sica da Universidade de Basiléia, aduzidos na Segunda Conside-
ração Intempestiva cujo título é Da utilidade e desvantagem da
história para a vida, dedicando posteriormente maior ênfase à
caracterização do niilismo imbricado na lógica do pensamento
ocidental e aos desenvolvimentos acerca do eterno retorno, cons-
tantes no Nietzsche intermediário e tardio.
O filósofo de Zaratustra é antes de tudo um obstinado lutador
contra a subjugação à concepção de história advogada pelo espí-
rito moderno. A consciência histórica que se consolida em seu
olhar para trás, autenticou o avanço indiscutível do percurso his-
tórico, içando a suspeita aos olhos nietzschianos de que o histori-
cismo é a compensação de uma força vital precária, degenerada
desde o socratismo, pela desapropriação do ponto unificador
mais íntimo e profundo de um povo: “esse historicismo é para
Nietzsche um exemplo especialmente eloqüente da paralisia da
força vital pelo saber e conhecimento” (SAFRANSKI, 2002, p.

172
O sentido da história, a ausência de sentido do mundo e o sentido da vida
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107). A denúncia nietzschiana expõe que o exacerbo da consciên-


cia histórica faz adoecer tanto a história quanto a vida. Como
delator dessa consciência, Nietzsche atina para a necessidade da
vida em ser compreendida sempre num arcabouço que envolve
inconsciência, emoções, ilusões e uma dose imensurável do inau-
dito, entre outros aspectos que lhe são condizentes. O isolamento
dos fatos, o recorte epistemológico promovido pelo pensamento
historicista, a rigidez segregadora entre História e historicidade,
sob o pano de fundo de uma pretensa neutralidade científica –
caracteres de um realismo bruto – entorpecem a vida, cultivam
uma indiferença extremada quanto aos aspectos acima elenca-
dos.
Nessa esteira problemática, o ser humano embevece-se pelo
clamor do futuro, delineado entusiasticamente por um sentido da
existência, o qual é digno de registro mediante a contínua pre-
sentificação do processo histórico posto como caminho em dire-
ção a um telos cada vez mais resplandecente. Contra esse hiper-
trófico discurso da histórica-ciência protagonizado pelos ‘homens
históricos’, redargue o filósofo: “eles não sabem o quão a-
historicamente eles pensam e agem apesar de toda a sua história,
e como mesmo a sua ocupação com a história não se encontra a
serviço do conhecimento puro, mas sim da vida” (NIETZSCHE,
2003, p. 15, § 1)4. A crítica aqui ultrapassa a si mesma como críti-
ca do historicismo. Indo além, consolida-se enquanto crítica do
ideal cientificista do acúmulo de conhecimento, desde a qual a
história enquanto ciência não passaria então de uma espécie de
mortificação da história como horizonte posto a serviço de uma
força biocultural:

a história, uma vez que se encontra a serviço da vida, se encontra a servi-


ço de um poder a-histórico, e por isto jamais, nesta hierarquia, poderá e
deverá se tornar ciência pura, mais ou menos como o é a matemática.

4 Doravante esta obra será referendada com a sigla HV, seguida da página e do
respectivo parágrafo.
173
José Antônio Feitosa Apolinário
_______________________________________________

Mas a pergunta ‘até que grau a vida necessita em geral do auxílio da his-
tória?’ é uma das perguntas e preocupações mais elevadas no que con-
cerne à saúde de um homem, de um povo, de uma cultura. Pois em meio
a um certo excesso de história, a vida desmorona e se degenera, e, por
fim, através desta degeneração, o mesmo se repete com a própria histó-
ria (HV, p. 17 § 1).

Como observa Scarlett Marton, Nietszche “rejeita a idéia de


que a história possa constituir um domínio específico do saber.
Com isso, posiciona-se contra a tendência, presente em sua épo-
ca, a fazer dela uma ciência” (MARTON, 2000, p. 84). Como
acredita o filósofo, a história deve perfilar-se diante da vida, a
favor da vida, reverberando seus mais distintos conteúdos que
são, em última instância, salutares manifestações de uma civili-
zação e de um povo, e até mesmo de um indivíduo: a força vital
eclode numa história instituída pela ação inovadora (o que já não
implica o comportamento meramente mimético de outros con-
textos) e pelo abandono da previsão futura dos acontecimentos (a
ânsia exagerada por um futuro tolheria as experiências singula-
res da presentidade, reduzindo-as a processo direcionado a fim).
Desse modo, Nietzsche alude para o fato de que não se deve ne-
gar as construções culturais e simbólicas de um povo em prol de
um sentido histórico universal e necessário, que as poria a esmo,
cristalizando um mundo perene objetivamente direcionado.
“Convém lembrar”, de acordo com Hans Georg Gadamer, “a ob-
jeção que Nietzsche fez ao historicismo, de romper o horizonte
circunscrito pelo mito, único lugar onde uma cultura pode viver”
(GADAMER, 2012, p. 454).
A inspiração nietzschiana para a elaboração de sua crítica ad-
vém, na análise de alguns tratadistas5, de seus profundos estudos
sobre os gregos, sua educação e cultura clássicas, das quais reti-

5 Karl Löwith em especial. Renomado comentador da filosofia nietzschiana,


possui obras de referência acerca do autor aqui estudado, destacamos Nietzs-
ches Philosophie der ewingen Wiederkehr des Gleichen, Von Hegel zu Nietzs-
che e El Hombre en el Centro de la Historia.

174
O sentido da história, a ausência de sentido do mundo e o sentido da vida
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rou o critério que apoiava suas reflexões. A Grécia mitológica de


Homero e a pré-socrática de Heráclito constituem o parâmetro
advogado por Nietzsche, em oposição à hipertrófica racionalida-
de socrática do século V a. C. – período que demarcou o início da
decadência e degenerescência da cultura grega segundo sua ótica.
Por fornecer-lhes essa importância paradigmática como critério
crítico, e pensar o patamar histórico de outra maneira, “seu sen-
tido da história lhe fez reconhecer que o mundo moderno estava
tão longe do grego como do cristianismo, pois ambos tinham
seus fundamentos sociais e políticos em um culto religioso”
(LÖWITH, 1998, p. 302). Uma vez que as iniciativas modernas
calcaram-se amiúde na razão como sustentáculo (a res cogitans
de Descartes, o imperativo categórico de Kant, e a razão na histó-
ria de Hegel), as tradições foram liquefazendo-se, até instituí-
rem-se como irrecuperáveis: neste ponto, o filósofo deve prota-
gonizar o papel de um desmedido cético, que percebe a inconsis-
tência da cultura na modernidade e declara: “o ‘arco-íris dos con-
ceitos’ não conduz de volta a polis grega” (LÖWITH, 1998, p.
302).
O fazer história, o participar da grande torrente universal,
conducente dos nossos mais racionais desideratos; e ainda, cons-
tituir-se um elemento deliberador, uma fagulha que contribui
para o encaminhamento histórico necessário, todo esse vislum-
bre é rechaçado por Nietzsche. Quanto a isso, ele remete a Hegel
que, segundo Nietzsche, já havia recebido a alcunha daquele que
concebeu a história como “o caminhar de Deus sobre a Terra”
(HV, p. 72 § 8). A proposta nietzschiana está distante de uma
natura naturans, pois a vida não admite uma causa, um princí-
pio, ela pressupõe tensão ininterrupta entre forças, pulsação des-
conexa provocada pelo incessante embate entre elas: uma ago-
nística. Sendo assim, o filósofo não estandardiza um fim, afir-
mando que “está mais que na hora de atacar as digressões do
sentido histórico, o prazer desmedido no processo à custa do ser

175
José Antônio Feitosa Apolinário
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e da vida, o insensato deslocamento de todas as perspectivas”


(HV, p. 83 § 9). Somente quando a história voltar-se contra a
história que o problema histórico resolver-se-á. Nietzsche realiza
tal empreitada “retornando para o tempo da antigüidade grega
que ainda não tinha pensamento histórico, e retirando dali seus
critérios de uma arte de viver que saiba proteger-se da subjuga-
ção pela história” (SAFRANSKI, 2002, p. 112). Daí sua convicção
quanto à força cultural dos gregos na implementação de um cos-
mos político, assim como sua potência plástica criadora de mitos
imprescindíveis à realização da vida.
Dessa maneira, é pela retomada da criatividade impulsionada
por uma vida sem meta, que Nietzsche combate o sentido históri-
co instaurado nos desígnios modernos. Tanto o prisma histórico-
processual-objetivo, quanto a historicidade como consciência da
inserção do humano neste processo e até mesmo a prática histo-
riográfica legitimada pela autoconsciência metodológica, reba-
tem na concepção nietzschiana de existência, principalmente na
imagem não-histórica resguardada nesta. A despeito do intento
nietzschiano, escreve Löwith: “nos parece alheio e desconhecido
que seu pensamento filosófico vá mais além da consciência histó-
rica que gira em torno do passado e do futuro e assume a idéia do
eterno ou perpétuo” (LÖWITH, 1998, p. 296). Sem hesitar, po-
demos entreolhar já nas Considerações Intempestivas os primei-
ros e não muito tímidos estampidos do que virá a ser a visão do
eterno retorno, perspectiva que pode ser reputada autenticadora
do caráter intempestivo da filosofia de Nietzsche.
O sentido da história possui uma dimensão significativa na
medida em que se apresenta como indispensável a um pensar
filosófico capaz de circunscrever-se num horizonte não-
metafísico. A própria noção de sentido histórico dentro do uni-
verso nietzschiano não parece guardar relações com o ontologi-
zado conceito moderno: seria até um contra-senso depreender tal
ligação, pois, é à disposição da força vital e de seu inesgotável

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O sentido da história, a ausência de sentido do mundo e o sentido da vida
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conflito que essa noção opera. Identificar em todos os filósofos a


tacanha confiança de, por meio do ser humano atual, alcançar a
‘verdadeira’ natureza humana, o fulcro perene do humano, cons-
titui a cegueira filosófica pela qual se desconsidera a história. A
partir desta asserção, pode-se fazer coro com Nietzsche, ressal-
tando que a “falta de sentido histórico é o defeito hereditário de
todos os filósofos”; além disso, segundo ele, os filósofos sim-
plesmente ignoram o aprendizado de que o homem apenas veio a
ser, e da mesma forma veio a ser a sua faculdade cognitiva; desse
modo, estatuem as mais a-historicizadas abstrações sobre o ho-
mem em suas elucubrações visando obter a verdade: “mas tudo
veio a ser; não existem fatos eternos: assim como não existem
verdades absolutas. – Portanto, o filosofar histórico é doravante
necessário, e com ele a virtude da modéstia” (NIETZSCHE,
2000, p. 16 § 2, grifos do autor)6. A inexistência de fatos eternos
não implica a inexistência da eternidade, esta inferência deve ser
entendida da seguinte maneira: a existência não permite cristali-
zações absolutas ou verticalizações essenciais (aeterna veritas),
ela se banha na tensão de um devir transformador que lhe confi-
gura e não obedece a qualquer finalidade – a eternidade nietzs-
chiana é o próprio devir.
Por essa via, somos impelidos a sucumbir com a teleologia da
história, e após devidamente enterrada essa mordaça por um
futuro, o filósofo de Zaratustra nos convida a uma vida a-
histórica, simultaneamente, supra-histórica: “o a-histórico é a
imediatidade viva, e o supra-histórico é definido por Nietzsche
como aquilo que confere ao existir o caráter de eterno e idênti-
co” (SAFRANSKI, 2002, p. 118). Para Karl Löwith, o eterno re-
torno do mesmo detém proeminência como o mais relevante as-
pecto do pensamento nietzschiano. Depositário desta perspecti-
va, Löwith discorda de que a aspiração nietzschiana possa se re-

6Doravante esta obra será referendada com a sigla HDH, seguida da página e
do respectivo parágrafo.

177
José Antônio Feitosa Apolinário
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duzir a um simples eco, pois, embora se discuta sua pertença ou


não-pertença ao espírito de sua época, lhe é inegável a amplíssi-
ma visão que detinha acerca de seu tempo e do nosso tempo, res-
paldada no prisma da eternidade.
A imagem do eterno retorno cintila pela primeira vez num
enigmático e oneroso aforismo 341 de A Gaia Ciência, intitulado
O maior dos pesos, no qual Nietzsche fala pela boca de um de-
mônio, enquanto anunciador da eterna recorrência, do incontá-
vel dacapo da vida desde as suas apoteóticas e catastróficas situ-
ações, até os seus mais sutis detalhes e peculiaridades: “tudo o
que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe
suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem – e assim
também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse
instante e eu mesmo” (NIETZSCHE, 2000, p. 230 § 341). A
anunciação reverbera uma atmosfera psicológica terrífica, provo-
cando no ouvinte o choque de um pensamento que se põe impe-
rativamente sobre suas ações. Nesse sentido, instaura-se uma
visão do eterno retorno como postulado moral, a qual deflagra-se
no devir. E no domínio de tudo que devém encontra-se dissolvido
o indivíduo, o protagonista da tragédia assumida sob a direção
sem ‘direção’ da eternidade que retorna. É nesses termos que
Gilles Deleuze, articulando as considerações nietzschianas, cons-
trói um imperativo posto para além da moralidade, tendo seu
suporte na eternidade: “o que quer que eu queira (a minha pre-
guiça, a minha gulodice, a minha covardia, o meu vício como a
minha virtude) devo querê-lo de tal maneira que lhe queira o
eterno Retorno” (DELEUZE, 1985, p. 31).
Nietzsche não omite a sua derradeira vontade de que a eterna
recorrência, enquanto eterna circularidade imbricada no nascer e
perecer como movimento, seja necessária. Nela, segundo Löwith,
resume-se todo o experimentalismo filosófico nietzschiano. A
doutrina do eterno retorno, exposta nalgumas passagens de As-
sim Falou Zaratustra e deslindada numa parte dos textos pós-

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O sentido da história, a ausência de sentido do mundo e o sentido da vida
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tumos, guarda uma relação com o niilismo, apresentando-se co-


mo a superação deste. Por conseguinte, deve-se ter em conta o
significado do niilismo como questão irrecusável para a compre-
ensão do propósito tardio da filosofia nietzschiana.
A análise elaborada por Nietzsche em torno do nihilum radi-
ca-se no problema da detração dos valores supremos, e sua ir-
rupção manifesta-se pela ausência de valores referencias: “as
categorias ‘fim’, ‘unidade’, ‘ser’, com as quais tínhamos imposto
ao mundo um valor, foram outra vez retiradas por nós – e agora
o mundo parece sem valor...” (NIETZSCHE, 1974, p. 389, grifos
do autor). A vacância de sustentáculos que possam oferecer con-
forto às interrogações mais angustiantes de nosso existir, haja
vista que a experiência reflexionante produziu valores para de-
pois desaboná-los, substitui-los e olvidá-los aos montes, repre-
senta o nihil por baixo da andada humana orientada para um
desnorteamento, uma virulenta falta de rumo. Em tom profético,
Nietzsche prevê os estouros do que denominou niilismo europeu,
o qual, conforme escreve Löwith, “traz a decadência da fé cristã e,
portanto, também da moral, já ‘nada é verdade’ e ‘tudo está per-
mitido’” (1998, p. 303).
Enquanto partícipe de um contexto intelectual que foi a man-
jedoura suja de ideias e apreensões dissonantes sobre o humano,
Nietzsche, em sua interpretação do fenômeno do niilismo, obteve
reconhecida influência de seu tempo por via das leituras que fez
de Ivan Turgueniev, Fiódor Dostoiévski, e, sobretudo, de Paul
Bourget7. Este último concebeu uma teoria da decadência à qual
Nietzsche dedicou-se profundamente em seus estudos, retirando
desta a ênfase no caráter psicológico que irá nortear seu enten-
dimento acerca da própria decadência e sua vinculação com o
niilismo. Verifica-se então o quanto a experiência do pensamento

7Paul Bourget (1852-1935): romancista e crítico literário francês que se desta-


cou graças a artigos que descreviam os traços marcantes da literatura do final

179
José Antônio Feitosa Apolinário
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nietzschiano com a décadence alimentou-se do painel de ideias


composto pelo seu contexto histórico. Todavia, a singularidade
com a qual Nietzsche trata o tema o faz ser nomeado teórico do
niilismo por excelência. Segundo Franco Volpi: “Nietzsche insere
os temas tomados quase literalmente de Bourget no horizonte
mais amplo de sua interpretação pessoal do niilismo como lógica
da história ocidental” (VOLPI, 1999, p. 53). Tal perspectiva vai
além, pois o niilismo não se coloca como causa, sendo apenas a
lógica da decadência.
O prenúncio da morte de Deus – no aforismo 125 de A Gaia
Ciência – é o resultado da tomada de consciência que explicita a
queda dos valores tradicionais, dos valores essencialmente cris-
tãos e metafísicos (Deus, o Bem, a Verdade), que, doravante, tor-
nar-se-iam inaceitáveis. A percepção nietzschiana da referida
sentença logra ascender ao peso de seu sentido, e com isso, de-
semboca “no diagnóstico da desvalorização dos valores supremos
e no reconhecimento da dinâmica da história do Ocidente, inter-
pretada como decadência, como história do platonismo-niilismo”
(VOLPI, 1999, p. 55). Paulatinamente, o processo histórico veio
desencadear a completa falência dos valores supremos como fir-
mes e poderosas respostas vinculadas às inquirições do homem
sobre a vida e o ser. A ausência de sentido submerge ante o esva-
ziamento dos mencionados valores, tornando-se o viés de condu-
ção para a interpretação do crepúsculo que constitui a história
ocidental e para a crítica de seu tempo.
Como o próprio Nietzsche afirma, o niilismo corresponde
primeiramente, ao “tomar-consciência do longo desperdício de
força” (NIETZSCHE, 1974, p. 398), na medida em que o ser hu-
mano procura por um ‘sentido’ nas ocorrências, o qual não cons-
ta nelas, e dessa forma, exala a fustigação indicativa da territoria-
lidade do nada. Este sentido foi propagado e, concomitantemen-

do século, promovendo, a partir de categorias tais como cosmopolitismo, deca-


dência e niilismo, uma análise da sociedade de sua época.

