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Universidade Federal de Santa Maria

Pró-Reitoria de Graduação
Centro de Educação
Curso de Graduação a Distância de Educação Especial

LÍNGUA,
CULTURA E
IDENTIDADE
2º Semestre

1ªEdição, 2005
Elaboração do Conteúdo Direitos Autorais
Profa. Márcia Lise Lunardi (Direitos Autorais | Núcleo de Inovação e de
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* o texto produzido é de inteira responsabilidade do(s) autor(es).

L961l Lunardi, Márcia Lise


Língua, cultura e identidade : 2º semestre / Márcia Lise Lunardi, Graciele Marjana
Kraemer. - revisão pedagógica e de estilo Profª Ana Cláudia Pavão Siluk ... [et al.]]. - 1.
ed. . - Santa Maria : Universidade Federal de Santa Maria, Pró-Reitoria
de Graduação, Centro de Educação, Curso de Graduação a Distância de Educação
Especial, 2005.
64 p. : il. ; 30 cm.

1. Linguagem 2. Língua 3. Lingüística 4. Cultura 5. Identidade 6. Sociologia da


cultura I. Kraemer, Graciele Marjana

CDU 800.1
316.7

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Presidente da República Federativa do Brasil
Luiz Inácio Lula da Silva

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Ministro da Educação

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e de Educação a Distância

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Apoio Técnico

Prof. Luiz Antônio dos Santos Neto


Coordenador da Equipe Multidisciplinar de Apoio
Sumário
APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA 05

UNIDADE A
NOÇÕES BÁSICAS DE LÍNGUA 07
1. A Concepção de Língua na Perspectiva Lingüística 09
2. A Concepção de Língua na Perspectiva Histórico-Cultural 13
3. A Concepção de Língua na perspectiva Sociolingüística 19

UNIDADE B
LÍNGUA, IDENTIDADE, CULTURA: ELEMENTOS
BALISADORES DA ESCOLA PARA A DIFERENÇA 23
1. A Língua como Processo Identitário 25
2. A Língua como Instrumento Cultural 29
3. Interface entre Língua, Cultura e Identidade 31

UNIDADE C
PRODUÇÃO DAS DIFERENÇAS 39
1. Identidades Culturais na Modernidade 41
2. Constituição do Sujeito Multicultural 46
3. Língua, Cultura e Identidade: produção social da diferença 52

REFERÊNCIAS
Referências 61

4
Apresentação
da Disciplina

LÍNGUA,
CULTURA E
IDENTIDADE
2º Semestre

A disciplina de Língua, Cultura e Identidade vem


aborda a relação entre as dinâmicas sociais a partir das
representações mediadas pela língua acerca da cultura
e da identidade dos sujeitos.
Na primeira unidade, são apresentadas as concepções
que envolvem os conceitos de língua, a partir de
autores relacionados à área da Lingüística, procurando
mediar aspectos pertinentes entre Língua, Cultura e
Identidade. Nessa perspectiva, a abordagem das
noções básicas da língua parte da compreensão da
sociolingüística e da perspectiva histórico-cultural.
Nas demais unidades, propomos uma discussão
sobre as questões atreladas à representação e aos
estereótipos que a língua produz sobre os sujeitos, que
são os atores de uma sociedade multicultural. Nesse
sentido, vale destacar que partimos de uma análise
acerca das relações de poder instituídas nas relações
sociais que demarcam discursos "normalizadores"
sobre grupos culturais minoritários.
Esta disciplina será desenvolvida com uma carga horária
de quarenta e cinco (45) horas/aula.
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6
UNIDADE

NOÇÕES
BÁSICAS DE
LÍNGUA

Objetivos da Unidade
Ao final desta unidade, o aluno deverá ser capaz de:
- identificar os elementos que compõem as definições
de Língua e Linguagem;
- verificar as relações entre Linguagem e Sociedade;
- analisar os vínculos entre Língua, Pensamento e
Cultura.

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CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

Introdução
Nessa unidade, vamos nos deter nos aspectos pode ser realizado a partir de diferentes pontos
que dizem respeito às questões da língua, para de vista, pois a linguagem é, ao mesmo tempo,
isso vamos nos valer das concepções da individual, social, física, fisiológica, psicológica
Lingüística, da Sociolingüística e da Perspectiva e psíquica. Nesse sentido, vamos poder analisar
Histórico-Cultural. Relacionar os aspectos da o quanto as mediações efetuadas por meio da
língua a esses campos de estudo é necessário linguagem são necessárias ao ser humano, pois
para a compreensão do que será trabalhado nas através dela vamos construindo categorias
demais unidades. Vale salientar que, nessa fundamentais: a consciência, a afetividade e a
unidade, veremos que o estudo da linguagem identidade.

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UNIDADE A

1 A Concepção de Língua na
Perspectiva Lingüística Para rever os preceitos
da teoria Behaviorista, e
sobre Skinner, leia o
material da Disciplina
de Psicologia da
Educação I, ou então,
ainda, os artigos
Se tentássemos definir o que é língua, quais Saussure (1975), conceitua a língua como um presentes nos
seriam as possíveis respostas que extrairíamos sistema de signos que, por sua vez, significa seguintes endereços
eletrônicos:
dessa complexa questão? Poderíamos dizer que um conjunto de unidades que estão organizadas http://www.ufrgs.br/
faced/slomp/edu0
língua e linguagem são a mesma coisa? Se não formando um todo, ou seja, a língua é um 1135/skinner-sobre.
htm http://www.
forem, como estabelecer a diferença entre processo cujos termos são todos solidários, em
geocities.com/
ambas? A língua e a linguagem teriam alguma que o valor de um não resulta senão da discursus/textos/
bskinner.html
relação com a sociedade e a cultura? Qual a presença simultânea dos outros.
influência da língua no pensamento dos seres
humanos? Seria possível atribuir um sujeito à
linguagem?
Analisar essas questões é um trabalho muito Para um conhecimento maior acerca da vida, obras e

importante para cada um de nós, pois em várias abordagens de Saussure, leia os artigos presentes nos

Orlando Fonseca Júnior


situações se tornaria necessário um estudo mais seguintes endereços eletrônicos:

aprofundado e dinâmico acerca de aspectos http://www.leme.pt/biografias/s/saussure.html

inerentes à lingüística, compreendendo também http://www.espacoacademico.com.br/022/22cmaestri.htm


Ferdinand Saussure,
certos mecanismos e contribuições da nascido em Genebra,
Suíça, em 1857, foi
linguagem nas relações sociais. Na abordagem um dos mais engajados
de Skinner, o homem, ao se comunicar com o Nesse sentido, faz-se necessário entender- lingüistas de nossa
história. Estudou em
outro, estabelece uma relação de mos o que é um signo. Segundo a teoria Leipzig, Alemanha,
escola onde os
transformação. A partir dessa colocação, desenvolvida por Saussure (1975), o signo é chamados "novos
também podemos compreender que a definido como a associação entre significante gramáticos" estavam
renovando os métodos
linguagem permite ao ser humano avançar do (imagem acústica) e significado (conceito). Vale da gramática compara-
da. Saussure dedicou
aqui e agora para espaços e tempos diferentes. observar que a imagem acústica não pode ser sua vida ao estudo e
ao ensino do sânscrito
O estudo da linguagem, considerado confundida com o som, ela é a imagem que (antiga língua sagrada e
bastante complexo, pode ser realizado de fazemos do som em nosso cérebro. literária da Índia,
pertencente ao grupo
múltiplos pontos de vista, ou seja, a linguagem Segundo Fiorin (2000), os dois componen- Indo-Europeu), da
gramática comparada e,
é, ao mesmo tempo, individual e social, física, tes do signo lingüístico são: um conceito e um nos últimos anos de
sua vida, à lingüística
fisiológica, psicológica e psíquica. A lingüística, suporte do conceito, nos quais, o conceito é o
geral. Saussure faleceu
definida como ciência que estuda a linguagem significado. Por exemplo, o signo "árvore", tem em 1913. Texto
retirado do site: http://
com métodos próprios, visa, como meta como significado: "vegetal que atinge grandes members.tripod.com/
~fabico/semtri.txt, no
primordial, à construção de uma teoria geral, proporções e que tem o caule lenhoso". Seu dia 29 de novembro
capaz de descrever todas as línguas. significante é a imagem dos sons verbais de 2005.

Um dos principais autores da lingüística, formada em nosso cérebro e que serve para
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transmitir o conceito. Os significantes podem tempo, heterogêneo, polifônico, podendo ser


ser de diferentes espécies: verbais, gestuais, etc. entendido como algo sistemático, objetivo e
Assim, o signo é a união de um significante a homogêneo, ou como algo constituído
um significado. historicamente e influenciado pelo meio, como
Segundo Orlandi (2000), Saussure faz uma a condensação de um homem historicamente
importante distinção entre língua e fala. Para situado. É claro que a língua tem uma gramática,
esse autor, a língua é um sistema abstrato, um tem um léxico, como veremos posteriormente,
fato social, geral, virtual; a fala, ao contrário, é mas não podemos deixar de entendê-la como
a realização concreta da língua pelo sujeito uma forma em que todas as experiências
falante, sendo circunstancial e variável. Assim, históricas de uma dada comunidade estão
o conceito de língua para Saussure não assume reunidas.
um valor ideológico, pois ele mesmo considera Nesse sentido, é necessário realizar uma
o signo com valor imutável e imanente. distinção entre a língua e a linguagem. Segundo
Conforme o dicionário Já para Bakhtin (1999), não existe palavra Fiorin (2000), a língua é a maneira particular
"Novo Aurélio do sem valor ideológico, ou seja, a língua está pela qual a linguagem se apresenta. A linguagem
século XXI", o termo
Ideológico significa um sempre afetada pelo que lhe é exterior, este (o possibilita que o ser humano crie mundos e
conjunto articulado de
idéias, valores, exterior) sendo constitutivo dela. Esse autor se fantasias, visto que a língua é a concretização
opiniões, crenças, etc.,
que expressam e
diferencia de Saussure, pois inclui no conceito de uma experiência histórica e se vincula
reforçam as relações de língua o conceito de fala. Nessa perspectiva, diretamente com a sociedade.
que conferem unidade
a determinado grupo Bakhtin (apud MUSSALIM E BENTES, 2001, p. Da mesma forma, torna-se possível afirmar
social (classe, partido
político, seita religiosa, 240) entende que "não há discurso 'individual', que não existe cultura sem língua, e quando a
etc.) seja qual for o
no sentido em que todo discurso se constrói cultura se manifesta por outras linguagens,
grau de consciência
que disso tenham seus em função de um outro, todo discurso se parece que a língua oferece um modelo para
portadores (1999).
constrói no processo de interação - real e outras linguagens, como a pictórica, a musical,
Conforme o dicionário
"Novo Aurélio do
imaginária". a teatral, nas quais a língua seria um modelo
século XXI", o termo Dessa forma, percebemos o quanto o de estruturalidade para as linguagens da cultura
Pictórico significa
referente ou próprio à conceito de língua é complexo e, ao mesmo de maneira geral.
pintura, pictorial,
pitoresco, pictual
(1999).

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UNIDADE A
Tiago da Silva Krening

Figura A.1: Diferentes modalidades de linguagens - pictórica, musical, teatral.

Fiorin (2000) afirma que não existe como todo o estudo da linguagem e das
pensamento especificamente humano sem a linguagens humanas. A lingüística não pode ser
linguagem. Podemos ter um pensamento com considerada uma ciência no sentido da física.
outras linguagens como, por exemplo, a Porém, se adotadas duas características, o fato
linguagem pictórica, na qual o sujeito da de que a ciência tem o compromisso de
linguagem é uma formação social com todas as explicar a realidade humana e o compromisso
suas contradições. com a realidade, a lingüística pode ser
A lingüística é considerada por Fiorin (2000) considerada uma ciência. Dessa forma, a
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lingüística acaba por conhecer o homem pelo É recorrente que a lingüística pode nos
intermédio da Linguagem. mostrar uma coisa paradoxal: que as línguas são
Fiorin (2000, p.75) analisa que: plurais, as línguas são heterogêneas, as línguas
são variadas. Não existe um modelo geral de
Divulgar o avanço da ciência é tão importante
língua, mas todas as línguas, ao mesmo tempo,
como fazer avançar a ciência, porque, na
verdade, a ampliação da linguagem humana, obedecem a princípios universais radicados na
a consciência da linguagem humana, a própria realidade do homem. E da mesma
compreensão dos seus mecanismos dão ao
homem a possibilidade de ascender à forma nós, seres humanos, temos que ter alguns
construção cultural que ele fez ao longo de princípios e valores universais, sem os quais
sua história; é por meio de linguagem que
eu tenho acesso a tudo aquilo que torna o poderíamos cair na barbárie e, ao mesmo
homem especificamente humano. A tempo, perceber que esses valores permitem
lingüística não pode em momento nenhum
se afastar dessa preocupação; digamos, uma construção variável enorme.
socializar as suas descobertas, para que cada
vez mais os homens ascendam a esses
benefícios, ampliem a sua capacidade de
linguagem, ampliem seus horizontes
lingüísticos com conhecimentos de outras
Realize uma pesquisa em jornais, revistas
normas, de outros registros, de outras
variantes(...) no sentido de que eles possam ou livros, buscando encontrar um artigo que
se tornar mais plenamente humano.
apresente uma situação que se relacione
com nossas discussões. Analise a linguagem
É relevante compreender que a linguagem utilizada pelo autor, contrapondo os
é um fenômeno heterogêneo e dinâmico, ao aspectos relacionados a culturas dos
contrário daquilo que se manifesta na escola sujeitos, aos quais o autor está se referindo.
hoje. É necessário perceber que a linguagem é Estabeleça uma conexão entre a
Alteridade: condição alteridade, e que, portanto, não existe a reportagem e o conteúdo trabalhado. A
de ser o outro. A homogeneidade, como não existe em nenhum
alteridade resulta de
ferramenta para enviar esta atividade será
uma produção histórica aspecto da realidade humana. Sendo assim, o orientada pelo professor responsável da
e lingüística, da
invenção desse Outro, papel da lingüística é educar para a democracia, disciplina.
que não somos, em
aparência, nós vemos.
educar para a cidadania, pois a democracia é
Alteridade deficiente: um sistema no qual existe respeito à diferença.
expressão que remete
não a um indivíduo ou
a um grupo de
indivíduos deficientes
ou à sua deficiência
específica, mas à sua
invenção, à sua
produção como outro
(SKLIAR, 1999, p. 23).

