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Linguística

Literatlu:ta-
Estudos Clássicos
=R'EVISTA

===PORTIJGUESA
DE
"=#ilUIVIANIDADE

Vol. I
Ano 2004

UNTVERSIDADE CATOLICA PORTUGUESA


FACULDADE DE FILOSOFIADE BRAGA
REVISTA PORTUESA DE HUMANIDADES
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A poesia de Fiama Hasse Pais Brandão
- um modo de tratar a realidade por tu

JoÃo AMADEU OLIVEIRA CARVALHO DA SÌLVA


Universidade Católica Portuguesa - Braga

O percurso poético de Fiama Hasse Pais Brandão, iniciado em 1957


com o livro de poemas Em ca.da Pedra Um Voo Imóuel, assume uma visibili-
dade marcante a partir da década de sessenta, com a Poesia 61. Desde a
publicação do volume conjunto com aquele nome, no qual colaborou com
Luiza Neto Jorge, Maria Teresa Horta, Casimiro de Brito e Gastão Cruz,
Fiama inicia um percurso que se distingue inicialmente de outros dois
poetas que irão marcar também as décadas seguintes: são eles Ruy Belo e
Herberto Helder. Estes apresentam percursos distintos entre si, embora se
possam encontrar alguns elementos que os aproximam como, por exemplo,
a poesia de longo fôlego. Será, no entanto, esta característica expansiva em
termos do discurso que avizinha estes dois poetas e os distingue daqueles
que participaram na Poesía.61, embora posteriormente, entre eles, Fiama
Hasse Pais Brandão se venha a aproximar daquela discursividade, numa
identificação com uma certa leveza discursiva, onde a memória, a aborda-
gem de temas do amor e da morte e o quotidiano se combinam e convivem,
aliás, no seguimento de alguns traços poéticos da poesia de Ruy Belo (cf.
Amaral, l99I:49).
A Poesía 6l desliga-se de uma relação mimética da arte e de uma
perspectiva subjectiva e emotiva, indo no sentido da valorização da própria
palavra, enquanto entidade autónoma. Nesse alinhamento, podemos
encontrar muitos textos poéticos que se debruçam sobre o próprio tema da
poesia e das palavras (cf. Crwz, 1973: l7), como afirma Gastão Cruz, o
principal teórico do grupo. Na sequência de um percurso que teve o seu
início no Surrealismo, encontramos um conjunto de processos que procu-
ram a nexploração das virtualidades da palavra [...] destacando-a progressi-
vamente no discurso ou na página" (id,: 186).

Revista Portuguesa de Humanidades, VIII (2004) 281-313


282 Reuísta Portuguesa de Humanidades

Aproveitando as palavras de Eduardo Prado Coelho, podemos de forma


sucinta entender a encruzilhada de diversas influências, no início da
década de 60.

Estávamos numa época em que procurávamos rejeitar diversas coisas


simultaneamente: o subjectivismo narcísico do movimento que, pelos anos 30,
se concentrara em torno da revista Presença, e de dois dos seus principais
representantes, Régio na poesia, Gaspar Simões na crítica; o verbalismo
ideológico de algum neo-realismo de escola; as reacções tradicionais ou
purificantes da poesia nos anos 50, que aparecia como um retorno a posições
estéticas de cunho idealista. Que resultava desta soma de condenações? Uma
enorme vontade de, com o apoio da linguística emergente e da semiótica
balbuciante, e a coberto de uma teoria que se proclamava rigorosamente mate-
rialista, escrever uma poesia que fosse revolucionária, não pelo significado dos
seus enunciados, mas pela estrutura das suas enunciações. Isto vinha adensar
o papel do significante, que, na sua materialidade linguística, devia aparecer
como lugar de trabalho que punha lado a lado a vanguarda proletária e a
vanguarda poética. O que implicava uma espécie de recusa de tudo o que
aparecia como discursivismo (Coelho, i988: 150).

Neste estudo, para além de valorizarmos o ponto de partida da poesia


de Fiama Hasse Pais Brandão inscrito na Poesia 61, propomos especial-
mente uma leitura abrangente e nesse sentido debruçar-nos-emos sobre
diversos poemas publicados na Obrq. Breue (199 1), reflectindo sobre o modo
como alguns traços que caracterizam os seus primeiros livros evoluem ou
se mantêm à medida que nos aproximamos do último livro de poesia, Cenqs
Vluas (2000).
Fiama adianta alguns passos no sentido da leitura que propomos
(Brandão, 2001: LO9-II2). Assumamos a interessada ajuda da autora,
reconhecendo o modo curioso como explica a evolução da sua actividade
poética, durante a década de 60: de uma única imagem avassaladora fun-
dada quase numa única palavra, passou para a consciência da existência
de um eu lírico e finalmente para a realidade, correspondendo a uma
sequência do substantivo para o nome e deste para o verso. O acto criativo
partiu do seu "eterno léxico: Agua significa ave" (Brandão,200 1: 109), onde
"o conhecimento e a memória eram pontuais" (ib.). Neste primeiro momento,
"da estrutura gramatical emergiam seres verbais [...].Era, pois, uma poé-
tica do substantivo [...] a poética de um léxico" (íb.). No momento seguinte,
"após alguns anos de mundo" (íd; 110), dá-se "a passagem do conheci-
mento substantivo e ôntico de palavras [...] a uma noção, um conceito" (íb.)
A poesia de Fiama -FIasse País Brandao 283

