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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Payer, Maria Onice. / Celada, María Teresa. (Orgs.)


Subjetivação e Processos de Identificação. Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas –
inflexões no ensino / Maria Onice Payer / María Teresa Celada (Orgs.
(Orgs.) - Campinas, SP: Pontes Editores, 2015.
Coleção: Linguagem & Sociedade - Programa de pós graduação em Ciências da
Linguagem - Univás

Bibliografia.
ISBN 978-85-7113-
1. Língua e Ensino 2. Linguagem e línguas 3. Linguagem e sociedade
I. Título II. Coleção

Índices para catálogo sistemático:

1. Língua e Ensino - 407


2. Linguagem e línguas - 407
3. Linguagem e sociedade - 370.19

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Capa: Newton Guilherme Carrozza
Revisão: Pontes Editores

Coleção Linguagem e Sociedade - Programa de Pós-Graduação


em Ciências da Linguagem - Univás
Coordenadora da Coleção: Eni Puccinelli Orlandi

A Coleção Linguagem e Sociedade - Programa de Pós-Graduação em Ciências


da Linguagem - Univás responde às condições atuais de uma sociedade do conhecimento
e das suas tecnologias, entre elas as da informação e da linguagem. Ao mesmo tempo,
os estudos da linguagem, ao se colocarem de modo mais abrangente no conjunto das
ciências humanas e das ciências em geral, ganham maior importância na compreensão
da sociedade e da sua relação com as diferentes formas do conhecimento. O interesse
desta coleção está, assim, no fato de que se dedica a publicar obras que refletem sobre a
linguagem tomada nestas relações.

Comitê Científico

Débora Massmann (Univás)


Eni Puccinelli Orlandi (Univás/Unicamp)
Fernando Hartmann (FURG)
Francine Mazière (Paris XIII)
Freda Indursky (UFRGS)
Jean-Jacques Schaller (Paris XIII)
José Horta Nunes (Unicamp)
Luiz Francisco Dias (UFMG)
Marie-Anne Paveau (Paris XIII)
Mónica Zoppi-Fontana (Unicamp)
Pedro de Souza (UFSC)
Romain Descendre (ENS-Lyon)
sumário

apresentação.......................................................................... 7

SOBRE SUJEITOS, LÍNGUA(S), ENSINO NOTAS PARA UMA AGENDA..... 17


María Teresa Celada
Maria Onice Payer

COMPOSIÇÕES MUSICAIS BRASILEIRAS: DISCURSOS SOBRE A LÍNGUA.... 43


Eliana de Almeida
Thalita M. G. Sampaio

Algo fala antes nos discursos de estudantes sobre


língua(s) e tradução.............................................................. 63
Solange Mittmann
Gláucia da Silva Henge
Michele Teixeira Passini
Laís Virginia Alves Medeiros

O QUE SE DIZ AO NEGAR-SE A LER?................................................ 79


Carolina P. Fedatto

SUJEITO/ESPAÇO/LÍNGUA E MEMÓRIA: RELAÇÕES HISTÓRICAS....... 95


Águeda Aparecida da Cruz Borges

A ESCRITA E SUJEITOS-PROFESSORES: RELAÇÕES, CICATRIZES,


ENSINO E IDENTIDADES PROFISSIONAIS......................................... 125
Filomena Elaine P. Assolini

EMERGÊNCIAS SUBJETIVAS NO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM


DE LÍNGUA ESTRANGEIRA............................................................ 147
Juliana Santana Cavallari

A FORMAÇÃO DO ALUNO MONITOR EM


CONTEXTO COLABORATIVO........................................................ 169
Joelma Pereira de Faria
PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO DO PROFESSOR E DO ALUNO COM
O DISCURSO PEDAGÓGICO: REPENSANDO AS PRÁTICAS DE LEITURA
E ESCRITA NA ESCOLA.................................................................. 189
Silvia Regina Nunes
Cleiton de Souza Sales

Língua, memória, imigração: errâncias e travessias


em relatos de Cartas..........................................................................211
Beatriz Maria Eckert-Hoff

Política de línguas no Instituto Machado de Assis:


a formulação e o abandono de um projeto......................... 237
Leandro Rodrigues Alves Diniz

Sobre os Autores..................................................................... 267


Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

apresentação

Compreender os processos de subjetivação vem se mostrando


crucial para entender o modo pelo qual vão se configurando novos
planos discursivos e de relações de forças institucionais, uma vez que
a história, o político e os processos de constituição da subjetividade
se enlaçam inevitavelmente, participando a língua de modo central
nesse enlace.
Este livro investe em compreender modos de constituição
de sujeitos - subjects ou sujets, assinalando esses termos, em algumas
línguas, que o sujeito pode passar pelo lugar de objeto – compreensão
que os Estudos da Linguagem e a específica articulação que a Análise
de Discurso possibilita no campo mais amplo das ciências humanas e
sociais, ao trabalhar o modo como a materialidade da língua, como
discurso, e das línguas, em particular, participa deste processo em
termos de poder constituir e (re)significar sujeitos pela relação ao
simbólico - algo que, visto desse modo, deixa de se dizer na ordem
do “didático” quando se trabalha no plano do ensino. De fato, pro-
duzir conhecimento sobre a relação entre subjetivação e as línguas
na interface com o discursivo nos leva à ordem do significante e da
alteridade, produzindo assim impactos sobre o discurso pedagógico.
Esse ímpeto resulta de um trajeto mais amplo, que se vinculou
à linha de pesquisa Subjetivação e Processos de Identificação do Grupo de
Trabalho em Análise de Discurso (GT em AD) da ANPOLL (Associa-
ção Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguística),
cuja ementa é a seguinte:

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

os trabalhos inscritos nesta linha são os que pesquisam


os processos de subjetivação através da materialidade
linguístico-discursiva, imersos em relações de forças
institucionais e de memória, e em acontecimentos
sócio-históricos e políticos, incluindo-se o campo edu-
cacional. Têm-se em vista compreender os processos
de identificação que se configuram na história e nas
sociedades contemporâneas, seja quanto ao lugar social
e ao estatuto de sujeitos ali constituídos, seja quanto
à inscrição destes no simbólico pela materialidade da
linguagem e por sua relação com a(s)língua(s)1.

Em consonância com a política do GT de fomentar impulsos na


área, com a divulgação prévia de trabalhos inscritos para os encontros
nacionais definiram-se as diversas linhas de pesquisa que o compõem2.
A de Subjetivação e Processos de Identificação foi inicialmente conduzida
pelos colegas Mónica Zoppi-Fontana (Unicamp) e Pedro de Souza
(UFSC), acolhendo pesquisas sobre tais processos em práticas diver-
sas, e desde que as organizadoras do presente livro assumiram a sua
coordenação (2006) essa linha voltou-se com ênfase para pesquisas
sobre a relação entre a subjetivação e as línguas.
Assim essa linha de pesquisa se centrou e se centra em compre-
ender e atender práticas e espaços nos quais o processo de subjetivação
seja focalizado como protagonista principal, a que se enlaçam os
processos de inscrição por parte do sujeito da linguagem nas diversas
línguas (Celada, 2002) e práticas e que acontecem envolvendo dife-
rentes planos e dimensões, e em diferentes contextos. O objetivo é
contribuir para que se inscrevam, nos diversos espaços de produção
e circulação do conhecimento, (re)conhecimentos de como a subjeti-
vação e os processos de identificação vêm inflexionar-se nessa relação
sujeito/língua considerando, como já antecipamos, a alteridade e a
ordem significante.
1 http://anpoll.org.br/gt/analise-do-discurso. Consulta em 25 de março de 2016.
2 As linhas de pesquisa que compõem o GT em AD na ANPOLL são: História das Ideias
Linguísticas; Diferentes Materialidades Significantes na História; Ideologia, Inconsciente e
Cultura; Subjetivação e Processos de Identificação e Práticas Discursivas e Movimentos na
História (idem).

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Nesse sentido, sendo o encontro nacional do GT em AD um


momento em que se investe em considerar e discutir objetos e si-
tuações diferenciadas nas linhas, o conjunto de trabalhos inscritos
no último Enanpoll (2014) apresentou questões de subjetivação e
língua estrangeira e materna, tradução, leitura, escrita e modos de
identificação por parte de sujeitos em práticas do ensino e da pes-
quisa. Uma descrição analítica da situação atual, os seus desafios,
teoricamente pontuados, e uma espécie de agendamento de direções
e investimentos de trabalho na área, feita então pelas coordenadoras
da linha, encontra-se apresentada no primeiro capítulo deste livro,
e os diversos outros trabalhos apresentados no congresso compõem
os demais. Além disso, acrescentaram-se nesta publicação estudos de
colegas pesquisadores do Programa de Pós-graduação em Ciências da
Linguagem da Univas, onde atua uma das organizadoras, e de outros
programas de pós-graduação brasileiros que desenvolvem pesquisas
voltadas a questões similares, o que contribuiu para a composição
do livro com afinidade teórica.
Nos capítulos são portanto apresentadas pesquisas que se voltam
ao estudo de imaginários e pre-construídos que envolvem as práticas
nas quais o sujeito da linguagem vai relacionar-se com outras línguas,
revisitar a própria, transitar entre elas e significar também no seu
entremeio, como se especificará adiante. Esses imaginários haveriam
de ser contornados no encontro simbólico com a densidade de uma
língua, pelo modo como se passa a inscrever-se nela e habitá-la,
como dela se exila e, ainda, como se jogam com seus limiares, em
suas formas, na dinâmica de processos de identificação pelos quais
a língua se deixa conhecer/explorar em outros planos e dimensões.
O movimento interno a esses processos indica uma série de
desdobramentos que supõem a quebra de qualquer linearidade (e
de progressão), e que dão corpo aos constantes deslocamentos de
sentidos no trabalho de inscrição do sujeito ao simbólico. As ques-
tões investidas neste livro, sem se esgotarem nessa questão, tornam
possível entrever tais desdobramentos, com as especificidades com

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

as quais a subjetivação e os processos de identificação acontecem


pelas línguas.
De fato, no contexto contemporâneo, em condições de produ-
ção onde as urgências pragmáticas, tecnologicamente amparadas,
podem não favorecer uma inscrição simbólica mais densa, por parte
do sujeito da linguagem, às línguas, sob o imaginário em vigor da
urgência e da transparência, voltar o foco ao modo como essa inscri-
ção acontece enlaçada à subjetividade pode levar a se compreender
melhor do que se trata quando se põe a mão na massa significante,
sem pretender evitar os deslocamentos de sentido e processos sub-
jetivos que o movimento através das línguas produz. São questões
que interessam no horizonte de uma formação social e econômica
e em que a dinâmica entre elas se intensifica, expondo-se aí sujeitos
que procuram atravessar espaços em busca de outros territórios
encampados por línguas diferentes.
Compreender como a inscrição nas línguas acontece enlaçada
a subjetivação oferece subsídios para sustentar os modos como as
identificações se dão, ao passar por absorções e recusas nesse trabalho
simbólico - alguns dos quais certamente frustram a vontade ilusó-
ria de um domínio imediato de línguas, que se dá por uma espécie
de fascínio de tipo infantil (do in-fans, para lembrar a condição do
desprovido de língua) que a novidade tecnológica provoca, alimen-
tando uma fantasia de controle-remoto desse objeto. Ora, adensar a
compreensão do funcionamento dessa relação na formação cultural e
científica supõe em boa medida considerar a densidade material dos
desdobramentos que ocorrem nesse enlace subjetivo ao simbólico que
uma língua, o seu transpasse e o seu jogo com outras descortinam.
E o que há na rarefação em que se encontra esse sujeito de lin-
guagem? Haveria algo de significante a reconhecer em gestos outros,
como os de recusar a ler; de procurar intervir no que pode uma língua;
de produzir a arte mobilizando várias línguas, simultaneamente
aludindo e dispensando tradução? E em deixar trabalhar produtiva-
mente o equívoco no processo tradutório; em fazer render a relação

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

interessante inicialmente travada com a escrita na escola, em tornar


possível ao sujeito aprendiz, a partir de seu mal-estar mesmo, (re)
visitar a sua relação com o dizer possibilitando diferentes posicio-
namentos e laços sociais? Estas são algumas das questões investidas
pelos autores nos diferentes capítulos, e que passamos a apresentar.
Compreender qual subjetividade se tece na poesia em compo-
sições musicais brasileiras, em que diversas línguas são mobilizadas,
rimando entre si, tecendo relações de sentido e interdiscursivas
de uma a outra, entretanto enlaçadas pela sintaxe de uma delas,
é o que propõem Eliana de Almeida e Thalita M. G. Sampaio, no
segundo capítulo. Nas canções brasileiras que destacam, estudam
o modo como o jogo deslizante entre diferentes línguas - francesa,
portuguesa, inglesa - significa a relação língua/sujeito brasileiro,
em uma materialidade que aponta para uma abertura do simbóli-
co, visto mobilizar a contradição que as faz funcionar como língua
nacional e como língua não nacional, como dizem as autoras, em
que as palavras estrangeiras significam-se, não pela tradução, mas
pela repetição do mesmo fonema, pelo efeito metafórico e pela
incompletude, pois sendo as palavras traduzidas, teríamos o enges-
samento dos sentidos. Assim, é a poesia o que dá à língua o jogo,
a polissemia, a heterogeneidade.
Se a materialidade da tradução é tangenciada nessa relação ar-
tística entre diferentes línguas, ela será diretamente pensada como
objeto do capítulo seguinte, por Solange Mittmann; Gláucia da S.
Henge; Michele T. Passini e Laís V. A. Medeiros, ao trabalharem
sobre como as línguas entram em funcionamento no que designam
como processo tradutório: com a movência e os deslizamentos que
lhe são próprios. E, mais que isso, pensam duas línguas envolvidas,
no funcionamento da mútua relação. Este capítulo terceiro analisa
os discursos sobre tradução a partir de um trabalho com alunos do
curso de Tradução do Bacharelado em Letras (UFRGS). Observam
suas autoras que a movência, longe de constituir um ‘problema’,
deixa emergir o equívoco próprio da língua não como algo estranho

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

ou eventual, mas como o que torna possível interpretar, escrever,


traduzir - o que abre espaço para o sujeito na língua.
No capítulo quarto uma questão forte de negação e leitura é
trabalhada por Carolina P. Fedatto: a do que é que se nega ao negar-se
a ler. Em uma análise da negação como processo linguístico e sub-
jetivo, a autora investe em compreender, em relação à constituição
atual do sujeito leitor, o que se diz ao negar-se a ler. Como, se pergunta
Fedatto, ou melhor, por quais construções simbólicas e discursivas a
negação da leitura é possível em uma sociedade que tanto a cultua; e
que sujeito é esse que se afirma recusando-se a ler? No enlace à análise
do filme La tête en friche (Minhas tardes com Margueritte), de Jean Becker
(2010) o capítulo trabalha a negação em mecanismos discursivos de
resistência às significações hegemônicas da leitura.
Na contraparte da recusa à leitura, outra questão muito cara
aos processos de subjetivação e às línguas envolve a relação com a
escrita. Os dois capítulos seguintes a abordam diretamente. O quinto,
de Águeda A. C. Borges, trabalha processos pelos quais ocorre uma
mutação quanto ao modo de situar-se relativamente ao que pode uma
língua, ao modo como esta situação acontece na relação que sujeitos
xavantes travam em relação à escrita, dimensão em que eles buscam
inscrever sua, em gestos que atravessam novas instituições que entre
eles se instalam e em um processo que toma parte em uma subjetiva-
ção engendrada numa ordem social que é predominantemente urbana
e ocidental, como observa a autora. Este capítulo pontua questões
difíceis e muito ricas para se compreender como as relações vão se
tecendo historicamente entre sujeitos, língua portuguesa e as de
povos originários do continente americano, a partir de resistências
e movimentos em uma história de apagamentos da língua própria
que, entretanto, sustenta-se pela memória e pela história.
Já no capítulo sexto, Filomena Elaine Assolini se detém sobre
o modo como a relação inicialmente tecida com a escrita pode
ecoar em um processo mais amplo na vida profissional, no caso de
sujeitos que trabalham diretamente com práticas ligadas ao universo

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

da escrita. Sua pesquisa dedica-se a compreender as relações que


sujeitos-professores do ensino fundamental estabeleceram com esta,
ao longo de seu processo formal de escolarização, e como essas rela-
ções interferem em seu fazer atual e na constituição de sua identidade
profissional. Indica, assim, como os gestos do trabalho cotidiano com
a escrita podem levar a mudanças nos modos diversos de relação e
envolvimento com ela.
No capítulo sétimo, em face do “impossível de educar”, Julia-
na S. Cavallari aborda, a partir de situações do espaço de aulas de
língua (inglesa), aparentes erros, lapsos e tropeços em formulações
aí proferidas e segue o caminho interpretativo que lhe sugerem ao
funcionar como pistas de que produziram impasses subjetivos e/ou
mal-estar no aprendiz, assumindo-se como docente e como sujeito
de pesquisa. Nesse sentido, a autora propõe, por parte do professor,
uma “escuta singular de impasses e rupturas subjetivos que se dão
no ato educativo”, que possa contribuir a “trazer deslocamentos
produtivos e significativos” para esse ato.
As outras questões envolvendo subjetivação e línguas apresenta-
das pelos autores estão relacionadas, por um lado, à colaboração, ao
modo como ela pode funcionar como parte fundamental na produção
de conhecimentos, dialeticamente concebida, na forma da monitoria,
em disciplinas de línguas estrangeiras e por outro lado, ao fazer co-
letivo, implicando os modos de identificação de sujeitos professores
em relação aos parâmetros oficiais do ensino-aprendizagem, bem
como a assunção da autoria.
A pesquisa sobre a colaboração na monitoria, de Joelma P. Faria,
no capítulo oitavo, focaliza a criação de espaços e processos cola-
borativos, como objeto de novos conhecimentos sobre a relação de
sujeitos no ensino-aprendizagem. Constatando a grande disparidade
e heterogeneidade em relação ao conhecimento presente no espaço
de aulas, sobretudo de língua estrangeira (inglesa), em universidades
e institutos de Ensino Superior, a autora discute os elementos fun-
damentais que possibilitam respaldar o processo de conhecimento,

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

em uma perspectiva dialética, compreendido e apreendido enquanto


construção histórico-social, em que sujeitos aprendizes atuam como
monitores em relação ao outro e ao conhecimento. Esse processo, no
qual a presença do sujeito professor é fundamental, apresentam-se
desafios que a autora designa e aborda.
No capítulo nono, Silvia R. Nunes e Cleiton de S. Sales pro-
blematizam os modos de identificação nas relações entre sujeitos
professores, alunos e o discurso institucional - materializado através
de documentos oficiais que versam sobre o ensino de Língua Portu-
guesa – que se reveste da forma do discurso pedagógico, produzindo
para o sujeito-professor inibições em suas práticas com a língua. A
partir de um trabalho envolvendo a produção de jornal junto aos
sujeito-alunos, os autores apresentam uma reflexão sobre alternativas
de trabalho com a leitura e a escrita ancoradas na noção de autoria.
Os desdobramentos no processo de subjetivação quanto às lín-
guas são abordados ainda por Beatriz M. Hercket-Hoff, no capítulo
décimo, ao observar como se entrelaçam, na língua e pela língua,
o simbólico e o imaginário na constituição da memória e da identi-
dade do sujeito entre-línguas, em contextos de imigração. A autora
analisa marcas linguísticas que dão conta das reconfigurações da
relação sujeito/língua/simbólico ao longo de algumas gerações, em
cartas escritas por imigrantes alemães ao Brasil, no início do século
XIX, aos familiares e amigos que ficaram na Alemanha. O recorte
temporal, no caso (século XIX até a década de 80, no século XX)
é muito produtivo m termos de oferecer pistas a respeito de como
funcionam e se significam as movências dos sujeitos envolvidos nesse
complexo processo.
O jogo entre distintas memórias que organizam um espaço de
enunciação, da língua portuguesa, e seus efeitos nos processos de
identificação dos sujeitos que constituem – e são constituídos por
– esse espaço, é trabalhado por Leandro R. A. Diniz, no capítulo
décimo primeiro. O autor aborda a formulação de políticas para
esta língua em textos relativos ao Instituto Machado de Assis (IMA),

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

instituição proposta no Brasil em 2005 para trabalhar na formulação


e coordenação de políticas quanto à produção e circulação de saberes
metalinguísticos para além das fronteiras brasileiras. Por meio de
seu percurso analítico, o autor argumenta que a proposta de criação
do IMA, bem como o fracasso em sua implementação, se sustentam
em processos discursivos constitutivos do funcionamento da língua
portuguesa, destacando em particular o complexo jogo entre distintas
memórias que organizam esse espaço de enunciação.
Nesse ponto, deixamos o leitor à vontade para realizar suas
trilhas no percurso da leitura.

Campinas/São Paulo, Outono de 2016.

Maria Onice Payer


María Teresa Celada

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

SOBRE SUJEITOS, LÍNGUA(S), ENSINO


NOTAS PARA UMA AGENDA
María Teresa Celada
Universidade de São Paulo (USP)

Maria Onice Payer


Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVAS)

Resumo: Este capítulo reelabora a reflexão apresentada no GT em


Análise do Discurso no Enanpoll de 2014. Considerando aquilo que
no campo dessa teoria tem sido formulado em torno da questão do
ensino, reforça-se a importância de mobilizar a existência de todo
um dispositivo disponível, que permite pensar o universo de práticas
envolvidas por essa questão, para além da ideia de que elas seriam
fruto da aplicação de um arcabouço de técnicas elaboradas à luz da
didática. Pontua-se que as práticas de ensino/aprendizagem fazem
parte das condições de produção de um processo de inscrição por
parte de um sujeito da linguagem numa ordem: a da língua - estrangeira,
nacional - estendendo o conceito de inscrição com relação a qualquer
ordem de funcionamento linguístico, e também de práticas como a
leitura, a escrita, a tradução, a iniciação na um campo conceitual.
Esta “inscrição na ordem” especifica o que se entende como um pro-
cesso de identificações, totalmente enlaçado ao de subjetivação, e a cada
singular subjetividade. Razão pela qual o trabalho com as línguas nos
leva à ordem do significante e da alteridade, o que produz impactos
sobre o discurso pedagógico. Palavras-chave: Subjetivação. Processos
de Identificação. Inscrição. Língua. Ensino.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Neste capítulo reelaboramos a reflexão apresentada no GT em


Análise do Discurso (AD) no Enanpoll de 2014. Considerando aquilo
que no campo dessa teoria tem sido formulado em torno da questão
do ensino, cremos necessário reforçar a importância de mobilizar a
existência de todo um dispositivo disponível, que permite pensar o
universo de práticas envolvidas por essa questão, para além da ideia de
que elas seriam fruto da aplicação de um arcabouço de técnicas elabo-
radas à luz da didática. Já desde o início, na forma como esse campo se
configurou no Brasil, houve preocupação com a questão do ensino1 e,
por isso, podemos falar de um dispositivo teórico e de análise (Orlandi,
1996, 79) capaz de se desterritorializar nas práticas envolvidas nesse
universo, permeando-as. Assim, esse dispositivo passa a constituí-las e
significá-las, ao mobilizar – só para mencionar algumas – concepções
específicas da “relação professor-aluno”, dos modos de se relacionar
com o “objeto a ser ensinado”, da questão da avaliação.
No entanto, a série conceitual formulada no interior desse dispo-
sitivo ainda não ressoou de um modo maciço ou, ao menos, de forma
expressiva, no campo do ensino de língua(s) nem, especificamente, no
da escola brasileira. Este fato nos coloca diante de uma tensão que se
estabelece entre o visível e o invisível, entre o existente e as diversas
modalidades de ausência: isto é, entre o que foi feito e, portanto, está
feito (o visível, o existente) e o que precisa ou pode ser feito (o invi-
sível, o ausente, o irrealizado) – tal como podemos formular a partir
da reflexão realizada por Pêcheux (1990), pensando-a com relação a
esse campo do ensino. Nesse sentido, apostamos na possibilidade de
alimentar a interlocução – no plano da produção de saberes – entre
o espaço da reflexão sobre a língua e a sua consideração em face
do ensino, aí incluindo o da formação de professores de língua(s) e
o universo das práticas. Consideramos que este gesto faz parte do
papel do analista do discurso na contemporaneidade pois, sendo seu
lugar teórico constitutivamente interdisciplinar, dele se espera que
consiga interpretar vieses específicos do funcionamento da memória
1 Lembramos a reflexão realizada na obra de Orlandi (1983) sobre o discurso pedagógico e
sobre a questão da leitura (1988).

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

discursiva que permitam compreender processos sempre complexos


para dar-lhes visibilidade e para orientar práticas, reorganizando as
formas de se trabalhar.
Nesse sentido, cabe relembrar quão necessário foi o reconheci-
mento feito nos anos 80 por Gadet e Pêcheux (2004, p. 37) acerca da
constituição dos Estados em mãos das burguesias nacionais, quando
concluíam que a “questão da língua é, portanto, uma questão de
Estado” e especificavam a modalidade dessa predicação mediante
este circunstancial: “com uma política de invasão, de absorção e de
anulação das diferenças”. Hoje ainda é preciso recuperar essa lúcida
observação para reafirmá-la e, ao mesmo tempo, mostrar a neces-
sidade de trabalhar na direção de ruir a série de sentidos instaurada
e estabilizada pelo processo a que justamente tal reconhecimento
dos autores dá visibilidade, e que continua a atingir não apenas as
línguas nacionais mas todas as outras línguas que habitam os espaços
delimitados como próprios dos referidos Estados.
Um enunciado hoje possível nesse sentido – e aqui volta a
questão da relação entre o existente e o não realizado – materializaria,
mediante uma negação, a forçosa constatação que está em vias de
se fazer, de um modo geral: que a questão da língua já não é mais
apenas uma questão de Estado. Esta negação, que se projeta para
várias interpretações, expressa também um desejo, ao instalar a
possibilidade de que a língua possa ser trabalhada na direção de abrir
para os significantes e não mais permanecer com o foco voltado para a
forma correta/institucionalizada pelas vias desse Estado. Tampouco
para o modo como vem sendo instrumentalizada a partir dos sen-
tidos privilegiados em discursividades vinculadas ao Mercado, cada
vez mais acolhidos nas formas de ensinar, em prol da “eficácia” que
garantiriam em face à urgência ali mesmo instalada pela velocidade
da circulação das línguas e dos indivíduos por entre elas2.

2 Temos que reconhecer que o entrelaçamento entre Estado e Mercado próprio das políticas
neoliberais da atual fase do capitalismo afeta o modo como a língua e as línguas são proje-
tadas. De fato, isto não acontece do mesmo modo como ocorria no momento anterior dos
Estados Nacionais Modernos.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Cabe ainda observar que a questão do ensino de língua(s) e de


sua relação com saberes formulados no interior do campo da AD,
objeto central desta reflexão, adquire contorno especial quando
pensamos no território da América Latina, designação que delimita
o espaço de enunciação (Guimarães, 2002), recortando a específica
“relação de línguas” que, num contexto mais imediato, faz parte de
nossas condições de produção. Essa relação está marcada – tal como
podemos observar a partir da definição deste autor (Guimaraes,
s/d)3– pelo fato de haver línguas nacionais que funcionam como ofi-
ciais nos diversos Estados e isto já implica, pelos jogos de inclusão e
exclusão de que elas são objeto, uma determinada organização entre
as mesmas4. Ainda mais quando esta se forja num forte vínculo com
a memória de colonização que de vários modos atravessa o espaço
latino-americano. Essa “organização” (de relações desiguais produ-
zidas pela contradição, sempre histórica) deixa marcas no interior
do corpo dos simbólicos e traça diversas partições: as envolvidas nas
especificações de língua nacional, línguas maternas, familiares, de
imigração, de fronteira, dentre outras. Certamente, o fato de que o
espaço que delimitamos como América Latina constitua o contexto
mais imediato de nossa reflexão não impede que a compreensão de
algo que se passa nessas situações possa ser estendido a sujeitos de
linguagem em outros espaços.
Nesse sentido, parece-nos fundamental passar a registrar neste
texto, com relação ao entrelaçamento da produção de conhecimento
e o ensino, mesmo sem esgotá-los, alguns itens para uma agenda, no
sentido forte do planejamento e do programático que se colocam as
disciplinas, as forças institucionais, as políticas públicas5. Ao mesmo
3 Referimo-nos aqui à definição registrada num verbete cuja formulação já é instigante no
espaço de uma enciclopédia: “relações de línguas”, de autoria de Eduardo Guimarães (s/d),
na “Enciclopédia das Línguas do Brasil”.
4 Basta pensar nos custos da implantação e/ou imposição de qualquer língua nacional.
5 Cabe deixar registro de que uma forte reflexão ao redor das questões aqui abordadas foi
feita nas disciplinas oferecidas em conjunto pelas autoras deste texto no Programa de Pós-
Graduação em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana (FFLCH/
USP): “Sujeito na(s) língua(s) e memória. Relações com o Estado/Nação e o Mercado”, em
2006, e “O sujeito da linguagem – Processos de identificação em práticas discursivas”, em
2010. Também cabe mencionar uma das experiências nas quais foram postos em relação
trabalhos de pesquisa, de ensino e de extensão, neste período: a produção de vídeo-con-

20
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

tempo, mobilizaremos os saberes que fazem parte do referido dispo-


sitivo teórico, que irão prefigurando a necessidade de, justamente,
agendar.
Começamos, então, por um princípio: pela explicitação de
certos percursos que irão puxando uma rede conceitual maior.

1. Processos de inscrição na ordem da língua

Partimos de uma retomada do agenciamento teórico realiza-


do nos anos 90 por Serrani-Infante (1997, 1998) a partir da Análise
de Discurso, no campo da reflexão sobre o que, regularmente, se
designa como “aquisição de línguas estrangeiras” e/ou como proces-
sos de ensino/aprendizagem dessas línguas. Retomando definições
formuladas pela autora, Celada (2013) as expande para pontuar que
as práticas de ensino/aprendizagem fazem parte das condições de
produção de um processo que compreende como de inscrição por
parte de um sujeito da linguagem numa ordem: a da língua estrangeira, a
da língua nacional, pois considera que é possível estender o conceito
de inscrição com relação a qualquer ordem de funcionamento lin-
guístico6. E acrescentaríamos, também a modo de ilustração do que
estamos querendo contemplar, que é possível pensar na inscrição na
ordem de diversas práticas, de leitura e escrita no campo acadêmico,
ou – dentre outros possíveis exemplos – na iniciação num campo
teórico-conceitual determinado.

ferências produzidas no contexto do “Ciclo Permanente de Videoconferências da área de


Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana” (FFLCH/USP) <http://
dlm.fflch.usp.br/espanhol/implantacao-do-espanhol>, em parceria com a Coordenadoria de
Gestão da Educação Básica (CGEB), antiga CENP da Secretaria de Educação do Estado
de São Paulo. Nelas, foram abordadas as seguintes temáticas “Relaciones entre lenguas en
el mundo contemporáneo, evaluación y certificaciones” e “Las relaciones entre lenguas en
la escuela”. Por fim, vale mencionar que algumas das pesquisas realizadas em relação a
essas mesmas questões se nuclearam em torno do Grupo de Pesquisa do Diretório do CNPq
“Práticas de linguagem, memória e processos de subjetivação”, liderado por Maria Onice
Payer (Univás).
6 A observação se torna especialmente produtiva quando consideramos a diversidade de sujeitos
(e de línguas) que compõe uma população de falantes como os que habitam o espaço de
enunciação brasileiro: sujeitos índios, de imigração, das fronteiras nacionais, dentre outros.

21
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Essa formulação – “inscrição na ordem” – especifica o que en-


tendemos como um processo de identificações, totalmente enlaçado ao
de subjetivação (CELADA, 2013) e a cada singular subjetividade.
E no sentido de não essencializar este último termo, trazemos as
instigantes observações que Orlandi (2001, p. 99-108) formula ao
redor dele.
Pensando nas práticas que desenvolvemos no âmbito do ensino
de língua(s), consideramos produtivo observar que, pelo trabalho
com o sentido e com o significante, é possível atingir ou afetar o
campo de uma subjetividade, concebida como uma malha de saberes-
sentidos-afetos. E, justamente, a partir das formulações da autora
(ibid.), diríamos que a subjetividade diz respeito à qualificação do su-
jeito pela sua relação constitutiva com o simbólico. O termo “qualificação”
aqui nos parece crucial e nele queremos nos deter, pois nos leva a
pensar em atributos ou em qualidades que se referem à preparação
e à disponibilidade de um sujeito para, por exemplo: a) ocupar
determinadas posições no simbólico (e, inclusive, para deslocar a
partir delas); b) se submeter às inversões que lhe impõe uma língua
quando o “vira de ponta cabeça”; c) realizar – tocado pelo estranha-
mento (Payer, 2005, p. 64), mediante o qual se expressa ou apresenta
aquilo que é da ordem da alteridade e dentro de um processo que,
necessariamente, ressignifica – certos investimentos subjetivos com
poder de desencadear a série de deslocamentos que a ordem de uma
língua (seu funcionamento) solicita.
Ao estabelecer tais relações, consideramos importante trabalhar
com sentidos de “subjetividade” a fim de manter flexível a visuali-
zação dos contornos do modo como esta pode se manifestar, dando
destaque para o viés que interessa ao ensino de língua(s). De fato, por
tudo o que acabamos de dizer, cremos que mediante este trabalho –
com a língua ou com as diferentes línguas – exploramos a relação do
sujeito com o simbólico: promovendo especificações e minuciosos
detalhamentos, cuja compreensão possibilita uma expansão que o
impulsa no trabalho significante pelo qual os sujeitos se inscrevem (e

22
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

se “incluem”) em mais e diversos espaços e práticas da linguagem7.


Realizar esse reconhecimento implica fazer um outro, pelo qual
frisamos que as práticas de ensino se subordinam a esse processo de
inscrição, que se enlaça ao nodal, de subjetivação, sendo este neces-
sário – no sentido de inevitável – pois acontece para além de que
possamos reconhecê-lo ou não (CELADA, 2013). O trabalho com
língua(s) implica lidar com o significante e com a relação – sempre
tensa – entre identidade e alteridade8 que se manifesta sobretudo na coti-
diana cena de ensino mediante uma mais ou menos expressiva presença de fatos
de linguagem que, de modo regular, são projetados como “erros” ou “deslizes”
e reduzidos a tal (cf. Celada, 2002). Estes equivalem a marcas deixadas no
trajeto do sujeito de linguagem no entremeio das línguas, na procura de
inscrição na ordem de novas práticas ou dimensões de “sua” língua
ou na de uma língua outra. E essas marcas, por sua vez, materializam
constantes movimentos de identificação (e de não identificação), os
quais, num emaranhado, acontecem numa cena invisível, simultânea
e também necessária: a que ocorre nos bastidores do teatro da cons-
ciência, na relação língua(gem)/sujeito.
Ao reconhecer que esse é o ponto inevitável sobre o qual
recai o que fazemos nas práticas de ensino-aprendizagem de línguas
é como se estivéssemos, sujeitos docentes e aprendizes, num cená-
rio: o das práticas de ensino, de leitura, de escrita, de tradução no
qual sempre estaríamos dando sustento a algo do que acontece nos
bastidores. E esse algo diz respeito à qualificação de um sujeito em
sua relação constitutiva com um simbólico, relação esta que fazemos
questão de reconhecer como a matéria (a massa) de nosso trabalho.
7 Acrescentamos mais exemplos aos trazidos anteriormente para que se compreenda melhor
nossa visão: pensamos numa língua chamada “estrangeira” (seja vinculada a uma memória
de imigração ou como objeto de estudo, para, por exemplo, ler textos acadêmicos) e, também,
em práticas de alfabetização e, inclusive, na inscrição por parte de sujeitos da linguagem em
campos disciplinares específicos.
8 Com base nas reflexões de Kristeva (1994) a partir do conceito freudiano de Unheimlich,
como sujeitos da linguagem, é preciso nos darmos ao trabalho de nos reconhecer como
estrangeiros a nós mesmos, na falta de coincidência constitutiva e permanente “conosco”,
sendo capazes assim de nos deparar com as fronteiras com o outro que atravessam a malha
de nossa subjetividade. Nesse sentido, a autora afirma: “O estranho está em mim, portanto,
somos todos estrangeiros.” E acrescenta: “Se sou estrangeiro, não existem estrangeiros.
Assim, Freud não fala deles” (ibid. pp. 201-202).

23
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

2. Em transferência – no ensino de língua

Neste contexto, torna-se importante considerar, com base em


reflexões de Celada (2010 e 2011), que o professor pode ser pensado
como alguém capaz de ocupar uma posição a partir da qual ele, por sua
vez, suponha a capacidade a seu aluno, como sujeito da linguagem, de vir
a ser sujeito dessa língua. A partir de Kupfer (1982), a autora concebe
o ideal do eu e o supereu como duas funções que atravessam o campo
de uma subjetividade: a primeira “tem a ver com a projeção e com
o movimento que impulsa a inscrição de um sujeito” nas diferentes
ordens do funcionamento desse simbólico: na escrita, na leitura, na
produção de práticas orais, entre outras (CELADA, 2011, p. 461).
A segunda, o supereu, “se relaciona com o gesto de submissão a uma
memória discursiva, com a imposição de limites: com a marcação
do que é dizível”, isto é, com a marcação de como deve ser dito, e
também, do que pode ser dito nesse outro simbólico ou nessa prática
específica da língua que envolve aos sujeitos.
Cabe frisar que os gestos esboçados por ambas as funções vão
ou, ao menos, deveriam ir na direção de propiciar que o sujeito ex-
plore sua relação singular com a língua, com os significantes desse
simbólico. Segundo Celada (ibid.), em “sua versão mais extrema, a
segunda função pode ficar restrita à marcação do correto e à pura
punição do ‘erro’, e a violentar o sujeito da aprendizagem ao expô-lo
ao estudo de uma língua reduzida à dominância” de explicações dadas
sob uma perspectiva gramatical, apenas como estrutura. E este ponto
ilustra o que afirmaremos mais adiante: que é preciso que o ensino se
subordine à ordem, ao funcionamento da língua, e não à organização
que fazemos operar como representação desse funcionamento.
Mediante a introdução dessa série conceitual, compreende-se
que os sujeitos envolvidos nesse processo ficam dessubstancializados:
por isso, eles “não apenas interagem, mas se fisgam, se interpelam,
se impulsam” num embate que caracterizamos como uma relação
transferencial (CELADA, ibid., p. 462) no ensino de língua. E esse

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

processo, por efeito dessa compreensão, aconteceria ao redor de


uma língua ou de uma dimensão dela, também desessencializada e,
portanto, não una. O próprio sentido do significante “inscrição”,
aqui mobilizado, não leva à ideia de totalidade, e sim à de estruturas
possíveis e necessárias – estruturas que, aliás, é preciso, como diria
Orlandi (1998), que aconteçam no sujeito.

3. A língua que não é una

Quando falamos da necessidade de manter gestos que contribu-


am para desessencializar aquilo que chamamos “línguas”, remetemos
ao reconhecimento que realiza Milner (1989):

Se nos presenta un conjunto de realidades a las que


llamamos lenguas. En verdad muy poco dudamos en
atribuirles ese nombre – a todas y a ninguna –, como
si dispusiésemos siempre de una regla que nos permi-
tiera, dada una realidad, determinar si esta permanece
o no al conjunto (1989, p. 17).

Esse reconhecimento se vinculará aqui à formulação de dis-


tinções e conceitos relevantes para a área de ensino. Nesse sentido,
começaremos pelas observações explicitadas por Payer quando a
pesquisadora passa a compreender “língua materna” e língua nacional
como dimensões diferentes da linguagem na ordem da memória (2006, p.
128; 2007, p. 119). Essa distinção contribui para interromper rela-
ções de continuidade que se naturalizaram e que hoje se pressupõem.
A autora (ibid.) considera que a língua nacional e a materna não
coincidem por se tratar de línguas materialmente diferentes, além
de apresentarem funcionamentos distintos9: pensando no Brasil e no
9 Para especificar como essas duas dimensões não coincidem, Payer (2007, p. 119) considera
pertinente distinguir em cada situação: 1) quais são as línguas – e/ou as materialidades
linguísticas – presentes em dadas condições de produção, por exemplo a língua xavante e a
língua portuguesa, no Mato Grosso; as línguas alemã, italiana e portuguesa em estados do Sul
do Brasil; e/ou as materialidades linguísticas presentes onde não haja propriamente diferentes
sistemas linguísticos, mas mesclas: de xavante e português, ou de vêneto e português. Por

25
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

âmbito da educação formal e informal, por exemplo, essa afirmação


pode operar claramente para o caso das línguas indígenas, o das de
imigração e, inclusive, para o das línguas de mistura (nas fronteiras
ou em outros espaços no qual as relações de línguas se materializam
desse modo); a questão é que ela dá visibilidade ao fato de que o
funcionamento de tal relação, no caso do português no Brasil, se
constitui na des/continuidade (observe-se o valor da barra). Deste
modo, o reconhecimento dessa diferença se torna indispensável para
restituir a cada uma dessas dimensões suas especificidades, interrom-
pendo o que tende a ser pensado como uma simples passagem, tal
como fica registrado na vacilação pelas quais passam as designações
das disciplinas escolares – “língua materna”, “idioma nacional”, dentre
as principais. E, também, nos permite visualizar com mais clareza
a especificidade das materialidades linguísticas de diversas práticas
discursivas.
Vemos que o reconhecimento torna-se significativo, no espaço
brasileiro, no campo do ensino de língua portuguesa, no que diz
respeito à reflexão específica sobre a inscrição por parte de um su-
jeito em práticas de escrita, de leitura, em processos de ensino e em
ambiente escolar. Permite compreender, então, a violência simbólica
embutida historicamente nos modos de ensinar português na escola a
brasileiros cujas línguas familiares não se espelham necessariamente
nas formas “da nacional”, inflexionada nas práticas escolares e nos
vários instrumentos linguísticos (AUROUX, 1992) vinculados a
elas. E também a violência que se fez presente no caso dos índios
e de determinadas imigrações: todos sujeitos objeto de uma forte
outro lado, importa levar em conta também 2) qual é o funcionamento discursivo que se
produz na enunciação dessas línguas e/ou materialidades: que efeito de sentido se produz
ao enunciá-las em diferentes situações como, por exemplo, um índio diante da câmera de
um turista estrangeiro, um agricultor imigrante na interlocução com um comerciante numa
mercearia no interior, ou a escrita em um cartaz da Oktoberfest. O funcionamento discursivo
das línguas materna e nacional vincula-se à ideologia e à história, ao modo como cada uma
delas é interpretada – e por quem –, o que passa por qualificações que são historicamente
atribuídas: como “língua de imigrante”, “indígena”, de cultura, nacional, entre outras.
Além desses dois aspectos, para compreender essa diferença, a autora lembra que língua
materna e língua nacional se constituem, ainda, como noções teóricas distintas, trabalhadas
em campos disciplinares diversos que guardam suas especificidades e cuja relação demanda
cuidadoso trabalho de elaboração (PAYER, ibid.; PAYER e CELADA, 2011, p. 77).

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

interpelação, mediante um processo discursivo (histórico-simbólico)


para tornar-se brasileiros (PAYER, 2006, 2000).
Além desses efeitos na reflexão10, a formulação de Payer (2007)
também traz luz sobre aspectos daquela desenvolvida no campo dos
processos de inscrição em língua estrangeira. Vejamos como, reto-
mando aqui uma produtiva formulação de Revuz

[...] se o encontro com a língua estrangeira provoca


efeitos – com os quais o sujeito é o primeiro a sur-
preender-se – é que ela não é pura reprodução, nem pura
descoberta de um alhures, mas jogo complexo de similitudes
e afastamentos no qual a relação com a língua materna
acha-se precisamente reposta em jogo (apud Castro, 2000,
p. 256) (destaques nossos)11.

Concordamos com a fina formulação de Revuz, sempre res-


salvando que “língua materna” deve ser compreendida aqui como
fenômeno que é preciso respeitar em sua complexidade, sem ser
reduzida a uma língua. E, por isso, pensamos pertinente observar
que nesse jogo a que, justamente, se designa como “materna” aparece
numa intrincada trama, irremediavelmente enlaçada à materialidade
da dimensão da língua nacional (cf. PAYER e CELADA, 2011). Além
disso, nesse tecido se cruzam fios das várias línguas que habitam o
sujeito e essa composição ilustra o fato de que elas o constituem,
por isso, no emaranhado de formas que ele produz num processo de
aprendizado de uma língua estrangeira, aparecem marcas de outras
línguas com as quais se vincula ou vinculou, e que habitam sua relação
com a linguagem.
A série de considerações tecidas nesta seção nos leva a afirmar
que nas práticas de ensino de língua(s), no trabalho com a escrita, a
leitura, a tradução, etc. é preciso reconhecer a condição de um sujei-
10 Todos eles passíveis de transferência à reflexão sobre o funcionamento de outras línguas.
11 O trabalho de Revuz citado por M. Fausta C. Pereira de Castro, de 1987, leva o título de
“Apprentisage d´une langue etrangère et relation a la langue maternelle.”. Memorial apre-
sentado na Université Paris VII. D.E.S.S. de Psychologie Clinique (tradução de Pereira de
Castro).

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

to no entremeio (CELADA, 2002). E este é um dos modos mediante


os quais opera o reconhecimento que fizemos no início deste item,
trazendo a citação de Milner (1987), que nos leva a compreender
melhor os processos nos quais habitualmente projetamos uma língua
de partida e uma língua alvo, imaginariamente, como se entre elas
houvesse uma linearidade. Na verdade, nesses processos damos de
encontro com fatos de linguagem que resultam da específica relação
que esse sujeito, objeto do entremeio, vai travando ao se esbarrar com
o real da língua, ao se ar(riscar) na língua do outro.
O conceito de entremeio foi desterritorializado por Celada
(2002, p. 172) a partir da formulação de Orlandi (1996, p. 23-25),
quando esta autora se utiliza dele para definir a postura epistemo-
lógica da Análise do Discurso como uma disciplina que se faz no
“entremeio”. A essa figura Orlandi associa uma constelação de outros
conceitos: contradição, continuidade/descontinuidade, dispersão,
a relação de oposição a respeito da ideia de “intervalo”, e inclusive
“desterritorialização”12. Celada (ibid.) o pensou de modo específico
para abordar a relação à qual um brasileiro que aprende espanhol
está sujeito, considerando especialmente a relação entre as línguas
mais diretamente envolvidas (português e espanhol) e a proporção
de memória que cada uma delas, em seu funcionamento, guarda da
outra. Porém, neste momento, consideramos produtivo estender
esse conceito para designar a relação à qual um sujeito entre-línguas
fica exposto em processos de ensino-aprendizado, de modo geral13.
Para além de todos os gestos didáticos que operam no sentido de dar
ênfase à figura do intervalo (garantindo a separação) entre elas, no real
e para além das projeções imaginárias carregadas de boas intenções,
o sujeito da linguagem fica sujeito à dispersão, à contradição, à (des)
continuidade – algo que afeta diretamente a imagem de língua una.
12 Na Aula Magna pronunciada em 24 de abril de 2002, por ocasião das festividades pelos 25
anos do IEL/Unicamp, a pesquisadora ampliou a série conceitual mobilizada em seu livro
de 1996.
13 O termo “entre-línguas” é mobilizado por vários autores no campo da AD, Eckert-Hoff o
mobiliza para pensar o caso dos imigrantes alemães no Brasil, inclusive no capítulo de sua
autoria, incluído neste livro. Aiub (2014) aborda em sua pesquisa aspectos relativos ao sujeito
entre línguas materna e estrangeira.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Os reconhecimentos que a presente reflexão possibilita con-


tribuem para que não insistamos em pensar somente em termos
de línguas separadas, delimitadas por fronteiras claras, e para que
acolhamos todos os benefícios que isto traz ao plano das práticas
do ensino. E, ainda, permitem que consideremos que a inscrição
de um sujeito numa ordem linguística implica no reconhecimento
de que, no entremeio, mediante tomadas de posição e gestos que
configuram um singular agenciamento de sua enunciação, ele se in-
clui (ou dá continuidade a sua inclusão) no simbólico, “se dizendo”
mediante modos que podem ir na contramão de qualquer projeção
de homogeneidade (CELADA, 2002, p. 257).
Por isso, o conceito de entremeio, que poderia parecer que atin-
ge somente o caso do aprendizado de línguas estrangeiras, é passível
de ser estendido a outros, sendo que essa relação14 acontece tanto no
interior de “uma” língua, nas materialidades que habitam suas diversas
práticas, heterogêneas, quanto entre línguas consideradas diferentes.
Assim, desta perspectiva, o tradutor e o professor de línguas traba-
lham no entremeio; um aluno de primeiros anos na escola está no
entremeio, elaborando formas a partir de uma relação entre oral e
escrito, por exemplo; um orientador de um aluno de pós-graduação
que está em processo de inscrição em práticas acadêmicas, em cuja
escrita se materializará de modo específico o agenciamento que fará
da leitura (CELADA, 2016), lida com o entremeio; o (i)migrante
num determinado país está no entremeio, enunciando numa língua
que está atravessada por outra; um professor de escola no Estado
de São Paulo também, quando pensamos que não apenas trabalha
com dimensões da oralidade e escrita mas que, com frequência, lida
com a(s) língua(s), a maioria das vezes silenciada(s), de um filho de
bolivianos, ou com o crioulo dos haitianos refugiados, para trazer
exemplos muito atuais.

14 Com o termo entremeio estamos especificando uma relação: a de um sujeito que, por estas
entre-línguas, fica à mercê do roçar entre o que é possível numa e impossível na outra(s).

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

4. Sobre a instauração de certas séries de sentido no ensino

Os sentidos trazidos pela série conceitual que vamos alinhavando


não são regulares, no que se refere a qualquer uma das dimensões
de memória das línguas (nacional, estrangeira, etc.), no campo da
reflexão sobre ensino.Também é preciso dizer que esses sentidos não
são regulares no campo da formação de professores de Letras nem
no das práticas de ensino de língua(s), tanto no que se refere à edu-
cação formal como a não formal e, por isso, tampouco nas práticas
desenvolvidas em espaço escolar.
Isto tem a ver com o fato de que nem toda reflexão e, inclusive,
nem todos os lugares teóricos possibilitam que os sujeitos do discurso
se separem ou desprendam abruptamente de uma série de sentidos
altamente regularizada ao longo dos processos de formação dos Estados
nacionais que no espaço de enunciação que focalizamos estiveram (e
estão ainda) vinculados aos de (des)colonização; nem, também, das
identificações com sentidos altamente presentes em discursividades
vinculadas ao Mercado: especialmente para o caso da língua estrangeira,
prevalece o imaginário de um “sujeito pragmático”, que precisa falar
e falar – “tagarelar”, como poderíamos dizer a partir das observações
de Payer (2005) sobre as relações entre Mercado, Estado e as línguas
através da mídia. Neste último caso, o da língua estrangeira, cabe acres-
centar que ainda prevalecem saberes filiados a métodos e abordagens,
em especial as comunicacionais, que não favorecem o desligamento
em relação a sentidos tão produtivos para o Mercado.
Essas identificações com sentidos privilegiados por um modo de
ensinar a língua vinculados ao Estado e seu processo de gramatização
da língua nacional ou ao Mercado – sentidos esses que não aparecem
em compartimentos estanques mas que se buscam em claras alianças
no funcionamento dos Estados Nacionais em meio ao avanço neo-
liberal dos últimos 25 anos – produzem determinados efeitos. O
principal é que se acredita pouco na força da sintaxe e das formas de
dizer, além dos significantes a que, no real, uma e cada língua “quer

30
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

que” um sujeito se submeta. Na base desse funcionamento parece


funcionar um pré-construído segundo o qual se desconsidera a po-
tencialidade que esta guarda de ressignificar um sujeito, justamente
por alojar a capacidade do não uno, do equívoco, da possibilidade
de o sentido ser outro.
No terreno do ensino, pensamos que ainda prevalece uma “série
de sentidos” (ACHARD, 1999)15 – que, segundo Pêcheux (1999),
funcionam na base de memória – e que atravessa as práticas escolares
e, portanto, também a malha de uma subjetividade que aí se associa.
Tal série opera comandada pela equivalência que reduz a língua a
estrutura, por efeito de ela ser objetivada como um “sistema” sujeito
a classificação e a organização. Sabendo que a estrutura da língua é
sempre significativa, devemos reconhecer que quando chega “seca”,
enrijecida, desprovida da historicidade, pode não “fazer sentido”.
Muito mais porque se pensa nela como parte de um sistema, este
submetido a variação e a uma diversidade que se apresenta higienica-
mente “administrada”: de fato, aparece mais como objeto de “citação”
(colocada em relação de sinonímia quando se trata de léxico) do que
mobilizada no interior de contextos significativos e vinculada ao
falante identificado com essas formas de dizer. Assim, estas chegam
desprovidas do sentido da alteridade que carregam, fato que, com
frequência, propicia sua exclusão ou que contribui para reforçar a
“diferença” que não pode ser absorvida16.
A série de sentidos que acabamos de antecipar que hoje
ainda está instalada no ensino poderia ser representada mediante a
seguinte metonímia:

língua – estrutura – sistema – variação – organização

15 Estamos levando em conta as formulações de Achard e de Pêcheux (1999), tão importantes


para compreender o funcionamento da memória discursiva. Nesta mesma linha, Celada
(2015) já abordou as séries de sentidos que aqui estão sendo retomadas.
16 Nesse sentido, ainda é altamente expressiva a observação que Gadet e Pêcheux fazem no
capítulo “A formação das línguas nacionais”: “A alteridade constitui na sociedade burguesa
um estado de natureza quase biológica, a ser transformada politicamente”, mediante a “forma
sociologista de uma absorção negociada da diversidade” (2004, 37-38) (grifos nossos).

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Quando falamos em “organização”, estamos retomando o con-


ceito formulado por Orlandi (1996), que o concebe no jogo de opo-
sições com o de “ordem”. Assim, a metonímia que entra em relação
com esse termo é: “ordenamento imposto – classificação – regra –
sistematicidade” versus “forma material – funcionamento – real da
língua / real da história – falha” (ibid., p. 45 e 47).
O desafio que se encontra em face do ensino é portanto fazer
“ruir” essa metonímia altamente cristalizada, o que implica um
trabalho sobre/com a memória discursiva, no sentido de afetar seu
funcionamento, mobilizando práticas que entrem em outras e certas
filiações. Trata-se, ao nosso ver, de que outra série de sentidos entre
no jogo e comece a ruir a anterior (ACHARD, 1999; PÊCHEUX,
1999;) para, gradativamente, ir “acontecendo” e se instaurando na
memória. Poderíamos formular uma representação desta última
mediante esta outra metonímia:

língua – discurso – forma material – heterogeneidade – ordem/organização

Quando fazemos o deslizamento de língua - estrutura - sistema


(da primeira série de sentidos posta acima) para língua - discurso -
forma material, estamos pensando na reflexão elucidativa de Orlandi,
quando observa:

Se a noção de estrutura nos permite transpor o limiar


do conteudismo, ela não nos basta, pois nos faz esta-
cionar na idéia de organização, de arranjo, de combi-
natória. É preciso uma outra noção. Esta noção, a de
materialidade, nos leva às fronteiras da língua e nos faz
chegar à consideração da ordem simbólica, incluindo
nela a história e a ideologia (1996, p. 46).

E acrescenta:

Foi, sem dúvida, a crítica feita ao conteudismo – en-


quanto perspectiva teórica (filosófica) que mantinha,

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

apesar do estruturalismo (ou justamente por ele), a


separação estanque entre forma/conteúdo – que nos
abriu a possibilidade de [...] pensar não a oposição
entre forma e conteúdo, mas trabalhar com a noção
de forma material, que se distingue da forma abstrata e
considera, ao mesmo tempo, forma e conteúdo enquanto
materialidade (ibid., p. 46-47) (grifos nossos).

Ao exemplificar, a autora observa: “tem-se a forma empírica


(‘pata’, ‘bata’), a forma abstrata (p/b) e a forma material” (ibid., p.
49), isto é, a linguístico-histórica ou discursiva.
Estas observações nos levam a pensar a língua sempre em sua
heterogeneidade e na dimensão da ordem, do funcionamento da
língua na história, pois pensamos que é preciso compreender a rela-
ção entre essas duas ordens, como a autora afirma (ibid.). Orlandi
formula esta observação ao especificar uma marca do trabalho do
analista do discurso e nós a trazemos aqui para pensar o trabalho de
um professor de língua(s).
Por fim, é preciso dizer que, ao traçar essa relação que, ao final
da apresentação da série, representamos mediante uma barra (ordem/
organização), queremos – tal como vimos insistindo em outros textos
(CELADA, 2011, por exemplo), que esta relação justamente marque
de modo geral a necessária subordinação da organização à ordem – e
não o contrário – no trabalho ou no funcionamento do ensino.

