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Jean Paul d’Antony OS RESTOS sao mais PUROS: Historias da calcada A voz narrativa do livro ilustra de maneira precisa 0 que nos explica T. S. Eliot sobre a tradigao poética, em sua perspectiva de dinamismo e transformagio: “Nenhum poeta, nenhum artista tem sua significacaio completa sozinho. Seu significado e a apreciagao que deles fazemos constituem a apreciacao de sua relacao com os poeta mortos.” (ELIOT, 1989. p.39). Entretanto, avoz que diz das histérias da calgada nao é a de nenhum desses poetas “mortos”, porque o discurso é auténtico; é o discurso de Jean Paul d’Antony; um discurso de alguém que, de fato, "acumulou tantas vozes em seu es- témago", vozes muito bem digeridas, diria eu. O livro é muito organico em forma e discurso. O poeta fez de sua calgada um flaneur da mais complexa e con- turbada urbe que existe: o ser humano. Imaginei duran- te os jorros discursivos da calgada, ela mesma a passear pelas veias, 6rgaos e mente do homem, do poeta — Jean Paul e todos os outros que escutaram “a outra voz”, como diria, mais uma vez, Octavio Paz. NN 9 Digitalizado com CamScanner rors, impossivel ww w-poesiaimpossivel.com 0 impossivel nao existe! ‘Conjunto Nacional, «js. 213,214 €2n5, Avenida Paulista 2073, Edificio Horsa 1, CEP 01311300 Sao Paulo, Brasil Rua de Cascais, 57, Alcintara ~ 1300-260 Lisboa, Portugal “Todos os direitos estio reservados e protegidos por lei, Nenhuma parte deste livo, sem autorizasio privia por escrito da Chiado Books, poders ser reproduzida ou transmitida de qualquer forma. (Obra disponivel para venda corporativa eou personalizada. 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Quando um texto se revela no mais além da comunicagio entre as pessoas ¢ aponta para a propria palavra, que é sua carne € que é também seu caminho, esse € um mais que texto, é poesia. Poesia - esse mistério con- ceitual insoliivel. E a poesia impressiona, ao seduzir quem a 1! Quem consegue 1é — pois que, lamentavelmente, ha mui- tos que n&o conseguem desviar-se pelos caminhos de sentidos que os vaos da palavra poética abrem na imaginagiio. Como muito bem nos explica Anténio Cicero, “quando conto a alguém, em minhas préprias palavras, uma noticia que li no jornal, ou quando fago uma parafrase de um ensaio de filosofia, ou quanto traduzo a bula de um remédio, estou abstraindo dos textos, que sao os significantes origi- nais, os seus significados.”' Contudo, na poesia semelhante abstragdo nao pode ser feita sem trair tanto a totalida- de significante-significado do poema quanto o proprio significado abstraido, Isso significa que 0 verdadeiro poema é sempre essen~ cialmente concreto no sentido de construir numa sintese indecom- ponivel de determinagdes seménticas, sintaticas, morfolégicas, fonol6gicas, ritmicas etc.? Se numa visio linguistica, a poesia se configura como sintese indecomponivel de linguagem, de outra parte, em uma visada mais existencial, a poesia possibilita que nos entendamos em quanto seres de linguagem, enquanto seres humanos. Ou, para usar das palavras de Octavio Paz, pos- sibilita a nés leitores “conhecer as paixGes e, assim, a nos 1 CICERO, Antonio, A poesia ea critica: ensaios. Silo Paulo: Companhia das Letras, 2017, p.33. 2 Idem. Digitalizado com CamScanner conhecermos: a inveja, a sensualidade, a crucldade, a hipo- crisia ¢, enfim, todas as complexidades da alma humana 3 A poesia de Jean Paul d’Antony impressiona pela sedugiio que proporciona a partir do seu todo indecompo- nivel que nos mostra todas essas palxoes humanas. Todos ‘os poemas do livro Os restos siio mais puros: historias da calgada carregam em cada palavra o convite sedutor, como nos diz Leyla Perrone Moisés*, para os desvios de sentido que nos ofertam essa experiéncia de conhecimento huma- no... Um convite para o leitor buscar e percorrer essa calgada que nos fala mesmo em siléncio: Busquemos, enfim, os olhares que se abrem, cevitando a morte em espethos deixados no silencio da calgada, ‘como labios amantes virgens de si mesmos, buscando tudo que éramos e deixamos, sem palavras. Sobre a poesia dessa calgada personificada me vejo percorrer caminhos que ora me parecem t&o ins6- litos — trilhas a explorar — ora, bastante familiares, tao reverberantes: a cada poema um didlogo — vi passear por essa calcada grandes nomes da poesia universal, Pessoa (especialmente 0 Alvaro de Campos), como se pode ver em “O anénimo do espetaculo”, a Ansia apor ser outros € sentir como todos: Descer & esquina, ir até ao fundo, ser outro (bastardo), ser mil, ser o mesmo. Solto, norteado pela loucura, pelo ésculo do fim, ‘macro ¢ microcosmo do meu préprio nascimento que ficou numa terga-feira.. 