e pela noção e pelo conceito surge o nome: "a palavra água torna aparente a
visão da ave, que só existe agora, pensada e dita, um nome" (lb.). No ter-
ceiro momento, memorizam-se "pequenas cenas e paisagens" (íd': 111) e
dessa forma a autora chega "até ao discurso poético literalmente discursivo,
longo, enunciativo e confessional" (íb.), necessitando, assim, de versos lon-
gos entre 1967 e 1969. As características deste terceiro momento, com ligei-
ras variaeões, podem encontrar-se na sua poesia publicada posteriormente.
Sem pretendermos desenvolver uma abordagem exaì-rstiva dos três
momentos referidos pela poetisa, podemos recorrer ao primeiro poema do
Tivro Morfismos a fim de percebermos o ponto de partida de uma longa obra
literária. Perante esse texto, sentiremos a necessidade de eliminar qualquer
(pré)conceito crítico, entendendo o poema como uma realidade que se funda
no acto da escrita.

Grafia 1

Água significa ave


se

a sÍlaba é uma pedra álgida


sobre o equilÍbrio dos olhos
SC

as palavras são densas de sangue


e despem objectos

se

o tamanho deste vento é um triângulo na água


o tamanho da ave é um rio demorado

onde

as máos dermbam arestas


a palavra principia

(Brandáo, 7991:9)

Os vocábulos deste poema assumem clara autonomia e não se pode


entender o sentido do texto se náo estiverem os elementos que o compõem
estritamente sujeitos e totalmente dependentes do poema. Desprendem-se
as palavras de cargas simbólicas, desenraízam-se de sentidos culturais,
284 Reuista Portuguesa de Humanídades

diluem-se de perspectivas que não sejam aquelas que se criam a partir do


próprio poema: arriscar-nos-íamos a afirmar, embora sabend.o do tom hete-
rodoxo da afirmação, que os códigos semânticos se entendem aqui somente
a partir dos sentidos que se desenvolvem na combinatória flutuante das
palavras. o próprio título focaliza a atençâo sobre a palavra, enquanto gra-
fema, e inibe qualquer tipo de interpretação que exceda os limites do texto.
As palavras purificam-se pela anulação dos sentidos e é forçoso que os
percam, dado que a água só poderá significar ave - repare-se que o verbo se
mantém na área gramatical e náo no espaço metafórico, dado que não
estamos a lidar com nomes, mas com substantivos - mediante diversos
rituais de purificação a fim de principiar a palavra. Não deixa, no entanto,
de ser curiosa a presença neste primeiro poema d.e obra Breue de substan-
tivos associados ao corpo e à natureza (olhos, sangue, mãos; água, ave,
pedra, vento, ave, rio), elementos que vão continuar muito presentes ao
longo de toda a obra de Fiama, embora aqui funcionem mais como subs-
tantivos, objectos gramaticais, elementos irreais, desterrados d.a natureza e
do corpo.
No início da década de 70, Fiama publica o livro (Este) Rosto. Os poe-
mas são agora mais expansivos, situam-se na sequência daquilo que a poe-
tisa denominou por terceiro momento da sua poesia (cf. Brandão,2001:
1i1-112). Nota-se a presença da realidade circundante e o momento do
contacto com a palavra através da imagem, por exemplo, no poema ,,pun-
gente o verde":

A luz ou realidade exerce o seu fascínio:


cinjo-me à linha que de coisas entre coisas parte,
as conduz ao ponto corrosivo da imagem. Sinto-me
atenta, e vibra a minha face já defronte
da foz que da água o curso, doce,
salino liquefaz. Como
as mistura? Quanto dura impreciso
o seu contorno? Onde o corrompem
limos, fios visÍveis?