5. Especificações sobre processos de identificação e


língua(s)

Serrani (1997, 1998), dentro da transferência conceitual a que


já fizemos referência, trouxe para o campo da reflexão sobre ensino
de línguas os conceitos lacanianos de identificação imaginária e sim-
bólica. Com base nas formulações elaboradas pela autora, podemos
dizer que a primeira pode funcionar como uma idealização, ou como
um estereótipo que não necessariamente propicia a identificação

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

simbólica: por exemplo, o fato de que um estudante brasileiro diga


que o espanhol é uma “língua correta” (CELADA, 2002) pode levá-
lo a uma transposição de formas do português da escola (como uma
língua da escrita que nunca “atingiu”) e que não condizem com formas
possíveis no funcionamento da língua espanhola. Trazemos alguns
exemplos de fatos de linguagem, que interpretamos discursivamente.
Temos um exemplo muito produtivo quando, no plano da lín-
gua materna/nacional, observamos a redação de vestibular analisada
por Côrrea (1997) como parte de seu corpus de estudo. Trata-se
de um texto dissertativo sobre “a violência” que se encerra com o
seguinte enunciado: “Portanto sempre a existirá, pois para contê-la
necessitamos dela”. Nele destacamos as marcas que deixa um sujeito
no entremeio entre a materialidade da oralidade e a de uma escrita,
projetada como inatingível por efeito de um processo de escola-
rização. O roçar entre o possível e o impossível do fragmento “a
existirá” indica as proporções desmesuradas de um imaginário que
nessa forma, justamente, se materializa.
Retomando agora o caso do aprendiz brasileiro de espanhol,
com frequência e dependendo das condições de produção mais
imediatas, observamos que pode chegar a projetar essa língua como
“difícil” e “correta” – depois de ter antecipado que ela seria fácil – e,
justamente, lança mão de formas muito próximas das mobilizadas
pelo autor dessa redação de vestibular. Diante da pergunta, “¿Me
presentas a tu compañera?”, um aluno pode dizer: “Presento-lo”, ao
invés de “Te la presento”, que seria uma forma possível junto com:
“Esta es fulana.”, dentre outras (CELADA, 2002, p. 244). A forma
que destacamos, e que reconhecemos como filiada a uma memória de
escrita em português, funciona nesse sentido: o de materializar um
gesto para dar conta de um imaginário de língua inatingível, a mercê
de sentidos instaurados em cenas da escrita escolar, que ressoam na
relação que passa a travar com a língua espanhola.
Mediante a mobilização desses casos compreende-se que o
imaginário tem sua eficácia e se materializa em fatos de linguagem

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

que, inclusive podem ser analisados e interpretados como fatos dis-


cursivos (Payer e Celada, 2011), à luz da consideração das condições
de produção e que nem sempre, mesmo que expressos mediante
comentários marcados por sentidos positivos, eufóricos (“adoro essa
língua”, “aprendendo x língua, vou recuperar a memória de meu
avô”), propiciarão a identificação simbólica, podendo levar a uma
não identificação. Esse tipo de análise inclusive fornece dados para
trabalhar no sentido, como diria Orlandi (1998, p. 209), de atravessar
o imaginário, “para que o sujeito trabalhe o acontecimento da língua
nele e não a língua como instrumento”17.
A identificação simbólica se dá quando há inscrição de um sujeito
da linguagem – pensado como sujeito do entremeio – numa ordem,
num funcionamento, seja – tal como vimos fazendo questão de desta-
car – de uma língua estrangeira, seja de determinadas práticas dentro
de “uma” língua específica. O efeito, na identificação simbólica, é que
o falante se enuncia como sujeito da língua, conseguindo (se) dizer,
o que nos leva a observar que poderá ser reconhecido por interlo-
cutores de uma outra língua como estrangeiro ou como “nativo”,
ou como autor de uma dissertação de mestrado dentro de práticas
acadêmicas num determinado campo do saber. Nesse caminho, que
implica que esse falante se submeta à ordem ou ao funcionamento da lín-
gua para desta ser sujeito, inclusive, será objeto de deslizes, de atos
falhos, e do equívoco. Observe-se que não estamos falando apenas
de “correção” ou de algo necessariamente “normativo”, embora esta
dimensão, dependendo da esfera discursiva que estiver em jogo, em
muitos casos seja fundamental.
Às margens do emaranhado de fatos de linguagem que aparecem
nos processos de ensino, podemos dizer que ficam outros, indícios
passíveis de serem analisados na materialidade discursiva, e que se
apresentam em diversos modos de funcionamento, como observa
Payer (2013 e 2014); sendo alguns deles: a) procedimentos meta-
17 Orlandi (1998, p. 207) diz, justamente, que a identidade linguística escolar pode ser caracte-
rizada em várias instâncias todas elas do nível do imaginário: não dizer “brusa” mas “blusa”,
por exemplo.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

discursivos em relação às formas, isto é, comentários e mecanismos


meta-enunciativos voltados à língua18; b) modos não-formulados pro-
priamente, mas que se materializam na linguagem, como equívocos e
lapsos, ironia e auto-censura de traços de língua(s) apagados; c) outros
modos não ou semi representados, como na sua denegação, na ultra-
correção, na imitação e simulação; d) irrupções de sentidos de ordem
corporal, como o riso, as expressões faciais, gestos e postura corporal
que acompanham a pronúncia de determinados elementos linguísticos;
e ainda, e) formulações (representações) em que se explicitam os efei-
tos de sentido de identificação (ou não) produzidos pelos elementos
linguísticos (alhures silenciados) e pelo gesto mesmo de enunciá-los.
Nota-se que o processo envolve identificações produzidas através
de efeitos de sentido que se formam pela história, com as interpre-
tações sobre as línguas daí advindas, envolvendo tanto a história do
sujeito quanto a história da(s) língua(s)19. Tais efeitos aparecem na
instância do que se tem como subjetividade, sempre social e histori-
camente enlaçada. Funcionando na constituição do sujeito de lingua-
gem, os modos de relações deste com a(s) língua(s) que aí se formam
vêm se apresentar em indícios, no tecido linguístico-discursivo, que
deixam entrever modos diversificados dessas configurações (Payer,
2014). E estes modos de configuração, resultantes de processos de
identificação em relação às línguas e às formas, vêm se reapresentar
no processo de “ensino” demandando da escola e da universidade
escuta, compreensão e um trabalho direcionado ao nodal processo
de subjetivação que, no caso, se relaciona diretamente à(s) língua(s).

6. Concluindo – lembretes para a agenda

Todo o percurso realizado nos recoloca diante da questão do


realizado e do não realizado e, por isso, com o termo “lembretes”,

18 Muitos deles importantes em termos de conhecermos o imaginário que o sujeito da linguagem


está projetando sobre essa língua.
19 Por isso, surgem enunciações como: “isso soa mal”, “nós falamos errado”, “fala como um
carioca”, “essa língua é de cultura”.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

recuperamos a palavra agenda, registrada no título deste capítulo com


a intenção de retomar os sentidos das marcas do latim que perma-
necem no significante: de um lado, o gerundivo com os valores de
futuro e de obrigação, e de outro, a marca do plural no morfema
neutro –a, fazendo referência a “aquilo”. Uma paráfrase possível para
agenda seria, então: o que deve ser feito, o que precisa ser realizado,
sendo que nessa projeção de uma temporalidade futura se cruza o
que é da ordem do necessário – inclusive daquilo que já poderia ter
sido feito num passado – e do que é da ordem do querer, do desejo.
O desenvolvimento dos itens anteriores foram justificando e
destacando o papel do agendamento também enquanto aggiornamento,
como atualização e adequação às novas exigências e conhecimentos
disponíveis em um campo. O movimento realizado foi na direção
indicada por Davallon (1999, p. 25): que “o saber registrado saia da
indiferença” e que “deixe o domínio da insignificância”, passando,
então, a dar sentido ao trabalho nas práticas de ensino.
Definimos, marcados pela urgência desta enunciação quatro
lembretes, que registram imperativos de diferentes ordens e que não
pretendem ser exaustivos, dando conta “do irrealizado”:

1. A AD oferece um dispositivo para pensar o ensino a partir de


um olhar não ligado ou subordinado ao didático, pois olhar para as
práticas de ensino como condições de produção de processos de
identificação, que decantam numa inscrição por parte do sujeito da
linguagem na ordem da língua dá um rumo ao trabalho. Esse rumo
concebe o professor como um sujeito do conhecimento, capaz de
compreender os fatos da linguagem, dentro de um contexto, como
fatos discursivos. Desse modo, ocupando esta posição sujeito, o pro-
fessor supõe ao sujeito aprendiz uma capacidade, em termos de um
saber aprender e (ar)riscar nessa língua para a ela se submeter e poder
se tornar sujeito da mesma. Opera aí uma compreensão segundo a
qual a designação “aluno” se refere apenas a uma posição, sem que o
aprendiz (projetado como sujeito da linguagem), fique reduzido a ela.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Nesse patamar que ressignifica os processos de ensino, eliminam-se


“progressões” vinculadas a um sujeito do sucesso.

2. Trabalhar oferecendo resistência aos monolinguismos instalados na


contemporaneidade, seja aquele que funciona por efeito do processo
de formação dos Estados Nacionais, seja aquele imposto, priorita-
riamente pelos imperativos do Mercado – em muitos casos, como
já adiantamos, atendidos pelo próprio Estado em vias de estabelecer
políticas de gestão que resultem em eficiência e resultados imedia-
tos – que estabelecem a supremacia do inglês. No caso, trata-se e
vale a pena lembrá-lo de um inglês reduzido a código e, portanto,
despojado de sua densidade simbólica e de suas memórias locais ou
regionai20, que chega junto com um capitalismo mundial integrado
(GUATTARI, 1985) que se expande rizomaticamente, permeando
práticas e constituindo sujeitos.

3. No espaço escolar, de modo específico, trabalhar com a(s)


língua(s), não pressupondo que “a nacional” funciona como conti-
nuidade de “uma” chamada “materna”, atendendo aos diversos pro-
cessos que historicamente vem reclamando esse gesto: a exclusão
e apagamento das línguas indígenas, os diversos e vários processos
de imigração que, hoje, se materializam também com a presença de
filhos e descendentes de latino-americanos (bolivianos, peruanos,
paraguaios), de angolanos e nigerianos21, e de refugiados (haitianos
e sírios, entre outros).

4. Se a convivência em sociedade implica na prática de um cosmopo-


litismo, como poderíamos dizer a partir de afirmações de Kristeva
(1994, p. 202) e, segundo esta mesma autora, a reflexão de Freud
“instala a diferença em nós sob sua forma mais desamparadora e a
dá como condição última de nosso ser com os outros”, é preciso tra-
balhar nossa capacidade de aceitar as diversas formas de alteridade.
20 Cf. Sousa (2007, p. 57 e seguintes).
21 Nestes casos, cabe observar que se coloca a questão do português nos diversos espaços que
habita no mundo.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Neste capítulo tentamos dizer que trabalhando com a(s) língua(s), é


preciso que estejamos – como professores e como pesquisadores –
disponíveis para propiciar esses sentidos: produzindo conhecimento
que interprete seu funcionamento heterogêneo, na contramão das
formas instauradas pelas tradições monolíngues de lidar com a língua,
base esta rica e produtiva no trabalho transferencial que propomos,
numa constante desterritorialização de saberes por parte dos sujeitos
aí envolvidos.
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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

COMPOSIÇÕES MUSICAIS BRASILEIRAS:


DISCURSOS SOBRE A LÍNGUA

Eliana de Almeida
Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT)

Thalita M. G. Sampaio
Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT)

Resumo: Propomos, nesse capítulo, a compreensão dos modos


como o jogo deslizante entre diferentes línguas significam a relação
língua/sujeito brasileiro, nas composições musicais brasileiras que
destacamos. Essa materialidade aponta para a abertura do simbólico,
visto mobilizar a contradição que a faz funcionar como língua nacional
e como língua não nacional. Essas diferentes línguas significam-se pela
sintaxe e pela memória do português, o que determina os sentidos
para as línguas outras no espaço da língua portuguesa do Brasil. As
palavras estrangeiras significam-se, não pela tradução, mas pela re-
petição do fonema, pelo efeito metafórico e pela incompletude, pois
sendo as palavras traduzidas, temos o engessamento dos sentidos,
sendo a poesia o que dá à língua o jogo, a polissemia, a heteroge-
neidade. Palavras-chave: Língua/línguas. Poesia. Efeito Metafórico.
Deslizamento.
As composições musicais brasileiras, dentre elas, Não tem tradução
(1933) e Cem mil-réis (1936), de Noel Rosa, Joana francesa (1973) de
Chico Buarque, Samba do Aproach (1999) e Babylon (2000) de Zeca
Baleiro constituem o corpus para a leitura que propomos, pela Aná-
lise do Discurso (PÊCHEUX, 1988, 2004; ORLANDI, 1996; 2007;
PAYER, 2006;), em que buscaremos ultrapassar [...] a organização
(regra, sistematicidade) buscando chegar à ordem (funcionamento, falha)

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

da língua e da história, como afirma Orlandi (1996, p. 47 apud Payer


2006, p. 151).Essas composições musicais, com datas e compositores
distintos, nos instigam à compreensão do jogo combinatório entre
diferentes sistemas linguísticos em funcionamento no português do
Brasil, enquanto procedimento estético – poesia.
Essas letras1formulam uma sintaxe e nela articulam diferentes
línguas, dentre as quais o português, o francês e o inglês, e diferentes
sentidos para a relação língua/sujeito no Brasil. A composição Não
tem tradução, de Noel Rosa, escrita na década de 30 do século passa-
do, mobiliza os sentidos de nacionalidade (língua-sujeito), conforme
significaram os escritores José de Alencar, Mário de Andrade, Manoel de
Barros em suas produções literárias, à medida que o português do
Brasil, língua a partir da qual se diz/escreve/formula, constitui-se
o objeto da relação mesma com o sujeito que a produz.
A produção poética não escapa, assim, às injunções históricas de
instituição do Estado brasileiro e de nossa nacionalidade criadas na
língua, em seus diferentes modos de formulação, como em Iracema
(1875), Macunaíma (1924), Manoel de Barros (1937) e, pela compo-
sição musical Não tem tradução (1933), de Noel Rosa. A história, na
perspectiva discursiva, constitui-se pela atualização de uma memória
na relação da estrutura com o acontecimento (ORLANDI, 2001,
p. 87-88), de modo que a poesia2 torna-se lugar de textualização
da história. A língua é historicamente ressignificada nessa produção
literária não apenas porque textualiza as relações de poder em jogo,
no Brasil do fim do XIX e início do XX, mas fundamentalmente por-
que, de modos diferentes, atualiza da memória discursiva os sentidos
(saberes sobre) para a língua do Brasil.
É na relação com esse gesto de expor a linguagem ao seu infi-
nito, conforme afirma Foucault (1963, p. 44-53), o de escrever para

1 Os termos composições musicais e letras serão tomados um pelo outro, visto o foco dessa
análise definir-se sobre a materialidade escrita (um recorte, em relação à melodia, ritmo...).
2 Partimos do pressuposto discursivo, conforme Milner (2012, p. 12) e Pêcheux (2004, p.
63), de que a poesia é uma propriedade da língua, um seu funcionamento próprio, sendo,
portanto, impossível separar os efeitos poéticos das implicações de sua matéria prima.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

não morrer, próprio do sujeito-escritor na sua relação com o que da


linguagem mesma falta, que trazemos as formulações do compositor,
em Se eu fizer uma falseta/A Risoleta desiste logo/ Do francês e do Inglês,/
o samba/Não tem tradução no idioma francês/Tudo aquilo que o malandro
pronuncia/ Com voz macia é brasileiro,/ A gíria que o nosso morro criou/
Bem cedo a cidade aceitou e usou. Os sentidos de enaltecimento à lín-
gua nacional brasileira, em que o português é superior ao francês e
ao inglês, põem-se em relação de metáfora à falseta, ao samba, ao
malandro, à voz macia, cuja musicalidade prosódica, afirma Rosa,
é impossível em uma língua outra. Essas formulações atualizam de
modo particular os sentidos de língua idealizada da história literária
brasileira, como em Minha Terra, de Casimiro de Abreu (1839-1860),
Todos cantam a sua terra,/ também vou cantar a minha/,/nas débeis cordas
da lira,/hei de fazê-la rainha.
A metáfora, pelo viés discursivo, produz-se na relação com o
interdiscurso (a memória discursiva), logo, na relação entre dife-
rentes formações discursivas em relação à língua mesma. A poesia
constitui-se assim nesse espaço discursivo de sentidos sobre a língua,
a que o sujeito-escritor se inscreve para formular, dar corpo às pala-
vras (ORLANDI, 2001, 87-88), possibilitando entre essas diferentes
posições o deslize metafórico. Pêcheux considera:
Nessa perspectiva, o interdiscurso, longe de ser efeito integrador
da discursividade torna-se desde então seu princípio de funcionamen-
to: é porque os elementos da sequência textual, funcionando em uma
formação discursiva dada, podem ser importados (meta-forizados)
de uma sequência pertencente a uma outra formação discursiva que
as referências discursivas podem se construir e se deslocar histori-
camente. (PÊCHEUX, [1984] 2011, p. 158)
Na relação entre diferentes sequências discursivas, muda-se
também a posição discursiva, na medida mesma que a história se
inscreve diferentemente em cada uma delas pelo equívoco. Em Não
tem tradução afirma-se que, tão bela e particular é a musicalidade bra-
sileira quanto o é o português, língua que a exprime, visto a falseta

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

e o samba serem impossíveis no francês, inglês, em outra língua. Os


versos Mais tarde o malandro deixou de sambar,/Dando pinote/E só que-
rendo dançar um Fox-Trote mobilizam a relação musicalidade/língua,
em que sambar se liga como uma metáfora do português do morro
e dar pinote/Fox-Trote como metáfora do inglês. Essas sequências dis-
cursivas produzem o efeito de que o português é tão mais belo que
o inglês, como o samba tem maior prestígio que dar pinotes.
A poesia dá visibilidade às diferentes instâncias de recuos en-
tre sujeito/língua, pondo em relação o sujeito que fala (locutor/
escritor), o sujeito autor (unidade/coerência do texto) e o sujeito-
compositor (posição discursiva, em relação à língua), conforme
vemos em Amor lá no morro é amor pra chuchu/As rimas do samba não
são I love you/ E esse negócio de alô, Alô boy e alô Johnny/ Só pode ser
conversa de telefone. Essas diferentes instâncias do sujeito se produzem
na produção poética pelo movimento de aproximações e recuos,
conforme lemos em Foucault:
É sabido que, em um romance que se apresenta como o rela-
to de um narrador, o pronome da primeira pessoa, o presente do
indicativo, os signos da localização jamais remetem imediatamente
ao escritor, nem ao momento em que ele escreve, nem ao próprio
gesto de sua escrita; mas a um alter ego cuja distância em relação ao
escritor pode ser maior ou menor e variar ao longo mesmo da obra.
Seria igualmente falso buscar o autor tanto do lado do escritor real
quanto do lado do escritor fictício. A função autor é efetuada na
própria cisão – nessa divisão e nessa distância. (FOUCAULT, 2006,
p. 278-279)
Se na composição musical/poética é incontestável o lugar daque-
le que formula, também o é o lugar daquele que enuncia (inscreve-se
no discurso literário – perspectiva do dizer) e daquele que, enquanto
posição discursiva, se inscreve ideologicamente no texto em relação
à língua – objeto para o qual se volta toda a formulação poética.
Orlandi (2000, p. 61) explicita:

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

“Teríamos, então, as várias funções enunciativas do sujeito


falante, como segue, e nessa ordem: locutor, enunciador e autor.
Onde locutor é aquele que se representa como “eu” no discurso, o
enunciador é a perspectiva que esse “eu” constroi, e o autor é a fun-
ção social que esse “eu” assume enquanto produtor da linguagem.”
(ORLANDI, 1996, p. 61)
Ao sustentar em sua composição que a gíria do morro é o
português que a cidade adotou, Noel Rosa inscreve-se assumindo
posição em relação à língua falada no Brasil, a posição discursiva
em que a língua portuguesa pode ser referida enquanto gíria, uma
língua outra. Essa posição discursiva é assumida no interior mesmo
do discurso literário, à medida que Noel Rosa formula, mas o faz
enquanto compositor musical, submetendo-se aos rituais próprios dessa
produção de linguagem.
O compositor põe as palavras amor/morro/chuchu/samba/gíria
numa relação de oposição ao inglês, uma língua possível enquanto
conversa de telefone, como em Alô boy e alô Johnny. Nos versos A gíria
que o nosso morro criou/ Bem cedo a cidade aceitou e usou, percebemos
que o português aparece como diferente para si mesmo. Considerar
a língua portuguesa enquanto gíria é tomá-la como língua fluida, em
movimento, é uma língua que vai para além da língua do colonizador,
da língua de Portugal.
A história de definição nacional para o sujeito e língua bra-
sileiros materializa-se na composição de Noel Rosa pela oposição
entre língua de Portugal e língua do Brasil, conforme nos versos
Tudo aquilo que o malandro pronuncia/, /Com voz macia é brasileiro/, /
Já passou de português. Ou seja, a língua nacional brasileira aparece em
oposição prosódica à língua de Portugal, em que a voz macia significa
o português brasileiro, muito mais que o português de Portugal.
O português configura-se como uma língua daqui (do Brasil), com
ritmo e textura próprios, em relação à língua de Portugal. Referimos
assim, a José de Alencar, quem anteriormente distinguiu a prosódia
do português brasileiro em relação à de Portugal, ao perguntar “O

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba pode falar uma
língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a
pera, o damasco e a nêspera”?
Em as rimas do samba não são I love you, o efeito de sentido pro-
duzido é de que o samba, ritmo marcadamente brasileiro, não se
constitui do dizer do outro, sendo um ritmo puramente nacional.
No entanto, ao formular que o samba não conjuga em suas rimas o
I love you, a composição está justamente rimando o I love you com o
chuchu, ou seja, pondo em articulação sonora o clichê estrangeiro e
o legume brasileiro. Vale lembrar que Luiz Peixoto e Vicente Paiva,
compositores da canção Disseram que eu voltei americanizada, da década
de 40, difundida por Carmem Miranda, fazem também combinar,
no jogo de oposição entre o inglês e o português, o Eu te amo/I love
you e o I love you/chuchu como em /Eu digo mesmo eu te amo/, /e
nunca I love you/, /Enquanto houver Brasil/,/Na hora da comida/,/Eu
sou do camarão ensopadinho com chuchu. Em /esse negócio de alô, Alô boy
e alô Johnny/,/ Só pode ser conversa de telefone, a fonética da palavra alô
confunde-se à da palavra hello, pois quando se diz alô boy e alô Johnny,
temos funcionando o cumprimento em inglês (da conversação), por
um deslizamento fonético do português – marcado na palavra que
marca a fala ao telefone – alô.
A composição Cem mil-reis (1936), também de Noel Rosa, opera
com um procedimento estético outro em relação à língua, visto que
articula no mesmo verso línguas distintas, que se imbricam na sintaxe
cantada, como em Você me pediu cem mil réis, /Pra comprar um soirée/,
E um tamborim, /O organdi anda barato pra cachorro/, /E um gato lá no
morro/, /Não é tão caro assim/. Em Cem mil-réis não temos o jogo de
oposição entre o português e a língua do outro (a língua estrangeira),
como ocorre em Não tem tradução. Os efeitos de sentidos produzidos
em soirée e organdi no português são os de que essas palavras francesas
seriam, desde sempre, palavras da língua portuguesa.
Nesta composição, o enlaçamento entre o português e o francês
se dá enquanto um lugar de dizer sobre a língua. Se em Não tem tradu-

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

ção, a língua estrangeira é tomada como uma referência – um fora do


português, visto o compositor Noel Rosa tomá-la como algo sobre o
qual se fala, em Cem mil-réis essa língua outra entra como integrante
da sintaxe do português, numa relação de complementaridade entre
verbo e objeto direto (Pra comprar um soirée), e entre o sujeito e o predi-
cado (O organdi anda barato pra cachorro).
Esses versos imprimem uma posição discursiva outra, em re-
lação à língua em Não tem tradução, à medida que a língua do Brasil
articula na própria sintaxe uma língua outra, sem quaisquer alusões
a discursos nacionalistas. A palavra tamborim desliza-se para pele de
gato, batucada, morro e não sei vestir casaca, enquanto que a palavra soirée
desliza para organdi, sociedade, cetim e baile. Ainda, batucada se opõe à
baile, e morro se opõe a sociedade, não sei vestir casaca opõe-se à organdi
e cetim. A rede parafrástica que se constroi no entorno de tamborim vai
numa direção diferente à rede de significantes no entorno de soirée,
de modo que os sentidos para soirée vão se configurando enquanto
de prestígio, diferentemente dos sentidos que se configuram para
tamborim. De fato, o prestígio à palavra soirée em relação a tamborim
funciona em relação ao prestígio que a língua francesa assume em
relação ao português do Brasil, a ponto de estar articulado à língua
nacional brasileira.
O que podemos perceber é que a linguagem funciona nas/pelas
relações de metáfora, numa relação com o interdiscurso/memória
discursiva, que se dá enquanto princípio de agrupamento, filiações e
redes de memória. A propósito de atestar o funcionamento discursivo
da memória na língua, Payer (2006, p. 38) considera:
Questões como a de saber qual é o modo pelo qual uma emissão
física de sons se transforma em uma imagem sonora significante; ou
ainda como uma dada forma visual de um objeto físico no mundo se
torna algo da ordem da imagem significada, podendo ser acionada por
meio da repetição da emissão sonora, enquanto palavra, são questões
que não estão desvinculadas do funcionamento da memória e da re-
petição no processo de significar próprio da língua. (PAYER, 2006)

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

A repetição mantem a infinitude da linguagem, fazendo-a sig-


nificar nessa memória na relação com a diferença. Diferentemente
de Noel Rosa em Não há tradução e Cem mil-réis, a composição Joana
francesa (1973), de Chico Buarque, apresenta versos inteiros em
francês, que se encadeiam aos versos do português, de modo a não
conseguimos separar no verso uma língua da outra. Os efeitos de
sentido produzidos nessas diferentes línguas do verso não se dão
termo-a-termo, mas pelo poético, no deslizamento metafórico, no
jogo das palavras e seus fonemas.
Em Joana francesa temos Tu ris, tu mens trop/ Tu pleures, tu meurs
trop/ Tu as le tropique/ Dans le sang et sur la peau/ Geme de loucura
e de torpor/ Já é madrugada/, Acorda, acorda, acorda, acorda, acorda,
em que a língua portuguesa aparece no quinto verso e ainda assim
confundindo-se pela prosódia, pelos fonemas, com a língua francesa.
Esta composição articula o português e o francês, de modo a passar
despercebido tal funcionamento. Isto se dá pela prosódia dos “r” na
canção, em que todos eles são pronunciados como uma fricativa
velar desvozeada /x/ o que caracteriza o som do “r” francês. No
Brasil temos uma variação grande nos sons dos “r”, mas em especial
nesta canção os “r” são pronunciados como no francês, de modo que
o fonema das palavras em português se mistura aos das palavras em
francês.
Esta composição é uma música escrita a pretexto do Filme Joana
francesa e projeta sentidos para aquele que encena cantando. Ao cantar
o “r”, com – exatamente – a mesma pronúncia nas duas línguas, a letra
produz o efeito de transcendência entre as línguas, através do fonema
que opera a articulação. No verso Acorda, acorda, acorda, acorda, acorda
da primeira, segunda e quarta estrofes, ao ser pronunciada a palavra
acorda, seguidamente, como se dá no verso em questão, os sentidos
deslizam para a formulação em francês d’accord. Este deslizamento
só se dá porque a língua é capaz de poesia e porque os sentidos não
são fixos às formas das palavras, às diferentes línguas, a ponto de não
se saber até onde ressoam os sentidos do/no português ou francês.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Essa imbricação entre o português e o francês ocorre também


em O mar, marée, bateau, em que as duas últimas palavras em francês,
articuladas à primeira, formam em português O mar me arrebatou. O
verso significa tanto pelo francês marée e bateau, como pela fonética
do português. Em se tratando desses jogos de palavras, temos ainda
os versos Tu as le parfum/, /De la cachaça e de suor, em que a palavra
parfum do francês, e, no verso subsequente, cachaça e suor do por-
tuguês, são precedidos por “De la”, além de “suor” pronunciado com
o “r” francês, ocasionando o imbricamento entre essas línguas, de
modo que não se pode definir até onde, pelo poético na língua, seja
o francês ou o português que significa. Vemos que essas duas línguas
funcionam pelo poético na canção, produzindo efeitos de sentido.
Como vimos anteriormente, os sentidos se constituem pela
memória da língua e, nessa composição, pela memória do francês
e do português. A música Joana Francesa, parte da trilha sonora do
Filme (com o mesmo nome), de co-produção franco-brasileira, joga
com a sensualidade, o erotismo, ao ser cantada por Joana, a francesa
dona de um prostíbulo em São Paulo. As condições de produção que
determinam a composição musical se marcam na letra, pela sensu-
alidade da voz, do ritmo, da letra, dos modos como as palavras de
diferentes línguas se encadeiam uma a outra no verso, etc. A música
Joana Francesa faz funcionar na língua o imaginário da boemia e dos
cabarés parisienses do século XIX, no modo como é introduzida pelos
versos em francês, produzindo os efeitos da languidez/lentidão e
significando os chamados pecados capitais, como a preguiça, o pra-
zer, a luxúria: Geme de loucura e de torpor/; /Mata-me de rir/; /Geme de
prazer e de pavor/; /Vem molhar meu colo/; /Geme de preguiça e de calor.
Os sentidos são mobilizados pela memória do francês, imprimindo
no português os sentidos de prazer, preguiça, ócio.
Na composição musical Babylon (2003), de Zeca Baleiro, esse
jogo entre as palavras de diferentes línguas, produzindo uma fonética
outra, mas reconhecida no português, se dá também nos versos De
tudo provar/, /Champanhe, caviar/,/Scotch, escargot, rayban/ Bye, bye

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

misere/, /Kaya now to me/, / O céu seja aqui/ Minha religião é o prazer.
Essa estrofe mobiliza um jogo fonético na palavra Kaya, presente no
verso Kaya now to me, não apresentando tal formulação uma tradução
para o português. Os sentidos que se produzem não correspondem à
tradução do termo. O verso Kaya now to me juntamente com o verso
subsequente O céu seja aqui, põe a palavra kaya como um convite para
ir ao céu Kaya now to me/ O céu seja aqui e pode ser lido como: caia
agora em mim porque o céu é aqui.
Esse jogo de palavras entre duas línguas se dá pelo poético,
porque o jogo metafórico é constitutivo da língua. A poesia é capaz
de abstrair sentidos de diferentes redes significantes, linearmente
organizadas, ultrapassando os sentidos dados pela correlação signifi-
cado/significante, como num jogo entre significantes. A respeito do
verso kaya now to me, no modo como é pronunciado, a formulação
articula o termo Kaya com o subsequente now (/kay-a-nau/), que
formarão em português a fonética da palavra anal. Além disso, o
verso em questão significa, atualizando da memória discursiva da
língua (do inglês), a Música Kaya (1978) de Bob Marley, cujo refrão
diz I got to have kaya now/, /got to have kaya now/, /I got to have kaya
now, cause the rain is falling. A palavra kaya, nesse contexto, é uma gíria
jamaicana utilizada para significar a maconha3, o que significa mais uma
maneira de prazer.
O jogo entre as palavras e os fonemas de diferentes línguas produz os
sentidos de prazer Kaya now to me/ O céu seja aqui/ Minha religião é o
prazer. Esse jogo aponta para a quebra de paradigmas, em relação aos
sentidos historicamente dados e naturalizados pela ideologia, visto
que mobiliza um novo modo de significar a língua poética, no jogo
da relação entre a paráfrase e a polissemia. Para Orlandi (2007, p.
36), “os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo dizer
há sempre algo que se mantem, isto é o dizível, a memória. [...] Ao
passo que, na polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de
processos de significação. Ela joga com o equívoco”.
3 Disponível em http://www.istoe.com.br/reportagens/23755_BARATO+JAMAICANO.
Acesso em 26/11/2013

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Em O céu seja aqui e Minha religião é o prazer produz-se pelo po-


ético os sentidos de prazer, pelo/no funcionamento da polissemia,
do diferente, à medida que, a religião sempre regida pela inibição do
prazer, passa agora a ser regida pelo prazer. O prazer passa a ser uma
religião, como em Kaya now to me/ O céu seja aqui/ Minha religião é
o prazer. Vale dizer que os sentidos vão se constituindo nesse movi-
mento de reformulações, de um já-dado dos sentidos, que a poesia
não deixa estabilizar.
A música Babylon assim como a Joana francesa instaura uma cena
sensual, que se dá pelo poético, o próprio da língua:

Baby!/ I’m so alone/ Vamos pra Babylon!/ Viver a pão-de-ló/ E möet chan-
don/ Vamos pra Babylon!/ Vamos pra Babylon!...
Gozar!/ Sem se preocupar com amanhã/ Vamos pra Babylon/ Baby! Baby!
Babylon!...
Comprar o que houver/ Au revoir ralé/ Finesse s’il vous plait/ Mon dieu
je t’aime glamour/ Manhattan by night/ Passear de iate/ Nos mares do
pacífico sul...
Baby!/ I’m alive like/ A Rolling Stone/ Vamos pra Babylon/ Vida é um sou-
venir/ Made in Hong Kong/ Vamos pra Babylon!/ Vamos pra Babylon!...
Vem ser feliz/ Ao lado deste bon vivant/ Vamos pra Babylon/ Baby! Baby!
Babylon!...
De tudo provar/ Champanhe, caviar/ Scotch, escargot, rayban/ Bye, bye mi-
sere/ Kaya now to me/ O céu seja aqui/ Minha religião é o prazer...

O imaginário que temos no Brasil sobre a língua francesa do


século XIX constitui a memória discursiva do francês, enquanto uma
língua outra que se entrelaça ao português, sob a forma de poesia.
Os sentidos de glamour para o francês formam esse imaginário,
funcionando como um já-dado sobre a língua e, que, ao ser trazida
pelo/no enlaçamento com o português, produz para a composição
musical esses sentidos de sensualidade e prazer. Há uma memória
que se constitui sobre o francês aqui no Brasil e, fundamentalmente,
o francês se constitui no Brasil enquanto uma memória da língua
mesma. Orlandi (2013) afirma, em relação ao português brasileiro

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

e o português de Portugal, “Isto quer dizer que o brasileiro significa


diferentemente do português ao significar em português”. (OR-
LANDI, 2013, p. 27)
Assim, a língua francesa e a língua inglesa significam diferente-
mente do francês e do inglês articulados à língua portuguesa, porque
nos significamos numa memória/história diferente da que atravessa
essas línguas, em seus espaços nacionais de enunciação. O termo
também como um lugar de prazer, à medida que a composição faz
o convite para ir a Babylon.
Para nós, o discurso é determinado pelo jogo entre paráfrase/
polissemia da memória discursiva. O discurso religioso povoa de
sentidos a palavra Babylon, como no conhecido epíteto Babibônia,
a Grande Meretriz e como vemos no texto bíblico, em Apocalipse
18:2 e 4: caiu, caiu a grande Babilônia e se tornou morada de demônios.
Retirai-vos dela, povo meu, para não serdes cúmplices em seus pecados e para
não participares dos seus flagelos. Ou seja, Babilônia é referida como
a cidade a ser castigada por comportar toda sorte de prazer carnal
e orgias, etc., tudo o que é terminantemente vetado aos fieis pela
fé cristã-religiosa e, que, no entanto, é integralmente liberado pela
poesia na composição de Zeca Baleiro. Essa é a quebra do paradig-
ma, como dissemos, em que o interditado pelo discurso religioso é,
integralmente, liberado na poesia. Os sentidos do discurso religioso
dados para Babilônia materializam-se na composição musical, pela
articulação com essa memória religiosa de inibição dos prazeres, no
modo como tais prazeres são evocados. A sintaxe imperativa Retirai-
vos dela, povo meu do texto religioso é substituída, na composição
musical, pelo verso Vamos pra Babylon, Baby!
Na composição de Zeca Baleiro, o convite à Babilônia, deixan-
do tudo o que, no capitalismo, é impositivo ao sujeito, como por
exemplo, em: Eu não tenho grana/, /Pra sair com o meu broto/,/Eu não
compro roupa/,/Por isso que eu ando roto/,/Nada vem de graça/,/Nem
o pão, nem a cachaça, versos que funcionam pela forma de liberdade
em relação às coerções sociais e classes econômicas. O que há são

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Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

determinações de sentido e sentir-se livre funciona como a ilusão


constitutiva do sujeito de direitos e deveres. O ser passa a se conjugar
com o ter na materialidade dessas composições musicais, de modo
que Babylon passa a se constituir neste lugar de falta para o sujeito.
Esses sentidos articulados pelo Comprar o que houver/ Au revoir
ralé contraposto pelo Eu não tenho renda/ Pra descolar a merenda, pelo
soiree/tamborim, pelo /minha vida agora é cool/ meu passado é que foi
trash, apontam para o sujeito interpelado pelo capitalismo, cujos va-
lores estão relacionados ao capital. Segundo Orlandi (2012, p. 36)
“na polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos
de significação. Ela joga com o equívoco”. As composições de Zeca
Baleiro dão visibilidade à metáfora, aos deslizamentos nessa relação
com a memória discursiva, mobilizando simultaneamente línguas e
outras posições sobre elas mesmas.
Essas diferentes línguas funcionam nas composições musicais a
partir da memória discursiva da língua que se dá aqui no Brasil, acerca
dessas línguas outras. As palavras são estrangeiras, mas os efeitos de
sentido que essas palavras produzem se dão pela significação que elas
adquirem ao serem enunciadas no Brasil, como podemos perceber
em Samba do Approach (1999):

Venha provar meu brunch/ Saiba que eu tenho approach/


Na hora do lunch Eu ando de ferryboat.
Eu tenho savoir-faire/ Meu temperamento é light/ Minha
casa é hi-tech/ Toda hora rola um insight/ Já fui fã do Jethro
Tull/ Hoje me amarro no Slash/ Minha vida agora é cool/
Meu passado é que foi trash.

Nessa composição de Zeca Baleiro, a língua, o texto poético


se projeta sobre o sujeito, no exibicionismo substantivo dos nomes,
capital em cada verso. A poesia ultrapassa as línguas. As músicas Samba
do Approach e Babylon inscrevem o português na contemporaneidade,
em um mundo globalizado, em que as fronteiras – inclusive as linguís-
ticas – pelo efeito se diluem. Se no século XVIII já tínhamos línguas

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

outras funcionando em nosso território, do que resultaram as políticas


pela unidade língua/nação, as composições musicais mostram pelo
poético a desterritorialização/descolonização linguística. As línguas
não se constituem de forma una, pelo contrário, são heterogêneas,
se significam nessa multiplicidade, como em Samba do Approach.
As composições musicais dão notícia de um saber sobre o por-
tuguês brasileiro, de que não temos uma língua única e engessada,
mas um imbricamento de línguas distintas e definidas na relação com
a memória. Em Samba do approach e Babylon vê-se o atravessamento
ideológico sobre o inglês como língua da globalização, pois os versos
mobilizam da memória discursiva os sentidos da língua inglesa como
língua mundial. Se considerarmos, como supomos pela Análise do
Discurso, que a língua é a base do que interpela o indivíduo em sujeito
pela ideologia, podemos afirmar que, no processo de globalização, em
que palavras do inglês se espalham pelo mundo, falar a língua inglesa
poderá não significar um sujeito interpelado ideologicamente pelo/
no inglês, enquanto sua língua. Ser sujeito-falante de uma língua não
se resume na emissão de palavras, mas no atravessamento ideológico
que torna indivíduos em sujeitos.
Em outras palavras, supomos que um brasileiro falando inglês
não seja o mesmo que um norte americano falando inglês. As palavras
em inglês e também em francês, presentes no corpus, materializam
esse funcionamento, pois como vemos em Babylon e Samba do approach,
essas palavras significam-se numa relação com a memória e redes de
significação historicamente construídas no Brasil para elas mesmas.
Como vemos, as palavras em inglês significam nessas composições
por sentidos que se dão acerca do inglês – como língua – no espaço
do Brasil.
O inglês das músicas de Baleiro está no nosso dia-a-dia, como em
lunch/ light/hi-tech. Para que uma palavra faça sentido, afirma Orlandi
(2012), é necessário que antes ela já signifique. Uma particularidade
em Samba do Approach é o modo como os versos se estruturam, pois
é apenas no final dos versos que a outra língua aparece. Essa organi-

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Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

zação do verso põe o português como estruturante da sintaxe, em


que a palavra inglesa combina numa relação de complementaridade
sintática (pela língua portuguesa). A música Samba do Approach é com-
posta por 36 versos, contando as repetições do refrão. Desses versos,
dois apresentam palavras do francês, sendo eles: Eu tenho savoir-faire,
na segunda estrofe e Mas já sou um noveau-riche, na terceira estrofe,
sendo os demais, quase todos em língua inglesa.
Quase porque um verso da música – em particular – produz um
funcionamento discursivo outro, pelo poético, visto que, pelo jogo
de palavras de outra língua encadeadas ao final de cada verso, não
encontramos no francês ou no inglês a palavra engov. É uma palavra
escrita de modo a não identificar-se com a língua portuguesa, como
vemos no verso “Só um bom e velho engov”. Ou seja, a ordem da
língua transcende, pelo poético, a relação língua/sujeito como sendo
a língua mesma um espaço de ninguém, incontornável.
Podemos supor, conforme Payer (2006), que há diferenças no
que diz respeito aos sujeitos e às línguas das canções analisadas. A
materialidade dessas composições musicais permite ultrapassar o
espaço dado pelo simbólico relativo a uma única língua ou a mais
de uma. Os compositores, ao lançarem mão de duas línguas (não
uma só), fazem dessa materialidade híbrida a matéria mesma de sua
poesia, configuram-se como o sujeito ora universal, ora de merca-
do, exibindo como mercadoria mais de uma língua em cada verso e
definindo-se como cidadãos do mundo, à medida que dominam como
efeito várias línguas.
A composição Não tem tradução historiciza o prestígio do por-
tuguês brasileiro em relação às línguas estrangeiras, ironizando o
sujeito brasileiro que atua performaticamente a partir da língua e
da cultura de outra nacionalidade. O sujeito que se representa na
composição, no texto de Noel Rosa, assim, é esse sujeito brasileiro
da relação com uma língua brasileira, que já passou de português. O
sujeito se mostra atravessado pelo nacionalismo pungente dos anos
20 e 30 do século passado, em que o sujeito brasileiro proclama a

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Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

instauração de um Brasil livre dos moldes estrangeiros, visando uma


língua/história brasileira. O que passa despercebido nesse contexto
é que o português do Brasil se diferencia do de Portugal justamente
pelas línguas outras que se imbricaram no português, aqui, no Brasil.
Em Cem mil-réis, os sentidos de prestígio da língua e da cultura
brasileiras são reiterados, conforme a composição anterior do mes-
mo compositor, visto que a tensão posta entre as diferentes línguas
no espaço nacional se mostra na impossibilidade da injunção entre
o tamborim e o soirée. Nessa perspectiva, a composição mobiliza um
sujeito brasileiro e uma língua brasileira, visto os sentidos brasileiros
não se dizerem como tais nas línguas estrangeiras.
A música Joana francesa opera diferentemente das composições
anteriores, por um sujeito que se constitui tanto pela língua portu-
guesa como pela língua francesa, na medida em que essas línguas se
entrelaçam, e delas o locutor se distancia. Os dizeres alternam uma e
outra língua, como próprios daquele que os enuncia. O nacionalismo
brasileiro não se coloca aqui do mesmo modo como na década de
20/30, no Brasil, a não ser pelo modo como opera com o sujeito-
poeta, ao tomar como fenômeno da sua escrita a articulação entre
diferentes línguas. Por exemplo, as composições de Zeca Baleiro
apontam para o imaginário da língua inglesa numa relação com o que
representa o PIB norte americano no mundo, além de mostrar que
essa relação implica a injunção do sujeito à língua. O sujeito que se
marca nas composições de Baleiro é o sujeito do capitalismo e não
o sujeito nacionalista, diferentemente das composições que vimos
anteriormente.
O que vamos propondo ao longo desse trabalho é compreender
de que modo esse jogo deslizante entre diferentes línguas significa
a língua e o sujeito brasileiro, nessa materialidade. Assim, o que po-
demos perceber é que a língua é a abertura para o simbólico. Temos
uma nação que tem uma língua oficial, princípio de igualdade, pois
que falamos uma mesma língua, somos então todos brasileiros.Vimos
que os sentidos para a língua portuguesa se dão na relação com uma

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Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

língua outra, na contradição que faz funcionar uma língua nacional


com outras línguas “não nacionais”. A ordem mesma da língua, como
propõe Pêcheux (idem), deparando-se com a brecha, a rachadura da
estrutura mesma, o que permite acesso ao real da língua. Orlandi
considera:

Entre o jogo e a regra, a necessidade e o acaso, no con-


fronto do mundo e da linguagem, entre o sedimentado e o
a realizar, na experiência e na história, na relação tensa do
simbólico com o real e o imaginário, o sujeito e o sentido se
repetem e se deslocam. O equívoco, o non-sens, o irrealizado
tem no processo polissêmico, na metáfora, o seu ponto de
articulação. (ORLANDI, 2012a, p. 53)

Essas diferentes línguas significam-se pela sintaxe e pela me-


mória do português (PAYER 2006), o que determina os sentidos
para essas línguas outras no espaço da língua portuguesa do Brasil.
Mesmo havendo políticas de língua que instituam, oficializem, re-
gulem e determinem uma língua oficial engessada, pela Análise do
Discurso, podemos atestar o real da língua na falha e no furo, pelo
poético, próprio da língua. As palavras estrangeiras vão significar
não pela tradução, mas pela repetição do fonema, pelo efeito me-
tafórico e pela incompletude, pois estando as palavras traduzidas
teríamos o engessamento dos sentidos. Isso aponta para a abertura
do simbólico, colocando a língua enquanto possibilidade, polissemia,
heterogeneidade.
Concluindo, recortamos como objeto de estudos o discurso.
Este, por sua vez, se torna palpável na língua, como uma estrutura
que o materializa e o faz produzir sentidos. A língua, como não trans-
parente, produz os sentidos nessa opacidade, estruturando como
traço os sentidos na história, estrutura e acontecimento. Supondo o
funcionamento discursivo da língua enquanto estrutura e aconteci-
mento, pode-se dizer que os sentidos se dão pelas brechas possíveis
dessa estrutura da língua. Pode-se afirmar a partir daí que é no furo/

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

equívoco que o sentido se constitui, conforme propõe a Análise do


Discurso. Orlandi (2012, p. 7), ao prefaciar a obra O discurso: estrutura
ou acontecimento de Michel Pêcheux, afirma que ele propôs uma forma
de reflexão sobre a linguagem que aceita o desconforto de não se ajeitar nas
evidências e no lugar já feito. Ele exerceu com sofisticação e esmero a arte de
refletir nos entremeios.
A interpretação se dá como uma inscrição na história. Não há
sentido pronto e acabado, o que há é o acontecimento discursivo
(atualização/estabilização) e quando dizemos acontecimento é
pensando justamente no processo de que os sentidos se formulam.
Orlandi (1996, p.46) afirma que [...] a língua significa porque a história
intervém, o que resulta em pensar que o sentido é uma relação determinada
do sujeito com a história. Do sujeito porque há formações discursivas
diversas que se marcam no dizer, fazendo com que faça sentido, e
da história, porque há um já-dado que determina, interpela e faz
emergir o sentido.
Em suas diferentes condições de produção, as palavras de dife-
rentes línguas marcam na sintaxe do português, segundo pensamos,
diferentes formações discursivas, em seus diferentes espaços de
dizer. Os sentidos que se produzem pela língua do Outro na sintaxe
do português não são os mesmos produzidos se não houvesse os
atravessamentos de diferentes sistemas linguísticos. Nessa tensão,
entre línguas distintas que se marcam no português, encadeadas na/
pela língua poética, da composição musical, é que língua/sujeito se
significam. Essas composições tornam o discurso palpável enquanto
estrutura e acontecimento, ao fundirem na linguagem a história,
tornando possível interpretar. O trabalho em Análise do Discurso
começa aí, em mostrar como a linguagem produz sentidos.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Referências

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_____. Discurso eTexto: formulação e circulação dos sentidos. 3ª ed. Campinas, SP:
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_____. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 10ª ed. Campinas, SP:
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PAYER, Maria Onice. Memória da Língua. Imigração e nacionalidade. São
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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Algo fala antes nos discursos de


estudantes sobre língua(s) e tradução

Solange Mittmann
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Gláucia da Silva Henge


Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRGS)

Michele Teixeira Passini


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (doutoranda) (UFRGS)

Laís Virginia Alves Medeiros


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (mestranda) (UFRGS)

Resumo: Neste capítulo, pretendemos apresentar uma discussão


sobre a tradução sob a perspectiva da Análise do Discurso pêcheu-
tiana, considerando três elementos: o tradutor, a escrita e a língua.
Esse recorte se deve aos resultados de um experimento realizado em
sala de aula, com alunos de tradução do Bacharelado em Letras da
UFRGS. A atividade consistiu em ler quatro fragmentos de textos,
dizer se se tratava de texto escrito em língua portuguesa ou de tradu-
ção para essa língua e justificar a resposta. A análise das justificativas
permitiu observar como os alunos percebem a escrita da tradução,
uma percepção que está sustentada por pré-construídos sobre a língua
portuguesa, como língua que flui, e sobre a língua da tradução, como
língua de estranhamentos. Basicamente, percebemos que, para os alu-
nos, o texto que não soa “natural”, “fluido”, “bem escrito” é um texto
de tradução. Ou seja, embora os alunos estejam se preparando para a
profissão de tradutor, eles repetem o discurso que despreza o trabalho
do tradutor, pois, para eles, a escrita da tradução é uma escrita que soa

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

“estranha”, “fora do comum”, “mal construída”. A análise das respostas


dos alunos nos fez pensar sobre o quanto ainda é necessário trabalhar
pela valorização do trabalho do profissional da tradução e o quanto a
Análise do Discurso pode contribuir nesse sentido ao trazer uma outra
perspectiva sobre o equívoco e a falha, não como problemas a serem
resolvidos, mas como o próprio da língua, do sujeito e, portanto, de
toda escrita. Palavras-chave: Análise de Discurso. Tradução. Escrita.
Língua/línguas. Funcionamento.

O furo da língua e o intrincamento com a ideologia

Pensar a tradução é desde já pensar a língua em seu funciona-


mento. Mais do que isso, é pensar duas línguas em funcionamento
e em relação. A Análise do Discurso pêcheutiana (AD), desde sua
instauração como disciplina de entremeio, lança seu olhar sobre a
língua, tomando-a não como um sistema fechado e passível de des-
crição plena, mas como uma base linguística relativamente autônoma
cujo funcionamento se dá pela relação constitutiva (de intrincamento)
com a ideologia. Essa relação faz com que os sentidos possam des-
lizar conforme as posições dos que as proferem (PÊCHEUX, 2009,
p. 146), daí a possibilidade de o sentido sempre poder ser outro.
Assim, a movência dos sentidos, longe de constituir um “problema”,
deixa emergir o equívoco como próprio da língua e não como algo
estranho ou eventual.
Pêcheux (2011) esclarece que a relação com o real da língua, isto
é, com um impossível que lhe é específico, se dá pelo viés do simbó-
lico e do imaginário, através da metáfora, do jogo de palavras, já que
se trata sempre de uma palavra por outra. Assim, é possível afirmar
que o real da língua é que possibilita a interpretação e, portanto, a
tradução. Ou seja, é o que abre espaço para o sujeito na língua, é o
que permite o trabalho do tradutor na língua, via processo tradutório,
pois, se esta fosse saturada, sem furo, não haveria deslizamento, e a
tradução não seria viável.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

No intrincamento com a ideologia, pelo trabalho da formação


discursiva, há dois movimentos da língua no discurso: o da manipu-
lação de significações estabilizadas e o de deslizamento do sentido
(PÊCHEUX, 2012, p.51), ou seja, é próprio do funcionamento da
língua no discurso o controle (o repetível, o mesmo, o esperado) e o
escape (a falha, o outro, o diferente). E neste aspecto a AD se mostra
como excelente aporte para a reflexão sobre a tradução como pro-
cesso tradutório – tomado como um processo discursivo de ordem
particular –, uma vez que, na aproximação das línguas, enquanto
materialidades historicamente determinadas, ocorre esse jogo entre
controle e escape dos sentidos.
É o não reconhecimento de tal fato que leva algumas perspecti-
vas teóricas tradicionais sobre tradução e o próprio senso comum a,
recorrentemente, reafirmarem a intraduzibilidade, ilustrando-a com
achados de “erros”, “desvios” e “estranhamentos”. Como veremos
a seguir, com a análise dos discursos dos estudantes do curso de
tradução, é esse discurso que intervém como pré-construído, isto
é, que remete a uma construção anterior e exterior, que retorna
do interdiscurso como um saber, que impõe sentidos sob aparência
de evidência e de universalidade a respeito da língua, da tradução
e do trabalho do tradutor na/sobre a língua.

A construção do arquivo e do corpus

O curso de Bacharelado em Letras da UFRGS oferece a habi-


litação de Tradutor nas línguas alemã, espanhola, francesa, inglesa,
italiana ou japonesa. Especificamente sobre a atuação do Setor de
Língua Portuguesa, onde nos situamos, a ênfase das disciplinas se
dá sobre o trabalho com textos: Teoria do Texto, Sintaxe do Texto,
Semântica do Texto, Revisão de Textos. Há ainda diversas disciplinas
de outros setores que têm o texto como centro de estudos: Lite-
raturas de Língua Portuguesa e de Línguas Estrangeiras, Tradução,
Versão e Revisão de Textos Traduzidos. Além disso, o curso enfatiza
a produção textual a partir de três disciplinas de Leitura e Produção

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

de Textos em Língua Portuguesa e duas de Leitura e Produção de


Textos em Língua Estrangeira.
Ante essa ênfase sobre o trabalho com o texto e o objetivo de
formação de profissionais do texto, é de se pressupor que a concepção
de língua que permeia os discursos dos professores e dos tradutores
em formação seja a de uma língua em funcionamento no texto, ou
seja, de que a língua é materialidade do discurso, manifesta no/pelo
texto. Uma língua em movimento, em permanente deslizamento por
sua relação com o discurso e com as condições de produção de cada
discurso. Portanto, uma língua com historicidade.
Mas e quando abordamos, com os estudantes do curso, a língua
na relação com o processo tradutório, com que concepção ou con-
cepções de língua nos deparamos? Realizamos uma atividade1 com
um grupo de alunos, todos brasileiros e com pelo menos metade das
disciplinas do curso de Bacharelado já cursadas. A atividade consistiu
em apresentar quatro fragmentos de textos – um originalmente
escrito em português brasileiro e três traduções – antecedidos da
seguinte consigna: “Leia os quatro fragmentos e diga, a respeito de
cada um, se se trata de uma tradução ou de um texto redigido ori-
ginalmente em língua portuguesa. Aponte os elementos ou vestígios
que o levaram a essa conclusão”.
Obtivemos um arquivo de respostas de 24 alunos, que respon-
deram individualmente sobre cada um dos quatro fragmentos, ou
seja, nosso arquivo se constitui de um total de 96 textos. A partir da
leitura do arquivo, efetuamos um primeiro gesto de recorte: sele-
cionamos as respostas que apontavam para questões de língua – fosse
língua portuguesa ou língua estrangeira. Esse conjunto formou o que
chamamos aqui de corpus empírico. Já neste primeiro momento de
análise, observamos algumas regularidades e, a partir delas, come-
çamos a organizar o que chamamos de corpus discursivo, recortando
das respostas aquelas sequências discursivas que nos permitissem

1 Agradecemos à Profa. María Teresa Celada (USP), que nos sugeriu esta atividade em uma
conversa informal sobre tradução durante o Encontro da ANPOLL em 2014.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

discutir três aspectos que nos pareceram regulares: 1) a relação do


tradutor com a língua portuguesa, 2) a projeção da língua do outro
e 3) a presença do estranho no texto. São esses três aspectos que
discutiremos nas seções a seguir.

A relação do tradutor com a língua portuguesa:


(im)possibilidades

Na atividade, ao solicitar que os alunos definissem se cada frag-


mento de texto consistia numa tradução para a língua portuguesa ou
num texto originalmente redigido em língua portuguesa, instigamos
a tomada de posição de cada sujeito. Essa tomada de posição se deu
a partir de um conjunto de saberes já familiares a esses sujeitos, que
fariam retorno sobre a própria leitura e forneceriam as “evidências”
para que pudessem responder à questão proposta. Isto é, nesse po-
sicionamento, tornou-se necessária a mobilização de imaginários de
língua que permeiam a categorização dicotômica estabelecida.
Assim, a partir das afirmações sobre cada fragmento, foi possível
recortar algumas sequências discursivas que levam a reconstituir, pelo
fio do discurso, elementos de saberes a respeito da língua portuguesa
e também a respeito de um suposto “domínio” de um escritor ima-
ginário sobre essa língua.
Num primeiro movimento de análise, constatou-se uma estru-
tura recorrente a quase todas as respostas fornecidas. Para inferir se
o texto fora produzido originalmente em língua portuguesa, certos
“padrões” delimitavam o que “poderia” ser “dito”, isto é, o que seria
condizente com um texto originalmente redigido nessa língua; e,
por outro lado, aquilo que “não poderia”, por não fazer parte das
construções previsíveis. Percebemos que, na perspectiva dos alunos,
o fato de um escritor burlar as possibilidades imaginárias da língua
portuguesa levaria, então, à evidência de tratar-se de um texto tra-
duzido. É o que podemos observar nas sequências a seguir:

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

SD1: Originalmente em português. Embora o trecho “Assim como a noite


segue o dia” tenha me intrigado, a estrutura sintática do resto do texto
me faz crer que ele foi escrito originalmente em LP, pois soa natural.2

SD2: Ao meu ver, a língua portuguesa não usa tantos adjetivos para des-
crever acontecimentos e raramente é tão descritiva em textos que não
são poesias.

Percebemos, pela recorrência nas respostas, uma oposição


bastante acentuada entre o que pode e o que não pode ocorrer na
escrita em língua portuguesa. Esse regramento nos oferece pistas para
discursos outros que permeiam o processo tradutório e que levam a
observar um jogo de possibilidades e impossibilidades para a escrita
e para o fazer tradutório, que envolve aceitabilidade e a rejeição de
estruturas e de formas de dizer.
Um primeiro aspecto a ser destacado das respostas seria a “gra-
mática” empregada, o respeito à norma culta e a um certo padrão de
escrita em língua portuguesa.  

SD3: Texto original em português. Tirando um erro de pontuação, o


texto está, no meu ver, sem erros gramaticais, possivelmente escrito por
um falante nativo.

SD4: Trata-se de uma tradução. Há uma repetição de pronomes que não


funcionam em língua portuguesa sem causar algum estranhamento e pre-
judicar a fluidez da leitura, como em “o mantive entre as mãos, brincando
distraidamente com ele, sem a intenção de o ler”.

Nessas SDs, destacam-se o papel da gramática tradicional, como


conjunto de regras de bem escrever, e a concepção de texto como
uma estrutura que deve ser bem construída. É mobilizado um “sa-
ber” de que um texto escrito originalmente em língua portuguesa
respeita e segue as normas, não apresentando “erros” evidentes. A
2 Não identificamos aqui cada resposta ao texto a que se refere, pois o que nos interessa são
os saberes sobre língua que retornam aos discursos dos sujeitos alunos, e isso independe de
qual texto é alvo do comentário.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

língua como estrutura também é um ponto tomado como essencial,


pois marca presença, nas respostas, certo saber sobre uma língua a
ser “dominada” e bem utilizada, que caracterizaria a produção de
texto por um “falante nativo”.
Em contraponto, o imaginário sobre a tradução emerge como aquilo
que não segue, necessariamente, as regras gramaticais, sinalizado por
uma projeção de dificuldades para o tradutor em domar essa língua, seja
por desconhecer suas possibilidades, seja pela própria impossibilidade de
acomodar a estrutura da língua de partida na língua de chegada.
Outro aspecto apontado nas respostas diz respeito a uma modali-
dade classificada como “vício de linguagem” nas abordagens tradicionais
acerca do “bom uso” da língua portuguesa: o estrangeirismo.

SD5: O fragmento 1 parece ser uma tradução, pois apresenta usos de


palavras estrangeiras onde, talvez, não fosse necessário. Parece ser uma
tradução literária antiga.

SD6: O primeiro texto é uma tradução mal construída do francês p/ o


português, por estar repleta de estrangeirismos desnecessários e coloca-
ções estranhas do português.

Podemos observar que, na perspectiva dos alunos, a presença


de estrangeirismos caracterizaria tratar-se de um texto traduzido,
o que denuncia um posicionamento de reafirmação de certo pu-
rismo da língua portuguesa, sem contato com outras línguas: uma
língua sem contaminação. É como se o bom autor se mantivesse
nos limites de uma língua pura para que o texto fosse considerado
bem escrito. E que um texto com estrangeirismos fosse resultado
de um trabalho de tradução que não alcança o purismo da língua
portuguesa. Ou seja, um texto com estrangeirismos é interpretado
pelos alunos como um texto em falta.
Mais um aspecto relacionado aos saberes sobre o que se pode ou
não dizer em língua portuguesa seria aquilo que se repete em textos
lidos pelos estudantes até o ponto de lhes soar “comum”.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

SD7: Esse fragmento me parece ter sido escrito originalmente em por-


tuguês. A linguagem usada no fragmento é bem próxima à que lemos em
alguns blogs ou colunas de jornais brasileiros.

SD8 Acredito que se trata de uma tradução, tendo em vista que algumas
das expressões utilizadas no texto não são utilizadas comumente em por-
tuguês, entre elas “calafrio corria”, “sustentando a respiração” e “a sombra
antecipada da futura paixão”.

SD9: Aparenta ser uma tradução porque em alguns momentos algumas


frases não soam como português. Um exemplo disso está na frase “Não
sabemos o que acontece então”. E a descrição ao final do fragmento tam-
bém soa como traduzido pois não é muito comum em textos brasileiros.