3 PAZ, Octavio. A outra voz, Sto Paulo: Siciliano, 1993, p.98. 4 PERRONE-MOISES, Leyla, F 5 tetas 1990, cyla. Flores na Escrivaninha. Sdo Paulo: Companhia das 10 Digitalizado com CamScanner — Também pisci o escarro de Augusto dos Anjos, na “Na boca da calgada Escarra na boca da calgada, pita sobre ela, larga tuas Sobras sobre cla e observa aas mucosidades dessa vida (bendita) abragada, numa lascividade lenta, pelos labios da ealgada que se abrem antes ¢ depois de tua escarrada: a calgada respira, hd muito tempo. Contemplei, em “Mas agora, uma imagem comum”, uma construgdo que alinhava, num continuum coerente, re- feréncias da tradigao poética simbdlica brasileira — da evo- cago da alma “que anda presa” de Cruz e Sousa 4 recriago da face perdida no espelho, de Cecilia Meireles, numa ima- gem rabiscada na parede: Talvez toda alma ande presa no calabougo atroz.e funéreo de nossa letargia, sentados a beira de um mundo turvo de rabiscos, a beira do mundo sem achar, sem ao menos lembrar daquele Unico rabisco que marca o primeito... ‘Mas em que parede ‘minha imagem ficou rabiscada? Se, por descuido do medo ¢ da raiva, cortei suas maozinhas ¢ rabisquei em todas por que lembrei de deixar-me. [grifos nossos] Nas histérias da calgada encontrei um prosaismo e uma afinidade lexical que nos revelam leituras de Drum- mond, como se vé em “Conversa rapida”: in Digitalizado com CamScanner ain pt, our de joell0s, ri nee ee ene mre conve h rela sem ho tempo que nosso oh no alana como ut pedi dle marfim esqueeida, pergunta&calea, n orficulo. o & 0 poeta, ou 0 home? -oque :acalgnda responde: © baruho de alguém tentando nao fazer barulho. Passeei por um chao de calgada que evoca a insolitez das metaforas € aproximagdes da condigo humana com : watureza tio caras a Manoel de Barros, como em “Casale ‘Acalgada é um corpo de lagarta, um distérbio da natureza, tum casulo que envolve nossos pedagos Vivos e mortos, eas asas nos liberta nos dentes da terra, por dentro. Lia morte, tema frutifero 4 poesia universal, com dicedo semelhante a das especulagdes dilacerantes e senso- riais de uma Hilda Hilst, como se percebe no poema “Bre- vidades”: Fenuncio a morte que amamenta_ a febre diante da perda; renuncio & calgada renunciante do meu corpo, sempre devolvendo minhas memérias, ainda quentes, em meus bragos E, “ » claro, no poema “Arremedo” reconheci, finalmente, cntleada fléneur ~ passante que se deixa passar pela vida. tua condigao maldita, como em Baudelaire, Digitalizado com CamScanner Fu ideia Como eal ‘acompanhei os pensamentos, Gente, fui pensando que morte me acusaria.. Pui caindo em vontade de morte, mastigando a matéria das palavras que me engolia. Em morte me dobrando como cobra, Arraneando a pele, Arremedo de um dia? E muitos outros poetas — lidos por Jean Paul ¢ lidos por mim — também compéem 0 cimento dessa calgada, por didlogo intencional e deliberado do poeta ou téo somente pelos inevitaveis encontros intertextuais que a literatura pro- move. A voz narrativa do livro ilustra de maneira precisa 0 que nos explica T. S. Eliot sobre a tradigao poética, em sua perspectiva de dinamismo e transformagao: “Nenhum poeta, nenhum artista tem sua significagdo completa sozinho. Seu significado e a apreciagao que deles fazemos constituem a apreciagao de sua relagdo com os poeta mortos.”