(Brandão, 1991: 87)

Utilizando este excerto do início do poema, podemos já verificar uma


evolução significativa desde o primeiro poema de Morftsmos. Em "Pungente
o verde", temos bem evidente a acçáo do sujeito lírico feminino, como elo
A poesía de Fiama.FIasse Pais Brandao 2A5

entre a "realidade" e o poema. Com uma linguagem depurada, utilizando


cuidadosamente os elementos que a ofuscam pela intensidade cromática, o
percurso é feito no sentido do poema, da imagem, onde se corrompem os
contornos da realidade pelo excesso de atenção do sujeito lírico.
Purifica-se até à essência, o fascínio surge da expurgação dos elemen-
tos viciados e o que brota é somente a "linha que de coisas entre coisas
parte": O m9ment6 de harmonia e unidade Situa-Se no encontro entre a
"minha face" e a"foz que da água o curso, doce,/salino liquefaz."
No poema "Contraluz no parque de Brockwell" (1987) do livro Entre o
Amago (1983-1987), encontramos uma clara valorizaçáo dos elementos da
natuteza a pOnto da pOetisa afirmar a "essência" das coisas nO meio da
existência. Dos poemas anteriormente citados para este verificamos algu-
mas diferenças significativas: desde logo a concentraçáo no substantivo ou
a purificação da realidade na imagem poética dão lugar a uma reflexão filo-
sófica com claras intersecçÕes platónicas.

Seis corvos altos no céu largo


e as sombras lisas a cair
no enorïne lago. Ando
atrâs das vivas formas
de tal modo, que do puro corvo
e baço lago a essência é
o que vejo na existência a contra-luz
ao olhar todo o desenho das colinas.

(Brandáo, 799I:4571

À semelhança da sombra que se capta nas paredes da caverna na ale-


goria de Platão, na actividade poética as "sombras lisas" representam o ele-
mento propiciador de conhecimento. O plural dos "Seis corvos" transfere-se
e sublima-se nO "puro corvo", no entanto, eSSa essenCialidade não ultra-
passa jamais a realidade, dado que "a essência é/o que vejo na existência",
embora "a contra-lu2". A actívidade poética pressupõe em Fiama Hasse Pais
Brandão uma posição filosófica de inquirição perante a realidade, onde não
é o excesso de conhecimento do que se vê que permite o entendimento
profundo da realidade, o excesso da imagem distrai para o secrÌndário,
distancia da essência. A realidade é captável na sua essencialidade,
enquanto imagem unificada, capaz de comportar a diversidade num espaÇo
286 Reuí,sta Portugue sa. de Humanidade s

de harmonia, tendo o sujeito lírico constantemente uma parte activa em


todo o processo.
um outro poema com o título "Poética do eremita" do livro Eremitério
vem acrescentar o tema da memória ao conjunto de temas que temos vindo
a referir. Na sequência do poema anterior e tendo a natureza como cenário,
deparamos com o jogo entre a presença e a ausência.

No deserto estão secas as pedras que no mar


se molhavam. A semelhança confunde
o eremita que solitário demais passou
o tempo entregando-o à isolada memória.
Aqui, a pedra seca, para o eremita,
não perdeu a qualidade húmida
de poder ter estado ao pé do mar.

(Brandão, 1991: 567)

A ausência do mar está presente na pedra: esta, como elemento da


natureza, só é aqui realçada pela sua capacidade de representar algo que
claramente se distingue dela, mas que pela provocação da memória ultra-
passa os limites da própria matéria. Digamos que a essência da pedra
resulta da sua capacidade de, através da memória, proporcionar a recorda-
ção do mar; nela há algo que se identifica com o mar, embora não o repre-
sente. Passa para o eremita essa capacidade de vislumbrar por detrás da
realidade superficial os elementos que unificam a realid.ade - mar e pedra.
No entanto, há aqui ainda um outro aspecto que merece atenção: o ele-
mento água surge no espaço do deserto como elemento evocado pela neces-
sidade premente de sobrevivência, ou seja, a memória permite a sobrevi-
vência da harmonia e da unidade das coisas, como que dessedenta o ere-
mita no deserto, através da imaginação, e como "Poética do eremita,' pro-
move junto daquele que se afasta, para melhor apreciar a vida, uma posição
que define um percurso de vida, um percurso literário. Como escrevia
Fiama muitos anos antes "[...]lA separação é o abstracto/de vários vestí-
gios. Um vestígio/do próximo reconhecimento" (Brandão, 1991: 193).
Se no poema "Contraluz no parque de Brockwell", as ,,vivas formas"
eram captadas à custa da distância, neste poema captam-se recorrendo à
capacidade de vislumbrar uma realidade pela memória, encontrando nas
pedras a "qualidade húmida" (a propósito da memória, verificaremos a sua
importância e a relação que mantém com o tempo, em Cenas Víuas).
A poesía de Fíama.F/asse País BrandÕ.o 287

A relação entre a natvreza e a poesia, como vimos em todos os poemas


anteriores, torna-se mais evidente no poema "Ermo", percebendo-se a sen-
sibilidade feminina de ver a realidade, de sentir os pormenores, de trans-
formar em palavras todos os sentidos, sempre disponíveis. Por outro 1ado, a
memória da "espuma infantil", o "Correr pelo declive", a "sÌlrpresa e terror"
colocam o leitor perante um passado vivido em diálogo com um presente a
viver, um presente criador, já que essas vivências aglutinadas entre o pas-
sado e o presente sublimam-se aqui e agora literariamente, "numa erma
visão, essência do verso".