Nessas SDs, podemos perceber uma ancoragem no que seria da


ordem da repetibilidade na escrita em língua portuguesa. Apenas a
linguagem comum, ordinária, trivial seria condizente com a produção
daquilo que os alunos tomam como bons textos. Qualquer uso “não-
literal” poderia lhes indicar uma má-tradução. Parece-nos, portanto,
que, entre os saberes sobre a língua portuguesa, ressoa fortemente
o de que não há espaço para a poesia na língua, e a literalidade seria
a única garantia de um bom texto.

A língua do outro

Muito embora o sujeito tradutor ocupe uma espécie de “po-


sição de entre-meio”, já que trabalha num espaço entre-línguas,
observamos repetidamente nas respostas um pré-construído de que
essa posição é indesejada e deve ser apagada do texto resultante do
processo tradutório. O trabalho do tradutor, desse ponto de vista,
parece dever ser o de escamotear qualquer elemento que indicie uma
não-autonomia do texto, isto é, qualquer elemento linguístico que
venha a ameaçar a ilusão de se estar diante de palavras cuidadosamente
escolhidas pelo autor do texto.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Dito de outra forma, sobre uma concepção tradicional de língua –


a do bem dizer – e de autor – aquele que a domina – sustenta-se uma
concepção tradicional sobre tradução “bem feita”: aquela que permitiria
uma leitura fluida, sem elementos estranhos, como se o texto da tradução
tivesse saído diretamente das mãos do autor do texto “original” para as do
leitor. E como se o bom texto escrito pelo autor em língua portuguesa
devesse primar também pela fluidez, já que a fluidez foi um critério ma-
joritariamente utilizado pelos alunos para classificar um fragmento como
originalmente escrito nessa língua.

SD10: Este fragmento parece se tratar de um texto original. Podemos


notar que há fluidez, parece se tratar de uma fala informal. O texto não
causa estranhamento, o narrador está dialogando clara e informalmente
com o leitor.

SD11: Originalmente em português.‘Moças’ me parece bastante natural.


O texto também mostra uma visão ocidental sobre essas sociedades orien-
tais (ou assim me parece).‘Não por coincidência’ também parece orgânico.

Assim, são as leituras já feitas, ou seja, o conhecimento sobre


textos, linguagem e mundo, que possibilita aos sujeitos se posiciona-
rem afirmando o que pertence à língua portuguesa e o que caracteriza
um bom texto. Desse modo, a boa relação entre o sujeito e a língua
portuguesa a que ele tem acesso asseguraria o privilégio de percebê-la
de forma “natural” e “orgânica”. Nessa perspectiva, haveria uma assi-
metria na relação entre línguas. E as tentativas de relacioná-las, como
acontece no caso da tradução, estariam fadadas à artificialidade, como
observamos na avaliação apresentada nesta sequência:
SD12: Acho que é uma tradução. As imagens soam artificiais
demais, forçando uma profundidade que o texto não consegue al-
cançar. Às vezes algo soa bonito em uma língua, umas imagens soam
mais naturais que as outras, e isso não é sempre transportável pela
tradução.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Na perspectiva dos alunos, diante de tal abismo entre as línguas,


o tradutor teria o desafio de encontrar maneiras de domesticar a lín-
gua do outro para efetuar um “transporte” de efeitos de sentido para
a língua portuguesa, de tal modo que o leitor não se deparasse com
uma ruptura da pretensa univocidade do texto. Qualquer vestígio
da língua do outro, desse modo, funcionaria como uma presença
incômoda, uma vez que perturbaria a ilusão do leitor de estar lendo
um texto original, deixando à mostra que, no espaço entre autor e
leitor, está presente um mediador: o tradutor. O resultado de uma
ineficácia na domesticação da alteridade poderia resultar numa es-
pécie de sombra perturbadora:

SD13: A forma como o texto está escrito parece com a língua inglesa e
não com a portuguesa. Há o uso de três adjetivos juntos exatamente como
se vê no inglês, além de problemas de sentido que algumas conjunções,
que parece terem sido mal escolhidas, causaram no texto.

Chama-nos a atenção, nessa sequência, a observação da presença,


mesmo que materialmente ausente – já que todos os textos estavam
escritos em língua portuguesa –, da língua inglesa, aqui denunciada
pelo uso de três adjetivos qualificando um mesmo termo. Tal qual
uma revelação obtida por meio de raio-x, a organização sintática dos
elementos parece indiciar a indesejada permanência da língua do
outro. O mesmo se observa nesta outra sequência:

SD14: O texto parece se tratar de uma tradução devido ao emprego de


alguns termos que não parecem ser tão utilizados em português, e que
podem ser, portanto, opções escolhidas por um tradutor que se aproxima
do original. Não é usual dizer em português que pensamentos “erguem-
se”, que a mulher “enredará” alguém ou que “nos recolhemos em nós
mesmos” (esse, em específico, me lembrou de termos em inglês como
“self-conciousness”). O “então” em “Não sabemos o que acontece então”
assemelha-se muito ao uso do “then” ao final de períodos na língua ingle-
sa, não sendo muito comum em um texto originalmente em português.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Nessa SD encontramos a outra língua relatada de forma ainda


mais pontual, chegando a ser suposta pelo sujeito aluno ao sugerir
que a sequência “nos recolhermos em nós mesmos” teria sido tradu-
zido de “self-consciousness”, da mesma forma que o termo “então”
seria tradução de “then”, com a manutenção de um uso da estrutura
sintática da língua inglesa, que seria estranho à estrutura sintática da
língua portuguesa.
A necessidade de delimitar fronteiras bem claras entre o que
pertence a uma língua e o que pertence a outra, como pudemos
observar nas sequências discursivas aqui analisadas, traz à cena um
imaginário de uma língua fechada em si, hermética, que não se
expõe à alteridade e que não traz em si irregularidades. O sujeito-
tradutor precisaria, diante da língua do outro, sentir, interpretar,
mas não se deixar perder para além de seus limites demarcatórios.
Cabe questionar: será possível produzir sentido, e, portanto, ser
sujeito na língua do outro e ser capaz de retornar à “sua” língua,
na sua vertente mais rígida, fora de sua possibilidade de equívoco
ou deslizamento?
Como já sinalizamos acima, na perspectiva teórica que aqui
assumimos, a língua é tomada, pelo viés de sua historicidade, ou
seja, no intrincamento com a ideologia, como passível de jogo: há
sempre uma tensão entre o mesmo (a paráfrase, o retorno) e o outro
(a polissemia, o escape). E a interpretação se dá pelo que é da ordem
do simbólico, resultado da identificação do sujeito com saberes (ou
já-ditos) tomados como evidentes em uma formação discursiva. É
essa identificação com alguns discursos sobre a língua que observamos
nas respostas dos alunos.
A concepção de língua (portuguesa ou estrangeira) como não
passível de jogo, isto é, sem historicidade, sustenta um imaginário
de tradução que faz retorno nos discursos dos alunos. Repetindo
saberes sobre a língua como transparente e regular, eles interpretam
o papel do tradutor como realizador de uma perfeita (e impossível)
equivalência no processo tradutório, que deve mantê-lo invisível. E

73
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

qualquer elemento que indicie sua presença será visto como um “erro”
que deveria ter sido eliminado, mas que é impossível de eliminar.
Parece haver receio por parte dos alunos de que a língua do
outro produza um rasgo na tessitura textual. Ou seja, a língua do
outro é percebida como uma presença indesejável, pois atestaria a
heterogeneidade e desconfortaria o sujeito leitor, levando aos efeitos
de estranhamento, artificialidade, obscuridade etc. A tal concepção,
sustentada no pré-construído de que toda tradução é uma traição
(a quem? à língua? ao autor? ao leitor?), subjaz a ilusão da completa
domesticação da língua do outro, trabalho que se esperaria do tra-
dutor. Tal qual um espectro, a língua do outro no texto traduzido
assusta o leitor (neste caso, futuro tradutor) que, assim como Narciso,
busca o reflexo de si, do que é natural, pelos ditos/formas/sentidos
estabilizados.

O estranho

A busca pelo reflexo de si parece implicar a rejeição ao que não se


reconhece. Percebemos, a partir das respostas, o retorno de um pré-
construído de que o efeito de estranhamento é inerente à tradução e
ausente no texto escrito originalmente em língua portuguesa. Mais
do que isso, o estranhamento é interpretado pelos futuros tradutores
como resultante de um trabalho mal feito, de um não-domínio pelo
tradutor dos modos de dizer, das regras e dos sentidos que os sujeitos
alunos imaginam como pertencentes à língua portuguesa.

SD15: Frases mal conectadas, como a segunda vírgula da primeira frase e as


do final do trecho, que apresentam um uso “estranho” do ponto-e-vírgula.

SD16: Acredito que seja um texto redigido em português porque está bem
escrito, sem nenhuma pista de algum estrangeirismo mal traduzido e sem
nenhuma frase com sentido estranho, mal organizada ou qualquer outra
característica claramente encontrada na maioria das traduções.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Como podemos observar com as SDs acima, o estranhamento


pode se marcar tanto nas questões sintáticas quanto nas semânticas.
Além disso, em algumas SDs ele é interpretado como próprio do
texto traduzido; em outras, é considerado um efeito sobre o leitor:

SD17: Esse fragmento parece ser uma tradução também, pois contém alguns
estranhamentos.

SD18: O termo “assim como a noite segue o dia” no meio do texto também
me causou um estranhamento, pois parece algum termo mal traduzido.

Marca-se nos discursos uma oscilação do estranho: ora como


marca residual da língua estrangeira, ora como marca de diferentes
registros da língua portuguesa. Além disso, o estranhamento também
é tomado como um efeito produzido por qualquer estrutura que não
se encaixe no conhecimento de língua do aluno, como se observa
na SD a seguir:

SD19: Alguns exemplos dessas estranhezas, para mim, são: excesso de


comentário entre parênteses (explicações) e a expressão “assim como a
noite segue o dia”, que parece ser uma tradução literal, pois eu nunca vi.

Essas descrições nos apontam um imaginário de uma língua


totalmente compreensível, apreensível e reconhecível, onde o que
causa efeito de estranhamento é aquilo que não pertenceria à língua
portuguesa. Esse imaginário dialoga com o imaginário sobre o sujeito
como um falante soberano de sua língua: se eu não reconheço, se não
me soa natural, então não pertence à minha língua.
Como já apontamos, na perspectiva teórica que adotamos, a
língua não é um sistema de regras a ser dominado, mas uma base
material sobre a qual os processos discursivos se constroem, o que
caracteriza “o funcionamento da língua em relação a si própria,
enquanto realidade relativamente autônoma” (PÊCHEUX, 2011,
p. 128). Nessa perspectiva, não se confirmam ilusões como a de

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

transparência do sentido ou de regularidade da sintaxe, e sim se


considera a subjetividade, a opacidade e a falha como constitutiva.
Isso não significa negar as estruturas da língua, mas, sim, conferir-
lhes um outro status:
A sintaxe é a base da criatividade histórica. Assim, as regras da
língua não podem ser consideradas como regras categóricas – no
sentido de que uma regra deve ou não deve ser aplicada. Em vez
disso, as regras da língua devem ser vistas como intrinsecamente
possibilitadoras dos jogos ideológicos e das latitudes discursivas.
(PÊCHEUX, 2011, p. 102)
Quando o efeito de estranhamento é apontado nas respostas
como indício de não pertencimento à língua portuguesa, identifica-
mos uma reverberação do senso comum, que toma o escape como
um erro, pois “considera a sintaxe um fator de rigidez, uma coerção,
um limite ou filtro, um processo pelo qual se põe rédeas curtas na
espontaneidade” (PÊCHEUX, 2011, p.100). Na direção contrária a
esse saber que retorna pelo senso comum, na perspectiva discursiva
“não há fronteira ou ponto assinalável de mudança linguística entre
o gramatical e o não-gramatical. Há somente trabalho na língua, em
que o significado é definido em relação ao que não faz sentido, o
sem-sentido” (PÊCHEUX, 2011, p. 103).
No caso da tradução, o estar entre línguas possibilita trocas
entre uma língua e outra. Essas trocas são interpretadas de formas
diferentes conforme a perspectiva que se tenha sobre a própria lín-
gua: numa perspectiva que considera a historicidade, as trocas são
positivas, pois enriquecem a língua-meta com novas possibilidades de
expressão linguística, ou seja, passam a fazer parte dos movimentos na
própria língua; numa perspectiva que toma a língua como elemento
duro, as trocas são tomadas como negativas, pois a inserção dessas
novas possibilidades agiria como uma espécie de contaminação,
comprometendo a “essência” da língua. No caso das respostas dos
estudantes, o que identificamos foi uma reverberação de um prote-
cionismo à língua, que faz com que formas pouco recorrentes, não

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

reconhecidas pelos alunos como pertencentes à língua com a qual


estão familiarizados, sejam renegadas à condição de traço residual
da outra língua ou de simples erro, o que nos leva a concluir que
ignoram ou rejeitam a possibilidade de mudança e transformação
que é constitutiva de toda língua.

Considerações finais

Ao solicitar que os alunos apresentassem justificativas para seu


gesto de identificação de cada trecho de texto como sendo tradução
para a língua portuguesa, ou como originalmente escrito em língua
portuguesa, lançamo-nos a uma rede de sentidos sobre língua e sobre
tradução. Com as respostas, pudemos observar como o imaginário de
língua e as concepções sobre tradução seguem cerceados por saberes
que apontam, por um lado, para uma língua sistêmica e estática e,
por outro, para uma tradução que desobedece as regras dessa língua,
numa espécie de falha previsível. Na perspectiva apresentada nas
respostas, qualquer sinal de movência é interpretado como evidên-
cia de uma língua marcada por resíduos, por interferências de uma
língua outra e, consequentemente, como evidência de um trabalho
de tradução ineficiente.
A análise das justificativas permitiu observar como os alunos
projetam tanto a língua portuguesa como a relação do sujeito com
a língua no processo tradutório: basicamente, o texto que não soa
“natural”, “fluido”, “bem escrito” é interpretado como um texto de
tradução. Ou seja, embora estejam se preparando para a profissão
de tradutor, os alunos repetem o discurso que despreza o trabalho
do tradutor, pois tomam a escrita da tradução como uma escrita que
soa “estranha”, “fora do comum”, “mal construída”.
Suas respostas nos fazem pensar sobre o quanto ainda é necessá-
rio trabalhar pela valorização do trabalho do profissional da tradução.
E também sobre o quanto a Análise do Discurso pode contribuir
nesse sentido ao trazer uma outra perspectiva sobre o equívoco e a

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

falha, não como problemas a serem resolvidos, mas como o próprio


da língua, do sujeito e, portanto, da tradução.
Os pressupostos sobre língua na perspectiva da AD, se mobiliza-
dos na formação de tradutores, podem suscitar reflexões menos en-
gessadas sobre as línguas em suas particularidades, e sobre o contato
entre línguas no processo tradutório. Considerar o equívoco como
próprio da língua e a historicidade como espaço de possibilidades
permite escapar de binarismos como certo vs errado, familiar vs es-
tranho, orgânico vs artificial, e reconhecer, finalmente, a amplitude
que o trabalho entre línguas abrange.

Referências

GILBERT, Elizabeth. Comprometida: uma história de amor.  Tradução:


Beatriz Medina. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, pág. 132. Tradução
de Committed: a Skeptic Makes Peace with Marriage.
MADRID, Lorenzo. Contos Homeopáticos: estórias que a História não conta.
Osasco/SP: Novo Século Editora, 2011.
MUSIL, Robert. O jovem Törless.Tradução de Lya Luft. São Paulo: Folha de
São Paulo, 2003. Tradução de DieVerwirrugen des Zöglings Törless.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.
Tradução de Eni Puccinelli Orlandi et al. 4. ed. Campinas, SP: Editora
da Unicamp, 2009.
______. Análise de Discurso. Textos selecionados por Eni Puccinelli Orlandi.
Tradução de Eni Puccinelli Orlandi et al. Campinas, SP: Pontes, 2011.
______. O discurso: estrutura ou acontecimento.Tradução de Eni Puccinelli
Orlandi. 6.ed. Campinas, SP: Pontes, 2012.
TEYMOUR, Mahmoud. A coroa de papelão. RIEDEL, Diaulas (org.)
Maravilhas do conto universal. São Paulo: Cultrix, 1958. Tradução de
Afonso Schmidt.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

O QUE SE DIZ AO NEGAR-SE A LER?


Carolina P. Fedatto
Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVAS)

Resumo: O capítulo trabalha o tema da negação em relação à


constituição do leitor, refletindo sobre os mecanismos discursivos
de resistência às significações hegemônicas da leitura ou de recusa
a determinados sentidos para o leitor. Pensando especificamente o
imaginário social da leitura como capacidade exigida do sujeito, toma-
remos o filme “Minhas tardes com Margueritte” (Jean Becker, 2010)
como mote para discutir uma posição subjetiva muito frequente que
é a de “negar-se a ler”, “não gostar de ler”, “não saber ler” ou sim-
plesmente “não ler” e suas relações com alguns sentidos dominantes
(e positivos) para a leitura e para o leitor: “quem lê viaja”, “quem lê
bem fala bem, escreve bem, pensa bem”, “ler é fundamental” etc.
Como, ou melhor, por quais construções simbólicas e discursivas a
negação da leitura é possível em uma sociedade que tanto a cultua? O
que é que se nega ao negar-se a ler? Que sujeito é esse que se afirma
recusando-se a ler? Palavras-chave: Leitura. Negação. Identificação.
Resistência. Imaginário social.
Neste artigo, refletiremos sobre a constituição do leitor e dos
mecanismos discursivos de resistência às significações hegemônicas da
leitura ou de recusa a determinados sentidos para o leitor. Pensando
especificamente o imaginário social da leitura como capacidade exi-
gida do sujeito, tomamos o filme “Minhas tardes com Margueritte”
(Jean Becker, 2010) como mote para discutir uma posição subjetiva
muito frequente, mas muito encoberta que é a de “negar-se a ler”,

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

“não gostar de ler”, “não saber ler” ou simplesmente “não ler” e suas
relações com alguns sentidos dominantes (e positivos) para a leitu-
ra e para o leitor veiculados em campanhas de incentivo à leitura:
“quem lê viaja”, “quem lê bem fala bem, escreve bem, pensa bem”,
“ler é fundamental” etc. Como e por quais construções simbólicas
e discursivas a negação da leitura é possível em uma sociedade que
tanto a cultua? O que é que se nega ao negar-se a ler? Que sujeito é
esse que se afirma recusando-se a ler?

Escrita e leitura

A imagem de que goza a leitura em nossa sociedade decorre, em


certa medida, dos valores atribuídos à escrita. No imaginário social, a
escrita teria a função de perpetuar a linguagem falada, fugaz por na-
tureza, de fixá-la, completá-la, sendo subordinada a ela e, ao mesmo
tempo, determinando-a. A relação imaginária entre escrita e língua
está, assim, dada: a escrita não seria mais do que a notação da língua,
de seus sons. Entretanto, na longa história da escrita, nada prova que
ela tenha surgido de uma vontade de registrar os sons da língua, mas
sim da necessidade de objetivar, fixar e conservar dados e ideias indis-
pensáveis ao exercício do poder, como, por exemplo, inventários de
impostos, populações e recursos naturais (AUROUX, 1992). Além
disso, sabemos que o alfabeto, tal como o conhecemos, é um desenvol-
vimento tardio na história, convivendo com outros sistemas gráficos,
como as notações de formas gestuais, os pictogramas, ideogramas
e glifos, em suma, formas que notam ideias e coisas e com o tempo
passam a notar também sílabas e sons de língua (CALVET, 1996). Essa
é uma primeira evidência a ser posta em suspenso: a de que a escrita
é dependente da língua stricto sensu, já que há modos de escritura que
se baseiam em ideias e imagens, não em sons ou palavras. A segunda
evidência a ser questionada é a de que a fala seria efêmera e a escrita
perene. Certamente há uma tendência ao transitório na língua falada,
assim como existe uma possibilidade maior de durar no escrito, mas
essas inclinações não garantem a consolidação destes, e somente destes,

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

efeitos de sentido. Quando refletimos em termos de permanência e


transitoriedade em relação à memória e à subjetividade, nada assegura
que a fala não se inscreva ou que a escrita esteja já sempre inscrita. A
palavra dita pode marcar tanto quanto a escrita, bem como a escrita
pode passar como a fala passaria. No entanto, não se pode perder de
vista um sentido fundamental da escrita, legado por sua etimologia: o
de ser uma técnica de talhar, incidir, gravar, além de juntar e objetivar
– traços, letras, pedras, marcas – guardando algum segredo daqueles
que não a dominam (CALVET, 1996, p. 25-26). Da escrita se transmi-
te o desejo de durar, de acumular, permanecer e, talvez, atingir uma
verdade, ou poder ocultá-la.
A leitura seria, ao contrário, um certo desvelamento desse mis-
tério, a possibilidade de aceder a um mundo desconhecido, codificado
e permanente. Se falar e ouvir são saberes construídos nas relações
afetivas e cotidianas com o outro; escrever e ler são práticas aprendidas
formalmente, em geral, num contexto escolar. Mas é preciso também
discutir o papel da afetividade na aprendizagem e na prática da escrita
e da leitura. Assim como não podemos desconsiderar que fala e escu-
ta devam também ser objeto de estudo formal ou mesmo que deste
estudo formal esteja excluído o afeto. Nosso objetivo neste artigo é
justamente refletir sobre os sentidos da leitura, considerando o con-
ceito psicanalítico de letra, sentidos que decorrem em certa medida
dos valores da escrita, sobretudo em contextos em que o desejo ou a
capacidade de ler são negados, recusados ou contestados. Essa reflexão
projeta, então, uma compreensão ampliada do ato de ler, consequente
tanto com as implicações político-ideológicas quanto com os aspectos
subjetivos envolvidos na relação sujeito-leitura-história.

Definir a leitura?

Quem convive com crianças em fase de alfabetização percebe


o grande esforço que é aprender a ler e escrever. O contato com as
letras é lento, paulatino, passa por diversas fases e pode ser feito por

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

meio de diferentes metodologias. Daí a ler, entre cópia, repetição,


reconhecimento, autonomia, gosto, indiferença, a criança despende
grande quantidade de energia, transferindo pulsão de vida e morte
para esse processo. Aprender a ler é começar a habitar o mundo
adulto, decifrar, saber algo até então inacessível e ao mesmo tempo
compartilhado. Em geral, elas se maravilham com adultos que leem,
sobretudo, grandes textos ou livros sem figuras. Mas, como vere-
mos, não só os pequenos se surpreendem com a leitura habitual ou
de textos longos; para grande parte dos adultos também (gostar de)
ler (constantemente)continua a ser um mistério. Germain Chazes,
personagem interpretado por Gérard Depardieu em La tête en friche
(Jean Becker, 2010), descreve maravilhado a senhora que passa a
encontrar todas as tardes: “Ela lê como respira!”. Para Germain, com
efeito, ler não é algo tão natural-izado assim...
A leitura, para as crianças, é algo promissor. Já para os adultos
que não leem, os afetos sociais são outros: incapacidade, inferioridade,
ignorância, impotência, atraso, falta. Esse é o extremo da situação que
desejamos discutir: não ler por não saber ler, por não ter aprendido a
ler, não ler nada da letra, ser a letra só mistério. Mas nosso interesse
de fato recai sobre essa massa cinzenta e numerosa dos que sabem
ler e não leem, não querem ler, não gostam de ler, resistem a ler, não
se reconhecem lendo. Ninguém se pergunta porque seria preciso ler
ou porque a leitura é tão hegemonicamente positiva; a resposta está
sempre na ponta da língua, conferindo à leitura os melhores predi-
cados: ler exercita a mente, leva a mundos desconhecidos, lugares
distantes, distrai, promove inteligência, conhecimento, sabedoria,
criatividade etc. Mas, mesmo assim, são relativamente poucos os
que de fato leem com frequência e gostam disso.

O que (não) dizem os números

De acordo, por exemplo, com a terceira edição da pesquisa


Retratos da leitura no Brasil, publicada em 2012 e realizada em 2011

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Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

pelo Instituto Pró-Livro, 50% dos brasileiros são considerados lei-


tores, isto é, segundo os critérios adotados, leram, no todo ou em
parte, pelo menos um livro nos últimos três meses. Aumento de 5%
relativamente aos dados da pesquisa anterior, de 2007. A pesquisa
constatou também que há mais não-leitores nas classes populares,
no interior e nos pequenos municípios e, para alguma surpresa, na
região sul do país.
Já sobre os fatores que dificultam a leitura daqueles que não
leem, é interessante observar que todas as opções dadas pelo ques-
tionário são citadas em proporções bastante próximas, são elas: ler
devagar, não ter paciência para ler, ter problemas de visão ou outras
limitações físicas, não ter concentração, não compreender grande
parte do que lê e, por fim, não saber ler. Já a justificativa para não
ter lido nos últimos três meses (escopo apriorístico da pesquisa)
encontra na falta de tempo seu maior aliado: 53%. No mais, 30%
disseram não ter interesse ou não gostar de ler, 21% preferem outras
atividades, 19% não têm paciência. A seguir, arrolam-se mais ou
menos na mesma proporção argumentos ecléticos: lê devagar, apre-
senta limitações físicas, não há bibliotecas ou livrarias por perto, não
tem concentração, falta de dinheiro, dificuldades de compreensão e,
mesmo, não sabem dizer porque não leram...
Com este afastamento real da leitura como prática contrasta
um imaginário extremamente positivo da leitura como atividade
imaginada: à questão “O que a leitura significa?” e podendo escolher
dentre três das opções propostas, a grande maioria dos entrevistados
considera a leitura uma “fonte de conhecimento para a vida”, “fonte
de conhecimento e atualização profissional”, “fonte de conhecimento
para escola/faculdade”, “uma atividade interessante”, “uma atividade
prazerosa”. Ressaltem-se, nas opções fornecidas pela enquete que
foram reconhecidas como positivas, as palavras fonte e atividade; já
as noções de trabalho ou prática aparecem apenas nos predicados mal
qualificados: menos de 10% da amostra atribuem sentidos negativos
à leitura: “ocupa muito tempo”, “é uma prática obrigatória”, “produz

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

cansaço/exige esforço”, “é entediante”. No entanto, nosso empenho


de compreensão neste texto recairá justamente sobre isso que se diz
pouco, que se esconde, que não se tem coragem de declarar: ler é
chato, difícil, gasta tempo, cansa. As pessoas em geral preferem, como
mostra a pesquisa, assistir televisão, escutar música, descansar, estar
com a família e amigos, assistir filmes. Assinalemos que a leitura,
quando considerada como uma atividade de lazer, perde espaço para
práticas verdadeiramente recreativas. Já quando tida como trabalho,
é avaliada de modo negativo.
Disso tudo é interessante sublinhar que as respostas às perguntas
enviesadas desta enquete são bastante contraditórias e desencontra-
das. Muita gente não lê efetivamente, mas dota a leitura de excelentes
significados. Grande parte prefere realizar outras atividades a ler, mas
62% declaram gostar de ler e, ainda, 75% dizem ler mais por prazer
do que por obrigação. As incoerências se multiplicam em diversos
outros resultados sinalizando, ao menos, que as paixões são contro-
versas no campo da leitura e que há pelos menos duas matrizes de
sentido em disputa: a leitura como distração e como trabalho.Talvez
porque algo da letra ainda resista a essa transparência de causas e
consequências, a essa idealização evidente dos efeitos da leitura. Na
leitura, algo do mistério ainda resiste. E esse mistério, como vere-
mos, tem tanto a ver com a subjetividade quanto com a ideologia.

O risco da letra

Como dizem Nancy e Lacoue-Labarthe (1991), numa leitura


do conceito lacaniano de letra que sustenta nossa posição sobre o
funcionamento da leitura, há uma ruptura do alcance da razão depois
de Freud, já que ela passa a ser considerada como uma instância (ou
insistência) da letra no inconsciente (p. 33). Considerando, com os au-
tores, que “a letra designa a estrutura da linguagem na medida em
que o sujeito nela está implicado” (p. 35), isto é, que a letra, como
marca de linguagem, é fundadora de relações causais para o sujeito

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

em uma ordem diferente dos princípios aristotélicos de identidade,


não-contradição e terceiro excluído; em uma ordem que, tomando da
linguagem o suporte material, realiza atos e significações simbólicas.
Isso tem consequências para o modo como a noção de inconsciente
será compreendida em relação à linguagem.
A letra é aquilo que do corpo se relaciona com a linguagem, mas,
apesar de, certamente, a existência da língua preceder a existência
do sujeito, a linguagem não tem um papel de origem; ela determina
o inconsciente, mas o sentido dessa determinação não pode jamais
ser dado a priori ou por manobras lógicas. Dessa forma, a letra é ma-
téria, não substância. A letra tem peso, forma, densidade e produz
sentido não em relação à coisa, como representação do mundo ou
efeito de condições de verdade. O conceito de letra, na medida em
que concentra a ideia de precedência da língua sobre o sujeito e os
jogos significantes que o fundam, obriga a considerar que o sentido é
produzido na relação de significação a significação, no corpo a corpo
da matéria esvaziada de um único sentido e, por isso, premente deles.
Na letra, o sentido está sempre em risco.
A partir dessa posição teórica, refletiremos sobre o lugar do
risco na constituição da leitura. Como proposição de saída, defen-
deremos que os efeitos da leitura não podem ser apenas assimilados
a ideias positivas. Como da leitura a letra é indissociável, também ela
está inundada de polissemia. Ler é haver-se com a letra, seus desvios,
labirintos, atalhos. Ler é se confrontar com o impensado, com o
simbólico, com o sentido em devir. É um risco.

Identificações do não-leitor

A resistência aos prodígios da leitura é discutida de modo


exemplar no filme La tête en friche. Primeiramente, uma palavra
sobre o título e sua tradução em português, que é Minhas tardes com
Margueritte. A tradução, como se vê, aponta para sentidos diferen-
tes do título original, o filme em português enfatiza o encontro do

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

personagem principal, Germain Chazes (Gérard Depardieu), com a


amável senhora com quem estabelecerá uma relação muito especial
baseada na leitura. Por essa mudança de foco, presumimos que o
título original deva trazer algum enigma aos falantes de português.
De fato, en friche poderia ser considerado aquilo que se entende
como uma “expressão idiomática”. Segundo o Petit Robert a palavra
vem do neerlandês significando originalmente fresco, mas é usada
correntemente como tendo uma relação com a terra ou com um
terreno não cultivado, vago, baldio, abandonado. A locução en friche
significa, de fato, inculto. Dessa forma, Cabeça fresca seria talvez uma
tradução interessante do ponto de vista da etimologia da palavra
francesa e da manutenção do foco do título original: o protagonista
Germain Chazes, não seu encontro com Margueritte. No entanto,
com esta proposta, perdemos a relação com o abandono, tão forte
na construção da personagem e no sentido da expressão francesa.
Enfim... Mas nosso propósito não é discutir a tradução per se e sim
refletir sobre alguns aspectos levantados pelo filme que trazem su-
tilezas a respeito do papel subjetivo e social da leitura.
Com efeito, nosso personagem é um cara tranquilo, cabeça fresca
mesmo, curte o lado simples da vida, é um operário, às vezes explo-
rado pelos patrões, que trabalha pesado, mas aproveita o tempo livre
com os amigos, namorando, cuidando de uma horta e, aí começa o
enredo, jogando conversa fora na praça com uma velha senhora no
meio da tarde. Como já discutimos em relação ao título em francês,
Germain carrega um sentimento de abandono por conta de uma
mãe desleixada, das dificuldades na escola e das gozações dos ami-
gos sobre sua inteligência. Esses três aspectos são recorrentemente
relacionados na trama do filme: quando Germain demonstra falta de
compreensão sobre algum assunto, seus amigos fazem troça, ele se
lembra de algum episódio humilhante na escola relacionado à leitura
e de uma cena de reprovação da mãe, sempre mais envolvida com a
própria vida amorosa e com a sobrevivência do que com a criação
daquele filho indesejado.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Apesar de ser motivo de riso por aproximar Guy de Maupassant a


Guide Michelin, Germain é sempre sensível aos efeitos da linguagem, de
seus equívocos: se enfurece ao ser chamado de isso pela mãe, discorda
das definições redutoras do dicionário e interpreta literalmente os
famosos monumentos aos mortos pela França, escrevendo seu nome
aos garranchos na sequência da lista dos homenageados na Guerra da
Argélia. Esse tom tragicômico permanece nos encontros de Germain
com Margueritte. A velhinha, muito culta e delicada, está sempre
com um livro em mãos e o interpela sobre seu gosto por ler. Germain
responde de forma muito esperada, com uma recusa à leitura, como
ouvimos diversas vezes: até já tentei, mas não tenho o hábito! Margue-
ritte vai conquistando esse leitor desconfiado a partir de assuntos em
comum, ela envolve Germain com a história d’Apeste, de Camus, por
meio do reconhecimento: coincidências entre o nome do protagonista
e do avô de Germain, os amigos argelinos, os pombos. A leitura em
voz alta é também outro fator de identificação. Nosso cabeça fresca vai
aos poucos se desfazendo de suas experiências negativas com a leitura,
vai deixando de se recusar a ler, vai significando a leitura como viagem,
labirinto e evasão, vai construindo uma afetividade a partir dela, para,
enfim, se autorizar a ser um leitor fora dos dolorosos moldes escolares:
com seus equívocos, imagens e metáforas.
O não-leitor encontrou assim um caminho para se identificar
com a leitura. Esse é o funcionamento que produz o efeito de bom
sujeito, nas palavras de Pêcheux (1975/1997, p. 215), aquele que
consente livremente com a superposição do sujeito universal (ler é fun-
damental) ao sujeito da enunciação (não gosto/não sei ler). Isto é,
Germain realiza em si mesmo os efeitos esperados universalmente
pela leitura: ele se vincula, embarca nessa, se deixa conquistar;
mesmo que para isso, no processo social e afetivo que possibilitou
essa virada, ele tenha ressignificado a leitura e sua posição frente a
ela negando o lugar subalterno em que se colocou/foi colocado. A
negação desempenha, então, um duplo papel na identificação a essa
posição-sujeito: primeiro fundando um não-leitor, depois formando
um não-não-leitor. Voltaremos a isso mais a diante.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Contraidentificações do não-leitor

Em decorrência dos resultados da pesquisa Retratos da leitura


no Brasil de 2012, o Ministério da Cultura lançou uma campanha de
incentivo à leitura, intitulada Leia Mais, com o objetivo de estimular
a leitura principalmente nas classes populares, que concentra cerca
de 40% da população e a maioria dos não-leitores do país. Nas di-
versas estratégias adotadas (comerciais de rádio e TV, ações nas redes
sociais e utilização de trechos de poesia nas esperas telefônicas do
ministério) estão presentes os seguintes anúncios:

Figura 1. Campanha Leia mais, seja mais (2012)

Fonte: Brasil / Ministério da Cultura

Vemos que o mote Leia mais aparece justaposto a uma conse-


quência: seja mais. Além disso, cada cartaz apresenta ampliações dos
efeitos-justificativas deste convite à leitura: Descubra mais, viaje mais.
Invente mais, conquiste mais. Sonhe mais, viva mais. A forma verbal em-
pregada é o imperativo na segunda pessoa do singular, os enunciados
são coordenados e os verbos são complementados pelo intensificador
mais e este, por sua vez, tem seus possíveis complementos elípticos:
V[imp.] mais Ø, V[imp.] mais Ø. O efeito dessa formulação é o de
um convite, um pedido ou sugestão quantificados de forma abstrata.
A sequência Leia mais, seja mais constrói uma implicação entre a ação

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

de ler e os modos de ser do sujeito; ler afeta o ser para melhor. A


elipse dos prováveis complementos de leia mais é menos inquietante
do que o apagamento dos objetos de seja mais: seja mais o quê? Isso
está em aberto, a ser preenchido por cada um que experimentar as
ações propostas, a única certeza é a de que a leitura será o passaporte
para atingir esse mais. Ser mais é melhorar de vida, ascender social-
mente, ser culto? O fato é que antes de ler, o sujeito é menos, não é.
Conhecemos a recorrência desse tipo de campanha no Brasil.
Sempre com ares bastante escolares, elas mudam de foco, de con-
cepção e de público-alvo, mas estão há muito tempo presentes em
nosso cotidiano (COPES e SAVELI, 2007). A ideia de que o brasileiro
não lê ou lê muito pouco circula com certa tranquilidade e essas
campanhas tentam fazer frente a esse desafio. O discurso da falta e da
incompletude é constitutivo do modo como a escrita e leitura foram
sendo significadas na história nacional. Mariza Vieira (1998) mostra
como a fragmentação e a dispersão fazem parte do próprio gesto de
constituição de arquivos sobre a educação, como se houvesse muito
pouco a rememorar da história das letras em nosso território. E o
pouco que se sabe (e que se guarda) fica marcado “pela dispersão,
pela simplificação, pela banalização, pela depreciação, pela negação”
(SILVA, 1998, p. 55).
Fiquei me perguntando como são as campanhas em favor da
leitura em países onde ela é considerada uma prática habitual, onde
não há essa imagem de uma população majoritariamente não-leitora.
Ora, o personagem do filme que comentamos é um típico francês.
Um operário, um homem simples, do povo, mas que vive num
ambiente social que dá grande valor à cultura escrita e à leitura. O
filme mostra, assim, um olhar delicado para uma questão crucial:
as diferenças sociais e suas manifestações simbólicas. Se a campanha
brasileira que analisamos projeta como alvo crianças das classes po-
pulares que podem ser mais, que não são o suficiente, que podem
subir na escala social, quais seriam, por sua vez, as representações
imaginárias do público-alvo desse tipo de campanha na França?

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Figura 2. Campanha “Mon jornal offert” (2010).

Fonte: França / Ministério da Cultura e da Comunicação1

A campanha acima reproduzida é promovida pelo Ministério da


Cultura e da Comunicação francês e pelos principais jornais e revistas
do país visando “reconciliar” os jovens com a leitura da imprensa co-
tidiana tradicional. Certamente as campanhas brasileiras pela leitura
também têm o apoio de associações de livreiros e, por isso, uma
sustentação comercial. Mas esse aspecto é bastante mais marcado no
caso da campanha do “Mon jornal offert”, trata-se claramente de uma
publicidade, sustentada pelo governo, em favor de um tipo específico
de circulação de leitura. Por isso, o tema principal dos anúncios é
“Ofereça a ele uma verdadeira fonte de informação.” A questão é a
fidedignidade e o acesso a uma fonte confiável para a construção e
elaboração de conhecimento (e assinatura do jornal), não o gosto
pela leitura ou a transformação social. A publicidade é endereçada
aos pais por meio da interpelação dos filhos. A estrutura gramatical
dos enunciados é sempre: Seu filho pensa que x? Então, ofereça a ele
um de nossos periódicos (= verdadeira fonte de informação), sendo
x uma informação equivocada a respeito do assunto.

1 Tradução dos anúncios: 1.Seu filho pensa que o senado é um superpiloto de fórmula 1? 2. Seu
filho pensa que Francis Bacon é o rei do café da manhã? 3. Seu filho pensa que os acordos
de Schengen são acordes de guitarra? Ofereça a ela uma verdadeira fonte de informação.

90
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Por outro lado, sem esse apelo comercial tão marcado, uma
das mais importantes iniciativas governamentais francesas a res-
peito da leitura são as Actions culturelles contre les exclusions et les
ségrégations (A.C.C.E.S., acesso, em português). Trata-se de uma
associação criada em 1992 após um colóquio sobre aprendiza-
gem e prática de leitura na escola, organizado pelo Ministério da
Educação Nacional em 1979. A associação é atualmente presidida
por Marie Bonnafé, tendo sido sempre dirigida por psiquiatras
e psicanalistas2. À diferença das iniciativas brasileiras, esta não é
apenas uma campanha de sensibilização (ou de responsabilização),
são atividades sistemáticas e organizadas de formação, pesquisa,
acesso e difusão da leitura entendida como formadora não apenas
de vínculos sociais, mas também, e fundamentalmente, do psiquis-
mo. As ações são principalmente direcionadas a bebês e crianças
muito jovens com programas de formação e discussão tanto para
as famílias quanto para profissionais da educação. Em nenhum dos
materiais formulados pela A.C.C.E.S. estão diretamente expressas
e delimitadas as consequências da leitura. A prática social de ler é
tomada como uma aposta contra a exclusão e a segregação, como
um processo de criação de vínculos, como uma atuação social con-
junta. A leitura é, assim, uma forma de construir conexões subjetivas
e sociais – que pode ou não ter êxito, não ser a salvação, a única
saída, o passaporte para.
As diferenças de sentido entre as campanhas brasileiras e as
ações francesas mostram que a solução fácil, em princípio, de res-
ponsabilizar a leitura pelo sucesso ou pelo fracasso escolar e social
não encontra formas de efetivação, é repetida à exaustão porque, de
fato, não alcança os (impossíveis) resultados esperados. Nesse sentido,
podemos dizer que o grau de idealização a que a leitura está subme-
tida em nossa sociedade produz, no processo simbólico, o efeito do
funcionamento de sujeitos contraidentificados à leitura, produz o efeito
identificatório de um mau sujeito, ou seja, um sujeito da enunciação
(eu não gosto de ler) que se volta contra o sujeito universal (ler é
2 Conferir www.acces-lirabebe.fr, acesso em outubro de 2015.

91
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

fundamental), produzindo distanciamento, dúvida, contestação, luta


contra a evidência ideológica (PÊCHEUX, 1975/1997, p. 215-216).
Ora, o que, justamente, nosso desvio permite compreender é
que esse antagonismo (que possui a forma da contradição hegelia-
na: a negatividade, a Aufhebung, etc.) se manifesta, em realidade, no
interior da forma-sujeito, na medida em que o efeito daquilo que
definimos como o interdiscurso continua a determinar a identificação
ou a contraidentificação do sujeito com uma formação discursiva,
na qual a evidência do sentido lhe é fornecida, para que ele se ligue
a ela ou a rejeite (PÊCHEUX, 1975/1997, p. 2016).
Pêcheux compreende que identificação e contraidentificação são
faces do funcionamento do processo de interpelação3e, nos materiais
aqui analisados, possibilitam deslocamentos de sentido na construção
dessas duas posições. Quando Germain Chazes se identifica com a leitu-
ra é pela contraidentificação ao lugar de não-leitor que ele se identifica
diferentemente; ele funcionaria, então, no efeito de um mau sujeito. Já o
não-leitor pressuposto nas campanhas de incentivo à leitura brasileiras
é projetado, de saída, como uma forma-sujeito contraidentificada com
a leitura. E se ele continua não se identificando é por se dar o efeito do
bom sujeito aí posto: identificado com a contraidentificação.
Vemos, pois, que ser bom ou mau sujeito, a favor ou contra,
identificar-se ou resistir são faces do processo de subjetivação que se
constitui pelo estabelecimento de uma relação material irrecorrível com
a linguagem, com a sociedade e com a história. Inscrever-se em um ou
outro desses funcionamentos identificatórios é função da visada pela qual
se analisa o processo de construção da posição-sujeito em questão, isso
significa dizer que asserção e negação andam sempre juntas, imbricadas,
podendo se desdobrar de acordo com a direção que os sentidos tomam
em cada formulação. Não há, pois, modo de identificação essencialmente
bom ou mau. O sujeito ocupa posições no discurso que são, como diz
Pêcheux, projeções das formações discursivas e ideológicas. Essas posi-
3 A partir dessa consideração, Pêcheux irá propor um terceiro funcionamento, o da desidentifi-
cação ou de uma tomada de posição não-subjetiva, que será objeto da retificação de 1978:Só
há causa daquilo que falha ou o inverno político francês (PÊCHEUX, 1975/1997).

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

ções podem sempre ser outras, são uma e outras ao mesmo tempo, são
a morada da contradição, do não-um, da metáfora.

Palavras finais

As identificações e contraidentificações do não-leitor, no caso


de nossas análises, se constroem pela metaforização da negação: o
que o não significa em cada uma das posições-sujeito diante da leitura
é um desdobramento da formação ideológica que funda o sentido
de leitor. Nas duas cenas discursivas analisadas, se ser leitor é ser
perfeito e completo, o sujeito se contraidentifica justamente porque
o enrijecimento do lugar do leitor é o contrário da posição que a
leitura convida a ocupar enquanto efeito da letra, do simbólico, no
corpo do sujeito e dos sentidos.
Ao considerarmos que o sentido é uma questão aberta e que a
significação é uma injunção, admitimos que seus processos de produ-
ção se dão em diversos espaços, formas e materialidades igualmente
relevantes: não há primazia da leitura ou da escrita sobre qualquer
outro modo de significação. O sentido é algo próprio do simbólico,
isto é, da linguagem como um todo, como prática histórico-social de
construção de vínculos, analogias, homologias, diferenças. Assim, co-
locar numa das formas do simbólico (a leitura) a responsabilidade por
produzir mais sentido, melhores sentidos ou sentidos mais valorizados
é não só um equívoco, como também uma redução. Redução que se
explica em termos político-ideológicos e contra a qual, justamente,
o sujeito resiste quando se nega a ler ou quando aceita ler sob a con-
dição de reinventar essa prática, negando o lugar de não-leitor. Não
são, então, os processos de identificação ou a contraidentificação que
carregam em si posturas humanistas, mas a configuração das relações
discursivas. Aqui, identificação e contraidentificação denunciam
um engodo: na contramão do imaginário social, no fundo, sabemos
que a leitura não faz tantos milagres assim, que, na verdade, as de-
sigualdades são condições de existência da forma-social capitalista

93
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

e que elas não desaparecerão apenas porque alguém acede à cultura


escrita e domina os rituais do saber pela leitura. Se, nas palavras de
Orlandi (1996), “ler é saber que o sentido pode ser outro”, ser leitor
é se saber num lugar outro, diferente do projetado pelo imaginário
universalizante de que ler é fundamental. Ler é uma prática em meio
a outras e o sujeito que se nega a ler sabe disso; sabe que, da prática,
não há salvação e que, na prática, cada um resiste como pode.

Referências

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Orlandi. Campinas: Ed. Unicamp, 1992.
BECKER, Jean (dir.). Minhas tardes com Margueritte. França, 2010. Título
original: La tête en friche.
CALVET, Louis-Jean. Histoire de l’écriture. Paris: Pluriel, 2011 [1996].
COPES, Regina Janiaki; SAVELU, Esméria de Lourdes. Programas, projetos e
campanhas de incentivo à leitura: uma visão histórica. Anais do 16º COLE.
Associação de Leitura do Brasil, 2007.
FAILLA, Zoara (org.). Retratos da leitura no Brasil 3. São Paulo: Instituto
Pró-Livro/ Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012.
FEDATTO, Carolina P. Inconsciente e ideologianas formulações linguísticas do
conflito. Anais do VI Seminário de Pesquisas em Análise do Discurso.
Porto Alegre: UFRGS, 2013.
______. Um rio sem margens? O negativo e o nada na linguagem. Anais do
III Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito.
Niterói: UFF, 2014.
NANCY, Jean-Luc; LACOUE-LABARTHE, Philippe. O título da letra: uma
leitura de Lacan. Trad. Sérgio Joaquim de Almeida. São Paulo: Escuta,
1991 [1973].
ORLANDI, Eni P. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 2006 [1988].
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.
Trad. Eni Orlandi. Campinas: Unicamp, 1997 [1975].
______. Delimitações, inversões, deslocamentos.Trad. José Horta Nunes.
Cadernos de Estudos Linguísticos, n.º 19. Campinas, jul./dez.1990 [1982],
pp. 7-24.
SILVA, Mariza Viera da. História da alfabetização no Brasil: a constituição de
sentidos e do sujeito da escolarização. Tese de doutorado. Orientação
de Eni P. Orlandi. Campinas: IEL/Unicamp, 1998.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

SUJEITO/ESPAÇO/LÍNGUA E MEMÓRIA:
RELAÇÕES HISTÓRICAS
Águeda Aparecida da Cruz Borges
Universidade Federal do mato Grosso (UFMT)

A relação histórica densa entre as línguas interfere na cons-


tituição do sujeito de linguagem. A sua relação com os traços
da língua “apagada” é marcada pela memória de uma língua
silenciada. Ao mesmo tempo em que esses traços constituem o
sujeito no real da língua, eles constam como traços a serem
apagados, na medida em que é o português que o interpela
juridicamente, como a língua apropriada a seu estatuto de
cidadão brasileiro (M. O. Payer, 2006).
Resumo: Apresentamos reflexões e análises sobre o funcionamento
da memória e história na língua e seus efeitos de sentido. Entrelaça-
mos alguns ‘fios’ discursivos, por exemplo, sobre como os processos
de naturalização, oficialização, convenção e interdição da língua são
determinantes nas identificações do sujeito. No caso específico, o
enfoque é dado ao sujeito indígena Xavante. Para chegar ao recorte
desta análise, que é composto por sequências de uma monografia e
conversa com o autor (índio Xavante); sequências de conversa com um
cacique Xavante e sequências de notícias sobre a inauguração da Escola
Tatu (idealizada por professores índios Xavante da Aldeia São Marcos,
MT), percorri vários materiais e estudos, inclusive, que já publiquei.
Percebo que os Xavante resistem a uma história de apagamento da
língua própria, sustentando-a pela memória, pela história e, mesmo
interpelados pela língua do colonizador, vão no sentido de manter a sua
língua, a sua história, e conquistar a cidadania. Palavras-chave: Língua.
Memória. História. Subjetivação. Indígenas Xavante.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Poderíamos iniciar este texto de muitas maneiras, e lembramo-


nos de um artigo de Ferreira (2007), no qual a autora tece um tópico
intitulado: A metáfora da rede, que é por onde puxamos um fio para,
no geral, refletir e desenvolver algumas análises acerca da língua,
da memória, da história e os seus efeitos na manutenção da língua
Xavante, na região amazônica, considerando pelo viés do discurso
a relação entre língua própria e língua nacional/portuguesa. A au-
tora afirma que já se tornou lugar comum usar a expressão ‘tecido
discursivo’ ou ‘tessitura’ para falar-se de discurso e que é constante,
também, referirem-se os nós, os fios que se cruzam, se rompem,
abrem furos. Ela toma a noção de sistema para construir a metáfora:

Os fios que se encontram e se sustentam nos nós são


tão relevantes para o processo de fazer sentido, como
os furos, por onde a falta, a falha se deixam escoar. Se
não houvesse furos, estaríamos confrontados com a
completude do dizer, não havendo espaço para novos
e outros sentidos se formarem. A rede, como um
sistema, é um todo organizado, mas não fechado [...]
o impossível da língua, aquilo que falta e que resiste a
ser representado. A língua como o todo que comporta
em si o não-todo (2007, p.44).

E nós, seguimos questionando com base no exposto: se existem


várias línguas; se a língua é capaz de afetar e fazer sentir; se é capaz de
repetir, mas também de diferir; se ela não existe nunca na unidade, na
homogeneidade, na completude apesar dos processos de naturalização,
ou seja, se ao ser interpelado pela ideologia produz-se para o sujeito
o efeito de evidência e de unidade _ de que os sentidos se completam
no dizer, já que a ideologia produz esse processo de naturalização dos
sentidos _ como pensar a relação língua/memória/história/cultura/
cidadania tocando o Outro, a língua do Outro diferente de nós, no
caso proposto? Qual fio dessa rede discursiva nos permitiria entrar
nesse universo complexo?

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

É importante elucidar que, especificamente, os objetivos deste


texto são os de trazer algumas reflexões acerca de acontecimentos
na história dos Xavantes e avaliar o modo como tais acontecimentos
recaem sobre a língua intervindo no processo de identificação/subje-
tivação desse povo e na produção da resistência, também pela língua.
Consideramos importante situar geograficamente (ver mapa1 abai-
xo) as terras indígenas no Estado de Mato Grosso e, em particular, a Aldeia
São Marcos, a mais próxima de Barra do Garças-MT, cidade frequentada
por indígenas Xavante, onde trabalho e pesquiso (Borges, 2006) com
eles/sobre o processo de subjetivação/identificação no espaço urbano1.
Mapa 1 - Localização das Terras Indígenas Xavante em Mato Grosso
e Barra do Garças.

Fonte: Delgado (2010, p.39).

1 Sobre esse processo, conferir: Borges, A.A da C. “Da aldeia para a cidade: processos de
identificação/subjetivação do índio Xavante na cidade de Barra do Garças/MT, alteridade
irredutível?”. Campinas, SP: [s.n.], 2013. Orientadora: Mónica Graciela Zoppi-Fontana.
Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.
Unicamp.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Gráfico 1 - Fluxograma de cisões de aldeias na Terra Indígena São Marcos.

Fonte: Delgado (2008, p. 396).

A distribuição das aldeias recentemente sofreu transformações,


e frequentemente passa por novas alterações (ver fluxograma abai-
xo), como consequência de conflitos internos. Sobre estes, Delgado
(2010, p.39) diz:

O conflito político que teve início na aldeia São Marcos


se espalhou pela terra indígena homônima e atingiu
outras áreas Xavante. De mais a mais, o conflito
atingiu também a cidade de Barra do Garças,
alterando as formas de deslocamento, ado-
tadas pelas facções, da aldeia à cidade, bem
como o modo de ocupação do espaço urbano.

Vale enfatizar que, sob o nosso olhar, os “conflitos internos” são


consequentes das relações de contato com a sociedade ocidental, da
interpelação capitalista, desde a colonização (Borges, 2013), e este
fato afeta a língua, o que é o objeto de reflexão nesse artigo.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Um primeiro aspecto interessante a considerar para nossos


objetivos pode ser introduzido pela nomeação do espaço das aldeias.
O processo de nomeação não se dá aleatoriamente, ele resulta de
determinações ideológicas (Pêcheux, 1988; Orlandi, 1990; Gui-
marães, 2002). Não vamos analisá-lo detalhadamente aqui, apenas
chamar a atenção para o fato de que, por exemplo, na década de
1990, em meio à maioria de aldeias com nomes de santos, aparece
uma nomeação de uma aldeia como “Evangélica de Deus”. Ou seja,
alguma força diferente entra em vigor nesse processo, gerando novos/
outros conflitos. Assim, reitero, de outro modo, que os “conflitos
internos” nas aldeias são determinados por relações de força e de
poder que se deslocam para uma intervenção em relação à língua,
isto é, naturalizando-a _ embora, conforme nossa observação deste
acontecimento, a eficácia da dominação ideológica se imponha sobre
a imagem e o funcionamento da língua do Outro.
Na relação entre novas cisões, nomeação e discurso, conside-
remos, com Orlandi (2002, p. 20), que “[...] a materialidade dos
lugares dispõe a vida dos sujeitos e, ao mesmo tempo, a resistência
desses sujeitos constitui outras posições que vão materializar novos/
outros lugares, outras posições”. E além do processo de naturalização,
acerca da língua, é necessário levar em conta outros processos de sua
constituição, como o de oficialização, de convenção, de interdição,
determinantes no processo de identificação/subjetivação dos Xavan-
te. Esse povo, contrariando em parte, por exemplo, a imposição da
“educação” jesuítica e salesiana, tal como estudada por Albuquerque
(2007), mantém fluente a língua própria.
Assim, um fio do discurso que aí se mantém, sob o nosso pare-
cer, se explica pelo real da língua, onde há lugar para o “impossível”,
para o equívoco, para a elipse, para a falta, enfim, há lugar para a
deriva: “tudo não se diz, pois há um impossível próprio da língua”
(Milner, 1987, p. 6). Os autores de La Langue Introuvable (Gadet e
Pêcheux, 1984) trabalham as contradições no jogo do “universal” e
do “histórico”. Aqui, um jogo formado pelas línguas portuguesa e

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

dos Xavante. Os autores mostram como se idealiza um “universal”,


funcionando simultaneamente, segundo a figura jurídica do Direito
e segundo a figura biológica da Vida; uma igualdade ideal que cria,
pelo mesmo gesto, a desigualdade real. A língua do Direito – neste
caso, portuguesa – representa, na língua, “a maneira política de negar
a política” (Pêcheux, 1982). Foi assim no estado burguês, e pode-se
observar o mesmo movimento no estado capitalista e neoliberal:
“para se tornar cidadãos, os homens devem, pois, livrar-se
das particularidades históricas que os entrava: seus costu-
mes locais, suas concepções ancestrais, seus preconceitos e
sua língua materna” (Pêcheux e Gadet, 1981, p. 35, grifo nosso).
Além disso, o próprio modelo de igualdade é histórico, proje-
tado num tempo e num espaço definidos. Como diz Albuquerque
(2007)

O problema apontado pelos autores pode também


ser pensado no Brasil, por meio do processo de co-
lonização a que, durante séculos, os “índios” foram
submetidos. Em primeiro lugar, a própria expressão
“índios” é genérica, universaliza o específico, ignoran-
do as mais de mil etnias diferentes que aqui existiam
quando da chegada dos europeus (Ricardo, 1995); em
segundo lugar, pode-se pensar no papel das políticas
integracionistas (catequese, missionários, Serviço de
Proteção ao Índio – SPI – FUNAI...) que, ao longo
dos séculos de colonização, em nome da igualdade,
esforçavam-se por fazer os índios desaparecerem como
nações e como identidades na medida em que os pro-
cessos de educação contribuíram para a desvalorização
e, mesmo, para o desaparecimento de suas línguas, da
sua religião, dos seus costumes, de sua cultura (AL-
BUQUERQUE, 2007, p.33).

Trabalhando com povos indígenas do Rio Negro, que como


muitos outros povos, dentre eles os Xavante, foram catequizados
pelos salesianos, a autora escreve que nos internatos, crianças e

100
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

jovens que não entendessem o Português chegavam a ficar meses


sem ter com quem conversar, e outras que tentavam falar com
parentes em suas próprias línguas eram castigadas e humilhadas
carregando uma tabuleta no peito com os dizeres: “Eu não sei
Português”, e só se livravam desse castigo se “entregassem” outro
colega que cometesse a mesma “falta”. Trata-se de uma prática de
língua que fazia calar uma subjetividade, produzindo outra.Tem-se
aí, também, a visibilidade das políticas do silenciamento adotada
pelos salesianos, pois como afirma Orlandi (1997), “o dizer e o
silenciamento são inseparáveis” (p.76), ou seja, é a política da “in-
terdição do dizer“ (idem, ibidem): “proíbem-se certas palavras para
proibir certos sentidos” (idem, p.78).
Produz-se, assim, uma humanidade idêntica e identificada,
regulada em suas posições e seus fluxos, em uma língua única,
legítima, feita de conceitos bem definidos e de significados
estáveis, um nome para cada coisa e uma coisa para cada nome
(ALBUQUERQUE, p. 272 – grifo nosso). Diferente, no entanto
lidando com a problemática da interdição da língua, Payer, na sua
tese de doutorado (1999), e em estudos posteriores (2005, 2006,
2007), discute a tensão entre a língua nacional e a língua materna, na
história e na subjetividade, em relação aos imigrantes (italianos). A
autora escreve que o que se produziu na história desses imigrantes, no
interior da sociedade nacional brasileira, e que funciona, ainda hoje,
em sua prática de linguagem com especial efeito nos processos de
identificação, é resultante de uma forte tensão entre a língua nacio-
nal e a língua materna. Em linhas gerais, participam desta tensão as
imagens ligadas à questão da nacionalidade e da interdição da língua;
do modo como a autora nos diz, quando se interdita uma língua, a
memória também é interditada e esse processo “incide justamente na
constituição do sujeito”. Ela afirma: “A língua, em seu modo especí-
fico de inscrição na história e de existência material, pela memória
discursiva que a acompanha, é um material inseparável do sujeito
que ela constitui” (PAYER, 2006, p. 12).