* Entretan- to, a voz que diz das histérias da calgada nao é a de nenhum desses poetas “mortos”, porque o discurso € auténtico; € o discurso de Jean Paul d’Antony; um discurso de alguém que, de fato, “acumulou tantas vozes em seu est6mago”, vo- zes muito bem digeridas, diria eu. O livro é muito organico em forma e discurso. O poeta fez de sua calgada um fléneur da mais complexa ¢ conturbada urbe que existe: o ser humano. Imaginei durante os jorros discursivos da calgada, ela mesma a passear pelas veias, orgiios e mente do homem, do poeta — Jean Paul e to- dos os outros que escutaram “a outra voz”, como diria, mais uma vez, Octavio Paz. 5. ELIOT, T. S. Ensaios. Sto Paulo: Art Editora, 1989. p.39 5 Digitalizado com CamScanner Chamou-me @ atengio 0 ritmo de passog . mais ageis em alguns momentos, outros ma Ientos, ou mesmo 2 completa ae gia de auem ests — trado sobre a calgada, ou da prostragao insinuante : ei gada sobre a vida. Tudo isso alcangado como Reig da linguagem eficiente do poeta, pelas escolhas lex ty pela formatagiio de versos, Cujo dinamismo atin, ce quando se utiliza do espago grafico da pagi ver ao leitor os movimentos fldneurs da calgad: “Auséncias” recalcadas: calgada, leas, BE sey api. Na dando a ‘A, Como em destilar as vertigens por tris dalente escura de um claro dia: cego. destilar do mosto de canas-de-agiicar ‘0s monstros ¢ as eriangas do coragato, continua. continuar. continuar. destilar nas entranhas da linguagem ‘@ mim mesmo em cada canto de calgada recaleada~ onde ninguém mais pisa; e sempre ali, solene, ‘onisciente, cuidando dos rastros do tempo: ~meu tempo, que nada cura! Em Os restos siio mais puros o leitor encom Poemas que so resultados de um processo intelectual em Que © poeta retira da linguagem 0 que deve ser retirado. ae que precisa ser modificado e acrescenta 0 oe oe deixando somente a expresstio do dito irredutt! ase a Paul Nos oferta — nfo sem nos oe sentideg et Pois que a arte nunca vende bari Poemas em que “a poesia esbanjou 0 temP? 4 d Digitalizado com CamScanner poeta”, como nos diz ainda Anténio Cicero e que também dissiparao © tempo do leitor ideal, que se deleita ao flanar pelas linhas dos Poemas que meregam uma leitura por um lado vagarosa, por ou- tro, ligeira; por um lado reflexiva, por outro, intuitiva; por um lado auscultativa, por outro, conotativa; por um lado prospectiva, Por outro, retrospectiva: por um lado linear, por outro, nao line- ar, por um lado imanente, por outro, transcendente; por um lado imaginativa, por outro, precisa; por um lado intelectual, por outro sensual; por um lado ingénua, por outro informada’ Passear os olhos e a imaginagdo por essas hist6- rias da calgada foi muito estimulante e, ao mesmo tem- po, bastante dilacerante, pois que caminhei seduzida e, na liberdade vertiginosa dos versos, impressionei-me ao me reconhecer também apenas uma “passante” nesta vida. Sherry Morgana Justino de Almeida Professora Adjunta do Dep. de Letras da UFRPE; Doutora em Teoria da Literatura pela UFPE (2013), Mestre em Teoria da Literatura (2006) e Bacharelado em Critica Literaria (2003) pela UFPE, atua na area de Teoria e Critica Literaria. 18 de fevereiro de 2019. 6 CICERO, Opus cit. pl 5 Digitalizado com CamScanner E Professor Adjunto da UFS no Departa- mento de Letras — DLI - Itabaiana. Entre 06/2013 - 02/2020 foi lotado na UFR- PE-UAST (Universidade Federal Rural de Pernambuco, na Unidade Académica de Serra Talhada). Doutor em Literatura e Cultura pela UFBA, com a pesquisa voltada para o estudo filoséfico e cultu- ral da identidade na Literatura e no Cinema. Mestre em Literatura e Diversi- dade Cultural pela UEFS, com a pesqui- sa também voltada para o didlogo entre Literatura e Cinema. Docente do Progra- ma de Pés-graduacao Interdisciplinar em Cinema (PPGCINE) - UFS, com a pesquisa em Pés-humanismo, Ciborgue e Identidade no Cinema. Docente Cola- borador do Programa de Pés-graduacaio em Estudos Literarios (PROGEL/UE- FS). Lider/Coordenador do Grupo de Pesquisa/CNPQ - NUPELC (Niicleo de Pesquisa Literarias e Cinematograficas. Editor-chefe da Revista ENTHEORIA: CADERNOS DE LETRAS E HUMANAS. Algumas de suas publicagdes podem ser vistas no Portal Oxe de Literatura Baiana. Participou de coletanea da Re- vista Hera, de poesia baiana. Participou de Poesia Contemporanea Liberdade - Antologia da Literatura Livre Vol. II Edigao BR - Tomo 2. Digitalizado com CamScanner

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