12
UNIDADE A

2 A Concepção de Língua na
Perspectiva Histórico-Cultural
"A palavra é o microcosmo da consciência"

Vygotsky.

Guilherme Escosteguy
Para dar continuidade ao nosso estudo, é inscrito na mente. Avram Noam Chomsky
é um dos mais
importante que você tenha compreendido o Chomsky (1971) postula que é num período
importantes intelectuais
que foi abordado na subunidade anterior, para bastante curto (mais ou menos dos 18 aos 24 contemporâneos,
conhecido mundia-
que, assim, possa dar uma ênfase maior ao que meses), que a criança, exposta normalmente a lmente por seu longo
ativismo contra a
passaremos a abordar. uma fala precária, fragmentada, cheia de frases política externa norte-
O ser humano pode ampliar suas noções de truncadas ou incompletas, é capaz de dominar americana. Renomado
lingüista, ele nasceu
tempo e espaço, como também desenvolver a um conjunto complexo de regras ou princípios em 7 de dezembro de
1928 na Filadélfia,
capacidade de raciocínio abstrato a partir da básicos que constituem a gramática do falante. onde obteve seu PhD
na Universidade da
linguagem. Através das mediações emocionais Para ele, um mecanismo ou um dispositivo
Pensilvânia. Chomsky
e da linguagem, necessárias para manter as inato de aquisição da linguagem (LAD Linguage escreveu mais de 30
livros sobre temas
relações com os outros, vamos construindo as Acquisition Device) elabora hipóteses como intervencionis-
mo, direitos humanos
categorias fundamentais do psiquismo humano: lingüísticas sobre dados lingüísticos primários e mídia, além de várias
consciência, atividade, afetividade e identidade. gerando uma gramática específica, ou seja, a obras no campo da
lingüística. Ele vive em
O ser humano se constitui a partir da gramática, da língua nativa da criança. Essa Cambridge, trabalhando
no Massachusetts
linguagem, esta auxilia no convívio social, na gramática por ser considerada de maneira Institute of Technology
(MIT) desde 1955.
interação entre o abstrato e os aspectos relativamente fácil e com um certo grau de Fonte: Texto retirado do
históricos vivenciados pelo indivíduo. Assim, a intensidade, foi denominada por Chomsky site: http://www.ufrgs.
br/jornal/janfev2002/
linguagem procura fornecer os recursos para como "pobreza de estímulo". entrevista.html, texto
capturado no dia 14 de
expressar pensamentos infinitos. Percebe-se que a linguagem está ligada a janeiro de 2006.
Nesse sentido, é relevante abranger ques- mecanismos inatos da espécie humana e
tões que englobam aspectos sobre a aquisição comuns aos membros dessa espécie, partindo
da linguagem pelo ser humano. De forma desse postulado a noção de universalidade Para um conhecimento
maior acerca das
bastante complexa, mas também num impulso lingüística. A partir dessa visão, a linguagem
abordagens de
dos estudos dos processos de aquisição da pertence a um domínio cognitivo e biológico, Chomsky leia também
os textos publicados
linguagem, Noam Chomsky, no final da década o qual admite que o ser humano vem equipado, nos seguintes endere-
ços eletrônicos:
de 1950, deu uma grande contribuição à no estágio inicial, de uma Gramática Universal http://www.igutenberg.
lingüística. Sua postura inatista na consideração (GU), dotada de princípios universais org/jorge.html
http://www.geocities.
do processo de aquisição da linguagem, pertencentes à faculdade da linguagem. com/revistaintelecto/
chomsky.html
considerou que, a partir da dotação genética, a Para Chomsky (1971), a linguagem humana http://www.paratexto.
com.br/document.php
aquisição da linguagem ocorre como resultado tem como propriedade geral o caráter aberto e ?id=623
do desencadeamento de um dispositivo inato, a criatividade, ou seja, o indivíduo pode
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CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

compreender um número indefinidamente


grande de frases, jamais ouvidas anteriormente,
ou talvez jamais pronunciadas. Isto é o preceito
básico da linguagem humana, na sua
criatividade cada ser é capaz de criar novas
frases e interpretá-las a todo instante, sem que
para isso seja necessário um conhecimento
prévio dessas frases.
Outro contribuinte essencial na teoria da
aquisição da linguagem é Skinner. Skinner é o
mais famoso psicólogo defensor da hipótese
behaviorista. Um dos seus principais preceitos,

Tiago da Silva Krening


e de seus seguidores, é que o aprendizado se
dá através de um processo denominado
condicionamento operante. As mudanças no Figura A.2: Concepção Behaviorista de aquisição da
comportamento voluntário são resultados de linguagem através do estímulo e da resposta.

eventos que seguem esse comportamento. Por


um lado, existem eventos que estimulam a Mas não são apenas os padrões de estímulo
recorrência do comportamento: chamados de que chamam a atenção dos behavioristas. A
reforço; por outro lado, existem eventos que imitação também exerce uma função
fazem o contrário, diminuem a probabilidade importante na aquisição da linguagem pela
de recorrência: chamados de punição. criança. O padrão de imitação segue um
Um bom exemplo dessa concepção é princípio fixo: o adulto fala uma palavra, a
quando uma criança fala "mama" e sua mãe, criança imita essa produção e o adulto
feliz em escutar aquilo, pega-a no colo, dando recompensa a criança por essa repetição,
muitos beijos e abraços. Essa atitude é agradável mesmo que ela não seja fiel ao que foi dito
para criança e aumenta a probabilidade dela inicialmente. Com o passar do tempo, a criança
repetir a fala. Isso é o que chamamos de passa a falar mais parecido com o adulto,
reforço. Assim, se a criança diz "mama" quando aprendendo como combinar as palavras da
sua mãe não está por perto, ele não obterá mesma maneira que aprendeu a reproduzi-las,
nenhuma resposta da mãe e compreenderá que através de imitação e posterior aproximação ao
"mama" refere-se apenas àquela pessoa em modelo adulto.
específico. Desse modo, aprende a se A crítica a essa visão é que os behavioristas
comportar dessa forma na presença de um tendem a enfatizar a influência do meio e ver
estímulo particular (a mãe), fazendo a a criança com um receptor passivo da
associação do referente (mãe) com o padrão linguagem, desprezando o seu papel no
de sons (mama). processo de aprendizagem. Eles não explicam

14
UNIDADE A

o fato de as crianças produzirem construções aspecto de que a aquisição da linguagem


que nunca foram ouvidas por elas anteriormen- depende do desenvolvimento da inteligência
te, assim como o fato da aquisição dos padrões na criança. Sua abordagem, conhecida como
gramaticais, já que as construções agramaticais cognitivismo construtivista ou epigenético,
nem sempre são corrigidas pelos pais e as desenvolveu-se a partir do pressuposto de que

Guilherme Escosteguy
gramaticais elogiadas, não podendo, assim, nesse estágio (sensório-motor), ocorre o
serem explicadas pelo reforço paterno. desenvolvimento da função simbólica, na qual,
Por outro lado, segundo Piaget, a aquisição um significante (pode ser um sinal), pode Jean Piaget, renomado
da linguagem ocorre na superação do estágio representar um objeto significado, além do de- psicólogo e filósofo
suíço, foi um
sensório-motor, por volta dos dezoito meses de senvolvimento da representação, pela qual a importante teórico do
processo do
idade da criança. Seus estudos baseiam-se no experiência pode ser armazenada e recuperada. conhecimento humano
(epistemologia),
nasceu em 9 de agosto
FASES DO DESENVOLVIMENTO INFANTIL SEGUNDO JEAN PIAGET de 1896, na cidade
suíça de Neuchâtel, no
Cantão francês, e
faleceu em Genebra,
Fase 1: Sensório-motor dos 8 aos 12 anos de vida, a criança começa em 1980.
No estágio sensório-motor, que dura do a lidar com conceitos abstratos como Foi conhecido por seu
trabalho pioneiro no
nascimento ao 18º mês de vida, a criança números e relacionamentos. Esse estágio campo da inteligência
infantil. Piaget passou
busca adquirir controle motor e aprender é caracterizado por uma lógica interna grande parte de sua
carreira profissional
sobre os objetos físicos que a rodeiam. Esse consistente e pela habilidade de solucionar interagindo com
estágio se chama sensório-motor, pois o problemas concretos. crianças e estudando
seu processo de
bebê adquire o conhecimento por meio de raciocínio. Seus
estudos tiveram um
suas próprias ações, controladas por Fase 4: Operatório formal grande impacto sobre
os campos da
informações sensoriais imediatas. No estágio operatório formal, desenvolvido
Psicologia e da
entre os 12 e 15 anos de idade, a criança Pedagogia.

Fase 2: Pré-operatório começa a raciocinar lógica e sistematica-


No estágio pré-operatório, que dura do 18º mente. Esse estágio é definido pela habili-
mês aos 8 anos de vida, a criança busca dade de engajar-se no raciocínio abstrato. Para ampliar seus
conhecimentos acerca
adquirir a habilidade verbal. Nesse estágio, As deduções lógicas podem ser feitas sem
de Jean Piaget e de
ela já consegue nomear objetos e raciocinar o apoio de objetos concretos. sua teoria, consulte o
material do caderno
intuitivamente, mas ainda não consegue No estágio das operações formais, didático da disciplina
de Psicologia da
coordenar operações fundamentais. desenvolvido a partir dos 12 anos de idade, Educação I e os artigos
a criança inicia sua transição para o modo presentes nos
seguintes sites:
Fase 3: Operatório concreto adulto de pensar, sendo capaz de pensar http://www.pedagogia
em foco.pro.brper09.
No estágio operatório concreto, que dura sobre idéias abstratas. htm http://www.centro
refhttp://www.cobra.
pages.nom.br/ecp-
piaget.html educacional.
com.br/piaget.html

15
CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

Piaget relacionou essas funções a outros três seja, pela assimilação e acomodação, em
aspectos que, segundo ele, colaboram no contraposição ao modelo inatista que resulta
processo de superação do "egocentrismo do desencadear de um órgão específico da
radical", período este no qual a criança é linguagem.
indiferente ao mundo ou a pessoas que a Numa crítica ao modelo piagetiano,
Guilherme Escosteguy

cercam, suas ações ocorrem centradas no "eu". considerando que seu modelo apresentava uma
Por exemplo, a criança pode encontrar-se numa falha no que se refere à contribuição do papel
Lev S. Vygotsky (1896- roda com mais crianças brincando, porém nesse social e das outras pessoas no processo de
1934), professor e
pesquisador foi
estágio, cada uma formula a sua brincadeira e desenvolvimento da criança, surgiram os
contemporâneo de não faz questão da presença das demais estudos de Vygotsky.
Piaget, e nasceu em
Orsha, pequena cidade crianças. Apesar de sua morte prematura, em 1934,
da Bielorrusia em 17
de novembro de 1896. A partir dessa breve contextualização acerca Vygotsky (2000) contribuiu de maneira relevan-
Viveu na Rússia,
dos estágios de desenvolvimento abordados te nos estudos sobre os aspectos da aquisição
quando morreu de
tuberculose tinha 37 pela teoria de Piaget, procuramos relacionar a da linguagem. Sua explicação para a aquisição
anos.
concepção dos três processos que são da linguagem se baseia no fato de ela ter ori-
contribuintes fundamentais na aquisição da gens sociais, externas, das trocas comunicativas
linguagem: entre a criança e o adulto. Essas estruturas de-
Para que você possa - descentralização das ações em relação ao senvolvidas no contato social sofreriam (mais
aprofundar mais acerca
da teoria de Vygotsky, corpo próprio, isto é, entre o sujeito e o mundo, ou menos aos dois anos de idade) um movi-
retome seu caderno "eu" e o "outro"; mento de interiorização do que antes era exter-
didático da disciplina
de Psicologia da - coordenação gradual das ações; no. Assim, a criança passaria a compreender
Educação I, ou acesse
os seguintes sites: - permanência do objeto, ou seja, o objeto internamente o que se passava ao seu redor.
http://www.centroref
educacional.com.br/
continua o mesmo, até no momento em que Para Vygotsky (2000), a fala e o pensamento
vygotsky.html não se encontra presente no espaço de prático devem ser estudados juntos, visto que,
http://novaescola.
abril.com.br/ed/ percepção da criança. para ele, a atividade simbólica viabiliza através
139_fev01/html/
exc_vygotsky.htm A partir desses processos, a criança começa da fala uma função organizadora do
http://www.fae.
a utilizar-se do jogo simbólico, da representação pensamento. O instrumento da linguagem
unicamp.br/br2000/
trabs/2330.doc na qual ela "faz de conta" que uma caixa de ocorre pela reconstrução interna de ocorrências
pasta de dente é um ônibus. Através da externas, mas para que esta internalização de
linguagem, do jogo simbólico, da imagem operações ocorra se torna necessária a
mental, das coordenações entre as ações e o mediação de outra pessoa.
sujeito é que a linguagem se torna possível, Os estudos realizados por Vygotsky (2000)
pois Piaget define a linguagem como um sistema confirmam que a aquisição da linguagem é um
simbólico de representações. processo pelo qual a criança se afirma como
Assim, de forma geral, a aquisição da sujeito, construindo seu conhecimento de
linguagem é vista como o resultado da mundo mediado pelas interações sociais.
interação entre o ambiente e o organismo, ou

16
UNIDADE D

O Interacionismo Social linguagem. A interação social e a troca


A abordagem do Interacionismo Social, como comunicativa são entendidas como pré-
seu nome já diz, considera os fatores sociais, requisitos, ou seja, condições necessárias ao
comunicativos e culturais para a aquisição da desenvolvimento lingüístico.
Tiago da Silva Krening

Figura A.3: Língua como instrumento de interação social

17
CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

Nessa perspectiva, a fala à qual a criança é afetada somente pela fala dirigida a ela.
está exposta é entendida como um meio Segundo os estudos dessa área, desde o
importante para a aprendizagem da linguagem. nascimento, o bebê é mergulhado num universo
No momento em que a criança se encontra em que todas as suas manifestações recebem
exposta à fala (input) do seu meio de algum significado, ou seja, a direção do olhar,
convivência, a aquisição da linguagem é gestos, os diversos tipos de choro são interpre-
estimulada. Scarpa (2001) define que uma das tados pelos que o cercam. Dessa forma, o bebê
questões que freqüentemente se coloca é se pode ser compreendido como um parceiro
o bebê será atingido por toda e qualquer amos- comunicativo do adulto.
tra lingüística ou manifestações lingüísticas ao Assim, destaca-se que, para o interacionismo
seu redor, ou se as amostras que irão ter influên- social, o importante é que ocorra uma inter-
cia na aquisição da linguagem têm um caráter relação entre a criança e o sujeito adulto,
seletivo. Isso significa que a criança ou é in- contribuindo na aquisição da linguagem e,
fluenciada por toda e qualquer fala, ou somente principalmente, no processo de desenvolvi-
pela fala dirigida a ela. Conforme os estudos mento cognitivo de cada indivíduo.
até então realizados, acredita-se que a criança