180
O sentido da história, a ausência de sentido do mundo e o sentido da vida
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te, veio rarefazendo-se através do desenvolvimento do pensa-


mento europeu, catalisador do processo de desvalorização dos
valores supremos. Seu marco inicial corresponde à concepção
socrático-platônica dos dois mundos, na qual o mundo ideal pai-
ra enquanto lugar onde habita a verdade, em detrimento do
mundo sensível como aquele em que reina a aparência e a doxa.
A contestação do mundo supra-sensível começa pelo fato deste
consistir numa idealidade, sendo assim, mostra-se inacessível.
Isso revela um problema ontológico, pois a inacessibilidade ao
ser é suficiente para que se declarem falhos seu valor e consistên-
cia. A história do niilismo é a história de um erro, história de
como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou finalmente fábula, descrita
no Crepúsculo dos Ídolos (Cf. NIETZSCHE, 2006, Capítulo IV).
O cristianismo é a fase subsequente, e com ela dissemina-se a
noção do mundo verdadeiro e ideal como promessa redentora. A
existência terrena recrudesce-se penosamente por ser reputada
simples aparência, restando-lhe somente a possibilidade de as-
censão ao ‘paraíso’ (o mundo verdadeiro). Por essa via, o estar-
no-mundo do homem é um estar que aponta para um fora, um
estar de asceta. Noutras palavras, a teleologia cristã determina a
existência humana, estatuindo-a em direção a um além (post
mortem) e à sua promessa de remição, destituindo de valor a
existencialidade. O platonismo nos termos que Nietzsche investi-
ga, ressurge com a instalação da doutrina cristã, e sob estes as-
pectos é denominado ‘platonismo para o povo’.
Em sua terceira instância, a história do niilismo encontra mais
um ponto de verticalização, constituído pelo formalismo moral
kantiano: “o mundo verdadeiro, inalcançável, indemonstrável,
impossível de ser prometido, mas, já enquanto pensamento, um
consolo, uma obrigação, um imperativo” (CI, p. 31 § 3, IV). O
convencimento de Kant a favor do arvoramento de uma filosofia
moral pura, que esteja desatada de qualquer vínculo com a empi-
ria, decorre de afirmações do tipo: “(...) uma lei que tenha de

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José Antônio Feitosa Apolinário
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valer moralmente, isto é, como fundamento duma obrigação, tem


de ter em si uma necessidade absoluta” (KANT, 1974, p. 198).
Somente é lei moral aquela constituída a priori pela razão, assen-
tada em seu caráter puro. Por conseguinte, para que um ato pos-
sua um valor moral, Kant não solicita que o indivíduo que o pra-
tica se prive de seus afetos e sentimentos, mas apenas que se dei-
xe guiar por sua vontade, conduzida impreterivelmente pela ra-
zão. Isso posto, a ação moralmente válida corresponde a uma
vontade que obedece incondicionalmente à lei racional, descon-
siderando qualquer móbil proveniente de inclinações da sensibi-
lidade: sendo o agir coordenado pela vontade sob a égide da ra-
zão, o imperativo é categórico, e tal vontade é boa necessaria-
mente.
Ademais, o dever ser efetiva-se tomando enquanto parâmetro
a vontade seguidora da lei universal da razão, em bom léxico
kantiano, a obediência ao imperativo categórico. Se para Kant, o
que merece respeito no homem é a sua capacidade de obedecer,
para Nietzsche a justificação da obediência é uma violência con-
tra a natureza: um dos fatores que alojam um resto de crueldade
ascética no kantismo. Não obstante a filosofia crítica de Kant, no
que condiz à cognoscência, ‘sepultar’ o mundo supra-sensível (ou
mundo da Ding an Sich), excluindo-o do campo da experiência
possível devido à sua indemonstrabilidade, ela o reedita como
postulado moral da razão prática, uma vez que, “ainda que redu-
zido à pálida existência de uma simples hipótese, continua a se
impor como um imperativo” (VOLPI, 1999, p. 58). As asserções
nietzschianas ressaltam o caráter inacessível de um mundo ver-
dadeiro que nem mais pode ser prometido, mas somente pensa-
do imperativamente – o formalismo de Kant é compreendido
como mais um vetor da decadência, um exemplo claro do niilis-
mo reativo: “o homem reactivo toma o lugar de Deus: a adapta-
ção, o progresso, a felicidade para todos, o bem da comunidade;
o Homem-Deus, o homem moral,... São estes os valores novos

182
O sentido da história, a ausência de sentido do mundo e o sentido da vida
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que nos são propostos para o lugar dos valores superiores” (DE-
LEUZE, 2001, p. 51).
A quarta fase concernente à história do platonismo-niilismo
diz respeito ao expressivo descrédito em relação à metafísica ad-
vogado por um cepticismo atrelado ao instante da acanhada
emanação do positivismo ante os escombros do idealismo. Con-
ferindo legitimidade ao emergente discurso científico de sua épo-
ca, Kant guilhotina as certezas da metafísica e a reboque, a cren-
ça no mundo ideal e na possibilidade de conhecê-lo. O legado
gnosiológico kantiano permanece, no entanto, nem mesmo o
último resquício de relevância do mundo verdadeiro enquanto
postulado moral, oriundo de seu formalismo, consegue manter-
se após a insustentabilidade da existência de tal mundo.
As arguições de Nietzsche sobre esse motor da história do
pensamento ocidental, apresentam, até o momento, a fina per-
cepção da “problemática de uma filosofia intrinsecamente meta-
física e moral como constituindo o âmago do niilismo” (MA-
CHADO, 2002, p. 86). O sentido do nietzschiano voltar-se contra
a filosofia, do combater a filosofia em nome da vida, diz respeito
à negação de todo platonismo filosófico. No cume da modernida-
de, Nietzsche observa a retaliação a tal perspectiva filosófica,
inaugurada aos gritos do carimbador Deus está morto! As causas
últimas não precisam mais ser procuradas ou conhecidas, a cren-
ça na essência imortal da alma humana já não se faz necessária
para o homem que mata Deus: “mesmo se Deus morre porque
deve ser negado em nome do mesmo imperativo de verdade que
sempre nos foi apresentado como uma lei sua, com ele também
perde sentido o imperativo da verdade” (VATTIMO, 1996, p. 9).
Acentua-se então a superfluidade dos valores últimos, suprimi-se
totalmente o mundo verdadeiro: nem mesmo esta terminologia
pode significar ainda uma referência a algo, uma vez que carece
por completo de valor. A demolidora anunciação de A Gaia Ciên-
cia vem à tona e se consolida. Entrementes, Nietzsche sabe que a

183
José Antônio Feitosa Apolinário
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dissolução do patamar suprassensível deixa pelo menos duas


questões diante das quais não se deve recuar: o que resta do lu-
gar no qual residia o mundo ideal, que, com a extinção deste úl-
timo, fica então vazio? Qual o sentido que passa a ter o mundo
sensível após a pulverização do mundo ideal?
A completude do processo até agora descrito, culmina com o
arremate defendido no horizonte do pensamento nietzschiano:
“abolimos o mundo verdadeiro: que mundo restou? O aparente,
talvez?... Não! Com o verdadeiro mundo abolimos também o
mundo aparente!” (CI, p. 32 § 6, IV). Como a dicotomia dos
mundos e ambos os mundos são suprimidos, a reflexão de Ni-
etzsche chega às vias de desconstrução do platonismo-niilismo,
pela igual destituição do mundo aparente. Tal consumação susci-
ta, evidentemente, a seguinte pergunta: a empreitada nietzschia-
na significa a total preterição do mundo sensível como tal? A res-
posta seria: de modo algum! Nietzsche não está intencionado a
fazer esfumar esse mundo, se assim o quisesse, estaria simples-
mente admitindo-se a si mesmo como um niilista reativo: a lite-
ral abolição do mundo aparente traz consigo o desembocar no
nada (nihil), a reapropriação do niilismo. O que fenece é a dico-
tomia entre mundos e a lógica idealista que dá sustentação. Por-
que almeja trespassar a logicidade niilista, o grande Meio Dia
nietzschiano vitupera qualquer possibilidade de um dualismo
que segregue essência e aparência, ocasionando a degenerescên-
cia da vida. Consoante Volpi, para Nietzsche, “abolir o ‘mundo
aparente’ significa, na verdade, eliminar a maneira como o sensí-
vel é visto pelo platonismo, ou seja, retirar-lhe o caráter de apa-
rência” (VOLPI, 1999, p. 59). É por uma nova maneira de sentir
que o legado platônico deve sucumbir e com ele o enorme mal-
entendido que provocou. Desse modo, Nietzsche conduz a uma
abertura na qual outra concepção do sensível dá início à sua
apresentação. Faz-se necessário salientar que a manobra nietzs-
chiana não implica uma hipervalorização do sensível em detri-

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O sentido da história, a ausência de sentido do mundo e o sentido da vida
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mento do não-sensível, mas sim, um total abandono do dualismo


ontológico platônico-niilista e suas respectivas categorias.
Reportemo-nos àquelas perfiladas anteriormente – “fim”,
“unidade” e “verdade” –, o niilismo tem sua gênese enquanto
estado psicológico devido ao arrefecimento e à completa perda de
sentido de tais categorias: a suspeita de nosso auto-engano com
respeito a um princípio organizador do mundo e um sentido ob-
jetivo do devir atingem, com efeito, o seu clímax. O caráter teleo-
lógico foi demasiadamente aplicado ao mundo, nesses termos,
todo o vir-a-ser foi recoberto por um sentido de cunho universal,
uma finalidade última para a qual este caminhava em seu movi-
mento (finalismo). Contudo, a atmosfera niilista desfaz tal ilusão,
pois o devir não projeta fim algum, logo, o deparar-se com a au-
sência de uma telos do vir-a-ser constitui uma consequência do
niilismo. Outrossim, cai por terra a pretensão de um princípio
unificador, o qual se coloca como dominador e cristalizador do
devir, próprio da reducionista e simplificadora relação sujeito-
objeto: o vir-a-ser jamais pode emoldurar-se à guisa de uma uni-
dade. Por fim, como viemos enfatizando nos parágrafos antevis-
tos, a verdade é golpeada pelo niilismo e com ela, o subterfúgio
de um verdadeiro mundo, revelado como meramente fictício.
Nietzsche também condena o niilismo por ser um intento de
negação da vida e de depreciação da existência estatuído sob três
formas principais, encontradas em sua Genealogia da Moral: o
ressentimento, a má-consciência e o ideal ascético. No cerne de
todo desenvolvimento do niilismo sob qualquer de seus modos,
residiu sorrateiramente o denominado espírito de vingança, es-
tabelecendo um imperioso domínio sobre o nosso modo de pen-
sar, consumando-se enquanto elemento tipológico imbricado
neste mesmo modo: “a luta de Nietzsche contra o niilismo e o
espírito de vingança significará portanto inversão da metafísica,
fim da história como história do homem, transformação das ci-
ências” (DELEUZE, 2001, p. 55). Nietzsche nos fala de feições do

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José Antônio Feitosa Apolinário
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niilismo, algumas estritamente associadas às formas cautelosa-


mente analisadas na Genealogia, dentre as quais destacamos o
niilismo passivo, o ativo e o estático.
O niilismo passivo é designado de início por niilismo negativo,
e caracterizado pelo valor de nada que é entregue à vida; tal valor
provém dos valores superiores quiméricos, os quais exprimem
uma vontade de nada. Na mesma linha, surge o niilismo reativo,
como prolongamento do negativo, implicando uma reação contra
os valores metafísicos e a sua validade. O niilismo passivo é o
estágio extremo do reativo, considerando-se que “o homem pre-
ferirá ainda querer o nada a nada querer” (GM, p. 149, II § 28).
Aos olhos de Nietzsche, seu mais representativo exemplo é a filo-
sofia de Schopenhauer. O segundo é o niilismo ativo, dimana do
espírito num alto grau de potência, é o catalisador da destruição,
aquele que erradica a existência de qualquer verdade, portanto, é
considerado extremo. O último, chamado niilismo estático, torna
positivo o caráter negativo inerente ao niilismo, reconhecendo a
vontade de poder enquanto interpretação acerca de tudo aquilo
que existe: “ao conseguir abrir caminho afirmativo, o niilismo
supera sua limitação e se completa” (VOLPI, 1999, p. 63).
A partir da denúncia de que as manifestações do pensamento
metafísico são produções propriamente niilistas (diametralmente
opostas à vida), Nietzsche propõe a libertação impreterível do
pensamento, enquanto saída definitiva das teias do niilismo, e
igualmente, um modo de pensar totalmente novo: um pensamen-
to afirmativo da vida. Portanto, a visão niilista coaduna com o
solapamento da vida, sendo mola propulsora de uma paradoxal
vida engendrada como reação à própria vida, pois o pensamento
(metafísico) não a favorece, tendo em vista que sua interação
com ela é fundamental para a sua afirmação.
O pensamento libertador e ao mesmo tempo novo menciona-
do acima, coaduna com a conclusão de que é somente esse mun-
do do incessante devir que nos resta, o famoso pánta rei heraclí-

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O sentido da história, a ausência de sentido do mundo e o sentido da vida
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tico é o que sobra. A partir da presente constatação, pode-se ad-


mitir apenas “a realidade do vir-a-ser como única realidade, pro-
íbe-se a si toda espécie de via dissimulada que leve a ultramun-
dos e falsas divindades” (NIETZSCHE, 1974, p. 389). A comple-
tude do niilismo instala-se com a doutrina do eterno retorno,
cumpre-se com esta: considerar a hipótese da recorrência eterna
significa, segundo Nietzsche, pôr-se diante de um pensamento
paralisante, porque já não há meta, nem mesmo um destino para
o qual se lance, sendo assim, a forma mais extrema do niilismo
coaduna com a eternidade que retorna, requerendo-a, anuindo-a:

pensemos esse pensamento em sua forma mais terrível: a existência, as-


sim como é, sem sentido e alvo, mas inevitavelmente retornando, sem
um final no nada: ‘o eterno retorno’. Essa é a mais extrema forma do nii-
lismo: o nada (o ‘sem sentido’) eterno! (NIETZSCHE, 1974, p. 391).

Retomando a apreciação de Löwith condizente à visão nietzs-


chiana do eterno retorno do mesmo (ewingen Wiederkehr des
Gleichen), pode-se comprovar que o niilismo possui duas signifi-
cações: “um niilismo da debilidade e um niilismo da força”
(LÖWITH, 1998, p. 304). Aquele constitui o sintoma de uma de-
cadência devidamente sedimentada, figurada pela denegação da
existência (a negação do querer-viver schopenhaueriano); o úl-
timo representa o indício de uma desilusão positiva que implica
um fortalecimento, engendrando uma nova volição existencial. É
por essa derradeira perspectiva que fica declarada a correspon-
dência evidente entre niilismo e eterno retorno, ambos comun-
gam da falta de sentido, do vazio teleológico do devir, atestando
sua plena eternidade caótica destituída de rumo ou direção: “o
niilismo é a condição prévia verdadeira – por historicamente
necessária – da profecia nietzschiana do eterno retorno do mes-
mo, cuja necessidade cósmico-natural está destinada a dar um
sobressalto na penúria do niilismo” (LÖWITH, 1998, p. 305).
Löwith vê como um paradoxo essa dupla face da teoria de Nietzs-

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José Antônio Feitosa Apolinário
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che, haja vista que a própria superação do niilismo coloca supe-


rador e superado como o mesmo, pois, como já foi frisado, o
eterno retorno constitui o grau máximo do niilismo. Uma das
metáforas evocadas no Assim Falou Zaratustra para o vaticínio
da recorrência eterna se dá no momento em que Zaratustra dia-
loga com o anão, afirmando, como proveniente de seu pensa-
mento abissal, a existência de um portal de duas faces, que seus
meandros conduzem à eternidade tanto de um lado como do ou-
tro. Zaratustra alvitra ainda que as duas vias se contradizem,
chocam-se, porém, é justamente neste portal que elas se juntam
– Nietzsche chama este portal de Instante. O protagonista conti-
nua relatando seu pensamento, mesmo temendo-o: “olha, conti-
nuei a falar, esse instante! Desde esse portal, uma longa rua eter-
na conduz para trás: atrás de nós há uma eternidade” (NIETZS-
CHE, 2011, p. 150. III, § 2).
Ainda na atmosfera interpretativa de Löwith, entendendo-se o
tempo enquanto temporalidade, ou seja, experiência do efêmero,
da imperfectibilidade do instante que se esvai, não se pode colo-
car a principal ideia nietzschiana (a visão do eterno retorno para
Löwith) como uma filosofia do tempo, mas tão-somente como
uma concepção da eternidade. Isso se deve à compreensão de
uma eternidade do sempre igual, donde retira-se a seguinte con-
clusão: ao ser sempre, a eternidade do sempre igual não pode ser
atemporal; porém é atemporal ao ser sempre igual. Noutras pa-
lavras, a eternidade é justamente o tempo em que se somam para
todo o sempre, tudo aquilo que, em dimensões temporais, se dis-
persa. Por ser demasiado autobiográfica, a filosofia de Nietzsche
mostra-o na condição de um filósofo que se reconhece a si mes-
mo como um decadente, mas que possui a consciência de sê-lo e
por isso busca preencher-se de suficientes forças para opor-se à
tal condição. Portanto, a relação de Nietzsche com o tempo é uma
relação de auto-superação, seu pensamento é também seu pró-
prio espelho. Também nesse sentido, conspirou contra o seu

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O sentido da história, a ausência de sentido do mundo e o sentido da vida
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próprio tempo histórico e seus contemporâneos (Bismarck,


Wagner, Schopenhauer,...), por motivações que o elevassem e o
distanciassem mesmo das coisas por ele mais admiradas.
Jamais Nietzsche proporia uma eternidade do fora, uma eter-
nidade na sua completa externalidade do mundo, sustentada na
acepção criacionista a qual perfila Deus enquanto eternidade
exterior ao mundo. Ora, resultaria estapafúrdio um posiciona-
mento oriundo de Nietzsche que aderisse à colocação de um
principium originário como causa deste mundo, quando na rea-
lidade ele abdica de tais postulados no decorrer de toda a sua
jornada reflexiva. Sua proposta consiste em uma noção de eter-
nidade imbricada no tempo, e dessa maneira, não se execra a
temporalidade mundana da esteira eterna porque o eterno retor-
no do mesmo é o próprio tempo do mundo, e por conseguinte a
eternidade não pode ser vista de maneira segregada do mundo
mas, impreterivelmente, como circularidade eterna do cosmos.
Dessa forma, o que poderíamos não sem correr demasiados
riscos denominar ‘ontologia nietzschiana’ está diretamente vin-
culada à perspectiva segundo a qual ser e devir são a mesma coi-
sa. Tal como infere Löwith, o eterno retorno “é o próprio tempo
do mundo em cujo movimento circular recorrente a constância
do ‘ser’ e a mudança do ‘devir’ são o mesmo” (LÖWITH, 1998, p.
306). Efetiva-se assim, uma superação da temporalidade a qual
se transforma em eterno retorno, uma vez que a mudança insti-
tui-se eternamente. Karl Löwith está plenamente convicto de que
a doutrina extemporânea do tempo e do ser elaborada por Ni-
etzsche é o ponto nodal de sua filosofia e que, a partir dela, o
mesmo logrou ultrapassar tanto a temporalidade quanto a histo-
ricidade, abrindo os horizontes da eternidade.
É inegável que aqui se encontra uma recuperação do vislum-
bre grego-oriental do tempo, em contraposição à acepção advin-
da do criacionismo. Nietzsche reinterpreta o tempo e o mundo
tomando partido da antiga Weltanschauung grega, e isso conta