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

É fundamental redizer sobre a questão da imposição de uma


língua outra para os povos indígenas, principalmente, no sistema de
internatos pelos jesuítas e salesianos, com o objetivo da catequese,
mas, também, pelas interferências do Estado no contato, no passado,
e funcionando ainda no presente. No Brasil, essa política funciona
desde a colonização (Orlandi, 1990), tendo sido formalizada com
o Diretório dos Índios, quando se impôs o português na escola
brasileira: “sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas
as nações (...) introduzir logo nos povos conquistados seu próprio
idioma” (MARIANI, 2004, p. 28). Essa era a condição para se tornar
civilizado, ser cidadão do Império, depois do Estado brasileiro. Ou
seja, para deixar de ser índio era necessário abandonar, esquecer a
língua materna e aprender a língua do colonizador.
Ao interditar palavras, conhecimentos e história são interdita-
dos. Busco, novamente, Michel Pêcheux2 ao afirmar que a produção
histórica de conhecimentos não resulta de um mero ato de inovar
mentalidades ou de uma criação imaginativa do homem; ela é efeito
de todo um processo histórico. E assim, os conceitos de uma dada
ciência não possuem exatamente um sentido, mas antes uma dada
“função em um processo” (idem, p.193). Segundo o autor, “vão se
formando ‘respostas’ novas a questões que não haviam sido coloca-
das”, processo esse em que certos “nomes e expressões se apagam”,
ao passo que outros “aparecem sob o efeito de certos deslocamentos
do campo, de certas intrusões ‘incongruentes’ de elementos ‘lança-
dos’, desligados-caídos de outros lugares” (idem, p.194). No caso dos
Xavante, conhecimentos foram suprimidos, com a língua, e restam
como franjas na memória discursiva.
Um fator preponderante para subsidiar a nossa exposição toca
à questão do que dessa memória subsiste na oralidade. Payer (2005)
chama a atenção para a necessidade de se olhar além da dimensão
eminentemente empírica que se imprime ao tratamento da orali-
dade, quando há dados orais coletados na pesquisa de campo. Na
2 Les Vérités de La Palice (1975, ed. bras. Semântica e Discurso, 1988).

102
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

orientação discursiva, esses dados precisam ser tratados como fatos


discursivos, já que os discursos que se encontram na oralidade são, também,
historicamente produzidos. Ou seja, não é aleatoriamente que certos
discursos se encontram na oralidade, por exemplo, no caso de “dados”
de povos indígenas constituídos de uma memória oral e não escrita.
Nas palavras de Payer:

Trabalhando teoricamente com o fato de que a ora-


lidade é historicamente produzida, entendemos a
oralidade como um lugar sócio-histórico de produção e de
circulação de sentidos, uma vez que os discursos que aí se
produzem e circulam encontram-se envolvidos, como
materialidade lingüístico-discursiva oral, nos embates
das práticas discursivas - entre elas, a da escritura – que
se conflitam na sociedade (idem, p.47).

Além disso, um segundo aspecto a se atentar são algumas ilusões


que acompanham a noção de resgate da memória. Ao invés de pensar
(ilusoriamente) em uma memória com um conteúdo que “já está
lá”, pronto para ser resgatado, Payer diz que há que se considerar as
condições de produção do retorno atual dos conteúdos dessa me-
mória histórica na dinâmica social. Há certas condições em que o
retorno da memória é possível, mas há também condições em que
o esquecimento, necessário ou imposto – e é imprescindível pensar
nessa imposição, no caso de indígenas, desde a colonização – atinge
o conteúdo da memória, obscurecendo-o ou transformando-o de
um modo incontornável, e o que se poderá dizer dessa memória não
coincidirá com um conteúdo que “já está lá”.
De fato, as condições de produção constituem os discursos, e
na relação de forças, diz Orlandi (1999, p.39), “o lugar a partir do
qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz”. Portanto, os senti-
dos, nessa perspectiva, resultam de relações. Daí a importância de
se considerar a relação entre a oralidade e a escrita. Sobre condições
de produção e oralidade Payer (2005, p.48) diz:

103
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Se estudamos a oralidade como uma prática discursi-


va, considerando as suas condições de produção
(grifo meu), os seus sujeitos e a natureza discursiva da
memória que nela se produz e circula, então podemos
compreender a oralidade em uma dimensão que vai
bem além da diferença empírica.

Nessa perspectiva, antes mesmo de apresentar os materiais


recortados para a presente análise, considero importante ainda rea-
firmar, de outro modo, algumas observações sobre o trabalho com
“dados” de línguas indígenas. Esses materiais apresentam aspectos
linguísticos que os singularizam, e que se constituem em pistas que
nos possibilitam refletir sobre a sociedade que os engendrou. A par-
tir dessas marcas é possível entender os valores, os desejos que, de
certo modo, organizam e sustentam as sociedades indígenas e, em
específico, a sociedade Xavante.
Vejamos o que relata Siridiwê (2010) em seu estudo sobre essa
sociedade:

Há mais de sessenta anos atrás, o grande líder Xavante


Ahöpow já pressentia por meio do sonho, a chegada
de invasores em nossas terras e ele pensou que o
Xavante deveria estabelecer contato e, assim, armar
uma nova estratégia de sobrevivência. Essa estratégia
consistia em enviar oito meninos para serem criados
na cidade para entender a forma de pensar e de viver
dos Waradzú, como eram chamados os não índios [...]
sendo eu um desses meninos... (SIRIDIWÊ, 2010)3.

Conforme este estudo, os Xavante creem no sonho, e a partir


deles é que muito da vida desse povo é organizado. Conforme lemos
no relato, para o líder Ahöpow era necessário criar uma alternativa para
escapar dos invasores. Já que esses estavam se apoderando do espaço
3 Jurandir Siridiwê Xavante, liderança da aldeia Etẽnheritipa, da Terra Indígena Pimentel
Barbosa (MT), é contador de histórias e dirige o Ideti. Escreveu o artigo: “Pelo protagonismo
indígena” para a Revista Caros Amigos - Especial Indígena, Ano XIV, Nº 51, outubro de
2010.

104
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

indígena, a estratégia seria conhecer o terreno, o espaço do invasor, para


compreendê-lo, e assim as oito crianças foram mandadas para a cidade.
Enquanto os povos indígenas, ao longo da história, vem crian-
do formas de resistência em relação ao contato, que resulta quase
sempre vantajoso para o não indígena, outras estratégias, traçadas a
partir de outras posições, por exemplo, a da letra _ do documento,
da escrita, da lei _, que é o modo de ordenar a sociedade ocidental,
foram/vão sendo traçadas por/para eles.
Tais procedimentos não se dão sem a escrita, prática ocidental
determinante das relações, inclusive de cidadania. Se o intuito de
protegê-los era o de levá-los à civilização, isso implica introduzi-
los no mundo da escrita. E os Xavante perceberam, muito bem,
esse movimento, antecipando-se a ele, como lemos remontando
ao que disse Siridiwê, e pensando que a relação entre os sujeitos é
uma relação entre línguas enredando os processos “de identificação
e contra-identificação coletivas ou individuais quanto às línguas:
relações de apegos e de afastamentos; de reconhecimentos e recu-
sas; de orgulho e menosprezo, denegação” (PAYER, 2013, p. 94).
E a essas relações acrescentamos a de conhecimento, da própria
língua e da língua do outro. Como diz um sujeito Xavante, “(...)
pois nesta pesquisa enriqueci e aprofundei bastante o conhecimento
sobre a nossa língua...”; De acordo com o cacique, é importante
saber a língua do outro para combater a intolerância e o precon-
ceito, e para se tornar cidadãos: “para combater a intolerância e o
preconceito com nós indígenas pois na Constituição Federal diz lá
que todos são cidadão”4.
Os processos da identificação entre o sujeito e a(s) língua(s) en-
volvem a interpretação das línguas, como formula Payer (2014, p.94):

Daí podermos dizer que as línguas não são por si


mesmas maternas, estrangeiras ou nacionais, ou línguas
de imigrantes, ou inimigas, mas elas o são relativamente

4 Recortes extraídos de sequências discursivas analisadas adiante.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

a um modo de interpretação, que se dá no seio de uma


conjuntura. E esses modos de interpretação, sempre
ligados a processos ideológicos, vão sedimentando
certas imagens (e também certos imaginários) sobre
as línguas, sobre as formas materiais. Língua erudita,
culta, literária ou língua das elites, da escola. Língua
popular ou corruptela. Línguas indígenas, mas também
língua de índio (...) e assim por diante.

Para refletir sobre esses aspectos tão relevantes, em relação


à situação dos Xavante, e a fim de ampliar a discussão, trazemos
adiante algumas sequências discursivas do que pesquisou/escreveu
Máximo Uratsé Tsi’õmowê, indígena Xavante, na sua Monografia5,
a qual tivemos o prazer de orientar na UFMT-Campus Araguaia; e
outras sequências discursivas encontradas em meu trabalho: de uma
conversa que tive com o Cacique Raimundo Urebete Aírero, Xavan-
te da Aldeia São Marcos por ocasião da pesquisa que desenvolvi no
doutorado; uma sequência sobre a “Escola Tatu” (Iró’ Órãpe)6, também
citada por Tsi’õmowê e comentada em nossas conversas, e uma sequ-
ência extraída de uma notícia sobre a inauguração da referida escola.
Identifico as sequências discursivas do texto de Máximo Tsi’õmowê
por (M), do cacique por (R) e da notícia por (N)7.

(M) Após deste contato, houve bastantes mudanças


também na Língua Xavante, isso ocorreu através, de
novos conhecimentos, que significa o povo Xavan-
te, os jovens começaram ingressar nas escolas
públicas da cidade, então, eles mudaram vários nomes
de objetos e fizeram bastantes traduções das palavras
de língua portuguesa para Língua Xavante. En-
5 Monografia defendida por Máximo Uratsé Tsi’õmowê, no Curso de Pós-Graduação lato
sensu - DIMESI, CUA/UFMT, sob a minha orientação, em 2008.
6 Uma primeira inserção analítica desse material foi publicada sob o título: “Língua e memó-
ria: efeitos de sentido na manutenção da cultura”, Revista Ecos – Literaturas e Linguísticas.
(Org.) SILVA, A. R., do Centro de Pesquisa em literatura e do Programa de Pós-Graduação
em Estudos Literários. Cáceres-MT: Unemat Editora. ISSN 1806-0331. Vol.12, Ano 09, nº
01(2012).
7 Disponível em <http://www.seppir.gov.br/noticias/ultimas_noticias/2007/09/MySQLNoti-
cia.2007-09-05.3914>. Acesso em dezembro de 2012.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

tão, muitas palavras não estão sendo cessados, mas


passadas no conhecimento atual, somente os
anciões usam ainda estas palavras antigas. (...) A
pesquisa foi muito difícil, mas consegui chegar no fim e
valeu a pena, é a minha grande vontade de utopia,
desde o inicio de ingressar na escola, pois nesta
pesquisa enriqueci e aprofundei bastante o conheci-
mento sobre a nossa língua (...) E quero lutar
pela nossa cidadania. (...) Quero deixar registrado
aquilo que foi contado, para não perdemos a nossa rea-
lidade lingüísticas. Nos professores mesmo temos
que deixar na escrita, antes dos nossos anciões
morrerem, porque o conhecimento milenar dos
velhos é o nosso papel muito longa...(...) Durante os
anos, nós professores lutamos bastante para a nossa
escola seja reconhecia e mudar para a escola própria
do povo Xavante da comunidade de nossa aldeia,
de nossa realidade, de nossa língua.(...) Em 2006,
o nosso povo recebeu uma escola no formato de tatu,
única escola no pais foi construída na forma de animal.
A língua falada entre os Xavante é macro-jê, o
português só se fala com os brancos. (Tsi’õmowê
2004, p. 23, 32, 33) (sic).

(R) A escola é o fortalecimento vivo da cultura,


para os jovens aprendem a valorizar o povo e falar
a língua. (...) o povo Xavante resolveu fazer a escola
para também a troca de culturas com outras etnias,
conhecendo as expressões culturais que fazem parte da
cultura, para falar também da população brasileira e de
outros países, (...) para combater a intolerância e
o preconceito com nós indígenas, pois na Cons-
tituição Federal diz lá que todos são cidadão.

(N) A escola xavante tem o propósito de pre-


servar a identidade e cultura do seu povo.
Segundo os princípios da aldeia, o professor precisa
trabalhar com energia e força de um tatu, que é um
caçador forte, guerreiro nato.

107
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

É importante dizer que o trabalho de M.Tsi’õmowê (2008) teve


o intuito de identificar mudanças ocorridas na língua Xavante em
quatro (04) aldeias Xavante e que a filiação teórica foi Sociolinguística.
Ele não analisa detalhadamente o porquê das mudanças, mas aponta
alguns indícios, como, por exemplo, o fato de que maior número de
palavras da Língua Portuguesa já incorporadas ao vocabulário Xavante
se dá na Aldeia Sangradouro, onde fica a Missão Salesiana, sendo uma
das mais próximas da cidade. Adiante apresentaremos dois quadros
como exemplificação, resultados da sua pesquisa. O primeiro mostra
as diferentes mudanças linguísticas no uso da língua pelos falantes
das 04 aldeias, e o segundo traz uma lista de palavras e de objetos
novos _ sendo que as palavras vão sendo criadas quando aparece
um objeto para o qual não se tem um signo. O autor considerou
vários critérios, dentre eles: a proximidade da cidade e o ingresso
dos jovens nas escolas públicas da cidade.
Quadro 1- Diferenças linguísticas no vocabulário de falantes de 04 aldeias Xavante
em Barra do Garças, MT.

PORTUGUÊS 1-SÃO MARCOS 2-PIMENTEL 3-SANGRADOURO 4-KULUENE


BARBOSA

GATO Miore Nho’rônire Gato Tsiwire

CALÇA Da’udzadöhipa Da’udzadö Dapzapa Da’udzarö

CADEIRA Wedehöbö Tsônhipada Cadeira Wedwdza

OLEO DE SOJA Îwa Ore Datsa-waipodzé Îwa

LÁPIS Îpró Rowawidzé Lápis Wepepróhi

CABAÇA Umrê Mãdu Umrê Manomoné

ARROZ Atsaro Aptó’rã Atsaró Aro

CHEFE OU Danhim-îhö’a Pama îpire Danhim-îhö’a Apito


ENTIDADE

LARANJA Wede’rã-udzé Uwai’re-wawê Laranja Utötsiri

Fonte: Monografia de Monografia de Máximo Uratsé Tsi’õmowê, 2008, UFMT.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Mesmo não sabendo a língua dos Xavante, é possível perceber,


na materialidade discursiva, as diferenças na produção da escrita do
vocabulário selecionado por M.Tsi’õmowê, que, de certa forma, ele
próprio reformula no seu texto, por: Então, muitas palavras não
estão sendo cessados, mas passadas no conhecimento atual,
somente os anciões usam ainda estas palavras antigas. O
que podemos interpretar desse enunciado é que a língua, qualquer
língua, é dinâmica, e muda de acordo com as condições de produção.
A língua não se torna outra, mas atualiza, não cessa, vai incorporan-
do conhecimentos novos. Esse discurso tem a ver, também, com o
movimento, principalmente dos jovens, entre a aldeia e a cidade,
uma vez que, como aponta o autor, somente os anciões usam ainda
certas palavras antigas, conforme o segundo quadro.
Quadro 2: Algumas palavras ditas por anciãos e por jovens.

Língua XAVANTE ANTIGA Língua XAVANTE HOJE LINGUA PORTUGUESA


Anciãos Jovens

Aptomrîrõ Uhö’böiwa Vela

Waradzupzaribi Höiwi Avião

Tsiúwadziwada Robpuridza’é Bicicleta

Utä’uwatiné Tãiwi Pá

Arobopaihiné Da’ubtsidbidzé Guarda-chuva

Robhurimr~eme Robhörödzadzé Gravador

Abapsidzé Abanhidzé Mala

Pidzaiba Pidza’a Panela

Fonte: Idem

Um fato interessante para se pensar é que mesmo os vocábulos


relativos ao que Tsi’õmowê designa de Objetos Novos são materiali-
zados na Língua dos Xavante, na escrita de M. Essa escrita se reveste
de uma densidade própria, dadas as condições de produção – e por
isso mesmo essa escrita constitui um fato discursivo nesta análise.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Caso não houvesse uma história de significação, desejo e resistência


pela língua, esses vocábulos poderiam ser interpretados simplesmente
como incorporados da Língua Portuguesa para a Língua Xavante, o
que, entretanto não foi o que ocorreu. Além disso, ouvi de um ancião
Xavante que os jovens não estão falando como os antigos, que eles
estão mudando a língua, inventando outra língua. Pergunto-me se
essa língua inventada não é mais um espaço de resistência para fazer
perdurar a língua própria, e que, por isso mesmo, não poderia, sem
abrir outras questões, ser designada materna.
Retomando o recorte, para o nosso interesse, o trabalho de M,
com sua escrita, deixa marcas que nos possibilitam compreender a
força e o desejo da língua no processo de resistência por ela, no
funcionamento da memória. É na Língua Portuguesa que M materia-
liza, como sujeito xavante e autor do trabalho, o seu desejo em nome
dos professores e do povo Xavante: nós professores lutamos,
para a escola própria do povo Xavante da comunidade de
nossa aldeia, de nossa realidade. Mas é o desejo de manutenção
da língua do povo que fica inscrito nas considerações do seu trabalho:
minha vontade e utopia, nossa realidade linguística, deixar
na escrita antes dos nossos anciões morrerem. Interpretamos
que o saber da língua Xavante é representado como dos anciões: so-
mente os anciões usam ainda estas palavras antigas, e que a
escrita é um instrumento para manter a língua: temos que deixar
na escrita, antes dos nossos anciões morrerem. Sabemos que a
escrita (alfabética) é própria da sociedade ocidental e está diretamente
vinculada à escola, ou seja, podemos compreender como há aí uma
inscrição do sujeito indígena Xavante na Formação Discursiva do
discurso ocidental acerca da escola/escrita para reafirmar o discurso
indígena. Retornaremos a essa questão.
Passemos ao recorte sobre a luta pela “Escola Tatu” como espaço
para o exercício da língua própria: mudar para a escola própria
do povo Xavante da comunidade de nossa aldeia, de nossa
realidade, de nossa língua, como pode ser conferido no recor-

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

te, imprime na reformulação do cacique (R) a preocupação com


o enfraquecimento da cultura e perda da língua e, assim,
indica a importância da escola Tatu como espaço físico e simbólico
de resistência da língua, da cultura.
Nesse ponto, para trazer a importância da relação língua/
cultura/escrita, busco sustentação no trabalho sobre a língua dos
Apyãwa-Tapirapé, publicado por Paula (2014), autora que tem
uma vida junto aos Tapirapé, com conhecimento da língua e acom-
panhamento do processo escolar ocidental desse povo, desde a sua
implementação nas aldeias, que funciona do mesmo modo para os
demais povos indígenas.

Em relação à língua, constatamos que a decisão inicial


a respeito do lugar da língua indígena nas atividades
escolares repercute até hoje nas duas escolas estaduais
instaladas entre os Apyãwa. Os trabalhos da primeira
fase do ensino fundamental são efetuados em Tapira-
pé e, a partir do 5º ano, é introduzido o Português.
Há uma disciplina dedicada à língua tapirapé nos
anos seguintes do Ensino Fundamental e também no
ensino médio. Em relação ao processo de aquisição
da escrita, chegamos a uma hipótese extremamente
singular durante pesquisa efetuada entre 1998 a 2001
(cf. PAULA, 2001). Os Apyãwa possuem uma notável
tradição em pinturas corporais usadas como marcas
distintivas dos gêneros, das faixas etárias e da posição
social das pessoas ao longo de suas vidas. As crianças
apyãwa entrelaçam motivos gráficos próprios da
cultura, bem como suas regras de aplicação com os
grafemas da escrita alfabética. Esse fato mostra, por
um lado, o quanto a escrita ideográfica é significativa
dentro do universo cultural deles, a ponto de marcar
uma nova forma de escrita necessária após o contato
e mostra também a profundidade do princípio preco-
nizado pela CF/88: a de que os processos próprios de
aprendizagem dos povos indígenas sejam considerados
na escolarização. A palavra usada para escrita é kwa-

111
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

xiãra, idêntica à usada para se referir aos elaborados


desenhos geométricos aplicados sobre os corpos. A
palavra para escola éxema’eãwa a mesma palavra que
designa a arte de fazer jogos com cordéis, dos quais
os Apyãwa possuem uma rica coleção (Paula e Gouvêa
de Paula apud PAULA 2014, p.76).

A autora considera que o trabalho escolar assim desenvolvido


tem contribuído decisivamente para a vitalidade da língua que é
falada, até hoje, por todos os Apyãwa, opinião compartilhada por
professores apyãwa, que fazem tal afirmação no vídeo “Fazendo Escola
– Xema’eãwa” (2007)8. Contudo, não se pode desconhecer a enorme
pressão exercida pela língua portuguesa, revelada por um grande
número de inserções de itens lexicais na forma de code switching
(mudança de código) no Tapirapé falado tanto por jovens como por
adultos, como aponta Gouvêa de Paula (2001).
Por ocasião da inauguração da referida escola, esteve presente
a ministra da Secretaria Especial de Política da Promoção da Igual-
dade Racial, Matilde Ribeiro. O Jornal “A Gazeta do Vale” fez uma
reportagem ilustrada (foto da “Escola Tatu” abaixo) sobre o evento, na
qual se destaca a fala da ministra, cuja análise aqui serve para ampliar
a reflexão em torno dessa relação entre sujeito, língua, memória,
escrita. Tomaremos a escrita da história desse acontecimento discursivo
como mais um fio da rede discursiva tecida em diversas materialida-
des, que vão determinando o processo de identificação/subjetivação
do povo Xavante, sob o nosso olhar:

8 Este vídeo foi realizado pela TV Escola do MEC e transmitido em rede nacional, por vários
meses, durante os anos de 2007 e 2008.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Imagem 1: Foto da Escola Tatu

Fonte: Jornal Gazeta do Vale. http://www.agazetadovale.com.br . Acesso em 2010.

Tomemos um recorte da notícia9.

A ministra da Secretaria Especial de Política da Promo-


ção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, (na ocasião)
também participou da inauguração da Escola Munici-
pal de Ensino Fundamental “Tatu Escola” (Iró’Órãpe)
efetivada pelo prefeito Zózimo Chaparral. Em sua fala
às autoridades e comunidade indígena local a ministra
conclamou que estava ali para “celebrar a vida de
um povo que nos ensinou a ser brasileiros”. (...)
Matilde Ribeiro disse que também faz parte daqueles
“que foram oprimidos e desrespeitados.” Ela lembrou
que desde os primórdios de nossa história que índios
e negros nada significavam diante do olhar europeu,
“éramos apenas um valor de trabalho”. (...)
Encantada com a escola que tem o formato de tatu,
a ministra disse que sua inauguração “resgata em
parte a história desse povo, a outra história
que não foi contada, a de sua resistência, a dos
que sobreviveram ao saqueamento”.
9 Disponível em <http://www.agazetadovale.com.br/?Pg=Noticia&Noticia=1190>. Acesso
em julho de 2010. Grifo meu.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Dessa sequência discursiva queremos trazer para nossa discussão


a sua heterogeneidade discursiva, ou seja, o modo como um
discurso é atravessado pelo discurso do outro ou por outros discursos
“que podem manter entre si relações de contradição, de domina-
ção, de confronto, de aliança e/ou de complementação”, segundo
Authier-Revuz (2000)10. Esse funcionamento apresenta o princípio
da heterogeneidade da/na linguagem na sua constituição e na sua
enunciação. Ele não representa propriamente a polifonia, pois não
se restringe ao reconhecimento de outras vozes no discurso, como
tratou Bakhtin. A noção de heterogeneidade dá uma visualização ao
interdiscurso, o exterior constitutivo que dá condições para a cons-
trução do discurso, num processo de reelaboração que comporta a
historicidade inscrita nos processos discursivos11.
Na sequência discursiva da matéria do jornal, que destaca al-
guns pontos através de aspas deixando mostrar a fala da ministra,
há uma dispersão do sujeito no discurso, que se inscreve na posição
enunciativa de ministra (que estava ali para “celebrar a vida de
um povo que nos ensinou a ser brasileiros”) e que naquelas
condições de produção, da inauguração da “Escola Tatu”, apropria-se
do discurso religioso para celebrar o acontecimento, e que exalta
genericamente os povos indígenas como um povo (olhar ocidental),
de um lado e totalizando os brasileiros de outro (olhar da unidade
nacional). E ainda, paradoxalmente, inclui-se no discurso que diz
nos ensinou a ser brasileiros, fração de brasileiros que aprende
com os povos indígenas.

10 Anotações da Conferência feita por Jaqueline Authier Revuz, no I Encontro Nacional de


Linguagem, História e Cultura-ENALIHC, na UNEMAT, em Cáceres-MT, 2000.
11 Para verificar o funcionamento dessa noção na prática analítica, Authier-Revuz (1998)
apresenta duas formas de heterogeneidade: constitutiva e mostrada. A primeira não se apre-
senta na organização linear do discurso, visto que a alteridade não é revelada, permanece no
interdiscurso e, por isso mesmo, não é passível de ser analisada. A segunda traz marcas da
presença do outro na cadeia discursiva, ou seja, a alteridade se manifesta ao longo do discurso
e pode ser recuperada de maneira explícita através da análise. A heterogeneidade mostrada,
segundo a autora, pode ser ainda marcada e não-marcada. Quando for marcada, é da ordem
da enunciação, visível na materialidade linguística, como, por exemplo, o discurso direto, as
palavras entre aspas. Se for não-marcada, então, é da ordem do discurso, sem visibilidade,
como o discurso indireto livre e a ironia.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Por essa heterogeneidade, podemos entrar em contato com


a multiplicidade de lugares e olhares/dizeres que entram em cena
quando se trata da “questão indígena” no Brasil. Visualiza-se um dis-
curso em que se reconhece uma brasilidade indígena, a qual aparece
como saber, conhecimento a ser aprendido, detido por indígenas, um
povo nos ensinou a ser brasileiros. Contudo, nesse discurso,
mesmo que se tenha aprendido a ser brasileiro com um povo, esse
um povo produz efeitos de sentido de um índio genérico, ou seja,
que sabe e nos ensinou a ser brasileiros, mas é índio. Mais à
frente, na sequência, em éramos apenas um valor de trabalho,
a ministra se inscreve, pelo pronome nós elíptico identificado na
temporalidade verbal (éramos), num discurso sócio-político mar-
xista, quando retoma a questão da força de trabalho no enunciado que
reduz o sujeito ao valor de trabalho, e nessa inscrição discursiva
já não distingue índios e brasileiros. Para os efeitos desta análise, é
relevante lembrar ainda que a ministra é negra, e sendo assim, os
sentidos produzidos pelas condições de produção deslocam-se para
trabalho escravo, o nós elíptico podendo passar a ter o sentido pre-
enchido não mais por índios e brasileiros, mas por índios e negros,
na relação de sentidos com brancos.
Dando seguimento à análise do que liga essa heterogeneidade
ao processo discursivo, percebemos que há outro deslocamento
significativo na posição de sujeito no dizer da ministra, o qual, no
presente do acontecimento, se inscreve num ‘discurso sobre’ para
dizer do momento histórico da inauguração: resgata em parte a
história desse povo, a outra história que não foi contada, a
de sua resistência, a dos que sobreviveram ao saqueamen-
to. O acontecimento discursivo (inauguração da “Escola Tatu”) resgata
em parte a história ao enunciar a outra história (a outra que
não foi contada, ou seja, a da resistência) desse povo. Ao
dizer desse povo a ministra entra no discurso sobre e materializa na
linguagem a contradição dispersa nas posições que vai ocupando no
discurso mostrado.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Essa reflexão nos ajuda a pensar na interpelação do sujeito índio


Xavante pelos discursos da sociedade ocidental. E contribui para a
compreensão dos recortes de (M), (R) e (N) no tocante ao interesse
dos Xavante por um espaço escolar, mas diferente na estrutura – com
a densidade simbólica que essa expressão pode ter. Interpretamos essa
diferença também como uma forma de heterogeneidade mostrada
nessa materialidade outra (marca simbólica do Tatu, animal ligado
à espiritualidade Xavante) que imprime a diferença em relação à
arquitetura dos prédios das escolas urbanas e inscreve-se, e à escola,
em uma nova discursividade. Assim, mudar para a escola própria
do povo Xavante da comunidade de nossa aldeia, de nossa
realidade, de nossa língua indica um meio para a manutenção
tanto da língua quanto da cultura.
Historicamente, sabemos que a educação indígena acontece na
relação de aprendizagem com os mais velhos, no âmbito da organi-
zação familiar de tradição oral. Interpretamos, nesse recorte, a força
do discurso urbano/jurídico interpelando o sujeito a se identificar/
subjetivar no/pelo modo ocidental de aprender, conforme materia-
lizado nas sequências recortadas da monografia de Máximo (M) de
um modo e, do mesmo modo diferente, entendido como paráfrase na
fala do Cacique Raimundo (R).

(M) minha grande vontade de utopia, desde o inicio de ingressar


na escola (...) aprofundei bastante o conhecimento sobre a nossa língua
(...) e lutar pela cidadania (...) mudar para a escola própria do
povo Xavante da comunidade de nossa aldeia, de nossa reali-
dade, de nossa língua.

(R) A escola é o fortalecimento vivo da nossa cultura, lá as


crianças e jovens aprendem a valorizar o povo e falar a língua,
como meio de combater a intolerância e o preconceito com
nós indígenas, pois na Constituição Federal diz que todos são
cidadão.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Para entrelaçar mais um fio dessa meada discursiva, buscamos


Orlandi (2002) quando a autora analisa que pelo falar da língua e do
conhecimento sobre ela é possível compreender a formação de uma
ideia de cidadão e de um projeto para que essa ideia se realize. É no
lugar em que se tocam a escola, a língua e a cidadania que nos
detemos: “vemos aí a escola claramente ligada à organização social,
em que os índios e os brancos não estão categoricamente
separados” (ORLANDI, idem, p. 223, grifo meu).
Os sentidos de escola de que nos falam (M) e (R) se materializam
como a grande vontade de utopia da nossa língua, nossa realidade,
nossa cultura (M) e A escola é o fortalecimento vivo da nossa cultura,
lá as crianças e jovens aprendem a valorizar o povo e falar a língua
(R), ou seja, a escola é o lugar da possibilidade de manutenção/
valorização da língua, da realidade, da cultura, pela escrita: temos
que deixar na escrita, antes dos nossos anciões morrerem, porque
o conhecimento milenar dos velhos é o nosso papel. Além disso, é
importante observar a inscrição do sujeito nesse discurso pelo prono-
me plural nossa, assinalando que o desejo da escola própria do povo
Xavante é o desejo do povo indígena, nós indígenas. Essa “tomada de
posição” coletiva é característica reiterada no discurso indígena, e na
voz indígena ecoa a voz do povo indígena, geralmente acompanhada
do nome da etnia, sendo raridade se dizerem individualmente.
O segundo aspecto que se ressalta nas sequências discursivas
toca à cidadania. A escola representa a luta para se tornar cidadão.
No movimento em que se dá o processo discursivo observamos, nas
sequências discursivas em análise, a luta pela cidadania (se há uma
luta para o sujeito ser cidadão implica que ainda não o é, é preciso
lutar para se tornar cidadão, embora a Constituição Federal diga que
todos são cidadão (sic) (R).
O discurso impresso nas sequências é atravessado, de um lado,
pela voz dos movimentos sociais, reconhecida nas palavras luta em
(M) e combate em (R), e de outro lado pelo discurso jurídico: na
Constituição Federal diz todos é cidadão. Vemos aí o efeito da in-

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

terpelação ideológica que possibilita interpretar, como diz Orlandi


(idem), que “índios e brancos não estão separados categoricamente”.
Além disso, vale retomar a análise dessa autora (idem) sobre
ser “o cidadão um lugar sempre a ser preenchido”. Sua análise indica
este funcionamento em uma propaganda política, na TV, na qual se
diz: “É preciso respeitar o direito à educação, para transformar as
crianças em cidadão”. Enunciado aparentado, em termos de formação
discursiva, a “toda criança na escola”.Vejamos como a autora formula:

No Brasil, mesmo que o Estado já se tenha constitu-


ído formalmente há mais de um século, não se nasce
cidadão. (...) Essa tarefa – de transformação e não de
direito – “virar cidadão” – fica para a educação, ou seja,
é uma questão pedagógica que pode, ou não atingir
o sujeito social brasileiro. O que me leva a afirmar
que não temos em nossa história lugar efetivo que
corresponda à constituição histórica de um lugar de
cidadania. (Orlandi, 2002, p.227, 228).

O pequeno ensaio analítico que fizemos do recorte discursivo


que traz, na voz de (M) e de (R), vozes do povo Xavante, indica
como se dá a interpelação do sujeito indígena pelo discurso ocidental,
escolar e jurídico e, de outro modo, confirma o exposto por Orlandi
(idem) no que diz respeito ao “preenchimento” do lugar de cidadania,
apesar da formalidade desse lugar constituída pelo Estado. Ou seja,
é apenas na forma de lei que existe o cidadão, pois efetivamente, no
Estado brasileiro, o lugar da cidadania se daria via educação: “toda
criança na escola”.
No caso indígena, em especial, a efetivação desse lugar é ainda
mais complexa, pois para tal são necessários vários deslocamentos:
do modelo de educação grupal/familiar com os mais velhos para a
escola (do Outro/ mas com características próprias), da tradição
oral mnemônica para a escrita (do Outro/ mas para fazer viver a
própria língua, a cultura), do convívio coletivo das relações de troca

118
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

para a luta/combate (do Outro/ para lutar contra o preconceito e


a ignorância desse Outro). E só assim, ao final dessa “epopéia,” “virar
cidadão”, pelo seu discurso.
Contudo, embora tenhamos dito da complexidade do processo,
das rupturas e deslocamentos necessários, nesse caso, para “virar
cidadão”, se avançarmos na reflexão podemos fazer a pergunta: ao
“virar cidadão” os indígenas “viram brasileiros”?
E aqui, não podemos nos esquecer de que estamos tratando do
sujeito indígena Xavante especificamente, considerando a diversidade,
as peculiaridades de cada etnia. Por isso mesmo, conjugando com os
escritos de Payer é importante enfatizar que:

[...] o modo como estamos entendendo a noção de


identificação, como se pode depreender do que foi
dito, não a toma como cultura, como naturalizada, nem
como identidade enquanto produto, tampouco como
instância que se possa supor como fonte dos sentidos,
e muito menos como essência da subjetividade, mas,
na perspectiva da análise de discurso, como resultantes
dinâmicos e processuais de trajetos dos sujeitos, da
história e das línguas que vão produzindo alguns efeitos
e não outros, nas identificações sempre em movimento
entre o sujeito, que é social, e as línguas ou formas
materiais , também estas historicamente situadas, in-
terpretadas e administradas. (2013, p.96) (grifo meu).

É importante refletir sobre as implicações da afirmação com


que iniciamos esse artigo, de que os povos indígenas não são de uma
tradição alfabética, no entanto não são ágrafos. Pois, cada povo, ao
seu modo de significar, traz uma tradição de grafismos:

A existência dos grafismos, nestas sociedades, permi-


tiria questionar ou, ao menos, relativizar sua definição
corrente como ‘sociedades ágrafas’ (...) A arte gráfica,
enquanto sistema de comunicação visual, permite, por-

119
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

tanto, o exercício da memória social (...) ao revelar-se


como exercício de repetição de motivos e estilos defini-
dores de cada cultura em especial, e como campo fértil
de expressão da criatividade individual, da incorporação
de temas, motivos, técnicas, significados e dimensões
que, ao mesmo tempo, refletem o momento histórico
vivenciado com os desafios e acomodações que exige,
a percepção individual do processo e a base cultural, a
tradição compartilhada, a partir da qual o artista consti-
tui sua visão e seu modo de expressão e se mostra como
representante de seu grupo e de seu povo (Vidal e Silva,
apud Vidal, 1992: 293).

Os motivos gráficos impressos por cada etnia em determinados


rituais são também constitutivos da memória discursiva. A memória
discursiva tem um funcionamento como base que regulariza a pos-
sibilidade de se dar todo e qualquer dizer.
O papel da memória no discurso é, assim, o de uma “base para
a regularização da materialidade discursiva complexa” (PÊCHEUX,
1999). É importante, nesse sentido, como Payer (ibidem) lembrar
que há situações em que a linguagem materna se compõe de mate-
rialidades linguísticas que se constituem de elementos de mais de
uma língua, e por que não, como apontamos, na forma e sentido de
grafismos. No caso específico, ainda, é preciso considerar a caracte-
rística nômade dos povos Xavante; sobre os “conflitos internos”, que
em grande número são provocados pelas relações externas, políticas
e econômicas da sociedade ocidental, e que resultam no fluxo das
famílias e na criação de novas aldeias, como apresentamos no fluxo-
grama anterior; pela relação com outros povos indígenas e, assim,
com outras línguas e outras condições de produção.
Traçamos vários e diversos fios dessa rede discursiva em torno
da(s) língua(s) e, no enredamento dos fios deste texto, deixamos
soltos outros muitos, e vários que o próprio texto delimita. Mas é
possível, ao menos, fazer um arremate afirmando que a língua não
será nunca igual e é preciso sempre considerar os efeitos de sentido

120
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

da memória, da história, do espaço, das condições de produção,


enfim, como escrevemos em relação aos Xavante, que funcionam
de modo resistente imprimindo, no encontro entre a língua deste
povo, possivelmente, e outras línguas, mas, em específico, a língua
Portuguesa-majoritária e a escrita alfabética, além da escola oci-
dental/diferente, uma possibilidade de seguir procurando manter a
língua própria e a cultura em busca da cidadania e da brasilidade na
dinâmica da vida.

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123
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

A ESCRITA E SUJEITOS-PROFESSORES:
RELAÇÕES, CICATRIZES, ENSINO E
IDENTIDADES PROFISSIONAIS
Filomena Elaine P. Assolini
Universidade de São Paulo (USP)

Resumo: Apresentarei resultados de pesquisa em andamento que


investiga as relações que sujeitos-professores do ensino fundamental
estabeleceram com a escrita, ao longo de seu processo formal de
escolarização. Busco compreender como essas relações ecoam e
interferem em seus fazeres pedagógicos e constituição de suas iden-
tidades profissionais. O aparato teórico-metodológico que sustenta
esse estudo é constituído pela Análise de Discurso Francesa, pela
Psicanálise Freudo-Lacaniana e pelas contribuições de estudiosos
que se dedicam a pesquisas sobre formação de professores. Palavras-
chave: Escrita. Sujeito. Identidade Profissional. Práticas pedagógicas.
A inquietação com a relação que sujeitos-professores estabelece-
ram com a escrita, ao longo de seu processo formal de escolarização,
motivou-nos a ampla pesquisa, que investigou como se deram tais
relações e suas consequências para a constituição das identidades
profissionais desses sujeitos. Partimos do pressuposto segundo o
qual a memória discursiva não se apaga, mas continua a reverberar
e, assim, os sentidos (re)produzidos na atualidade, inevitavelmente
afetam, de diferentes formas, a constituição das identidades docentes.
O presente capítulo está assim organizado: apresentamos,
inicialmente, alguns conceitos centrais da Análise de Discurso pe-
cheutiana e da Psicanálise freudo-lacaniana. Em seguida, expomos

125
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

os aspectos metodológicos, destacando como se deu a construção de


nosso corpus e do dispositivo analítico e, a seguir, trazemos as análises
discursivas, nascidas de nossos gestos interpretativos. E, para produ-
zir o efeito de sentido de “fechamento”, alguns arremates, que irão
articular os fios que nos ajudarão a urdir o presente texto.

Análises de Discurso: conceitos essenciais

Nesta seção, apresentaremos alguns conceitos basilares da


Análise de Discurso pêcheutiana, AD, com o propósito de expli-
citar as bases teóricas que sustentam nossas análises. No momen-
to em que elas forem realizadas, outros conceitos da AD serão
mobilizados e utilizados, pois, como sabemos, a prática analítica
requer um procedimento caracterizado por ir e vir entre teoria,
consulta e análise.
Comecemos pelo conceito de sujeito, que, nessa perspectiva, é
pensado como “posição”, entre outras (FOUCAULT, 1992). O termo
“posição”, que também é compreendido como “lugar,” se refere ao
modo pelo qual o sujeito significa no e pelo discurso, aqui entendido
como efeito de sentidos entre interlocutores sócio-historicamente
determinados (PÊCHEUX, 1995).
Para entendermos o que é efeito de sentidos, é preciso ter
em mente que o sentido não está alocado em lugar algum, mas se
produz nas relações dos sujeitos e dos sentidos, que se constituem,
mútua e simultaneamente, em função de sua inscrição nas múltiplas
formações discursivas.
É importante destacar que a compreensão de sujeito, segundo
a qual esse seria uma entidade homogênea e ciente do que diz, é
refutada a partir da concepção freudiana de sujeito clivado, dividido
entre consciente e inconsciente. Coube ao psicanalista vienense,
Sigmund Freud, trazer a ideia de alteridade na interioridade. O
EGO ou EU (para os lacanianos) é, assim, formado pelo conjunto

126
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

de identificações por nós vivenciadas, ao longo de nossa existência


(FREUD, 1925 [2011]).
Na década de sessenta, o psicanalista francês, Jacques Marie
Émile Lacan (1901-1981), retorna à obra freudiana e problematiza
a dupla dimensão da alteridade, distinguindo e grafando o pequeno
outro (com o minúsculo) do grande Outro (com O maiúsculo).
No primeiro caso, a ênfase se coloca no lugar e na função de nosso
semelhante da espécie humana, nossos iguais. No segundo, Outro
configura-se enquanto campo simbólico da linguagem, formado por
todos os outros que, na infância, ocuparam lugares importantes,
como, por exemplo, mãe, pai, avó, avô, tio, tia, professores. Enig-
mático e detentor das chaves de significações inacessíveis ao sujeito,
esse grande Outro é o lugar do inconsciente, o “tesouro dos signifi-
cantes” (LACAN, 1966 [1998]). Constituído por palavras marcantes
daqueles com os quais nos relacionamos na infância, o inconsciente
determina escolhas, sintomas e os desejos do sujeito.
O conceito de alteridade é, também, imprescindível para este
trabalho, visto que temos como pressuposto que todo discurso é
caracterizado pela alteridade e multiplicidade de discursos já-ditos,
realizados ou possíveis. Como bem nos ensina Authier-Revuz (1990),
sob a aparente neutralidade e transparência das palavras, outras pa-
lavras são ditas, e, portanto, há muitos outros sentidos que também
circulam, cabendo ao analista perscrutá-los.
Outro conceito basilar para o presente estudo é o de memória.
As contribuições dos estudiosos Courtine (1999), Orlandi (1999),
Pêcheux (1999) e Payer (2000, 2006) são relevantes para o nosso
arcabouço teórico.
Courtine (1999) propõe que pensemos o assujeitamento do
sujeito falante na ordem do discurso, em dois níveis ou eixos. Veja-
mos quais são eles.
O primeiro dos níveis seria o “nível da enunciação”, que, segun-
do o autor, é marcado pela materialização discursiva, produzido por

127
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

um dado sujeito enunciador, em determinada situação enunciativa.


Teríamos aqui o eixo horizontal, ou, segundo Orlandi (1999), o eixo
da formulação, do intradiscurso, no qual acontece a atualização do
discurso. O segundo nível foi denominado “nível do enunciado”; é
o nível vertical de onde podemos depreender o interdiscurso. Or-
landi (1999) ao abordar esse nível, define-o como sendo o “eixo da
constituição do dizer” (ORLANDI, 1999, p.21).
A memória situa-se justamente no eixo vertical. As enunciações
que se estratificam nesse eixo se dão de tal maneira que qualquer
formulação se efetiva a partir do conjunto de formulações já feitas.
Entretanto, essas formulações (já feitas) são esquecidas, de forma
que podemos afirmar que a memória discursiva é constituída pelo
esquecimento (PÊCHEUX, 1999).
Os dizeres encontram-se na confluência dos dois eixos: o da me-
mória (constituição) e o da atualidade (formulação). Os sentidos advêm
desse jogo, constituição-formulação, como nos ensina ORLANDI
(1999). É pertinente lembrar nesse contexto, que todos os sentidos
já ditos, em outros momentos, lugares e condições de produção têm
efeito sobre o que está sendo dito naquele momento, o da formulação.
Os sentidos, portanto, assim como as palavras têm história.
A memória da qual nos fala o filósofo francês Pêcheux (1999)
é a memória de sentidos, constituídos pela relação dialética entre
língua e história. Não se trata de memória cognitiva, psicológica,
individual nem tampouco do inconsciente coletivo ou, ainda, a que
circula nos discursos do senso comum, qual seja: a faculdade de reter
ideias, pensamentos, acontecimentos. Ainda, segundo o principal
expoente da AD, a memória “(...) não poderia ser concebida como
uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e
cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo
de um reservatório” (PÊCHEUX, 1999, p.10).
Outros conceitos essenciais para este trabalho são os de forma-
ção discursiva e formação ideológica. As diferentes formulações de

128
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

enunciados se reúnem em pontos do dizer, em regiões historicamente


determinadas. Nascem daqui as formações discursivas, que podem
ser compreendidas como o lugar de constituição dos sentidos, deter-
minando “(...) o que pode e deve ser dito” (Pêcheux, 1995, p.160).
O filósofo nos ensina que as formações ideológicas, por sua vez,
caracterizam-se como elementos suscetíveis de intervir como força
de confrontação com outras forças, na conjuntura ideológica, carac-
terística de uma formação social, em um dado momento histórico.
Feita a breve exposição desses conceitos, passaremos a discorrer
sobre as bases metodológicas de nosso estudo.

Aspectos Metodológicos: constituição do corpus e do dispo-


sitivo analítico

Ao longo do ano 2014, por ocasião do oferecimento de um


curso de extensão universitária, realizado no âmbito de uma
universidade pública paulista, coletamos depoimentos escritos
de trinta sujeitos-professores que atuam no ensino fundamental.
Nesses depoimentos, eles falam sobre suas relações com a escrita,
durante o período de escolarização e também sobre suas atuais
práticas pedagógicas escolares.
Além disso, coletamos produções linguísticas escritas de sujei-
tos estudantes pelos quais esses professores foram responsáveis, nos
anos 2013 e 2014.
Para esta investigação, selecionamos particularmente os depoi-
mentos que versam sobre as relações estabelecidas com a escrita nos
cursos de graduação por eles realizados. Cumpre notar que a maior
parte dos professores (18) cursou licenciatura em Pedagogia, outros,
licenciatura em Letras (7) e alguns, em História (5).
Os depoimentos escritos e as condições de produção referentes
ao curso de extensão universitária, bem como as produções escritas
dos alunos formam o “material bruto” (Orlandi, 1999). Desse ma-

129
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

terial nasceram os recortes, entendidos aqui como “(...) fragmentos


correlacionados de linguagem e situação” (ORLANDI, 1987, p.87).
Desses recortes, escolhemos algumas sequências discursivas de
referência, SDR, (Courtine, 1981), as quais foram por nós perscru-
tadas e analisadas, como mostraremos na próxima seção.
No processo metodológico, consideramos o intradiscurso e o
interdiscurso. A observação desse processo nos permite remeter
os dizeres dos sujeitos-professores a uma filiação de dizeres, a uma
memória e a identificá-la em sua historicidade e processos de sig-
nificação. Aquele, o fio do discurso, o intradiscurso, permite-nos
observar o que está sendo dito, naquele momento dado, em deter-
minadas condições de produção.
Fazer análises discursivas requer que o pesquisador movimente-
se em um ir e vir constante entre os fundamentos teórico-metodo-
lógicos, consulta e leitura do corpus e a análise propriamente dita.
Esse movimento efetiva-se ao longo de toda a prática analítica.
Não poderíamos deixar de dizer que esse processo é afetado pelos
gestos interpretativos do analista, e, portanto, pelas suas filiações às
determinadas redes de sentido, condições de produção nas quais se
efetivaram suas escolhas e, também, por sua incompletude.
Outro aspecto importante a ser mencionado é que em relação à
AD não temos a pretensão à exaustividade horizontal, visto que não
há discurso acabado, fechado em si mesmo, mas, sim, um processo
discursivo do qual recortamos e analisamos estados diferentes.Traba-
lhar metodologicamente na perspectiva discursiva requer considerar
que “(...) todo discurso se estabelece na relação com um discurso
anterior e aponta para outro” (ORLANDI, 1999, p.62). Se tivermos
em mente o discurso como um continuum, podemos dizer que as
análises concentram-se em uma parte, escolhida de acordo com as
nossas perguntas e objetivos.
Destacamos que a AD, que é uma disciplina de interpretação,
se inscreve no paradigma indiciário, tal como pensado por Ginzburg

130
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

(1989). Sendo assim, tentaremos rastrear as pistas linguísticas que


nos levarão ao processo discursivo, possibilitando-nos explicar o
funcionamento do discurso e a relação entre esse funcionamento
e formações discursivas que, por sua vez, remetam às formações
ideológicas. Buscamos, assim, desconstruir o “caráter material do
sentido-mascarado por sua evidente transparência para o sujeito”
(PÊCHEUX, 1995, p.160).
Salientamos, por fim, que as interpretações, nascidas de nossos
gestos interpretativos, não são únicas nem finitas. Interpretações
diferentes, advindas de outras posições-sujeito, certamente poderão
existir, trazendo, assim, outros olhares e leituras para o corpus. Em
se tratando de AD, seria incoerente não admitir tal possibilidade.

Análises Discursivas: atravessando a opacidade da lingua-


gem, a literalidade do sentido e a onipotência do sujeito

Recorte Número 1-Referente à relação com a escrita no curso de gra-


duação.
Na minha graduação escrevíamos muito porque tínhamos muitas tarefas,
muitos resumos, resenhas e trabalhos de maneira geral, então eu cumpria
muito bem todas as obrigações universitárias. A minha relação com a escrita
esteve sempre ligada às obrigações e deveres acadêmicos, que necessaria-
mente tínhamos que fazer. Eu sempre cumpri minhas obrigações, e acho
que fiz bem (sujeito-professor FDBC, curso de Pedagogia).

A nosso ver, o sujeito-professor inscreve-se em uma formação


discursiva na qual vigoram algumas das características do discurso
pedagógico escolar tradicional, DPE, dentre elas a que diz respeito
ao cumprimento de normas e regras acadêmicas. Parece-nos que o
sujeito-professor submete-se passivamente ao DPE e realiza as tarefas
escolares que lhes são colocadas, ocupando, assim, o lugar de “bom
sujeito” (Pêcheux, 1995). O enunciado “que necessariamente tínha-
mos que fazer”, bem como a repetição, por três vezes consecutivas
do significante “obrigações” ilustra nossos argumentos. Interessante

131
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

observar que o advérbio “necessariamente”, que antecede a expressão


“tínhamos que”, produz efeito de sentido de obrigatoriedade.
Em determinado momento de seu texto, Semântica e Discurso,
Pêcheux (1995), com base nas contribuições de Althusser e de Paul
Henry, introduz aquilo que denomina “diferentes modalidades de
tomada de posição”.
O “bom sujeito”, acima mencionado, insere-se na primeira
modalidade, segundo a qual o sujeito realiza seu assujeitamento sob
a forma de “livremente consentido”. O interdiscurso determina a
formação discursiva com a qual o sujeito se identifica em seu discurso
e esse sujeito sofre cegamente essa determinação (cf. PÊCHEUX,
1995).
É pertinente salientar e observar que, no caso desse sujeito-
professor, já no processo de formação inicial, no curso de gradua-
ção em Pedagogia, aprende-se, sobretudo o aspecto instrumental e
técnico da escrita, relacionando-se mecânica e servilmente com essa
prática cultural: “Tínhamos que comprovar tudo que fazíamos com
os trabalhos escritos”.
O sujeito-professor realizou o curso de Pedagogia no final dos
anos oitenta. Apesar das contribuições de estudiosos, como, por
exemplo, Ilari (1985) e Orlandi (2013), que se empenharam em
pesquisar e mostrar a escrita para além de sua dimensão instrumental
e técnica, os princípios do estruturalismo ainda vigoravam, ditando
conceitos, normas e maneiras por meio das quais o sujeito-professor
deveria trabalhar com a língua.
O enunciado “Tínhamos que comprovar tudo que fazíamos com
os trabalhos escritos”, em especial o pronome tudo, indicia a ilusão
de completude. O sujeito-professor, na formação discursiva em que
se encontra, acredita ser possível comprovar a realização de todo o
seu trabalho, não se dando conta de que a incompletude é constitu-
tiva de qualquer linguagem, do dizer, do sentido e do discurso, de
acordo com o enfoque discursivo. Essa formação discursiva projeta

132
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

formações ideológicas que concebem o ensino a partir da perspectiva


magistrocêntrica, livresca e avaliativa, características essas presentes,
sobretudo, no Discurso Pedagógico Escolar tradicional.
O enfoque discursivo compreende a escrita em sua relação com
a história e com o simbólico. Para Orlandi (2013), a escrita não pode
ser separada nem da história nem do sujeito, uma vez que nela se
materializam os fios da história e suas redes de sentido, essenciais
para o modo de subjetivação. Tensos e contraditórios, esses modos
são atravessados pela alteridade.
A escrita, numa sociedade de escrita, não é só um instrumento,
mas também lugar de relações sociais, que dão configuração especí-
fica à formação social e seus membros. Essa configuração, de acordo
com a linguista, está relacionada à existência ou à ausência da escrita,
posto que a escrita define o estatuto da memória e, por conseguinte,
os processos de individualização do sujeito (ORLANDI, 2013).

Recorte Número 2-Referente ao curso de graduação


O que mais me fez deixar de odiar escrever foi um professor que pedia
para fazermos um diário das aulas dele e do estágio. Eu que cheguei à
Faculdade com raiva de escrever, acabei gostando, adorando... Eu nun-
ca tinha visto aquilo! E ele que se chamava Sr. P. pedia para lermos em
voz alta o que tínhamos escrito sobre estágio e, também, sobre nossas
experiências na faculdade. Eu gostei tanto que escrevia muito mais do
que o professor pedia! Quero conta também que ele lia nossos diários e
depois conversávamos sobre o que tínhamos escrito e o que ele tinha lido
(sujeito-professor AFV, curso de Pedagogia).

Atentamos, inicialmente, para a sequência discursiva “o que


mais me fez deixar de odiar escrever foi um professor que pedia para
fazermos um diário das aulas dele e do estágio”. Podemos dizer que
a experiência de construir um diário permitiu ao sujeito-professor
AFV deslocar-se da formação discursiva na qual predominavam sen-
timentos negativos em relação à escrita para a formação discursiva
que lhe possibilitou expressar sua subjetividade, compreendida aqui

133
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

como “(...) um lugar que o sujeito do discurso pode ocupar para


falar de si próprio, de suas experiências, conhecimento do mundo,
sentimentos” (TFOUNI, 1995, p.74).
Ocupar um lugar onde pode falar de si próprio leva-nos à Fou-
cault (1992), em especial à sua formulação a respeito da “escrita de
si”, que, segundo ele, é um exercício pessoal, um voltar-se para si
mesmo, que pode ser de dois tipos: hypomnêmata, que abarca os ca-
dernos individuais de anotações que ajudam nos processos de memo-
rização, as reflexões pessoais, nascidas das experiências, observações
e aconselhamentos e as correspondências. O gesto de reportar-se a si
mesmo pode se dar por meio tanto da escrita quanto da fala, sendo
que ambos produzem a emergência de processos de subjetivação
e identificatório. Para o filósofo, o processo de troca e de reflexão
acerca das experiências desempenha papel essencial no modo como
a subjetividade de cada um é constituída.
Quer seja por meio da hypomnêmata, quer por meio das cor-
respondências, o sujeito “fala de si”, deixando na escrita marcas de
sua subjetividade, o sujeito pode, assim, (se) dizer e (se) inscrever,
fazendo-se presente de alguma forma.
Dentre os recursos de que dispomos para lidar com o trauma
ou o real, escrever é um deles, pois nos permite vivenciar a expe-
riência do que Lacan (1953 [1971]) denominou de après coup, que
é a tradução francesa para o conceito freudiano de nachträglickeit,
substantivo, cuja tradução significa “posteridade”, e nächtraglich que
significa “posterior” e “posteriormente”, na língua alemã.
Em momento posterior, os conflitos, as angústias, a falta que
nos constitui, os sentimentos e emoções recalcados, bem como os
acontecimentos traumatizantes podem, ser repensados, reanalisados
e ressignificados, posto que:

quando escrevemos, nos distanciamos de nós mesmos.


Precisamos criar um afastamento ótimo para que no
espaço em branco do papel possamos deixar as mar-

134
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

cas que nos afetam. Algumas vezes, queremos dividir


com o outro, enviar uma mensagem que será lida por
alguém. Muitas vezes, escrevemos para colocar ordem
nos nossos pensamentos, em nossas paixões: não que-
remos que ninguém leia os nossos diários. Quando a
eles retornamos, lemos confissões sobrecarregadas de
afetos que hoje estão esmaecidos na memória (BAR-
ROS, 2007, p.174).

O diário foi, portanto, rico instrumento que permitiu ao sujeito-


professor expurgar suas dores, ódios e traumas da escrita, com a qual
passou a melhor relacionar-se: “acabei gostando, adorando”.
É mister salientar que os diários dos alunos eram lidos pelo
docente do curso de graduação, desde que os estudantes manifes-
tassem sua concordância. O docente ocupa o lugar de interlocutor
privilegiado, pois pode conhecer parte da intimidade dos estudantes,
o que contribui para a construção de vínculos afetivos estreitos e
caracterizados pela confiança. O fato de o docente dar devolutivas e
dialogar com os estudantes, a partir das leituras dos diários por ele
realizadas, contribuiu para o aprendizado segundo o qual a escrita
registrada no diário não era indiferente para o docente, não era por
ele esquecida ou desprezada, como acontece em alguns casos em que
professores não dão retorno algum para as produções linguísticas
escritas para os estudantes. Ao contrário, a partir de alguns temas aos
quais tinha acesso, o docente propunha leituras de textos ou rodas
de conversas, que possibilitavam aos graduandos expressarem sua
subjetividade e “falarem de si”.
Todos esses fatores ajudaram o sujeito-professor a (re)aprender
a relacionar-se com a escrita, associando a elas sentidos positivos,
essenciais, a nosso ver, ao processo de formação profissional, pois a
escrita assim como a leitura são recursos indispensáveis ao exercício
da docência.
Se, a princípio, ou seja, quando da sua inserção no curso de
graduação, a memória discursiva do sujeito-professor AFV é formada

135
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

por sentidos negativos relacionados à escrita, à medida que vivencia


situações que lhe permitem ressignificá-los, as relações com a escrita
se transformam, permitindo-lhe dela se valer para organizar o sim-
bólico, e, portanto (se), organizar.
Todos esses sentidos, vozes, experiências e transformações,
vivenciados no curso de graduação, contribuem para a constituição
da identidade docente.
Considerando a polissemia do termo identidade, esclarecemos
que a nossa opção é a proposta pelo sociólogo Hall (2006), qual seja:
entendê-la no sentido de identificação.
Fundamentado nos estudos foucaultianos e na psicanálise laca-
niana, o autor pensa identidade como a relação entre o sujeito e as
práticas discursivas, sendo que tal relação se dá sempre no laço social
com o Outro, o lugar do inconsciente, o “tesouro dos significantes”
(LACAN, 1966 [1998]). As identidades são sempre fragmentadas,
múltiplas e fraturadas, e estão em ininterrupto processo de mudança
e transformação. Por esse motivo, o autor postula que se trata de
identidades, no plural. Outra questão problematizada pelo pesquisa-
dor diz respeito a fatores a sócio-históricos e culturais e ideológicos
que, inevitavelmente, irão afetar os processos de constituição das
identidades.
Gostaríamos de esclarecer que compreendemos identificação
como “(...) uma construção, um processo nunca completado, o que
implica dizer que há sempre uma falta, nunca um ajuste completo,
uma totalidade” (ECKHERT-HOFF, 2008, p.63).
Dando continuidade ao presente artigo, deter-nos-emos nos
recortes 3 e 4, que trazem os depoimentos desses sujeitos-professores
a respeito de suas práticas pedagógicas.