Esta onda recua deixando-me


presa ao mar pelo cheiro das marés.
Sentir como um elemento natural
se junta a outro numa só imagem.
Correr pelo declive atrás dos pequenos rolos
de espuma infantil e subir
como que empurrada pela leveza.
Ter surpresa e terror
e ontologicamente transformâ-los um dia
numa erma visão, essência do verso.

(Brandão, 1991:569)

A "Poética do eremita" dá agora lugar ao "Ermo". A poesia exige uma


actividade de distanciação comedida, um controle dos espaços, já que
impõe, por um lado a solidão do eremita e, por outro, a alimentação e o
contacto com a realidade, para que a partir dessa convivência brote o
momento de depuração poética. Se no poema anterior a ausência criava
liames com vivências hipotéticas do objecto no passado, neste poema a rea-
lidade está toda nos olhos do sujeito lírico e a abstracção verificar-se-á
posteriormente na "essência do verso".

Procurámos até ao momento traçar algumas das linhas de força da


poesia de Fiama Hasse Pais Brandáo a partir do seu livro Obra. Breue, livro
que reúne a publicação poética de 30 anos (1961 a 1991).
Se verificámos por um lado uma clara evolução quanto a perspectiva
formal, dado o modo como gradualmente foi dando corpo a um discurso
que partira da secura do substantivo, por outro pudemos comprovar uma
representação consolidada na área temática com uma gradual e mais clara
288 Reuista Portuguesa de Humanidades

convivência com a realidade e com o circunstancial, cultivando, de algum


modo, alguns dos traços que caracterizam a poesia pós-modernista e que
irão acentuar-se no último livro publicado por esta autora.
Após "alguns anos de mundo" (Brandão, 2001: 110), a poetisa começa
a aprender a realidade, a entender as relaçÕes possíveis entre o mundo e a
palavra poética, transferindo para esta a capacidade de representar a
ausência, a possibilidade de actualizar os sentidos do passado, um modo de
promover pela poesia um salto em profundidade para a realidade e simul-
taneamente uma elevação para a essência dessa mesma realidade. Verifi-
cam-se intersecçÕes de diversos tempos, aspecto que será bastante interes-
sante em Cenas Víuas, sentindo-se cada vez mais intensamente a presença
do sujeito lírico, enquanto capaz de transportar as vivências que se vão
eternizando na palavra poética.

Começando pelo título, Cenas Viuas permitem várias leituras ora asso-
ciadas ao teatro, enquanto representação da vida, ora relacionadas com a
poesia, enquanto configuraçáo da eternidade, "Quando um verso marca o
lugar das coisas/elas aí ficam para sempre" (Brandão, 2000: 77). A cena
como representação da realidade assÌrme-se também como Ìrm modo de
filtrar a quotidianidade e representar, num espaço fora do tempo, aquilo
que não deixa de estar associado inevitavelmente à realidade: as cenas não
poderiam sê-lo sem terem por detrás essa realidade, mas elas são também
um modo de a purificar, representam uma depuração, uma atitude eremita,
uma forma de transformar o concreto em abstracto, o concreto em imagem
da realidade. O adjectivo Víuas aplicado a Cenqs torna-se também muito
interessante pela força que faz recair sobre as cenas, a sua capacidade
representativa, a vitalidade e a possibilidade de se aproximarem da reali-
dade, um modo de ter a pedra do eremita no deserto e nela encontrar a sua
"qualidade húmida".
O título Cena.s Viuas sugere a importância de um espaço e promove
uma reflexão sobre a questão do tempo, para aIém de não definir ou indefi-
nir as cenas. Esta referência ao título náo deve parecer excessiva, a sua
pertinência será comprovada quando tratarmos das relaçÕes do tempo e do
espaço no livro, assim como do papel da realidade, da palavra poética e do
corpo que nestas cenas, por serem vivas, também o implicam.

Para, de algum modo, iniciarmos o estudo deste último livro, recorra-


mos ao poema "História literária" (Brandão, 2000: 38), dada a capacidade
A poesia de Fíama Flasse Pais Brandao 289

de, em breves palavras, apresentar poeticamente todo um percurso literá-


rio.