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José Antônio Feitosa Apolinário
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como fator determinante para que revisitemos o que acima dedu-


zimos: o termo ontologia não se aplica ao pensamento nietzschi-
ano, pois é ao mundo como deviniente que ele se refere e, portan-
to, é uma cosmologia filosófica que parece consumar. A trans-
formação orquestrada por Nietzsche junta o tu deves e o eu que-
ro, o estar preso e a liberdade, pela conversão ao jogo sempre
igual do mundo: a vontade, sob esta compreensão, desvincula-se
da moral (esvaziamento de sentido do tu deves), já não deseja
vingar-se (espírito de vingança, próprio do niilismo reativo), já
não precisa mais querer, apenas joga o jogo do eterno retorno de
todo o ente. Embora seja incontestável a influência que o prisma
circular grego-oriental exerceu sobre Nietzsche, é necessário des-
velar os pontos nos quais existem dissonâncias entre ambos, de-
limitando o lugar autêntico do pensamento nietzschiano.
Uma exequível cisão entre eles pode decorrer da evocação de
um porvir em Nietzsche, algo que não era pressuposto pela visão
grega. O subtítulo de Além do Bem e do Mal reforça o que aca-
bamos de asseverar: prelúdio a uma filosofia do futuro. Claro
está que nenhum filósofo grego tematiza o porvir ou o futuro,
motivo pelo qual se deve entender uma ausência de reflexões
clássicas acerca da liberdade, por exemplo. A própria vontade de
poder, enquanto multiplicidade de forças plástico-criadoras sem
causação racional, remete a um futuro, mesmo sendo este futuro
indeterminado, por ser esta uma energética sem meta. Nesses
termos, poder-se-ia julgá-la antigrega, por confrontar-se direta-
mente com a dinâmica circular da eternidade8. Na medida em

8 Karl Löwith infere que “igualmente antigrega é a vontade de poder que, en-
quanto vontade de algo, aponta para o futuro, enquanto que o eterno movimen-
to circular do nascer e perecer está situado aquém da vontade, da intenção e da
finalidade” (LÖWITH, 1998, p. 309). Não nos pareceu clara a conceituação de
Wille zur Macht atribuída a este comentador nesta parte do texto, levando-nos
a entender que há uma ligação constitutiva deste mesmo conceito com as no-
ções de intenção e finalidade. Soou-nos ambivalente a derradeira parte da cita-
ção, pois, como impulso de efetivação de toda força, a vontade de poder cria
novas configurações entre forças, ela não se exerce na condição de um nómos,

190
O sentido da história, a ausência de sentido do mundo e o sentido da vida
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que os gregos contemplavam o movimento dos corpos celestes e


extraíam destes o que chamavam logos cósmico próprio da per-
feição divina, Nietzsche endereçou ao eterno retorno a condição
de oneroso e terrível pensamento, pela sua oposição a qualquer
vontade de redenção. Haveria em Nietzsche a tentativa de supe-
ração do tempo por intermédio de um salto para a eternidade. A
presentidade constituía, na concepção dos gregos, o tempo na
sua qualidade de efêmero, eles não partiam desta temporalidade,
mas apenas daquilo que sempre é, que permanece, que é idêntico
e mantém-se. Nas inferências nietzschianas, reconhecer o eterno
retorno significa elevar-se a um patamar para além do homem (o
que remete à ideia do Übermensch – além-do-homem) e do pró-
prio tempo. Enquanto entre os gregos, a eterna recorrência pos-
suía um caráter de elucidação das ininterruptas mudanças decor-
rentes da natureza e da história. O destino era demasiadamente
temido e respeitado dentro da cultura grega; a postura nietzschi-
ana frente ao destino é a de quem se esforça de modo descomu-
nal para amá-lo, por não tê-lo como seu (o meu destino) mas por
ser um com ele, pertencendo a ele.
Numa linha interpretativa, a novidade subjacente à visão pre-
conizada por Nietzsche é que ela corresponderia a um imperativo
ético (perspectiva adotada por Löwith), essa seria a fagulha da
autenticidade nietzschiana, posta como ferramenta “para insistir
aos homens na ideia de uma responsabilidade absoluta e para
substituir essa sensação de responsabilidade que seguia viva en-
quanto se vivia em presença de Deus” (LÖWITH, 1998, p. 309).
Nessa acepção, é legítima a apreciação do eterno retorno como
postulado prático, porém sabe-se que tal doutrina não se restrin-
ge somente a essa retratação: é notório reivindicar o prisma cos-
mológico-filosófico de Nietzsche sem declará-lo mais ou menos

muito menos condiz a um telos. Como esclarece Marton: “à vontade de potência


não se pode atribuir nenhuma intencionalidade; tampouco haverá instante

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José Antônio Feitosa Apolinário
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importante que o prisma de imperativo ético derivado da inter-


pretação löwithiana. Solicitar ao indivíduo que viva como se sua
vida fosse retornar eternamente nos mais ínfimos detalhes não se
restringe meramente a um postulado moral, vai além disso; a
defesa do pensamento do retorno eterno da vida, independente
do nosso querer, não é simplesmente uma descrição do mundo,
ultrapassa o patamar cosmológico. Todavia, o que deve ficar pa-
tente é que “o eterno retorno é parte constitutiva de um projeto
que acaba com a primazia da subjetividade. Destronado, o ho-
mem deixa de ser um sujeito perante a realidade para tornar-se
parte do mundo” (MARTON, 1992, p. 220).
Sendo esse mundo a própria vontade de poder, nele repousa o
conflito, a tensão, a impossibilidade sintética, a agonística en-
gendrante e criadora, devido ao exercício daquela. A vontade
humana está imersa nesse constante exercitar-se da vontade de
poder, é neste ponto que emerge um problema: qual o papel pro-
tagonizado pela vontade do homem e seu tender para, submer-
gida na eternidade recorrente? Tentando elucida-lo, Nietzsche
convida-nos não somente a conceber futuro, mas principalmente,
ensina-nos a querer sobre todas as coisas, o retorno. É dessa ma-
neira que o humano precisaria posicionar-se, querendo-para-
trás, aceitando e afirmando o acaso, advogando da sabedoria
dionisíaca que é igualmente trágica, e simultaneamente, criar-
futuro, no sentido de estatuir seus próprios valores, promover a
transvaloração de todos os valores. Neste aspecto, o Nietzsche
tardio não encontra similar concepção, nem entre os gregos, os
pagãos ou os cristãos: sua concepção de vontade é essencialmen-
te criativa, independe de um Deus criador que lhe seja causa ori-
ginária, e nem diz respeito à criatividade humana enquanto mí-
mesis, como entendiam os gregos no período clássico.

final, pois a ela não se deve conferir caráter teleológico algum” (MARTON,
2000, p. 71).

192
O sentido da história, a ausência de sentido do mundo e o sentido da vida
_______________________________________________

Todo o descomunal peso do pensamento do eterno retorno se-


rá capaz de ser suportado apenas por um homem que se ponha
como o timoneiro da superação do humano arraigado a crenças,
valores e atitudes propriamente niilistas, criando valores novos.
Este seria o além-do-homem nietzschiano, fruto da transvalora-
ção dos valores, reverberadora do ultrapassamento do niilismo.
Nele consumam-se o querer-para-trás e o criar-futuro. Logo, nele
também se expressa a maior concentração de vontade de poder e
destarte, a aceitação do eterno retorno. Neste âmbito, afirma-se a
vida fornecendo a ela um estonteante sim. Verifica-se então que a
vida institui-se como pano de fundo que abarca todos os desdo-
bramentos do pensamento nietzschiano, fazendo-nos perceber
que, primeiramente, ela instala-se numa perspectiva histórica
que lhe seja útil num sentido antiutilitarista; depois, o filósofo
exige o seu desatrelar-se das grades desafirmativas do niilismo,
consolidando-a no devir que retorna eternamente. É a favor da
vida que Nietzsche se põe como um dos marcos divisórios da
modernidade, e concomitantemente, porta-voz de uma contem-
poraneidade ávida por sepultar de uma vez por todas a metafísi-
ca.

REFERÊNCIAS

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______. Nietzsche e a filosofia. Porto: Rés-Editora, 2001.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. 12 ed. Petrópolis:
Vozes, 2012.
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São Paulo: Abril Cultural, 1974.
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. 2 ed. Rio de Janei-
ro: Graal, 2002.
MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores
humanos. Belo Horizonte: UFMG, 2000.

193
José Antônio Feitosa Apolinário
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______. O Eterno retorno do mesmo: tese cosmológica ou im-


perativo ético. In: Ética. São Paulo: Companhia das Letras.
1992.
NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Giorgio Colli e Mazzino Mon-
tinari (Org.). Kritische Studienausgabe (KSA). Berlin; New
York: Walter de Gruyter, 1999.
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______. Além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001.
______. Assim falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
______. Crepúsculo dos ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006.
______. Ecce homo. Trad. Paulo César de Souza. 2. ed. São Pau-
lo: Companhia das Letras, 2003.
______. Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000.
______. Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. 2.
ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
______. Segunda consideração intempestiva: Da utilidade e
desvantagem da história para a vida. Trad. Marco Antônio Ca-
sanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
______. Sobre o niilismo e o eterno retorno. In: ______.
Obras incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São
Paulo: Abril Cultural, 1974.

194
Ensaiando repertórios de samba
_______________________________________________

Ensaiando repertórios de samba:


feitiços e mistérios teórico-
metodológicos

Manoel Sotero Caio NETTO

Doutor em sociologia e professor da Universidade Federal


Rural de Pernambuco.
Contato: sotcaio@gmail.com

195
Manoel Sotero Caio Netto
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Ensaiando repertórios de samba
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MÚSICA: ATIVIDADE OU OBJETO1?

Notadamente, os estudos em torno da modernidade se pren-


deram demais ao impacto visual que esta produziu, no entanto, é
preciso estar atento à dimensão sonora e as modulações que este
processo também criou. Diante disto, as problemáticas em torno
da música nas mais diversas perspectivas (seja por abordagens
externalistas ou internalistas) têm motivado e angariado pesqui-
sadores de diversas áreas2, tendo em vista a percepção de sua
relevância social – como atividade ou como objeto3. As sonorida-
des, na perspectiva das Ciências Sociais, são de composições,
instrumentais, frequências e influências diversas e, por esse mo-
tivo, trazem com muita pertinência produções que partem de um
mesmo tema, mas permitem variações bastante complexas.
Segundo Smiers (2003), as tensões, conflitos, contradições re-
lacionadas às artes demonstram que a música, entre outras for-
mas culturais, não é adorno inocente da vida. Esta observação é
de suma importância, pois a arte (sobretudo a música) constitui
um amplo campo de atividades sociais adentrando em quase to-
dos os aspectos da nossa vida hodierna. As artes, portanto, são
circunstanciais ao debate democrático e ao procedimento de res-
ponder, emocionalmente ou não, às múltiplas questões da vida
(SMIERS, 2003).
Vários pensadores das Ciências Sociais e da arte se
aproximaram da música visualizando-a como objeto factível de
investigação e para além de uma leitura enquanto ação coorde-
nada. Neste sentido, os apontamentos levantados aqui implica-

1 Essa divisão é operacionalizada por Hennion em sua obra La pasion musical.


(HENNION, 2002).
2 Musicologia, etnomusicologia, história, sociologia, antropologia, comunicação,

filosofia, entre outras.


3 Acho que essa distinção é importante para o estudo da música. Uma coisa é

pensá-la através do contexto e ações coordenadas, isto é, como uma atividade,


evento ou acontecimento. Outra coisa é adentrar nas questões que envolvem
suas tecnicabilidades.
197
Manoel Sotero Caio Netto
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ram uma aproximação mais rigorosa em relação a este cerne teó-


rico-metodológico. Desde já, advirto sobre a perspectiva ensaísti-
ca que farei uso, uma vez que as teorias não serão discutidas à
exaustão, mas serão trazidas e mobilizadas na medida em que
auxiliam a leitura das obras e desvelamento dos textos. Não ca-
berá aqui um processo de exegese, mas apenas indicações de len-
tes teóricas que considero apropriadas para a leitura do fenôme-
no e dos processos de pesquisa. Admito que caminho principal-
mente pela senda sociológica, o que não me exime de oferecer
algumas indicações metodológicas com preocupações estéticas,
antropológicas, entre outras.
A ideia do ensaio surge das interações em sala de aula no pro-
cesso de doutoramento4. Isso me motivou ao aprofundamento
das obras trabalhadas nos cursos de “antropologia das sonorida-
des” e “sociologia da arte” (ambas vivenciadas no processo de
doutoramento). Desta forma, procuro refletir sobre dois livros
que abordam o gênero samba: O Feitiço Decente: transforma-
ções do samba no Rio de Janeiro de Carlos Sandroni e O Misté-
rio do Samba de Hermano Vianna.
Estes enigmáticos e provocativos títulos se complementam. O
próprio Sandroni, em sala de aula, percebendo esta convergência
destacou surpreso em um dos encontros: “O título do livro do

4 Defini o tema desta reflexão a partir das discussões e notas de aula da


disciplina “antropologia das sonoridades”, ministrada pelo etnomusicólogo
Carlos Sandroni em 2012, no Programa de Pós-graduação em Antropologia da
Universidade Federal de Pernambuco (PPGA-UFPE). Essa disciplina tinha
como objetivo introduzir algumas possíveis abordagens sociológicas e
antropológicas nos estudos da música. Ainda no processo de doutoramento,
também cursei a disciplina “sociologia da arte” com o professor Paulo
Marcondes, no mesmo ano. Esta última, por sua vez, permitiu a visualização de
alguns recursos heurísticos de que faço uso na discussão. A motivação do ensaio
parte do reconhecimento das fecundas possibilidades de investigação das obras
e do tema para as Ciências Sociais está amparada na discussão dos textos do
curso “antropologia das sonoridades”, bem como noutras literaturas que tenho
me apropriado em virtude dos meus objetivos acadêmicos mais amplos.

198
Ensaiando repertórios de samba
_______________________________________________

Hermano é ‘O Mistério’ e o do meu livro é ‘O Feitiço’”. Essa


relação me instigou a compreender e aprofundar o que vimos em
fragmento naquele momento. Ao oferecer esta síntese como re-
flexão, cabe ainda uma explicação mais detalhada sobre o título,
já que “Ensaiando Repertórios de Samba” sugere, como já adian-
tei, uma aproximação mais ensaística em relação ao objeto. Além
disso, elucubro sobre pesquisas que abordam um gênero especí-
fico, isto é, o “samba”. O complemento do título do ensaio é mais
do que um jogo com o título das obras discutidas, mas uma indi-
cação do cerne desta abordagem, ou seja, uma reflexão sobre os
aspectos teórico-metodológicos dos estudos da música no con-
texto amplo das Ciências Sociais. Neste sentido, comprometo-me
a pensar mais essas questões do que propriamente o gênero.
Como recurso heurístico, poderíamos falar de abordagens
externalistas e internalistas nos estudos de música. Assumindo
também este desafio de pensar os dilemas metodológicos ou
problemas centrais da “sociologia da arte”, Morais e Soares
(2003) apresentam Adorno e Becker que, segundo eles,
ilustrariam esse dilema ou lugares paradigmáticos de reflexão.
Enquanto Becker ressaltaria os aspectos externos à arte, Adorno
defenderia a posição de que os cientistas sociais deveriam
admitir outras possibilidades de investigação, ou seja:

perder o medo de tratar as questões estéticas, por reconhecer que há


uma irredutibilidade de tais questões a análises sociológicas, políticas,
históricas etc., e por considerar que a obra de arte em si pode ser objeto
de análise sociológica. Ao tratar destas questões, o cientista social deve-
ria, então, relacioná-las às condições sócio-históricas envolvidas na cria-
ção da obra de arte (MORAIS; SOARES, 2000, p. 2).

Sei que é arriscado e reducionista operar estes recortes, mas


corroboro com a apreciação de que isso pode ter mais implica-
ções positivas do que negativas para a organização deste ensaio.
Além dessa dicotomia, poderíamos dizer que noutros estudos
interdisciplinares sobre sonoridades encontraremos reflexões d a
199
Manoel Sotero Caio Netto
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música enquanto “objeto” e outros a pensam como “atividade” 5


(HENNION, 2003). Isso não significa dizer que numa mesma
reflexão esses “pontos de referência” não possam estar mais pró-
ximos ou misturados6. Contudo, com base nas leituras que venho
realizando, levantaria a hipótese de que nos estudos sobre músi-
ca um desses polos acaba sendo privilegiado7.

FEITIÇOS E MISTÉRIOS

Na obra “Feitiço Decente” (2012), Sandroni lança o desafio de


se pensar a música como objeto, admitindo desde cedo suas pre-
ocupações internalistas – embora não deixe de complexificar seu
escopo por meio da busca dos significados atribuídos pelos agen-
tes nas suas práticas e contextos. A partir da observação e escuta
dos sambas de 1917 a 1933, Sandroni aponta para as divergências
“não apenas a ritmos, instrumentos e versos, mas também a tipos
humanos, trocas econômicas, festas, relações entre negros e
brancos, concepções sobre o que é ser brasileiro” (SANDRONI,
2012, p. 16). Não obstante, como o próprio autor alega, o objetivo
último da obra é distinto, já que se perseguem outras alternativas
viáveis de investigação e, por conseguinte, de interpretação. Isso
não significa desconsiderar os múltiplos aspectos do fenômeno,

5 Acredito que essa distinção é importante para o estudo da música. Um


percurso possível é observar o contexto e as atividades que permitem o
acontecimento do evento. Outro caminho é adentrar nas questões de
tecnicabilidade. Costuma-se falar de uma “sociologia da música” somente nesse
último caso, uma vez que as questões estéticas são trazidas para dentro das
reflexões.
6 Poderíamos dizer que são “reflexões recorrentes” ou pontos de referência do

pensar sociológico.
7 De maneira semelhante acontece com a teoria sociológica contemporânea ao

tentar promover as sínteses dos polos agência x estrutura. Mesmo aqueles


teóricos que buscaram esta síntese terminaram privilegiando um ou outro
percurso. Contudo, essa ênfase poderia ser problematizada a partir das
referências que estes autores assumem, ou mesmo pelo contexto de
surgimentos desses pensamentos.