Recorte Número 3 - Referente à prática pedagógica escolar


Minha prática pedagógica tem sido mais ou menos assim: às vezes tem
muita leitura, às vezes tem redação. Não é todo dia que os alunos escrevem,

136
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

porque eu sei que para eles é difícil, são pobres, sei as dificuldades que
encontram, mas faço de tudo para que aprendam a fazer textos longos
porque textos curtos deixam a desejar quase sempre (sujeito-professor
FDBC ).

Orlandi (1999) nos ensina a não menosprezarmos a força que


a imagem tem na constituição do dizer. O imaginário é um dos
elementos integrantes do funcionamento da linguagem, sendo que
as imagens se constroem a partir de confrontos do simbólico com o
político, em processos que ligam discursos e instituições (ORLANDI,
1999). As imagens, portanto, não são neutras nem foram construídas
do nada, ao acaso, simplesmente. Mas, isso sim: elas trazem em si
uma memória de sentidos, e esses, como sabemos, dependem das
posições que os sujeitos assumem quando falam.
A partir das projeções imaginárias, o sujeito incorpora o outro-
Outro em seu discurso, de modo que não há como escapar do atra-
vessamento de discursos-outros, historicamente constituídos, que
emergem no fio do discurso, o intradiscurso.
Na sequência discursiva sublinhada porque eu sei que para eles é
difícil, são pobres, né, sei as dificuldades que encontram, o sujeito-professor
FDBC faz a correlação “dificuldade para escrever-pobreza”, imagi-
nando que a suposta pobreza dos estudantes os impediria de produzir
textos, ainda mais textos “difíceis”, segundo o seu entendimento.
Instalado nessa formação discursiva que associa dificuldades
de aprendizagem à pobreza, desenvolve suas práticas pedagógicas, a
partir do pressuposto de que os estudantes não conseguiriam realizar
as atividades, nesse caso, a produção de textos. Nessas condições de
produção, restringe suas ações didáticas, visto que pressupõe estu-
dantes incapazes, e, além disso, imagina-se como um profissional
desprovido de recursos (pedagógicos, emocionais) dos quais poderia
se valer para ensinar os estudantes a escreverem textos.
Não poderíamos deixar de mencionar o importante e clássico
trabalho de Patto (1991) que, a partir de um olhar sociopolítico

137
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

desconstrói e refuta os argumentos segundos os quais crianças po-


bres deveriam fracassar em seus estudos, vivenciar as dolorosas e
agressivas experiências de multirrepetência, além de serem rotuladas
com estereótipos extremamente violentos. A autora mostra-nos
que a escola produz fracassados, a partir de discursos que atribuem
a responsabilidade do processo de ensino-aprendizagem somente
ao estudante, que, na maioria das vezes, é tratado a partir de proje-
ções imaginárias que o veem como um sujeito incapaz de aprender,
desprovido de saberes de qualquer natureza, inadaptável e, por isso
mesmo, passível de ser punido e excluído.
Outra sequência discursiva, à qual queremos nos ater, é a se-
guinte: mas faço de tudo para que aprendam a fazer textos longos porque
textos curtos deixam a desejar quase sempre.
Temos a percepção de que o sujeito-professor FDBC compre-
ende que os denominados “textos longos” são superiores aos “textos
curtos”. A nosso ver, é equivocado o entendimento desse sujeito,
pois, em consonância com Orlandi (2006), concebemos texto como
objeto linguístico-histórico. Na perspectiva do discurso, texto é lugar
de jogo de sentido, de trabalho da linguagem, de funcionamento da
discursividade, podendo ser definido “(...) como unidade complexa
de significação” (ORLANDI, 2006, p.21). Não importa a extensão
do texto, enquanto unidade pragmática que se constitui na inter-
locução. Podemos ter textos constituídos por uma única palavra,
um conjunto de frases (oral ou escrito). O que importa observar
é o seu funcionamento como unidade de significação em relação às
circunstâncias (condições de produção) na qual é produzido, a sua
historicidade, o seu acontecimento como discurso e o processo de
produção de sentidos que nele se inscreve,
A leitura atenta e a análise de algumas produções linguísticas
escritas, realizadas pelos estudantes pelos quais o sujeito-professor
FDBC é responsável, trazem fortes indícios linguístico-discursivos
de que essas produções permanecem no âmbito da paráfrase, ou seja,
da mera reprodução de sentidos que, de modo algum, os afetam,

138
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

pois não evocam sua memória discursiva nem arquivo algum que
lhes faz sentido.
Uma das consequências do entendimento de que existiria cor-
relação pobreza-dificuldade-de-escrita-texto-curto é, justamente,
a realização de um trabalho pedagógico que não promove oportu-
nidades para os estudantes arriscarem-se à produção de sentidos e
romperem com os sentidos aceitos, legitimados e cristalizados na
instituição escolar. Os estudantes não conseguem estruturar ativa-
mente suas produções linguísticas escritas, muito menos ocupar o
lugar de autor de seu próprio dizer, o que lhes exigiria, por exemplo,
olhar o texto de um outro lugar, realizar gestos linguístico-discursivos
retroativos, com a finalidade de lidar com a ambiguidade, com a falha
e o equívoco, constitutivos do dizer, contendo a dispersão e a deriva
que, inevitavelmente, sempre se instalam (cf. Tfouni, 1995).
Nessa linha de pensamento, salientamos que o processo para-
frástico de linguagem encontra na instituição escolar espaço fértil
para concretizar-se e perpetuar-se, pois a instituição escolar dificil-
mente consegue ouvir e difundir sentidos estranhos aos seus. E isso
não poderia ser diferente, uma vez que a instituição escolar é parte
ativa da sociedade disciplinar, como afirma Foucault (1987). Nela
se definem, se regularizam, se homogeneizam formas de agir e de
dizer; ler e escrever. Nela também são classificadas, diferenciadas
e excluídas práticas discursivas imaginadas como inadequadas. O
controle de gestos interpretativos, e, por conseguinte, de sentidos,
é parte da “vigilância” e “controle normalizante” (Foucault, 1987),
tendo como resultado final a visibilidade e a exclusão das diferenças.
Ainda no âmbito dessa análise, quereríamos destacar que, a
nosso ver, nessas condições de produção, educando e educador se
empobrecem, pois ambos não se atrevem a produzir outros sentidos,
ambos não ousam a se deslocarem das formações discursivas que os
prendem a conceitos equivocados, ambos vivenciam o que Pêcheux
(1997) denomina “divórcio cultural”, ou seja, a alguns o direito de
produzir leituras originais, que lhes permitem sustentar, enfrentar ou

139
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

resistir aos poderes e sentidos vigentes, a outros, a tarefa subalterna


de preparar, reproduzir e sustentar (sempre anonimamente) o tra-
tamento literal dos documentos. Observamos que tanto o educador
quanto os educandos ocupam o lugar de sujeitos subalternos, aos
quais não são permitidas interpretações outras, diferentes, inusitadas.
Dentre as inúmeras consequências negativas que advêm desse
processo de empobrecimento, decorrente da inserção de sujeito-
professor e sujeito-estudante em formações discursivas com as quais
não se identificam e que não lhes permitem nem se moverem nem
acionarem outras regiões de sentido e inaugurar outros sítios de sig-
nificância, destacamos a que afeta a identidade do sujeito-professor.
A análise discursiva do recorte número 1, na qual o sujeito-
professor FDBC discorre sobre sua formação inicial, nos dá indícios
linguístico-discursivos para pensarmos na interdição à qual foi sub-
metido, naquelas condições de produção do final dos anos 80. Nas
condições atuais de produção, a análise de seu dizer a respeito de
sua prática pedagógica escolar, mostra-nos sua dificuldade em com-
preender que a interpretação é sempre passível de equívoco, pois os
sentidos não se fecham, não são únicos nem definitivos, mesmo que
aparentam ser, em função da ideologia que naturaliza, fixa e faz com
que pareçam óbvios e evidentes. A ideologia seleciona determinados
sentidos, elegendo-os como “corretos”, “legítimos”, “superiores”,
não nos deixando perceber que, em realidade, eles, os sentidos, são
historicamente produzidos.
Retomando nosso raciocínio sobre o sujeito em questão, salien-
tamos que vestígios de sua memória discursiva reverberam em seu
dizer. Contudo, é necessário esclarecer que a memória discursiva é
constituída por faltas, brechas e lacunas, ela não é linear, nem os sen-
tidos que traz estão estabilizados no intradiscurso (fio do discurso).
Como diz Pêcheux (1999, p.10), “(...) a memória é um espaço de
desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos”. A memória
não é, portanto, totalmente plena, completa e homogênea. Fosse
assim, estaríamos condenados a repetir sentidos previsíveis, a exem-

140
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

plo da deusa Eco. Podemos dizer que a memória é frequentemente


abalada, quer seja pelo surgimento, quer seja pela ressignificação de
acontecimentos que vão deslocando os sentidos já produzidos.
Assim, o que podemos observar nos dizeres atualizados, ou seja,
os que concernem às práticas pedagógicas do sujeito-professor, são
vestígios de uma memória discursiva que traz marcas de relações
afetivas pouco amistosas com a escrita.
Salientamos que, em concordância com o psicanalista Lacan
(1998), compreendemos a escrita em sentido abrangente. Ou seja,
entendemos por escrita não apenas o traço sobre o papel, as marcas
do alfabeto deixadas sobre o suporte, mas, sim, aquilo que indica
uma diferença, uma marca que nos singulariza. O arado que corta
a plantação, os traços nas gamelas exemplificariam essas marcas. A
compreensão de que a escrita possa ser reduzida às marcas fonéticas
ou simples grafemas desclassificaria a história, o que seria negar que
essa nos constitui assim como o nosso dizer. (cf. LACAN, 1998).

Recorte Número 4 - Referente à Prática Pedagógica Escolar


Incentivo os alunos a escreverem, alguns gostam, outros não. Mas, cuido
para que possam escrever sobre temas de que gostam, temas que lhes
chamam a atenção de alguma forma... Acho que, para escrever, temos
que gostar, temos que achar que aquilo é válido, temos que ter prazer....
Aí sim sai coisas bonitas. (sujeito-professor AFV).

Conforme mostramos na realização da análise do recorte núme-


ro 2, concernente às relações que o sujeito AFV estabeleceu com a
escrita, foi por meio da compreensão e da elaboração das experiências
negativas com a escrita (acumuladas ao longo de sua vida) que esse
sujeito pôde ressignificá-las, o que lhe possibilitou relacionar-se de
outra forma com essa prática cultural, (re)aprendendo a gostar de
produzir textos escritos.
Na atualidade, discorrendo a partir da posição professor, de-
senvolve sua prática pedagógica, a partir do pressuposto de que os

141
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

estudantes devem escrever sobre assuntos e temas de que gostem.


Parece-nos que se movimenta no sentido de oferecer condições de
produção para que os estudantes pelos quais é responsável possam
falar a partir de seu interdiscurso, o que lhes permite acionar senti-
dos que lhes afetam, estabelecer relações de sentidos outros, enfim,
inscrever-se em formações discursivas nas quais emergem significa-
ções com as quais se identificam, podendo, assim (se)dizerem.
Interessante notar, também, que, apesar de o sujeito-professor
mostrar-se preocupado e atento à relação produção escrita-prazer,
temos que ter prazer... Aí sim sai coisas bonitas, ainda permanece preso
às formações discursivas que projetam formações ideológicas que
evocam o discurso pedagógico escolar autoritário, DPE. O indício
linguístico-discursivo temos que, que produz o efeito de sentido de
submissão, autoriza-nos a esse gesto interpretativo.
Assim, se por um lado, o sujeito-professor conseguiu rearranjar
sentidos que lhe despertavam sentimentos como raiva, aversão e
ódio em relação à escrita, por outro, ainda existem ressonâncias em
sua memória discursiva advindas de Discurso Pedagógico Escolar,
DPE, no qual a ideologia da obrigatoriedade e da prescrição ainda
são presentes.
Para adensar nossa discussão, trazemos PAYER (2006), que
estudando a memória da imigração, nos explica que a atuação da me-
mória discursiva nem sempre é clara, organizada, formulada, como
um texto, com começo, meio e fim. A citada pesquisadora formula
que há um jogo entre a memória discursiva constitutiva, à qual o sujeito
não tem acesso de modo representado, e uma memória discursiva
representada. A memória diz respeito não apenas àquilo que já se
ouviu, mas ao que faz parte do sujeito, como o que permite formar
a lei de uma série de sentidos (Pêcheux, 1999), independentemente
de ele saber ou dar-se conta desses elementos. A memória discur-
siva representada, segundo Payer (2000), é a memória sabida, que
se revela nos dizeres que o sujeito grava e repete, sabendo disto, em
diferentes condições de produção.

142
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

No caso em análise, temos algo semelhante a esse jogo entre a


memória discursiva constitutiva e a representada, pois acreditamos
que o sujeito-professor, movido por objetivos que conduziriam seus
alunos a aprenderem a partir de situações prazerosas, não se dá conta
de quão fortemente estão presentes em seu dizer, além do que ele
representa como prazeroso e bonito, também traços constitutivos
do discurso pedagógico escolar autoritário, DPE, que emergem e se
materializam em seu dizer atual.

Considerações finais

Como vimos, os sentidos construídos, a partir das relações


estabelecidas com a escrita pelos sujeitos-professores nos cursos de
graduação, continuam a reverberar em seus dizeres atuais, influen-
ciando suas práticas pedagógicas escolares e afetando a constituição
de suas identidades.
Dessa forma, a memória discursiva desses sujeitos não pode e
não deve ser ignorada, pois quer o sujeito se dê conta ou não disso,
os sentidos dessa memória são atualizados, presentificados nos dize-
res atuais. As sequências discursivas, as marcas e pistas linguístico-
discursivas por nós destacadas, na prática analítica, permitiu-nos
reconhecer, mostrar e ilustrar efeitos de reprodução, de desloca-
mentos e de transformação de sentidos. Enfim, a memória suposta
pelo discurso é sempre reconstruída na enunciação (Achard, 1999),
envolvendo jogos de força, entre o histórico e o linguístico, a repe-
tição e a regularização, a repetição e a ressignificação de sentidos.
Não queremos dizer com isso que a memória discursiva é deter-
minadora das práticas e identidades, mas desejamos mostrar que essa
memória pode ser esquecida, apagada, recalcada (pois ela é também
constituída por furos e esquecimentos) e, ainda assim, continuar
reverberando nos processos discursivos atualizados.
As relações com a escrita deixam, inevitavelmente, marcas e
cicatrizes, na memória discursiva do sujeito-professor, mostrando-

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

nos assim a importância de atentarmos para o eixo da atualidade, o


da formulação de sentidos.
A nosso ver, os cursos de formação inicial, que respondem,
no Brasil, pela formação de professores para o exercício da do-
cência não podem e não devem ignorar que o processo formativo
do sujeito-professor não se inicia com a sua inserção em um curso
de licenciatura. Esse sujeito, ao chegar ao ensino superior, traz
consigo suas histórias, memórias e saberes que, se considerados e
reconhecidos poderiam contribuir para uma profissionalização que
lhes assegurasse não apenas conhecimentos técnicos, conceituais,
didático-pedagógicos, mas, também, conhecimentos sobre si mesmo,
condição imprescindível para o exercício de uma profissão na qual o
político e o poético estão imbricados.

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146
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

EMERGÊNCIAS SUBJETIVAS NO PROCESSO


DE ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA
ESTRANGEIRA1
Juliana Santana Cavallari
Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVAS)

Resumo: A pesquisa apresentada neste capítulo se ancora nos pro-


cedimentos teórico-metodológicos da Análise de Discurso em uma
interface com noções psicanalíticas que se mostram produtivas e
relevantes para elucidar alguns questionamentos e impasses acerca
do sujeito de linguagem e do ensino. A partir de algumas formula-
ções proferidas no espaço de sala de aula de Língua Inglesa e que,
aparentemente, produziram impasses subjetivos e/ou mal-estar no
aprendiz, buscou-se entrever modos de o sujeito de pesquisa (re)vi-
sitar sua relação com o seu dizer e com os discursos que possibilitam
diferentes posicionamentos e laços sociais. A análise empreendida
sugeriu que o que se materializa como o impossível de educar pode
nos apontar, enquanto professores, para saídas possíveis e singulares
se, com base na lógica em funcionamento no Discurso do Analista,
partirmos do objeto causa do desejo do aprendiz (objeto a), na
posição de agente, introduzindo, assim, o equívoco que permite ao
sujeito avessar o discurso do senso comum, que já se naturalizou
sócio-historicamente, para se reinventar. Nos episódios abordados,
os aparentes erros, lapsos e tropeços cometidos pelo sujeito-aluno
foram tomados, pelo professor-pesquisador, como significantes que

1 Este capítulo é a reformulação de uma versão anterior publicada na Revista da ANPOLL,


no. 39, em 2015, que resultou de uma apresentação oral no X Congreso Internacional de la
Asociación Latinoamericana de Estudios del Discurso, cujo título foi “Modos de subjetivação
diante do impossível de educar”.

147
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

clamam por uma significação singular, desencadeando deslocamentos


subjetivos. Palavras-chave: Análise de Discurso. Psicanálise. Língua
e Ensino. Subjetividade.

Introdução

A sociedade contemporânea, marcada pela fragilização do simbó-


lico e dos laços sociais, parece potencializar o desamparo vivenciado
pelo sujeito constituído na/pela linguagem e fadado à errância sim-
bólica.Trazendo essas considerações para questões acerca do discurso
pedagógico e dos impasses que permeiam a educação formal, podemos
afirmar que há o “impossível de educar” (MRECH, 2008) que tende a
ser ignorado ou silenciado, em nome de uma pedagogia do método que
se pretende totalizante. Como resultado desse mal-estar na educação,
surgem sintomas que nos apontam para esse impossível de educar ou
para o Real da educação, tais como: a indisciplina, a falta de motivação
e de engajamento por parte de alunos e também de professores, a
falta de investimento subjetivo na elaboração do saber, o insucesso no
processo de ensino-aprendizagem, entre outros.
Como analistas de discurso e estudiosos da linguagem, inte-
ressou-nos tomar, como material de pesquisa, acontecimentos no
espaço discursivo de sala de aula e que lançam luz sobre os sintomas
e posicionamentos enunciativo-discursivos que afetam o processo
de ensino-aprendizagem e a relação com o saber. O presente estudo
está vinculado ao projeto de cooperação “Discurso e Psicanálise:
a-versão do sentido”, firmado entre uma equipe de pesquisadores
do Laboratório de Estudos Urbanos da UNICAMP e de professores
pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Lin-
guagem da UNIVÁS, interessados em estudar e compreender, entre
outras coisas, a questão da subjetividade na modernidade.
Esta pesquisa se ancora nos procedimentos teórico-metodoló-
gicos da Análise de Discurso (doravante AD) em uma interface com
postulados psicanalíticos que se mostram produtivos e relevantes

148
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

para elucidar alguns questionamentos e impasses acerca do sujeito,


da lingua(gem) e do ensino. Em suma, a partir de alguns episódios
vivenciados no espaço de sala de aula de Língua Inglesa e que,
aparentemente, produziram alguns impasses subjetivos2 e/ou mal-
estar, objetivou-se entrever modos de o sujeito-aluno (re)visitar sua
relação com o seu dizer e com os discursos que regulam diferentes
posicionamentos e vínculos sociais. Por fim, sugerimos uma escuta
singular de impasses e rupturas subjetivas que, vez por outra, emer-
gem no processo de ensino-aprendizagem, de modo que possamos,
enquanto educadores, compreender questões acerca da subjetividade
na contemporaneidade e propiciar deslocamentos.

Sobre o discurso como posição entre outras

Na perspectiva da AD, que fornece subsídios teórico-meto-


dológicos para este estudo, o discurso – definido como efeito de
sentidos entre locutores, desde a primeira formulação de Pêcheux
(1969 [1990]3, p. 82) – é tomado como objeto de estudo. Dessa
mesma perspectiva, Orlandi (1999, p.21), com base na retomada
teórica que faz da obra de Pêcheux, afirma que “a linguagem serve
para comunicar e para não comunicar (grifo meu). As relações de
linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus efeitos são
múltiplos e variados” (idem, p.21).
Os estudos foucaultianos também abordam essa hiância ou não
coincidência entre o que se diz e os efeitos de sentidos produzidos no/
pelo dizer. Mais especificamente, Foucault ([1969] 2009, p.61) nos
leva a compreender o discurso como o que pode trazer a dispersão
e a descontinuidade do sujeito em relação a si mesmo.

2 Acreditamos que os impasses subjetivos sejam necessários para colocar em xeque a aparente
unidade e identidade do sujeito de linguagem, trazendo à tona a falta e a contradição que o
constitui.
3 Quando houver duas datas, a primeira corresponde à edição original da obra e a segunda,
ao ano de edição da obra que foi consultada.

149
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Visando à construção de um dispositivo de articulação teórico-


conceitual entre a perspectiva discursiva e a psicanálise, mostra-se
relevante abordarmos a noção de discurso também no campo da psi-
canálise. Lacan ([1969-1970] 1992) define o discurso como laço social
ordenado por uma linguagem particular. Os vínculos e laços sociais
que se dão a partir do discurso são tecidos e estruturados na/pela
linguagem. Segundo Cavalcanti (2009, p.33), Lacan identificou dife-
rentes estruturas discursivas atreladas aos modos de assujeitamento do
ser humano à linguagem. Reproduzindo as palavras do referido autor:

Discurso, de modo geral, é o que faz laço social e es-


tabelece a relação do sujeito com o saber. Para Lacan,
o discurso é o lugar em que se evidencia o assujeita-
mento do ser humano à linguagem, sua submissão aos
efeitos do significante e a incapacidade de dizer toda a
sua verdade (idem, p. 33).

Assim como a AD postula, a partir dos estudos pecheutianos, que


não há discurso sem sujeito, nem sujeito sem ideologia, a psicanálise
lacaniana nos ensina que o sujeito se dá a partir da linguagem. De
acordo com Chnaiderman (1998, p. 55), “a linguagem é condição sine
qua non de constituição do sujeito”. Nota-se que a ideia de discurso
como efeito perpassa ambos os campos do saber: a AD e a psicanálise.
Para formular a noção de discurso proposta pela AD, Pêcheux
([1969] 1990, p. 79) se distancia do “esquema ‘informacional’ de-
rivado das teorias sociológicas e psicossociológicas da comunicação
(esquema ‘emissor-mensagem-receptor’)”. Retomando os estudos
pêcheutianos, Orlandi (1999, p. 21) enfatiza que, no campo do dis-
curso, “não se trata de transmissão de informação apenas, pois, no
funcionamento da linguagem (...) temos um complexo processo de
constituição dos sujeitos e produção dos sentidos e não meramente
transmissão de informação”.
Lacan ([1969] 1992, p. 10-11) também se distancia da noção de
linguagem como mero instrumento de comunicação, ao abordar o

150
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

discurso como “uma estrutura necessária, que ultrapassa em muito


a palavra, sempre mais ou menos ocasional. O que prefiro, disse, e
até proclamei um dia, é um discurso sem palavras”.
A função enunciativa proposta por Foucault ([1969] 2009, p.
103), que nos ajuda a ver o enunciado para além de seu satus grama-
tical, para além de sua estrutura, nos remete à distinção e à disjunção
proposta, na psicanálise, entre o dito e o dizer, entre o enunciado e a
enunciação. Para Lacan, “a constituição de um sujeito psíquico se dá
sempre através de um outro. E “eu” é diferente de sujeito psíquico.
Há um “eu” que é sujeito do enunciado e um “Eu” que é sujeito da
enunciação” (CHNAIDERMAN, 1998, p. 53). A relação que o sujeito
falante mantém com o inconsciente e com o desejo – e que revela
algo da verdade do sujeito atravessado pela linguagem – só advém
em sua enunciação.
Dentre os quatro discursos propostos por Lacan (Discurso do
Mestre, Discurso da Universidade, Discurso da Histérica e Discurso
Analítico) e que nos levam à “compreensão das relações que regulam
as formas de vínculo social do sujeito” (BARBOZA, 2010, p.68),
interessa-nos, neste estudo, compreender os vínculos estabelecidos
entre o sujeito-professor4 e o sujeito-aluno pesquisado, a partir
do discurso da histérica e do discurso analítico, entendido como
avesso (ou torção completa) do discurso do mestre, lembrando que
“o discurso e o desejo têm a mais estreita relação”, segundo Lacan
([1971-1972] 2012, p.71). Na parte analítica deste estudo, procu-
raremos ancorar, nos episódios abordados, como certos vínculos se
estabelecem, com base na lógica presente no discurso da histérica e
no discurso analítico, mais especificamente.

4 Quando empregamos sujeito-professor e sujeito-aluno, não estamos nos referindo ao sujeito


empírico ou, segundo Pêcheux (1969 [1990, p. 82]), à “(...) presença física de organismos
humanos individuais”, mas sim à posição discursiva (ou posições discursivas) que o sujeito
de linguagem ocupa para que seu dizer produza sentidos, bem como aos lugares determi-
nados na estrutura de uma formação social, nos quais funcionam uma série de formações
imaginárias. Vale destacar, ainda, que não adotamos a noção de sujeito cartesiano, mas sim
a de sujeito duplamente marcado: pelo inconsciente e pela ideologia e que emerge na/pela
linguagem como efeito do assujeitamento ao simbólico.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

No vínculo que se estabelece a partir do discurso analítico, o


analista faz semblante de pequeno a (causa do desejo, furo) para
tocar a verdade (a fantasia) do analisando. Nesta relação/operação,
produz-se um sujeito dividido, barrado, que está no lugar do saber
inconsciente. Retomando as palavras de Lacan ([1971-1972] 2008, p.
102), O analista, com efeito, de todas as ordens de discurso que se sustentam
atualmente (...) é aquele que, ao por o objeto a no lugar do semblante[5], está
na posição mais conveniente para fazer o que é justo fazer, a saber, interrogar
como saber o que é da verdade.
Regido pela lógica e estrutura do discurso analítico, portanto,
o analista assume o lugar do objeto que causa o saber do lado do
analisando. Para que essa operação provoque significações, faz-se
necessário que o analisando queira saber algo sobre sua verdade in-
consciente. Tal como nos aponta Lacan ([1971-1972] 2008, p. 102),
“A análise veio nos anunciar que há saber que não se sabe, um saber
que se baseia no significante como tal”. O referido autor (Idem, p.
100) conclui que tudo o que a experiência analítica pode produzir,
segundo o esquema do discurso analítico, é S1 (Significante Mestre).
Em um seminário anterior, cuja tradução para o Português foi re-
centemente publicada (LACAN [1971-1972] 2012, p. 77), o autor
salienta que da análise,

(...) há uma coisa que deve prevalecer: é que há um


saber que se extrai do próprio sujeito. No lugar do
polo de gozo, o discurso analítico põe o S barrado.
É do tropeço, do ato falho, do sonho, do trabalho do
analisando que resulta esse saber. Esse saber, este não
é suposto: ele é saber, saber caduco, migalha de saber,
submigalha de saber.

Valendo-nos da citação acima, podemos afirmar que, na es-


trutura do discurso analítico, do lado do analista, tem-se um saber
suposto; do lado do analisando, um saber caduco, migalha de saber.
5 Em Lacan ([1971] 2009, p. 18) o semblante é tomado como objeto próprio com que se regula
a economia do discurso.

152
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Para que se dê a entrada em análise ou para que essa ‘migalha de


saber’ possa ser extraída do sujeito que fala sobre si é necessário que
se dê a histerização do discurso, segundo o esquema do discurso da
histérica, em que a fala é regida pela lógica do inconsciente, já que
o saber inconsciente assume o lugar de agente. O funcionamento
pelo discurso da histérica possibilita a emergência da subjetividade
do enunciador que possui uma pergunta endereçada ao significante
mestre que o marcou. Vale salientar que, para que a análise produza
mudança ou deslocamento subjetivo, isto é, para que haja conse-
quência no ato analítico, é necessário que o analista não responda,
prontamente, a pergunta a ele endereçada pelo analisando, mas que
sustente e/ou pontue essa pergunta, a partir de seu suposto saber
sobre o outro, de modo que “o saber que não se sabe” possa advir do
próprio sujeito em análise.
Como já destacado anteriormente, o avesso da estrutura que
rege o funcionamento do discurso analítico seria o discurso do mes-
tre que parece propiciar uma relação de causa e efeito que, embora
pareça natural e familiar, também resulta de uma construção e da
manutenção do poder do mestre, na posição de agente, sobre o sa-
ber do escravo. Sobre o funcionamento do discurso do mestre, Fink
(1995, p. 161) salienta que “o mestre deve ser obedecido (...) porque
ele assim o diz”. Aquele que ocupa a posição de mestre, portanto,
não se preocupa com o saber que está do lado do escravo, desde que
o seu poder seja mantido e que as coisas funcionem. Trazendo essas
considerações para o espaço educacional, o discurso do mestre ainda
tem lugar de destaque nas relações e laços estabelecidos nesse espaço,
embora muitas mudanças significativas já tenham produzido outros
efeitos de sentido no âmbito da educação formal. De acordo com
Brousse (2009, p. 22),

O discurso do mestre é atualmente determinado pelo


discurso da ciência. Além do mais ele é determinado
por uma economia de mercado una e global. (...) O
discurso do mestre se caracteriza por sua relação com

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

as massas.Trata-se, para ele, de administrar grandes nú-


meros e, portanto, deve responder em todos os níveis
ao imperativo da massificação. A gestão é uma questão
de massa e, portanto, a quantidade é essencial, com
a consequência que estamos na era do todo-número.

Trazendo essas afirmações para problematizarmos o funcio-


namento da educação formal, de modo geral, que passa pela era
do todo-método, podemos dizer que o imperativo da massificação
também se faz presente no processo de ensino-aprendizagem, com
vistas à formação, ainda que incipiente, do maior número de alunos
possível, que, por sua vez, estão em busca de ‘pacotes de saber’ (MRE-
CH, 2008) e de modelos tecnicistas de ensino-aprendizagem. No
entanto, o que esses modelos e pacotes massificantes têm produzido,
efetivamente, são sintomas diversos com os quais os educadores não
sabem como lidar. É esse fazer massificante e incipiente que buscamos
avessar na prática docente que se pretende significativa e singular.
O que tentamos sugerir e formalizar, no item que se segue, é
que o ato educativo pode se tornar mais significativo se, em alguns
momentos, o professor oferecer uma resposta singular ao aluno,
a partir do funcionamento do discurso analítico, se distanciando,
portanto, do discurso do mestre que deteria o poder incondicional
sobre o outro (aluno).

Análise dos episódios

Antes de procedermos à análise, faz-se necessário abordamos


algumas noções e tecermos algumas considerações que incidem na
análise empreendida, tais como a noção de erro, de sujeito suposto
saber e de transferência como amor que se dirige ao saber.
Como material de análise, tomamos alguns episódios ou acon-
tecimentos discursivos, ocorridos em aulas particulares de Língua
Inglesa por mim ministradas, e que apontam para o inesperado, para

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

o equívoco constitutivo do sujeito e da linguagem, fazendo com que


o sentido se tornasse outro. Para selecionar os episódios analisados
a seguir, minha escuta, na função de professora, se voltou, primei-
ramente, para alguns “erros” aparentemente gramaticais e de pro-
núncia que insistiam em se repetir, apesar de minhas interferências,
explicações e correções. Ao notar algumas emergências subjetivas
que esses erros propiciaram, sobretudo diante da reação dos alunos, a
partir de minhas explicações formais ou estruturais, resolvi tomar as
formulações postas para além da lógica gramatical para interpretá-las
como dado singular, constituído na/pela contradição e pela equivo-
cidade. Segundo Leite (2000, p. 5), “o dado singular é o que resta,
irredutível a classificações”.
Outra característica que merece ser destacada nos episódios que
se seguem é o fato de haver apenas um professor para um aluno, nas
aulas particulares aqui analisadas, o que parece potencializar a relação
transferencial no vínculo estabelecido entre professor e aluno. Em
um estudo anterior (CAVALLARI, 2013), já havia salientado que a
relação transferencial também se mostra possível e produz efeitos
- ainda que de outra ordem ou natureza - fora do setting analítico,
lembrando que o lugar do saber é o lugar da transferência que é sem-
pre amorosa. Pelo viés psicanalítico, a transferência está diretamente
ligada à função de sujeito suposto saber e ao desejo.Vale destacar que
a função de sujeito suposto saber, segundo Lacan ([1964] 1998, p.
220), “pode ser, para o sujeito, encarnada em quem quer que seja,
analista ou não (...)”. Ao abordar o amor de transferência, Silvestre
(1989, p. 97) pontua que “o ensinante, o padre, o sábio, o patriarca,
o amigo suficientemente disponível são, do mesmo modo, em tal ou
qual ocasião, objeto de transferência – de sentimentos transferenciais
– indo da afeição amistosa ao amor apaixonado”.
Assim como o analisando supõe que o analista sabe mais sobre
ele e sobre seu sintoma do que o próprio analisando que o incorpora,
o aluno também supõe um saber no professor que, muitas vezes, vai
além do saber epistemológico ou do saber sobre o conteúdo a ser

155
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

ministrado. Em minha experiência como docente, fui questionada,


por alunos de diferentes cursos e faixas etárias, sobre o que deveriam
fazer a respeito de suas escolhas profissionais e até mesmo pessoais, o
que parece ratificar a afirmação anterior. O psicanalisando, segundo
Silvestre (1989, p. 92), quer confiar seu sofrimento ao psicanalis-
ta. De modo semelhante, muitos alunos endereçam seus anseios e
aflições ao professor, sobretudo nas aulas particulares que seguem o
esquema um para um, isto é, um professor para um aluno. Não por
acaso, reproduzindo a fala de alguns alunos que já haviam se atentado
para isto, comecei a chamar determinadas aulas de therapy classes, em
especial aquelas em que os alunos se mostravam mais interessados
em falar sobre situações que os afligiam, de preferência em inglês,
ao invés de seguirem o plano de aula e de atividades previamente
preparados pelo professor.
Sobre as aulas particulares de LI, é significativo destacarmos
algumas especificidades desta prática não formal de ensino-apren-
dizagem. Trata-se de um trabalho com a língua que não passa pela
institucionalização, mas que, muitas vezes, põe em funcionamento
uma visão de língua como norma, estrutura e instrumento de co-
municação, tal como costuma ser praticado na escola. Nas aulas
particulares que ministrei, busquei me distanciar desta concepção
instrumentalizável e utilitária de língua, promovendo um ensino
afetado pelos pressupostos teóricos-metodológicos da AD e da Psi-
canálise que também ancoram minhas pesquisas e meu fazer docente
no ensino formal.
Alguns estudos na área de ensino-aprendizagem de línguas, de
orientação psicanalítica, salientam que o contato e a relação com uma
língua estrangeira (LE) propiciam um aparente falar livremente sobre
si e seus afetos, uma vez que a LE apresenta expressões, “palavras
desprovidas da sedimentação que faz a riqueza, a complexidade, mas
também o peso das palavras e expressões da língua materna” (REVUZ,
1998, p. 223). Assim sendo, o peso das palavras e expressões da língua
materna (LM) é diferente do peso adquirido e sentido na LE, o que

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

vai provocar um deslocamento das marcas anteriores e confrontar o


aprendiz com outro recorte do real. À primeira vista, a busca pela LE
apresenta-se como uma escolha aparentemente consciente, realizada
pelo aprendiz. Prasse (1997, p. 72) postula que:

O desejo de aprender uma LE pode ser o desejo de ter


escolha, de poder escolher a lei, as regras e muitas ve-
zes o mestre de nosso gozo. É o desejo de ser livre para
escolher uma ordem na qual se “exprimir”, de impor-se
uma ordem por um ato voluntário, aprender, enfim,
como se deve falar corretamente e gozar com isso.

No contato com a LE, observo que o aprendiz goza com essa


aparente liberdade de escolha das palavras e de como empregá-las,
além de gozar com os novos sons que a nova língua exige que seu
corpo produza. Talvez por conta dessas características, o falar de si
em uma LE se mostre tão propício e produtivo.
Revuz (1998, p. 220) enfatiza que “falar é sempre navegar à
procura de si”. Nesse prisma, podemos afirmar que a fala posta
em funcionamento propicia a apreensão do desejo inconsciente do
enunciador, já que, nas palavras de Lacan ([1971] 2009, p.18), “um
sujeito só pode ser produto da articulação significante. O sujeito
como tal nunca domina essa articulação, de modo algum, mas é pro-
priamente determinado por ela”. Assim sendo, o sujeito que surge
como efeito do assujeitamento à linguagem é causado por algo que
ele mesmo desconhece e que, vez por outra, irrompe no simbólico.
Pelo simples fato de o sujeito ser produto e não origem da articu-
lação significante, o termo “subjetivo”, que se ancora na ilusão de
origem dos sentidos, deve ser repelido, segundo Lacan (idem, p. 18).
Neste estudo, procuramos rastrear, nas formulações postas, marcas
de ruptura subjetiva como advir que aponta para manifestações da
singularidade. Buscou-se, portanto, entrever a emergência do sujeito
do desejo inconsciente nas formulações postas. Se entendermos o
discurso como uma lógica que põe em movimento a relação entre

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

sujeitos, nos parece produtivo que, vez por outra, no espaço de sala
de aula e nas/pelas práticas discursivo-pedagógicas, o professor as-
suma a posição (e não a função) de analista, voltando e exercitando
sua escuta para o singular que, de acordo com Leite (2000, p. 5),
“é efêmero, furtivo, não está autorizado a permanecer em cena”.
São justamente esses limites do sentido ou o aparente sem-sentido,
bem como os pontos de impasse que apontam para a verdade como
semidizer: “a verdade que se põe em guarda desde a causa do desejo”
(LACAN [1972-1973] 2008, p. 100), que buscaremos entrever nos
episódios seguintes.
O primeiro episódio se deu em uma aula particular ministrada
para um aluno de nível intermediário de conhecimento de LI. O aluno
em questão trabalhava em uma renomada empresa multinacional,
onde o inglês era tido como essencial, além de ser praticado quase
que diariamente no ambiente de trabalho, sobretudo em reuniões
e conferências a distância (conference calls). As aulas de inglês eram
realizadas dentro da própria empresa, ao término do horário de
expediente, na sala do aluno que tinha um cargo de diretor de uma
das plantas da empresa.Vale destacar que o sujeito-aluno em questão
tinha cerca de 50 anos e uma experiência profissional de quase 25
anos na mesma empresa, onde iniciou como estagiário e passou por
diversos cargos.
A aula que suscitou impasses subjetivos se iniciou com a leitura e
interpretação de um pequeno texto em inglês, cujo tema era “comer
fora” (Eating out). O referido texto falava sobre a frequência com que
os norte-americanos costumam comer fora e oferecia algumas dicas
e regras de etiqueta, no caso de se convidar alguém para comer fora
naquele país. O planejamento inicial da aula era discutir e comparar,
em inglês, os hábitos e regras praticados no Brasil e nos EUA, com
ênfase na pronúncia de vocábulos específicos. A última parte do
texto salientava como a gorjeta (tip) costuma ser calculada e paga
nos restaurantes americanos. Segue, abaixo, o trecho do texto que
apresentava tais explicações:

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

When the bill arrives, look to see if the tip has been added
to the cost of the food. Most restaurants do not add the tip
to the bill.You should leave a tip equal to 15% of the bill if
the service was adequate. If the restaurant is expensive or if
the service was especially good, you could leave up to 20%
of the bill.6

Ao ler o texto em voz alta, o aluno sempre errava a porcenta-


gem 20% e, por repetidas vezes, acabava dizendo 25%. A princípio,
acreditei ser um problema com a memorização dos números em
inglês e dediquei parte da aula para relembrar como se pronunciava
os números de 1 a 50. Apesar dessa interferência, quando comen-
távamos o modo de se dar gorjeta nos EUA, o aluno voltava a dizer
25% e parecia se perder na leitura e interpretação do texto. Ao notar
que esse aparente erro, que insistia em retornar na formulação do
aluno, poderia apontar para o desejo inconsciente e para a falta que
o constitui, lancei a seguinte pergunta: por que será que você insiste
em dizer 25%? Essa pergunta não foi sem consequência(s) subjetivas
para este aluno, pois foi a partir dela que ele se deu conta do que mais
o atormentava naquele momento: o fato de estar quase completando
25 anos de trabalhos prestados na empresa e a possibilidade de ser
mandado embora, tal como ocorrera com outros colegas de trabalho.
A partir deste momento, o aluno começou a falar, parte em inglês e
parte em português, sobre seus anseios e sobre o terror que a ideia
de perder o emprego aos 50 anos lhe causava.
É curioso destacar que ao completar 25 anos de serviços pres-
tados à empresa, o funcionário era convidado, juntamente com
sua família e colegas mais próximos de trabalho, a jantar fora em
um restaurante caro e diferenciado para comemorar tal feito. Nos
últimos cinco anos, a partir de 2010, no entanto, depois que a crise
econômica começou a atingir o país e, em particular, a empresa, os

6 Quando a conta chegar, observe se a gorjeta foi acrescida ao custo da comida. A maioria
dos restaurantes não adiciona a gorjeta à conta. Você deveria deixar uma gorjeta equiva-
lente a 15% da conta, se o serviço foi adequado. Se o restaurante for caro ou se o serviço
foi especialmente bom, você poderia deixar até 20% do valor da conta. (tradução nossa).

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

jantares passaram a ser suspensos e muitos funcionários que estavam


prestes a completar 25 anos de trabalho na empresa acabaram sendo
dispensados. Provavelmente, foram os significantes restaurante e 20%
que, ao deslizarem na cadeia significante, produzindo outros sentidos
e associações, suscitaram emergências subjetivas, revelando um saber
que não era sabido até então, mas que não deixava de afetar o sujeito
de linguagem. Em outras palavras, o sujeito desejante emergiu como
efeito da articulação significante. Ao término da aula, o aluno se
mostrou surpreso com o que o texto em inglês o levou a formular
e a verbalizar. Ele agradeceu a oportunidade e disse que iria refletir
sobre seu futuro profissional.
Alguns meses depois, num momento em que eu não mais mi-
nistrava aulas particulares na multinacional, recebi um e-mail do
aluno em questão, dizendo que ele havia tomado uma importante
decisão: tinha deixado a empresa. O curioso é que isso se deu antes de
completar os 25 anos de empresa. Algo de insuportável vinha à tona
diante da possibilidade de ser demitido em uma data que deveria ser
comemorativa. Essa descoberta produziu mudanças e consequências
na vida deste sujeito-aluno que afirmou ter mudado radicalmente sua
vida profissional, buscando melhorar sua qualidade de vida.
Os próximos episódios analisados foram protagonizados por
outra aluna particular de LI. Trata-se de uma aluna de meia idade,
com nível básico de conhecimento de LI, que trabalha como orien-
tadora educacional em uma renomada instituição pública de ensino
superior e que me relatou, logo em nosso primeiro encontro, nunca
ter conseguido aprender inglês, apesar de todo o seu esforço e dedi-
cação. Ao longo de nossas aulas, chamou-me a atenção, num primeiro
momento, o fato de ela repetir alguns “erros”7 que, a princípio, pa-
reciam simplesmente gramaticais, passíveis de serem identificados e
categorizados nos domínios morfológico e fonético, de acordo com
os estágios de aquisição da linguagem descritos por Yule (1996). No
7 Partimos, como o leitor deve ter notado, de uma visão mais corriqueira de “erro”, atrelado à
estrutura e à normatização, para, posteriormente, propor um outro olhar e uma outra escuta
para o que costuma ser considerado como tal no processo de ensino-aprendizagem.

160
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

entanto, uma escuta mais cuidadosa, nos permitiu entrever questões


subjetivas. Passemos aos episódios.
Em uma das aulas particulares inicias de LI, em que o tempo ver-
bal mobilizado para trabalhar a formulação de perguntas e respostas
sobre atividades rotineiras era o presente simples, notei que a aluna
em questão sempre ‘tropeçava’ ou hesitava ao pronunciar os verbos
live (morar/viver) e leave (deixar/ir embora). Como já mencionado
anteriormente, num primeiro momento, acreditei se tratar de um
simples erro de natureza fonética, já que o verbo live é pronunciado
com um som de vogal curta [I] e o verbo leave é pronunciado com
vogal longa [i:]. Apesar de minhas frequentes correções e de a aluna
se mostrar capaz de pronunciar corretamente esse mesmo padrão
sonoro em outras palavras da LI como em feet e fit, o erro ao pro-
nunciar o par live e leave persistia. Ao ler frases como I live em São José
dos Campos, que a própria aluna havia formulado em uma atividade
escrita, a pronúncia que se ouvia era I leave in São José dos Campos, o
que resultava em uma mudança radical de significado (de morar para
deixar, ir embora).
Em outro momento de sua aprendizagem, ao trabalharmos
algumas diferenças entre o uso do presente simples e do presente
contínuo em inglês, o erro que se configurou como dado singular
voltou a aparecer em suas formulações. Primeiramente, expliquei
a aluna que, em inglês, o emprego do presente contínuo denota
uma ação ou situação temporária, ao passo que o presente simples
costuma ser usado para expressar verdades universais (científicas) e
situações permanentes e rotineiras. Na atividade oral praticada após
minha explicação, cujo objetivo era fornecer informações básicas em
inglês (Exchanging basic information), utilizando-se do presente sim-
ples, a aluna formulou: I’m living in São José dos Campos e I’m working
at X8. Estruturalmente falando, a presença do presente contínuo nos
enunciados destacados tornava uma situação que, aparentemente,
seria permanente e rotineira em algo temporário e passageiro. Nesse
8 X substitui o nome da instituição de ensino superior onde o sujeito de pesquisa trabalha.

161
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

momento, comecei a perceber que o aparente erro morfológico e gra-


matical, materializado nas formulações postas, não resultava de uma
falta de compreensão da aluna sobre o emprego dos tempos verbais
da língua inglesa, mas da histerização do discurso que trouxe à tona
migalhas do saber inconsciente. Nas palavras de Lacan ([1969-1970]
1992, p.31), a histerização do discurso “é a introdução estrutural,
mediante condições artificiais, do discurso da histérica”.
A formulação inicial que Freud propõe de transferência como
um deslocamento de palavra, também se mostra produtiva para
analisarmos os episódios acima descritos. Silvestre (1989, p. 93)
destaca que:

A transferência é pois antes de tudo a verificação de


que uma coisa chega a um lugar onde não aparecia
antes (...) ela toma uma significação e uma função
inéditas; significação e função que se impõem ao sujeito
porque ele descobre que o que ele encontra assim é
o que ele procurava.

Foi justamente esse encontro com significações inéditas e


inesperadas que pude observar, quando perguntei a aluna: por
que será que você sempre troca live por leave e I live por I’m living,
sendo que esses verbos e estruturas têm significados tão distintos?
Como resposta, houve um desconcertante silêncio que deu lugar
ao espanto e susto estampados na feição da aluna, antes que ela
começasse a contar sua história. Segundo seu relato, desde crian-
ça, em função de questões familiares, Karina9 precisou se mudar
de casa e de cidades algumas vezes. Após se formar e ingressar no
mercado de trabalho, também se deu conta de que não conseguia
permanecer mais do que três anos na mesma cidade e/ou na mesma
instituição. Na época da produção desses “erros” que mobilizaram o
saber inconsciente do enunciador, Karina se deu conta de que fazia
quase três anos que ela estava morando e trabalhando na mesma

9 Nome fictício atribuído ao sujeito-aprendiz pesquisado.

162
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

cidade e instituição, ou seja, era chegada a hora de partir para outra


ou de rever seu posicionamento.
Ancorando-nos em Silvestre (1989), podemos afirmar que a
troca de palavras e de estruturas realizada pela aluna e interpretada
como um dado singular, para além de seu status gramatical, possibi-
litou a emergência de sentidos outros. Dito de outro modo, a pala-
vra transferida de um contexto onde ela é esperada a outro onde é
inesperada, à revelia do enunciador, possibilitou uma interpretação
singular. A pontuação por mim realizada, a partir de um signifi-
cante investido de algo que é da ordem do recalcado, possibilitou
a emergência do sujeito do desejo inconsciente onde, a princípio e
aparentemente, só havia uma aluna buscando aprender inglês. Assim,
a palavra transferida de um contexto onde é esperada a outro, onde
ela é inesperada, mobilizou o sujeito a sair da ignorância para se
haver com seu desejo. O erro tomado como formações do inconsciente
diz algo sobre o sintoma, sobre a repetição do sujeito de linguagem;
“admite uma significação na qual o sujeito hesita em se reconhecer”
(SILVESTRE, 1989, p. 95). A transferência do significante implica
“que o sujeito se divide consigo mesmo, que ele não é senhor do que
diz” (Idem, p. 94), tal como postula a AD que adota uma noção de
sujeito de base psicanalítica.
De modo geral, em todos os episódios aqui abordados, o po-
sicionamento do professor – sobretudo ao realizar uma escuta sin-
gular do erro aparentemente estrutural – parece ter se pautado na
lógica do ato analítico, uma vez que sua resposta diante das rupturas
subjetivas observadas se deu como efeito da construção do próprio
sujeito-aluno ou do saber que, aparentemente, causa o seu desejo,
mesmo não se dando conta disso. O significante mestre (S1), que
marcara o sujeito enunciador e que o constitui, permaneceu isolado
até o momento da intervenção do Outro (representada, no caso,
pela figura do professor que sustentou a função de sujeito suposto
saber), “quando a palavra toma, então, um andamento de descoberta,
como o rasgar brusco de um véu ou a explosão de alguma verdade”

163
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

(MILLER apud LEITE, 2000, p. 48). Na mesma direção, Silvestre


(1989, p. 96) enfatiza que o lapso não é erro – “essas manifestações
inquietam o sujeito por serem ‘dele’, mesmo quando ele se recusa
se reconhecer aí. São dele, e lhe trazem uma mensagem sobre sua
íntima verdade”.
Pouco tempo após os últimos episódios aqui descritos, que per-
mitiram a emergência do sujeito do inconsciente e de sua verdade,
a aluna me solicitou a indicação de um profissional para iniciar seu
processo de análise, relatando que havia recebido um diagnóstico de
fibromialgia e que não gostaria de fazer uso dos fortes medicamen-
tos a ela prescritos. Observa-se que algo se produziu a partir dos
acontecimentos abordados, possibilitando a passagem do sentido à
consequência. Em outras palavras, algo foi feito a partir do que o
próprio sujeito produziu ou trouxe à tona e que lhe permitiu se (re)
posicionar em relação ao seu gozo e à sua repetição.

Considerações finais

Nos episódios analisados, o que se materializa como ‘impossível


de educar’ pode apontar para saídas possíveis e singulares se, com
base na lógica em funcionamento no discurso analítico, partirmos
do objeto causa do desejo do aprendiz (objeto a), para mobilizar o
equívoco que permite ao sujeito avessar o discurso do senso comum,
já naturalizado sócio-historicamente, e se reinventar. Nos registros
abordados, os aparentes erros cometidos pelo aprendiz foram toma-
dos, pelo professor, como significantes que clamam por uma signifi-
cação singular, possibilitando deslocamentos subjetivos e respostas
diferenciadas aos impasses vivenciados por ambos: sujeito-professor
e sujeito-aluno.
O que propomos é uma escuta singular de impasses e ruptu-
ras subjetivas que se dão no ato educativo, de modo que possamos
compreender questões acerca da subjetividade e da repetição de
sintomas tão comuns no processo de ensino-aprendizagem, mas que

164
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

parecem ter uma origem sempre singular. Para tanto, faz-se neces-
sário indagarmos qual seria a função, o efeito e a causa do aparente
erro ou do aparente sem-sentido que produz rupturas subjetivas
para cada sujeito-aprendiz, em particular, no espaço de sala de aula,
distanciando-nos, enquanto professores, do imperativo da massifi-
cação que governa a prática discursivo-pedagógica, também afetada
pela lógica capitalista de produção.
Não estamos sugerindo, no entanto, que o professor se torne
analista ou que passe a exercer a função que o analista exerce no
setting analítico e que não costuma ser sem consequências, mas sim
que comece a experimentar e exercitar o dom de uma escuta singu-
lar que possa trazer deslocamentos produtivos e significativos para
o ato educativo, que, assim como o ato psicanalítico, deixa marcas
indeléveis no sujeito de linguagem.
Os episódios abordados neste estudo revelam que, o que se
apresenta, num primeiro momento, como impossível de se ensinar e
de aprender – como no caso da pronúncia e mobilização dos tempos
verbais em inglês – abre espaço para tocar o saber que determina,
mas que escapa ao sujeito, já que é da ordem do Real, do impos-
sível. Para que deslocamentos subjetivos sejam desencadeados por
esse impossível de educar que se materializa em erros gramaticais
e/ou semânticos, lapsos e tropeços de linguagem, faz-se necessário
que essa aparente impossibilidade de aprender e de ensinar não seja
silenciada ou ignorada, em nome de métodos que se pretendem
totalizantes e que não levam em conta a incompletude que constitui
o sujeito e a linguagem.

165
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

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Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

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167
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

A FORMAÇÃO DO ALUNO MONITOR EM


CONTEXTO COLABORATIVO
Joelma Pereira de Faria
Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVAS)

Resumo: Este capítulo trabalha sobre a colaboração no processo de


ensino-aprendizagem, em uma perspectiva dialética onde o conhe-
cimento é compreendido e apreendido como construção histórico-
social, a partir da pesquisa de Faria (2003), que aponta o trabalho com
monitoria em aulas de língua (Inglesa) como um meio de amenizar
diversidades de contexto e heterogeneidades das turmas. A moni-
toria, no cenário educacional brasileiro, normalmente vincula-se às
universidades e aos Institutos de Ensino Superior (IES), onde é vista
como estratégia de nivelamento e auxílio a alunos que enfrentam
dificuldades com conteúdos ministrados nas disciplinas, e envolve
os alunos-monitores como coordenadores de grupos de estudos
ou para o desenvolvimento de atividades de reforço. O modelo de
monitoria ali empregado envolve alunos de séries subsequentes que
atuam extraturno ou em outros horários, junto a alunos de outras
séries. Este perfil de trabalho tem apontado alguns problemas, aqui
discutidos: a) dificuldade com os horários ofertados (principalmente
em cursos noturnos, já que a maioria dos alunos trabalha no período
diurno); b) questões financeiras apontadas pelas instituições para a
remuneração dos alunos-monitores e c) a ausência de professor ao
longo da realização das atividades para coordenar, orientar e realizar
atividade formativa junto aos alunos-monitores, concomitante ao seu
desenvolvimento. Assim, o objetivo do capítulo é discutir o processo

169
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

de formação do aluno-monitor como um processo colaborativo,


reflexivo e voltado à construção do ensino-aprendizagem para a mo-
nitoria, que pressupõe a atuação e o envolvimento direto e constante
de professores e alunos. Palavras-chave: Ensino-aprendizagem. Língua
Inglesa. Monitoria. Conhecimento. Colaboração.

Introdução

Composta pela Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino


Médio, a Educação Básica no Brasil tem por objetivo garantir a todos
os brasileiros os requisitos da formação comum que são indispensáveis
para o exercício da cidadania e, também, assegurar ao cidadão os
meios para que possa progredir no trabalho e em estudos posteriores
(LDBEN Art. 21 e 22).
Entretanto, a escola pública, no Brasil, tem enfrentado desafios
em virtude da excessiva heterogeneidade de domínios de leitura e
escrita e da produção de conhecimento dos alunos nas diversas áreas.
O que se encontra, em grande parte das instituições, é um ensino
descontextualizado, compartimentalizado e com ênfase no acúmulo
de informações. Na tentativa de fugir a esse modelo estabelecido é
preciso dar significado ao conhecimento escolar por meio da con-
textualização, da interdisciplinaridade e do incentivo ao raciocínio
e à capacidade de aprender (PCNEM).
O Ministério da Educação, em ação integrada com a Secretaria
de Educação Básica e os órgãos estaduais voltados ao ensino, tem
buscado propostas de melhoria nas condições de oferta da Educação
Básica. São itens prementes das reformas propostas: a) uma reforma
curricular que contemple as diversas necessidades dos alunos; b)
ensino comprometido com a diversidade socioeconômica e cultural
da população brasileira; c) valorização e formação de professores; d)
melhoria da qualidade do ensino regular noturno e de educação de
jovens e adultos e e) modernização e democratização da gestão de
sistemas e escolas da rede pública de ensino, entre outros.

170
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Neste processo de repensar o ensino, deseja-se que cada escola


faça um retrato de sua condição e situação, dos indivíduos que a
compõem e a tornam viva bem como do meio social em que está
inserida. A partir disso, torna-se possível compreender sua própria
cultura e estabelecer instrumentos para a construção de uma pro-
posta curricular coerente com as necessidades de seus alunos e com
o contexto sócio-histórico-cultural em que está inserida. Assim,
pressupõe-se a possibilidade de dinamização do processo ensino-
aprendizagem numa perspectiva dialética, em que o conhecimento
é compreendido e apreendido como construções histórico-sociais.
Faria (2003) aponta o trabalho com monitoria em sala de aula
como um meio para amenizar as diversidades de contexto e as dife-
renças no processo de aquisição do conhecimento nas escolas.
A atividade de monitoria no cenário educacional brasileiro,
normalmente, vincula-se às universidades e aos Institutos de Ensino
Superior (IES) nos quais essa atividade é vista como uma estratégia
de nivelamento e auxílio àqueles alunos que enfrentam dificuldades
junto aos conteúdos ministrados pelas disciplinas, que emprega os
alunos-monitores como coordenadores de grupos de estudos ou,
ainda, para o desenvolvimento de atividades de reforço.
Em tais instituições o modelo de monitoria empregado envolve
alunos de séries subsequentes que atuam em horário extra turno,
ou em outros horários estabelecidos pelas instituições, junto aos
alunos de outras séries. Porém, esse perfil de trabalho tem apontado
alguns problemas: a) a dificuldade de muitos alunos para frequentar
as sessões de monitoria em virtude dos horários ofertados (princi-
palmente em cursos noturnos, nos quais a grande maioria dos alunos
trabalha no período diurno); b) as questões financeiras apontadas
pelas instituições para a remuneração dos alunos-monitores; e c) a
ausência de um professor ao longo da realização das atividades para
coordenar, orientar e realizar uma atividade formativa junto aos
alunos-monitores concomitante ao desenvolvimento da atividade de
monitoria, entre outros.