18
UNIDADE A

3 A Concepção de Língua na
perspectiva Sociolingüística
Prosseguindo com nossos estudos sobre noções A Sociolingüística, ao abordar problemas
dessa ordem, reveste-se de um cunho
básicas de língua, é relevante expandir nosso político-social, algo realmente importante,
conhecimento acerca da concepção de língua que extrai a lingüística pura de seu estágio
de ciência neutra. Assim, ela serve como
na perspectiva Sociolingüística, visto que a primeiro degrau para o diagnóstico do Conforme o dicionário
língua se constitui na sociedade. Dessa forma, desenvolvimento de estratégias de "Novo Aurélio do
integração de grupos resistentes; contém um século XXI", o termo
qual seria a contribuição da língua para a potencial emancipatório que pode levar a
Sociolingüística
refere-se ao conjunto
sociedade? Seria possível uma sociedade sem programas de remoção de conflitos de de estudos lingüísticos,
classe e libertação do indivíduo, reformulação antropológicos e
língua?
do sistema educacional e nova orientação sociológicos que tratam
Como foi visto nas reflexões anteriores, no ensino da Língua. dos aspectos do uso da
língua, das variações
Saussure defendia a linguagem como um "fato lingüísticas que se dão
no interior de um
social", mas somente a partir de 1950 é que Contextualizando essa perspectiva, Fiorin grupo, conforme as
diferentes posições,
se começa a questionar o fenômeno da (2000) afirma que a linguagem contém uma
funções ou
linguagem em sua relação com o fator social. visão de mundo, que determina nossa maneira circunstâncias dos
indivíduos ou dos
Nessa perspectiva, observamos que, nos últimos de perceber e conceber a realidade e impõe- subgrupos dos quais
estes fazem parte. No
anos, vem se desenvolvendo uma área de nos essa visão. A linguagem deve ser entendida âmbito da lingüística, é
pesquisa concentrada no uso da linguagem em como um molde, que ordena o caos, que é a também conhecida
como dialetologia
comunidades lingüísticas, surgindo a partir daí realidade em si e, dessa maneira, cada língua urbana e tem como
objetivos: o
uma série de teorias. ordena o mundo a sua maneira. Dessa forma, estabelecimento das
fronteiras dos
A Sociolingüística abrange uma área de percebemos que, com a ajuda da linguagem, fenômenos lingüísticos
estudos que vai desde os problemas que podem ser organizados, formulados e em seu contexto social
e a identificação dos
surgem na comunicação dos indivíduos (seja comunicados os diversos mundos de nossa processos de mudança
lingüística em
no plano afetivo, psíquico, social, econômico, vivência, pois a linguagem é condição necessária marcha(1999).
etc.), passando pela análise dos dialetos, e o meio mais importante de qualquer interação.
questões de pronúncia e desenvolvimento Cada comunidade de homens serve-se de um
lingüístico da criança, até a barreira lingüística sistema de linguagem, ou língua, cuja
proveniente, muitas vezes, de concepções propriedade essencial é atingir uma
ideológicas, diferença de mentalidade, raça e compreensão comum, concretizada na língua.
posição social. Compreende-se, então, que a linguagem está
A Sociolingüística abrange uma investigação indissoluvelmente relacionada com a atividade
cientificamente fundada, visando ao mental humana, a qual somente em virtude
esclarecimento dos diversos condicionamentos dela pode se afirmar e se desenvolver.
e efeitos dos atos de linguagem em seu meio A linguagem é o produto da interação social
social. Segundo Marcuschi (1975, p.12): e, como tal, é um sistema de sinais convencio-
19
CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

nais desenvolvidos, ensinados e aprendidos Dessa forma, Jakobson analisa que o ponto
socialmente. Segundo Bernstein (apud de partida é o processo comunicativo amplo, o
MARCUSCHI, 1975, p.41), "(...) os indivíduos que transpõe a visão estreita de uma análise
aprendem seu papel social mediante os do fenômeno lingüístico ancorada apenas em
Para ampliar seus processos de comunicação". Isso dá a entender suas características estruturais. Jakobson, em seu
conhecimentos leia:
que os atos de linguagem individuais, ou seja, celebre artigo "Lingüística e Poética", identifica
PARLATO, Érika Maria;
SILVEIRA, Lauro a maneira de falar de uma pessoa a situa dentro os fatores constitutivos de todo ato de
Frederico Barbosa da.
(org.) O Sujeito entre da estrutura social, define seu status e produz comunicação verbal: o remetente, a mensagem,
a Língua e Linguagem.
São Paulo: Lovise,
sua identidade social. Dessa maneira, a língua o destinatário, o contexto, o canal e o código,
1997, que esta atua como fator coadjuvante para o processo visto que o autor procura privilegiar o processo
disponível no acervo
da biblioteca de seu de aquisição da identidade e da definição comunicativo.
pólo.
quanto a aspectos sociais de cada indivíduo. Na abordagem de Mussalim e Bentes
A tradição de relacionar a linguagem e a (2001), ao analisar a prespectiva abordada por
sociedade, ou ainda, língua, cultura e sociedade Cohen, percebem a necessidade de um diálogo
é ainda mais perceptível na reflexão de autores entre as ciências humanas, pois os fenômenos
do século XX, dentre eles destacam-se, Antoine lingüísticos se realizam no contexto variável dos
Meillet, Milkhail Bakhtin, Mariel Cohen, Émile acontecimentos sociais. Entretanto, Cohen
Benveniste e Roman Jakobson. assume o postulado saussureano de que é
Meillet (apud MUSSALIM E BENTES, 2001) preciso separar aspectos internos dos externos
foi aluno de Saussure e, para ele, a história das no estudo das línguas e estabelece um
línguas é inseparável da história da cultura e da repertório de tópicos de interesse para um
sociedade. Para Bakhtin (1999), crítico à estudo sociológico da linguagem, como, por
filosofia de Saussure, a interação verbal exemplo, os estilos da linguagem, as formas de
constitui a realidade fundamental da língua, ou tratamento, a linguagem de grupos, etc.
seja, a verdadeira substância da língua é Por outro lado, Mussalim e Bentes (2001),
constituída pelo fenômeno social de interação ao analisarem a concepção de Benveniste,
verbal realizada através da enunciação. lingüista francês, apontam que é dentro da, e
Jakobson (1960 apud MUSSALIM e BENTES, para a língua que indivíduo e sociedade se
2001, p. 25), outro lingüísta russo, afirma que: determinam mutuamente, visto que ambos só
existem pela língua. É pelo exercício da
(...) o princípio da homogeneidade do código
linguagem, pela utilização da língua, que o
lingüístico, postulado por Saussure, não
passa de uma ficção desconcertante, já que homem constrói a sua relação com a natureza
todo indivíduo participa de diferentes
e com os outros homens. A linguagem sempre
comunidades lingüísticas e todo código
lingüístico é "multiforme e compreende uma se realiza dentro de uma língua, de uma
hierarquia de subcódigos diversos, livremente estrutura lingüística definida e particular,
escolhidos pelo sujeito falante, segundo a
função da mensagem. inseparável de uma sociedade definida e
particular. Logo, língua e sociedade não podem
ser concebidas uma sem a outra.
20
UNIDADE A
Vinícius de Sá Menezes

Figura A.4: Língua como elo de Ligação

Conforme Mussalim e Bentes (2001), ao da reflexão da lingüística.


abordarem a concepção de Benveniste, Mussalim e Bentes (2001), ao analisarem
destacam que ele procura estabelecer relações a perspectiva de Bright - considerado o mentor
homogêneas entre a estrutura de língua e a do termo Sociolingüística - observam que este
estrutura da sociedade. Essas relações parecem autor relaciona a sociolingüística às variações
instituir uma visão simplista das coisas, pois lingüísticas observáveis em uma comunidade e
sociedade e língua têm organizações estruturais às diferenciações existentes na estrutura social
diferentes. dessa mesma sociedade, pois o objeto de
Este mesmo autor ainda afirma que a língua estudo da sociolingüística é a diversidade
permite ao homem situar-se na natureza e na lingüística.
sociedade, o homem se situa necessariamente Conforme os preceitos teóricos abordados
numa classe. Assim, Benveniste articula a por Bright existe um conjunto de fatores
questão da relação língua e sociedade no plano socialmente definidos, a partir dos quais se
geral da construção do humano e, particular- conjectura que a diversidade lingüística esteja
mente, no plano das relações concretas estabe- relacionada com:
lecidas na vida social. - a identidade social do emissor ou do
Percebemos, então, que a questão da falante;
relação entre língua e sociedade é óbvia, porém - a identidade social do receptor ou ouvinte;
bastante complexa. Não há consenso sobre o - o contexto social;
modo como se trata e se explica a questão da - as atitudes lingüísticas, ou seja, o
relação entre linguagem e sociedade, contudo julgamento social distinto que os falantes fazem
o lugar reservado a essa consideração constitui do próprio comportamento lingüístico.
um dos grandes "divisores de águas" no campo Visto dessa maneira simples e direta,
21
CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

verificamos que o objeto da sociolingüística é


Como suporte teórico o estudo da língua falada, observada, descrita e
para ampliar seu Para compreender melhor as diferenças e
analisada em seu contexto social. O ponto de
conhecimento,
recomendamos a partida da sociolingüística é a comunidade as semelhanças entre as principais noções
leitura de: MUSSALIM,
Fernanda; BENTES, lingüística e, à medida que esta comunidade é trabalhadas nesta unidade - SIGNO,
Anna Christina (orgs.).
Introdução à
estudada, a constatação mais imediata é a SIGNIFICANTE, SIGNIFICADO - será realiza-
Lingüística Domínios e existência de diversidade ou variação, ou seja, da uma atividade no ambiente virtual. Com
Fronteiras. V.1 e v.2. 2
ed. São Paulo: Cortez, em cada comunidade é característico o esta atividade pretendemos estabelecer um
2001, que está
disponível no acervo emprego de diferentes modos de falar, que são diálogo mais próximo para que você possa
da biblioteca de seu
considerados como as variedades lingüísticas. elucidar com mais clareza as questões
pólo.
relacionadas nesta unidade. Siga as
orientações do professor, disponibilizadas
no ambiente virtual para a realização da
mesma tarefa.

22
UNIDADE

LÍNGUA, IDENTIDADE,
CULTURA: ELEMENTOS
BALISADORES DA
ESCOLA PARA A
DIFERENÇA

Objetivos da Unidade
Ao final desta Unidade, o aluno deverá ser capaz de:
- compreender a Língua como um processo de
constituição da identidade do sujeito;
- analisar as relações entre a língua e a cultura como
coadjuvantes ao processo de construção dos
diferentes grupos sociais;
- relacionar as diferentes interfaces entre a língua, a
cultura e a identidade.

23
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Introdução
A abordagem desta unidade está voltada para a como ponto central o próprio conceito de
compreensão acerca da língua num amplo identidade. Trata-se de privilegiar a marca
sistema da constituição dos sujeitos, na sua identitária que se constrói em torno da
identidade cultural, a partir da produção social representação cultural no processo de produção
da diferença. Nesse sentido, procuraremos de subjetividade do sujeito.
ampliar e aprofundar essa discussão, trazendo

24
UNIDADE B

1 A Língua como

Vinícius de Sá Menezes
Processo Identitário
Stuart Hall, jamaicano
de origem, mora na
No instante em que passamos a analisar a daquelas características pelas quais os grupos Grã-Bretanha desde
identidade dos sujeitos no contexto atual, é sociais se definem como grupos, ou seja, aquilo 1951 e, por ser
migrante, vive no que
relevante que possamos nos remeter aos que eles são. Para muitos autores, do campo ele considera "a condi-
ção arquetípica da
aspectos centrais que norteiam o discurso em dos Estudos Culturais, entre eles, Hall, modernidade tardia".
Foi um dos fundadores
torno do conceito de "identidade", sem perder Woodward, Bhabha, a identidade não existe
e dirigiu, durante seu
de vista que este conceito também está sujeito naturalmente, ela é construída pelo próprio período mais fértil
entre 1968 e 1979, o
a uma severa crítica. Segundo Hall (2000, p. grupo e pelos outros, portanto ela não é única, centro que foi o berço
dos Estudos Culturais
103), "se está efetuando uma completa fixa, tampouco estável. na Universidade de Bir-
desconstrução das perspectivas identitárias em Se estamos relacionando identidade com mingham (Inglaterra),
de onde se transferiu
uma variedade de áreas disciplinares, todas as cultura, ou melhor, entendendo que a para a Open University.
Sua trajetória deságua,
quais, de uma forma ou outra, criticam a idéia identidade é construída por meio da cultura, nos últimos vinte anos,
na preocupação em
de uma identidade integral, originária e precisamos definir o que é a cultura. Esse
repensar a cultura no
unificada". questionamento é bastante complexo e difícil, meio de uma
globalização complexa
Trata-se aqui de pensar a questão da no entanto vamos tentar trazer alguns e contraditória.

identidade associada ao campo cultural, pois elementos que nos ajudem a compreender,
todas as identidades são construídas dentro das ainda que superficialmente, a noção de cultura. Estudos Culturais é
culturas e não fora delas. Isso significa que as Para a Antropologia, campo especializado no um campo de teoriza-
ção e investigação
identidades são produzidas nos discursos estudo das culturas, não há como estabelecer surgido em 1964, no
Centro de Estudos
culturais, ou seja, a cultura da qual fazemos uma hierarquia entre as culturas humanas, não Culturais Contempo-
râneos, na Universida-
parte determina a forma como vemos, há como determinar que uma cultura possa ter de de Birgmingham,
explicamos e compreendemos o mundo. Se mais valor que outra, pois todas as culturas são Inglaterra. A preocupa-
ção central desse
tivéssemos que encontrar um conceito para antropologicamente equivalentes. É impossível campo de estudos está
na análise cultural.
identidade, nessa perspectiva cultural, como a estabelecer algum critério que diga que
definiríamos? determinada cultura possa ser julgada superior
Para responder a essa pergunta, é necessário a outra.
entendermos que estamos tomando a noção Um exemplo dessa dificuldade de dividir as Se você tiver interesse
em conhecer melhor a
de identidade a partir do campo cultural, ou questões culturais entre o que seria cultura e o
teoria dos Estudos
seja, não a estamos associando a um terreno que não seria, está no fato de pensarmos como Culturais, consulte a
obra HALL, Stuart. Da
puramente psicológico no qual, muitas vezes, as comunidades de grupos subalternos vivem Diáspora: identidades
e mediações Culturais.
identidade é entendida como uma essência, suas experiências culturais. Poderíamos afirmar Trad. RESENDE,
uma coisa da natureza, algo que nasce com o que as línguas faladas em determinadas tribos Adelaine La Guardia [et
all]. Belo Horizonte:
indivíduo e está sempre ali, é sempre a mesma. indígenas não são línguas? Há como dizer que Editora UFMG, 2003.