200
Ensaiando repertórios de samba
_______________________________________________

mas privilegiar a articulação de um dos elementos da música e as


fórmulas rítmicas do acompanhamento. É por meio desse arran-
jo que Sandroni extrai informações novas para compreender a
mudança em seu conjunto.
Além de tentar identificar esses agenciamentos que localiza-
mos na obra de Sandroni, é interessante também ressaltar o es-
copo interdisciplinar que o texto abrange, sobretudo quando
identificamos que existe uma grande dificuldade no processo de
síntese dessas abordagens nos estudos da música. As transfor-
mações anotadas no samba do Rio de Janeiro no período de
1917-1933 não se limitaram aos aspectos culturais, políticos e
mercadológicos, tal como podemos identificar na maioria das
obras das ciências humanas (contemplar essas dimensões já é
algo bastante desafiador). O texto de Sandroni é síntese de um
conhecimento teórico-metodológico da sociologia, antropologia,
crítica literária, historiografia, etnomusicologia, entre outros.
Em síntese, o escopo almejado implica pensar a música como
objeto também e não somente como atividade. Neste sentido, as
partituras, os “estilos violonísticos”, bem como estruturas de mé-
trica e ritmo são analisados em profundidade. A abordagem in-
ternalista discutida em “premissas musicais” 8 chama atenção
para essa transformação operada pelo “Paradigma do Estácio”
(SANDRONI, 2012); ou seja, Sandroni apresenta também as va-
riações formais sofridas pelo gênero por meio da exposição mi-
nuciosa das tecnicalidades notadas em “Pelo Telefone9” (mais
próxima do maxixe ou “paradigma tresillo”) que, por sua vez,
diferem e se distanciam do “Paradigma do Estácio”. As figuras
rítmicas foram reconfiguradas e o samba ganhou esse ritmo mais

8 A apresentação do fragmento “premissas musicais” é acompanhada de uma


desobrigação de leitura por parte do autor por um entendimento de que o
argumento geral pode ser assimilado sem esse aprofundamento das síncopes
(mudança de acentuação nos tempos fortes e fracos) e semicolcheias.
9 Apesar das controvérsias em torno da autoria de “pelo telefone”, a composição

foi registrada por Donga (SANDRONI, 2012).

201
Manoel Sotero Caio Netto
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próximo do que conhecemos hoje. Contudo, essas transforma-


ções técnicas são atravessadas por complexas mediações cultu-
rais e, diante disso, destaco a perspectiva de síntese e interdisci-
plinar do autor, isto é, aquela que é capaz de pensar a música
como objeto sem perder de vista o complexo cultural que a en-
volve e informa.
Embora esteja trabalhando neste nível das tecnicalidades10, o
autor busca a interdisciplinaridade dos métodos e assimila essas
divergências e transformações também a partir das elaborações
discursivas dos agentes do samba (artistas, críticos, gente de
apoio). Ainda pensando na forma como pesquisa e escritas se
desenvolvem, encontro correspondências deste prisma num típi-
co teórico de abordagem externalista da arte. Refiro-me à Ho-
ward Becker.
Embora Becker não tenha aparecido como referência biblio-
gráfica da obra Feitiço Decente, senti a necessidade de recorrer
às suas chaves analíticas para este exercício de clivagem ou aber-
tura do texto. Ao reforçar a perspectiva da arte como uma ação
coletiva11, Howard Becker construiu um conjunto de ponderações
que trata dessa relação entre artistas, gente de apoio, público e
convenções. Esta relação complexa fora sintetizada no seu con-
ceito de “mundos da arte”.

10 Teóricos clássicos da sociologia também desenvolveram suas reflexões sobre


a música e arte. Enquanto Marx (1989) viu a arte como reflexo das questões
econômicas, isto é, a infra-estrutura influenciando a superestrutura, Max
Weber contribuiria pensando as notações dentro de sua preocupação mais
geral, isto é, o racionalidade moderna (WEBER, 1995). Neste sentido, Weber
ousaria e ampliaria o escopo da sociologia da música, isto é, as escalas tonais e
harmonias corresponderiam à lógica de racionalização do mundo ocidental.
Neste sentido, friso que debate em torno das tecnicalidades já fora estimulado
desde os clássicos.
11 Becker alerta que as ideias de estrutura ou organização são recursos

heurísticos e não podemos perder de vista seu caráter metafórico, já que a


recorrência da ação não poderia ser deduzida ou tida como um pressuposto que
não demandaria uma investigação mais rigorosa dessas relações que se repetem
ou se atualizam.

202
Ensaiando repertórios de samba
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Lembro ainda que o próprio Sandroni revela no seu texto a


intenção de assimilar os múltiplos aspectos do fenômeno (social,
coreográfico, musical, político-cultural). Essa intenção pode ser
compreendida e sistematizada pelo conceito de “mundos da arte”
ventilado por Howard Becker, visto que Sandroni assimila a im-
portância da ação coletiva de artistas e gente de apoio na con-
formação deste mundo do samba. Em sintonia com Becker, San-
droni captura um tipo de acontecimento que é resultante de um
processo que extrapola a própria agência dos artistas. É neste
sentido que reforço a contribuição de Becker para a compreensão
dos subterrâneos do texto de Sandroni. Como lembra Monteiro,
Becker coloca várias questões tradicionais no campo da arte e seu
acontecimento coletivo:

Podemos focar qualquer evento (o termo mais geral que abrange a pro-
dução de uma obra de arte como um caso particular) e procurar a rede
de relações de pessoas, por muito grande ou extensa que ela seja, cuja
atividade coletiva tornou possível que o evento ocorresse da maneira que
ocorreu. Podemos procurar rede de relações cuja atividade cooperativa é
recorrente ou se tornou uma rotina e especificar as convenções por meio
das quais os seus membros constitutivos coordenam as suas linhas de
separação da ação. (BECKER apud MONTEIRO, 1996, p. 171).

Quando aprofundamos o “Feitiço”, podemos encontrar algu-


mas correspondências teórico-metodológicas. Primeiramente,
poderíamos ressaltar a assimilação desses “não artistas” no pro-
cesso de emergência e transformações do samba. Além disso, os
“espaços sociais” são apresentados e adquirem importância na
visualização do objeto e contornos da pesquisa. Tudo é relevante:
“das casas das tias baianas aos botequins, da Cidade Nova ao
Estácio” (SANDRONI, 2012, p. 17). Além disso, “procurar a rede
de relações de pessoas” que possibilitou a emergência dos acon-
tecimentos transformadores do samba estava nitidamente dentro
dos objetivos de Sandroni . No capítulo “da sala de jantar à sala
de visitas” o autor se mostra preocupado com este tipo de identi-

203
Manoel Sotero Caio Netto
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ficação e oferece grande detalhamento. A conformação da comu-


nidade de imigrantes baianos no centro do Rio – caracterizada
pelos fortes laços de solidariedade – é personalizada e ganha
nomes:

tal solidariedade era em grande parte assegurada pela figuras das ‘tias’,
isto é, de baianas mais velhas que exerciam liderança na organização da
família, da religião e do lazer. Entre estas, podemos mencionar tia Amé-
lia e tia Perciliana, mães, respectivamente, do já citado Ernesto dos San-
tos e João Machado Guedes, que, conhecidos pelo apelidos de ‘Donga” e
‘João Baiana”(...), viriam a desempenhar papel de relevo no meio musi-
cal carioca do início do séc. XX. (SANDRONI, 2012, p. 102).

Destaque ainda é dado à personagem da “Tia Ciata”, visto que


o primeiro samba – “pelo telefone” – teria sido composto coleti-
vamente nas dependências de sua casa. Embora tenha sido uma
obra coletiva, Donga foi reconhecido como autor da música por
tê-la registrado. Desta forma, a casa de Tia Ciata assumiu uma
dimensão quase mítica de “lugar de origem” do samba carioca.
Notemos a preocupação de Sandroni de extrapolar o agencia-
mento dos artistas compositores das obras e sua intenção de ofe-
recer ao leitor o viés etnográfico contido na descrição dos espaços
sociais, bem como das personagens e contextos desses aconteci-
mentos. Estes aspectos descritivos, imagéticos e simbólicos dão o
tom da pesquisa. Método bastante utilizado nos estudo de antro-
pologia e nas recentes “pesquisas de recepção” empreendidas
pelos chamados “estudos culturais”, a etnografia ou “descrição
densa” – alta exigência de análise e interpretação – é também
realizada pelo autor (GEERTZ, 1989). Não se trata de apenas
descrever a festa e a casa, mas de interpretar as relações entre
indivíduos e os sentidos dos lugares a partir dessa “espacializa-
ção”.

a disposição arquitetônica da casa de Tia Ciata, e o uso que se faz dela,


sugere que o caminho da fachada até o fundo – do exterior ao interior –
recobre uma polarização entre o espaço público e a intimidade. Tal pola-

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Ensaiando repertórios de samba
_______________________________________________

rização não se manifesta de maneira gradativa, mas através de rupturas,


que são as separações entre os aposentos. Assim, na sala de visita pode-
riam ser recebidas pessoas cujo acesso à sala seria vedado. Inversamen-
te, na intimidade da sala de jantar a gente da casa poderia se entregar a
práticas ou comportamentos não tolerados diante das visitas formais. As
separações assim criadas (...) agem como um filtro, que restringe e sele-
ciona o acesso tanto num sentido quanto noutro (SANDRONI, 2012, p.
112).

É nesse momento do texto que Sandroni faz a interlocução


com Vianna (1995). Autor de O mistério do samba, Vianna con-
centra seus esforços na compreensão deste salto, isto é, como
“uma prática social discriminada” se torna “símbolo artístico e de
identidade nacional”. A reconstrução deste processo não é con-
sensual e poderíamos lançar dois paradigmas de referência: “o da
repressão e o da concepção tópica” (SANDRONI, 2012, p. 112).
Enquanto o primeiro paradigma reforçaria os transtornos e cer-
ceamentos do conjunto de práticas operadas pelos negros no
universo do samba, a segunda sublinha um aspecto estratégico,
isto é, de uma prática que se torna invisível a determinados gru-
pos (classes dominantes). Desta forma, o samba se preservaria
pela astúcia de seus agentes.
No entanto, Sandroni lembra que a tese de Vianna aponta pa-
ra uma ruptura com a historiografia tradicional sobre o samba,
uma vez que ele observa o “interesse e apoio à música popular
por parte de membros de elite” (SANDRONI, 2012, p. 113). Não
obstante, Sandroni frisa que estaria de acordo com a tese geral do
livro:

a aceitação daquele gênero, nos anos 30, como ‘música nacional’, foi ‘o
coroamento de uma tradição secular de contatos... entre vários grupos
sociais na tentativa de inventar a identidade e a cultura popular brasilei-
ras (SANDRONI, 2012, p. 113).

Embora concorde com Sandroni que esta tese precisaria ser


mais bem investigada, assim como ele faz no “feitiço”, trata-se de

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Manoel Sotero Caio Netto
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um “caminho” que minimiza algumas visões românticas de


emergência – até mesmo mitológicas e heroicas. Discorrer ape-
nas sobre esse processo de resistência e combate implicaria des-
vendar um “mistério”. Elucubrar sobre possíveis “diálogos cultu-
rais”, mesmo que assimétricos, nos permitiria suplantar este mis-
tério (investigação com apelos ficcionais e dramáticos) e nos pro-
voca no sentido de buscarmos os contatos, bem como a comple-
xidade e heterogeneidade dos grupos sociais. Nem todos os poli-
ciais reprimiam, nem toda a elite ignorava a prática social do
samba. Como bem sabemos, o estigma e a carga simbólica nega-
tiva leva a certos ocultamentos de práticas. Isso não significa di-
zer, no entanto, que os indivíduos não participavam delas. Esse é
um dos grandes desafios da pesquisa social, afinal lidamos com
“objetos” que falam, dissimulam, interpretam e fazem escolhas12.
Como analisa Sandroni, Vianna retoma a tese de Hobsbawm
(1984) ao falar da invenção de uma tradição do samba. Essa in-
venção, portanto, se daria pelo contato, diálogo e disputas entre
diversos grupos: negros, ciganos, baianos, cariocas, intelectuais,
políticos, folcloristas, compositores eruditos, franceses, milioná-
rios, poetas, entre outros. Neste caso, Vianna nega o que Sandro-
ni chamou de concepção tópica, isto é, que o samba se restringia
“aos redutos da cultura negra”, mas, ao contrário, nacionalizava-
se a partir destes contatos e interesses diversos (SANDRONI,
2012, p. 116).
Sandroni parece querer sublinhar as possíveis implicações da
perspectiva generalizante cultivada por Vianna. Afirmar que o

12Outras práticas periféricas que atualmente investigo guardam esta relação.


Para não deixar de citar alguma, menciono o acontecimento musical do Kuduro
angolano. O Kuduro emerge da periferia, mas sob o contato. De forma
semelhante ao que seria identificado no samba, existe uma tensão na relação
entre brancos e negros em Angola. Alguns discursos reivindicam essa
resistência heroica dos musseques, mas, por outro lado, existem discursos que
buscam mostrar esse “diálogo cultural”. Caso assumisse essa versão da
resistência sem contatos, teria que lidar com o mesmo mistério identificado por
Vianna (o que, definitivamente, não é o caso).

206
Ensaiando repertórios de samba
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samba fora inventado por “grupos” que estavam em contato nos


levaria a uma falsa segurança do entendimento deste processo.
Se levarmos em consideração o trabalho de Sandroni, percebe-
mos o seu esforço para compreender a dinâmica dos “sujeitos em
ação” e não turvados pela ideia de grupos numa dinâmica pouco
descrita. A crítica maior do autor diz respeito a uma passagem de
O mistério do samba. Segue:

O samba não é apenas a criação de grupos negros... Outros grupos, de


outras classes e outras raças e outras nações, participaram desse proces-
so, pelo menos como ‘ativos’ espectadores e incentivadores das perfor-
mances musicais. Por isso serão privilegiadas, aqui, as ‘relações exterio-
res’ ao mundo do samba (VIANNA apud SANDRONI, p. 118).

A crítica de Sandroni nos remete novamente as reflexões de


Becker, uma vez que considerar “os não músicos” como “exterio-
res” enfraqueceria o seu nível de argumentação. A partir de uma
abordagem externalista da arte, Howard Becker define mundo
como a totalidade de pessoas e organizações cuja ação é necessá-
ria à produção do tipo de acontecimento e objetos caracteristi-
camente produzidos por aquele mundo, isto é, o mundo da arte.
Para Becker, portanto, é possível entender as obras de arte con-
siderando-as como o resultado da ação coordenada de todas as
pessoas, cuja cooperação é necessária para que o trabalho seja
realizado da forma planejada. Becker compreende a obra de arte
como um produto de uma cadeia de cooperação que envolve “não
somente o artista (...), mas também um mercado distribuidor e
um público minimamente habilitado a entender as obras produ-
zidas neste circuito” (MORAIS; SOARES, 2000). Neste sentido, a
realização da obra de arte estaria intimamente relacionada às
pessoas que concebem e executam o trabalho (composito-
res/músicos), ao apoio logístico (fornecedores, fabricantes de
instrumentos, entre outros) bem como um público habilitado a
consumir tais obras. Portanto, não faria sentido falar desses
agentes que não participaram da criação harmônica, melódica ou
207
Manoel Sotero Caio Netto
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percussiva do samba – músico prático – como exteriores ao


mundo do samba.
Não obstante, é interessante como Hermano Vianna desenlaça
os processos sociais e históricos do gênero. O mistério sobre o
qual Vianna se debruça é de grande valia para outros investiga-
dores de gêneros musicais que emergem da periferia. Para Vian-
na, não importa muito o local de nascimento ou a identidade dos
primeiros sambistas. Diz ele: “Penso especificamente na trans-
formação do samba em ritmo nacional brasileiro, em elemento
central para a definição da identidade nacional, da ‘brasilidade’”
(VIANNA, 1995, p. 28).
Vianna critica as narrativas de descontinuidade que levaria ao
mistério:

Num primeiro momento, o samba teria sido reprimido e enclausurado


nos morros cariocas e nas ‘camadas populares’. Num segundo momento,
os sambistas, conquistando o carnaval e rádios, passariam a simbolizar a
cultura brasileira em sua totalidade, mantendo relações intensas com a
maior parte dos segmentos sociais do Brasil e formando uma nova ima-
gem do país ‘para estrangeiro’ (e para brasileiro) ver (VIANNA, 1995, p.
29).

É nesse fosso, ou melhor, nesse hiato que Vianna tenta atuar,


como bem percebeu Sandroni. Diz Vianna:

nenhum autor tenta explicar com se deu essa passagem (o que a maioria
faz é apenas constatá-la), de ritmo maldito à música nacional e de certa
forma oficial. É em torno desse mistério, que está no cerne do encontro
da turma de Gilberto Freyre (representando aqui – problematicamente,
como em toda representação – a elite) com a turma de Pixinguinha (re-
presentando o povo), que vai ser construído o livro (VIANNA, 1995, p.
29).

Contudo, embora sinalize este mistério, Vianna pretende de-


monstrar que a eleição do samba como símbolo nacional não
ocorreu por acaso, mas pela intensificação de contatos entre gru-
pos sociais que, de alguma forma, desejavam a construção de
208
Ensaiando repertórios de samba
_______________________________________________

uma identidade. Ao oferecer novos recursos analíticos – intera-


ção –, Vianna pretende escapar daquela visão heroica de agentes
que resistiram à dominação e reforçar este processo de invenção.
Não é por acaso que nesta época foram escritos os “Livros que
inventaram o Brasil”, para citar uma expressão do sociólogo Fer-
nando Henrique Cardoso (CARDOSO, 1993). Nessa palestra,
Cardoso nos mostra como a construção de ideias de uma demo-
cracia racial – Gilberto Freyre – e do homem cordial – Sérgio
Buarque de Holanda – também promoveram elementos de ras-
gos identitários (Gilberto Freyre enfatizaria os aspectos positivos
desta identidade). Além desta literatura, vale assinalar as discus-
sões fomentadas por Renato Ortiz em Cultura Brasileira e iden-
tidade nacional (Ortiz, 1994). O “Cadinho cultural” é debatido
por Ortiz, além do intenso fluxo de imigrantes no território brasi-
leiro que começavam a ocupar lugares de destaque. Vianna es-
creve que a mestiçagem foi uma opção pela “unidade da pátria”:

Foi Gilberto Freyre quem conseguiu executar a façanha teórica de dar


caráter positivo ao mestiço. O brasileiro passou a ser definido como a
combinação, mais ou menos harmoniosa, mais ou menos conflituosa, de
traços africanos, indígenas e portugueses, de casa-grande e senzala, de
sobrados e mucambos. A Cultura brasileira, mestiçamente definida, não
é mais a causa do atraso do país, mas algo a ser cuidadosamente preser-
vado, pois é a garantia de nossa especificidade (diante de outras nações)
e do nosso futuro, que será cada vez mais mestiço (VIANNA, 1995, p.
64).