Dou graças a meus olhos


que apaziguaram o meu cérebro
estarrecido pela literatura.
Outrora era o poder das letras,
a beberagem, o filtro das sílabas
que brotavam em espiral
das páginas dos mestres insanos.
Era num alto poço, com o fundo
no topo inverso da minha cabeça,
a sorver o crânio dos antepassados.
Era eu, no mais dentro de uma britadeira
mental, a reunir a fragmentada
palavra una, ventre de todas as palavras.

Hoje ou agora, os meus olhos


são somente como o tacto: apalpam,
marcarrÌ, com a sua secreção,
o rebor.do de cada objecto, dos seres,
o limite de uma crónica dos dias.

(Brandão, 2000: 3B)

Nesta "História literária" encontra-se uma clara evolução representada


por dois momentos: o primeiro profundamente centrado na palavra pessoal
e alheia; o segundo focalizado na realidade circundante. A criação literária
decorrente destas opções distingue-se e pretendemos que transpareça ao
longo deste estudo.
A propósito da segunda estrofe do poema, reforçaríamos o cuidado que
o sujeito lírico tem no contacto suave com a realidade. A narradora, a cro-
nista suave dos dias lança todos os seus sentidos sobre as coisas e os
seres, com o objectivo de comungar e não de deslocar, deixando somente as
suas impressões suaves sobre "o rebordo de cada objecto".
290 Reuista Portuguesa de Humanídades

ANaturezaeaRealidade

A natureza sob o olhar feminino de Fiama é desde o início da sua obra


um dos espaços mais significativos de inspiração. Enumerámos essa pre-
sença no primeiro poema de Obrq Breue, referimo-la ao longo de outros
poemas daquele livro e reforçaremos agora a sua centralidade em Cenas
Viua.s. Por outro lado, numa perspectiva mais abrangente, a realidade na
poesia de Fiama incorpora tudo o que é captável pelos sentidos sempre dis-
poníveis a recolher os traços essenciais que possibilitam a compreensão da
vida e da morte e do que, na sua periferia, se denomina de eternidade.
A atenção votada à natureza permite que a poetisa se compreenda
melhor a si própria e a vida. Pela atençáo visual proporcionada à natureza e
aos animais, pode adquirir-se, por meio dos seus comportamentos e reac-
ções, a forma mais adequada de apreender os sentidos da vida. A captação
visual da natureza como que anula a noçáo do tempo, o contacto com a
natureza alivia a consciência da transitoriedade da vida.

Fui criança, indo por um carreiro,


a caminho do mar, mão na outra mão,
entre árvores, pedras, insectos e aves.
Toda a natureza me coube nas pupilas,
mestra dos sentimentos, e eu discÍpula.
E, se fechava os olhos, ela punia-me
com o silêncio cruel das ondas,
a mudez imerecida dos insectos,
e a distância das aves, que doía.
Se os abria, tudo me rodeava,
apaziguado e meu,
mas a mão que me trazía a mào
puxava-me para a luz de cada dia.

(Brandão,2000: 10-11)

Afirmar que toda "a natureza me coube nas pupilas" e ela se mostrou
como "mestra dos sentimentos" exige que nos questionemos acerca do
modo como surge essa mestria na área dos sentimentos. À medida que
formos lendo este livro, construiremos uma visão dessa relação com a
natureza e entenderemos a forma como esse diálogo construiu uma
determinada personalidade poética.
A poesía de Fiama FIasse Pais Brandao 29r

A disponibilidade com que o sujeito lírico atendia a tudo que o rodeava


contrapunha-se com a temporalidade e certa indisponibilidade dos adultos
que o envolviam. A adversativa do penúltimo verso destaca por um lado
uma atemporalidade que se prende com a experiência de vida entre ter os
olhos abertos e ceÍrá-los perante a natureza e por outro a dependência
daquele que lhe "lrazia a mão" que se encontrava responsavelmente sujeito
à"1u2 de cada dia", submetido ao evoluir temporal.
A atenção proporcionada ao exterior, como vimos no poema anterior,
representa um acréscimo de conhecimento interior, um modo de se enten-
der perante as mudanças provocadas pelo tempo. "Às vezes as coisas
dentro de nós" (título do poema que se segue) são a imagem da "vagarosa
alegria" de quem sabe olhar.

O que nos chama para dentro de nós mesmos


é uma vaga de luz, um pavio, uma sombra incerta.
Qualquer coisa que nos muda a escala do olhar
e nos torna piedosos, como quem já tem fé.
Nós que tivemos a vagarosa alegria repartida
pelo movimento, pela forma, pelo nome,
voltamos ao zero irradiante, ao ver
o que foi grande, o que foi pequeno, aliás
o que não tem tamanho, mas está agora
engrandecido dentro do novo olhar.