A identidade cultural ou social é o conjunto a cultura negra é uma cultura inferior? Ou que
25
CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

as mulheres são mais sentimentais que os meios de comunicação que, por exemplo,
homens e que por isso são menos inteligentes? narram os ciganos como sujeitos que são sujos,
Todas essas perguntas podem ter respostas alcoólatras, promíscuos, que tipo de
tanto positivas, quanto negativas, isso vai representação se produzirá sobre esses sujeitos?
depender das representações que vamos O mesmo ocorre com os chamados Portadores
construindo sobre esses grupos ao longo da de Necessidades Educacionais Especiais, se
nossa trajetória de vida. Se no transcorrer do estamos habituados a vê-los como
nosso cotidiano, somos bombardeados por "coitadinhos", "doentes", "incapazes", o que
informações que são veiculadas pelos diferentes esperar desses sujeitos?
Vinícius de Sá Menezes

Figura B.1: Diferentes representações dos sujeitos.

No entanto, todas essas representações, terem que se submeter a um currículo em que


formas como vemos, narramos e produzimos o as variações lingüísticas são banidas, em nome
outro, estão associadas ao campo cultural. do "falar corretamente o português". O que
Vejamos como isso ocorre no cotidiano da dizer então de comunidades lingüísticas que não
nossa sala de aula. Se partirmos de um currículo, falam a língua da maioria, como é o caso da
em que a centralidade do trabalho está em comunidade de surdos. Estes, muitas vezes, são
atender somente os padrões culturais dos obrigados a negarem sua língua, sua identidade,
grupos dominantes, é claro que a cultura dos porque o currículo não favorece o desenvolvi-
grupos que não se encaixam a essa "cultura mento da sua língua, afinal, para muitos, isso
normal" será discriminada e normalizada .É o não é uma língua, é um conjunto de gestos, de
caso, por exemplo, dos alunos descendentes mímicas. Porque língua é a língua oral, aquela
de imigrantes (alemães, italianos, judaicos) falada pela maioria das pessoas.

26
UNIDADE B

Como estes, existem muitos outros exem- dução de significados no qual os diferentes gru-
plos da forma como, por meio de um conjunto pos sociais, situados em posições diferenciais
de representações, algumas culturas são de poder, lutam pelas imposições de seus signi-
inventadas como "alta cultura" e outras como ficados à sociedade mais ampla". Talvez seja
"baixa cultura". Vale lembrar, como já nos referi- por isso que cultura e identidade se constituem
mos anteriormente, não se trata de entender a num binômio, em duas palavras que não se separam.
cultura a partir dessa divisão, o que estamos Por isso que temos vislumbrado a luta dos
tentando mostrar é como essa divisão se grupos minoritários, por meio dos movimentos
estabelece a partir do jogo diário das represen- sociais, em manter sua cultura, sejam os grupos
tações. E mais, cultura não é somente o modo afrodescendentes, as comunidades indígenas,
de vida de uma sociedade ou a experiência o movimento dos sem-terra, os grupos que
vivida de qualquer agrupamento humano, ela apresen-tam necessidades educacionais
é um campo de luta em torno da significação especiais (cegos, surdos, cadeirantes, déficit
do social. Na perspectiva abordada por Silva cognitivo, etc), todos estão envolvidos nesse
(2003, p. 134), "a cultura é um campo de pro- jogo que é a busca de suas identidades sociais
e culturais.
Orlando Fonseca Júnior

Figura B.2: Discriminação de grupos culturais minoritários

27
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A partir dessas primeiras leituras, e


analisando a figura acima, envie para o
ambiente virtual uma análise sobre Língua,
Cultura e Identidade de grupos culturais que
são "normalizados" pelos discursos
produzidos pela sociedade majoritária. Você
também pode selecionar figuras em jornais,
revistas, livros ou encarte publicitário.

28
UNIDADE B

2 A Língua como
Instrumento Cultural
Estamos vivendo numa época de mudanças que na determinação e constituição das identidades
afetam as bases culturais nacionais, ou seja, que pelos sujeitos.
colocam em xeque questões, até então, Com efeito, Hall (2000, p. 40) menciona
inatingíveis. Experienciamos manifestações de que "as identidades têm a ver com a questão
gênero, de classe, de etnia, de raça, etc., que da utilização dos recursos da história, da
provocam outras formas de narrar as questões linguagem e da cultura para a produção não
culturais e identitárias e instituem mudanças daquilo que nós somos, mas daquilo no qual
na nossa própria identidade. Esse processo pode nos tornamos", ou seja, a relação da identidade
ser entendido como "duplo descentramento" com os aspectos recém mencionados referem-
das identidades, pois somos, ao mesmo, tempo se à maneira pela qual nós temos sido
deslocados do nosso mundo cultural e social e representados. O sujeito passa a ser entendido
também de nós próprios, constituindo assim, como sendo construído no interior da história
conforme Hall (2000), uma "crise de e que também está a ela conectado, sendo que,
identidade". o próprio conceito de sujeito pode ser
Conforme Mercer (apud HALL, 2000, p. considerado como uma invenção
35); historicamente determinada.
As identidades adquirem sentido através da
(...) a identidade somente se torna uma
linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais
questão quando está em crise, quando algo
que se supõe como fixo, coerente e estável elas são representadas. Sendo a linguagem um
é deslocado pela experiência da dúvida e da fenômeno heterogêneo e dinâmico, é
incerteza. Essa crise é vivenciada pelo sujeito
na pós-modernidade, sendo que se torna importante a compreensão de que a linguagem
oportuno analisar as suas complicações na é a alteridade e, portanto, não existe a
estrutura individual, cultural e principalmente
social dos sujeitos que lutam para construir homogeneidade, como não existe em nenhum
e adquirir o respeito de grande parcela da aspecto da realidade humana. Woodward
sociedade, junto a uma identidade própria.
(2000, p. 18) analisa que

(...) todas as práticas de significação que


Contudo, para que se torne realmente
produzem significados envolvem relações de
possível um estudo a respeito da identidade e poder, incluindo o poder para definir quem
da diferença, é necessário que tenhamos é incluído e quem é excluído. A cultura molda
a identidade ao dar sentido à experiência e
fundamentos referentes às identidades. Para ao tornar possível optar entre as várias
isso, é importante que nos reportemos, identidades possíveis, por um modo
especifico de subjetividade.
também, a alguns aspectos históricos e culturais
e, principalmente, a um estudo mais profundo
29
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As sociedades e culturas em que vivemos isto é, ao passo que sou brasileiro, não posso
são dirigidas por poderosas ordens discursivas ser argentino e vice-versa.
que regem o que deve ser dito e o que deve Nos estudos de Silva (2000, p. 84),
ser calado e os próprios sujeitos não estão
(...) o processo de produção da identidade
isentos desses efeitos. "A linguagem, as
oscila entre dois movimentos: de um lado,
narrativas, os textos, os discursos não apenas estão aqueles processos que tendem a fixar
descrevem ou falam sobre as coisas, ao fazer e a estabilizar a identidade; de outro, os
processos que tendem a subvertê-la e a
isso eles instituem as coisas, inventando sua desestabilizá-la. É um processo semelhante
identidade" (SILVA, 2000, p.32). ao que ocorre com os mecanismos
discursivos e lingüísticos nos quais se
A identidade é marcada por símbolos, ou sustenta a produção da identidade.
seja, ocorre uma relação entre a identidade da
pessoa e o que ela usa, assim como, ela também A esse respeito, é visto que a língua é um
é relacional. Com efeito, de primeira mão dos elementos centrais na formação, por
parece complexa essa definição, porém, a exemplo, das identidades nacionais. Estas
identidade necessita, para a sua existência, de apelam para mitos que as fundamentem, pois
algo fora dela, isto é, para a constituição da sua identidade precisa ser inventada, imaginada
minha identidade brasileira, eu necessito que em torno de um determinado agrupamento,
existam outras identidades, como a identidade vindo, assim, a criar laços imaginários que
argentina, paraguaia, francesa, alemã, e assim "liguem" pessoas, pois, de outra forma, seriam
por diante, que, por sua vez, diferem da apenas indivíduos isolados. Entretanto, ao lado
identidade brasileira, mas, por outro lado, da língua são criados também símbolos que
fornecem as condições para que ela exista. identificam a identidade da nação, como por
Dessa forma, a identidade passa a ser marcada exemplo, o hino, o brasão, aspectos culturais e
pela diferença e esta se sustenta na exclusão, sociais que a definem como uma identidade.
Tiago da Silva Krening

Figura B.3: Pessoas de diferentes nacionalidades


30
UNIDADE B

3 Interface entre Língua,


Cultura e Identidade
Hall (2000), ao realizar um estudo referente Em parte, a constituição de um sujeito sem
às concepções de identidade, faz a distinção uma identidade fixa, revela-se pelo fato de Para aprofundar as
questões referentes à
entre o sujeito do Iluminismo, o sujeito estarmos, também, inseridos numa sociedade
produção das
sociológico e o sujeito pós-moderno. Nesse de mudanças constantes, rápidas e permanen- identidades, a partir do
estudo dos três tipos
estudo, o sujeito do Iluminismo é caracterizado tes. Essas mudanças acabam interferindo de de sujeito relacionados
por Hall, consulte a
pela concepção de indivíduo totalmente maneira objetiva e direta nas relações entre os obra HALL, Stuart.
centrado, unificado, dotado das capacidades de sujeitos, em suas concepções e porque não na Identidades Culturais
na Pós-modernidade.
razão, consciência e ação. Isso remete à noção constituição de suas identidades. Trad. SILVA, Tomaz
Tadeu da; LOURO,
de que o centro essencial do eu era a identidade Laclau (apud HALL, 2000, p. 17) afirma que Guacira Lopes. 10 ed.
Rio de Janeiro: DP&A,
da pessoa. Assim, o sujeito estava centrado na 2000, que está
sua concepção identitária. (...) 'as sociedades da modernidade tardia', disponível no acervo
são caracterizadas pela 'diferença'; elas são da biblioteca de seu
No que se refere ao sujeito sociológico, atravessadas por diferentes divisões e pólo.

como o termo bem menciona, esse sujeito não antagonismos que produzem uma variedade
de diferentes 'posições do sujeito' - isto é,
é autônomo ou auto-suficiente da mesma forma identidades - para os indivíduos. Se tais
como o sujeito do Iluminismo, porém é sociedades não se desintegram totalmente,
não é porque elas são unificadas, mas porque
constituído na relação com as outras pessoas. seus diferentes elementos e identidades
Com efeito, essas pessoas, ao constituírem a podem, sob certas circunstâncias, ser
conjuntamente articulados. Mas essa
identidade do sujeito sociológico, mediavam
articulação é sempre parcial: a estrutura da
para ele valores, sentidos, símbolos e a cultura. identidade permanece aberta.
A identidade do sujeito sociológico
estabelece uma relação com o interior e o Hall (2000, p.109) aproxima a questão da
exterior, ou seja, o sujeito tem uma essência representação da identidade do sujeito aos
interior considerada como o "eu real", contudo, aspectos da inclusão/exclusão social quando
essa essência é formada e modificada na verifica que:
"interação" entre o eu e o mundo.
É precisamente porque as identidades são
Finalmente, o sujeito pós-moderno vivencia
construídas dentro e não fora do discurso
uma concepção de que não tem uma identidade que nós precisamos compreendê-las como
produzidas em locais históricos e
fixa, estável, permanente ou essencial. Sendo
institucionais específicos, no interior de
que a identidade é formada e transformada formações e de práticas discursivas
continuamente, é definida historicamente. O específicas, por estratégias e iniciativas
específicas. Além disso, elas emergem no
sujeito assume identidades diferentes em interior do jogo de modalidades específicas
momentos diferentes. de poder e são, assim, mais o produto da
marcação da diferença e da exclusão do que

31
CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

o signo de uma unidade idêntica,


é Japonesa", estou numa cadeia de negações,
naturalmente constituída, de uma
"identidade" em seu significado tradicional - pois seria como dizer que "ela não é brasileira",
isto é, uma mesmidade que tudo inclui, uma "ela não é argentina" e, principalmente, ela não
identidade sem costuras, inteiriça, sem
diferenciação interna. é o que eu sou. Para tal, Silva (2000, p.75)
menciona que
Dessa forma, percebe-se objetivamente que
as identidades são realmente construídas por
(...) 'em geral', consideramos a diferença
meio da diferença, ou seja, para que eu afirme
como um produto derivado da identidade.
de maneira potencial a minha "identidade" eu Nesta perspectiva, a identidade é a
a construo na relação com o Outro, ou ainda, referência, é o ponto original relativamente
ao qual se define a diferença. Isto reflete a
com o que falta, ainda que silenciado e tendência a tomar aquilo que somos como
inarticulado. Com isso, torna-se possível afirmar sendo a norma pela qual descrevemos ou
avaliamos aquilo que não somos.
que as identidades estão calcadas no interior
de um jogo de poder e de exclusão.
Segundo as abordagens de Silva (2000), Podemos analisar a identidade e a diferença
acerca do que tange a identidade e a diferença, como sendo produtos ou criações sociais e
a identidade é aquilo que se é: "sou brasileiro", culturais, assim, elas necessitam ser
"sou homem", "sou branco" etc. e a diferença, continuamente produzidas. Elas são produzidas
em oposição à identidade, concebida como por meio de atos da linguagem, isto é, se
aquilo que o outro é: "ela é velha", "ela é analisarmos a identidade brasileira, ela é
mulher", "ela é branca". Assim, ambas, a produzida pela linguagem, definindo-a como
identidade e a diferença, são auto-referenciadas sendo diferente de outras identidades.
de si próprio e ambas simplesmente existem. Com efeito, é recorrente a afirmação
Portanto, podemos perceber que identidade de que a identidade e a diferença são relações
e diferença estabelecem uma relação de sociais, e que, portanto, estão sujeitas a vetores
dependência. Quando afirmo que "sou de força, ou relações de poder. As suas relações
brasileiro" passo a uma extensa cadeia de não são harmoniosas, mesmo que, sendo
"negações", pois, assim, posso interpretar que interdependentes, elas são disputadas e
"não sou russo", "não sou alemão" etc. Porém, impostas. Segundo o autor acima citado:
no momento em que afirmo que "sou
A afirmação da identidade e a enunciação da
brasileiro", esta afirmação somente me é
diferença traduzem o desejo dos diferentes
possível porque existem outros seres humanos grupos sociais, assimetricamente situados,
de garantir o acesso privilegiado aos bens
que não são brasileiros.
sociais. A identidade e a diferença estão, pois,
Da mesma forma, quando afirmo que "ela

32
UNIDADE B

em estrita conexão com relações de poder.