171
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Ao vivenciar esses problemas, e na tentativa de buscar meios


que possibilitassem uma atividade de monitoria capaz de amenizar as
questões previamente elencadas, Faria (2003) propõe uma forma al-
ternativa de trabalho com a atividade de monitoria. Nessa abordagem,
a autora apresenta uma proposta diferenciada do modelo anterior,
utilizando um trabalho de monitoria realizado em sala de aula, em
conjunto com a atividade docente, em que alunos e professores atuem
em conjunto no desenvolvimento das tarefas e trabalhos apresenta-
dos e propostos pelo professor. Esse modelo faz com que alunos e
professores se responsabilizem pelo processo ensino-aprendizagem,
pois requer a participação ativa e engajada nas atividades propostas
a todos no contexto de sala de aula, durante o desenrolar das aulas.
Faria (2003) aponta como primeiro passo a identificação de alu-
nos capazes de atuar como monitores e o trabalho de conscientização
destes quanto à atividade a ser desenvolvida. Essa identificação poderá
ser feita por análise curricular, prova de conteúdos específicos ou
outras formas a serem estabelecidas pelos conselhos de classe. Iden-
tificados os alunos-monitores, é necessária a distribuição dos outros
alunos em grupos parcialmente homogêneos1 nos quais exista sempre
um monitor atuando como mediador e estabelecendo relações entre
professor, alunos e conteúdos.
Segundo a autora, esse trabalho possibilita um atendimento
maior e diferenciado àqueles que se encontram em posição desfa-
vorável no contexto de sala de aula, uma vez que o professor pode
contar com outros alunos que colaboram na construção de uma prá-
tica docente mais eficaz e de um processo de ensino-aprendizagem
construído em uma condição que permita maior acesso a todos
envolvidos no ambiente escolar.
Assim, o objetivo deste artigo é discutir o processo de forma-
ção do aluno-monitor2 como um processo colaborativo, reflexivo
e voltado à construção do ensino-aprendizagem para a aplicação da
1 É preciso que haja esse agrupamento homogêneo dos alunos para que a atuação dos alunos
monitores possa ser melhor distribuída e voltada ao atendimento de necessidades específicas.
2 Deste ponto em diante, no artigo, o aluno-monitor será mencionado somente como monitor.

172
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

atividade de monitoria que pressupõe a atuação e o envolvimento


direto e constante de professores e alunos.

Colaboração

Colaboração é um conceito central no processo de formação


do monitor. Magalhães (1998) explica que colaboração difere da
noção de ajuda, em que aquele que sabe mais auxilia o outro que
sabe menos. Colaborar não é hierarquizar saberes, mas assumir
as diferenças como profundamente construtivas; pressupõe uma
atitude solidária entre agentes que buscam atribuir significados às
suas práticas, considerando os conflitos decorrentes das diferenças
altamente produtivos, já que levam os participantes a um processo
de negociação que implica questionamentos em relação aos próprios
valores, escolhas e sentidos e também os do outro.
Magalhães (1998, p.173), assim define o conceito de colabo-
ração:

colaborar, seja em relação ao pesquisador, ao pro-


fessor, ao coordenador ou ao aluno, significa agir no
sentido de explicar, tornar mais claro seus valores,
suas representações, procedimentos e escolhas, com o
objetivo de possibilitar aos outros participantes ques-
tionamentos, expansões, recolocações do que está em
negociação. Dessa forma, o conceito de colaboração,
envolvido em uma proposta de construção crítica do
conhecimento, não significa simetria de conhecimento
e/ou semelhança de ideias, sentidos, representações
e valores.

Para colaborar, é necessária a consciência de que nenhuma ação


é desinteressada.Vincula-se a uma forma específica de se conceber o
real que se vive. A colaboração faz com que se ganhe o sentido da ação,
ao mesmo tempo em que se ganha consciência de que esta ação pode
se configurar de outras formas, tendo em vista os diferentes contextos

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

sócio-histórico e culturais em que ela se desenrola. A transformação


não se restringe a aspectos externos, em que a ação é alterada para se
adequar a paradigmas de certo e errado; a transformação se produz
na modificação das representações e dos valores do agente.
Na formação do monitor, a colaboração tem por objetivo a cria-
ção de espaços para a discussão da constituição do aluno como cidadão
que se engaja em uma ação, que não se torna vítima de exclusão, de
desigualdade e de preconceito. Visa à possibilidade de participação
de todos, sem rótulos de quem é bom ou ruim.
Para Magalhães (1998), consideram-se contextos propícios
para a formação de professores e monitores aqueles que permitem
a discussão, negociação e compreensão de teorias e práticas a serem
empregadas. Assim, os contextos de ação em que os participantes
interagem, questionando as ações de seus interlocutores e sendo
questionados por eles, retomando e redefinindo ações, podem ser
considerados como contextos colaborativos.
A ação do professor, ao longo deste processo, consiste na forma-
ção do monitor preparando-o para a atuação junto aos demais grupos
de alunos que necessitam de sua atenção para o desenvolvimento
de atividades em sala de aula. Para que isso ocorra é necessária a
criação de espaços colaborativos nos quais professor e monitor pos-
sam negociar sentidos, discutir atividades, planejar ações conjuntas,
organizar suas práticas e estabelecer elementos norteadores para o
desenvolvimento do trabalho junto aos alunos monitorados.
Compete ao professor a escolha dos monitores que atuarão em
sala de aula, a definição do cronograma de trabalho e as atividades a
serem desenvolvidas. Porém, a aplicação destas atividades, os papéis
de sala de aula, as responsabilidades a serem atribuídas a cada um
dos participantes envolvidos e as discussões e avaliações posterio-
res a serem realizadas, devem ser efetuadas de forma colaborativa,
envolvendo professores e monitores, considerando o conhecimento
construído antes e durante a aplicação da atividade de monitoria

174
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

em sala. Este trabalho é permeado por diversas vozes - professor,


monitores, alunos – e estas devem ser levadas em consideração no
processo formativo do monitor.
Dentro desta proposta de trabalho com a atividade de monitoria,
a escola não se constitui como um simples local para o desenvolvi-
mento destas ações. São suas necessidades, demandas e a busca por
transformações que disparam as atividades desenvolvidas no con-
texto escolar. E, se as atividades se originam neste espaço, todas as
reorganizações, modificações e melhoras oriundas desse movimento
voltam para esse mesmo contexto, com o intuito de minimizar as
dificuldades enfrentadas no ambiente escolar.
Dessa forma, somente quando ocorre a integração e a interação
de professores, monitores, alunos e todos aqueles envolvidos no
ambiente escolar é que se estabelece um contexto realmente cola-
borativo. É preciso a pré-disposição de todos aqueles que compõem
o cenário escolar na negociação de valores, sentidos e significados,
na discussão de atividades práticas e conceitos teóricos para que a
colaboração se materialize como fator determinante no desenvolvi-
mento de novas estratégias e atividades em ambiente escolar.
Se o conceito de colaboração é fundamental, também o é o
conceito de reflexão crítica como um processo que leva o monitor
a se constituir como um agente co-construtor do conhecimento e
mediador do processo ensino-aprendizagem. Assim, ao criar con-
textos colaborativos, não se pode excluir a reflexão, uma vez que
esta faz parte da construção colaborativa, e é um caminho para o
estabelecimento da colaboração.

Reflexão

Inúmeros pesquisadores (e.g. Pérez-Gómez (1992/1995),


Schön (1992/1995), Perrenoud (2001) e Celani (2000), entre ou-
tros) vêm salientando que a profissionalização dos professores tem

175
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

que ter a prática reflexiva e a participação crítica como elementos


norteadores, pois “só por meio da prática reflexiva o professor poderá
alcançar o domínio da complexidade e da imprevisibilidade, que é
o que encontrará no mundo, na escola, na sala de aula” (CELANI,
2000, p.15).
Segundo Liberali (1996), o processo reflexivo é elemento
indispensável na formação e no aprendizado do professor. Refletir
implica um processo de busca interior do sujeito que deve levar ao
distanciamento do senso comum, o que propicia transformações na
consciência que se tem de si próprio e do outro.
Conforme Kincheloe (1997), ao se introduzir a psicologia
behaviorista na escola, atribuiu-se ao professor a função tecnicista
de transmissor de verdades universais e esta se constitui numa visão
de transmissão de conhecimento como uma visão bancária da edu-
cação3, em que o professor posiciona-se como banqueiro que estoca
e acumula conhecimento e vê os alunos como clientes que trocam
empréstimos de fatos por testes, como salienta Paulo Freire.
Para reverter este quadro, estabeleceu-se um contexto de
reformas educacionais com um número crescente de trabalhos e
pesquisas envolvendo a formação do professor. A peça chave deste
contexto é o conceito de reflexão, que vem sendo enfocado de modos
diversos. Por exemplo, Schön (1983), usando a noção de experiência
e da teorização que Dewey (1933/1989) apresenta, impulsiona o
desenvolvimento do conceito de reflexão ao introduzir as noções
fundamentais para o que denomina de componentes da reflexão sobre
a prática: conhecimento-na-ação, reflexão-na-ação, reflexão-sobre-a-ação e
reflexão sobre a reflexão-na-ação.
Para Perez-Gómez (1992/1995), podemos entender por co-
nhecimento na ação o saberfazer revelado no desempenho da ação de
forma espontânea e habilidosa. No entanto, o agente não consegue
expressar verbalmente esse conhecimento. O monitor tem conhe-

3 Termo usado por Freire (1972/1987: 57) mas não citado por Kincheloe em sua obra.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

cimento das habilidades e dos conhecimentos requeridos para que


possa atuar junto ao professor e ao aluno. Entretanto, é necessária a
mediação do professor para que possa externalizar esse conhecimento
ou mesmo reorganizá-lo em função de seu trabalho junto ao grupo.
Dentro do processo reflexivo, Schön (1992/1995) afirma que
o conceito de reflexão na ação envolve o profissional, no ato da ação,
num diálogo com a situação, o que faz com que busque, a partir da
interação com a realidade-problema e o seu conhecimento teórico
e prático, a reformulação de sua prática. Este processo pode se fazer
sem palavras e permite ao monitor a busca pelo desenvolvimento, a
compreensão de seu trabalho e de si próprio, por meio do encoraja-
mento, do reconhecimento e da valorização dos conflitos e incertezas
que permeiam as situações de aprendizagem.
A reflexão sobre a ação permite ao monitor a análise posterior das
características e processos de sua própria ação, propiciando, assim,
o distanciamento dos condicionamentos impostos pela prática, a
percepção da situação sob outras perspectivas, a reconsideração dos
fatos positivos e a busca de novos caminhos para o que lhe parece
comum. A intervenção do professor é primordial nesse momento.
Cabe a ele conduzir o monitor ao longo desse processo para que se
possa efetuar um re-exame da atuação em sala e de todos os aspectos
envolvidos.
Na reflexão sobre a reflexão na ação o monitor pode empreender
um olhar retrospectivo e a busca pela compreensão dos esquemas
do pensamento, das teorias e das representações que direcionam a
sua ação como forma de desenvolver outros meios de agir e pensar
enquanto em ação. Para Pérez-Gómez (1992/1995, p.105) este tipo
de reflexão é “um componente essencial do processo de aprendiza-
gem permanente em que consiste a formação do profissional”. Para
o autor, esses três processos de reflexão não são independentes, mas
se completam e podem constituir o pensamento prático do monitor,
propiciando a construção de um profissional crítico e reflexivo.

177
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Segundo Liberali (1996), numa perspectiva vygotskiana, a refle-


xão pode ser relacionada à ideia de autoconsciência. Para Vygotsky
(1925a), a consciência não é algo que pode ser transmitido a outros,
mas que se constrói nas ações mediadas. Nessa direção, no processo
reflexivo, professor e monitor atuam, de forma colaborativa, para
a construção da consciência e de novos conhecimentos no entendi-
mento das ações de sala de aula, dos questionamentos daí oriundos,
dos questionamentos dos papéis de professores e alunos e das trans-
formações envolvidas ao longo de todo esse processo.
Assim, qualquer atividade, trabalho formativo ou proposta
de transformação do monitor precisa passar necessariamente pelo
processo reflexivo.

Ensino-aprendizagem

Este texto discute a formação do monitor dentro do quadro


da colaboração e da reflexão crítica. Estabelecido este processo,
cria-se um contexto de ensino-aprendizagem que envolve professor
e monitor.
A teoria do desenvolvimento de Vygotsky (1934/2002) tem
salientado acaloradas discussões no campo educacional. A partir
dela, inúmeros teóricos têm fundamentado uma nova concepção do
processo pedagógico. O autor mesmo ressalta a importância da insti-
tuição escolar como um espaço fundamental para o desenvolvimento
intelectual do aluno. Para ele, o processo de aprendizagem é um
processo de internalização que permite ao agente a transferência de
um aprendizado para novas situações, o que requer uma capacidade
de generalização e de abstração que percorre um processo que seus
estudos tencionaram descrever.
A escola, na sua função sistematizadora, chama a si a tarefa de
contribuir na formação de conceitos científicos na mente do aluno.
É necessário compreender correta e claramente como se processa

178
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

essa informação para que a escola não corra o risco de ineficiência.


A ela cabe levar o aluno a uma percepção generalizante de suas ati-
vidades, de forma que ele possa conscientizar-se de seus próprios
processos mentais.
De acordo com Vygotsky (1934/2002), pode-se dizer que a
relação entre os processos de aprendizado e o desenvolvimento das
funções psicológicas correspondentes não ocorre na linearidade pre-
vista pela organização curricular. O que compete à escola é organizar
suas atividades de forma a estimular o desenvolvimento intelectual
do aluno, despertando e dirigindo o sistema de processos psíquicos.
O aprendizado deve preceder o desenvolvimento e, a partir deste
precedente, o teórico elaborou o conceito de zona de desenvolvimento
proximal (ZPD) que é:

a distância entre o nível de desenvolvimento real,


que se costuma determinar através da solução inde-
pendente de problemas e o nível de desenvolvimento
potencial, determinado através da solução de proble-
mas sob a orientação de um adulto ou em colabora-
ção com companheiros mais capazes4 (VYGOTSKY,
1934/2002, p.112).

De grande relevância para o campo da educação, este conceito


permite identificar não só os processos já efetivados na mente do
aprendiz, como também aqueles ainda em construção, auxiliando
na organização de atividades escolares que lhe possibilitem acesso a
novos níveis de desenvolvimento, transformando a perspectiva do
processo ensino-aprendizagem numa direção prospectiva, voltada
para o futuro e não mais para o passado, como determina uma con-
cepção com base no nível de desenvolvimento real.
Para Vygotsky (1934/2002), o espaço escolar é o lugar mais
propício para a criação da ZPD, pois propicia uma interação que
4 Este conceito é muito discutido hoje em dia. Não se usa mais esse termo, uma vez que a
questão dos mais capazes é bastante complexa em relação a contextos específicos. Tem-se
usado o termo “par mais experiente” ou somente “par”.

179
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

favorece a cooperação entre professores e alunos, empenhados no


objetivo primordial da construção do conhecimento. Este conceito
de ZPD destaca a importância da ação colaborativa entre os agentes
e coloca a interação como aspecto central do processo de ensino-
aprendizagem, já que é por meio dela que os significados serão ne-
gociados. A ZPD é um contexto de construção colaborativa – agir
na ZPD para aprender é agir com o outro, é colaborar.
De acordo com Schneuwly (1992), o principal aspecto do
conceito de ZPD repousa no “aspecto desenvolvimento” e é esta a
intenção de Vygotsky, para quem o desenvolvimento é entendido
como o aparecimento de novas formas de funcionamento psíquico
e tem como característica a transformação por revolução, e não por
um aumento das capacidades existentes.
Dessa forma, para Schneuwly (1992), embora alimentado por
influências externas, o desenvolvimento é um processo que possui
leis próprias. Sendo assim, é a ação do parceiro (professor, adulto,
formador ou parceiro) a motivação para a criação de novos constru-
tos. O fator mais importante para a ocorrência dessa construção é o
conflito instaurado nessas interações.
Segundo Wertsch (1985), o funcionamento interpsicológico na
zona de desenvolvimento proximal pode variar muito dependendo do
contexto institucional/social em que ocorre. Desde que transcorra
em ambientes socioculturais propícios, a ZPD criada proporciona um
ponto em que os domínios socioculturais e ontogenéticos5 podem
ser examinados na interação.
O conceito de ZPD, ao destacar a importância de uma ação co-
laborativa entre monitor e professor, coloca a interação como aspecto
central no processo ensino-aprendizagem, pois é por meio dela que
serão negociados os sentidos. É essa interação que o trabalho com
monitores pretende criar para que se possa desenvolver um quadro
de formação que contemple a colaboração e a reflexão e que leve
5 Domínios ontogenéticos são aqueles que discutem o desenvolvimento de uma espécie desde
seu nascimento até sua morte (Vygotsky, 1987/2000).

180
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

aluno, monitor e professor a construírem os sentidos acerca de seus


papéis em sala de aula.

O papel do professor

No desenvolvimento do trabalho com monitoria em sala de aula,


compete ao professor a apresentação da proposta, o estabelecimento
dos critérios para a escolha dos monitores e a primeira seleção dos
alunos que atuarão junto aos colegas de classe e ao professor. Num
segundo momento, cumpre-lhe fazer o convite e apresentar as dire-
trizes para a atuação do monitor intra e extraclasse. Essas diretrizes
devem ser previamente definidas, porém precisam ser passíveis de
negociação e reconstrução. Rogoff (1990) entende a aprendizagem
do professor/monitor como a apropriação e a transformação de
recursos que ocorrem por meio de atividades desenvolvidas no tra-
balho conjunto entre eles.
Definido esse primeiro momento, é preciso que o professor
trabalhe com o monitor, assegurando-lhe subsídios para a atuação
junto ao grupo de alunos. Esse é o momento da discussão dos con-
teúdos a serem abordados em sala de aula, das atividades que serão
desenvolvidas e dos papéis cabíveis a cada um. É por meio da criação
de contextos colaborativos e reflexivos que monitor e professor
negociam sentidos e constroem conhecimentos acerca do contexto
de sala de aula.
Apesar do aspecto técnico envolvido nesta etapa, é preciso
evitar a proximidade com o senso comum e propiciar ao monitor o
contato com material teórico adequado e que possa contribuir para
o aspecto formativo de todos os envolvidos no trabalho. A falta de
embasamento teórico nesse momento da discussão pode criar um
contexto marcado exclusivamente pela reflexão prática que, segundo
Romero (1998), refere-se ao entendimento interpessoal e à inter-
pretação de práticas sociais. A reflexão prática está relacionada aos
problemas da ação que não são passíveis de serem resolvidos apenas

181
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

de forma instrumental. Interessa aqui o conhecimento que facilita o


entendimento e o alcance do entendimento com outros.
O que se pretende com a interação professor-monitor é a criação
de contextos que propiciem a reflexão crítica, conforme já mencio-
nado anteriormente. Nesse nível, as questões ponderam sobre que
objetivos educacionais, experiências e atividades levam a formas de
vida preocupadas com a justiça, igualdade e ações concretas. Além
disso, localiza as análises de ações pessoais em contextos histórico-
sociais mais amplos. O interesse aqui está centrado em propiciar uma
maior autonomia e emancipação para os praticantes.
Neste processo formativo, o desenvolvimento de professor e
monitor não difere, pois ambos se apropriam dos diversos conhe-
cimentos construídos conjuntamente. Segundo Magalhães (1992a,
p.4) o professor “assume o papel de mediador entre o aprendiz e a
tarefa a ser realizada que estiver além de sua possibilidade de ação
independente e como criador de oportunidades de aprendizagem
na ação”.

O papel do monitor

Ao aluno que se engaja no trabalho de monitoria e que passa


a atuar como monitor em sala e aula compete o papel de mediador
entre professor, aluno, atividades a serem desenvolvidas e conteú-
dos ministrados. É inegável a necessidade de sua participação em
encontros extrassala, envolvendo monitor e professor, realizados
para a determinação das ações a serem empreendidas em sala de
aula. É nesse momento que o monitor se apropria das atividades a
serem realizadas, esclarece dúvidas, cria um momento de estudo, faz
sugestões e avaliações dos trabalhos já realizados, aponta as dificul-
dades enfrentadas e como elas poderiam ser contornadas conforme
sua ótica.
O monitor é a ligação entre professor e aluno. Sua ação ime-
diata junto ao grupo e trabalho em sala de aula permite ao professor

182
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

maior mobilidade e possibilidade de atuação junto `aqueles alunos


que requerem uma ação mais incisiva. O monitor representa a pronta
intervenção nos momentos de dúvida ou de outras dificuldades que
possam surgir por parte dos alunos.
A nota não deve ser critério único de escolha do monitor. Fatores
como responsabilidade, engajamento e motivação precisam, e devem
ser levados em consideração. Ainda, é preciso observar determinada
paridade na distribuição dos monitores junto aos grupos de alunos. É
preferível que não se distribua monitores muito distanciados quanto
ao nível de conhecimento para a atuação nos grupos de trabalho de
sala de aula. Não é intenção desta proposta de trabalho criar contextos
que possam causar constrangimentos a alunos, monitores ou profes-
sor, mas sim potencializar a construção conjunta do conhecimento
por meio de atividades e ações previamente delineadas e planejadas.

A formação do monitor reflexivo

A pesquisa sócio-histórica-cultural embasada em Vygotsky e


Bakthin concebe a linguagem como prática discursiva e produção
simbólica que se realiza nas práticas sociais, culturais e historicamen-
te situadas. O homem se constitui como ser humano, desenvolve o
pensamento e a linguagem e constrói sua subjetividade nas práticas
sociais, portanto, o eu é sempre o resultado da interação e da apro-
priação dos discursos de outros.
Para Vygotsky (1987/2000), a linguagem, tanto quanto o pen-
samento, foi uma preocupação central em seus estudos por ser ela
o instrumento de mediação na relação do sujeito com o mundo que
o constitui. Os discursos dos sujeitos interagentes estão sempre em
diálogo e não implicam simetria ou harmonia uma vez que envolvem
diferentes culturas e experiências.
No entanto, na formação do monitor, são esses discursos con-
flitantes que levam à aprendizagem por serem capazes de propiciar

183
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

o confronto entre os conceitos científicos e aqueles popularmente


adquiridos.
Segundo Vygotsky (1987/2000), as práticas sociais se consti-
tuem, principalmente, a partir de práticas discursivas e o desenvolvi-
mento do indivíduo resulta de um processo influenciado por fatores
culturais, sociais e históricos. Assim, atribui-se à linguagem papel
primordial na ação humana do mundo, na aquisição de conhecimento
pela interação e no contexto particular em que tais indivíduos atuam.
De acordo com Vygotsky (1987/2000), a relação entre o pensa-
mento e a palavra não se desenvolve em paralelo, mas sim em espiral,
em um constante vai-e-vem, no qual o pensamento só se faz existir
através da palavra, à qual compete a organização do pensamento para
que o mesmo possa ser externado e assimilado. Segundo o autor “o
pensamento nasce através das palavras. Uma palavra desprovida de
pensamento é uma coisa morta, e um pensamento não expresso por
palavras permanece na sombra” (p. 190).
Como sugerido por Bakhtin/Volochinov (1929/2002), o centro
organizador e formador da atividade mental é a interação verbal, ou
seja, a atividade mental se estrutura e se organiza de acordo com
uma expressão semiótica que circunda o exterior, e não o interior do
falante. A enunciação é determinada pelos participantes do ato de fala
e são eles que designam a forma e o estilo ocasionais desse momento.
É o contexto histórico, social, cultural e ideológico e as enunciações
já proferidas que compactuam para a produção de novas enunciações
através da interação verbal. Só podemos entender uma enunciação
se entendemos a situação social mais imediata e o meio social mais
amplo, ou seja, o contexto no qual se proferiu a enunciação.
Dolz & Schnewly (1996), discutindo as ações do homem ao
longo da História, apontam que os grupos sociais acumulam aqui-
sições que são chamadas de práticas de linguagens. E são essas prá-
ticas os reflexos e os principais instrumentos das interações sociais
reconstruídas. A reconstrução dessas interações leva à construção

184
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

de um novo espaço capaz de propiciar ao monitor e ao professor


o contato com novas formações discursivas que lhes possibilitam a
avaliação das práticas de sala de aula e a aprendizagem por meio de
um processo mediado.
São essas interações que se fazem através do uso da linguagem
que propiciam, também, a (re)construção dos sentidos e significações
dos participantes em um processo de formação reflexivo-crítica.
Para que haja um contexto de formação do monitor que contemple
a reflexão e a colaboração é preciso que todos os participantes en-
volvidos possam fazer uso da linguagem para a negociação de novos
sentidos, entendimentos e situações.

Considerações finais

Esta pesquisa teve como objetivo discutir o desenvolvimento


do trabalho de formação de monitores a partir da criação de espaços
colaborativos que propiciem um processo crítico-reflexivo sobre sua
prática dentro de um grupo e a construção de novos conhecimentos
sobre ensino-aprendizagem.
O que se propõe com o trabalho de monitoria é que as escolas
possam (re) pensar suas ações e práticas educativas e o papel de
professores e alunos nos contextos educacionais. Como instituição,
a escola precisa criar condições para a construção conjunta do co-
nhecimento e a reversão dos quadros de dificuldades já instalados e
enfrentados.
Nesse trabalho conjunto, colaborativo e reflexivo que se instala
no ambiente escolar, professor e monitor aprendem a se distanciar e
a olhar suas práticas sob uma nova perspectiva. Buscam, na interação,
a colocação dos problemas que precisam ser discutidos, uma nova
interpretação da realidade e soluções viáveis de problemas enfren-
tados pelo grupo.
Os trabalhos com a monitoria e a formação do monitor apon-
tam novas perspectivas para as escolas regulares. Deseja-se que este

185
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

seja um meio para a redução da exclusão e das questões conflitantes,


para a progressão automática e para dar conta da grande disparidade
e excessiva heterogeneidade em sala de aula, problema já apontado
por Vygotsky (1934/2002) quanto ao trabalho na ZPD. A monitoria
permite que alunos-monitores possam trabalhar com colegas sem que
se criem situações indesejadas, mas sim um contexto de colaboração
entre os participantes de uma mesma sala.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
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187
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO DO
PROFESSOR E DO ALUNO COM O DISCURSO
PEDAGÓGICO: REPENSANDO AS PRÁTICAS DE
LEITURA E ESCRITA NA ESCOLA
Silvia Regina Nunes
Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT)

Cleiton de Souza Sales


Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT)

Resumo: o artigo, produzido a partir de uma pesquisa em anda-


mento no Mestrado Profissional em Letras – ProfLetras, discute
o modo como o discurso institucional – materializado através de
documentos oficiais como Parâmetros Curriculares Nacionais,
Orientações Curriculares do Estado de Mato Grosso da área de
linguagens e o Projeto Político-Pedagógico de uma escola mato-
grossense – se reveste da forma do Discurso Pedagógico (ORLANDI,
1987) produzindo para o sujeito-professor uma interdição sobre a
possibilidade de um trabalho alternativo com a leitura e a escrita na
escola. Busca-se analisar sequencias discursivas desses documentos
oficiais e problematizar o modo como são produzidos processos de
identificação do sujeito-professor com tais discursos. A partir de
um trabalho prático envolvendo a produção de um jornal junto aos
sujeito-alunos, apresentam-se alternativas de trabalho com a leitura
e a escrita ancoradas na noção de autoria (GALLO, 1989; ORLAN-
DI, 1999; LAGAZZI, 2006). Palavras-chave: Discurso pedagógico.
Autoria. Sujeito Professor. Identificação.

189
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Introdução

A educação na Rede Estadual Pública de Ensino do Estado de


Mato Grosso, assim como em outras instituições designadas como
de ensino formal, é parametrizada por documentos que orientam o
trabalho docente dentro das escolas, tanto a nível nacional, estadual
como da própria instituição.
Com o presente trabalho1,mostramos algumas compreensões
advindas de um processo de intervenção pedagógica, que teve como
objeto de trabalho a elaboração de um Jornal Escolar para a circulação
de textos produzidos por alunos do oitavo ano do ensino fundamental
de uma escola pública da rede estadual, da cidade de Várzea Grande,
após uma sequência de aulas, cuja temática foi Direitos Humanos,
mais especificamente no que se refere a pessoas com deficiência. As
atividades do projeto tiveram como objetivo produzir um posiciona-
mento dos alunos acerca do ritual da escrita, para que eles pudessem
construir um espaço de dizer, tendo como base a elaboração de um
jornal escolar. Buscou-se estabelecer um espaço para a prática da
escrita em todas as etapas de desenvolvimento das atividades do pro-
jeto, mesmo as que precederam a elaboração dos textos que foram
publicizados no jornal, como a produção de anotações, relatórios,
diários de campo, etc. As atividades do projeto envolveram também
a relação dos alunos com diferentes materiais, tais como: documen-
tários, reportagens, anotações de aulas de campo e textos jurídicos, a
fim de que eles constituíssem um arquivo para que, posteriormente,
pudessem escrever os textos para o jornal e para um blog da escola.
O aporte teórico que sustenta a pesquisa ancora-se nos estudos
da Análise de Discurso de base materialista. Mais especificamente,
trabalhou-se com as noções de função-autor, de gestos de interpreta-
ção e a possibilidade de produzir condições para a assunção da autoria,
levando-se em consideração e problematizando as determinações do
1 O capítulo apresenta parte de uma pesquisa de Mestrado, do Programa de Pós-Graduação
- Mestrado Profissional em Letras, ProfLetras, da Universidade do Estado de Mato Grosso,
UNEMAT.

190
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Discurso Pedagógico (ORLANDI, 1987). Assim, no decorrer do


trabalho, mostrou-se que, sob certas condições de produção, autor
e texto podem se constituir em concomitância, conforme pondera
Lagazzi-Rodrigues (2006).
Para compreendermos a autoria (GALLO, 1989; LAGAZZI-
RODRIGUES, 2006) e podermos propor um trabalho sustentado
nessa prática, especificamente no contexto escolar, faz-se neces-
sário mostrar como os documentos oficiais que parametrizam a
educação brasileira em relação ao ensino de Língua Portuguesa
produzem efeitos na relação com o trabalho do professor em
sala de aula.
Dentre os documentos analisados estão: o Projeto Político
Pedagógico da unidade escolar (PPP); as Orientações Curricu-
lares do Estado de Mato Grosso: Área de Linguagens (OCs);
e os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa
(PCNs). Vale dizer que esses três instrumentos possuem uma es-
treita relação entre si, na medida em que há uma hierarquização
entre eles, onde um acaba subsidiando a construção do outro, no
sentido de um ser a nível nacional (PCN), outro estadual (OCs)
e o último, local (PPP).
Os três documentos citados versam não só sobre como deve
ser orientado o trabalho do professor, mas também elencam objeti-
vos, “habilidades e competências” que devem ser construídos pelos
alunos após o trabalho docente. Assim, selecionamos, em cada um
dos documentos, menções a algumas dessas “habilidades e compe-
tências”, com o intuito de construir uma proposta de trabalho que
levasse em consideração os documentos oficiais problematizando-
os naquilo que acreditávamos não estar em consonância com os
objetivos do projeto de produção do jornal escolar. Tal leitura
crítica mostra que as “habilidades e competências” presentes nes-
ses documentos oficiais materializam um efeito deontológico do
trabalho com a linguagem.

191
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Os documentos oficiais e os processos de identificação entre


o professor e o discurso pedagógico

O trabalho pedagógico do professor em sala de aula é regulado


por diversos documentos oficiais, tais como os acima mencionados,
que materializam o discurso do Estado, no que se refere aos modos
como a educação deve ser praticada e oferecida nas instituições de
ensino.
Entendemos que há processos de identificação do sujeito pro-
fessor com o discurso do Estado e é por isso que os documentos
oficiais regulam sua prática pedagógica. Segundo Pêcheux (2009) “a
interpelação de indivíduo em sujeito de seu discurso se realiza pela
identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina” (p.
198). Assim, podemos dizer que esses documentos retroalimentam a
forma do Discurso Pedagógico (doravante DP) e podemos observar
a constituição de formações discursivas2, que fornecem os sentidos
ao sujeito professor e também ao sujeito aluno, nesse processo de
identificação.
Em relação ao Discurso Pedagógico, Orlandi (1987) assevera
que este se dissimula como transmissor de informação e faz isso
caracterizando a informação sob a rubrica da cientificidade. O es-
tabelecimento da cientificidade é observado, segundo a autora, em
dois aspectos do DP: a metalinguagem e a apropriação do cientista
feita pelo professor. Desse modo, o sistema de ensino atribui a posse
dessa metalinguagem ao professor, autorizando-o. No ritual de sala de
aula, o DP se caracteriza pela quebra de leis discursivas e se resolve
pela motivação pedagógica e pela legitimidade do ‘conhecimento’
escolar (daí sua utilidade) “escorada na ideia de que há um desen-
volvimento no processo escolar, paralelo ao da maturação do aluno.
Enquanto ele for aluno, ‘alguém’ resolve por ele, ele ainda não sabe
o que verdadeiramente lhe interessa etc.”. E isso, conforme nos ensina
2 A noção de Formação Discursiva, em Análise de Discurso, designa todo o sistema de regras
que fundam a unidade de um conjunto de enunciados historicamente circunscritos e também
se define como aquilo que numa Formação Ideológica dada, ou seja, a partir de uma posição
dada em uma conjuntura sócio histórica dada determina o que pode e deve ser dito.

192
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Orlandi (1987), é inculcação. “As mediações, nesse jogo ideológico,


se transformam em fins em si mesmas e as imagens que o aluno vai
fazer de si mesmo, do seu interlocutor e do objeto do conhecimen-
to vão estar dominadas pela imagem que ele deve fazer do lugar
do professor” (p. 31). Mas há, ainda, o lado do aluno, sendo que há
aceitação e exploração dessas representações que fixam o professor
como autoridade e a imagem do aluno que se representa no papel
de tutelado. Desenvolvem-se aí tipos de comportamento que podem
variar desde o autoritarismo mais exacerbado ao paternalismo mais
doce (ORLANDI, 1987, p. 31).
A complexidade contraditória das posições ocupadas por pro-
fessores e alunos, na trama que enreda o cotidiano escolar, pode ser
compreendida pelo que especificam as três modalidades discursivas
de funcionamento subjetivo, elaboradas por Michel Pêcheux (2009).
A primeira modalidade, a identificação, “consiste numa superposição
(um recobrimento) entre o sujeito da enunciação e o sujeito universal, de
modo que a ‘tomada de posição’ do sujeito realiza seu assujeitamento
sob a forma do ‘livremente consentido” (p. 199); a segunda modalida-
de, nomeada por Pêcheux como discurso- contra ou contradiscurso,
“caracteriza o discurso do ‘mau sujeito’, discurso no qual o sujeito da
enunciação ‘se volta’ contra o sujeito universal por meio de uma ‘tomada
de posição’ que consiste, desta vez, em uma separação (distanciamento,
dúvida, questionamento, contestação, revolta....) com respeito ao que o
sujeito universal lhe dá a pensar”. A terceira modalidade, a da desiden-
tificação, se mostra como “uma tomada de posição não-subjetiva” (p.
201). Segundo Pêcheux, ela “integra o efeito das ciências e da prática
política do proletariado sobre a forma-sujeito”, o que possibilitaria ao
sujeito desta modalidade que lutasse contra as causas que o determi-
nam, visto que ele as apreenderia através de uma prática política de
cunho científico, como modo de escapar às evidências da ideologia
dominante. Para Pêcheux (2009), essa terceira modalidade se cons-
tituiria numa pedagogia da ruptura “das identificações imaginárias em
que o sujeito se encontra” (PÊCHEUX, 2009, p. 299). Contudo, no
Anexo 3 do livro Semântica e Discurso, o autor mostra que a terceira

193
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

modalidade poderia supor um funcionamento voluntarista, e, nesse


sentido, alerta para a impossibilidade de sua realização.
É nesse jogo que se dispõem as diferentes modalidades discur-
sivas de funcionamento subjetivo em relação ao DP, principalmente
sobre o modo como as práticas de leitura e escrita na escola aparecem
determinadas nesse processo. Entre as modalidades discursivas, nos
atemos à primeira, a de identificação, especificamente no modo como
ela funciona no e para o sujeito professor. Entendemos que o que
seria possível, principalmente a partir da retificação promovida por
Pêcheux (2009) sobre a terceira modalidade, é que se constituam
diferentes modos de identificação do sujeito com as formações dis-
cursivas que lhes fornecem a matriz de sentidos, e não, simplesmente,
modos de se contraidentificar e/ou desidentificar com esses sentidos3.
A partir dessas considerações, trazemos aqui recortes dos docu-
mentos oficiais citados, a fim de refletirmos sobre seu funcionamento
e compreendermos os modos de identificação do sujeito professor
com o DP, bem como a maneira como isso afeta a posição do aluno.
Os PCNs de Língua Portuguesa, documento constituído a partir
de uma política de ensino desenvolvida em âmbito federal, coloca
como um dos objetivos gerais para o ensino de Língua Portuguesa
no Ensino Fundamental:

Utilizar a linguagem na escuta e produção de textos


orais e na leitura e produção de textos escritos de
modo a atender a múltiplas demandas sociais, respon-
der a diferentes propósitos comunicativos e expressi-
vos, e considerar as diferentes condições de produção
do discurso. (BRASIL, 1998, p.32).

A formulação desse objetivo dá sustentação à finalidade do ensi-


no de Língua Portuguesa, ou seja, levar os alunos a refletirem sobre o
funcionamento da linguagem em várias situações sociais e em várias
áreas das práticas humanas e que busquem o ritual da escrita para
3 Seguimos aqui as considerações de Beck e Scherer (2008).

194
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

solução/compreensão de problemas do cotidiano. Percebe-se, ainda,


a preocupação com o aspecto comunicativo no trabalho com a lin-
guagem em situações de ensino. Contudo, é necessário que tenhamos
aqui um olhar crítico, uma vez que os propósitos do trabalho com a
linguagem na escola podem ir além dos aspectos “comunicativos e
expressivos”, dado seu caráter simbólico. Para Orlandi (2012b, p. 18),
o sentido é uma questão aberta, e o espaço do simbólico “é marcado
pela incompletude, pela relação com o silêncio. A interpretação é o
vestígio do possível”.
Pelo exposto acima, podemos dizer que esse objetivo se mos-
tra insuficiente para a elaboração da proposta de trabalho do jornal
escolar, pois restringe o propósito da linguagem apenas aos aspectos
comunicativos e expressivos. Dizemos isso porque durante o desen-
volvimento das atividades de elaboração do jornal escolar, em vários
momentos os alunos praticaram os rituais de linguagem para além
desses dois aspectos, como, por exemplo, a possibilidade da escrita
para a mobilização social. Isso se deu em decorrência da realização
de uma aula de campo realizada em uma escola que atende pessoas
com deficiência, depois de termos discutido em sala algumas questões
sobre direitos humanos. A partir daquele momento, eles quiseram
escrever para tentar fazer com que os leitores do jornal da turma
soubessem um pouco mais sobre a questão dos direitos das pessoas
com necessidades especiais e que se sensibilizassem a respeito das
dificuldades enfrentadas por essas pessoas.
Da mesma forma, as Orientações Curriculares do Estado de
Mato Grosso da área de Linguagens sugerem que uma das “capacida-
des” esperadas para os alunos egressos do terceiro ciclo é “Ler, com-
preender e construir diferentes textos, considerando as condições de
produção, recepção e circulação”. Pode-se dizer que essa “capacidade”
seria fundamental para a orientação do trabalho do professor e que
tem uma estreita relação com o recorte anterior, retirado dos PCNs,
pois as orientações trazidas por ambos os fragmentos estão na base
do discurso sobre o trabalho com Língua Portuguesa na escola, que

195
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

é fazer com que os alunos leiam e escrevam proficientemente ao


concluir essa etapa de seus estudos.
Contudo, pensando o ensino de leitura e escrita na escola, é im-
portante nos perguntarmos: o que é ter capacidade? Orlandi (2014)
lembra que há pouca “formação” e só “capacitação” – treinamento dos
sujeitos em relação ao saber, só para ele usar este saber momentanea-
mente em função de uma tarefa relacionada ao mercado de trabalho;
e isto não é suficiente para ele se situar na conjuntura científica, por
exemplo. Para a autora, a noção de capacitação funciona como um
coringa que se tira do bolso para silenciar a força da reivindicação
social. Nessa direção, compreendemos que o objetivo de capacitar
coloca o aluno como tendo uma aptidão natural em relação ao saber
que se constituiria acerca da língua, uma vez que apaga os sentidos
possíveis que o colocariam numa posição de questionamento e tomada
de posição em relação a essas coisas a saber.
Ainda é importante chamar a atenção para o fato de que as
noções de recepção e circulação de textos não são algo à parte
das condições de produção desses textos, pelo contrário, elas são
constitutivas. Compartilha dessa posição Orlandi, que diz que é
“inadequada a terminologia que distingue condições de produção
e condições de recepção, pois acredito que a noção de condições
de produção abrange, como um todo, a emissão e a recepção”
(ORLANDI, 2012).
Outro fator importante a ser levado em consideração é a con-
cepção que se tem de leitura. No caso das OCs, essa concepção é
que dará origem aos objetivos referentes às habilidades a serem
construídas pelos alunos. Um exemplo disso pode ser verificado em
outra competência almejada para o ensino de língua portuguesa para
o terceiro ciclo, a qual diz que: espera-se que os alunos consigam “co-
dificar, decodificar e ressignificar sistemas das diferentes linguagens”
(MATO GROSSO, 2012, p. 50). Porém, entendemos que a leitura
engloba questões que vão além da codificação e da decodificação,
visto que o texto não tem sentidos fixados previamente esperando

196
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

para serem decodificados, mas produz efeitos de sentidos que se


constituem em/nas condições de produção do discurso.
Dentro da competência citada acima, há um descritor que
mostra um funcionamento contraditório, tendo em vista como é
mencionado na formulação dessa competência. Esse descritor diz
que ao ser trabalhada a referida competência, o aluno “reconhece
as nuances de sentido que o emprego de palavras com propriedades
semânticas aproximadas provoca no contexto, observando a adequa-
ção aos objetivos do autor”. Pode-se perceber que há uma tentativa
de trabalho com a questão dos efeitos de sentido provocados pelas
escolhas que faz o sujeito no momento da formulação. Porém, há
que se considerar que, como já dissemos, na perspectiva aqui adota-
da, não há conteúdos que teriam sentidos prévios ao texto, prontos
para serem extraídos, portanto não podemos, da mesma forma, falar
em intenções ou “objetivos do autor”, uma vez que este não tem
controle sobre quais efeitos de sentido seu texto produzirá dadas as
condições de produção. Corrobora com essa ideia Orlandi, quando
diz que “palavras mudam de sentido ao passarem de uma formação
discursiva para outra. Assim, não são somente as intenções que de-
terminam o dizer. Há uma articulação entre intenção e convenções
sociais” (ORLANDI, 2012).
No que se refere ao PPP da instituição escolar, o principal as-
pecto que observamos em suas orientações se referem ao que toma
como habilidades necessárias aos alunos na disciplina de Língua Por-
tuguesa, ao terminarem o terceiro ciclo. A maioria dessas habilidades
sugeridas está centrada em aspectos imanentes ao texto, tais como
localização de informações, identificação de variações linguísticas,
ortografia, coesão e coerência textuais, dentre outras que se referem
ao uso da norma culta da língua. Embora se reconheça que trabalhar
com os alunos esses aspectos seja importante, é necessário também
levar os alunos a se apropriarem de tais mecanismos, que estão tam-
bém ligados à constituição/funcionamento da autoria, contudo não
se poderia ter esses aspectos como fim único das aulas de ensino de

197
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

língua. É preciso fazer com que os alunos estabeleçam uma outra


relação com a língua e que percebam que há outros elementos im-
plicados no ato da formulação e que são tão importantes quanto os
primeiros no processo de produção do texto.
Por esse motivo, selecionamos duas habilidades contidas nas
orientações para o ensino de Língua Portuguesa presentes no PPP da
escola, que ressaltam aspectos que vão um pouco além das questões
que, a nosso ver, se atêm apenas à superfície textual:

• Reconhece, no texto, o valor expressivo dos recursos linguísticos


(escolha de termos e expressões; uso dos sinais de pontuação; recursos
gráficos) e o efeito de sentido;
• Desenvolve a interpretação, integrando texto verbal e não verbal.
(PPP, p.70)

Nas duas habilidades citadas é possível perceber o registro de


uma tentativa de realização de um trabalho que vá além da super-
fície textual. Na primeira habilidade, pretende-se levar o aluno,
no decorrer da leitura, a perceber que as escolhas que o sujeito
faz no momento da formulação não são neutras e vão determinar
os efeitos de sentidos passíveis de serem produzidos. Esse trabalho
de possibilitar que o aluno consiga ter essa apropriação poderá
se dar também, a nosso ver, no momento em que ele estiver for-
mulando seus próprios textos, pois entendemos que a leitura e a
escrita fazem parte de um continuum que compõem os gestos de
interpretação do sujeito.
Na habilidade seguinte, chamamos a atenção para a questão do
modo como é referida a noção de leitura, não a vinculando apenas
ao texto verbal escrito, mas à complexidade simbólica que envolve
o campo da linguagem. Esse aspecto é bastante pertinente devido
à natureza do trabalho que propusemos, que é a elaboração de um
jornal escolar, em que além do texto verbal temos o trabalho com
imagens. Ressaltamos, contudo, que a interpretação não pode ser vista
somente como sinônimo de decodificação, mas sim como um gesto

198
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

do sujeito na relação com a linguagem, em que o social, a história e


o político fazem sentido em sua vida. Segundo Orlandi (2012b, pg.
67), “Para que a língua faça sentido é preciso que a história interve-
nha. E com ela o equívoco, a ambiguidade, a opacidade e a espessura
material do significante”.
Por fim, selecionamos outras duas habilidades que trazem os
PCNs e as OCs, no que dizem respeito a dois pontos fundamentais
dessa análise. O primeiro é que se pretende que o aluno busque o
aprimoramento da escrita, a fim de fazer circular socialmente aquilo
que escreveu. E o outro ponto é que ele se perceba como autor de
seus textos e veja também na leitura a relação com um gesto de auto-
ria, responsabilizando-se por aquilo que lê e escreve. Nesse aspecto,
recorremos à seguinte habilidade, recortada dos PCNs:

• Analise e revise o próprio texto em função dos objetivos estabeleci-


dos, da intenção comunicativa e do leitor a que se destina, redigindo
tantas quantas forem as versões necessárias para considerar o texto
produzido bem escrito. (BRASIL, 1998, p.52)

E ainda outra habilidade recortada das Orientações Curriculares


Estaduais de Linguagens (OCs):

• Reconhece-se como sujeito leitor e produtor de textos (MATO


GROSSO, 2012, p.48).

Há, indiretamente, uma menção ao processo de constituição de


autoria quando se aponta, no primeiro recorte, a possibilidade de um
projeto para a formulação escrita do texto, colocando como parte
desse processo a possibilidade de diferentes versões para se chegar
ao efeito de fecho (GALLO, 2008). Aparece, também, a questão das
coerções sociais às quais a função autor está submetida, quando se
mencionam uma possibilidade de intencionalidade comunicativa e a
atenção ao efeito leitor ai constituído. No segundo recorte, a proposta
de um auto-reconhecimento do aluno como leitor e produtor de

199
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

textos mostra o modo como o documento atribui importância para


a tomada de posição do aluno ocupando a função autor.
Contudo, há pontos nesses instrumentos oficiais em que
é necessário lançarmos um olhar crítico para promover alguns
deslocamentos. O primeiro deles refere-se à menção da noção
de intenção comunicativa; o outro se refere a “considerar o texto
produzido bem escrito”. Em relação ao que se propõe sobre a
intenção comunicativa, a tese pecheutiana de que a “língua serve
para comunicar, e também para não comunicar” (PÊCHEUX, 1997)
marca o deslocamento de uma concepção instrumental de língua,
ou seja, questiona a atribuição de uma função para a língua, a que
seria a de um código que “transmitiria literalmente” as informações
aos interlocutores, pois tomar a língua apenas como instrumento
de transmissão seria ignorar as condições de produção que permi-
tiram o dizer, ou seja, silenciar quem diz, desconsiderar quem ouve
e apagar os processos históricos que permitiram dizer uma coisa e
não outra. A relação sujeito-língua-história fica escamoteada pela
noção instrumental de língua. A crítica que aparece sob a forma “a
língua serve para comunicar, e também para não comunicar” vem
justamente mostrar o equívoco de noções que funcionam num
efeito de estabilidade como as de comunicação e informação, as
quais circulam no efeito de transparência do sentido, sustentadas
na concepção universalizante do discurso jurídico.
Da mesma maneira, é preciso considerar quais são os parâmetros
utilizados para considerar um texto “bem escrito” ou “mal escrito”:
bem escrito para quem? Sob qual perspectiva? Colocar esse questio-
namento em pauta é importante para mostrar que há a possibilidade
da mudança da relação do aluno com a língua, possibilidade que fica
interditada, quando, frequentemente, ao tentar ensinar a língua ofi-
cial, a escola o faz promovendo um apagamento da língua (PAYER,
2009, p. 38) que o aluno já conhece, desconsiderando seu percurso
pré-escolar, bem como sua história de vida.

200
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Enfim, esses três documentos juntos norteiam o planejamento


e o trabalho do professor nas aulas de língua portuguesa, na institui-
ção escolar. O modo como esses discursos o interpelam, da mesma
forma, sobredeterminam a visão que se tem do processo de ensino
aprendizagem, distribuindo desigualmente atribuições ao sujeito
que aprende e ao que ensina, separação que nubla a possibilidade de
reversibilidade de conhecimento, visto que ambas posições estão inti-
mamente ligadas aos resultados do processo de ensino-aprendizagem.
A constituição, especialmente da forma-sujeito professor,
emerge sobretudo da identificação com os discursos que atravessam
esses documentos oficiais, materializados na formado DP, do tipo
autoritário. Trata-se do tipo de identificação em que o sujeito da
enunciação é recoberto pelo sujeito universal, produzindo aí um
efeito de consenso com relação àquilo que os dizeres presentes nos
documentos oficiais dizem ser o “comportamento adequado” de um
professor, ou melhor, que produzem a modalidade discursiva de
funcionamento subjetivo de “bom-sujeito professor”.
Uma outra modalidade de identificação seria possível, mediante
uma transformação/deslocamento, que ocorreria com a inscrição
do sujeito em outras formações discursivas que mostrariam outras
concepções de língua, leitura e escrita, por exemplo, concepções de
que o professor se apropriaria mediante posicionamento consistente
no batimento entre a prática política, a científica e a pedagógica.
Em meio a esses movimentos e a esses gestos de interpretação
que permeiam o processo de ensino-aprendizagem de Língua Por-
tuguesa e fazem surgir os modos de identificação que resultam na
forma-sujeito aluno e professor é que propomos, como alternativa,
a atenção à noção de função-autor, para posteriormente falar dos
deslocamentos possíveis a partir do desenvolvimento do projeto de
construção do Jornal Escolar. Passamos, então, à discussão sobre no-
ções que, articuladas, mostram como se dá a constituição da autoria
em sua relação com os processos de identificação no contexto escolar.

201
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

2 Função-autor, textualização, concomitância e assunção da


autoria: um movimento do sujeito possível na escolarização?

Para situarmos nosso posicionamento em relação à função-autor,


é necessário que compreendamos o modo como as práticas de leitura
e escrita são realizadas na escola, tendo como sustentação o DP.
O primeiro ponto a ser levado em consideração é o que diz
respeito à relação do sujeito com a interpretação. Pode-se dizer que,
diante de qualquer objeto simbólico, há um movimento do sujeito
no sentido de tentar interpretá-lo. Portanto, nas palavras de Orlandi
(2012b, p. 64) “a interpretação é uma injunção. Face a qualquer ob-
jeto simbólico, o sujeito se encontra na necessidade de ‘dar’ sentido.
Podemos perceber que o gesto interpretativo é próprio do sujeito
frente ao universo simbólico, porém, no que diz respeito ao contexto
escolar, o que ocorre é que se trabalham com interpretações legiti-
madas e estabilizadas, em outras palavras, a alguns caberia interpretar
e a outros apenas reproduzir o sentido “verdadeiro”.
Pensando a escola, onde está em funcionamento o DP, caracte-
rizado como discurso autoritário, podemos perceber que tanto ao
aluno quanto ao professor é vedada a prática de interpretação que
não trabalhe com os sentidos já estabilizados e legitimados. As leituras
aceitas são geralmente aquelas trazidas pelos manuais e pelo livro
didático. Dessa forma, aos sujeitos envolvidos no processo de ensino
e aprendizagem resta unicamente repetir sentidos estabilizados.
Portanto, não se dá voz ao aluno para que este promova des-
locamentos nos sentidos já estabilizados que circulam dentro do
espaço escolar, uma vez que a concepção da língua como sendo
um código é a vigente e bastaria que se soubesse decodificar para
apreender o significado contido “dentro” das palavras. Isso nos leva
a uma concepção de linguagem dentro de uma relação termo-a-
termo entre pensamento/linguagem/mundo (ORLANDI, 2012b),
que faz com que se conceba a língua sob um aspecto lógico e não
simbólico.

202
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Segundo Ferreira (2003), essa concepção de linguagem como


sendo um instrumento lógico, tem uma forte tradição, que deixa
resquícios até os dias atuais, sobretudo no que diz respeito ao ensino,
pois está baseada na trilogia transparência-univocidade-regularidade.
Assim, de acordo com essa perspectiva, a linguagem é transparente
porque é o espelho do pensamento; ela é unívoca porque há “uma cor-
respondência perfeita entre as estruturas e as interpretações que elas
recebem”; e da mesma forma ela é regular, visto que é pautada pela
lógica e em seu funcionamento não há lugar para heterogeneidade.
Ao propormos um trabalho ancorado numa concepção discursi-
va, utilizando como instrumento a elaboração de um jornal escolar,
com a pretensão de que os alunos se constituíssem enquanto auto-
res, uma das primeiras ações que tentamos realizar foi provocar um
deslocamento nas condições de produção da leitura durante o desen-
volvimento das aulas. Isso porque sabíamos que não haveria como os
alunos assumirem a função-autor tendo seus gestos de interpretação
interditados dentro da escola. Procuramos desde o anúncio do projeto
aos alunos, pensar de forma coletiva a sua organização, a seleção das
leituras, a agenda diária, a possibilidade de posicionamento diante
das atividades empreendidas, a avaliação dessas atividades, etc. Tal
forma de trabalho nos permitiu criar condições de produção para
a leitura e a escrita que deslocassem o modo de funcionamento do
discurso pedagógico.
Segundo Orlandi (2006), a função-autor “é aquela (em nossa
concepção) em que o sujeito falante está mais afetado pelo contato
com o social e suas coerções”. Ela diz também que tais coerções
se apresentam por meio de algumas exigências do contexto sócio-
histórico em que o sujeito está inserido, tais como não-contradição,
coerência, responsabilidade, dentre outras. Ao assumir a função-
autor o sujeito responsabiliza-se pelo seu dizer e, imaginariamente,
percebe-se como fonte dos sentidos que ao texto se atribui. Nessa
linha, se trabalha a textualização, que é o mecanismo por meio do
qual o sujeito, ao praticar gestos de interpretação com o intuito de

203
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

organizar os discursos em busca da unidade imaginária, acaba dando


origem ao autor e ao texto. Segundo Orlandi (apud INDURSKY,
2006, p.70), a textualização é o trabalho de ‘costura’ dos recortes
discursivos e está na base do efeito-texto.
No trabalho realizado, com a produção do jornal escolar da
turma, o conceito de textualização foi de fundamental importância,
pois é um dos mecanismos onde podemos observar a relação do
sujeito com o simbólico. Em se tratando da proposição que fizemos
inicialmente, que é levar o aluno a refletir sobre sua relação com a
leitura e a escrita, pode-se dizer que é por ter praticado a textuali-
zação que o autor se responsabiliza pelo seu dizer.
Nessa direção, a concepção de leitura não ficou pautada pela
literalidade, uma vez que está determinada por suas condições de
produção. Segundo Orlandi (op. cit) “o professor pode modificar as
condições de produção da leitura do aluno: de um lado, propiciando-
lhe que construa sua história de leituras; de outro, estabelecendo,
quando necessário, as relações intertextuais, resgatando a história
dos sentidos do texto” (p.44). Conforme dissemos anteriormente,
isso só se torna possível por meio da inscrição em outras formações
discursivas diferentes daquelas que sustentam o DP.

Considerações Finais

Levantamos, no decorrer do texto, algumas questões referen-


tes ao funcionamento da escola, que apresenta um modo que lhe é
próprio dentro da sociedade, da mesma forma que é sustentada por
um discurso que também lhe é especifico e que produz efeitos de
sentido para essa sociedade na qual está inclusa, na forma do DP.
Mostramos que os documentos oficiais, que têm como intuito
subsidiar o trabalho do professor em sala de aula, produzem um
discurso que afeta a sua prática, constituindo um efeito de imobili-
dade que interdita a possibilidade de se realizar um trabalho em que

204
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

a prática de leitura e escrita na escola não seja um mero gesto de


incessante repetição mnemônica, mas que seja efetivamente signifi-
cativa para o aluno, conforme nos orienta Pfeiffer (1995). Podemos
ver como se constitui o processo de identificação que interpela o
professor em sujeito desse discurso, pois ele se vê impossibilitado de
se deslocar dentro desse funcionamento, uma vez que, ao apropriar-
se do discurso materializado nos documentos oficiais, imagina-se
origem dos sentidos, o que impede a possibilidade de deslocamentos.
Em grande parte, esses posicionamentos são também reiterados pela
mídia, que se coloca na posição do especialista, dizendo ao professor
o que ele deve fazer para enfrentar os problemas com os quais se
depara cotidianamente.
Fizemos esse percurso de apontamentos para mostrar que o
processo de assunção da função-autor pelo sujeito aluno na escola
(e também para o sujeito professor) se dá sob certas condições de
produção, que vão determinar o modo como se produz a autoria den-
tro desse espaço institucional. Mostramos que é possível promover
deslocamentos dentro do funcionamento do DP, fazendo com que
determinadas práticas sejam problematizadas. E esses deslocamentos
são possíveis mediante a inscrição do sujeito em outras formações dis-
cursivas, no caso específico das práticas pedagógicas, formações que
mostrassem a possibilidade de um “drible” sobre o modo autoritário
como o discurso pedagógico funciona. Esse “drible”, por exemplo,
pode se constituir no próprio modo de propor uma reorganização
temporal de atividades propostas, sem que o professor fique atrelado
às coerções da organização curricular, que, muitas vezes, funcionam
determinadas pelo que o livro didático propõe.
Tal reorganização se materializa numa proposta diferenciada de
trabalho com a linguagem, que promoveria uma mexida na consti-
tuição curricular da disciplina de Língua Portuguesa, visto que um
ponto que dificultou o desenvolvimento das atividades foi a questão
do tempo. Ainda que tivéssemos previsto no planejamento inicial
um número significativo de aulas, estas não foram suficientes para

205
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

que pudéssemos concluir todas as atividades, mesmo realizando


redirecionamentos constantes no planejamento.
Percebemos que num trabalho que objetive a assunção da au-
toria pelo aluno é fundamental que ele participe de todas as etapas,
principalmente do planejamento das atividades. Ponderamos que
o fato de o planejamento das atividades ter sido feito em conjunto
com os alunos pode ter sido o primeiro passo que fez com que eles
se comprometessem com o trabalho e que se responsabilizassem da
mesma forma com os possíveis resultados do processo.
Para isso, foi necessário que trabalhássemos com um planeja-
mento flexível que possibilitasse sua constante avaliação e redire-
cionamento no decorrer das atividades, como de fato ocorreram.
Um dos momentos em que o planejamento precisou ser reavaliado
e redirecionado foi aquele em que surgiu o interesse, por parte dos
alunos, em saber sobre os documentos que tratam das questões refe-
rentes aos direitos humanos, e partiu deles a sugestão de realizarmos
pesquisas a fim de aprofundarmos o conhecimento sobre o assunto.
Outro momento em que sentimos a necessidade do replanejamen-
to das atividades foi na ocasião de uma aula a campo, na escola de
educação especial, quando partiu também dos alunos a sugestão de
fazermos uma campanha de mobilização social dentro da escola para
tratar de questões referentes aos direitos das pessoas com deficiência.
Em ambas as ocasiões, vislumbramos a possibilidade de um
trabalho com a leitura e a escrita que se deslocasse do lugar das ati-
vidades protocolares, que funcionam à maneira do DP autoritário,
visto que eram atividades muito significativas para os alunos, sugeridas
por eles. Sob esse aspecto, o trabalho com o planejamento flexível
foi muito produtivo e contribuiu para os resultados esperados com
o desenvolvimento do projeto.
Apesar de uma das propostas da mudança na organização do
sistema educacional público estadual de Mato Grosso de séries para
Ciclos de Formação Humana ser justamente a de propiciar a flexi-

206
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

bilização do tempo destinado ao aprendizado do aluno, percebemos


que essa organização acaba tendo o mesmo funcionamento da escola
seriada, ou seja, constitui-se como um obstáculo ao desenvolvimento
de atividades que tenham como intuito propor formas diferenciadas
de ensinar e aprender. Com isso, o professor, estando sob esse fun-
cionamento, se vê impelido a adequar-se a ele e, da mesma forma,
impossibilitado de propor possíveis mudanças dentro desse processo.
Isso se dá justamente pelo fato de o sujeito-professor estar sob a
modalidade da identificação plena com esse discurso.
Essas são questões importantes de serem pensadas no que se
refere ao modo como se organiza o currículo escolar e como isso
produz efeitos sobre o professor, e consequentemente, no processo
de ensino-aprendizagem. Considerar um currículo em que o tem-
po possa de fato ser flexibilizado talvez seja uma das possibilidades
para lidar com essa questão. Além disso, o modo de organização do
currículo é fundamental no sentido de possibilitar que as práticas
dentro da escola sejam problematizadas, ocasionando possíveis
transformações e deslocamentos que possibilitem movimentos nos
processos de identificação.
Reiteramos o fato de que, nas atividades escolares de um
modo geral, e aqui falando especificamente da questão do traba-
lho com o ensino de leitura e escrita, é importante levar-se em
consideração que o aluno também esteja envolvido no processo
de formulação das atividades escolares e não participe como um
mero espectador/coadjuvante, que apenas contempla algo no qual
ele não pode e não deve interferir. Percebemos também que esse
envolvimento dos alunos com as atividades escolares é fundamen-
tal para a constituição da função-autor, pois ele leva esse sujeito
a se responsabilizar, juntamente com o professor, por aquilo que
está sendo realizado e a preocupar-se com os possíveis resultados
do processo. Essa é a ousadia de se praticar a autoria, que pode
se produzir nas relações horizontais, as quais são mediadas pela
cooperação e a afetividade.