Em resumo, o argumento de Vianna procura dar relevo a co-


mo os diversos grupos sociais que, em interações assimétricas,
não institucionalizadas e pouco estáveis, permitiram essa mu-
dança do status do samba. Sendo mais contundente, Vianna es-
taria mais preocupado com a integração (que não exclui a tensão
envolvida neste processo) do que com a resistência (tão reforçada
pela historiografia). Vianna conclui da seguinte forma:

209
Manoel Sotero Caio Netto
_______________________________________________

O samba não se transformou em música nacional através dos esforços de


um grupo social ou étnico específico, atuando dentro de um território
específico (o ‘morro’). Muitos grupos e indivíduos (...) participaram, com
maior ou menor tenacidade, de sua ‘fixação’ como gênero musical e de
sua nacionalização. (...) Nunca existiu um samba pronto ‘autêntico, de-
pois transformado em música nacional. O samba, como estilo musical,
vai sendo criado concomitantemente à sua nacionalização (VIANNA,
1995, p. 151).

Portanto, podemos dizer que Vianna não compreende um


mistério, mas um processo de ajustamento e negociações trans-
culturais (negros, ciganos, baianos, cariocas, intelectuais, políti-
cos, milionários, poetas, franceses, eruditos, compositores, entre
outros) que permitiram a promoção – invenção – positiva de
símbolos para a conformação do Estado-Nação.

O SAMBA, O MALANDRO, OS TEXTOS E CONTEXTOS

Diante da discussão provocada acima, gostaria de ressaltar o


rigor utilizado por Sandroni no debate que marca a emergência
de símbolos e traços que “inventaram o Brasil”13. O autor pensa a
figura do “Malandro” através das ambivalências das letras e, para
tanto, desenvolve uma cuidadosa pesquisa dos sambas nesse pe-
ríodo, localizando as transformações que o “modelo” sofre nesses
dezesseis anos. Não se trata, portanto, de tomar emprestada essa
cristalização do malandro, mas pensar essa emergência nas suas
tensões (inclusive quando esses agentes “deixam” de ser malan-
dro e passam ao status de compositor). Essa discussão aparece
no fragmento “de malandro a compositor” (SANDRONI, 2012, p.
158). Diante da complexidade exposta, Sandroni apresenta senti-
dos e formas de emprego da “malandragem”, bem como palavra
da palavra samba. Diz ele que o contexto do “samba” surge das
festas que aconteciam na casa de Tia Ciata: “No sentido mais

13Expressão provocativa utilizada pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso


(1993).
210
Ensaiando repertórios de samba
_______________________________________________

geral, ela designa a própria festa (...). Alargando um pouco mais a


ideia, podemos chegar à de ‘festa na casa de pessoas do povo’”
(SANDRONI, 2012, p. 111).
Esse percurso analítico dos sentidos e significados que variam
no tempo e no espaço, ou mesmo esses jogos de linguagem, é
trazido à tona nesse processo de investigação dos “tipos” e gêne-
ros destacados, sobretudo, a partir das letras. Novamente temos
uma abertura interdisciplinar para a investigação de um material
discursivo14. Fica bastante evidente a busca pela contextualização
dos sentidos e significados cambiantes nesse curto espaço de
tempo – dezesseis anos. Para que se tenha uma ideia de como
isso é engendrado no capítulo, apresento um dos momentos des-
sa empreitada discursiva através dos usos da expressão “orgia”.
Sandroni começa apresentando o samba de Sinhô, intitulado
“Ora vejam só”:

“Ora vejam só/ A mulher que eu arranjei!/ Ela me faz carinhos até de-
mais chorando, ela me pede:/‘meu benzinho, deixa a malandragem se és
capaz”

Em seguida, destaca um trecho da letra de Heitor dos Praze-


res:

“Não se deve amar sem ser amado/ É melhor morrer crucificado/ Deus
me livre das mulheres de hoje em dia/ Desprezam o homem só por causa
da orgia”.

Sandroni analisa:

A orgia, aqui como em inúmeros outros sambas da Estácio, é um sinô-


nimo de vida boêmia, do modo de vida apreciado pelo malandro. ‘Orgia’,
neste contexto, é quase sinônimo de malandragem – trata-se sempre de
um estilo de vida, considerado no primeiro caso do ponto de vista do ob-

14Trata-se de um tipo de análise do discurso, onde o autor analisa um grupo de


sambas gravados entre 1927 e 1931.

211
Manoel Sotero Caio Netto
_______________________________________________

jeto, e no segundo do ponto de vista do sujeito (SANDRONI, 2012, p.


163).

Ele transcreve esse segundo ponto: “A malandragem/ eu vou


deixar/ Eu não quero outra vez a orgia”
A partir desses trechos, Sandroni observa um tema em co-
mum:

a presença de uma mulher que recusa o modo de vida adotado pelo pro-
tagonista. Num caso, pede que deixe a malandragem, e, no outro, o des-
preza porque vive na orgia. Só muda a tática, lamentosa no primeiro
(‘chorando, ela me pede: meu benzinho etc’), desprezo puro e simples no
segundo. Mas a incompatibilidade entre ‘mulher’ e ‘orgia’ fica em ambos
estabelecida (...). Tal incompatibilidade é um tema recorrente (...).
(SANDRONI, 2012, p. 162-163).

No final dos anos 1920 o “malandro” é tido como:

mestiço, oriundo de um meio economicamente desfavorecido, festeiro,


sambista (...), ganhando a vida sem ‘pegar no pesado’. (...) A malandra-
gem, mais que uma posição objetiva, é uma construção imaginária pela
qual um grupo se reconhece e é reconhecido socialmente (SANDRONI,
2012, p. 170).

A partir da análise das letras, Sandroni identifica que a constru-


ção da malandragem como definição identitária (auto-identidade)
não se fez sem conflitos, uma vez que muitas vezes o “abandono”
deste estilo de vida era tido como desejável enquanto noutros gru-
pos era algo rechaçado ou mesmo restito a indumentárias.
Não cabe aqui um exame aprofundado de como esses tipos são
construídos por Sandroni no texto, mas simplesmente apresentar
mais um recurso de análise oferecido pelo autor, isto é, a valida-
de de uma abordagem que se concentre na letra da música, mes-
mo que não se dedique “igual atenção aos demais componentes da
canção, visto que frente às dificuldades de real domínio da lingua-
gem e semiótica propriamente musicais, restaria o trabalho sobre
o discurso literário” (SOARES, 1996, p. 6).
212
Ensaiando repertórios de samba
_______________________________________________

Como destaca Perrone:

Uma letra pode ser um belo poema mesmo tendo sido destinada a ser
cantada. Mas é, em primeiro lugar, um texto integrado a uma composi-
ção musical, e os julgamentos básicos devem ser calcados na audição pa-
ra incluir a dimensão sonora no âmbito da análise. Mas se, independen-
temente da música, o texto de uma canção é literalmente rico, não há
nenhuma razão para não se considerar seus méritos literários. A leitura
da letra de uma canção pode provocar impressões diferentes das que
provoca sua audição, mas tal leitura é válida se claramente definida co-
mo uma leitura. O que deve ser evitado é reduzir uma canção a um texto
impresso e, a partir dele, emitir julgamentos literários negativos (PER-
RONE apud SOARES, 1996, p.8).

É interessante como Sandroni assume mais essa frente de


apreciação, ou seja, interpreta as letras das músicas e os tipos
que são construídos e metamorfoseados com o tempo (a questão
da malandragem é recorrente e característica do gênero). Contu-
do, entendo que existe um ajustamento de letra e melodia na
proposta de Sandroni e isso fica evidente em algumas passagens
do Feitiço Decente, pois o autor tenta mostrar a ligação entre a
mudança estilística e a temática malandra.
Soares lembra que:

Diversos estudos têm apontado para a necessidade de se estabelecer


uma relação íntima entre melodia, letra e ruído sonoro. Em tais estudos,
essa tríade se mostra como algo fundamental para que se tenha maior
compreensão de cada uma das partes, bem como do todo da canção. A
exigência de um estudo com essas características é tal que Perrone
(1988) se refere à letra de música como literatura de performance. Diz o
autor: ‘seja qual for o enfoque – artístico, musical, antropológico ou lite-
rário – será necessário que se leve em conta as características musicais
de uma canção juntamente com os significados verbais ou funções cultu-
rais para que se possa verificar a ação complementar que há entre a mú-
sica e o texto’ (SOARES, 1996, p. 8).

Como apontado acima, esta perspectiva de síntese ou cometi-


mento interdisciplinar ainda parece ser um dos grandes desafios

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Manoel Sotero Caio Netto
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para os estudos no campo das sonoridades. As possibilidades de


investigação dos objetos artísticos são diversas, assim como os
seus problemas epistemológicos e dilemas metodológicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebo a contribuição das ideias e argumentos organizados


nos livros discutidos nesse ensaio. As tessituras dos argumentos
chamam bastante atenção e se mostram, em alguma medida,
complementares. Não é por acaso que Sandroni traz os argumen-
tos de Vianna para dentro do seu livro, colocando-o na função de
interlocutor. Também não é somente por se tratar de uma refle-
xão sobre o Samba, já que a leitura das obras nos oferece bases
teóricas importantes e sugerem caminhos metodológicos ricos e
complexos.
Penso que um ensaio como esse pode ajudar na tentativa de
compreender os textos por dentro, isto é, pensá-los a partir de
suas bases lógicas e subterrâneos que erigem dilemas, possibili-
dades e resultados de investigações interdisciplinares. Penso que
textos como o de Sandroni e Vianna traduzem o esforço de com-
preensão de um fenômeno multifacetado.
Ensaiado o repertório, chega a hora de levá-lo a público.

REFERÊNCIAS

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Perspectiva, 1989.
BECKER, H. S. Mundos Artísticos e Tipos Sociais. In: Velho, G.
(Org.) Arte e sociedade: ensaios de sociologia da arte. Rio de
Janeiro: Zahar, 1977.
BECKER, Howard. Art Worlds. University of California Press:
London, 1984.

214
Ensaiando repertórios de samba
_______________________________________________

CARDOSO, Fernando H. Os Livros que inventaram o Brasil.


Novos Estudos Cebrap: n. 37, 1993.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:
LTC, 1989.
HENNION, Antoine. La Pasión Musical. Barcelona: Paidós,
2003.
HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1984.
MARX, Karl. O capital. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
MONTEIRO, Paulo Filipe. Os Outros da Arte. Oeiras: Celta,
1996.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São
Paulo: Brasiliense, 1994.
SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente: transformações do samba
no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
SMIERS, Joost. Artes sob pressão: Promovendo a diversidade
cultural na era da globalização. São Paulo: Escrituras, 2003.
SOARES, P. M. F. Aspectos Sociais da Canção de Grande Circu-
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SOARES, P. M; MORAIS, Jorge Ventura de. Agência, Estrutura
e Objetos Artísticos: Dilemas Metodológicos em Sociologia da
Arte. In: http://gordaarte.arteblog.com.br/35640/Banco-de-
Textos-4-parte-1-Foco-Metodologia-em-Sociologia-das-Artes/
Acessado em: 12/2009.
VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1995.
WEBER, Max. Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da
Música. São Paulo: EDUSP, 1995.

215
Manoel Sotero Caio Netto
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O retorno: ficção, identidade social e descolonização em Dulce Maria Cardoso
_______________________________________________

O retorno: ficção, identidade social e


descolonização em Dulce Maria
Cardoso

Nefatalin GONÇALVES NETO

Doutorando pelo Programa de Literatura Portuguesa da


Universidade de São Paulo (USP). Professor da
Universidade Federal Rural de Pernambuco.
E-mail: negfa.usp@gmail.com

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Nefatalin Gonçalves Neto
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O retorno: ficção, identidade social e descolonização em Dulce Maria Cardoso
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INTRODUÇÃO

A literatura portuguesa pós Revolução dos Cravos revelou ao


mundo diversos escritores de alta qualidade literária. Qual um
marco que permitiu um desabrochar textual, 1974 ultrapassa
aquela defasagem entre a práxis artística e a práxis social,
apresentando escritores de alta garbosidade como José
Saramago, António Lobo Antunes, Mario Cláudio, Mario de
Carvalho ou Almeida Faria, para permanecermos nos mais
clássicos. Por outro lado, esse mesmo processo quebrava com
certa prevalência machista. Ora, a revolução faz aparecer nomes
como Olga Gonçalves, Adilia Lopes, Helia Correia, Luísa Costa
Gomes, Lídia Jorge, Teolinda Gersão, Maria Judite de Carvalho,
Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa ou Teresa Veiga.
Com o fim da ditadura Portugal sai de sua perspectiva
colonialista, rural e tradicionalista e assume uma autocensura
efetuada por esses autores – que tinham medo e/ou eram
proibidos de escrever sobre determinados temas.
Marcada nitidamente por um boom literário, a letras
portuguesas passaram, no final da década de 90, por uma crise,
já que não haviam novos escritores que pudessem continuar esse
projeto iniciado com o fim da ditadura salazarista. Essa trava
textual foi ultrapassada logo em inícios do século XXI com o
surgimento de novas vozes que conseguiram dar sequência ao
processo de escrita dessa literatura portuguesa contemporânea.
Assim, muitas vezes viabilizados pelo Prêmio literário José
Saramago – que acabou sendo um denunciador dessas
novíssimas vozes –, temos o aparecimento de José Luís Peixoto,
Gonçalo Tavares, Valter Hugo Mãe, João Tordo, David Machado
ou Afonso Cruz. Nessa maré de escritores surgem, também,
romancistas e poetisas como Ana Margarida de Carvalho, Helia
Correia (que alcança fama a partir de 2002 com seu romance

219
Nefatalin Gonçalves Neto
_______________________________________________

Lilias Fraser), Filipa Leal, Rita Taborda Duarte ou Alexandra


Lucas Coelho. Internacionalizada principalmente com os
romances de António Lobo Antunes e José Saramago, a literatura
portuguesa do século XXI apresenta um caráter avançadamente
cosmopolita, com jovens escritores que colhem referências
literárias em autores do mundo todo.
Ora, é dentro desse contexto um tanto quanto dialético –
influência e temas universais, questionamentos e narrativas
locais e, muitas vezes ainda, marcadamente antisalazarista – que
surge o nome de Dulce Maria Cardoso. Dentre seus romances
(quatro até o momento), O retorno, publicado em 2012, angariou
fama e diversos prêmios internacionais. Por meio dele sua fama
cresceu exponencialmente (por conta do livro, foi condecorada
com as insígnias de Cavaleira da Ordem das Artes e das Letras
da França), mas sua qualidade literária já havia sido reconhecida
por meio de outros prêmios – como o Grande Prémio Acontece
de Romance por seu livro de estreia, Campo de Sangue (2001); o
prêmio da União Europeia para a Literatura, atribuído a Os Meus
Sentimentos (2005) e o prêmio Pen Club para O chão de pardais
(2009). Tais congratulações atestam que a presença de Dulce
Maria Cardoso no universo literário português ultrapassa o mero
aparecimento fortuito ou a projeção de uma artista reservada a
um único sucesso. Mas, voltando a proposição inicial, é por meio
de O retorno que seu nome alça novos patamares no sistema
literário português; a crítica recebe seu romance de bom grado e
o livro passa a constar de cursos em universidades (tome-se, a
exemplo, o curso Narrativas Contemporâneas e Hermenêutica
Intercultural, ministrada pela professora Dra. Ana Paula Arnaut
– no qual consta, como material a ser analisado, o livro
referido).
Em seu aspecto material, O Retorno aborda a questão dos
portugueses retornados de África em 1975, após a libertação das
antigas colônias ultramarinas do jugo português. A trama

220
O retorno: ficção, identidade social e descolonização em Dulce Maria Cardoso
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narrativa enfoca a vida de uma família portuguesa constituída


por um pai – Mário –, uma mãe – Glória – e dois filhos – Rui,
um garoto de 15 anos, e sua irmã Maria de Lurdes, alcunhada
Milucha –, sendo o rapaz o narrador do livro. A família, que vive
em harmonia pacífica, é focalizada em seu último dia em Angola,
com suas rememorações, sonhos e projetos vislumbrados em
terra africana, mas que, com a deportação, se esmiúçam. As
crianças, que jamais estiveram em Portugal – país conhecido
apenas por meio de mapas – sonham com as novas
possibilidades enquanto o pai, auxiliado por Tio Zé – militar
português que deserda a tropa e se junta à milícia local (além de
haver assumido sua homossexualidade) – organiza o degredo da
família.
Apesar de visto como sintomaticamente negativo pelo pai de
Rui, a “volta” ao país continental é obrigatória, uma vez que os
angolanos já dominam a cidade – Luanda – e matam ou
promovem ciladas para aprisionar os portugueses que ainda se
encontravam em sua terra. A família precisa, então, fazer as
malas com os bens que julgam ser mais necessário para iniciarem
a vida na metrópole. A focalização inicial do romance apresenta
uma reunião familiar na qual o pai tenta, até o último instante,
manter uma atmosfera de tranquilidade dentro de casa enquanto
jantam à mesa. Todavia, essa tranquilidade paterna é
interrompida pela emergência de levar a família ao aeroporto e
deflagra, já nas primeiras linhas, os grandes problemas que os
portugueses “de fora” enfrentaram por conta da migração
compulsória: o (des)conhecimento da pátria, o medo da
recepção, seus problemas e entornos desconhecidos. A essas
tribulações se soma uma particular, o problema mental que
corrói a esposa e coroa as preocupações iniciais da família
apresentadas no início do romance.
Não bastasse o clima complexo de migração, o pai da família
em foco é interpelado no portão – justamente no momento em

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Nefatalin Gonçalves Neto
_______________________________________________

que está a sair com sua família para o aeroporto – por um grupo
de soldados angolanos armados sobre um jipe e acaba vítima de
uma emboscada. Enquanto é levado preso, a família de Rui é
embarcada em um avião para retornar a Lisboa sem a figura
paterna, o que causará o desespero das mulheres da família e
incitará o narrador tentar assumir, daí em diante a função de
“homem da casa”. Tais funções são tomadas por Rui como uma
espécie de predestinação bem moldada pelo discurso salazarista,
afinal, em um contexto de inspiração paternalista e totalitário, os
moldes adotados pelo narrador propaga que o portador da
responsabilidade do seio familiar deve de ser a figura de maior
idade e do sexo masculino.
Por outro lado e apesar da rápida aparição narrativa (a
personagem tem sua ação circunscrita apenas ao primeiro
capítulo), a figura emblemática do tio servirá para a construção
identitária do narrador e de contraponto ao discurso machista do
pai. Rui, embasado pelo pensamento paternal, marcado pelo
absolutismo machista, chegará a afirmar que, entre o
pensamento do pai e o do tio há um deslocamento social: “(...) o
tio Zé não é como nós, não pertence ao clube a que eu e o pai
pertencemos, deve haver um clube para os que são como o tio Zé”
(CARDOSO, 2012, p. 28). Contudo, essa separação sofre ruturas
quando, ao chegar a Portugal, o narrador encontra-se nesse clube
de excluídos sociais. A figura de tio Zé retorna, dessa vez em
pensamentos do narrador, não mais para marcar a diferença e a
separação, mas sim para, em um primeiro momento, gerar
reflexões sobre a situação do excludente e, posteriormente,
suscitar a possibilidade da junção coletiva de problemas em favor
do fim dessa exclusão.
A ação de cuidar da irmã e da mãe, que tem Alzheimer e
necessita de cuidados médicos, junto com a vontade de arrumar
dinheiro para levá-las embora para a América a procura da
antiga felicidade que sonhava em Angola, inspira Rui e lhe

222
O retorno: ficção, identidade social e descolonização em Dulce Maria Cardoso
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vislumbra um projeto de vida semelhante ao do pai. Essa


esperança, mesmo que utópica, suscita a força necessária para a
continuidade da luta do rapaz, pois “o pai prometia tudo para o
ano que vem e quase nunca cumpria. Sabíamos disso mas
ficávamos felizes com as promessas do pai, acho que nos bastava
a ideia de que o futuro seria melhor” (CARDOSO, 2012, p. 9).
A fatídica prisão do pai e a viagem da família para Portugal
encerram o primeiro capítulo do romance e, já no próximo,
inaugura a nova vida dessa família em ruínas. Rui e os seus, ao
chegarem a Lisboa, são alocados pela IARN – sigla do Instituto
de Apoio ao Retorno dos Nacionais – em um grande hotel com
outros milhares de retornados, fato que gerará a trama do
romance e servirá para que a autora, por meio de suas
personagens, faça uma leitura da condição social de Portugal e de
seus habitantes à época. Os retornados que vivem à custa do
governo, não aceitam os hotéis como casa, renegam o espaço do
hotel como lugar de pertença ou de sobrevivência.