Após uma reflexão sobre essas colocações,
O poder de definir a identidade e demarcar
a diferença não pode ser separado das é perceptível que sempre temos afirmado
relações mais amplas de poder. A identidade primordialmente os termos referentes a uma
e a diferença não são, nunca, inocentes
(2000, p. 81). parcela da população que pertence à "norma",
para, posteriormente, apresentarmos o atributo
É nessa perspectiva que passamos a abordar "negativo" de uma parcela que se encontra na
grande parte de nossos estudos. Vale lembrar margem da sociedade. Visto isso, questionamos
que afirmar a identidade significa também qual é o critério que se adota para essa relação?
demarcar fronteiras, isto é, simultaneamente Neste sentido, Silva (2000, p.83) destaca
passo a incluir e excluir. No instante em que que:
passo a afirmar o que "eu sou", também,
(...) fixar uma determinada identidade como
significa que passo a afirmar o que "eu não sou".
a norma é uma das formas privilegiadas de
Diferentemente de nossas concepções, é hierarquização das identidades e da
diferença. A normalização é um dos
primordial averiguar que a identidade e a
processos mais sutis pelos quais o poder se
diferença estão relacionadas às formas nas quais manifesta no campo da identidade e da
a sociedade produz e utiliza as classificações. diferença. Normalizar significa eleger -
arbitrariamente - uma identidade específica
Estas são realizadas do ponto de vista da como o parâmetro em relação ao qual as
identidade, entretanto, dividir e classificar, neste outras identidades são avaliadas e
hierarquizadas. Normalizar significa atribuir a
contexto, também significa hierarquizar. O que essa identidade todas as características
se percebe é que as classificações são positivas possíveis, em relação as quais as
outras identidades só podem ser avaliadas
concomitantemente relações binárias, nas de forma negativa. A identidade normal é
quais, não ocorre uma expressão simples da "natural", desejável, única.
divisão de mundo, e sim, a concepção de duas
classes. Nestas classes, certamente ocorrerá uma Portanto, analisando dessa forma, é visível
simetria, ou seja, um dos termos será que, para esta categorização, ocorre a influência
privilegiado, ocupando uma posição e um valor de uma hierarquia do poder instituído como
positivo enquanto que o outro termo receberá socialmente correto e "normal". Assim, também
um atributo negativo. Nesse sentido, todas as é possível compreender que a identidade é um
relações de identidade e diferença ordenam- significado cultural e socialmente atribuído.
se em torno de posições binárias, como pode
ser observado no exemplo: branco/negro,
ouvinte/surdo, masculino/feminino.

33
CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

Marcus de Moura

Figura B.4: A normalização das Identidades

(...) a produção do outro anormal é marcada


A representação, na perspectiva pós-
nos discursos. Produzimos os outros
estruturalista, é uma forma de atribuição de cotidianamente em diferentes espaços
sentido, sendo assim, ela é um sistema sociais, entre eles: o asilo, a fábrica, o hospital,
o hospício, as prisões, as escolas e outras
lingüístico e cultural. Dessa concepção de maquinarias dedicadas a manter a ordem.
representação, ocorre a ligação entre a Associados a essas instituições existem
artefatos culturais que desenvolvem
identidade e a diferença que, segundo Silva pedagogias que disciplinam o olhar dos
(2000, p.91), "é também por meio da sujeitos naturalizando o outro como diferente.
Essa diferença está sendo tomada pelo
representação que a identidade e a diferença discurso includente da modernidade como
se ligam a sistemas de poder. Quem tem o algo que sugere a incapacidade e a
necessidade de normalização.
poder de representar tem o poder de definir e
determinar a identidade". Nesse contexto, no
momento em que questionamos a identidade Em grande parte dos casos, a identidade,
e a diferença, torna-se necessário questionar na visão de uma "identidade normal", assume
também os sistemas de representação que lhe uma forma única, um jeito único de viver suas
dão suporte e sustentação. diferenças, Percebemos isso quando nos
Cabe, nessa situação, à pedagogia e ao deparamos com discursos que exaltam o fato
currículo fornecerem oportunidades para a de os negros experenciarem sua negritude do
análise crítica e o questionamento dos sistemas mesmo jeito, ou que todos os índios vivem a
e das formas dominantes de representação da sua condição de raça da mesma forma. Essas
identidade e da diferença. asserções são possíveis no momento em que
Para Fabris e Lopes (2002, p. 457), consideramos a identidade normal como a

34
UNIDADE B

única identidade e, a partir dela, todas as outras Uma abordagem sobre


são classificadas e hierarquizadas. Nesse sentido, a questão da identidade
apontamos a complexidade e a amplitude em na Pós-modernidade
que estão envolvidas as questões acerca das Ao passo em que analisamos vários aspectos
identidades. No aspecto da identidade surda, relacionados com a identidade, é relevante
por exemplo, também não existe uma estabelecer uma discussão que norteie a
identidade unificada que abranja uma forma de questão das identidades na Pós-modernidade,
significar a surdez. visto que, como já foi mencionado
Segundo Fabris e Lopes (2002, p. anteriormente, está ocorrendo uma
459), descentralização da identidade do sujeito da
pós-modernidade. Para discutirmos com mais
(...) os discursos políticos sobre a deficiência
profundidade essa questão, vamos fazer uso,
silenciam a discussão em torno da
alteralidade deficiente, que surge ao na maior parte desse texto, da obra de Stuart
inventarmos o outro como diferente. Esses
Hall.
discursos reforçam o caráter assistencialista
e compensatório lançados pelas instituições Para iniciarmos a discussão, podemos nos
destinadas a educar/normalizar os corpos questionar qual ou quais são os fatores
mutilados pela deficiência.
contribuintes para esse processo de
descentralização? O que vem deslocando as
A deficiência é uma construção cultural, que identidades nacionais no final do século XX? A
atravessa a materialidade do corpo, "a resposta mais adequada a esse questionamento
deficiência é uma das marcas, que por ser se encontra num processo de mudança, mais
considerada especial por um corpo de conhecido como "globalização".
especialistas e pela escola, colabora com o Giddens (apud HALL, 2000, p.67), analisa
empalidecimento de outras identidades". que:
Em outros casos, ocorre um processo
A globalização implica um movimento de
em que, além da diferença no corpo, ocorre a
distanciamento da idéia sociológica clássica
invenção de uma possibilidade de aceitação da 'sociedade' como um sistema bem
dessa diferença. Por isso, e por muitas outras delimitado e sua substituição por uma
perspectiva que se concentra na forma como
considerações que serão lançadas no decorrer a vida social está ordenada ao longo do
dessa e de outras disciplinas, é que devemos tempo e do espaço.

pensar em vivenciar a diferença como


DIFERENÇA, e não apenas pela tolerância, ou Na contextualização de Woodward (2000),
pelo convívio pacífico com o diferente. a globalização envolve fatores econômicos e
culturais, causando mudanças nos padrões de
produção e consumo, constituindo identidades
novas e globalizadas. Nessa perspectiva,
entendemos que, através da globalização, a
homogeneidade cultural que é proporcionada
35
CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

pelo mercado global pode acusar um cultura e aos aspectos vivenciados por uma
Orlando Fonseca Júnior distanciamento da identidade em relação à determinada comunidade.

Figura B.5: A homogeneidade cultural e a globalização

36
UNIDADE B
Vinícius de Sá Menezes

Figura B.6

(...) as mudanças e transformações globais


Uma das conseqüências das mudanças na
nas estruturas políticas econômicas no
economia global é a dispersão de grupos mundo contemporâneo colocam em relevo
humanos ao redor do mundo. A migração de as questões de identidade e as lutas pela
afirmação e manutenção das identidades
trabalhadores, motivados pela necessidade nacionais e étnicas. Mesmo que o passado
econômica, provoca impactos sobre seu país que as identidades atuais reconstroem seja,
sempre, apenas imaginado, ele proporciona
de origem e também sobre o país de destino alguma certeza e um clima que é de
e, segundo Woodward, "a migração produz mudança, fluidez e crescente incerteza. As
O termo migração
identidades em conflito estão localizadas no pode ser entendido
identidades plurais, mas também identidades interior de mudanças sociais, políticas e como: mudar
contestadas, em um processo que é econômicas, mudanças para as quais elas periodicamente, ou
contribuem. As identidades que são passar de uma região
caracterizado por grandes desigualdades" (apud construídas pela cultura são contestadas sob para outra, de um país
para outro.
HALL, 2000, p.21). formas particulares no mundo
contemporâneo - num mundo que se pode
Esse processo de migração tem produzido
chamar de pós-colonial.
identidades que são moldadas e localizadas em
diferentes lugares e por diferentes lugares. Isso
nos remete à concepção de que essas É importante, a partir do estudo que segue,
identidades podem ser desestabilizadas e visualizarmos a concepção de que a identidade
simultaneamente desestabilizadoras. nacional é inteiramente dependente da idéia
Para Woodward (apud HALL, 2000, p.24): que fazemos dela. Isso significa que não seria
possível conhecer todas as pessoas que
compartilham conosco a mesma identidade
nacional. E, por outro lado, sabemos que uma
37
CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

identidade nacional é fragmentada, ou seja,


existem diversas identidades nacionais que são
concebidas pelas diferentes formas pelas quais Para resgatarmos alguns pontos centrais
elas são imaginadas. discutidos nessa unidade, entre eles as
No que se refere aos aspectos históricos da questões que envolvem a articulação entre
constituição das identidades nacionais, língua, cultura e identidade, assistiremos ao
consideramos que a afirmação política da filme "Amor a Primeira Vista". Nele você
identidade necessita de alguma forma de encontrará inúmeras situações que lhe
autenticação, sendo que, em grande parte dos permitirão visualizar como é produzida a
casos, essa autenticação é realizada por identidade no contexto cultural. Para um
reivindicações históricas. Dessa forma, maior aproveitamento do filme, será
Woodward (apud HALL, 2000, p.27) analisa disponibilizado no ambiente virtual um
que: roteiro para que você possa atentar para
alguns conceitos centrais desenvolvidos
ao afirmar uma determinada identidade,
durante essa unidade.
podemos buscar legitimá-la por referência a
um suposto e autêntico passado -
possivelmente um passado glorioso, mas de
qualquer forma, um passado que parece 'real'
- que poderia validar a identidade que
reivindicamos.

Nesse sentido, as questões culturais são


centrais numa sociedade pós-moderna, pois são
elas que permitem o transitar constante de
fronteiras. Portanto, os sujeitos que cruzam
essas fronteiras sempre falarão a partir de uma
posição histórica e cultural específica. É
justamente para esse lugar cultural específico
que vamos entrar na próxima unidade, tentando
discernir, por meio de nossas representações,
aquilo que chamamos de diferença e aquilo
que instituímos como normalidade.

38
UNIDADE

PRODUÇÃO DAS
DIFERENÇAS

Objetivos da Unidade
Ao final desta Unidade, o aluno deverá ser capaz de:
- compreender como são constituídas as identidades
culturais na modernidade e pós-modernidade;
- analisar a constituição do sujeito multicultural,
relacionando aspectos apresentados pelo
multiculturalismo e a construção das identidades
das pessoas com necessidades educacionais
especiais;
- entender como a língua, a cultura e a identidade
contribuem na produção social da diferença.

39
CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

Introdução
Nessa unidade, serão abordadas questões a partir do multiculturalismo, relacionando os
referentes às identidades culturais dos sujeitos aspectos abordados nas unidades anteriores que
situados no contexto da modernidade, bem se referem à língua, à cultura e à identidade
como da pós-modernidade. A centralidade de num amplo contexto das relações de poder.
nosso trabalho está em compreender o sujeito

40
UNIDADE C

1 Identidades
Culturais na Modernidade
É de fundamental importância provocarmos uma liberdade, igualdade de oportunidades, justiça,
discussão acerca das questões que envolvem o pluralismo, respeito mútuo, tolerância e
terreno das identidades culturais. Para isso, faz- solidariedade, entre outros.
se necessário uma análise mais ampla dos O multiculturalismo parece levantar a
aspectos relacionados aos temas multiculturais, bandeira contra as posições homogenizadoras
a fim de aprofundar o que discutimos nas que tendem a tratar todas as culturas a partir
unidades anteriores, ou seja, as noções de de uma medida, de um padrão universal,
identidade, diferença e as implicações da língua reivindicando, portanto, a pluralidade. No
na construção da identidade dos sujeitos com entanto, o problema surge quando as diferenças
necessidades educacionais especiais. Nesse são consideradas como entidades fechadas,
sentido, trazemos para o debate alguns essencialmente constituídas, o que poderia
elementos que possam problematizar o incorrer no risco de ressaltar "o que há de
multiculturalismo, tomando-o como um discurso superficial e externo nas culturas, exaltando o
polissêmico, inscrito nos encontros e exótico que demarca sua distância de uma
desencontros da nossa cultura com a suposta cultura modelar - a européia" (COSTA,
diversidade. 2002, p.03).
A idéia de uma sociedade multicultural Nesse contexto, torna-se impossível o
emerge como um dos pilares das sociedades diálogo cultural enquanto cenário de disputa e
democráticas e plurais, por isso, o discurso do desaparecem as possibilidades de produção de
multiculturalismo vem sendo utilizado para falar identidades plurais. Talvez, seja essa uma das
da possibilidade de convivência harmônica de possibilidades do multiculturalismo estar
diferentes raças e culturas. Ao vasculharmos os associado a um discurso conservador, pois
atuais discursos em torno dessa questão, atrelaria as questões culturais dos grupos
percebemos uma insistência na utilização de minoritários - indígenas, afro-descendentes,
termos como "identidade", "diferença", surdos, ciganos, etc. - à cultura hegemônica.
"diversidade", "igualdade", "dignidade", a ponto Um exemplo do multiculturalismo conservador
de tornarem-se um manual etimológico, pode ser analisado quando percebemos em
quando se trata de falar sobre as questões do obras literárias, documentários, filmes, novelas,
outro. No entanto, tal arsenal sustenta-se a partir entre tantos outros textos culturais,
das chamadas sociedades democráticas, que representações ocidentais de raça que passam
carregam consigo uma trama discursiva, a constituir certas identidades como "os outros",
permitindo trazer à tona um conjunto de "os marginais", "os anormais". Isso fica evidente
enunciados que as caracterizam: participação, no momento em que a branquidade
41
CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

(supremacia da raça branca) torna-se uma "significar apenas o incremento de políticas em


norma invisível, através da qual outras que elas devem ser incorporadas, convocadas.
etnicidades são julgadas. Assim, não interessa que tipo de violência se
Estamos diante de um paradoxo, pois ao exerça para que esta ilusão se verifique. Esses
mesmo tempo em que se celebra o 'outros' são, simultaneamente, consumidos e
multiculturalismo e a diferença, mantêm-se transformados em consumidores" (COSTA,
estratégias de colonização e homogeneização 2002, p.03), como, por exemplo, o caso da
cultural, pois, para muitos, ser multicultural pode moda.