207
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Referências

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subjetivo e o legado marxista-leninista. Letras, Santa Maria, v. 18, n. 2,
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Campinas, SP: Pontes Editores, 2012b.

208
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

______. A forma-sujeito do discurso na apropriação subjetiva dos


conhecimentos científicos e da política do proletariado. IN: ______.
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Puccinelli Orlandi et. al. 4ª. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
2009, p. 197-216.
PAYER, M.O. O Trabalho com a língua como lugar de memória. Synergies
Brésil, n° 7 - 2009 pp. 37-46. Disponível em ,http://gerflint.fr/Base/
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PFEIFFER, C. R. C. Que autor é este? Dissertação de Mestrado. Campinas,
SP:  IEL/UNICAMP, 1995. 
PROJETO Político Pedagógico (PPP). Escola Estadual José Leite de
Moraes. Várzea Grande, MT, 2008, 123p.

209
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Língua, memória, imigração: errâncias


e travessias em relatos de Cartas
Beatriz Maria Eckert-Hoff 1
Universidade do Distrito Federal (UDF)

“A vida escrita é a vida que se escreve,


mesmo que não se saiba.
Como a lesma que deixa uma gosma viçosa em seu caminho.
Como a lágrima que fala em seu silêncio de dor ou alegria.
Ou o rápido traço no ar que faz o pássaro,
da gaiola ao galho, ao ar que se risca com sua fuga,
no movimento-escrita reto ou sinuoso,
com letras que se encadeiam e se ligam. Ou fazem furos”
(Ruth Silviano Brandão)

“Com a pena em punho


e com a ajuda divina escrevo
para tentar mais uma vez receber notícias de vocês.
Já passaram em torno de seis anos que lhes escrevi
da morte de meu querido Cristoff,
mas infelizmente não obtive nenhuma resposta”2
(Elisabetha Krämer inicia assim a sua Carta,
escrita em Arroio do Meio, no dia 09 de janeiro de
1894, ao seu irmão Adam e cunhado Wald, da Ale-
manha)

1 O presente capítulo desencadeou-se: de nossos estudos junto ao grupo de pesquisa “Da Torre
de Marfim a Torre de Babel”, Unicamp, coordenado pela professora Maria José Coracini; e
dos estudos no curso do Pós-doutoramento, realizado na USP, no Departamento de Letras
Modernas, sob a orientação da professora Dra. Maria Teresa Celada. Para a coleta do corpus
tivemos o apoio da FAPESP com bolsa de pesquisa no exterior, realizada na Christian-
Albrechts-Universität zu Kiel, Alemanha, sob orientação do Professor Harald Thun.
2 “Ich ergreife die Feder um mit Gottes Hilfe noch einmal Nachricht von Euch zu erhalten. Es sind
bereits 6 Jahre daβ ich Euch den Tod von meinem lieben Cristoff gemeldet habe aber leider keine
Antwort erhalten habe” (tradução nossa).

211
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Resumo: Este capítulo propõe-se a estudar como se entrelaçam,


na língua e pela língua, o simbólico e o imaginário na constituição
da memória e da identidade do sujeito entre-línguas, em contextos
de imigração. O corpus se constitui de relatos de Cartas escritas por
imigrantes alemães e seus descendentes, datadas do século XIX e XX,
coletadas em arquivos públicos e privados da Alemanha. Queremos
verificar como as Cartas – tomadas como escritas de si – revelam,
velam e desvelam errâncias e travessias de sujeitos, marcando o seu
ser e estar entre-línguas, entre-nações. Para tanto, fundamentamo-
nos nos estudos teórico-metodológicos da Análise do Discurso de
linha Francesa, em aliança com alguns fios da Psicanálise, que nos
permitem entender que sujeito, linguagem e discurso são compre-
endidos como estruturas as quais se tem acesso pelas falhas. Nessa
linha, entendemos memória como interpretação, rasura, recriação,
invenção, ficção, em que o esquecimento faz parte do agenciamento
desses fios, dessas inscrições e a interpretação é sempre um gesto de
captura; o que se vislumbra são rastros do sujeito cindido, uma vez
que há sempre alteridade: é um eu Outro e um Outro eu quem fala,
havendo sempre uma incorporação, uma não-separação. Nossa análise
mostra que o dizer do sujeito marca errâncias e inscrições, passagens
e demarcações nas e pelas línguas. Palavras-chave: Memória. Língua.
Imigração. Inscrição. Errâncias.

Os primeiros fios da trama

Estudar a relação do sujeito entre-línguas em contextos de imi-


gração a partir de relatos de Cartas nos leva a dizer – instigados pela
“poesia” que epigrafa este texto – que se tomarmos a pena (caneta,
lápis, teclado) em mãos para escrever, ou não, a vida, de alguma
forma, sempre se escreve, seja por inscrições, traços e rastros com
que nos marca, crava e sulca, mesmo que não saibamos (BRANDÃO,
2006, p. 33). Nossa filiação teórica – a da Análise do Discurso en-
tremeada com alguns fios da Psicanálise – nos permite entender que
a vida escrita, inevitavelmente, se dá com laços de resistência que

212
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

são ao mesmo tempo pontos de insistência e de opacidade, dada a


equivocidade da língua.
As palavras ditas, ouvidas, vividas – cravadas, cortadas ou
rasuradas – emergem como lampejos entre lembranças e esqueci-
mentos e se revelam com novos tons, fazendo novas e(in)scrições do
sujeito. É assim que direcionamos nosso olhar ao corpus em análise,
constituído de Cartas, com o intuito de mostrar como estas revelam
um acontecimento, no sentido pecheutiano, tanto para aquele que
escreve como para aquele que lê.
As Cartas que aqui selecionamos foram escritas por imigrantes
alemães e por seus descendentes, do sul e sudeste do Brasil, a seus
familiares que permaneceram na Alemanha, datadas a partir da se-
gunda metade do século XIX e transcorrer do século XX, coletadas
em arquivos públicos e privados da Alemanha. São as vidas escritas
desses sujeitos que queremos estudar, por meio dos relatos de Cartas,
para mostrar como se entrelaçam, na língua e pela língua, o simbó-
lico e o imaginário na constituição da memória e da identidade do
sujeito entre-línguas, em contextos de imigração, no caso, a alemã.
Nosso estudo parte dos seguintes pressupostos: o de que língua
é cultura, logo, o encontro e o desencontro com as línguas nunca é
ou passa incólume (CORACINI, 2007, 2014); o de que a língua de
si e do outro produz efeitos na relação constitutiva do sujeito com
o simbólico (CELADA, 2005, 2009); o de que a língua não é pura
reprodução, nem pura descoberta de alhures, é sempre um jogo de
similitudes e de afastamentos (ROBIN, 1993, 1999). Em vista disso,
a relação dos sujeitos-enunciadores com as línguas não é neutra,
deixa vestígios, rastros de andanças do sujeito. E são esses efeitos
que objetivamos investigar.
É pertinente esclarecer que as Cartas coletadas – relatos autobio-
gráficos do gênero epistolar – são por nós entendidas como escritas
de si e, como tal, são sempre autobiográficas, uma vez que revelam
tensões, oscilações entre a certeza e a incerteza de ser. Apoiamo-

213
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

nos, para tal noção, nos estudos de Robin (1993), Coracini (2010)
e Eckert-Hoff (2008, 2010).
Para Robin (1993), escrever “é sempre jogar, frustrar a morte, a
filiação, o romance familiar, a História”, é descortinar, por sua faceta
de aprisionar o que escapa, o que se mostra fugaz (p. 10). Coracini
(2010, p. 31) abrilhanta essa noção ao afirmar que escrever é

cortar a folha (papel, que é também vegetal...), levan-


tar a pele das palavras, fazer incisões, cortes, enxertos,
in-serções de si no corpo estranho do outro – pala-
vra, texto, que é sempre do outro e sempre meu ou
de quem escreve, de quem assina –, transformando,
deformando, degradando.

O sujeito, ao escrever, (re)vela as várias texturas do eu,


“apagando-se, ausentando-se, mas inscrevendo-se sempre, com seu
traço, num movimento de presença e de ausência, que é condição
de possibilidade de qualquer escritura” (ECKERT-HOFF, 2008, p.
76). Assim entendemos os relatos das Cartas como escritas de si: ao
mesmo tempo em que o eu se vela e revela, há o desvelamento do eu.

Os fios que tecem a trama teórica

Os fios que tecem a trama teórica que sustenta o estudo aqui


empreendido se originam da Análise do Discurso de linha france-
sa entremeada com alguns fios da Psicanálise, que nos permitem
compreender que o sujeito é sempre um ser-em-falta, envolto pela
linguagem, em estruturas às quais se tem acesso pelas falhas, que
possibilitam aos sentidos derivar, como nos ensina Ferreira (2004,
p. 43). Para a autora,

sujeito e linguagem se apresentam como estruturas


que comportam sempre um furo, o qual se manifesta
pelo estranho, enquanto categoria desencadeadora da
ruptura. Linguagem, em Lacan, é o sistema que está

214
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

em jogo como língua. Este sistema precede o sujeito


e o condiciona. Há aqui um ponto de aproximação
entre o sujeito da psicanálise e o do discurso. Ambos
são determinados e condicionados por uma estrutura,
que tem como singularidade o não fechamento de suas
fronteiras e a não homogeneidade de seu território
(ibidem).

Assim podemos entender que a relação do sujeito entre-línguas


se constitui num “processo que implica que essa outra língua e os
saberes que ela pode supor entrarão em relações (de captura ou
identificação, de resistência, de confronto) com a malha de uma
subjetividade já inscrita em determinadas filiações de sentido”
(CELADA, 2005, p. 149). Entendemos que a língua outra produz
efeitos na relação constitutiva do sujeito com o simbólico, afetan-
do, inevitavelmente, “aspectos de uma identidade, pensada em sua
provisionalidade, como um feixe instável de traços, que decanta de
processos de identificação”3. Isso nos leva a dizer que há sempre um
processo de assujeitamento, ou de rejeição, ou de captura na relação
do sujeito com as línguas.
A noção de língua ligada ao equívoco, permite compreender
que o sentido jamais está colado à palavra, à “edificação” de uma lín-
gua, porque a tentativa de construir um sentido é sempre frustrada.
As palavras enunciadas são imprevisíveis, elas denunciam um lugar
de sentidos fugidios, fluidos, não totalmente controláveis. Em vista
disso, o sujeito busca sempre restituir a adequação imaginária entre
as palavras e as coisas, entre a presença e a ausência, entre o que
falta e o que excede, o que nos permite postular a noção de sujeito
múltiplo, cindido, heterogêneo, cujas palavras, inevitavelmente, (lhe)
escapam (ECKERT-HOFF, 2008).

3 Esse conceito de “identidade” (CELADA, 2008) toma como base a definição elaborada
por Mónica Zoppi-Fontana em seu artigo “Sujetos informales. Procesos de designación y
contradicción social”. En VERSIÓN. Estudios de comunicación y política, n. 14, “Redes
sociales y comunidades virtuales. Identidades y formas de participación”. México D.F.,
UAM-Xochimilco, dic. 2007.

215
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Esse dizível que “resvala” está na memória discursiva, onde se


dão os deslocamentos no funcionamento do dizer. Há sempre uma
identificação simbólica e imaginária que preside a troca de palavras
e constitui a organização, ainda que seja inconsciente, do discurso.
O sujeito organiza seu discurso em função da imagem que faz de si
mesmo, do outro e do objeto do qual fala.
Em todo discurso, há alteridade: é um eu outro e um outro eu
quem fala, havendo sempre uma incorporação, uma não-separação,
uma metamorfose. Por isso, não é possível estabelecer os limites entre
o eu e o Outro, já que, entre eles há sempre uma fronteira porosa,
um jogo, uma descontinuidade, uma passagem escorregadia (ROBIN,
1997, p. 17) – dada a alteridade constitutiva do sujeito. O sujeito se
constrói na alteridade, em que há sempre um jogo, uma clivagem,
uma não-coincidência de si. Nesse sentido, somos divididos e estra-
nhos a nós mesmos, o Outro é a face oculta da nossa identidade. É
sempre a partir do Outro que nos reconciliamos com a nossa própria
alteridade, que nos é sempre familiar e estranha ao mesmo tempo.
Assim consideramos que o lugar entre-línguas, ocupado pelo
sujeito em estudo, é um lugar de conflito. Isso nos reporta a Pêcheux
(1988, p. 51), quando afirma que “nenhuma língua pode ser pensada
completamente, se aí não se integra a possibilidade de sua poesia”,
que é o não-todo, o impossível, a porosidade, isto é, o equívoco da
língua. Na “poesia” das escritas de si compreendemos que as palavras
se situam entre a tênue fronteira da possibilidade e da impossibilidade
de se dizer, já que o sujeito, de acordo com Robin (1993, p. 07),
“fica sempre na borda, na margem, onde o estranho e a estranheza
vêm se atar a ele mesmo, ao maternal, ao fantasma da língua ou a
impossibilidade de habitá-la”.

Nos fios de vidas escritas: a língua salva, a língua que salva

Nossa filiação teórica nos permite dizer que a relação do sujeito


com a(s) língua(s) deixa passagens e demarçações, seja por adição,

216
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

seja por subtração, seja por enxerto, mas sempre pela relação com
o Outro, entre memória e esquecimento. Diante disso, vale aqui
registrar, inicialmente, que o lugar de sujeito entre-línguas sempre
constituiu o meu ser e o meu fazer. Primeiro, como estudiosa da
linguagem, com as pesquisas focadas em escrituras de si de sujeitos
entre-línguas, em contextos de imigração. Segundo, como descen-
dente de imigrantes, nascida numa colônia alemã do interior de Santa
Catarina, desbravada por descendentes de europeus alemães, entre
eles, meus avós maternos (da segunda geração nascida no Brasil, cuja
história de formação linguística se deu num entre-línguas. Essa relação
peculiar (de ser e estar entre-línguas) fez com que minha introdução
na linguagem se desse numa (con)fusão de línguas, em que o alemão,
em nome do sangue, era exposto como obrigatório dentro do lar
(mesmo tendo sido outrora proibido pelo Estado brasileiro) e, ao
mesmo tempo, o português era também obrigatório, pela exigência
da escola dessa Nação.
Dessa peculiar experiência podemos afirmar, coadunando-nos
com Payer (2015), que para os sujeitos com tal história de formação
linguística – que tem impresso no corpo, na memória, na língua, a
posição-migrante – criam-se, inevitavelmente, “caminhos / sulcos
na experiência com a linguagem, na integração produção do novo
lugar, com toda uma série de identificação com modos de dizer que
são diferentes de indivíduos que não passaram pela experiência da
imigração” (p. 53). Isso nos instiga a buscar histórias / experiências
de outros, poetas e escritores – alguns dos quais fundamentam nossa
pesquisa –, que revelam posições-migrantes marcadas por labirin-
tos linguísticos, cujos interditos ladeiam o sujeito numa singular e
estranha identificação ora com a língua (dita) materna, ora com a
(dita) estrangeira, ora com uma terceira língua e podem ser tomados
como “a língua esquecida, a língua proibida, a língua salva, a língua
que salva” (AMATI-MAHLER, 2005, p. 234).
Dentre inúmeras histórias, elegemos a de autores que nos são
familiares de alguma forma, seja pela identificação e constituição

217
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

subjetiva com as línguas, seja pela constituição teórica que funda-


menta nossa pesquisa. Baseados no livro A Babel do Inconsciente de
Amati-Mahler (2005), citamos vários casos: o de Samuel Beckett,
cuja língua materna é o inglês, língua pela qual inicia sua escrita,
porém, é no francês (língua de adoção) que sua principal obra toma
forma. O de Fernando Pessoa, que dentro do leque de suas múltiplas
identidades encontra no inglês uma fecundidade para escrever seus
poemas eróticos (ibidem, p. 200). O de Fred Uhlman, judeu-alemão,
nascido e crescido na Alemanha, que escreve sua autobiografia em
inglês, uma vez que encontra na Inglaterra a nova e definitiva pátria-
mãe. Ao relatar seu repúdio pela língua alemã, o escritor afirma que
depois da morte dos pais, vítimas do nazismo, não abriu mais nenhum
livro escrito em alemão e explica: “não gosto de me servir da minha
língua de origem. Minhas feridas ainda não cicatrizaram e, toda vez
que penso na Alemanha, é como se estivessem esfregado sal nelas”
(ibidem, p. 216). O de Hector Bianciotti, nascido em Córdoba, na
Argentina, que tem sua língua, o espanhol, atravessada pelo dialeto
da Itália falado pelos pais dele, já que estes migraram, ainda jovens,
do Piemonte. Em função do autor ter vivido exilado da língua dos
pais, isso o fez sentir-se um estranho à língua italiana e também à
espanhola. Ele se mostra “preocupado por não conhecer e não ser
capaz de usar uma língua que não reconhece como sua”. Contudo, aos
trinta anos, ocorre uma “reedição do ‘sentimento de exílio linguísti-
co’” (ibidem, p. 222) quando migrou para França. Bianciotti revela
sentir-se sempre um exilado nas línguas, estrangeiro para si mesmo:
“não estou seguro se o francês me aceitou. No entanto, estou certo
de que o espanhol me abandonou” (ibidem, p. 223).
Além destes, elegemos autores que fundamentam nossas pes-
quisas e revelam sua relação singular com as línguas que, exilados e
estranhos, “escrevem para inventar sua cidadania, perdida, em um
sentido, da origem” (ROBIN, 2002, p. 44). Hannah Arendt, judia
alemã que, mesmo tendo vivido os horrores do Nazismo e o exílio
americano, quando questionada sobre sua relação com a língua ale-
mã, numa entrevista à televisão da Alemanha, em 1964, responde:

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Was bleibt? Es bleibt die Muttersprache4, desse modo reafirmando sua liga-
ção efetiva e afetiva com a língua alemã e a impossibilidade de substituí-la
(DERRIDA, 2001, p. 79).
Elias Canetti, nascido na Bulgária, no seio de uma família judia
de origem espanhola, passa sua infância e adolescência entre seu país
natal e a Inglaterra, a Suíça, a Áustria. Nascido e crescido no Baixo
Danúbio, lugar onde “viviam pessoas das mais diferentes origens, e
num dia só podiam-se ouvir sete ou oito línguas diferentes” (CA-
NETTI, 1987, p. 12), o autor vivencia, desde o seu nascimento, o
multilinguismo de sua família, mas é a língua alemã que ele deseja
profundamente aprender desde muito cedo, por tê-la como a língua
do amor, a língua praticada na intimidade entre seus pais. O autor
relata que, com a morte do pai, aprende a língua alemã com sua
mãe, diante da perspectiva de viver e estudar em Viena, fato que se
consumou ainda em sua adolescência. E é essa língua que o autor
elege para escrever sua principal obra, inclusive a autobiográfica.
Régine Robin, filha de imigrantes poloneses, nasceu em 1939,
numa Paris – que logo seria ocupada pelos alemães – onde esconder-
se, passar despercebida, confundir-se com a população francesa não
judia era, na época, garantia de preservação da própria vida. A autora
relata que a língua alemã representa para ela o País em que seu pai
ficou enquanto ela vivia com a mãe, ambas refugiadas em Paris; fato
que a fez associar Deutschland às palavras de amor que o pai lhe
enviava via cartas. Porém, mais tarde, ao ligar as vítimas da família
com o holocausto, instalou-se na autora uma relação mí(s)tica de
atração e de repulsa com tal língua (descrito em Robin, 2001). É no
francês, portanto, que a sua obra se e(in)screve.
Derrida, judeu de origem árabe, franco-magrebino nascido
na Argélia ainda colônia francesa, relata que o francês foi para ele a
língua que lhe permitiu interditar a língua árabe; por isso confessa
sua paixão e incondicional amor pela língua francesa. Ainda assim,
o autor relata que nele se manifesta um francês que lhe é sempre
4 O que resta? O que resta é a língua materna.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

estranho, hóspede (DERRIDA, 2001) e revela: “gostaria tanto que


nenhuma publicação deixasse transparecer meu ‘francês da Argélia’”
(ibidem, p. 77). Ressalta-se que é no francês que o autor escreve toda
a sua obra, inclusive a autobiográfica.
A partir dos labirintos e percursos linguísticos dos escritores e
poetas aqui apresentados, que revelam vidas escritas, somos movidos
a questionar: “que língua é esta” que ou abandona, ou acolhe, ou salva?
Seria (citando Derrida 2001, p. 90), “a do nascimento pelo solo, a
do nascimento pelo sangue [ou seria] a do nascimento pela língua”?
Essas questões nos instigam a verificar como as escritas de si
dos sujeitos-(i)migrantes – corpus deste estudo – revelam, velam e
desvelam errâncias e inscrições nas travessias de sujeitos entre-nações,
entre-línguas, logo, entre-culturas.

Nos fios de vidas escritas: os furos que se velam, revelam,


desvelam

Como já observamos, as Cartas aqui analisadas são entendidas


como escritas de si, logo, são sempre escritas do outro, do outro
de si, de si no outro, velando e revelando e até mesmo negando ou
ocultando o que fica visível e invisível ao sujeito, num jogo de pos-
sibilidades e impossibilidades.
Ressaltamos inicialmente que as Cartas que selecionamos para o
presente estudo datam dos séculos XIX e XX, espaço de tempo que
carrega marcas de um processo histórico e ideológico de estabeleci-
mento de diferentes relações com as línguas de imigração no Brasil,
passível de ser segmentado em três períodos diferentes.
O primeiro – o período da língua viva, que se vigora e se enraíza
em solo brasileiro – integra os anos da primeira metade do século
XIX em diante, que marcam o início da imigração alemã, em que
os imigrantes chegaram com a língua e a cultura e, incentivados
inicialmente por D. João IV e em seguida pelo Império do Brasil,

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

montaram as próprias escolas e igrejas, produziram a sua literatura e


seus jornais, enfim, mantiveram a língua alemã viva e a propagaram
para as gerações seguintes. Em consequência, tanto nas regiões do
Rio Grande do Sul como nas de Santa Catarina, a língua alemã era
a praticada nas escolas, editoras, no meio público e privado, por
quase cem anos.
O segundo período – o da língua interditada e silenciada pelo
Estado – compreende as décadas de 30 e 40 do século XX e está
marcado pelo movimento da interdição oficial das línguas estrangeiras
no Brasil sob a influência do Nacionalismo, ditado pelo Estado Novo
(1937-1945).Tal interdição e silenciamento, em nome de um projeto
de homogeneidade nacional, ou seja, de manter o país monolíngue,
implicou no fechamento das escolas alemães e, com esse corte, os
imigrantes e seus descendentes, de acordo com Eckert-Hoff (2010),
tiveram de renascer numa nova língua e reaprender a falar e ser,
tiveram de se tornar “brasileiros”.
Por fim, o período pós Segunda Guerra Mundial – o da língua
silenciada, porém não apagada (como nos ensina Orlandi, 1992) –,
que compreende os anos pós-Estado Novo, pós-interdição das línguas
estrangeiras no Brasil, marcados por um outro movimento do sujeito
em relação à língua dos imigrantes – a do renascimento em certos
lugares e espaços, já que esta resiste e “sobrevive”, de alguma forma,
à interdição imposta pelo Estado. Isso provocou um movimento no
tempo-espaço-língua, já que a prática da leitura escrita foi-se per-
dendo, mas na oralidade, especialmente nas colônias rurais do sul do
Brasil, a língua alemã se mantém viva até hoje e ainda é a primeira
língua falada ao sujeito que nasce. Isso nos remete a Calligaris (1996,
p. 21), quando afirma que o Brasil “não soube ser pai, o um nacional
não conseguiu assujeitar” o imigrante, o que nos leva a entender que
o silenciamento não conseguiu calar e nem apagar a língua alemã.
Esta, inicialmente se perpetuou por gerações, possivelmente porque
o sujeito buscava, de alguma maneira (conforme o autor), uma forma
de reconhecimento pelo pai simbólico, aquele que ficou na Europa:

221
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

“aqui, nesta nova língua, o colono não parece encontrar um interdito


paterno que, regulamentando o apetite do gozo, organize um quadro
social que lhe outorgue uma cidadania” (ibidem). 
Com esse olhar, passemos à análise, ressaltando que compomos
o corpus com excertos de Cartas de diferentes períodos da história
da imigração alemã no Brasil, conforme mencionado acima, e orga-
nizamos esses excertos em quatro blocos de análise.
Vejamos o primeiro, formado por dois recortes retirados de
Cartas datadas da segunda metade do século XIX5.
RD1-C16
Kolonie Sant Justa 27 November 1852

(...) Hier befinden wir uns im Himmel, wir leben wir im gelobten Land.Wir leben
als freie Menschen. Niemand verlangt etwas von uns.Wir erwarten, die Kosten un-
serer Reise bald zu zahlen. Aus dem Wald holen wir, was wir wollen. Ich esse mein
tägliches Pfund Fleisch. Über die Getränke gibt es nicht viel zu schreiben; es gibt
nur Schnaps.Wenn wir Bier trinken wollen, müssen wir nach Petropolis gehen, 10
Meilen entfernt, wo es deutsche Brauereien gibt (...)7.
RD1-C2
Esträlla den 12TEN August 84

(…) Auch lebt man hier mehr freier, als Drüben, und das freie liebt doch alles
gern, sogar der kleinsteVogel (…)8.
5 Vale esclarecer que as Cartas datadas dos séculos XIX e XX (antes de 1945) foram escritas
no alemão com alfabeto gótico. Por isso elas são, primeiramente, transliteradas para o
alemão com alfabeto latino. Agradeço ao grupo de pesquisa do Romanisch Seminar da
Christian-Albrecht-Universität zu Kiel (onde realizei a pesquisa de meu pós-doutoramento),
por transliterarem as Cartas para que possamos proceder, nós mesmos, à tradução para o
Português. Vale lembrar que o alfabeto latino passou a ser utilizado na Alemanha a partir
de 1945.
6 Elucidamos: RD significa recorte discursivo; o número refere-se aos excertos de uma mesma
Carta. C significa Carta e o número corresponde à numeração das Cartas que compõem o
corpus deste trabalho.
7 Colônia Santa Justa 27 Novembro de 1852: “Aqui nos sentimos no céu, vivemos na Terra
Prometida. Vivemos como homens livres. Ninguém exige nada de nós. A despesa da nossa
viagem esperamos pagar logo. Da floresta retiramos o que queremos. Como diariamente o
meu meio quilo de carne. Sobre as bebidas não há muito o que escrever; só há aguardente.
Se queremos beber cerveja temos então que ir até Petrópolis, a 10 milhas de distância, onde
há cervejarias alemãs”.
8 Estrela, 12 de agosto de 1884: “Aqui se vive de forma mais livre, do que por lá, e a liberdade
todo mundo gosta de viver, até o menor dos pássaros”.

222
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Vemos que em ambas as Cartas há recorrências em relação


ao enaltecer da nova Terra, à liberdade encontrada, à fartura de
comida, à dualidade entre as nações. Os dizeres apontam uma pre-
ocupação em comprovar que fizeram certo em migrar e por isso
mostram o Brasil como o paraíso, o céu (Himmel), lugar de terra
produtiva; e aparece a satisfação por serem enfim proprietários
de terras e por terem exuberância de comida e, em especial, de
carne. É importante aqui lembrar que a migração para o Brasil
se deu em vista das condições econômicas e sociais que afligiam
a Alemanha, especialmente na primeira metade do século XIX,
época em que a exclusão social e a fome pairavam na vida dos
habitantes e o desejo era migrar para o “Novo Mundo”. As razões
que levaram os alemães a migrarem de seu país para o Brasil fo-
ram, segundo registra Seyferth (1974, p. 28):

a escassez de terras, a fragmentação das proprieda-


des, o excesso de trabalho nas áreas industrializadas
e os baixos salários tanto dos operários como dos
trabalhadores rurais. Além disso, havia também a
propaganda das companhias de colonização e de
agentes de emigração, tanto do Brasil como de
outros países. Essa propaganda se fazia em torno
de “concessão de terras do Novo Mundo” com a
afirmação de que todos seriam proprietários, sem
qualquer referência às dificuldades que os futuros
colonos teriam que enfrentar.

Retornando aos excertos, podemos ver que os dizeres re-


velam uma satisfação, enquanto imigrantes, por se encontrarem
numa situação melhor do que aquela deixada em sua terra. E esse
confesso se dá no sentido de afirmar-se como aquele que fez a
escolha certa, uma vez que o seu correspondente é um familiar
que ficou e que, de alguma forma, ainda que imaginária, intervém
para avaliar, julgar, condenar ou inocentar. Podemos observar que
o sujeito faz coincidir o real com o imaginário que foi projetado

223
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

por quem migrou e continuou sendo projetado, muito provavel-


mente, por quem ficou.
O recorte discursivo RD1-C1“aqui se vive de forma mais livre, do
que lá, e a liberdade todo mundo gosta, até o menor dos pássaros”, remete
a uma certa culpa em relação ao fato de ter migrado de seu país,
em que “o menor dos pássaros” é clamado como forma de inocentá-lo
dessa culpa. Observamos que os efeitos de sentido que emergem
desse dizer formam um encadeamento na teia discursiva: pecado ↔
culpa ↔ sacrifício ↔ redenção. O pecado advém de um possível
“erro” que o sujeito-imigrante imagina ter cometido em relação a
sua Pátria, ao pai simbólico; a culpa advém da possível “traição” a
seu país por denunciar o “aprisionamento” que este lhe representava;
o sacrifício vem requisitado pelo confesso de suas (in)satisfações;
a redenção é dada por meio da “invocação” do“menor dos pássaros”,
símbolo da inocência e da liberdade que com ele goza o (in)sabido
desejo, em busca da absolvição. Essa cadeia denota posições de
errâncias e de inscrições do sujeito, entre o lá (Alemanha) e o cá
(Brasil), no sentido de reafirmar que aquilo para o qual vieram
(imaginário) se “confirma” no real.
Os efeitos dos dizeres apontam para o sentido de que a nova
terra incita um lugar de fuga, de novas possibilidades e de realizações,
lugar que reflete o sonho idílico da América: terra nova onde se pode
criar um espaço de liberdade – de similitudes e de afastamentos –
mas continuar alemães. São as projeções imaginárias do sujeito que
imigrou e do outro que ficou, da língua de si e da língua do outro,
enfim, o imaginário em relação a nova terra que encontraram, bem
como da terra que ficou distante.
Passemos ao segundo bloco de análise, formado por dois ex-
certos retirados de Cartas datadas da primeira e segunda metade do
século XIX, também escritas por imigrantes alemães no Brasil.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

RD1-C3
Von der Colonie Sanct Leopoldo, geschrieben am Sonntag, den 21TEN April im
Jahre 1833

(…) Von allen deutschen Feld und Gartenfrüchten pflanzen wir hier. Grüne Gemüse
können wir das ganze Jahr durch haben; die Maniok oder Farinen Wurzeln sind
sehr angenehm, schmecken noch besser als Kartoffeln (…)9.

RD2-C3
Von der Colonie Sanct Leopoldo, geschrieben am Sonntag, den 21TEN April im
Jahre 1833

(…)Unsere Kolonie hat 100 Braβen in die Breite und 1600 in die Längen Tiefe,
eine Braβen (…)10.

RD1-C4
Picade Cara den 10TEN Februar 1873

(…) Vor drei Jahren kosteten die Bohnen noch 10-12 Milreis pro Sack, jetzt 2-3,
die Milho 4-6, jetzt 1 Milreis(…)11.

Podemos observar que tanto nos excertos da Carta datada de


1833 como na de 1873, elementos da língua portuguesa já estão
inseridos na escrita. Pegando pela sequência, interessante observar,
em RD1-C3, o modo como Maniok, mandioca, é significado em
relação àquilo que é conhecido pelo seu interlocutor – a batata. A
palavra Maniok, que era um alimento, na época, desconhecido na
culinária alemã e, além disso, a referência a ela ser “ainda melhor que
as batatas” remete a um sentido muito forte, já que a batata era/é um
elemento essencial da culinária alemã. Também a palavra “Farinen”,
farinha, nos chama a atenção porque na língua alemã farinha é Mehl.
Em RD2-C3, obervamos a palavra Kolonie, colônia, para explicar
9 Da Colônia de São Leopoldo, escrito no domingo, de 21 de abril do ano de 1833: “De tudo
que há nos campos, jardins e hortas alemães nós plantamos aqui. Hortaliças verdes podemos
ter durante todo o ano; a mandioca ou farinha de mandioca são muito agradáveis, o sabor é
ainda melhor que as batatas”.
10 Da Colônia de São Leopoldo, escrito no domingo, de 21 de abril do ano de 1833: “Nossa
colônia tem 100 de medição na largura e 1600 de comprimento”.
11 Picada Cara 10 de fevereiro de 1873: “Há três anos o feijão custava ainda 10-12 milréis por
saco, agora 2-3, o milho 4-6, agora 1 milréis”.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

extensão de terra, sendo que não é essa a nomeação para explicar


medição na língua alemã, conforme nos ensina Meter (1989). Em
RD1-C4 chamam-nos atenção a palavra Milho, palavra que não existe
na referida língua; nesta, a que se refere a milho é Mais.
Vejamos que ocorre um movimento do português na direção
do alemão, o que aponta para uma dupla identificação marcada por
um novo modo de dizer. Esse novo – que se materializa em Maniok;
Farinen; Kolonie; Milho – está fortemente marcado na sua relação com
o trabalho e com a comida, como forma de sobrevivência, sobretudo
na Kolonie, em que todo esse novo se planta, se colhe, se ingere – e
se digere. Entendemos essa movência, com base em Celada (2013,
p. 50), como um “modo de exposição à alteridade”, daí o abrigo para
a possibilidade do sujeito se in(e)screver no “no funcionamento de
uma outra matéria linguístico-discursiva (...) e enunciar e significar
numa nova deriva no desfiladeiro de significantes” (ibidem), como
forma de se re-significar.
A posição “imigrante”, conforme nos ensina Payer (2015), induz
o sujeito, muito provavelmente afetado por questões econômicas
e comerciais, a formular novos significantes no entremeio das lín-
guas – afinal vieram para isso, para desbravar terras, para não mais
passar necessidades, não mais serem privados de comida farta. E
esses inventos de novos significantes são entendidos, de acordo com
Celada (2013), não como um erro, mas sim como fatos de linguagem,
já que “um sujeito deixa marcas relativas a sua língua materna (ou
às outras que o habitam) na elaboração que faz da estrangeira” (ibi-
dem, p. 71). As palavras Mais e Mehl existiam na língua alemã, por
isso, a escrita desses significantes na matéria Milho e Farinen revela
um fato de linguagem no entremeio das línguas, uma (necessária)
movência do sujeito para um novo modo de dizer, dada às travessias
das línguas e das nações. O sujeito é instado a se desterritorializar
para reterritorializar-se num novo e possível espaço, marcado por
entre-lugares, por entre-línguas.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Vejamos que mesmo que os imigrantes falavam e escreviam em


alemão aparecem elementos das línguas em confluência, isto é, uma
língua acontecendo na outra, num movimento de ir do português na
direção do alemão, indiciando identificações que se hibridizam. De
acordo com Celada (2013, p. 55), podemos dizer que há uma “filiação
por parte de um sujeito a uma nova rede de significantes e de sentidos”
marcado por uma travessia de nações, travessia de culturas, travessia
de línguas, o que propicia, segundo a autora, “o fato de que a língua
aconteça no sujeito para que este consiga se inscrever nela (ibidem)12.
Podemos ver enlaces e desenlaces do sujeito na, das e pelas
línguas, o que indicia ruptura, exílio, mas também hospitalidade.
Sob esses efeitos, passemos à análise do terceiro bloco de recortes,
retirados de Cartas datadas do início e final da segunda metade do
século XIX.

RD1-C5
Linie Hof, 18 July 1858
(…) Liebste Mutter, macht euch keine Gedanken um den Jakob, dem geht es
gut er lebt immer in Fröhlichkeit er kann Brasilianer sprechen und ist ein guter
Maulfechter(…)13.

RD1-C6
Parana tem July 1896

(…) Der Deutschbrasilianer liebt die deutsche Sprache als die seines Elternhauses;
aber er liebt auch die portugiesische Landessprache als die seiner Jugendgespielen
und Freunde. Deutschland ist ihm teuer als das Land seinerVäter, auch wenn er es,
wie die allermeisten von uns, nie gesehen hat; aber seine Heimat, also mehr ist im
Brasilien, denn hier ist er geboren, gewachen und geworden (…)14.

12 Grifos da autora.
13 Linha Hof, 18 de julho de 1858: “Mãe Querida, não se preocupe com o Jakob, ele está bem
e vive sempre em alegria, ele sabe falar brasileiro e é um bom ‘esgrimista’”.
14 Paraná, julho de 1896: “O brasileiro alemão ama a língua alemã, por ser a língua da casa de seus pais;
mas ele ama também a língua do país, o português, por ser a língua dos seus camaradas e amigos
desde a infância. Alemanha é para ele cara, é a terra de seu Pai, seus antepassados, mesmo que, como
a maioria de nós, nunca a viram. Mas a sua casa (Heimat), assim mais é o Brasil, porque aqui ele
nasceu, cresceu e se tornou alguém”.

227
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Considerando que se trata de Carta escrita no ano de 1858,


chama-nos a atenção, em RD1-C5, a referência do sujeito ao saber
da língua outra. Ao escrever para a mãe que “não se preocupe” com o
filho Jakob porque ele “sabe falar brasileiro” fica implícito que este é
um saber de alguns e indica que a língua alemã é a do falar e do saber
comum entre eles. Observe-se que esse saber falar vem procedido da
palavra “Maulfechter”: Maul = boca de animal e fechter = esgrimista.
É curioso observar que a palavra boca referindo-se à boca humana
seria Mund, logo, a escrita deveria ser Mundfechter. O sujeito escreve
(talvez como um lapso? deslize?) “Maulfechter”, o que pode ser tra-
duzido como o “esgrimidor em boca de animal”.
Os sentidos que apreendemos desse possível deslize do sujeito
ao escrever “boca de animal” e “esgrimidor” 15 e em seguida anunciar
que “sabe falar o brasileiro” indicia um estilhaçamento no combate
entre o saber das línguas, no caso o alemão e o brasileiro, em que a
arma (língua) funciona como a lâmina fina que, no combate, procura
atingir o corpo do outro. A língua outra, a estrangeira, no caso, a
brasileira, conforme nos ensina Celada (2013, p. 55), “poderá vir a
constituir o sujeito, chegando a ‘falar por sua boca’”, já que o sujeito,
dado os entre-lugares que se atravessam, se e(in)screve na ordem da
língua outra, ainda que insconscientemente.
Observe-se que há uma posição “migrante” muito forte nesse
dizer, que mostra movências do sujeito – entre-lugares, entre-línguas,
entre-culturas, entre-nações – que tramam, inevitavelmente, novas
malhas de subjetividade.Vale trazer novamente as palavras da autora,
quando afirma que “cada língua, com sua especificidade e como uma
função, irá atravessando o campo dessa subjetividade (...) e travando
laços com a matéria das outras língua(s) e com a das outras formas
de linguagem que habitam esse campo” (ibidem, p. 54). Isso provoca
15 A série de sentidos registrados no dicionário sobre a palavra “esgrimidor” nos ajuda a re-
cuperar os que emergem no deslize que abordamos. Citamos os enunciados definidores do
Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (2007): “Esgrimidor: pessoa que domina a arte de
esgrimir. Esgrimir: jogar ou manejar espada, florete, sabre (...) fazer movimentos agitados
com; vibrar, brandir (...); fazer vibrar com intenção belicosa; manipular como arma em
discussão polêmica; travar, combater contra; lutar. Discutir, argumentar, polemizar”.

228
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

deslocamentos e a inevitável necessidade do sujeito se reterritorializar


em outro lugar sujeito-línguas.
Com esses efeitos, passemos à análise do excerto RD1-C6,
escrito por um descendente de imigrantes alemães. Chama-nos a
atenção, inicialmente, a nomeação “Der Deutschbrasilianer” no início
da Carta, que materializa, no nosso entender, o desejo de marcar o
duplo, tanto o Deutsch como o Brasilianer num só, imprimindo iden-
tidades hifenizadas, misturadas. “Deutschbrasilianer” comporta dois
significados: o Brasil como nova pátria (“Heimat” ou “Vaterland”)
pelo jus solis, e a Alemanha como pátria ancestral (“Urheimat”) pelo
jus sanguinis, o que revela marcas de cortes e de suturas que unem
e misturam terra e sangue. Esse duplo solis-sanguinis faz (re)soar,
num entre-dois, uma nomeação, unindo, aglutinando as línguas,
as identidades, as culturas, as nações, nas quais não quer se calar e
muito menos apagar.
Observe-se que o artigo definido “Der” Deutschebrasilianer (“o”
brasileiro alemão) captura o sujeito para afirmá-lo numa identificação
multiplicada em dois e que, ao mesmo tempo, condensa a “mesti-
çagem” de nações, de línguas, dada à condição e posição do sujeito
migrante, que se materializa na hibiridização do eu e do outro, do
aqui e do lá, do Deutsch e do brasilianer.
Mais adiante, essa mestiçagem, introduzida por “aber” (“mas”),
materializa-se para unir os opostos pelo “amor da língua” (MILNER,
1987). O amor da e pela língua alemã, que é a língua de seus “pais e
antepassados”, mas também o amor da e pela língua do país, o brasileiro,
que é onde ele “nasceu, cresceu e se tornou alguém”. A palavra “geworden”
foi por nós traduzida por “se tornou alguém”, porém, vale dizer que,
dada a (im)possibilidade da tradução (no sentido derrideano), essa
palavra remete também ao sentido de “criar um nome para si, fazer
um nome”. O que vemos é uma posição migrante que clama por
marcar um “nome para si” num lugar-língua-nação, em nome do pai
simbólico, o que leva o sujeito a se recriar dentro da língua de si e
da língua do outro, entre-laçado pelo eco da(s) língua(s) do Deutsch

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

e do brasilianer. Reportando-nos a Robin (1999), podemos dizer que


é a língua de morte contra a língua de vida que faz surgir a terceira
língua – aquela em que o sujeito se reinventa, salva e é por ela salvo.
Vemos que exílio e hospitalidade habitam o sujeito Deutschbra-
silianer: a mãe (nação) está distante e o pai (terra de origem) está
morto, utilizando-nos das palavras de Stübe-Netto (2008). E esse
luto da origem que se mostra na escrita, se dá pelo confronto com
a pluralidade, num gesto de (re)criação, que se mostra por fissuras
por onde o sujeito vaza, respira, por onde a falta se deixa ver.
Interessante observar que a palavra Heimat não tem uma tra-
dução específica, ela remete a lar, casa, Pátria e abarca o sentido
de familiaridade, de lugar onde o sujeito nasce, cresce, conhece
e se enlaça, de alguma forma (mesmo que insabida), por fios que
constituem memória, cultura, identidade16. O excerto “mas a sua
Heimat, assim mais é o Brasil” aponta, no nosso entender, para um
investimento do sujeito na busca de ver como colocar tudo isso
num novo lugar, implicado pelo sentido da culpa, do pecado. Há
uma culpa pelo pai morto, uma necessidade de busca pela reden-
ção, absolvição – daquele do jus sanguinis. Redenção esta que o
libertaria para a vida na sua nova Heimat, a do jus solis, por isso a
“necessidade” de aliar solo e sangue.
Para Robin (1999), a língua outra, onde se é estrangeiro, de
alguma forma é também o Heim (lar, no sentido cunhado por Freud),
lugar de exílio, onde os traços da língua primeira não se apagam e os
traços da língua outra produzem novas marcas, que de alguma forma
modificam seu eu, sua assinatura. Há, pois, os entre-dois que não se
opõem, mas se relacionam entre si por um movimento de traves-
sias, que se marcam por errâncias e inscrições: entre o eu e o outro,
entre o lá e o cá, entre o Deutsch e o brasilianer – a mestiçagem e a
inevitável transformação de identidades.

16 Podemos dizer que ocorre com a palavra Heimat (no alemão) o mesmo que ocorre com a
palavra saudade (no português): não se encontra palavra na outra língua para traduzi-la. A
tradução de Pátria é Heimatland; a de casa e lar é Haus.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Com este olhar, vejamos o quarto bloco, constituído de um


trecho de uma Carta escrita um século depois por um descendente
de imigrante nascido no ano de 1919, no sul do Brasil.

RD1-C717

Vejamos que mais de um século depois, o descendente da se-


gunda geração nascida no Brasil ainda escreve na língua da Pátria
de seus antecedentes. Podemos ver que o ato histórico-político
da interdição das línguas estrangeiras no Brasil – que provocou o
silenciamento das línguas de imigração – não conseguiu apagar e
nem mesmo calar a língua alemã. Ela permanece viva, marcada por
toda uma história de propagação mas também de exclusão e, de
alguma forma, move o sujeito e vigora, ainda que na oralidade, no
17 Arroio do Meio, 05 de março de 1987: “Muito me alegrou a boa notícia que seu amigo Sr.
König me trouxe. De que na Alemanha vivem ainda familiares Kist. O Sr. König me disse
ainda que o senhor tem interesse em manter contato com parentes da família no Brasil. Meu
nome é Leo Kist, meu pai é Franz Kist e meu avô Adam Kist. Eu ainda sei falar alguma
coisa em alemão, mas escrevo muito mal. Por isso o senhor precisa me perdoar porque eu
certamente não escrevo tudo corretamente. Eu moro em Arroio do Meio, apenas 120 Km
distante da principal cidade, Porto Alegre. Arroio do Meio é uma pequena cidade na colônia
alemã no sul do Brasil (Rio Grande do Sul). Eu tenho 5 crianças, quatro filhas e um filho.
As filhas são todas casadas, 3 com homens descendentes de alemães, e o filho tem 16 anos
de idade. Mas nós não somos a única família Kist no Brasil, porque em Santa Cruz e Venâ
duas cidades há mais ou menos 50 Km distantes daqui, tem muitas famílias Kist, todas
descendentes dos 3 irmãos Kist que vieram ao Brasil, um dos 3 era meu avô (Adam)”.

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Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

seio familiar e comunitário.Visto isso, somos movidos a questionar:


que língua é essa que, embora interdita e silenciada pela história,
não se apaga e mais do que isso, resiste, insiste, move e se in(e)
screve no e pelo sujeito?
Observe-se, na Carta, a exaltação e a alegria relatadas, por
saber que antecedentes de sua família ainda estão na Alemanha.
O descendente revela a filiação histórica para marcar o nome do
avô, Adam Kist, imigrante alemão que se fixou no sul do Brasil.
O dizer “ainda sei falar alguma coisa em alemão, mas escrevo muito
mal” desvela um saber da língua que ficou na oralidade, por isso,
as escusas por considerar que a escrita poderia estar mal e talvez
até incorreta. Vemos o sujeito se mover entre o que a memória
dessa língua torna possível dizer e também não dizer (Celada,
2013). Essas questões nos levam a indagar que imagem de língua
funciona nesse dizer: seria a do imaginário de língua idealizada
como perfeita e por isso o pedido “o senhor precisa me perdoar...”?
O verbo precisar indicia um gesto forte de investimento do su-
jeito para chegar na língua do outro (mas que em certa dimensão
também é sua), por isso ela não poderia ser maculada, perfurada.
Daí a necessidade do perdão diante de possíveis erros, no desejo
de chegar no possível, roçando o impossível. Entendemos que
os sentidos apontam para uma certa culpa – a culpa pela língua
rasurada na memória.
Observe-se, ainda, na materialidade da língua, que a palavra
“Colonie” se perdurou e se consolidou nesse entremeio das línguas
em travessias e reaparece na escrita com um novo traço material. O
sujeito utiliza a letra “c” no lugar de “k”, ou seja, a palavra foi escrita
na direção do português. Neste sentido, afirmamos com Payer (2006),
a língua de imigração, no caso a alemã, não morre para o sujeito, já
que esta o constitui, como memória da língua. São traços da língua
silenciada que não se apagaram e que se re-apresentam na escrita
com outra roupagem, pela memória das e nas línguas.

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Arrematando alguns fios da trama

Como “as letras que se encadeiam e se ligam... ou fazem furos”


(tal qual epigrafado neste texto) podemos ver, pelos gestos de inter-
pretação, que o babélico se instala pela fusão das línguas, o que leva
o sujeito, sempre e inevitavelmente, a um agenciamento delas para
conseguir dizer, se dizer e ser.
O estudo aqui empreendido nos permite verificar uma certa mo-
vência do sujeito em relação às línguas. Nos excertos RD1-C3, RD2-C3
e RD1-C4 observa-se um movimento de materialidades linguísticas que
marcam e tentam perfurar e empurrar o português na direção do alemão.
Nos excertos RD1-C5 e RD1-C6 temos um movimento que clama o
duplo e marca o entre dois num só, exaltado pelo “amor das línguas”,
pela aglutinação das identificações solis-sanguinis. Já no excerto RD1-C7
podemos verificar que ocorre um movimento às avessas – do alemão para
o português – marcado, obviamente, por toda uma história de exclusão,
mas também de permanência e de insistência da língua alemã, ainda que
em certos lugares. O que se revela nos dizeres é a movência do sujeito no
sentido de salvar o que resta, uma vez que, como nos ensina Payer (2007,
p. 115), “a memória que se materializa na língua é de uma natureza tal
que ela joga tanto com a presença (permanência) de marcas linguísticas
como com a ausência (esquecimento) da língua”.
Isso nos leva a concluir que há sempre um processo de ruptura,
de rejeição, de captura, de enraizamento, de hospitalidade, de exílio
na relação do sujeito com a(s) língua(s). Em vista disso, a relação dos
sujeitos-enunciadores com as línguas deixa rastros, ressonâncias,
produz memória, desse modo desdobrando, inevitavelmente, efeitos
e transformações na constituição linguística e identitária do sujeito,
marcado por errâncias e inscrições. Errâncias porque carrega o sabor
de multiplicar as coisas herdadas, do outro de si, de si no outro e
inscrições porque, inevitavelmente e ainda que inconscientemente, se
inscreve no que é do outro e confessa desejos, realizações e frustra-
ções, entre o velho e o novo, entre o cá e o lá, entre o eu e o Outro.

233
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

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235
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Política de línguas no Instituto


Machado de Assis: a formulação e o
abandono de um projeto1
Leandro Rodrigues Alves Diniz
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Resumo: A partir do quadro da História das Ideias Linguísticas, na


sua relação com a Análise do Discurso materialista e com a Semântica
do Acontecimento, propomo-nos, neste capítulo, a analisar alguns
textos relativos ao Instituto Machado de Assis (IMA).Tal instituição,
proposta em 2005, trabalharia na formulação e coordenação de po-
líticas relativas à produção e circulação de saberes metalinguísticos
para além das fronteiras brasileiras. Argumentamos, por meio de
nosso percurso analítico, que a proposta de criação do IMA, bem
como o fracasso em sua implementação, se sustentam em processos
discursivos constitutivos do funcionamento da língua portuguesa.
Destacamos, em particular, o complexo jogo entre distintas memórias
que organizam o espaço de enunciação do português, refletindo sobre
os efeitos desse jogo nos processos de identificação dos sujeitos que
constituem – e são constituídos por – esse espaço. Palavras-chave:
Instituto Machado de Assis. Políticas Linguísticas. Fronteiras. Espaço
de Enunciação. Identificações.

1 Este capítulo retoma algumas discussões feitas em pesquisas anteriores (DINIZ, 2008, 2010, 2012),
que contaram com o auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)
e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Agradeço a essas
instituições pelo apoio, bem como ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec-
nológico (CNPq), pela bolsa concedida por meio do edital universal MCTI/CNPq n. 14/2014, por
meio da qual dou continuidade a pesquisas no campo das políticas de línguas.

237
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Apresentação

Em 13 de outubro de 2005, o ex-presidente Luiz Inácio Lula


da Silva lançou oficialmente, durante a VIII Cimeira Luso-Brasileira,
ocorrida no Porto, a proposta de criação do Instituto Machado de
Assis (IMA). Ligado ao Ministério da Educação (MEC) e tendo como
parceiros os Ministérios da Cultura (MinC) e das Relações Exteriores
(MRE), o IMA, conforme texto de apresentação disponível no portal
do MEC2, teria como missão

formular e coordenar as políticas de promoção da


língua portuguesa no Brasil e no mundo; induzir,
catalisar e organizar a pesquisa em língua portuguesa;
ser referência em língua portuguesa para o ensino e
formação de professores e promover atividades cientí-
ficas e culturais visando à promoção e difusão da língua.
Em consonância com as diretrizes político-pedagógicas
de ensino, pesquisa e formação de professores em
língua portuguesa, elaboradas pela Comissão para De-
finição da Política de Ensino-Aprendizagem, Pesquisa
e Promoção da Língua Portuguesa (Colip), o IMA tem
o objetivo de formular e coordenar as políticas para a
língua portuguesa em quatro eixos: difusão e ensino;
documentação; pesquisa e políticas.
Em consonância com o Ministério das Relações Exte-
riores, o IMA difunde a língua portuguesa em quatro
frentes: nos países não lusófonos; em colaboração
com a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
(CPLP); por meio de projetos e acordos culturais e em
países estrangeiros onde vivem minorias brasileiras.

Segundo notícia publicada pelo Instituto Camões (2005),


caberia ao IMA a coordenação dos Centros de Estudos Brasileiros
(CEBs)3 – atualmente sob tutela do Itamaraty –, que “dariam lugar a
2 Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php/?id=12319&option=com_content&view=
article>. Acesso em: 20 out. 2015.
3 Os Centros de Estudos Brasileiros são, desde 2008, conhecidos como Centros Culturais
Brasileiros. Assim, por exemplo, a designação Centro de Estudos Brasileiros em Cabo

238
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

filiais do instituto com o aval do Ministério das Relações Exteriores”


(FRADKIN, 2005). A instituição, ainda de acordo com essa matéria,
também teria a finalidade de entrar nas universidades, além de co-
ordenar a elaboração e aplicação do Certificado de Proficiência em
Língua Portuguesa para Estrangeiros (Celpe-Bras), desenvolvido e
outorgado pelo MEC4. A criação do instituto contaria com o apoio
da Colip, mencionada no recorte anterior, instituída pela portaria
4.056 do MEC, de 29 de setembro de 2005, composta por 19 mem-
bros, entre os quais representantes do MRE, do MinC e da Academia
Brasileira de Letras, bem como docentes da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), Universidade Nacional de Brasília (UnB), Univer-
sidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Estadual de
São Paulo (USP), dentre outras (BRASIL, set. 2005).
Passada, porém, uma década desde seu lançamento, o IMA não
foi criado, e tampouco há sinais de que virá a sê-lo. Na página do
instituto, no portal do MEC5, encontramos apenas o texto de apre-
sentação citado anteriormente, telefones e e-mails para contatos, e
Verde foi substituída por Centro Cultural Brasil-Cabo Verde. Como argumentamos em um
trabalho anterior (DINIZ, 2012), a antiga designação significa tais centros unilateralmente:
tratar-se-ia de instituições destinadas ao estudo de temáticas concernentes apenas ao Brasil,
e não a outros países. Em contrapartida, a conjunção estabelecida pelo hífen em “Centro
Cultural Brasil-X” (em que X é o nome do país-sede da instituição) produz um efeito
de simetria entre o Brasil e o outro Estado. A nova designação resulta, portanto, em um
apagamento do discurso de que esses centros visam, sobretudo, ao estudo do Brasil – e,
consequentemente, à influência cultural do Estado brasileiro –, em favor da construção do
discurso de que se busca a cooperação cultural bilateral, o estreitamento de laços culturais
entre o Brasil e outro país. Observamos, ainda, que a nova designação traz para primeiro
plano o cultural. Essa parece ser uma das marcas do funcionamento da política linguística
exterior contemporânea do Itamaraty, que tende a ser significada como parte de cultura
maior, de tal forma que o ensino da língua portuguesa, frequentemente, se “dilui” em meio
a diversas outras ações culturais levadas a cabo pelo MRE. Conforme análises realizadas em
trabalhos prévios (cf. ZOPPI-FONTANA & DINIZ, 2008; DINIZ, 2010, 2012), isso se deve
ao fato de que a cultura brasileira produzida mercadologicamente é um elemento-chave no
processo que passa a significar “a língua portuguesa falada no Brasil” como um produto de
Mercado, aumentando-lhe o status e prestígio internacionais. Além disso, o apelo à cultura
tende a produzir um apagamento do fato de que a política linguística do Itamaraty se vincula
a interesses – geopolíticos, econômicos e comerciais – da política externa do Estado brasileiro
(cf. DINIZ, 2012).
4 Para uma análise do Celpe-Bras como instrumento de política linguística, cf. Diniz (2008,
2010).
5 Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php/?id=12319&option=com_
content&view=%20article>. Acesso em: 30 out. 2015.