Não vamos poder ficar aqui para sempre neste quarto com esta varanda
de onde se vê o mar e isso a mãe e a minha irmã têm razão, este quarto
com esta varanda de onde se vê o mar não é uma casa. Muito menos a
nossa casa (CARDOSO, 2011, p. 172).

A rejeição talvez se deva ao fato de que Portugal,


(re)apresentado nesse momento pela imagem do hotel, não tenha
espaços para a alocação dos seus, forçando-os a viver em situação
precária, desencantadora e submissa – a mesma situação
imposta por eles aos africanos enquanto Portugal fora Colônia.
Acolhidos de forma degradante e reunidos em espaços apertados,
muitas vezes com pessoas desconhecidas, os retornados
começam a habitar uma terra que, ao mesmo tempo em que é
pátria, expressa um caráter de opressão e de negação de
nacionalidade. Os portugueses que viviam além-mar e que riam
ao ouvirem sobre a conquista africana de uma “(...) grandiosa

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Nefatalin Gonçalves Neto
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nação que se erguerá pela vontade de um povo oprimido durante


cinco séculos (CARDOSO, 2012, p. 8)” agora se encontram em
uma situação semelhante a esse povo: em uma terra que lhes
pertence e, ao mesmo tempo, lhes é negada.
Assim, o romance de Dulce Maria Cardoso desvela diversas
facetas, das quais pretendemos perscrutar algumas, quais sejam:
a questão da mulher no universo social português do período em
que se passa o romance; a ideação da utópica terra prometida,
primeiro em espaços africanos e, posteriormente, na América e,
por fim, a retomada do contexto da guerra colonial portuguesa e
seus desdobramentos na vida dos retornados.

Em relação à primeira proposta elencada, notamos que o


romance de Dulce Maria Cardoso problematiza a figura da
mulher por meio de uma mescla de conflitos subjetivos (os
desmaios de Glória ou o namoro de Milucha com um português
que a possa desrespeitar por ser retornada), políticos (a situação
dos retornados nos hotéis e suas perspectivas de vida antes e
depois da volta, a falta da presença paterna no seio familiar) e
sociais (a função de Rui, que quer “assumir” a paternidade de sua
família).
A questão da figura feminina é delineada, em O retorno, pelo
olhar de um narrador masculino e, inicialmente, machista,
apresentando posturas e conceitos tidos como corretos para seu
grupo de convívio. Dessa forma Rui, que transita da juventude à
adolescência, mede sua irmã e sua mãe por meio de uma leitura
de orientação paternalista, já que o pai o havia instruído de que
mulheres não sabem se cuidar sozinhas. Essa responsabilidade é
gradualmente ampliada pelo narrador, pois sua visão de mundo
prevê que seu pai tenha sido levado embora por conta de sua
falta de masculinidade (o pai é preso em um momento de

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O retorno: ficção, identidade social e descolonização em Dulce Maria Cardoso
_______________________________________________

desmaio de Rui), enquanto os dois conversavam com soldados da


milícia angolana.
Contudo, ao mudar de vida e de país, elementos muito bem
marcados inclusive estruturalmente – já que o capítulo que narra
a transposição, a mudança entre países, é composto por uma
linha de seis palavras, explicitando a rapidez dessa transposição
–, a personagem perceberá que essa mudança não se dará apenas
territorialmente, mas em diversos outros loci de sua vida: toda a
sua orientação social, sua identidade, a forma de enxergar o
universo feminino, se transformam rapidamente, ágil qual uma
viagem de avião.
A primeira ação que concorre para a mudança em relação a
esse universo está na figura do gerente do Hotel onde Rui se
“hospeda” com a família. Esse gerente é uma mulher, posição alta
para o sexo feminino à época, fato que, mesmo indiretamente,
nos faz olhar para a situação de forma diferenciada. O capítulo
quatro do romance é totalmente ocupado por essa figura, já que é
ela quem conduz a narrativa por meio de seu diálogo encenado. A
figura da mulher, no período salazarista e, postergadamente, no
período marcelista, é delineada como um ser que deve viver para
a boa construção da família. Assim, sua figura tem de ser
religiosa e familiar, vivendo para servir a seu marido e
cumprindo os serviços de casa. Não é a toa que a mãe de Rui é
apresentada ao enunciatário nesses moldes. Re-apresentada no
romance como gestora (tendo a gerente de hotel como exemplo),
a figura da mulher portuguesa cresce socialmente, promovendo
novas investiduras identitárias. Apesar das marcas interlocutivas
que são delineadas por meio das respostas da personagem –
recurso largamente usado por Rosa em seu Grande Sertão,
Veredas –, vemos que a gerente domina seu espaço dialógico,
instaurando uma nova condição à voz da mulher no romance,
agora já em posição semelhante e, muitas vezes superior, à do
homem. Esta instauração da gerente enquanto ser com voz

225
Nefatalin Gonçalves Neto
_______________________________________________

indicia que, de ora em diante, a visão machista será,


constantemente, derrubada no romance em favor de uma nova
instância promovida, na qual homem e mulher deverão vozes
equipolentes e, mais que isso, somente ela será aquela capaz de
gestar a alocação dos retornados em seu país. Assim, a
instauração da voz da gerente quebra, paulatinamente, as
prerrogativas instauradas pelo pai de Rui.
Essa questão de equiparação e possibilidade será constatada
por Rui quando esse compreende a situação social em que sua
família e seus companheiros de hotel vivem. Assim, a mulher –
um sujeito social desmerecido por sua condição genérica – tem
sua condição transposta para os retornados que possuem uma
situação, também genérica, de exclusão. Apesar de se
considerarem parte da nação, eles sabem que são desprezados
pelo resto de Portugal, considerados escoria, elementos
desprezíveis: “Estavam lá os retornados de todos os cantos do
império, o império estava ali, naquela sala, um império derrotado
e humilhado, um império de que ninguém queria saber”
(CARDOSO, 2011, p. 86). Tal marca de desqualificação é
expressa, de forma mais direta, em relação às retornadas:

Quando o comboio entrou na estação despedimo-nos à pressa do Tozé


Cenoura, vamos fazer quatro carruagens, gritou o Ngola, este vem bué
cheio, o Tozé Cenoura gritou a Rute, ei garina, a Rute parou, a cabeça de
lado como os retratos que estavam nas montras das fotografias, o Tozé
Cenoura perguntou, qual é o partido do Adão e da Eva. Temos de correr
bué, tornou a gritar o Ngola, mas a Rute ficou parada, se calhar a pensar
na anedota parva do Tozé Cenoura, o cais encheu-se com os passageiros
que saíram do comboio, gente vestida de preto e cinzento, de bege e cas-
tanho, vamos, disse o Ngola já chateado, mas a Rute não se mexeu, a
parvinha à espera sei lá do quê em vez de vir connosco. Se tivesse vindo
os cabrões da metrópole não a tinham apalpado. Eu passei por dentro de
três carruagens e o picas estava numa delas, o picas tornava tudo mais
perigoso porque podia puxar o alarme e mandar chamar a polícia, mas
correu bem, saí já com o comboio em andamento e os braços levantados
em V de vitória.

226
O retorno: ficção, identidade social e descolonização em Dulce Maria Cardoso
_______________________________________________

A Rute já estava a chorar e os cabrões da metrópole tinham bazado, ain-


da corremos atrás deles mas os cabrões levavam-nos avanços e entraram
no machimbombo. Ficaram da janela a fazer-nos manguitos e gestos
como se apalpassem a Rute outra vez, gostaste não gostaste, o machim-
bombo já estava a andar e os cobardes de merda na janela aberta, as re-
tornadas vieram todas furadas pelos pretos. A Rute chorou ainda mais,
nem sequer parou de chorar quando lhe perguntei, afinal de que partido
são o Adão e a Eva (CARDOSO, 2011, p. 111).

Ao evidenciar que sua posição de retornado o coloca abaixo da


mulher portuguesa em uma escala de valores, o narrador começa
a mudar sua perspectiva e passa a ver a figura feminina com um
olhar descentralizador, desprovido do discurso autoritário do
machismo que até então imperava. Rui, ao notar que Rute
representa todas as mulheres retornadas, toma para si a posição
de inocentá-la e alocar a culpa no Tozé Cenoura. Essa
transferência faz com que a mulher seja representante dos
retornados, já que é por meio de sua qualificação enquanto
pessoa que os retornados poderão se firmar enquanto sujeitos
iguais aos metropolitanos. Ao se transportar para a posição do
ofendido, Rui passa a reavaliar os processos de abuso,
exploração, julgamento e condenação da mulher de forma
diferente àquela aprendida em Angola com seu pai. A
personagem expressa, sempre depois de seus aprendizados, que
sua posição enquanto sujeito é guiada não mais pela
aprendizagem do ouvir, mas sim pela aprendizagem do vivenciar,
do experienciar. Assim, Rui muda sua perspectiva, se constrói
qualitativamente a cada nova situação e, projeta, em seu plano de
vida, uma nova visão de mundo.
E isso se dá, também, com sua posição frente ao que já havia
aprendido enquanto sujeitos dominante em África. Sua nova
concepção de mundo, angariada por causa do processo de
mudança, faz-lhe analisar quem seja a mulher e qual sua posição
frente ao homem:

227
Nefatalin Gonçalves Neto
_______________________________________________

(...) se por acaso alguma preta te vier chatear com a conversa de que a
engravidaste, mande-a falar comigo, elas raramente nos chateiam por-
que para elas ter filhos é outra coisa, mas vendo-te tão novo podem que-
rer abusar da tua inocência (...) (CARDOSO, 2011, p. 204).

Segundo Bakhtin há, no romance polifônico, “consciências


equipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa
unidade de acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade”
(BAKHTIN, 1998, p. 4, grifos do autor). Nesse jogo, em que as
múltiplas vontades não se sobrepõem, temos a constituição da
palavra – e da consciência – de Rui para formar sua cosmovisão
de mundo. A capacidade de tornar-se outro, de avaliar a situação
e de se formar conscientemente faz de Rui uma personagem
reflexiva, um ser em busca. Esse sujeito, atravessado pela
diversidade de antagonismos e divisões, mas que não se
desintegra identitariamente por conta de sua autoconsciência em
formação, só pode articular identidades que sejam abertas, em
constante mudança e aperfeiçoamento, em outras palavras,
descentradas. A personagem passa por um processo de
descontinuidade, rompendo com a condição precedente e
fragmentando-se internamente. Em outras palavras, Rui vive,
constantemente, em uma situação de limiar, uma situação de
contrabalanço de contrários. Não é mais isso ou aquilo, mas isso
e aquilo. A autoconsciência da personagem se dará, então,
justamente por esta condição de ser isto e aquilo, de estar em um
estado de limiar constante.

Para o filósofo Paul Ricoeur, em seu A memória, a história, o


esquecimento (2007, p. 40), existe “uma ambição, uma pretensão
[que] está vinculada à memória: a de ser fiel ao passado”. Assim,
é por meio da rememoração que o romance de Dulce Maria
Cardoso insere a questão do império português e da guerra

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O retorno: ficção, identidade social e descolonização em Dulce Maria Cardoso
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colonial ultramarina e, junto com esta, o problema enfrentado


pelos portugueses nascidos nas colônias africanas e que, com o
fim do projeto imperialista de Salazar, se sentem exilados em
Portugal por terem sido obrigados a voltar de África.
Diversos escritores já apontaram em seus textos que Portugal,
mesmo passando por consecutivos problemas sociais e
econômicos, ainda sonhava em recuperar a glória que possuía no
século XIV, além de seu sonho excelso de um dia ser o Quinto
Império. Para Lourenço, “até 1974, (...) existe na convicção de
[Portugal] que o seu lugar no mundo lhe é assegurado, dada a
sua subalternidade no contexto europeu, pela renovação da
presença na África e pela hipótese de construir lá novos Brasis”
(LOURENÇO, 1999, p. 132). A sombra da identidade passada,
desse modo, sobrepõe-se a da presente. Mais que isso, o
desmantelamento sofrido pelo país quando da Revolução dos
Cravos – a ver suas colônias tornarem-se independentes e ainda
ter de equacionar os problemas advindos da chegada do
contingente de portugueses à metrópole sem preparo para tal –
ecoa negativamente nesta visão de prosperidade. O povo
português rememora, continuamente, o passado glorioso e,
sobretudo, tenta convertê-lo no momento atual. Perdido seu
lugar no mundo, Portugal procura ser novamente heroico,
consolidado. Mas, a falta de possibilidade de tal não permite que
o país se insira na nova ordem mundial, pois ainda permanece
preso “à língua, à história, à cultura, à religião e à própria
marginalização, no contexto europeu, devido ao seu lado ilha sem
o ser” (LOURENÇO, 1994, p.13).
A falta de organização social e o despreparo governamental
instauram uma geografia de exclusão e exilamento, nuance que o
romance de Dulce Maria Cardoso expressa por meio da busca
pelo espaço utópico de salvação. As personagens focadas no
romance deslizam entre um passado imaginado em segurança e
qualidade e um presente em ruínas, que dissolve a realidade e

229
Nefatalin Gonçalves Neto
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promove o sonho de se alcançar novamente o estado de graça –


que talvez possa ser oferecido pela América ou por uma nova
reconquista de África. Dessa forma, o romance problematiza a
ideia de pertencimento, cara aos ideais “modernos” e
imperialistas do estado português, já que os retornados são
exilados, emigrados e expatriados, além de compartilharem a
perda desorientadora das próprias raízes, em busca de novos loci,
imaginativos, criados e/ou impostos pelo poder do estado
decrépito. Rui é uma espécie de desterrado que não pode mais
regressar ao local onde nasceu, que com ele cortou os vínculos
legais, mas não os afetivos. Indesejado em sua pátria de
nascença, porque sua presença traz más recordações, o narrador
será, para os africanos, sempre o filho do colono. Mas a terra
onde nasceu existirá nele como marca de impossível identidade.
Este é o motivo que faz com que a terra sonhada, utópica,
emerja em O retorno, instaurando, por meio do desejo de um
novo espaço, a presença da antiga terra e dos prazeres que lá se
encontravam. Tal fato promove a fragmentação e ambiguidade
das identidades dos retornados, fazendo com que estes se exilem
de sua terra natal, mas também de sua condição social, histórica
e pragmática. O exílio se constitui como uma metáfora radical da
condição de todos os portugueses que perderam seus lares, seus
projetos identitários e, até mesmo, sua fala cotidiana. E nenhum
lugar melhor que o romance para que esta condição seja vista e
refletida. Segundo Edward Said, o “romance é a forma literária
criada a partir da não realidade, da fantasia, da ausência de uma
pátria transcendental”; o romance só existe “porque outros
mundos podem existir” (SAID, 2003, p. 55), fator que nos
permite identificar a personagem Rui com este sujeito ocidental
contemporâneo, exilado e em processo de ficcionalização de
mundos para viver.
Esse processo de exilamento é proporcionado pela linguagem
que, em primeira instância propicia às personagens a criação de

230
O retorno: ficção, identidade social e descolonização em Dulce Maria Cardoso
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um espaço de fuga e, em segunda instância, promove a narração


do texto cardosiano, criador de novas realidades possíveis. Essa
linguagem criadora que se refere a si mesma, tornando-se dupla,
instaura o processo metatextual e permite a seu articulista –
neste caso, tanto o narrador quanto o leitor – questionar sua
própria realidade. Assim acontece com Rui quando se dá conta
de sua nova vida. A princípio, não há nenhum entendimento
sobre o sentido de se ser retornado, sentido que vai se moldando
conforme a linguagem age neste processo de criação: “Agora
somos retornados. Não sabemos bem o que é ser retornado, mas
nós somos isso. Nós e todos os que estão a chegar de lá.”
(CARDOSO, 2011, p. 77). Dessa forma, o que define a ação de Rui
no mundo narrado é sua identidade em construção. Um sujeito
que, ao mesmo tempo em que é português, não deixa de ser
africano:

Há muita gente de Moçambique aqui no hotel mas os de Angola quase


não se dão com os de Moçambique. Os de Moçambique têm a mania que
viviam na pérola do Índico e usam palavras em inglês, chamam boys aos
miúdos pretos e dizem que moravam em flats, falam de monhés e de
chinas. A D. Suzete do 310 é moçambicana e está sempre a fritar chamu-
ças no quarto, o corredor fica todo a cheirar fritos, a directora qualquer
dia expulsa-a. Às vezes os de Angola e os de Moçambique desentendem-
se acerca de qual era a melhor colónia, as outras colónias quase não con-
tam. Quando o pai chegar vai defender Angola tão bem que os de Mo-
çambique nunca mais abrem a boca. Gosto de ouvir os de Moçambique
falarem dos Dragões da Morte, das machambas, do ataque ao posto ad-
ministrativo do Chai, do hotel Polana. Não consigo perceber porque é
que discutem tanto qual era a melhor colónia se já perdemos as duas.
Quer dizer, Angola ainda é nossa mas só até o dia 11 de Novembro
(CARDOSO, 2011, p. 88).