(Brandão, 2OOO:25-261

Este poema é especialmente interessante pela forma como aproxima


um conjunto essencial de elementos pertinentes na temática poética de
Fiama Hasse Pais Brandão. A "vagarosa alegria" da "criança, indo por um
carreiro" (Brandáo, 2000: 10), com toda ar'atureza a caber-lhe nas pupilas,
captando o "movimento", a "forma" e o "nome" das coisas que a circundam,
faculta ao sujeito lírico um profundo conhecimento; só desse modo, pleno
desse exterior, pode entrar em si, calar-se e conviver com a eternidade
desse saber olhar a realidade agora e sempre, inalterada. Mas o que da rea-
lidade lhe absorve o olhar é sempre um laivo de alguma breve graça da
nalureza, "uma vaga de luz, um pavio, uma sombra incerta": não é a inten-
sidade da experiência, antes a singeleza, a graciosidade, o pormenor ina-
preensível para um olhar superficial. A grandeza do olhar depende da pro-
292 Reuísta Portuguesa de Humanídades

fundidade do conhecimento e decorre daquela atenção ao "que foi grande,


[a]o que foi pequeno". Como afirma a poetisa,

[...] Se o meu relato é vivo


é porque olho c'os outros a Primavera,
e nesta Primavera eu vi melhor,
presa do assombro do que é novo e antigo.
Os meus olhos, o espírito e as máos
pegam em cada imagem de uma flor,
em cada dia de visão e ganho.

(Brandão,2000: 107)

O contacto com a rratureza, com a realidade, é total e o sujeito lírico


assume-se, curiosamente, como relator da Primavera (no longo poema
"Peregrinaçáo e Catábase" (Brandão, 2000: 110-119) ele é a Criança narra-
dora). É um relato que usufrui de relações intertextuais, "pois a memó-
ria/da poesia passa de poeta a poeta,/para o mundo" (Brandáo, 2000: 107),
mas onde o sentido é biunÍvoco, já que chega também ao poema a realidade
"e nesta Primavera eu vi melhor". Este segundo movimento decorre dos
"olhos", do "espírito" e das "mãos" e a natureza que encontramos na poesia
de Fiama surge imbuída desse relato, sendo os três elementos, os "meus
olhos, o espírito e as mãos", essenciais por proporcionarem aspectos com-
plementares associados aos sentidos e atentos ao desvendar do eterno. São
as mãos, os olhos, mas também o espírito que "pegam em cada imagem de
uma flor", não é já a flor que o sujeito lírico possui, mas a imagem dessa
flor tornada palavra, transformada em essência e "ganho".
O texto "Cadeira, a contraluz", embora não aborde aspectos da natu-
teza, deve ser aqui referido, dado o modo como a poetisa usa a "imagem",
náo "de uma flor", como no poema anterior, mas de uma cadeira.

G1ória de ter o espaldar recortado


da talha dourada do sol!
Agraçaeohino.Oadejar
das mãos ressequidas
que entrelaçam inverosímeis teias.
Faiscar de fios que são tão puros
como a baba de ouro dos insectos.

(Brandão, 2000: 93)


A poesía de Fíama.F/asse País Brandao 293

Este texto faz recordar um outro já referido, com o tÍtulo "Contraluz no


parque de Brockwell" (Brandão, 1991:457). No poema de Obra Breue, a
essência do corvo via-se na existência a "contra-luz"; no texto retirado de
Cenas Viuas, estamos simultaneamente perante a essência da cadeira e
diante do acto de criar a cadeira, como se os dois tempos se unificassem
diante do sol, "o intenso colorista" (cf. Cesário Verde, "Num Bairro
Modernor), "A graça e o hino".
A depuração da imagem, do cenário, decorre, desde logo, do facto de,
ao longo do poema, não surgir a cadeira. Se por um lado o título ajuda a
compreender o poema, a aplicar-lhe uma imagem da realidade, por outro,
entre o desenvolvimento da imagem no decorrer do poema e o título existe a
mesma distância que vai entre a realidade e o gesto, o objecto e a imagem, o
ruído e quase o silêncio que de algum modo se consubstancia pela ausência
de verbos ou pela presença de infinitos susbtantivados, numa imagem des-
personalizada, essencial. Essa purificação configura-se gradualmente, par-
tindo do substantivo adjectivado "espaldar recortado", não cadeira, mas só
parte dela, passando para uma metáfora à custa dos raios solares que
acrescentam ao formato do espaldar a cor dourada do sol e da talha,
transferindo a parte da cadeira para o acto esvoaçante de criação das
'teias", metáfora animada de "talha dourada", e culminando já não no acto
de criar, mas no brilho essencial do que era inicialmente "talha dourada" e
agora "Faiscar de fios" ou, comparativamente, "baba de ouro dos insectos".
Podemos encontrar esta necessidade de demandar algo de essencial e
eterno por detrás da natureza ou realidade, num outro excerto retirado do
poema "No Laranjal". O percurso que procurámos esclarecer relativamente
ao poema anterior distingue-se, no entanto, do modo adoptado neste poema
para atingir um mesmo objectivo.