Você sabe a diferença


entre os termos
"multicultural" e
"multiculturalismo"?
Segundo Hall (2003,
p.52): multicultural é
um termo qualitativo.
Descreve as
características sociais e
os problemas de
governabilidade
apresentados por
qualquer sociedade na
qual diferentes
comunidades culturais
convivem e tentam
construir uma vida em
comum, ao mesmo
Marcus de Moura

tempo em que retêm


algo de sua identidade
'original'. Em
contrapartida, o termo
'multiculturalismo' é Figura C.1: Tendência da homogeneização pela moda
substantivo. Refere-se
às estratégias e políticas
adotadas para governar (...) são caracterizadas pela 'diferença', elas
ou administrar
O caráter paradoxal do multiculturalismo
são atravessadas por diferentes divisões e
problemas de constitui um dos reflexos mais significativos da antagonismos que produzem uma variedade
diversidade e
crise da Modernidade, pois, segundo Laclau de diferentes 'posições de sujeito' - isto é,
multiplicidade gerados
pelas sociedades identidades - para os indivíduos. Se tais
multiculturais. (apud HALL, 2000, p.17), a sociedade pós- sociedades não se desintegram totalmente
moderna, ou da modernidade tardia: não é porque elas são unificadas, mas porque
seus diferentes elementos e identidades

42
UNIDADE C

podem, sob certas circunstâncias, ser


outra concepção de sujeito faz com que
conjuntamente articulados.
tenhamos que revisar as formas como nossa
Diante da caracterização dessas sociedades cultura vem lidando com a diferença, e como
é que inscrevemos e reafirmamos a noção das essas diferenças são levadas a efeito pela
identidades plurais e multifacetadas, pois, em maquinaria escolar. No entanto, antes de
tempos de descentralização de sujeitos, a mergulharmos nesse cenário tão complexo que
estrutura da identidade permanece sempre nos incita a cruzar fronteiras e a não nos
aberta para as mudanças vivenciadas pela fixarmos em territórios e pertencimentos, vamos
sociedade, as quais passam, dessa forma, a procurar entender as condições de emergência
serem assimiladas pelo sujeito e incorporadas que possibilitaram a produção de uma narrativa
na sua vivência e interação social. para que pudéssemos falar de um sujeito
A possibilidade de estarmos diante de uma descentrado.
Orlando Fonseca Júnior

Figura C.2: A idéia de descentralização


43
CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

No cenário histórico, muitas foram as O segundo dos grandes "descentramentos"


maneiras pelas quais os sujeitos passaram a se se embasa na descoberta do inconsciente por
constituir diante das perspectivas sociais, assim: Freud. Sua teoria a respeito de nossas
identidades, nossa sexualidade e a estrutura de
(...) muitos movimentos importantes no
nossos desejos é constituída com base em
pensamento e na cultura ocidentais
contribuíram para a emergência dessa nova processos psíquicos e simbólicos do
concepção: a Reforma e o Protestantismo, inconsciente. Este funciona de acordo com uma
que libertaram a consciência individual das
instituições religiosas da Igreja e a expuseram "Lógica" muito diferente daquela da Razão,
diretamente aos olhos de Deus; o arrasa o conceito de sujeito cognoscente e
Humanismo Renascentista, que colocou o
Homem no centro do universo; as racional provido de uma identidade fixa e
revoluções científicas, que conferiram ao unificada. Ainda, segundo autores como Lacan
homem a faculdade e as capacidades para
inquirir, investigar e decifrar os mistérios da (apud HALL, 2000), a identidade é algo formado
natureza; e o Iluminismo, centrado na ao longo do tempo, por processos
imagem do Homem racional, científico,
libertado do dogma e da intolerância, e diante
inconscientes.
do qual se estendia a totalidade da história O terceiro dos descentramentos analisados
humana, para ser compreendida e dominada
por Hall (2000) refere-se aos estudos de
(HALL, 2000, p. 25).
Ferdinand Saussure. Para Saussure, nós não
Mediante essa perspectiva, é relevante abrir somos, em nenhum sentido, os 'autores' das
campos para uma reflexão que Hall (2000) afirmações que fazemos, porém utilizamo-nos
apresenta como um esboço de cinco grandes da língua para produzir significados apenas nos
avanços na teoria social e nas ciências humanas posicionando no interior das regras da língua e
Para recuperar seu ocorridos no pensamento moderno. dos sistemas de significado de nossa cultura.
conhecimento sobre
Marx e sua filosofia,
Para o autor citado, a primeira descentração Nesse caso, é importante fazer uma conexão
consulte o caderno importante refere-se às tradições de com a unidade A desta disciplina, na qual são
didático da disciplina
de Fundamentos pensamento marxista. A afirmação de Marx de expostas as idéias de Saussure.
Históricos, Filosóficos e
Sociológicos da que "os homens fazem a sua história, mas Outro descentramento ocorre com relação
Educação II.
apenas sob as condições que lhes são dadas", aos estudos do filósofo e historiador Michel
abriu possibilidades para que seu trabalho fosse Foucault (apud HALL, 2000, p.42), o qual
redescoberto e reinterpretado. Muitos afirmava que:
Para retomar Freud e intérpretes das obras de Marx leram essa
de sua teoria, veja em O poder disciplinar está preocupado, em
seu caderno didático afirmação como sendo equivocada, visto que
primeiro lugar, com a regulação, a vigilância é
da disciplina de os indivíduos não poderiam, de nenhuma o governo da espécie humana ou de
Psicologia da Educação
populações inteiras e, em segundo lugar do
I e os artigos presentes forma, ser os "autores" ou agentes da história,
no seguinte endereço indivíduo e do corpo. Seus locais são aquelas
eletrônico: sendo que eles somente poderiam agir com novas instituições que se desenvolveram ao
http://www.psiqweb. longo do século XIX e que 'policiam' e
med.br/persona/
base nas condições históricas criadas por outros,
disciplinam as populações modernas -
freud.html utilizando-se de recursos materiais e de cultura oficinas, quartéis, escolas, prisões, hospitais,
que lhes foram fornecidos pelas gerações clínicas e assim por diante.

anteriores.
44
UNIDADE C

Nesse sentido, para Foucault, esse objetivo mudanças conceituais é justamente os efeitos
se detém em manter a vida, as atividades, o do deslocamento de um sujeito centrado, visto
trabalho e o lazer do indivíduo sob uma como possuidor de uma identidade fixa e
disciplina. estável, portanto, o SUJEITO ILUMINISMO, para
O quinto descentramento abordado por Hall um sujeito descentrado, constituído de

Vinícius de Sá Menezes
(2000) se estrutura no impacto provocado pelo identidades abertas, contraditórias, inacabadas,
feminismo como uma crítica social. Esse fragmentadas: o SUJEITO PÓS-MODERNO.
movimento teve uma abrangência ampla no que A explicitação dessas cinco formas de Michel Foucault,
filósofo francês, nascido
se refere ao público e ao privado, construiu uma descentramentos do pensamento moderno em 1926, em Poitiers,
ampla contestação política, politizou a adquire aqui certa importância, pois possibilitará França. Segundo
estudioso de sua obra,
subjetividade, a identidade como um processo uma deslocalização das identidades e uma Foucault "foi aquele
que melhor nos
de identificação e também questionou a noção leitura crítica acerca das chamadas políticas mostrou como as
práticas e os saberes
de que homens e mulheres eram parte da multiculturais, além de sua relação na produção
vêm funcionando, nos
mesma identidade. das identidades das pessoas com necessidades últimos quatro séculos,
para fabricar a
O que pretendemos mostrar com essas educacionais especiais. Modernidade e os
assim chamados
sujeitos modernos"
(Veiga-Neto, 2003,
p.17).

45
CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

2 Constituição do
Sujeito Multicultural
A prática do multiculturalismo em muitos Para tanto, é necessário que tenhamos a
contextos mundiais vem se tornando compreensão de que com o que foi tratado
simplesmente uma questão de atitude ou, num anteriormente, falar de multiculturalismo
âmbito mais acadêmico, um enfrentamento de significa trazer para a discussão diferentes
discursos, com o objetivo de desviar a atenção noções de multiculturalismo, ou seja, os
das injustiças sociais, das práticas hegemônicas, diferentes tons e nuances que esse conceito
que configuram o mapa social dos países da assume ao ser proclamado, defendido e
América do Norte. anunciado. Nesse sentido, apresentamos, a
Não é nesse contexto nem nesse sentido partir de MacLaren (1997), cinco formas de
que gostaríamos de abordar a questão do multiculturalismo:
multiculturalismo na educação das pessoas com
necessidades educacionais especiais; pelo 1) Multiculturalismo Conservador
contrário, a preocupação desta discussão é - Insiste na assimilação das diferenças às
abordar a questão da educação multicultural tradições e costumes da maioria. Estão muito
como uma diferença política, e não apenas próximos do legado colonialista da supremacia
como diferenças lingüísticas físicas, sensoriais, branca.
entre outras. Estamos diante de processos - Recusa-se a tratar a branquidade como uma
culturais de caráter ambíguo e é nesse contexto forma de etnicidade, ou seja, situa a
que devemos analisar as conexões entre branquidade como uma norma invisível.
educação e multiculturalismo. - É monoidiomático. A única língua possível
é a língua do grupo dominante, portanto oposto
a programas educacionais bilíngües.
O chamado multiculturalismo é um
- O conhecimento elitizado não é questi-
fenômeno que, claramente, tem sua
origem nos países dominantes do norte. onado. O pré-requisito para "juntar-se à turma"
Por um lado, o multiculturalismo é um
do multiculturalismo conservador é desnudar-
movimento legítimo de reivindicação dos
grupos culturais dominados no interior se, desracializar-se e despir-se de sua própria
daqueles países para terem suas formas cultura.
culturais reconhecidas e representadas na
cultura nacional. O multiculturalismo pode
ser visto, entretanto, também como uma 2) Multiculturalismo Liberal
solução para os "problemas" que a
presença de grupos raciais e étnicos
- Busca integrar os diferentes grupos
coloca, no interior daqueles países para a culturais, o mais rápido possível, à sociedade
cultura nacional dominante (SILVA, 1999,
majoritária. Baseado em uma cidadania
p.85).
individual universal, tolerando certas práticas
46
UNIDADE C

culturais particularistas apenas no domínio é sempre um produto da história, da cultura,


privado. do poder e da ideologia.
- Humanismo etnocêntrico e opressivamen- Silva (2000) coloca que essa perspectiva
te universalista, no qual as normas legitimadoras crítica de multiculturalismo está dividida, por
que governam a substância da cidadania são sua vez, entre uma concepção pós-estruturalista
identificadas mais fortemente com as e uma outra concepção que poderia ser
comunidades, com os padrões culturais chamada de materialista. Para esse autor, na
ocidentais. concepção pós-estruturalista, a diferença é
- Essencializa as diferenças culturais, essencialmente um processo lingüístico e
portanto, ignoram a construção histórica e discursivo, ela não é uma característica natural Para um
aprofundamento sobre
cultural da diferença. Assume-se, com e, além disso, é sempre uma relação, ou seja,
as diferentes formas de
freqüência, que exista uma "fêmea" autêntica não se pode ser diferente de forma absoluta. multiculturalismo,
recomendamos a
ou uma experiência ou uma maneira "afro- No entanto, uma perspectiva materialista, leitura de MACLAREN,
Peter.
americana", "latina" de estar no mundo. As inspirada no marxismo, enfatiza "os processos Multiculturalismo
diferenças culturais seriam apenas a institucionais, econômicos, estruturais que Crítico. São Paulo, Ed.
Cortez, 1997, que está
manifestação superficial de características estariam na base da produção dos processos disponível no acervo
da biblioteca de seu
humanas mais profundas. de discriminação e desigualdade, baseados na pólo.
diferença cultural" (ibid. p.87).
3) Multiculturalismo Pluralista De uma forma ou de outra, o multiculturalis-
- Avaliza as diferenças grupais em termos mo não pode ser separado das relações de
culturais e concede direito de grupos distintos poder, pois são essas que, antes de qualquer
a diferentes comunidades, dentro de uma coisa, obrigaram diferentes culturas raciais,
ordem política comunitária ou mais comunal. étnicas e nacionais a viverem no mesmo
espaço. Segundo Silva (1999, p.85),
4) Multiculturalismo Corporativo
(...) a atração que movimenta os enormes
- Busca administrar as diferenças culturais
fluxos imigratórios em direção aos países ricos
da minoria, visando aos interesses do centro. não pode ser separada das relações de
exploração que são responsáveis pelos
profundos desníveis entre as nações do
5) Multiculturalismo Crítico ou Revolucio- mundo.
nário
- Enfoca o poder, o privilégio, a hierarquia Não podemos perder de vista que é
das opressões e os movimentos de resistência. justamente esse caráter ambíguo do
- Enfatiza o papel que a língua e a multiculturalismo que permite representá-lo
representação desempenham na construção de como uma importante ferramenta de luta
significado e identidade. política, pois ele permite trazer para o campo
- Recusa-se a ver a cultura como não- político as questões culturais que estavam
conflitiva, harmoniosa e consensual. associadas, durante muito tempo, ao campo da
- Atenta-se à noção de diferença. Diferença Antropologia.
47
CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

Tiago da Silva Krening

Figura C.3: Retrato da desigualdade entre alguns países, exemplo, pobreza, recursos tecnológicos, etc...