239
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

links de acesso a “Documentos”, “Colip”, “Comunidade dos Países de


Língua Portuguesa”, “Instituto Internacional da Língua Portuguesa”
e “Conheça a obra de Machado de Assis”. Entretanto, o primeiro e
penúltimo links levam a páginas inexistentes. Embora não tenha sido
dissolvida, a Colip não mais foi convocada para reuniões, segundo
informações que obtivemos em conversas informais com alguns de
seus membros, encontrando-se, aparentemente, estagnados as dis-
cussões e os trabalhos visando à criação do IMA.
Nesse capítulo propomo-nos, justamente, a analisar os processos
discursivas que sustentam a proposta de criação desse instituto, bem
como sua não implementação. Para tanto, temos como referência
teórico-metodológica o quadro da História das Ideias Linguísticas
(HIL), na sua relação com a Análise do Discurso materialista e com
a Semântica do Acontecimento.
A HIL se configurou, no Brasil, a partir de um movimento de
des/reterritorizalização de um campo interdisciplinar fundado na
França na década de 1980 – a História das Ciências da Linguagem
(AUROUX, 1989, 1995) –, que se interessa pelas diferentes formas
de constituição do saber metalinguístico ao longo da história, não se
restringindo, portanto, àqueles desenvolvidos na chamada Linguística
moderna. Nas palavras de Auroux (1992, p. 13), “Seja a linguagem
humana, tal como ela se realizou na diversidade das línguas; saberes
se constituíram a seu respeito; este é nosso objeto”. No Brasil, a HIL
caracteriza-se por pensar fortemente a história do saber metalin-
guístico no país em relação à constituição da língua nacional, como
podemos observar a partir da seguinte formulação de Guimarães e
Orlandi (1996, p. 14):
Além da produção de um conhecimento específico
necessário ao domínio linguístico, importa conhe-
cer o modo de formulação da língua nacional e o de
constituição de um saber metalinguístico para melhor
compreender a variada natureza dos objetos simbólicos
que estão envolvidos na formação de um país como o
Brasil. É da produção desses objetos e da relação esta-

240
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

belecida pelos sujeitos com essa produção que resultam


os sentidos atribuídos ao país, assim como aqueles que
dão sentidos a esses sujeitos enquanto eles se definem
em relação ao seu país, nas formas que a política das
relações sociais significar nessa sua história, seja como
súditos, seja como escravos, seja como cidadãos.

A relação entre a constituição de saberes metalinguísticos e a


construção de espaços imaginários de identificação ocupa, portanto,
um lugar central nas pesquisas brasileiras no campo da HIL. Nessa
perspectiva, instâncias de gramatização (a exemplo de dicionários,
gramáticas, nomenclaturas oficiais, livros didáticos) e instituições de
produção e circulação de saberes metalinguísticos (como colégios,
associações científicas, academias de língua) participam dos processos
de interpelação e identificação dos sujeitos, sendo, por esse motivo,
“um excelente observatório da constituição dos sujeitos, da sociedade
e da história” (ORLANDI, 2001, p. 9). É a partir dessa perspectiva
que concebemos o IMA, uma instituição que trabalharia na formu-
lação e coordenação de políticas relativas à produção e circulação de
saberes metalinguísticos para além das fronteiras brasileiras.
Este texto encontra-se organizado em três outras seções além
desta apresentação. Na primeira delas, mobilizando o conceito de
espaço de enunciação (GUIMARÃES, 2002), entre outros conceitos-
chave para nosso trabalho, discutiremos alguns litígios constitutivos
do espaço de enunciação brasileiro, que estão no cerne da política
de línguas6 em jogo na proposta de criação do IMA. É essa proposta
que será analisada, discursivamente, na seção seguinte, a partir de
um corpus de pesquisa constituído, principalmente, por notícias sobre
esse instituto. Encerraremos nosso texto levantando a hipótese de
que o abandono do projeto de criação desse instituto está relacionado
a equívocos estruturantes do espaço de enunciação brasileiro e dos
movimentos para sua ampliação.

6 Esse conceito será definido na próxima seção, a partir de Orlandi (2007a).

241
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

O funcionamento do espaço de enunciação brasileiro

Antes de tecermos algumas considerações sobre o funcionamen-


to do espaço de enunciação brasileiro, importantes para a discussão
que almejamos aqui empreender, definiremos os principais conceitos
que atravessam este trabalho. O primeiro deles é o de espaço de
enunciação, proposto por Guimarães (2002) no quadro da Semân-
tica do Acontecimento. Para o autor (ibidem), trata-se do espaço de
atribuição das línguas a seus falantes, segundo uma regulação histó-
rica específica, por meio da qual se produzem sentidos que, a des-
peito de se constituírem ideologicamente, se nos apresentam como
evidentes. Configuram-se, assim, sobreposições e hierarquizações,
tomadas pelos falantes como naturais; dentre elas, a que, no espaço
de enunciação brasileiro, se dá entre língua oficial, língua nacional e
língua materna. Distingamos, então, esses conceitos, fazendo frente
ao efeito de indistinção a que estão frequentemente submetidos.
Lembremos, em primeiro lugar, que uma língua oficial é
aquela utilizada nos atos legais do Estado, aquela em que se deve
dar a relação entre esse e os cidadãos (GUIMARÃES, 2005)7, não
correspondendo, necessariamente, à nacional, a qual, como define
Payer (2007, p. 117), a partir de considerações de Gadet e Pêcheux
(2004), é

um elemento central através do qual o Estado Nacio-


nal realiza seu ideal de unidade jurídica, propagando
a unidade lingüística e realizando a homogeneização
da língua e do sujeito, ao instalar a forma de convi-
7 O funcionamento do português como língua oficial no espaço de enunciação brasileiro está
relacionado, por exemplo, à recusa de cartórios em registrar nomes de etnias indígenas em
documentos oficiais. Conforme noticiado pelo portal Rede Brasil Atual (2015), “Toponoye
Xukuru, nativo de uma tribo indígena do estado de Pernambuco [...] teve dificuldades na hora
de registrar o filho recém-nascido. ‘Tivemos algum impasse quando chegamos até o cartório,
porque falaram que o nome Xukuru poderia servir futuramente como chacota. Não estava
respeitando o nosso povo, a nossa cultura. É a nossa cultura nossa, nossa tradição, o nosso
povo e no sangue que está em jogo. É o nosso nome que a gente quer levar adiante’”. A fim
de garantir às comunidades indígenas o direito de uso do nome de sua etnia em carteiras de
identidade e certidões de nascimento, casamento e óbito, o senador Telmário Mota propôs,
em outubro de 2015, o Projeto de Lei 161/2015 (JUS BRASIL, 2015).

242
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

vência social da cidadania, que tem a propriedade de


se apresentar nas formas da universalidade (igualdade).

A língua materna, por sua vez, corresponde, na perspectiva


de Revuz (1998), à língua que introduz o sujeito no simbólico, fun-
cionando como “instrumento e matéria da estruturação psíquica”
(ibidem, p. 217). Nas palavras de Pereira de Castro (2000), trata-se de
uma “experiência inaugural e definitiva”, que diz respeito à “passagem
do infans ao ser de linguagem”. Nesse sentido, como afirma Milner
(1987), a língua materna não pode “fazer número com outras línguas”:

Quem não vê que a classe das línguas pode ser dita


inconsistente, uma vez que sempre um de seus ele-
mentos é de tal ordem que ele não pode ser colocado
sem revelar-se incomensurável a todos os outros? Esta
língua, que dizemos usualmente materna, podemos
sempre abordá-la por um lado que a impeça de fazer
número com outras línguas, de juntar-se a elas, de ser
a elas comparada (ibidem, p. 11-12).

Tendo em vista seus diferentes estatutos, Payer (1999, 2006)


enfatiza a importância de se distinguirem – teórica e empiricamente
– a língua materna e a nacional, não apenas porque essas se fundam
em materialidades distintas (o que fica evidente, por exemplo, em
situações de imigração), mas principalmente porque constituem
“dimensões de linguagem em relação às quais funcionam diferentes
memórias discursivas, distintas discursividades” (ibidem, p. 135). Com
efeito, temos, de um lado, imagens e valores ligados ao “familiar, à
maternalidade, ao comunitário, ao cultural e ao doméstico” e, de
outro, aqueles ligados à “lei jurídica, ao Estado, à escola e à norma”
(idem, 2007, p. 118) –, o que evidencia que essas línguas funcionam
diferentemente também no que diz respeito aos processos de iden-
tificação dos sujeitos.
A partir da perspectiva teórica que norteia nossa pesquisa,
diríamos que sobreposições como a que frequentemente se opera

243
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

entre língua oficial, nacional e materna resultam do funcionamento


do espaço de enunciação. Esse último, sublinhamos, é um espaço
político, caracterizado pela “contradição de uma normatividade que
estabelece (desigualmente) uma divisão do real e a afirmação de
pertencimento dos que não estão incluídos”, conforme Guimarães
(2002, p. 16). Ainda nas palavras do autor (ibidem, p. 18),

os espaços de enunciação são espaços de funciona-


mento de línguas, que se dividem, re-dividem, se
misturam, desfazem, transformam por uma disputa
incessante. São espaços “habitados” por falantes, ou
seja, por sujeitos divididos por seus direitos ao dizer
e aos modos de dizer.

Esse conflito de direitos e modos de dizer, que divide os falantes


no espaço de enunciação, encontra-se presente na língua como uma
deontologia que “redivide o sensível e os papéis sociais” (ibidem, p. 18).
Concebendo a língua como forma material8, cujo funcionamento é
historicamente determinado em condições de produção (PÊCHEUX,
1997a) específicas, concebemos, como Zoppi-Fontana (2010, 2012),
a deontologia de que fala Guimarães como “efeito do interdiscurso
no acontecimento da língua em funcionamento”. Em outras palavras,
o espaço de enunciação é um “espaço simbólico sobredeterminado
pelo real da língua e da história” (ZOPPI-FONTANA, 2012), “me-
taforizado pelo jogo contraditório de diversas memórias da língua
(PAYER, 1999), a partir das quais se produzem os processos de
identificação simbólica e imaginária que constituem o sujeito do
discurso na relação material entre línguas co-existentes” (ZOPPI-
FONTANA, 2009, p. 21).
Concentrando-nos no espaço de enunciação brasileiro, podemos
afirmar que o português funciona como sua língua nacional, por ser
8 Através da noção de forma material, caracterizada como “linguístico-histórica, discursiva”, Or-
landi (2004, p. 49) procura considerar, simultaneamente, forma e conteúdo – em contraposição,
portanto, à tradição que tende a separá-los. “É pela consideração da forma material – em que o
simbólico e o histórico se articulam, os sentidos se produzindo com ou sem o controle do sujeito
– que se pode atingir a ordem do discurso”, afirma a autora (ibidem, p. 51).

244
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

“a língua elevada a esta categoria pelo Estado Nacional, formadora


dele, minuciosamente cultivada, e partir da qual ele regula a presença
de outras línguas em seu território” (PAYER, 2007, p. 114). Como
exemplos de políticas relacionadas à construção da dimensão nacional
do português ao longo da história da língua portuguesa no Brasil,
poderíamos lembrar a promulgação do Diretório dos Índios (1757)
– por meio do qual o Marquês de Pombal tornou oficialmente obri-
gatórios o ensino e a utilização do português (a “língua do Príncipe”),
proibindo aulas de/em língua geral nas missões jesuíticas e o seu uso
pela população (cf. MARIANI, 2004) –, bem como as medidas de
interdição de línguas estrangeiras (particularmente, do italiano e do
alemão) durante o governo Vargas (cf. PAYER, 1999, 2006). Podería-
mos lembrar, ainda, das diferentes políticas linguísticas, explícitas ou
não, que, estigmatizando determinados portugueses – por exemplo,
falados por pessoas com baixo nível de escolarização, ou em regiões
geográficas historicamente desprestigiadas –, buscam “corrigi-los”,
erradicá-los, em favor do “bom português”.
Políticas dessa natureza, visando ao monolinguismo, tendem
hoje a ser substituídas, no espaço de enunciação brasileiro, por ou-
tras, de reconhecimento da heterogeneidade linguística brasileira.
Recordemos, nesse sentido, que, desde a Lei n. 10.436, de 24 de
abril de 2002, a Língua Brasileira de Sinais (Libras) é “reconhecida
como meio legal de comunicação e expressão”, conforme o artigo
1º (BRASIL, 2002), e que 19 municípios brasileiros têm hoje línguas
cooficiais – das quais 7 são indígenas, e 4, alóctones9. É importante
ter em vista, porém, que, em que pese sua grande importância,
movimentos como esses, per se, não realizam “historicamente o
9 Conforme informações divulgadas, em 2015, pelo Instituto de Investigação e Desenvolvi-
mento em Política Linguística (IPOL), com sede em Florianópolis (SC), as seguintes línguas
são cooficiais em municípios brasileiros: nheengatu, baniwa e tukano, co-oficiais em São
Gabriel da Cachoeira (AM); guarani, co-oficial em Tacuru (MS); akwê xerente, co-oficial em
Tocantínia (TO); macuxi e wapichana, co-oficiais em Bonfim (RR) e Cantá (RR); pomerano,
co-oficial em Santa Maria de Jetibá (ES), Domingos Martins (ES), Laranja da Terra (ES),
Vila Pavão (ES) e Canguçu (RS); talian, co-oficial em Serafina Corrêa (RS), Flores da Cunha
(RS), Nova Erechim (SC), Paraí (RS) e Nova Roma do Sul (RS); hunsrükisch, co-oficial em
Antônio Carlos (SC) e Santa Maria do Herval (RS); alemão, co-oficial em Pomerode (SC).
Disponível em: <http://e-ipol.org/talian-protagonismo-na-luta-pelo-reconhecimento-cultural-
e-fortalecimento-pela-lei-de-cooficializacao/#more-7646>. Acesso em: 30 out. 2015.

245
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

multilinguismo que, nesse caso, seria praticar as múltiplas línguas,


em condições sócio-históricas consistentes e politicamente signifi-
cadas, capazes de universalidade”, nas palavras de Orlandi (2007b,
p. 61). Afinal, como argumenta a autora, “Pode-se até mesmo fazer
com que muitas línguas sejam faladas, sejam aprendidas, circulem.
Mas o que significa falar essas línguas face à língua nacional?” (ibidem,
p. 60). O descompasso do discurso de valorização dos “dialetos”10
estigmatizados do português brasileiro frente ao funcionamento da
língua nacional parece ser ainda maior: mesmo que dispositivos legais,
como os Parâmetros Curriculares Nacionais, reconheçam a riqueza
dessas “variedades”, é quase impossível, historicamente, pensar em
seu ensino. Trata-se, tão somente, de aceitá-las, de tolerá-las, como
forma de respeito ao “diferente”, e como mecanismo pedagógico
facilitador do ensino da língua nacional.
Ainda em relação ao funcionamento do espaço de enunciação
brasileiro, interessa-nos destacar, aqui, a heterogeneidade linguística do
português do Brasil. Referimo-nos ao conceito formulado por Or-
landi (2002) a partir dos conceitos de heterogeneidade enunciativa11
(AUTHIER-REVUZ, 1990) e de formação discursiva (Pêcheux,
1997b; Courtine, 1982), para descrever a “identidade dupla”
constitutiva de línguas como o português e o espanhol na América
Latina. Diz a autora:

Consideramos pois a heterogeneidade lingüística no


sentido de que joga em “nossa” língua um fundo
falso, em que o “mesmo” abriga no entanto
um “outro”, um “diferente” histórico que o
constitui ainda que na aparência do “mesmo”:
o português-brasileiro e o português-português se
recobrem como se fossem a mesma língua, no entanto
não são. Produzem discursos distintos. Significam di-
10 Empregamos aqui as aspas a fim de chamar a atenção para o fato de que a distinção entre “língua”
e “dialeto”, longe de ser natural ou objetiva, resulta, a nosso ver, do próprio funcionamento de
um determinado espaço de enunciação e das hierarquias nele produzidas.
11 Ao elaborar o conceito de heterogeneidade enunciativa, Authier-Revuz (1990) chama a
atenção para o fato de que, na base de qualquer discurso, encontra-se uma heterogeneidade
radical e não localizável, por ela denominada heterogeneidade constitutiva.

246
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

ferentemente. Discursivamente, é possível vislumbrar


esse jogo de prestidigitação pelo qual no mesmo lugar
há uma presença dupla, de pelo menos dois discursos
distintos, efeitos de uma clivagem de duas histórias na
relação com a língua portuguesa: a de Portugal e a do
Brasil. Nós, brasileiros, ao falarmos o português
estamos sempre nesse ponto de disjunção obri-
gada. A nossa língua significa em uma filiação
de memória heterogênea. Essas línguas se filiam a
interdiscursividades distintas como se fossem uma só.
Esse efeito de homogeneidade é o efeito da história da
colonização (ORLANDI, 2002, p. 23) [grifos nossos].

A relação de colonização, ainda conforme Orlandi, produziu


uma “disjunção obrigada” (ibidem, p. 27), que afeta a própria ma-
terialidade do português brasileiro12. A esse respeito, retomamos
versos do célebre poema “Aula de português” (DRUMMOND DE
ANDRADE, 1999): “A linguagem / na ponta da língua / tão fácil de
falar / e de entender./ A linguagem / na superfície estrelada de letras
/ sabe lá o que ela quer dizer?”. Opõe-se, nesse poema, “a língua em
que comia, / em que pedia para ir lá fora,/ em que levava e dava
pontapé,/ a língua, breve língua entrecortada/ do namoro com a
prima”, com o qual o eu-lírico se identifica, a outro português – o
do “Professor Carlos Góis”, que metonimicamente alude ao espaço
escolar –, considerado “um mistério”. Esse último português, pró-
prio da escola e dos demais aparelhos do Estado brasileiro, tem, em
alguma medida, o português europeu como ponto de referência. Eis
aí um dos efeitos do processo de colonização linguística de que fala
Mariani (2004)13.
12 Para uma análise de alguns efeitos dessa clivagem na subjetividade do brasileiro, mobilizada
no processo de aprendizagem do espanhol, cf. Celada (2002).
13 Para Mariani (2004, p. 28), “a colonização lingüística é da ordem de um acontecimento,
produz modificações em sistemas lingüísticos que vinham se constituindo em separado, ou
ainda, provoca reorganizações no funcionamento lingüístico das línguas e rupturas em pro-
cessos semânticos estabilizados. Colonização lingüística resulta de um processo histórico de
encontro entre pelo menos dois imaginários lingüísticos constitutivos de povos culturalmente
distintos – línguas com memórias, histórias e políticas de sentidos desiguais, em condições
de produção tais que uma dessas línguas – chamada de língua colonizadora - visa impor-se
sobre a(s) outra(s), colonizada(s)”.

247
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

O “português tão fácil de falar e de entender” – deslegitimado


no processo de instrumentalização da língua nacional brasileira – tem
sido, historicamente, significado como “desviante” e “errado”, como
uma “corrupção da língua de Camões”14, o que aponta para certa hie-
rarquização, em funcionamento no espaço de enunciação brasileiro,
entre o português do Brasil e o português de Portugal, em favor
desse último. Todavia, essa hierarquização tem sido ressignificada na
constituição discursiva de uma nova dimensão para o primeiro, que
temos denominado transnacional: uma dimensão que, sem deslocar
completamente o imaginário de língua nacional, o sobredetermina
com valores de Mercado (ZOPPI-FONTANA & DINIZ, 2008)15.
Considerando que, nas atuais condições sócio-históricas, o valor
de uma língua é, frequentemente, estimado a partir do potencial
econômico a que – real ou imaginariamente – ela está associada, o
português do Brasil passa, inclusive, em certos discursos, a ser repre-
sentado numa posição superior em relação à de outras “variedades”
do português, incluindo a europeia (cf. BIZON, 2013; DINIZ, 2012,
2014; DINIZ & BIZON, 2015). Notamos aí uma marca de um proces-
so de “colonização linguística às avessas” (ZOPPI-FONTANA, 2009;
DINIZ, 2012), que produz seus efeitos em termos de subjetivação16.
14 É o que mostram, por exemplo, Mariani e Jobim (2007), ao analisarem a ampliação das
discussões sobre o nacionalismo linguístico no contexto pós-independência, e Dias (2001),
ao investigar debates sobre o nome do idioma oficial brasileiro ocorridos nas décadas de
1930 e 1940.
15 Participam da constituição dessa dimensão os processos de instrumentalização e institucionalização
do português, que tendem a (re)produzir uma série de imagens sobre “a língua portuguesa e a
cultura brasileira” – para recuperar um sintagma recorrente em instrumentos de política linguística
exterior do português (cf. DINIZ, 2008, 2010). Muitas vezes, o estrangeiro é convocado a se
colocar no lugar do / junto ao / face ao brasileiro, a partir de uma posição que tende a reproduzir
certos efeitos de sentido, no lugar de desnaturalizá-los. Diferentes trabalhos mostram essa es-
tabilização em livros didáticos de português para falantes de outras línguas. Furlan e Bolonhini
(2009), por exemplo, analisam, em alguns desses instrumentos de gramatização, a construção da
imagem do índio brasileiro como uma figura exótica e primitiva, pertence ao passado. Nothstein,
Rodríguez e Valente (2010), por sua vez, destacam a representação da sociedade brasileira como
homogênea, predominantemente branca, pacífica e sem tensões. Celada (2010), por sua vez,
observa, entre aprendizes portenhos, o funcionamento de uma projeção do português como uma
língua alegre, informal e divertida – por um processo metonímico concernente a clichês sobre
o brasileiro, reforçados em diferentes cursos de línguas –, o que explicaria, de certo modo, a
resistência de certos alunos em adentrarem discursos escritos mais formais.
16 Destacamos, a esse respeito, que, em 2013, foi aprovada a exigência do Certificado de
Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros (Celpe-Bras) para candidatos ao Pro-
grama de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G) vindos da CPLP. A nosso ver, essa
exigência “participa de um processo que cristaliza uma identidade genérica e estereotipada

248
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

As continuidades e rupturas no imaginário do português – que


afetam as relações entre suas distintas dimensões – explicam, a nosso
ver, marcas interessantes do processo de descolonização linguística17,
também observadas nos discursos sobre o IMA, conforme discu-
tiremos na próxima seção. Zoppi-Fontana (2012), por exemplo,
analisa o projeto de lei 149/2004 visando à instituição de um “Dia
Nacional da Língua Portuguesa”, no dia 05 de novembro de cada ano,
em homenagem a Rui Barbosa. À época da proposição do projeto,
como lembra a autora, já se celebrava, no dia 10 de junho – data da
morte de Camões –, o “Dia da Língua Portuguesa”, conhecido em
Portugal como “Dia de Portugal e das Comunidades Portuguesas”.
Para Zoppi-Fontana (ibidem), a própria designação “Dia Nacional da
Língua Portuguesa” [grifo nosso] marca um litígio constitutivo do
espaço de enunciação brasileiro, “dividido entre a língua nacional
do Brasil, fundamento da identidade brasileira, e a língua oficial do
Estado brasileiro, compartilhada com todos os outros Estados cuja
língua oficial é o português”.
Tendo em vista essas considerações sobre o funcionamento do
espaço de enunciação brasileiro – que, ao se ampliar, produz deslo-
camentos nas memórias que o regulam –, analisaremos, na próxima
seção, a política de línguas em jogo na proposta de criação do IMA.
Ao empregarmos esse termo, procuramos, como Orlandi (2007a),
trabalhar o domínio das políticas linguísticas sem apagar o que lhe é
próprio: o político. Nas palavras da autora,

Não há possibilidade de se ter a língua que não esteja


já afetada desde sempre pelo político. Uma língua é
um corpo simbólico-político que faz parte das relações
entre sujeitos na sua vida social e histórica. Assim,
quando pensamos em políticas de línguas, já pensamos

para esses sujeitos: africanos, inferiores, que, falando ‘dialetos’, precisariam ser submetidos
a um exame de proficiência do ‘verdadeiro’ português – o do Brasil –, mesmo que a língua
portuguesa seja sua língua materna ou de escolarização” (DINIZ & BIZON, 2015).
17 Para Orlandi (2009, p. 172), “Se, na colonização, o lugar de memória pelo qual se significa
a língua e seus falantes é Portugal, no processo de descolonização esta posição se inverte e
o lugar de significação é deste lado do Atlântico com sua memória local, a do Brasil”.

249
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

de imediato nas formas sociais sendo significadas por e


para sujeitos históricos e simbólicos, em suas formas
de existência, de experiência, no espaço político de
seus sentidos (ibidem, p. 8).

A proposição do Instituto Machado de Assis

Seguindo um procedimento que já se revelou produtivo em tra-


balhos desenvolvidos no campo da HIL18, nosso percurso analítico se
centrará em um corpus de pesquisa constituído por discursos sobre19
o IMA, principalmente, por notícias publicadas em diferentes veícu-
los. Adiantamos que não organizamos os recortes cronologicamente,
mas sim a partir de regularidades discursivas observadas.
Iniciemos nossas análises pelo seguinte recorte, referente a uma
notícia publicada em 2005 no jornal O Globo:

MEC lança Instituto de Língua Portuguesa

Foi o escritor Fernando Pessoa que proclamou: “minha pátria é minha


língua”. Em Brasília, o Ministério da Educação fez suas (com sotaque
brasileiro) as palavras do poeta lusitano. Para divulgar no exterior a
nossa variante do idioma - e, por tabela, nossa pátria - o MEC ali-
nhavou o projeto de um instituto internacional.
Batizado Instituto Machado de Assis, o organismo é presidido por uma
comissão de lingüistas, o que talvez explique a extensão incomum de seu
nome: Comissão Para Definição da Política de Ensino-Aprendizagem,
Pesquisa e Promoção da Língua Portuguesa.

Presidente do grupo de nome prolixo, o escritor Godofredo de Oliveira


Neto lembra que as duas entidades mais conhecidas a se ocupar
de objetivos semelhantes não são brasileiras.
18 Cf., dentre outros, Orlandi (1990, 2002), Nunes (1996) e Agustini (2004).
19 Segundo Mariani (1998, p. 60), “Os discursos sobre são os discursos que atuam na institucio-
nalização dos sentidos, portanto, no efeito de linearidade e homogeneidade da memória. Os
discursos sobre são discursos intermediários, pois ao falarem sobre um discurso de (‘discurso-
origem’), situam-se entre este e o interlocutor, qualquer que seja. De modo geral, representam
lugares de autoridade em que se efetua algum tipo de transmissão de conhecimento, já que
o falar sobre transita na co-relação entre o narrar/descrever um acontecimento singular,
estabelecendo sua relação com um campo de saberes já reconhecido pelo interlocutor”.

250
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

- O Instituto Camões é português e o Instituto Internacional de Língua


Portuguesa, da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), é se-
diado em Cabo Verde. A variante brasileira não tem um organismo
próprio e o merece por ser riquíssima, abarcando influências de
povos europeus, africanos e indígenas. Neste mês, quando visitou
Portugal, o presidente Lula assinou a carta de intenção que deu início ao
instituto - conta Neto (FRADKIN, 2005) [grifos nossos].

Primeiramente, gostaríamos de chamar a atenção para o fato


de que a designação “língua portuguesa” se impõe, já na manchete,
por um efeito de pré-construído, cuja força chega, neste momento,
a abrir espaço para a interpretação de que o nome do instituto em
questão é Instituto de Língua Portuguesa – cujo funcionamento discur-
sivo é claramente diferente do nome efetivamente atribuído: Instituto
Machado de Assis. Tal efeito se deve a processos históricos que culmi-
naram na regulamentação, por meio do artigo 13 da Constituição de
1988 (BRASIL, 1988), de que “A língua portuguesa é o idioma oficial
da República Federativa do Brasil” [grifo nosso]. Por outro lado, a
designação “língua portuguesa” convoca a memória da colonização
linguística, produzindo uma unidade imaginária entre o português
brasileiro e o português europeu, razão pela qual aparece como insufi-
ciente neste momento de descolonização linguística, em que o Estado
brasileiro assume um papel mais ativo na promoção internacional do
português, propondo inclusive um organismo análogo ao Instituto
Camões. Daí designações como “a nossa variante do idioma” e “a va-
riante brasileira”, que dão vestígios de um processo discursivo mais
amplo, por meio do qual o português brasileiro passa a ser significado
a partir de uma dupla determinação discursiva (ZOPPI-FONTANA,
2009): como língua nacional – em sua contraditória relação de sobre-
posição, historicamente construída, com a dimensão de língua oficial
–, que torna necessária a designação “língua portuguesa”, e como
língua transnacional, que torna tal designação insuficiente.
Funcionamento semelhante pode ser observado no primeiro
parágrafo da matéria, em que se faz alusão a um autor português –

251
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Fernando Pessoa –, especificamente, às palavras “Minha pátria é minha


língua”. Se, por um lado, a proposta de criação de um instituto brasilei-
ro para a promoção do português mobiliza, já no primeiro enunciado
do texto, elementos que identificam a língua portuguesa a Portugal
e a sua literatura, por outro, tais elementos aparecem deslocados a
partir do segundo enunciado: “Em Brasília, o Ministério da Educação
fez suas (com sotaque brasileiro) as palavras do poeta lusitano”
[grifo nosso]. Os parênteses desempenham um papel particularmente
interessante nesse processo parafrástico-polissêmico20, sendo outro
indício do processo discursivo que destacamos no parágrafo anterior.
Ainda em relação ao recorte anterior, observemos a declaração
do presidente da COLIP, Godofredo de Oliveira Neto, que, conforme
a matéria, “lembra que as duas entidades mais conhecidas a se ocupar
de objetivos semelhantes não são brasileiras”. Em suas palavras, “O
Instituto Camões é português e o Instituto Internacional de Língua
Portuguesa, da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portu-
guesa), é sediado em Cabo Verde’”. A proposta de criação do IMA
não é, dessa forma, justificada pelo argumento da necessidade de se
complementarem os esforços do Instituto Camões ou do Instituto
Internacional da Língua Portuguesa (IILP) – organismos encarrega-
dos, respectivamente, da política linguística de Portugal e da CPLP
–, mas pelo argumento de que essas duas últimas instituições não são
brasileiras, o que mostra litígios entre o Brasil, Portugal e a CPLP
no que concerne à política linguística do português.
Na sequência, Godofredo Neto afirma: “A variante brasileira
não tem um organismo próprio, e o merece por ser riquíssima,
abarcando influências de povos europeus, africanos e indígenas” [grifo
nosso]. Estigmatizada em outras condições de produção, a “variante
brasileira” é apresentada como motivo de “orgulho”. A personifica-
20 Para Orlandi (1999, 2003), o funcionamento da linguagem se dá por meio da tensão entre
os processos parafrásticos, que produzem o retorno ao mesmo, e os polissêmicos, que
promovem deslocamentos. Nas palavras da autora (1999, p. 36), “Se toda vez que falamos,
ao tomar a palavra, produzimos uma mexida na rede de filiação dos sentidos, no entanto,
falamos com palavras já ditas. E é nesse jogo entre paráfrase e polissemia, entre o mesmo e
o diferente, entre o já-dito e o a se dizer que os sujeitos e os sentidos se movimentam, fazem
seus percursos, (se) significam”.

252
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

ção que aí opera, cabe destacar, produz um apagamento da natureza


política das ações para a promoção do português: a criação do IMA
derivaria não de interesses estratégicos do Estado brasileiro, mas de
uma necessidade motivada pela riqueza “intrínseca” do português
brasileiro – riqueza esta que, nestas condições de produção, é apre-
sentada como resultante da relação do português com outras línguas.
Mais do que isso, o português brasileiro é aqui significado como mais
propício à internacionalização do que o português europeu, como
observamos no recorte a seguir, retirado de uma notícia publicada
na revista eletrônica ComCiência em 2010:

“Portugal, que tem uma população muito menor, é


muito mais bem organizado na promoção da língua,
feita pelo Instituo Camões. Com o nosso Instituto
poderemos nos organizar para promover a questão
da língua, e o importante, através de uma ide-
ologia brasileira no estilo Machado de Assis”,
ressalta Orlandi. “Nossa manifestação lingüística
e cultural é muito diferente”, complementa. Para
a pesquisadora, o nome Machado de Assis em si já é
especial, pois ele procurou usar a língua no que ela
tem de mais dinâmico e de mais nosso.

A pesquisadora frisa que o português falado no


Brasil já detém uma grande simpatia por parte
dos estrangeiros já que aqui se fala de forma
mais aberta e cantada (COMCIÊNCIA, 2010)
[grifos nossos].

Frisa-se, no recorte anterior, que “nossa manifestação lingüís-


tica e cultural é muito diferente”. Entretanto, o determinante do
adjetivo “diferente” não aparece explicitado: diferente em relação
a quê? Da mesma forma, afirma-se que “o português falado no
Brasil já detém uma grande simpatia por parte dos estrangeiros
já que aqui se fala de forma mais aberta e cantada”, mas não é
explicitado o “lá” em relação ao qual o “aqui” se opõe. Entretanto,

253
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

o funcionamento da memória discursiva permite reestabelecer os


“implícitos” do texto (cf. PÊCHEUX, 1999): se se discorre sobre
especificidades do “português falado no Brasil”, é porque se tem
o português europeu como polo de comparação, o que mostra,
mais uma vez, o fato de que “a língua da ex-metrópole, hegemô-
nica, continua produzindo seus efeitos na história da ex-colônia”
(MARIANI, 2004, p. 24). Entretanto, o português brasileiro
despertaria, atualmente, maior “simpatia” entre os estrangeiros do
que o português europeu, sinalizando uma inversão nos “valores”
de circulação dessas duas línguas. Também é interessante observar
que o maior “valor” do primeiro é atribuído à própria maneira
como a língua é pronunciada no Brasil, conforme sinaliza a relação
argumentativa estabelecida pelo operador argumentativo “já que”
no último enunciado do recorte anterior. Tal naturalização – já
observada na declaração do presidente da COLIP no penúltimo
recorte – apaga os processos histórico-ideológicos em que se dão
esses deslocamentos nas imagens do português brasileiro, na sua
relação com “outros portugueses”.
Nos dois últimos recortes, mencionam-se, explicitamente,
outros institutos criados para a difusão da língua portuguesa: o
Instituto Camões e o IILP. De fato, a própria designação “Instituto
Machado de Assis” se significa em oposição às desses institutos,
já que produz uma identificação da língua com o Brasil, e não
com Portugal ou com a CPLP. Para recuperar as palavras de Or-
landi citadas no recorte anterior, o IMA objetivaria “promover a
questão da língua, e o importante, através de uma ideolo-
gia brasileira no estilo Machado de Assis” [grifo nosso].
Por se vincular, especificamente, ao Estado brasileiro, o IMA é
interpretado, na notícia a seguir, de 2005, como “concorrente”
do Instituto Camões:

254
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Brasil lança concorrente do Instituto Camões


e diz “não” ao português como mera metáfora
da CPLP

Chama-se  Instituto Machado de Assis, uma ideia que


remonta à década de 1980, com o objectivo de formu-
lar e coordenar as políticas para língua portuguesa no
Brasil e no mundo em quatro eixos: difusão e ensino,
documentação, pesquisa e políticas. «A criação está
para breve, superadas algumas dificuldades», reve-
lou à agência de notícias portuguesa Lusa o assessor
especial do ministro brasileiro da Educação, Carlos
Alberto Ribeiro de Xavier, apelando a uma maior
cooperação com Portugal: «Onde existe um Insti-
tuto Camões, em qualquer cidade do mundo,
deve haver uma colaboração dos brasileiros e
no futuro Instituto Machado de Assis (IMA),
que se pensa instituir no Brasil, deverá existir
também a cooperação e o intercâmbio com os
portugueses.» No mesmo sentido se pronunciou o
responsável do  Departamento de Linguística, Portu-
guês e Línguas Clássicas da Universidade de Brasília,
Enilde Faulstich: «É fundamental a elaboração
de um projecto conjunto da Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa para fortalecer o
idioma. Se não houver um trabalho efectivo em que
a CPLP tenha a língua como iniciativa de ponta para
aproximar os povos, o português vai continuar a ser
uma metáfora no nome da comunidade» (CIBERDÚ-
VIDAS, 2005) [grifos nossos].

Diferentemente do título, que significa o IMA e o Instituto


Camões como concorrentes, as declarações destacadas ao longo do
texto constroem a imagem de que o primeiro complementará as ações
do último e do IILP. Essa última imagem é a que predomina em textos
oficiais sobre o IMA; por exemplo, na Declaração Conjunta do Primeiro
Ministro da República Portuguesa e do Presidente da República Federativa
do Brasil, por ocasião daVIII Cimeira Luso-Brasileira (LULA DA SILVA &

255
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

SÓCRATES, 2005), assinada em 2005, em que o funcionamento do


discurso de fraternidade entre o Brasil e Portugal é tal que não apenas
o Instituto Camões é apresentado como um “parceiro privilegiado” do
IMA, mas o próprio objetivo desse último é ampliado. A instituição
objetivaria promover, além da língua portuguesa, “a cultura lusófo-
na”, e não somente a brasileira21, como podemos verificar a seguir:

O Primeiro-Ministro de Portugal elogiou a intenção


do Brasil de criar o Instituto Machado de Assis, entida-
de que buscará promover a Língua Portuguesa
e a cultura lusófona. Trata-se de uma instituição
que proporcionará também às entidades portuguesas
competentes, designadamente o Instituto Camões, um
parceiro privilegiado nessa área (LULA DA SILVA
& SÓCRATES, 2005, p. 4).

Segundo algumas notícias da mídia, o Instituto Camões teria um


papel importante na própria implantação do IMA. No dia seguinte à ci-
meira mencionada, a Assessoria de Comunicação Social do MEC publicou
uma notícia intitulada “Acordo entre Brasil e Portugal prevê Instituto
para difundir a língua portuguesa” (BRASIL, out. 2005), segundo a qual
“A criação do Instituto Machado de Assis será feita com orientação do
famoso Instituto Luís de Camões, sob a coordenação do Itamaraty
e em acordo com a Academia Brasileira de Letras” [grifo nosso]. Em 24
de novembro desse mesmo ano, representantes da CPLP se reuniram
em Lisboa para tratar desse tema, conforme a notícia assinada por Viana
(2005), da qual reproduzimos o recorte abaixo:

Na capital portuguesa, o secretário-executivo adjunto


do Ministério da Educação, Ronaldo Teixeira da Silva,
conheceu a estrutura e o funcionamento do Instituto
Camões, além de ter definido formalmente como
será a cooperação entre Portugal e Brasil na
instalação deste Instituto.
21 Trata-se de um funcionamento contrário ao observado em manchetes como “Brasil criará o
Instituto Machado de Assis para difundir a cultura brasileira e o português” (VIANA, 2005).

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

[...] Ao Instituto Machado de Assis caberá a coor-


denação da rede de ensino brasileiro no estrangeiro,
atualmente sob tutela do MRE, e composta por Cen-
tros de Estudos Brasileiros e Institutos de Cultura
Brasileira. A instituição também terá a finalidade de
entrar nas universidades, criar cátedras e lei-
torados, em alguns casos em conjunto com o
Instituto Camões”.

A experiência dos demais institutos europeus será


valorizada e os primeiros projetos em comum serão
discutidos e anunciados em fevereiro, num encontro
entre todos os institutos de línguas envolvidos, no
Brasil [grifos nossos].

Dessa forma, se, conforme mostramos em trabalhos anteriores


(DINIZ, 2012), temos relatos de dificuldades do Itamaraty para levar
a cabo sua política linguística exterior em áreas em que o Instituto
Camões se encontra presente, os conflitos entre a política linguística
exterior brasileira e a portuguesa aparecem silenciados na proposta
de criação do IMA, a tal ponto que se propõe a criação de leitorados
conjuntos entre esse e o Instituto Camões, o qual, segundo Faraco
(2009), ao assinar convênios para abertura de suas sedes, já chegou
a proibir a contratação de professores brasileiros.
Em resumo, analisar a proposição do IMA implica, a partir de
nossa perspectiva teórica, ter em vista o complexo jogo entre as
distintas memórias que organizam o espaço de enunciação brasileiro,
em processo de ampliação. Da mesma forma, o abandono do projeto
desse instituto pode, a nosso ver, ser mais bem compreendido à luz
dos equívocos constitutivos desse espaço, como discutiremos a seguir.

À guisa de conclusão: o abando do projeto do Instituto Ma-


chado de Assis

Conforme mencionamos no início deste artigo, embora a


proposta de criação do IMA date de 2005, e ainda que matérias da

257
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

mídia tenham noticiado que esse instituto estaria em funcionamento


a partir de 2006 (INSTITUTO CAMÕES, 2005), o projeto não foi
implementado, passada mais de uma década desde sua proposição,
não havendo, ao que nos consta, qualquer movimentação para que ele
seja retomado. Em um capítulo do livro “Língua brasileira e outras
histórias”, publicado em 2009, Orlandi já se referia a essa estagnação:

No momento em que estou publicando este livro, o


Instituto Machado de Assis deixou há muito de ser
assunto tratado na Colip. [...] Não se fala mais no
Instituto Machado de Assis, este sim, uma Instituição
que daria peso e representatividade ao Brasil e ao
nosso patrimônio linguístico. Material. A língua TEM
materialidade (ORLANDI, 2009, p. 169)22.

Ao concluir este artigo, gostaríamos de refletir, então, sobre tal


abandono. Vejamos, inicialmente, a opinião um diplomata do MRE,
por nós entrevistado23, sobre a questão:

Entrevistador: você mencionou o Instituto Camões né? e tá em dis-


cussão... pelo menos dizem que está em discussão... o Instituto Machado
de Assis... e como você vê a criação desse instituto? por que o instituto
ainda não saiu do papel?

Entrevistado: então... o que geralmente se considera é que foi um


conflito político... porque o Instituto Machado de Assis ficou no papel
ele não existe na realidade... um conflito político... porque o... uma das
missões do Itamaraty... é a divulgação do português... mas enfim a parte
toda técnica entre aspas... acadêmica... é do Ministério da Educação não

22 Assim como Celada (2013), pensamos que um investimento sobre essa materialidade é fun-
damental para o delineamento de outras formas de políticas de línguas, que desnaturalizem
representações homogeneizadoras e cristalizadas do outro e de sua(s) língua(s). Podemos
fazer face, assim, a discursividades fortemente vinculadas ao Mercado – que capitalizam o
português do Brasil (ZOPPI-FONTANA, 2009; DINIZ, 2008, 2010) e essencializam o bra-
sileiro –, abrindo espaço para outros processos de identificação e outras formas de inscrição
subjetiva no português.
23 Entrevista realizada em Brasília, em 24 de março de 2010, com um diplomata brasileiro com
experiência de trabalho na Assessoria Internacional da Secretaria de Educação Superior (SESu/
MEC) e no Itamaraty (cf. DINIZ, 2012). Devido à natureza de algumas de suas declarações, o
entrevistado preferiu não ser identificado.

258
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

é isso? os dois trabalham... trabalham em conjunto... fazem... têm vários


programas conjuntos do MEC com o Itamaraty como o PEC-G [Pro-
grama de Estudantes-Convênio de Graduação]... o PEC-PG [Programa
de Estudantes-Convênio de Pós-Graduação] pra bolsa... um pouco fora
do português mas enfim... mas nesse caso específico... a a iniciativa do
Instituto Machado de Assis era principalmente do Ministério da Educa-
ção... e o Itamaraty não ficou muito satisfeito com isso... ficou um pouco
melindrado... foi um conflito político... e o Itamaraty impediu que isso
fosse pra frente... então foi muito mais acho que um problema político...
se era uma questão de recursos eu não sei dizer mas acho que não... talvez
precisasse de uma lei levasse um tempo... mas eu acho que existe interesse
por parte do governo... do Itamara... do do MEC existe... e certamente
do governo federal como um todo... acho que isso é importante pro
Lula... em fortalecer essas ações de divulgação do português... mas esse
conflito político entre os dois ministérios... muitas vezes acontece entre
o Itamaraty e o... se... os ministérios em geral... e acho que isso foi o
maior... o maior empecilho... enfim era um projeto que foi empolado pelo
pelo MEC mas que o Itamaraty... sentiu que invadia suas competências...

Assim, conforme o recorte anterior, o fato de que a proposta


de criação do IMA tenha sido encabeçada pelo MEC, ao qual caberia
sua coordenação, representaria um empecilho para a fundação do
instituto, na medida em que o MRE teria considerado que o projeto
“invadia suas competências”.
Para além dos entraves institucionais e disputas de poder, gos-
taríamos, aqui, de aventar a hipótese de que a dificuldade de criação
do IMA também é reflexo dos equívocos constitutivos do funciona-
mento do espaço de enunciação brasileiro. Como criar uma estrutura
brasileira centralizadora das ações para a promoção internacional do
português, quando essa centralização pode fortalecer a reverberação
da memória de que o português é uma “língua de colonização”, em
condições de produção em que se recrudesce certo discurso de que
o Brasil teria aspirações imperialistas (cf. DINIZ, 2012; BIZON,
2013; DINIZ & BIZON, 2015)? Como poderiam os Centros Cultu-
rais Brasileiros dar lugar a filiais do IMA (cf. FRADKIN, 2005), se
aqueles se sustentam em um discurso de bilateralidade, enquanto a

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Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

designação deste, de maneira semelhante à antiga designação “Centro


de Estudos Brasileiros”, restringe o escopo de atuação do Instituto
àquilo que diz respeito ao Brasil e a sua cultura – e, portanto, aos
interesses do Estado brasileiro? Como criar um instituto que, pos-
sivelmente, colocaria o foco no linguístico24, seguindo uma direção
contrária à observada na política linguística exterior do Itamaraty
– na qual a promoção do português tende a se “diluir” em meio a
outras ações culturais (DINIZ, 2012)? Se a criação do Instituto Ca-
mões representou, como argumenta Faraco (2009), uma opção por
uma política unilateral na promoção do português, em detrimento
de uma atuação em conjunto com os demais países de língua oficial
portuguesa, essa mesma opção não estaria sendo feita pelo Brasil,
com a proposta de criação do IMA? Essa proposta não iria de encon-
tro ao que apregoam os discursos oficiais em circulação no âmbito
da CPLP, num momento em que se fortalece a política linguística
levada a cabo pelo IILP?
Longe de terem respostas simples e unívocas, tais questões
apontam para contradições estruturantes do funcionamento do
espaço de enunciação brasileiro, em permanente reconfiguração na
esteira de novos movimentos históricos da língua portuguesa, em suas
diferentes dimensões. Contradições que, por incidirem na própria
constituição dos sujeitos nesse espaço, precisam ser consideradas
no delineamento de políticas como a do Instituto Machado de Assis.
Caso contrário, continuaremos reproduzindo práticas com matizes
nacionalistas, mercadológicos e mesmo neo-colonizadores, que, ainda
que sob novas roupagens, continuam a silenciar o outro.

24 O texto de apresentação do IMA disponível no site do MEC, apresentado na primeira seção


deste artigo, dá indícios nessa direção, na medida em que a maioria dos objetivos estabele-
cidos para o instituto diz respeito diretamente à língua portuguesa.

260
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Referências

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266
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Sobre os Autores

Águeda Aparecida da Cruz Borges é graduada em Letras (UNEMAT), possui


Mestrado e Doutorado em Linguística pela UNICAMP. É Professora da Universi-
dade Federal de Mato Grosso - Câmpus Universitário do Araguaia. Além de atuar
na área de Linguística tem experiência em Educação, com ênfase em Formação
de Professores e ensino de Língua Portuguesa (2ª língua) para povos indígenas,
dentre os quais os Tapirapé e Munduruku. Sua área de concentração é Análise de
Discurso - França/Brasil. Suas pesquisas convergem para a constituição discursiva
do espaço urbano frequentado por indígenas, particularmente os Xavante, em
Barra do Garças-MT, para os processos de identificação/subjetivação e gênero.
Lidera os projetos de pesquisa “Arte Discurso e Prática Pedagógica” (CNPq) e
“Gramática e Língua: desafios e possibilidade de ensino” (UFMT/CUA-CNPq),
e participa dos projetos Cartografias da linguagem (UNEMAT/CNPq) e Mulhe-
res em Discurso (UNICAMP-IEL/CNPq). É conselheira e revisora de revistas.

Beatriz Maria Eckert-Hoff é Pós-Doutora pelo Departamento de Letras


Modernas da USP, com bolsa de pesquisa no exterior, realizada na Christian-
Albrechts-Universitaetzu Kiel, Alemanha, com apoio FAPESP. É Doutora
em Linguística Aplicada pela UNICAMP, com estágio sanduíche realizado na
ESES – Escola Superior de Educação de Portugal. É Mestre em Letras pela UFSM-
Santa Maria/RS e Graduada em Letras pela UNOESC-Chapecó/SC. Atualmente
é Reitora da Universidade do Distrito Federal – UDF, em Brasília e professora
colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Linguística da UNICSUL/
São Paulo. Participa dos Grupos de Pesquisa cadastrados no CNPq: Da Torre de
Marfim à Torre de Babel e Vozes (in)fames: exclusão e resistência (UNICAMP/
CNPq). Dedica-se, há alguns anos, à docência, à pesquisa e à Gestão Universitária
no âmbito do Ensino Superior. Como docente-pesquisadora atua, principalmente,
nos seguintes temas: análise do discurso, sujeito, língua, identidade, memória,
escrita de si, ensino de línguas e formação de professores.

267
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Carolina P. Fedatto é bacharel, mestre e doutora em Linguística pela UNI-


CAMP. Fez estágio de doutorado na Universidade de Paris III. Laureada com o
Prêmio Capes de Tese em Letras e Linguística (2012). Autora do livro “Um saber
nas ruas: o discurso histórico sobre a cidade brasileira” (Ed. Unicamp, 2013). Con-
cluiu pós-doutorado em Estudos Linguísticos na UFMG. Especialista em Teoria
Psicanalítica pela mesma instituição. Atualmente, é professora na Universidade
do Vale do Sapucaí (Univás) e pesquisadora de pós-doutorado na UFF e UFMG.

Cleiton de Souza Sales possui graduação em Letras pelo Centro Universitário


de Várzea Grande, UNIVAG (2003).Tem Mestrado em Letras pela Universidade
do Estado de Mato Grosso, UNEMAT (2015). É professor efetivo de Língua
Portuguesa da Rede Pública Estadual de Mato Grosso. Atualmente, é professor
do curso de Licenciatura em Letras UNEMAT/UAB. É membro dos grupos de
pesquisa Cartografias da Linguagem e Vozes da cidade (UNEMAT/CNPq). Tem
experiência na área de Letras, com ênfase em ensino de Língua portuguesa.
Desenvolve pesquisas em Análise de Discurso, com reflexões sobre o discurso
pedagógico e a função-autor.

Eliana de Almeida é professora do Curso de Letras e do Programa de Pós-


graduação em Linguística da Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT.
É pesquisadora do Grupo de Pesquisa Cartografias da Linguagem (CNPq), atuando
na coordenação do Projeto Discurso, língua e sujeito:Traços de memória e identifica-
ções (UNEMAT). É pesquisadora do Grupo de Pesquisa Teoria do Discurso – GTDIS
- a partir do qual desenvolve estudos sobre a relação entre Poesia e Inconsciente.
Possui pós-doutoramento pela Universidade Federal Fluminense – UFF/CNPq,
tendo como produção estudos sobre a relação entre Pêcheux, Althusser e Lacan,
em coautoria com a Professora Bethania Sampaio Correia Mariani (UFF) e sobre
a relação entre Língua, discurso e sujeito em que toma a poesia como material de
leitura. 

Filomena Elaine P. Assolini é pedagoga e linguista. Mestre e doutora em


Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto-USP.
Pós-doutoranda do Instituto de Estudos da Linguagem - UNICAMP. Ministra
aulas em cursos de graduação e pós-graduação na FFCLRP-USP. Atua na interface
Linguística-Educação Escolar. Coordena o Grupo de Estudos sobre Alfabetização,
Leitura e Letramento, GEPALLE, cadastrado no CNPq. Possui livros e artigos
científicos publicados, que versam sobre alfabetização, letramento, leitura, escrita,
autoria e formação de professores.

268
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Glaucia da Silva Henge é graduada em Letras Licenciatura Português/Inglês


pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre e  doutoranda
na Linha de Pesquisa Análises Discursivas,Textuais e Enunciativas do Programa de
Pós-Graduação em Letras da mesma universidade. É docente na área de Letras
Português/Inglês do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio
Grande do Sul (IFRGS).

Joelma Pereira de Faria possui graduação em Letras pela Faculdade de


Filosofia, Ciências e Letras Eugênio Pacelli (1994), Mestrado (2003) e Douto-
rado (2010). em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. É professora da Universidade do Vale do
Sapucaí, atuando na graduação e no Programa de Pós Graduação em Ciências da
Linguagem. Também é professora da Fundação de Ensino e Pesquisa de Itajubá,
onde atua na graduação nos cursos de Letras e de Sistemas de Informação. Tem
experiência na área de Letras, com ênfase em Língua Inglesa e Linguística Aplicada,
Leitura e Produção de Textos e em Língua Portuguesa, com ênfase em Língua
Portuguesa: Oralidade e Escrita, Metodologia da Pesquisa, Trabalho de Conclu-
são de Curso e Técnicas de Pesquisa. Desenvolve pesquisas ligadas aos temas de
ensino-aprendizagem, formação de professores de línguas inglesa e portuguesa,
pesquisa colaborativa, monitoria, leitura e produção textual.

Juliana Santana Cavallari possui graduação em Letras pela Universidade Esta-


dual Paulista (1997), Mestrado (2001) e Doutorado (2005) em Linguística Aplicada
pela Universidade Estadual de Campinas. Finalizou um pós-doutoramento (2011) na
área deTradução nessa mesma instituição. Em 2013 concluiu um curso de formação
em Psicanálise: Fundamentos em Freud e Lacan, pelo Centro Lacaniano de Inves-
tigação da Ansiedade, associado ao Instituto do Campo Freudiano, SP. É professora
adjunta no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade
do Vale do Sapucaí (UNIVÁS). Integra projetos de pesquisa interinstitucionais, em
âmbito nacional e internacional, como participante e/ou líder. Tem experiência
na área de Linguística, com ênfase em Linguística Aplicada, atuando nos temas de
ensino e aprendizagem de línguas, formação de professores, práticas inclusivas no
contexto escolar, práticas avaliativas no processo de ensino-aprendizagem, análise
de material didático, ensino de línguas e subjetividade.

Laís Virginia Alves Medeiros é graduada em Letras - Bacharelado Francês -


pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestranda na Linha
de Pesquisa Análises Discursivas, Textuais e Enunciativas do Programa de Pós-
Graduação em Letras dessa mesma universidade. Bolsista CAPES/FAPERGS.

269
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

Leandro Diniz é bacharel, mestre e doutor em Linguística pela Universidade


Estadual de Campinas (Unicamp), professor adjunto na Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). É membro do corpo docente do Programa de Mestrado
Profissional em Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguís-
ticos nessa mesma universidade. Durante seu doutorado realizou estágio de
pesquisa na Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris III) com apoio da CAPES. Foi
professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).
É vice-presidente do Programa Idiomas sem Fronteiras – Português; membro
da Comissão Técnico-Científica do Certificado de Proficiência em Língua Por-
tuguesa para Estrangeiros (Celpe-Bras) e da equipe de coordenadores do Eixo
de Português Língua Estrangeira do Projeto Mais Médicos para o Brasil. É autor
de artigos e capítulos de livros nos campos da Análise do Discurso, História das
Ideias Linguísticas e Linguística Aplicada, bem como de materiais didáticos de
português para o Ensino Médio e para falantes de outras línguas.

Maria Onice Payer é graduada em Letras com habilitação em Língua Portu-


guesa e Literaturas de Língua Portuguesa pela FAFIC (1985), mestre (1982) e
doutora (1999) em Lingüística pela Unicamp. Atuou como pesquisadora TPCT
na Unicamp e como docente credenciada no DLM/USP. É professora titular na
UNIVAS (MG), lecionando e orientando pesquisas no PPGCL (CAPES/MEC).
É consultora das agências de fomento à pesquisa CAPES E FAPESP e de algumas
editoras nacionais, participando de Comitês editoriais de periódicos das Áreas de
Letras e Linguística e de Educação. Publicou os livros Memória da Língua. Imigração
e Nacionalidade (Ed. Escuta) e Educação Popular e Linguagem (Ed. Unicamp), além
de capítulos de livros e artigos em periódicos especializados. É líder do Grupo de
Pesquisa do CNPq Práticas de linguagem, memória e processos de subjetivação.
Sua área de especialização é Análise de Discurso com interesse em educação e
subjetivação na sociedade contemporânea e nas relações entre memória, língua
e ensino em contextos de imigração.

María Teresa Celada possui graduação em Licenciatura em Letras/orientação


em Linguística (1983), Bacharelado em Letras (1987), ambos pela Universidade
de Buenos Aires, e Doutorado em Linguística pela Universidade Estadual de
Campinas (2002). Desde 1992 atua como docente e pesquisadora na Universidade
de São Paulo. E, desde 2004, atua como coordenadora da Área de Espanhol do
Centro de Línguas/FFLCH-USP. Em 2013 foi designada como representante
pela USP no Núcleo Disciplinar PELSE (Português, Espanhol línguas segundas
e estrangeiras) de AUGM (Associação de Universidades Grupo Montevidéu).
Desenvolveu projeto de pesquisa de pós-doutorado na UBA (Argentina) com

270
Subjetivação e Processos de Identificação.
Sujeitos e línguas em diversas práticas discursivas – inflexões no ensino

bolsa da Fapesp: “Trilhas da memória discursiva sobre o português na Argentina.


Sujeitos/línguas. Saberes.” Faz parte de vários comitês científicos editoriais de
periódicos e é consultora da FAPESP. Coordenou a publicação de vários dossiês
em periódicos acadêmicos e do livro Lenguas em um espacio de integración. Aconte-
cimientos, acciones, representaciones (Ed. Biblos, Buenos Aires).

Michele Teixeira Passini é graduada em Letras Licenciatura Português/Inglês


pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, mestre em Estudos Linguísticos
pela Universidade de Passo Fundo e doutoranda na Linha de Pesquisa Análises
Discursivas, Textuais e Enunciativas do Programa de Pós-Graduação em Letras
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista CAPES.

Silvia Regina Nunes é Professora Adjunta da Universidade do Estado de Mato


Grosso (UNEMAT) na área de Linguística, com pesquisas em Análise de Discurso,
História das Ideias Linguísticas e Linguagem e Tecnologia. É membro do grupo
de pesquisa Cartografias da Linguagem (UNEMAT) e Mulheres em Discurso
(UNICAMP). Dedica-se a pesquisas que têm como objetivo discutir a relação
entre os processos de subjetivação e resistências em diferentes práticas de leitura
e escrita. Atualmente busca produzir, no Estado de Mato Grosso, um campo de
reflexões para delimitar a problemática da mulher através de discussão coletiva
e multidisciplinar, compreendendo o modo como essa problemática se constitui,
se formula e circula na mídia e no discurso da sexualidade. Atua no Programa de
Pós-Graduação em Linguística (Mestrado e Doutorado) e no Mestrado Profis-
sional em Letras – ProfLetras da UNEMAT.

Solange Mittmann é doutora em Letras e docente na Linha de Pesquisa Análises


Discursivas, Textuais e Enunciativas do Programa de Pós-Graduação em Letras
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e nos cursos de Letras
Licenciatura e Bacharelado -Tradutor. É líder do Grupo de Estudos e Pesquisas
em Análise do Discurso – GEPAD-RS e coordena o Projeto de Pesquisa “A au-
toria entre o retorno e a atualidade: formação discursiva, memória e arquivo”.

Thalita Sampaio possui graduação em Letras pela Universidade do Estado


de Mato Grosso (2009) e mestrado em Linguística pela mesma universidade
(2014). Atualmente é professora contratada da Universidade do Estado de Mato
Grosso (UFMT) e professora do Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT). Atua
principalmente nos temas: língua portuguesa, língua inglesa e Análise de discurso.

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