[...] Fosses tu
um homem dos oficios rurais, e ainda habitarias
os campos, não, nunca, na memória, mas aqui.
Ou tal como os outros mortos cuidadosos,
em corpo visto, na luz reconhecida,
nesta suspeita que recebo do real,
como se eu tentasse entender uma pintura eterna.

(Brandáo, 2000: 38)


294 Reuísta Portuguesa de Humanídades

Embora nos interesse reflectir sobre a memória na poesia de Fiama, de


momento direccionamos a leitura para a "suspeita que recebo do real,'.
Recordando o poema "Poética do eremita", com a intençáo de mostrarmos
uma certa unidade temática, consolidada ao longo dos anos, entendamos
que a "pedra seca, para o eremita,/não perdeu a qualidade húmida" (Bran-
dão, 1991: 567) porque sobre a pedra recai a "suspeita" de uma outra reali-
dade que de algum modo a identificava em profundidade: a sua "qualidade
húmida". A "suspeita que recebo do real" não é mais do que o que temos
vindo a dizer sobre a essencialidade dessa realidade, sobre as diversas pre-
senças que a identificam, mas não se apreendem pelo contacto ligeiro de
um vislumbre. Pela constante atenção, pela suspeição activa que a poetisa
mantém perante o real, é possível que se entenda anatureza e a realidade
como "uma pintura eterna", dado que na pintura se anula o tempo, se inde-
fine o passado e o presente porque se encontra tudo na mesma cena uiua.

Entre as Coisas e o Corpo

Aproveitando as variadas referências à natureza e à realidade que já


desenvolvemos, propomos agora que se considere o coqpo, enquanto ima-
gem que se projecta sobre a natureza e sobre a realidade, como espaço da
memória ou da "suspeita".
A natureza e a realidade nem sempre se encontram nesta poesia com
autonomia, em muitos casos não valem por si, mas em função do sujeito
lírico e do que na natureza e nas coisas o sujeito lírico projecta. se delas
pode retirar ensinamentos é também nelas que se encontra com os fantas-
mas do passado, com as suas memórias e interrogações sobre o futuro. são
uma imagem recorrente de que se vale para apaziguar as sombras do
tempo.
A relação entre as coisas e o corpo varia entre a alegria e a tristeza,
entre a empatia e a indiferença e a posição que o sujeito lírico mantém com
elas é uma atitude de disponibilidade, perscrutando o que elas sempre têm
para lhe dizer. A história das coisas no tempo é que nos traz a suspeita,
porque configura variadas presenças, ao contrário do "galeão levantado d.o
lodo ou do olvido".

A alegria das coisas não é a posse


mas a semelhança delas com os nossos dedos.
A poesia de Fiama.FIasse Po,ís Brandãn 295

Nem as coisas têm forma própria


mas a que lhes dâ a mão, usando-as.

A tristeza das coisas é tanto maior


quanto mais subtil for a sua imagem no olhar.
Nem o arqueólogo anna em absoluto a matéria.
O galeão levantado do lodo ou do olvido
é um objecto sem presenÇa, ou sem destino,
por vezes capaz de trazer-nos as lágrimas.

Mas não usárnos nós as coisas


até ao excesso, ou a nossa alegria
fez-se do proveito parco, do mínimo?

(Brandão,2000: 18)

Amam-se os objectos porque eles nos levam ao contacto com presen-


ças já ausentes, de algum modo criam momentos eternos para quem sabe
apreciar a realidade com todos os sentidos. Mas este contacto exige também
uma relação em harmonia, uma espécie de empatia entre as experiências
que as coisas trazem consigo e o nosso corpo, "A alegria das coisas não é a
posse/mas a semelhança delas com os nossos dedos". A harmonia e a paz
interior decorrem da sabedoria de quem contacta com a realidade, sabendo
usufruir das suas potencialidades.
Tanto as coisas como os corpos transportam consigo uma multiplica-
ção de tempos, uma combinação de diferentes momentos consubstanciados
numa única realidade fisica. Sabendo e tendo disponibilidade, teremos pos-
sibilidade de apreender num momento a dispersão do tempo e as diversas
mortes de que nos vamos penalizando: o momento torna-se eterno.