Diante desse emaranhado de formas de Burbules e Rice (1993) apontam para a


representar o multiculturalismo, cabe questionar noção de diferença, interpretada por Derrida.
quais as implicações que essas diferentes Segundo os autores, Derrida trabalhou com o
representações provocam no terreno das termo différance para indicar uma espécie
identidades. A possibilidade de trabalhar com diferente de diferença:
as idéias do multiculturalismo crítico nos
A différance é uma estrutura e um movimen-
permite optar pelo caminho em que as
to não mais concebidos na base da oposição
identidades dos sujeitos com necessidades presença/ausência. A différance é o jogo
especiais são produzidas, a partir do conceito sistemático da diferença, dos traços de
diferença, do espaçamento por meio do qual
de diferença e não de deficiência. Aqui implica os elementos são relacionados entre si
distanciarmo-nos do conceito de diferença (apud BURBULES E RICE, 1993, p.182).

como exclusão, marginalização daqueles que


são considerados como "outros", daqueles que Tentando interpretar esse conceito, sob o
parecem estar "fora do lugar". No entanto, domínio das teorias sociais e relacioná-lo com
devemos considerar que a diferença vem sendo o campo da Educação Especial, podemos
interpretada historicamente através do discurso entender, por exemplo, que surdez, enquanto
da diversidade, da variedade e também da uma diferença, nega a atribuição puramente
deficiência. externa de ser surdo a alguma característica
48
UNIDADE C

marcante, o fato de não ouvir. Neste contexto, reproduzidas através de relações de poder.
a diferença não é entendida como oposição: Segundo Silva (1999, p.88),
diferenças são sempre diferenças, que se
As diferenças não devem ser simplesmente
constituem num processo ativo de identificação
respeitadas e "toleradas", elas devem ser
e produção de subjetividades. colocadas permanentemente em questão.
O conceito de diferença, abordado pelo Uma educação preocupada com uma política
da diferença não se limitaria a ensinar
multiculturalismo crítico, aproxima-se das idéias somente a tolerância e o respeito, por mais
anteriormente expostas, compreendendo-a nobre que sejam esses sentimentos, mas
insistiria, em vez disso, "numa análise dos
como uma política de significação. Assim, o processos pelos quais as diferenças são
multiculturalismo crítico distancia-se de outros produzidas através de relações de assimetria
e desigualdade".
multiculturalismos (conservador, o humanista
liberal, liberal de esquerda) que vêem a
diferença, como uma "obviedade cultural", uma Portanto, a escola e o currículo não devem
"marca de pluralidade". O olhar dedicado às ficar alheios à discussão multicultural. É nesse
diferenças por essas formas de contexto que se pode observar que a diferença
multiculturalismos as vê enquanto falhas e e a diversidade são vistas como sinônimas,
trabalham com o intuito de selar as lacunas da fazendo parte de um mesmo campo conceitual.
diferença. Isso somente é possível porque a Porém, essa forma simplista de ver as
diferença, nesses contextos multiculturais, é diferenças dentro da escola mascara outros
tratada como essência que existe independente interesses, que adotam o termo da diversidade
da história, da cultura e do poder. para encobrir a ideologia da assimilação. Nessa
Não interpretar as diferenças como visão, fala-se de um pluralismo cultural,
oposições significa entendê-las a partir do referindo-se a um consenso cultural e
conceito de Ebert "a diferença não é uma normativo.
obviedade cultural, tal como: negro versus Entendendo a diversidade "como condição
branco ou latino versus europeu ou anglo- de existência", fica útil e fácil reconhecê-la.
americano; em vez disso, as diferenças são No entanto, o que os grupos culturalmente
construções históricas" (apud MACLAREN, 1997, diferentes esperam dessa questão é
p.79). Portanto, ser cego não é oposto de ser obscurecido, tornando-se alvo fácil de
vidente, não é nessa lógica binária que estratégias conservadoras, como é o caso de
discutimos uma educação multicultural para as se eleger um conteúdo curricular em nome de
pessoas com necessidades educacionais uma política cultural nacional, desligitimando e
especiais. excluindo valores de outros grupos sociais.
Do ponto de vista mais crítico, as diferenças
estão sendo constantemente produzidas e

49
CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

Marcus de Moura

Figura C.4: Indígenas, sendo expostos massivamente a cultura ocidental

Numa atmosfera de educação multicultural, um currículo multicultural na escola não pode


é preciso resgatar em nível de política ficar externa às relações de poder existentes
educacional as culturas negadas e silenciadas entre as diferentes culturas que compõem o
no espaço escolar, não apenas fazendo cenário educativo, como também não pode ser
referência a elas enquanto culturas isoladas, em concebido como uma simples convivência entre
determinados momentos e datas específicas, essas culturas, pois, a partir de uma perspectiva
constituindo um currículo reduzido a multiculturalista crítica, "não existe nenhuma
determinadas lições e unidades didáticas, ou posição transcendental, privilegiada, a partir da
como chama Santomé (1995), "currículos qual se possam definir certos valores ou
turísticos", mas questionando as relações de instituições como universais. Essa posição é
poder envolvidas na produção da identidade e sempre enunciativa, isto é, ela depende da
da diferença culturais. posição de poder de quem afirma, de quem a
Portanto, a possibilidade de construção de anuncia" (SILVA, 1999, p.90).
50
UNIDADE C

A idéia de pensar uma educação


multicultural deve ser uma luta política não só
dos grupos culturalmente diferentes, mas ela Eleja um texto (jornal, revista, livro, letra
tem que estar na agenda das políticas públicas de música, texto curricular) que aborde
educacionais, propondo novas diretrizes, algum tema cultural e faça uma análise a
principalmente para o ensino dos grupos étnicos partir das cinco formas de multiculturalismo
e dos PNE's, trazendo importantes reformula- citadas no texto por McLaren (1997). Tente
ções de currículos e ambientes escolares, identificar nesse texto quais as formas de
articulando cultura e identidade, formação de multiculturalismo que ele expressa. Essa
professores e diferença. Uma política atividade deverá ser disponibilizada no
multicultural nos faz lembrar que a obtenção ambiente virtual conforme as orientações
da igualdade depende de uma modificação do professor.
substancial do currículo existente, para isso é
preciso, principalmente, refletir acerca das
formas pelas quais a diferença é produzida por
relações sociais de assimetria.

51
CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

3 Língua, Cultura e Identidade:


produção social da diferença
À medida que analisamos a questão das ou alemães ou ingleses. No entanto, com isso
identidades culturais, torna-se imprescindível não queremos dizer que nascemos com essa
refletirmos acerca da identidade nacional, essência, não estamos afirmando que as
talvez, convenha perguntarmos: como as identidades nacionais estão biologicamente
identidades nacionais vêm sendo afetadas pelos inseridas nos sujeitos, elas são formadas e
processos de globalização e, por sua vez, pelos transformadas no interior de nossas
deslocamentos culturais? representações. Nesse sentido, quando
Podemos perceber que nas sociedades mencionamos ser brasileiros, sabemos o que
modernas as culturas nacionais se constituem isso significa pela forma como a "brasileiridade"
em um dos principais elementos de é representada, ou melhor, pelo conjunto de
identificação, pois quando nos definimos, significados atribuídos à cultura nacional
automaticamente fazemos uma ligação com brasileira.
nossa nacionalidade, ou seja, somos brasileiros
Orlando Fonseca Júnior

Figura C.5: Elementos que reportam à cultura brasileira


52
UNIDADE C

Nessa perspectiva, Schwartz (apud HALL, Com efeito, é relevante destacar que
2000, p.49) analisa que: podemos perceber diferenças culturais
significativas entre as nações, entretanto essas
As pessoas não são apenas cidadãos/ãs diferenças se constituem na forma pela qual
legais de uma nação; elas participam da idéia
da nação tal como representada em sua essas nações são pensadas ou imaginadas. Para
cultura nacional. Uma nação é uma Powel, "a vida das nações, da mesma forma
comunidade simbólica e é isso que explica
que a dos homens, é vivida, em grande parte,
seu poder para gerar um sentimento de
identidade e lealdade. na imaginação" (apud HALL, 2000, p. 51).
Para entender como a identidade nacional
Historicamente, nas sociedades mais funciona, como um sistema de representação
primitivas, o aspecto da lealdade e da requer que aprofundemos a idéia de como é
identificação nacional era atribuído a grupos contada a narrativa da cultura nacional, são
minoritários como tribos, religiões e regiões necessários alguns elementos, apontados por
caracterizadas por uma colonização, porém na Hall (2000), que nos ajudarão a tecer essa
atualidade esses aspectos encontram-se história.
vinculados às culturas nacionais. Para Hall Um dos elementos diz respeito à questão
(2000, p.49), da narrativa da nação, ou seja, a forma pela
qual ela [a nação] é contada e recontada nas
a formação de uma cultura nacional contribui
histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e
para criar padrões de alfabetização universais,
generalizou uma única língua vernacular na cultura popular. Essa perspectiva se Segundo o dicionário
como meio dominante de comunicação em "Novo Aurélio do
fundamenta na maneira pela qual as
toda nação, criou uma cultura homogênea e século XXI", Vernácula
manteve instituições culturais nacionais, experiências, as lutas, as perdas, os fatos significa linguagem
genuína, correta, pura,
como, por exemplo, um sistema educacional históricos, os símbolos e os rituais dão sentido isenta de estrangeiris-
nacional . mos. Como adjetivo,
à história da nação e, simultaneamente, à significa algo próprio da
existência dos sujeitos que a ela pertencem. região a que está,
próprio do país,
Considerando as afirmações feitas, verifica- Outro ponto a ser destacado é o fato de nacional (1999).

se que as culturas nacionais são compostas de que "há a ênfase nas origens, na continuidade,
símbolos, representações e instituições cultu- na tradição e na intemporalidade" (HALL, 2000,
rais. Assim, como estudamos em unidades ante- p.58). Nesse aspecto, o autor afirma que a
riores, a linguagem tem uma relação complexa identidade nacional é representada como
com a sociedade, pois ela constitui o ser huma- primordial, isto é, a essência do caráter social é
no e o auxilia no seu convívio interpessoal, imutável, com uma existência e significação
contribui com a cultura nacional, que nada mais inflexível. Ela, a identidade nacional, está lá,
é do que um discurso veiculado pela linguagem. desde o nascimento, resistindo a todas as
Dessa forma, Hall ressalta que "as culturas mudanças, é eterna.
nacionais, ao produzir sentidos sobre a 'nação', Ele aponta para a questão de que a
sentidos com os quais podemos nos identificar, identidade nacional, muitas vezes, está baseada
constroem identidades" (2000, p.51). na idéia de um povo. Nesse sentido,
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CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

percebemos que os discursos que abordam a entendidas a partir dos processos de


questão da identidade nacional não é novo, significação, da mesma forma que ocorre com
pelo contrário, "ele constrói identidades que as identidades, ou seja, tanto as identidades
são colocadas de modo ambíguo, entre o quanto as diferenças não são produzidas
passado e o futuro" (ibid., p.61). Cabe aqui, naturalmente, mas nas relações sociais diárias.
problematizarmos o conjunto das relações de Se analisarmos, por exemplo, a identidade surda
poder que teimam em unificar ou colocar sob e se partirmos da representação da surdez como
véu da igualdade, talvez em nome de uma diferença, temos o resgate da diferença
cultura nacional, sujeitos que de uma forma ou caracterizada por um processo de diferenciação,
de outra escapam das identidades o qual constitui a base da produção das
hegemônicas, sujeitos que, muitas vezes, particularidades de uma cultura. Segundo
sentem-se aprisionados numa identidade Rangel e Stumpf (2004, p.87),
cultural, simplesmente por serem
A ressignificação da surdez, como
representados como pertencentes à mesma e
representação de uma diferença cultural,
à grande família nacional. Muitas vezes, em possibilita ao sujeito o sentimento profundo
nome desse sentimento de pertencimento de pertencimento e o leva a inserir-se no
social, fazendo parte de um grupo
"nacional", vislumbramos estratégias de naturalmente definido de pessoas, de
normalização, fixação e unificação de práticas e instituições sociais.

identidades e diferenças.
Nesse sentido, no momento em que nos Diante dessa perspectiva, cabe resgatarmos
debruçamos a discutir os deslocamentos das a questão da identidade com o poder, sendo
identidades nacionais, é importante levar em que ela se estabelece através de relações de
consideração a forma pela qual as culturas poder. No caso da comunidade surda, é
nacionais contribuem para "costurar" as perceptível seu interesse no respeito as suas
diferenças numa única identidade. Para tanto, diferenças, às singularidades como é o caso,
não podemos perder de vista que ambas, por exemplo, da centralidade da Língua de Sinais
identidade e diferença, se produzem nos na educação dessas pessoas, do respeito aos
discursos que são narrados nas relações de aspectos históricos que permeiam a cultura das
poder. Isso significa que as identidades comunidades surdas, e, principalmente, do
compostas no grupo são negociadas entre seus respeito a sua identidade, passando a ser vista
componentes e a experiência que cada um socialmente como uma identidade diferente e
possui. Esse conjunto de elementos culturais não deficiente.
constitui as identidades e, como nos coloca Quando nos reportamos ao estudo das
Perlin (1998, p.21), "a constituição da questões que norteiam também aspectos
identidade dependerá, entre outras coisas, de culturais referentes a determinados grupos
como o sujeito é interpelado pelo meio em sociais, verificamos a fragmentação dos
que vive". discursos da cultura moderna. Assim, no interior
Nesse contexto, as diferenças precisam ser de cada grupo cultural ocorre uma tensão de
54
UNIDADE C