O trecho em questão explicita a identidade em estado limiar


de Rui. A descrição da situação dos retornados pela personagem
o obriga a tomar posição. Assim, ao contar sobre as discussões
entre portugueses vindos de Angola e Moçambique, Rui se

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Nefatalin Gonçalves Neto
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identifica com os primeiros por ser este seu berço infantil. A


recorrência ao nome do pai apenas reforça a ideia de que Angola
permanece como terra paterna. Contudo, após tal reflexão, a
personagem descarta a necessidade de se saber qual ex-colônia é
a melhor, posto que todas deixarão de ser portuguesas.
Há ainda que se notar o uso do vocábulo “nossa” que Rui usa.
A relação dialética expressa, ao mesmo tempo, perda e
pertencimento e faz com que a personagem descubra sua
pertença na diferença – etnicamente marcada e com uma classe
social habilmente construída. O outro é presença indeclinável na
figuração do eu; contudo, não há segurança nem abrigo para o
sujeito, já que não sabemos quem será este outro com o qual ele
entrará em contato e muito menos as diversas possibilidades
sociais ao qual ele está sujeito. Cremos ser mais coerente dizer
que a identidade das personagens do romance de Dulce Maria
Cardoso baseia-se em noções de mobilidade, fragmentação e
estrangeirismo.
Para além da construção identitária dos retornados, a utopia é
que proporciona/impulsiona a família ao sonho do novo paraíso.
Lembremos que os planos do pai de Rui – logo ao saber da
obrigatoriedade em voltar para a pátria – são juntar dinheiro e
fugir para a América. A perseverança do menino em manter o
plano do pai se motiva porque em Portugal a família recordaria
daquilo que não gostaria: o lar africano. Constatamos por meio
da família, então, que além do desejo de enterrar o passado
recente, o exilado português que retorna a seu país possui marcas
e ligações extremas com sua origem e/ou vivência africana. A
impossibilidade de solucionar afetivamente essa rutura com essa
origem causa a “fratura incurável entre um ser humano e um
lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial
jamais pode ser superada” (SAID, 2003, p.55).

232
O retorno: ficção, identidade social e descolonização em Dulce Maria Cardoso
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Adentrando a terceira questão proposta, temos a proposição


da guerra colonial portuguesa e seus desdobramentos na
narrativa, fator que, inerente ao machismo e à questão do
exilamento, propulsiona a escrita de O retorno e lhe carrega de
significados. Sendo marco da Revolução de Abril e já discutido
sob diversos prismas, a primeira pauta a nos determos é a de
saber qual a necessidade de se visitar a guerra colonial se outros
autores – tais como Lídia Jorge, José Saramago ou Almeida Faria
– já o fizeram.
Espaço de retomada incessante, a Revolução dos Cravos e
suas consequências ainda são um acontecimento por se construir
na moderna história portuguesa. Isso porque certas ações e
processos acabaram por sufocar nuances do processo que
necessitam ser relembrados. Uma vez no poder, em Lisboa, após
o fim do imperialismo ditatorial, o regime antisalazarista,
ansioso por dar nova face à democracia portuguesa, tenta
governar como se a ditadura o governo estado-novista não
houvessem existido, o que acabou forçando o esquecimento e/ou
a tentativa de apagamento de parte da história portuguesa,
principalmente àquelas ligadas às forças políticas de cunho
conservador.
Ao dar voz a uma personagem retornada, Dulce Maria
Cardoso revisita criticamente a época em questão e traduz, pelo
olhar de um sujeito que é, ao mesmo tempo, estrangeiro e
patrício, o fim da imagem mítica de Portugal e de seu sonho de
predestinado imperial. Ademais desta batalha pelo não
esquecimento da ditadura e de seus malefícios, a escritora
perscruta a faceta dos retornados, passado necessário de se
resgatar e reescrever, ainda que de forma enviesada ou
secundária. Ignorados pelos livros de história, a narrativa desses

233
Nefatalin Gonçalves Neto
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parias sociais encontra novo vislumbre através do espaço


romanesco da escritora.
Talvez possamos pensar, tentados pelo escopo sociológico da
questão, que o tema dos retornados, silenciado por anos, só foi
agora lido pela literatura por conta de que os escritores da
década de 2000, geração de filhos dos ex-colonos portugueses,
chegaram à maturidade e sentiram a necessidade de dar
respostas a um momento de vida que os marcou, sem pensar nas
relações que a crise econômica daquele período possui com a
atual1. Dessa forma, o livro de Dulce Maria Cardoso assume a
função de ser um perturbador do status quo, com o dever de
rememorar os fatos para que não sejam esquecidos. E esta
função só poderia realizar de forma consistente a partir de um
ponto de vista particular, individual, que não exclui os outros
pontos, mas que configura um dentre os diversos e possíveis
pontos de vista. Memórias que coincidem com um despertar para
a vida, com o descobrir do mundo para além da hipotética casa
familiar totalmente protegida.
Evitando a tentação sociológica, podemos antever que o texto
literário, novamente, revisita a História para mostrá-la não como
uma escrita definitiva, mas enquanto discurso que permite lançar
um olhar crítico para entender os fatos e suas limitações.
Provisória, a escrita literária retoma o passado pelo viés da
reavaliação, a qual não se isenta da valoração a respeito do fato
narrado. Paralelas que se cruzam, história e literatura se
solidarizam e tornam-se aptas para a discussão de suas relações
no seio do gênero romanesco. Segundo Walter Benjamin, é por
meio da reconstrução dos sentidos que se garantirá a
conservação da memória, apesar da fragmentação social
contemporânea, um “escrever a história a contrapelo” capaz de

1 Importante não esquecermos que a própria Dulce Maria Cardoso foi uma
retornada e que, em diversas entrevistas, ela assume que desde há muito sentia
a vontade de escrever sobre este fato de forma ficcional.

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O retorno: ficção, identidade social e descolonização em Dulce Maria Cardoso
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realinhar fatos esquecidos e balizar contextos esquecidos e/ou


ignorados pela historiografia oficial; o ir adiante por meio do
contrário que pode servir de clareza para certas dúvidas e
problemáticas (im)postas.
Essa correspondência entre passado e presente pode ser
construída por meio de insignificâncias, ou seja, de elementos e
narrativas negligenciadas por uma história narrada por
vencedores mas que, em sua força de construção, traz a baila
novos sujeitos da história e desvela a participação essencial e
fundamental dos sujeitos da micro-história, em suas ações, a fim
de que se movimente a macro-história.

O romance de Dulce Maria Cardoso se encerra quando o pai


retorna de Angola e tenta retomar sua posição de autoridade da
casa. Entretanto, esse já não é mais a figura cheia de certezas e a
quem Rui enxerga como dono da verdade.
Apesar de inverossímil, o retorno do pai, para além de
colaborar com o título do romance cumpre uma função dentro da
narrativa. Primeiro porque, sem a presença do pai, o jovem
protagonista viverá seu momento de descoberta e final de
aprendizagem – fator que filia O retorno ao bildungsroman –,
além de permitir que a figura paterna seja vista alegoricamente
como representante da nação portuguesa. A personagem, após
seu percurso geográfico de aprendizagem, descobre que a ideia
de humanidade é um construto, sujeitos que necessitam de
nunca saber quem são, pois estão em constante mudança,
aperfeiçoamento e aprendizagem e, mesmo o pai, representante
maior da nação, é um ser em evolução, mutante e socialmente
pensado:

(...) se calhar sou eu que invento mistério onde não há mistério nenhum,
se calhar a mudança não existe vamo-nos só mostrando maneiras dife-

235
Nefatalin Gonçalves Neto
_______________________________________________

rentes. Eu não sinto que mudei mas tenho a certeza de que se a mãe que
usava o pó azul nos olhos me visse agora aqui ia dizer, não pareces tu. E
não havia de ser só por causa de a barba ter crescido (CARDOSO, 2011,
p. 262).

Rui termina as aventuras de aprendizagem diferente de como


entrou. Percebendo que os seres são mais iguais do que os
imaginava ser. Que não há diferença entre homens, e nem entre
homem e mulher. Interessante que o final do livro suscite a
metáfora do avião que cruza o céu para riscá-lo, metáfora esta
que perpassa o livro inteiro:

Um avião risca o céu a direito. Silencioso. Como um giz preguiçoso nas


mãos invisíveis de deus. Noutro tempo ter-lhe-ia respondido daqui de
baixo. Talvez ainda responda noutro tempo ter-lhe-ia escrito, talvez ain-
da escreva, em letras bem grandes a todo o comprimento do terraço para
que não possa deixar de ver-me, eu estive aqui (CARDOSO, 2011, p.
267).

A personagem, contiguo ao avião – os dois representantes da


constante viagem, sempre em mudança e, vale dizer, exilados de
seus próprios espaços –, entretanto, ao invés de riscar o céu para
deixar sua marca prefere continuar com seu aprendizado. O “eu
estive aqui” marca que sua mudança aconteceu, mas que ainda
não terminou. Tanto que sua postura não é mais a da certeza. Ele
faria, e talvez volte a fazer. Nada é concluso. Como um ser em
busca de sua autoconsciência, Rui descobre que a melhor forma
de ser é aprendendo, e não sabendo. Assim termina o romance. A
personagem, como conota seu nome, verdadeiramente ruiu. Sua
postura colonialista é destruída em face de uma nova
possibilidade, que emerge com a ruína do império português
(passe o paradoxo), além de suscitar no leitor a representação de
uma época complexa. Como explicita Ricoeur, “é como começo
que o presente faz sentido” (2007, p. 51). Dessa forma, a História
segue os caminhos da representação via ficcionalidade, pelos
meandros da linguagem. O entrelaçamento de memória, história
236
O retorno: ficção, identidade social e descolonização em Dulce Maria Cardoso
_______________________________________________

e literatura constituem um viés possível de ser ler e dar sentido a


questões caras à sociedade portuguesa contemporânea.
Mas, se a memória propicia o entendimento das experiências
do sujeito que, então, confere aos acontecimentos uma
(re)significação, ela o faz refletir e repensar naquele passado e, de
certa forma, repensar o seu presente. Como diz Ricoeur, “não
temos nada melhor que a memória para significar que algo
aconteceu, ocorreu, se passou antes que declarássemos nos
lembrar dela” (2007, p. 40). Assim, a escritora portuguesa
empenha-se em forjar, por meio da imaginação, uma outra
“história”, muito diferente daquela ensinada. Essa revisitação, a
“outra” história, pretende levar o leitor a questionar as supostas
verdades veiculadas pela ideologia dominante e por em constante
dúvida o mundo em que vivemos, combatendo a imposição de
ideias absolutas e resgatando os olhares e possibilidades
apagados por essa mesma imposição. A personagem Rui,
metáfora do futuro de Portugal, expressa uma posição
adolescente que pretende revisitar o ícone imperial e mostrar a
seus seguidores que o universo português é, ao mesmo tempo,
maior e menor que aquele pregado pelo império. Maior por suas
possibilidades de desenvolvimento, alcance e mescla de vidas.
Menor porque o domínio não está pela posse da terra ou pela
exclusão a que foi relegada a figura feminina.
Por fim, se a questão da memória é um elemento que perpassa
toda a narrativa parece-nos, a primeira vista, controversa a
epígrafe de Dulce Maria Loynaz que encerra o livro: “Las cosas
que se mueren / no se deben tocar”. Ora, ao firmar que não
devemos tocar nada morto, indiretamente a frase de Loynaz
propõe que não olhemos o passado, mas sim o presente em
construção – este em constante vivacidade. Esquecer o morto e
valorizar o vivo. Todavia, se estamos em uma via correta de
leitura e o projeto de Dulce Maria Cardoso seja o de ler a história
a contrapelo para reativar no presente aquilo que, do passado,

237
Nefatalin Gonçalves Neto
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ainda está vivo, nada mais correto que perscrutar no ontem o


vivaz do hoje. Colocada propositadamente no final da narrativa, a
epigrafe tem caráter indicial. Ela propõe a necessidade de,
novamente, começarmos esta leitura iniciática em busca de
respostas para aquilo que, apesar de sufocado e apagado pela
trajetória oficial, não deve e não pode morrer e/ou se esquecer,
mas permanece essencialmente “vivo” na vida de cada sujeito
retornado.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Trad.


Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BENJAMIN, Walter. O narrador – Considerações sobre a obra de
Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio
Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CARDOSO, Dulce Maria. O Retorno. Lisboa: Tinta da China,
2011.
LOURENÇO, Eduardo. Nós e a Europa ou as duas razões. 4 ed.
Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1994.
______. Mitologia da saudade seguido de Portugal como des-
tino. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad.
Alain François. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.
SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad.
Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

238
Sobre a ficção feminina da diáspora negra
_______________________________________________

Sobre a ficção feminina da diáspora


negra: uma escrita que oscila entre
a ordem e o caos

Sueli Meira LIEBIG

Professora da Universidade Estadual da Paraíba


(UEPB/PPGLI).
E-mail: suelibig@hotmail.com

239
Sueli Meira Liebig
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240
Sobre a ficção feminina da diáspora negra
_______________________________________________

L
ivro de importância seminal para uma profunda reflexão
sobre o sentido da existência humana, O Nascimento da
Tragédia ([1872] 2004), do filósofo alemão Friedrich Ni-
etzsche, despertou e continua a despertar polêmica tanto pelo
seu caráter pessoal como pelo conteúdo revolucionário de sua
tese: contrapõe-se à concepção tradicional dos gregos como povo
sereno e simples e exalta a ópera de Wagner como renovadora do
espírito alemão, numa peculiar mistura de reconstrução históri-
ca, intuição psicológica e militância estético-cultural. Após quase
cento e cinquenta anos, suas teses continuam discutidas. Nessa
obra Nietszche nos dá não só uma interpretação da tragédia, mas
deslinda os meandros da própria cultura grega, ocupa-se da pro-
funda ligação existente entre a arte e o conhecimento, enquanto
concentra-se no pensamento da era moderna.
Devemos levar em consideração o fato de que, no século XIX,
a filosofia nietzschiana representava um momento polêmico: o
aparecimento de Dionísio. Como viria a se tornar comum na sua
súmula filosófica, o deus sugere o embate sinergético caracterís-
tico de uma luta, neste caso específico contra seu irmão Apolo.
Assim, o significado estético e metafísico desta obra se expressa
através das figuras de Dionísio e Apolo, sob uma perspectiva
marcada por uma filosofia romântica.
Esses dois mitos gregos servem para que reflitamos sobre a lu-
ta interior da condição humana, a batalha entre a consciência
racional e o inconsciente irracional, aqui representados, respec-
tivamente, por Apolo e Dionísio: sendo ambos filhos de Zeus, o
primeiro é a personificação da luz interior que representa a ra-
zão, a consciência, a lógica ordenadora, o deus dos sonhos, das
formas, das regras, das medidas e das limitações individuais.
Sendo assim, o apolíneo é a aparência, a individualidade, o jogo
das figuras bem delineadas. Representando o domínio da ima-
gem, da metáfora, ou mesmo da dissimulação, essa categorização

241
Sueli Meira Liebig
_______________________________________________

o identifica com o conceito de aparência. Apolo representa tam-


bém o equilíbrio, a moderação dos sentidos e, num certo sentido,
a própria civilidade, ou melhor, o modo como esta é ordinaria-
mente compreendida, a ordem. Já o segundo, forte e inteligente,
é dotado de características contraditórias como misterioso e sa-
grado, luxurioso e profano. Descobriu o fruto da videira e o
transformou em vinho. Ele é, portanto, o deus do vinho, da dan-
ça, da música, a quem as representações das tragédias eram de-
dicadas. Também é apresentado como o gênio ou impulso do
exagero, da fruição, da embriaguez extática, do sentido místico
do Universo, da libertação dos instintos. Dionísio representa,
destarte, o irracional, a quebra das barreiras impostas pela civili-
zação, a dissolução dos limites dos indivíduos e o eterno devir.
Ele enseja o princípio metafísico do ser que é assim, paradoxal-
mente, compreendido como eterno fluir, o caos.
Esta preleção em torno dos dois mitos gregos tem o propósito
de fundar a base que tomamos como parâmetro, o pensamento
de Nietzsche para desenvolver o argumento de que tal qual Apolo
e Dionísio, as mulheres de modo geral e particularmente as mu-
lheres negras, pela tripla subalternidade de gênero, raça e classe,
tendem a ser efetivamente relacionadas a um ou a outro deus,
dependendo da maneira como reagem à sua condição social. Para
tanto, analisaremos um corpus constituído pelo romance autobi-
ográfico Diário de Bitita (1986), de Carolina Maria de Jesus, pelo
conto igualmente autobiográfico “To Da Duh, in memoriam”
(1967), da afro-americana de origem antilhana Paule Marshall,
pelo romance The Bluest Eye (1970), da estadunidense Toni
Morrison e “Duzu Querença” (1993), conto de Conceição Evaris-
to, no intuito de demonstrar como as obras destas escritoras se
encaixam dentro da filosofia nietzschiana quando se trata do
modo como suas personagens reagem frente ao racismo, ao se-
xismo e à opressão impostos às mulheres negras onde quer que
estes percalços se evidenciem.