sobrevivência cultural, do direito de ser que a norma igualiza, ou seja, ela permite que
diferente. Esses aspectos são amplamente cada indivíduo seja comparável a outro, e assim,
perceptíveis, no que se refere aos surdos, ela fornece uma medida comum.
paralisados cerebrais, homossexuais, e outros As noções de "anormais", "deficientes",
grupos que lutam para conquistar seu espaço "portadores de necessidades educativas
social e cultural. No entanto, não podemos especiais" não são entidades, não são em si ou
deixar de continuar problematizando a ontologicamente isso ou aquilo, tampouco são
normalização das identidades e das diferenças. aquilo que poderíamos chamar de desvios
É visível o quanto a sociedade de naturais a partir de uma essência normal; são
normalização prima pelo belo, pelo perfeito e identidades construídas nos jogos de linguagem
imprime, junto aos sujeitos, um ideal de beleza, e de poder e assumem os significados que elas
de cor, de religião, portanto um ideal de têm.
normalidade. Será a diferença de cor um Assim, pode-se afirmar que o ouvinte, tal
contribuinte para a classificação dos sujeitos como o surdo, o cego, tal como o vidente
como aptos a desempenhar tarefas de encontram-se na norma, mesmo distinguindo-
significativa importância? Por que os se uns dos outros e opondo-se entre si. A norma
homossexuais devem ser vistos como é voraz, capta tudo, não há meio de fugir dela,
transmissores de doenças? Qual a diferença em ela opera sem exclusão. Sujeitos à norma, os
usar a língua oral e a Língua de Sinais? surdos já não se opõem por suas qualidades,
Nessa perspectiva, é relevante analisarmos mas por diferenças no interior da qualidade,
a questão da norma como um dispositivo que ou seja, o ouvinte e o surdo não designam
regula, classifica e disciplina os sujeitos. diferença de natureza, mas somente diferenças
Portanto, para a norma, "cada indivíduo torna- de graus numa escala de audição.
se um caso", porque, à medida que ele é Desse modo, sob o saber da norma, "nada,
descrito, mensurado e comparado a outros e a nem ninguém, seja qual for a diferença que
si, em sua própria individualidade, ele é passível ostente, pode alguma vez pretender-se exterior,
de ser classificado, treinado, recuperado e reivindicar uma alteridade tal que o torne um
normalizado. outro" (EWALD, 2000, p. 87). O que acontece
Pensar no surdo, no cego, no homossexual, é que, ao retirar da exterioridade os surdos, os
no índio, como um caso da norma, é vê-los cegos, os deficientes mentais, através do
num processo de individualidade que, ao exercício constante da descrição, da
mesmo tempo em que os individualiza, torna- classificação, do diagnóstico - para normalizá-
os comparáveis; portanto, ao classificar, no caso los e discipliná-los -, a norma também enquadra-
da surdez, os indivíduos surdos como portadores os a uma distância que não lhes permite
de surdez "leve", "moderada", "profunda", dá- aproximar-se do normal, ou seja, do centro da
se uma visibilidade aos desvios e às diferenças norma. Assim, "ao fazer de um desconhecido
que os distinguem entre si e em comparação um conhecido anormal, a norma faz desse
com os outros. Nesse processo, podemos dizer anormal mais um caso seu" (VEIGA-NETO,
55
CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

2001, p. 08).
Segundo Davis (apud SILVA, 1997, p. 08), a
noção de norma e de normalidade é uma A partir da idéia de que as identidades e as
invenção relativamente recente. Embora, como diferenças são produzidas pelos discursos
diz o autor, a tendência a fazer comparações e pelas representações, realize uma
seja muito antiga, ele localiza a gênese da idéia entrevista (que poderá ser por e-mail ou
de norma e de normalidade nos séculos XVIII e presencial) com duas pessoas: uma que
XIX, em conexão com o processo de apresente alguma diferença (de cor, de
industrialização e de transformação capitalista. opção sexual, sensorial - surda, cega - ou
Desenvolveu-se aí, associado a noções sobre física, analfabeta,..) e outra que
nacionalidade, raça, gênero, criminalidade, corresponda aos padrões de normalidade
orientação sexual, um conjunto de práticas e da sociedade, a fim de analisar que formas
discursos centrados ao redor da noção de norma de representações circulam nesses
e de normalidade. discursos. Para realizar essa atividade, será
O conceito de norma aparece ligado ao disponibilizada pelo professor da disciplina,
conceito de "média", o que a distingue da noção no ambiente virtual, uma pauta de
de regra, ou seja, norma e regra já não são mais entrevista para que você consiga elementos
sinônimos, a referência da norma já não é mais discursivos necessários para fazer uma
o esquadro, idéia de retidão - "aquilo que não análise dessas representações.
se inclina nem para a esquerda nem para a
direita, portanto o que se conserva num justo
meio termo" (CANGUILHEM, 2000, p. 95) - Identidade e Cultura na
mas a média. Trata-se de um princípio Sociedade Moderna
estatístico que vai "designar os tipos de regras", Entendendo a sociedade moderna como uma
uma medida que serve para "apreciar o que sociedade de normalização, na qual o
está conforme a regra" (ibid.). Sob esse saber, imperativo da norma estabelece os padrões de
a norma assume um caráter de valorização, aceitação e inclusão social, como pensar as
toma seu lugar no jogo das comparações, da questões da diferença? Será que o "direito a
oposição entre normal e anormal. Portanto, o ser diferente", na atual retórica, distancia-se
normal pode ser entendido como aquele que tanto daquela outra retórica que advogava em
está na média, que se encontra na maior parte favor de uma estratégia de "assimilação da
dos casos de uma espécie determinada. diferença"? Será que poderíamos afirmar que

56
UNIDADE C

o discurso da diversidade, que instiga, no necessidades educacionais especiais. Num


"princípio da eqüidade", o reconhecimento da primeiro plano e numa análise mais rápida,
diferença, está tão longe daquele que pretende parece não haver nenhum dilema, tampouco
transformar a diferença em semelhança, através ambigüidades nos discursos da igualdade,
do anuviamento das diferenças culturais e tolerância e solidariedade. Mas será que essas
lingüísticas de grupos culturalmente distintos? definições tão precisas não mereciam um outro
Para o entendimento dessa problematização, olhar, ou uma (re) volta desse olhar? Os apelos
convém assinalar, nesse momento, a distinção ao respeito às diferenças e às diversidades dos
entre os termos "diferença" e "diversidade". sujeitos, como atributos que marcam aquilo que
Recorremos, num primeiro momento, a um dos "distingue uma coisa da outra", como uma
instrumentos fundamentais, quando se trata de característica daquilo que está em "desacordo",
entender palavras, o dicionário. em "contradição", não estariam novamente
marcando os cânones da normalidade? Ou seja,
marcando o que deva ser corrente, habitual,
Segundo o dicionário Houaiss (2001), correto e normal em cada um de nós?
"diferença" significa "qualidade do que é É possível que sim, pois, novamente, o que
diferente; o que distingue uma coisa de se vislumbra nessa sinonímia diferença/
outra; falta de igualdade ou de semelhança; diversidade nada mais é do que o
característica do que é vário"; e estabelecimento de uma medida comum, de
"diversidade" é a "qualidade daquilo que é um padrão de comparabilidade que permite
diverso, diferente, variado; variedade; continuar traçando a fronteira entre situações
conjunto variado; multiplicidade; desacordo, designadas como normais e anormais, mas
contradição, oposição". talvez agora por uma estratégia mais astuta, mais
refinada - a do deslocamento constante dessa
fronteira. Em outras palavras, não basta
Analisando essas primeiras noções, parece simplesmente anular ou excluir o anormal, o
haver um consenso entre "diferença" e que é preciso é tornar visíveis as linhas de
"diversidade", ambas fazem parte de um fronteira que fazem com que esses sujeitos
mecanismo comum que coloca na mesma rede deslizem pelos limiares entre a anormalidade
discursiva seus significados, ou seja, "diferença e a normalidade, pois, clareando-as, fica mais
e diversidade permitem-nos distinguir o outro fácil capturá-los e, assim, corrigi-los. É
do um, o outro do mesmo. Quer dizer que o justamente o ato de "obscurecer e eclipsar as
diferente ou diverso é o contrário do idêntico" linhas fronteiras" que faz com que algumas
(FERRE, 2001, p. 195). pessoas se tornem, perante a norma, um
Percebemos que esse consenso é chave problema. Portanto, dependendo da situação e
para entender o quanto esses dois termos do momento, algumas fronteiras devem ser
aparecem como sinônimos nas atuais discussões vistas mais que outras (BAUMAN, 1998).
acerca da educação das pessoas com
57
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Vinícius de Sá Menezes

Figura C.6: A alteridade se constitui como um problema

Para o autor citado no parágrafo anterior, a esses demais que são caracterizados pelo
perturbação causada pela presença do outro espelhismo da normalidade. Para buscar a
tem procurado, sob o anseio moderno da ordem e manter a tranqüilidade dos demais, é
constituição da ordem, um espaço onde esse preciso continuar demarcando as linhas divisó-
diferente possa ser marcado e, ao mesmo rias e as balizas entre nós - os normais, os
tempo, corrigido, até porque, na ordem capacitados, os iguais - e eles - os anormais, os
harmoniosa e relacional, não há espaço para diferentes, os descapacitados. No entanto, essa
aqueles que constrangem e alteram a demarcação de território vê-se travestida sob o
serenidade e a tranqüilidade dos demais, para slogan da igualdade, da homogeneidade e da
58
UNIDADE C

tolerância, em especial por esta última, que nos Se viver a experiência do outro, a
convida a aceitar e conviver com a diferença. deficiência do outro, significa aprender a
Nesse contexto, somos todos convidados a perceber, conviver e tolerar esse outro, também
"neutralizar o poder letal das fronteiras" e co- pode significar ser indiferente e intolerante
meçar a nos sentir "sempre do outro lado", colo- frente ao outro. Literalmente falando, tolerar
cando-nos "sempre do lado da outra parte" significa "suportar com indulgência; aceitar,
(ibid). demonstrar capacidade de supor tar, de
A possibilidade de viver a "deficiência do assimilar" (HOUAISS, 2001). Portanto, tolerante
outro" é abordada nesses materiais e nesses é aquele que suporta alguém, que é capaz de
tipos de exercícios como uma forma de amaciar admitir, nos outros, maneiras de pensar, de agir
os possíveis atos de rejeição e discriminação e de sentir diferentes ou mesmo
para com o deficiente, visto que esses atos, na diametralmente opostas às suas. No entanto, a
sua maioria, são entendidos como sentimentos ação de tolerar coloca o tolerante numa posição
que constituem "distúrbios psicológicos". simétrica de poder, ou seja, permite que ele
Portanto, nessa estratégia didático-pedagógica demarque uma separação que não significa
rearfirma-se uma espécie de terapêutica que simplesmente uma distância, mas uma
consiste em "tratar psicologicamente essas diferença nas relações de poder. Aquele que
atitudes inadequadas". Isso significa que "a suporta, que tolera o outro é o mesmo que o
pedagogia e o currículo deveriam proporcionar hospeda, que o recebe; portanto é aquele que
atividades, exercícios e processos de pode depreciá-lo, julgá-lo, aceitá-lo ou não.
conscientização que permitissem que as Pensar em uma pedagogia que trate das
estudantes e os estudantes mudassem suas questões do outro significa ir além das
atitudes" (SILVA, 2000, p. 98). benevolentes e solidárias ações de boa vontade
No entanto, esse autor alerta para o quanto voltadas para a diferença, que somente
essas estratégias se resumem em simplesmente enaltecem e reconhecem o outro. É preciso,
apresentar para os estudantes formas em primeiro lugar, perceber que a noção
superficiais e distantes das diferentes culturas, "diferença" não substitui, simplesmente, a de
tornando o outro um dado exótico e curioso diversidade, ou de pluralidade, e muito menos
do currículo. Como já nos referimos a de deficiência ou de necessidades especiais;
anteriormente, essas estratégias não também não ocupa o mesmo espaço discursivo.
questionam as relações de poder que estão Segundo Skliar (1999), a possibilidade de
implicadas na produção das diferenças e das entendimento da noção de diferença poderia
identidades culturais. É, nesse sentido, que a estar inscrita em algumas marcas:
apresentação do outro, do deficiente, nessas As diferenças não são uma obviedade cultural
nem uma marca de "pluralidade"; as
atividades de simulação, "é sempre
diferenças se constroem histórica, social e
suficientemente distante, tanto no espaço politicamente; não podem caracterizar-se
como totalidades fixas, essenciais e
quanto no tempo, para não apresentar nenhum
inalteráveis; as diferenças são sempre
risco de confronto e dissonância" (ibidem). diferenças; não devem ser entendidas como
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um estado não-desejável, impróprio, de algo


desloca - portanto, que gera sempre novos alvos
que cedo ou tarde voltará à normalidade; as
diferenças dentro de uma cultura devem ser e, por isso, torna-se "indistinguível da
definidas como diferenças políticas - e não proclamação de sempre novas anormalidades,
simplesmente como diferenças formais,
textuais ou lingüísticas; as diferenças, ainda traçando sempre novas linhas divisórias,
que vistas como totalidades ou colocadas identificando e separando sempre novos
em relação com outras diferenças, não são
facilmente permeáveis nem perdem de vista estranhos" (BAUMANN, 1998, p. 20).
suas próprias fronteiras; a existência de
diferenças existe independentemente da
autorização, da aceitação, do respeito ou da
permissão outorgado da normalidade (p. 22).

Ao estabelecerem-se essas marcas, Durante esta disciplina, trouxemos para a


podemos distinguir o quanto algumas políticas discussão alguns pontos centrais, entre eles
voltadas para a educação dos sujeitos com destacamos:
necessidades educacionais especiais se afastam a) A noção que língua e linguagem não
da noção de diferença como algo que é significam a mesma coisa e que as línguas
múltiplo, que está em ação, que produz, que são plurais, heterogêneas e variadas.
se dissemina e prolifera, e que se recusa a b) A idéia de que cultura não é somente o
fundir-se com o idêntico para aproximar-se modo de vida de uma sociedade ou a
daquela idéia do diverso, do estático, do dado, experiência vivida de qualquer agrupamento
daquilo que reafirma o idêntico no apagamento humano, ela é um campo de luta em torno
das diferenças. da significação do social.
No território da norma, não há espaço para c) A problematização de que identidade e
o selvagem, para aquele ou aquilo que não diferença são processos inseparáveis e que
conhecemos, para o que fica na exterioridade. são produzidas por nós nos contexto das
Os saberes que se instituem com a relações culturais e sociais.
modernidade, estabelecem-se nessa busca do A partir da conjunção desses três prontos,
exterior para colocar tudo na ordem, onde cada produza um texto de até três laudas,
coisa ocupa seu justo lugar. relacionando-o com elementos vivenciados
Na sociedade moderna e, então, normativa, no cotidiano de nossas relações.
tudo o que é externo, tudo o que está fora do Disponibilize o texto no ambiente virtual,
lugar incomoda, daí a necessidade constante conforme orientações do professor da
de estar ordenando e normalizando. No entanto, disciplina.
trata-se de um modelo de ordem que se

60
REFERÊNCIAS

Referências
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REFERÊNCIAS

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CURSO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL | UFSM

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