242
Sobre a ficção feminina da diáspora negra
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Como produto do realismo urbano, a ficção negra da diáspora


sugere decepcionantes experiências das afrodescendentes no
bojo da sociedade. Todavia, quando se trata da literatura feita
por mulheres, percebe-se quase que invariavelmente uma ten-
dência para a tragédia, cuja essência é irreparável, não só do pon-
to de vista da protagonista, como também do da realidade objeti-
va, que lhe acrescenta um preconceito adicional, o de gênero.
Essas visões trágicas fazem com que as percepções das heroínas
tornem-se destrutivas da unidade dentro do mundo moral e
ameacem aniquilar o balanço entre os impulsos dos deuses Apolo
e Dionísio, unidos pela tragédia.
Percebemos que determinadas personagens reagem diante da
realidade de sua condição marginal de forma apolínea, outras de
modo dionisíaco. Aquelas que demonstram um comportamento
passivo e resignado, logo compreendem que o mundo moral não
tem lugar para elas e que não querem tornar-se parte dele, refu-
giando-se na loucura; as que procuram subverter os valores mo-
rais distanciam-se do meio sociocultural que as confronta e de-
senvolvem uma consciência irônica que as ajuda a transpor a
dura couraça da linha de cor e do sexismo, mudando a sua visão
trágica para uma visão romântica. Sendo assim, via de regra, a
protagonista da ficção negra feminina contemporânea é concebi-
da como inversora do mundo moral: o cosmos idílico que ela
tenta construir é produzido pela tensão entre a sua visão de
mundo e a ordem estabelecida para si pela sociedade.
Parafraseando Chester Fontenot Jr., chamaremos o cosmos
universal de “concepção linear da história” e o dessas mulheres
em particular de “consciência histórica mítica” (1979, p. 73). En-
quanto a concepção linear advoga a aniquilação do passado his-
tórico enraizado na África substituindo-o por uma versão de pro-
gresso que implica na pseudo-integração desse grupo marginali-
zado como participante pleno da sociedade, a concepção mítica
ameaça manter o passado vivo através das condições sociais do

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presente, insistindo numa constante recriação desse passado pela


denúncia e pela luta que trava contra o preconceito, a discrimi-
nação, a opressão e, por extensão, contra o sexismo. Fontenote Jr
assegura que “The balance of these two motives is maintained by
catharsis, which purges the reader of pity and fear” (Op. cit., p.
74).1
Essas duas visões do status ontológico da história revivem os
impulsos apolíneo e dionisíaco, uma vez que a sociedade branca
tenta impor ao negro em geral e à mulher negra em especial uma
ordem centrada em seus valores estéticos e morais. Como esses
dois impulsos não podem entrar numa mesma órbita, surgem
nos romances de escritoras afrodescendentes dois grupos distin-
tos de protagonistas, aqui analogicamente associadas a Apolo ou
Dionísio, ou por extensão à ordem e ao caos, em decorrência da
sua atitude e de suas reações perante a vida. As protagonistas
retratadas por parte das escritoras negras da contemporaneidade
rejeitam a concepção histórica linear e tentam, através da sua
concepção mítica, traçar uma rota alternativa que implique numa
escolha moral.
Nas duas primeiras obras elencadas podemos perceber clara-
mente a postura subversiva que denuncia a injusta condição hu-
mana de que é vítima a mulher negra e a tentativa de redirecio-
nar a trilha da história linear, transmutando-a, dionisíaca e cao-
ticamente, em um grito de protesto. O conto de Marshall sinteti-
za a autoaversão a que é levada a mulher negra pelo seu próprio
grupo étnico, que insiste em enxergar-se com o olho do outro, o
branco. Ao narrar o momento em que ela e a irmã , quando cri-
anças, são apresentadas à avó (que até então não as conhecia), a
autora lembra que ambas foram introduzidas pela mãe com uma
espécie de desculpa, porque não só a velha senhora preferia os
meninos, como admirava os netos “brancos” (fair-skinned):

1 “O equilíbrio entre esses dois impulsos é mantido pela catarse, que isenta o
leitor da pena e do medo”. Tradução sob nossa responsabilidade.

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Fomos então empurradas para frente, timidamente, porque não só Da-


duh preferia os meninos, mas gostaria que seus netos fossem brancos,
isto é, de boa cor; e nós tínhamos, como depois vim a saber, alguns pri-
mos, filhos bastardos de personalidades brancas ou coisa que o valha
que se qualificavam. Nós, entretanto, éramos tão pretas quanto ela (GA-
TES & MCKAY, 1997, p. 2066)2.

Mas a autora não se dá por vencida: após uma troca de olhares


longa e silenciosa com a avó, ela enfim pode orgulhar-se da ca-
racterística que a sua progenitora lhe atribui: ela tem uma apa-
rência forte e obstinada. Rindo consigo mesma, a autora afirma
que “ganhara o encontro”. Da-Duh tinha reconhecido a sua força
penetrante – e “isso é tudo o que ela jamais quis ouvir dos adul-
tos a vida toda” (GATES & MCKAY, 1997, p. 2066). Uma vez que
a protagonista seleciona o caminho alternativo da contracultura,
os impulsos apolíneo e dionisíaco ou, por extensão, a civilização e
a barbárie, colocam-se em estado de fluxo e o mundo moral é
seccionado e transformado em caos. O movimento da protago-
nista em direção à realização do seu objetivo oblitera a concepção
linear da história e é a partir daí que Apolo e Dionísio se sepa-
ram. O mundo que a protagonista cria na sua procura por um
caminho alternativo nega o impulso apolíneo em direção à har-
monia e emprega o motivo dionisíaco rumo à barbárie, traduzida
no comportamento anticonvencional de uma menina negra de
apenas nove anos, que sabe que um dos fatores primordiais para
a redenção do negro aos olhos da sociedade dominadora é a
aquisição de respeito.
A crítica da autora à comunidade étnica a que pertence como
principal responsável pela sua falta de perspectiva e autodespre-
zo centra-se na figura apolínea /civilizada/ordeira da avó como
símbolo do pensamento retrógrado dos mais velhos em relação à
condição humana da mulher negra, visão essa representada pela

2 Esta e todas as demais citações das escritoras americanas foram traduzidas do


original por esta autora.

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entronização da crença na supremacia branca e masculina que a


história linear lhe legou como verdade irrefutável.
Num mundo tão injusto e desigual, a utopia que a protagonis-
ta procura criar para romper a concepção linear da história con-
verte-se numa distopia representada por um mundo romântico,
suspenso no tempo e no espaço de ambas as concepções, a linear
e a mítica. Este cosmos existe acima do plano da realidade, onde
os valores éticos, políticos, morais e existenciais são subvertidos,
fornecendo-lhe os meios pelos quais ela pode projetar-se através
de ações construtivas.
Como Marshall, a personagem Bitita, protagonista do diário
autobiográfico de Carolina, é uma criança negra, pobre e discri-
minada, que apesar da precária condição social tenta desespera-
damente racionalizar e equacionar o problema da linha de cor
(que no Brasil é nada menos que um desdobramento da superes-
trutura representada pela distinção de classe) procurando cons-
truir uma rota alternativa que lhe permita preencher seus anseios
básicos como o da educação, da alimentação, do trabalho e de
uma vida mais digna e humana. O romance descreve a infância e
o crescimento da autora, em meio à exploração social e sexual da
mulher negra; revolta-se contra o discurso do colonizador bran-
co, critica a existência da ideologia do branqueamento, que bene-
ficia o mulato em detrimento do negro e condena a política in-
ternacional brasileira, o governo, as revoluções, o caos e as injus-
tiças sociais. Revestida da força que o seu caráter dionisíaco/
caótico lhe confere, ela está sempre tentando encontrar ao menos
um fator positivo, um resquício que seja de algo entre os negros
que os faça manter nem que seja a mais remota semelhança com
um ser humano: “O meu avô rezava o terço... eu ficava toda orgu-
lhosa por ser neta de um homem que sabia rezar o terço, conven-
cida de que éramos importantes” (JESUS, 1986, p. 57).
Criticando, denunciando, contradizendo e revertendo toda a
ordem da axiologia ocidental, a consciência mítica de Bitita leva-

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a a rejeitar os padrões de beleza sujeitos ao código cultural espe-


cífico da monolítica estética branca e a faz criar uma distopia que
preenche a sua expectativa de transformar o sabidamente demo-
níaco em belo e prazeroso, pelo seu distanciamento do mundo
real e pela subversão dos valores morais estabelecidos. Fazendo
da sua arte um instrumento da contracultura, Bitita inquieta-se
contra a falácia do racismo científico – a mãe explicara-lhe que
“os negros eram ignorantes” (JESUS, 1986, p. 93) e que “os bran-
cos é que são os donos do mundo” (JESUS, 1986, p. 113) – en-
quanto rechaça o discurso que contém as falsas promessas da
patroa:

Sabe, Carolina, você vem trabalhar para mim e quando eu for a Uberaba
eu compro um vestido novo para você, vou comprar um remédio para
você ficar branca e arranjar outro remédio para o seu cabelo ficar corri-
do. Depois vou arranjar um doutor para afilar o seu nariz (JESUS, 1986,
p. 134).

Impulsionada pela consciência mítica, ela mantém a sua posi-


ção de subverter os valores institucionalizados e, acariciando as
mãos negras que Deus lhe dera, tocando o seu nariz chato e o seu
cabelo pixaim, decide que prefere ficar como nascera:

Eu não pedi nada a dona Maria Cândida, ela é quem usou um ardil para
me espoliar. Não poderia e não deveria xingá-la, ela era poderosa. Nós
dependíamos dela para viver, nos dava a terra para plantarmos. Mas ro-
guei lhe tantas pragas... (JESUS, 1986, p. 135)

Através da inversão de cosmos, Bitita pode ver a viciosa reali-


dade. O que muda não é a realidade em si, mas a sua percepção
sobre ela. A nosso ver, a única maneira de escapar à submer-
são no fluxo da história linear é o distanciamento romântico que
tão eficazmente distingue a ficção negra feminina das demais. As
visões das protagonistas de Marshall e Carolina de Jesus, a rigor,
não são trágicas. Elas obtêm vitórias morais (Marshall, o respeito
e a admiração da avó; Bitita, a consciência de um senso estético
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norteado pelos seus próprios padrões de beleza). E essas con-


quistas não são assim tão doídas porque resultam num sistema
alternativo de valores que aponta para uma perspectiva de mu-
dança social.
As Personagens que não conseguem, não podem ou não que-
rem se desvencilhar da percepção histórica linear, como Pecola
Breedlove, heroína de Tom Morrison em The Bluest Eye (O Olho
mais azul, 1970) e Duzu Querença, protagonista do conto homô-
nimo de Conceição Evaristo (1993), desembocam num reducio-
nismo psicológico que assume ser a injustiça social perpetrada
contra a mulher negra, na melhor das hipóteses, o resultado da
sua inabilidade de tirar vantagem das oportunidades com que se
deparam. Em seu romance, Morrison critica o processo e os sím-
bolos impostos ao ser humano marginalizado e o que acontece à
sua psique quando esse processo se mostra desordenado e os
símbolos revelam-se defeituosos. Pecola, uma menina negra de
onze anos, sente-se uma outsider numa América cuja valorização
de suas crianças louras e de olhos azuis pode devastar a autoes-
tima daquelas que não se enquadram neste perfil.
Como observa Fanon (2008), o esquema parece ser o da lenta
construção de eu negro enquanto corpo, no seio de um mundo
espacial e temporal. Este não se imporia ao negro, seria mais
uma estruturação definitiva do seu eu e do mundo – definitiva,
pois entre seu corpo e o mundo iria se estabelecer uma lógica
efetiva:

No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração


de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é unicamente uma
atividade de negação. É um conhecimento em terceira pessoa. Em torno
do corpo reina uma atmosfera densa de incertezas (FANON, 2008, p.
104).

A ingênua Pecola reza todas as noites, infalivelmente, para


que os seus olhos negros se tomem azuis, para que se tome boni-
ta, visível e aceita aos olhos dos outros. Quase todos os adultos
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com quem a menina se relaciona no dia a dia a desprezam e rejei-


tam, reafirmando o estigma mundial da negrura como algo me-
donho. Até os seus pais, Cholly e Pauline Breedlove, relacionam-
se com ela dessa maneira. Nos acontecimentos da vida diária da
família, a autora ilustra o processo pelo qual a autoaversão, in-
crustada no core da própria comunidade negra, toma um bode
expiatório como válvula de escape. Pauline sobrevive pela ferre-
nha determinação que possui e por refugiar-se na harmoniosa
brancura da casa dos Fisher, seus patrões; mas a filha refugia-se
na loucura. Não tendo forças para persistir e lutar por uma rever-
são da ordem cósmica, ela simplesmente substitui a sua realidade
por uma melhor: ela tem olhos azuis, que todo mundo admira e
inveja. Personagens como Pecola, que não têm forças pua lutar
contra a história linear e a consequente negação do passado da
sua comunidade étnica, optam por uma visão distorcida do pre-
sente e uma percepção obscura de um futuro distante, fazendo da
fantasia e da insanidade o pano de fundo para a sua tragédia.
Do mesmo modo que a protagonista de Morrison, a heroína
de Conceição Evaristo, Duzu Querença, afoga nas raias da de-
mência a dor de uma vida inteira de maus tratos, humilhações,
incertezas e exclusões. Como Marshall, Bitita e Pecola, Duzu é
uma menina negra, pobre e discriminada. Anos mais tarde, do
alto de sua maturidade, ela relembra a infância sofrida e explora
aspectos da vida marginalizada e da psique do oprimido, dos seus
sonhos e desilusões. Quando Duzu chega pela primeira vez à ci-
dade, acompanhada dos pais, é ainda bem pequena. Eles alme-
jam para a filha um futuro melhor: um emprego em uma casa de
família onde ela possa trabalhar e estudar, ter uma vida mais
digna. Mas a Sorte da menina já está traçada. A senhora que lhe
dá emprego é dona de um bordel. Duzu não irá estudar; ao con-
trário, irá tomar o rumo da prostituição – um caminho que inva-
riavelmente se abre diante de meninas negras e pobres como ela:

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Duzu morou ali muitos anos e de lá partiu para outras zonas. Acostu-
mou-se aos gritos das mulheres apanhando dos homens, ao sangue das
mulheres assassinadas. Acostumou-se às pancadas dos cafetões, aos
mandos e desmandos das cafetinas. Habituou-se à morte como uma
forma de vida (EVARISTO, 1993, p. 33).

O silêncio e a impotência de tais personagens diante da cruel


engrenagem social são fatores que as levam a “habituar-se à mor-
te como forma de vida” (EVARISTO, 1993, p.33) e a autoaversão
como forma de morte, enterrando-se no jazigo sereno da loucura.
Silenciosas, isoladas e insanas, essas mulheres não têm escapató-
ria: refugiam-se nos “vales da mente” (MORRISON, 1970, p. 158)
e buscam a liberdade mergulhando no delírio de querer voar. Ao
contemplar algumas roupas estendidas num varal, Duzu fica “na
pontinha dos pés” e abre os braços, sentindo-se como um pássaro
que voa por cima de tudo e de todos:

...Sobrevoava o morro, o mar, a cidade. As pernas doíam, mas possuía


asas para voar. (...) Duzu estava feliz. Havia se agarrado aos delírios, en-
torpecendo a dor. (...) ganhara asas e assim viajava, voava, distanciando-
se o mais possível do real. (EVARISTO, 1993, p. 34-35)

Como Duzu, a mutilada Pecola não deixa a menor dúvida de


que ela não mais habita o mundo da razão:

O dano foi total... Cotovelos dobrados, mãos nos ombros, ela rufla os
braços como um pássaro, no contínuo e grotesco esforço de voar... ba-
tendo no ar, um pássaro alado mas fincado no chão, debate-se num va-
zio azul que não pode atingir – não pode nem ao menos enxergar – mas
que preenche os vales da mente (MORRISON, 1970, p. 158).

Podemos dizer que a batalha entre essas duas visões aponta-


das por Fontenote Jr. sobre o status ontológico da história pro-
duz o que o ativista afro-americano W. E. Du Bois chama de
“véu”, ou seja, aquela dupla consciência que faz o negro enxer-
gar-se com o olho do outro e produz o conflito entre o desejo de
assumir a sua origem racial e de ser um cidadão americano. Con-
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tudo, esse dilema não acontece apenas nos Estados Unidos, sen-
do uma contingência mesmo da diáspora. No entendimento do
branco o negro não tem “resistência ontológica” (FANON, 2008,
p. 104). Como num passe de mágica ele teve que se situar diante
de dois sistemas de referenciais. Sua transcendência ou pelo me-
nos seus costumes e instâncias de referência foram abolidos por-
que entravam em contradição com uma civilização que ele não
conhecia e que lhe foi impiedosamente imposta.
Levando estas questões em consideração e reportando-nos às
tensões criadas sob os impulsos apolíneo e dionisíaco – que ten-
tam unificar o cosmos idílico ao qual nós leitores procuramos
retornar –, notamos que elas produzem o sentimento de que o
processo que as protagonistas usam para criar a sua versão da
realidade não poderia ser outro senão o ditado pela história line-
ar e pela consciência mítica. As distopias evidenciadas pelas per-
sonagens civilizadas encerram um mundo romântico suspenso
no tempo e no espaço, um mundo que existe acima do plano da
realidade, enquanto as utopias cunhadas pelas protagonistas
contraventoras centram-se no poder do mito para a construção
de um presente baseado nas raízes do passado, que se querem
preservadas.
Destarte, a ficção negra feminina parece resistir à estética
formalista e forçar o leitor a direcionar a sua crítica para um viés
moral, onde é criado um sistema alternativo de valores, uma es-
pécie de princípio que une o estético, o social e o político, não
apenas em termos utilitários, mas através da justaposição de um
mundo romântico ao real. Gostaríamos ainda de acrescentar que
a concepção de personalidade recriada pelo artista através da sua
própria visão de mundo reflete a maneira como a arte e a estética
contemporâneas negociam o problema do caráter. Dentro desta
lógica, não existe passado distante ou futuro obscuro, mas só um
presente radical que é sistematicamente recriado pelo sofrimento
da opressão, da discriminação e, no caso das mulheres, também

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pelo sexismo. Por conseguinte, a ficção negra feminina traz a


lume a oscilação entre as concepções linear e mítica da história;
entre polos que se aproximam e se distanciam; entre dois mun-
dos; entre Apolo e Dionísio; entre a civilização e a barbárie; ou
generalizando, entre a ordem e o caos.

REFERÊNCIAS

EVARISTO, Conceição. “Duzu Querença”, In: Cadernos Negros,


16. São Paulo: Edição dos autores, 1993.
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Trad. Renato
da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
FONTENOTE, Jr. Chester J. “Black Fiction: Apollo or Diony-
sus?”. In: Mc BRIEN, William. Twentieth Century Literature:
A Scholarly and Critical Journal. VoI. 25, n.1. New York: Hof-
stra UP, Spring, 1979 (p.73-84).
GATES, Jr. Henry Louis & McKAY, Nellie. Eds. The Norton An-
thology of African American Literature. New York: W.W.
Norton & Co., 1997.
JESUS, Carolina Maria de. Diário de Bitita. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986.
MORRISON, Toni. The Bluest Eye. New York: Plume, 1994.
NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. Ed. De
Bolso. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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