Junto aos eternos matizes das pedras,


a cor dos narcisos, nítida, clara,
evoca esses desejos saciados
em tempo ido: o da mulher, prendendo-os
no seu seio, e os da criança, seguindo
o movimento que pertence ao tempo.
Hoje, como hei-de separar os corpos
da haste e da corola dos narcisos,
pois a mancha amarela tem a forma
humana contida em si, curva, erecta.
296 Reuista Portuguesa de Humanidades

Salva-me o vermelho vivo da rosa,


que atrai a cor intensa dos narcisos
para contraste, outra tensáo,
que eu revivo, amando o beijo da rosa
e a prece ao sol destes narcisos.

(Brandão, 2000: 105- 106)

São breves, instantâneos os momentos recordados, um gesto, uma


imagem, um esboço que surge da memória à custa da cor ou da forma de
uma flor. A singeleza e a fragilidade do jardim determinam o encontro com
o passado, com as vivências que marcam o sujeito lírico.
Para além de muitos outros exemplos que se poderiam recolher para
exemplificar o que afirmámos, apresentamos os últimos versos de um longo
poema de Fiama com o título "Teoria da Realidade, tratando-a por tu"
(Brandão, 2OOO: I22-I3O\.

t...1
Criança, a tua máo de areia
construiu a praia. Os teus dedos
sonoros chamam-me agora.
Chamei-te, outrora, eu, no transe
do som a pousar no meu mar.
Aceita a água que vem
para os teus pés, recebe a luz, colhe
as pequenas algas. São-te dadas
pelo passado tempo, ainda
recordado, em ti, por mim, realidade.

(Brandão,2000: 130)

A criança e o sujeito lírico distanciados pelo tempo convivem com a


mesma realidade a qual sempre trataram por tu. Verificam-se intersecções
de espaço e de tempo nas alusões ao mundo da criança e do sujeito lírico, à
custa dos "dedos sonoros" e "do som a pousar no meu mar": a criança no
passado chama ainda o sujeito lírico hoje; este chamou a criança do pas-
sado.
A praia e o mar do passado, pela capacidade de representarem um
ritmo lento se comparado com o tempo humano, acabam por reunir nì-rm
mesmo tempo presente a criança e o adulto de tempos humanos distintos.
A poesia de Fíama FIasse País Brandao 297

A realidade resiste ao tempo e auâgúa", auh)z" e as "pequenas algas" são do


passado humano, mas sempre do presente da realidade. Tratar a realidade
por tu é uma atitude assumida ao representar esta capacidade de entender
anatureza e a realidade em geral como cenas uíuqs e humanas.

OTempoeoEspaço

O tempo e o espaço estão neste livro, se comparado com Obra Breue,


mais relacionados com a realidade, mais próximos de vivências e experiên-
cias concretas associadas à natureza. A poetisa sente necessidade de
entender o tempo como uma superficie que cobre todas as coisas sujei-
tando-as a ritmos diversos. Os espaços do jardim, do mar ou da casa são
determinantes na combinação com o tempo e o efeito que ele exerce sobre
as coisas e sobre o ser humano.
O tempo da natureza e dos seres que nela vivem de forma inconsciente
é distinto do tempo humano. Há um drama suave e uma certa marca trá-
gica perante a consciência da irreversibilidade do tempo, embora a poetisa
tente absorver o tempo de uma forma natural.

Os braços sáo as linhas de matizes,


unidas em redor da cor suavíssima
das flores de hoje, a florir aqui.
Cada manhã me põe diante dos olhos
nova forma de cor e luz e, às vezes,
figuras esbatidas de outra estaçáo
igual, porém, perdida já, inane.
- Melro a'udaz, que te aproímas mais
de mim, ou do que eu fui e agora sou,
não vejas que eu represento o Tempo.
A tua colheita de grãos e de larvas
seja o teu mais subtil pensamento!

E, afinal, entraste no meu espaço,


num intervalo entre o concreto e o abstracto.

(Brandão, 2000: 108-109)


298 Reuísta Portuguesa de Humanídades

Os advérbios de tempo e espaço ou os próprios substantivos "Tempo" e


"espaço", presentes no poema, determinam o sujeito lírico e subordinam-no
à consciência da degradação. A empatia daquele com a natureza poderia
desencadear uma evasáo no sentido da comunhão de um espaço que não se
limitasse a um "interyalo entre o concreto e o abstracto", antes onde tudo se
sujeitasse à lei geral da natureza, não representada pelo tempo, sendo a
sobrevivência inconsciente o "mais subtil pensamento",
A cor e a luz da natureza, assim como o "Melro a.udaz", vêm despoletar
no sujeito lírico uma tomada de consciência perante a relação do tempo
com o espaço, entendendo-lhes os traços humanos e o pouco sentido que
essas duas componentes têm para a vida vegetal e animal. Enquanto a
natureza se situa simplesmente no presente, indiferente ao passado ou ao
futuro, o tempo está na mente do sujeito lírico: "eu represento o Tempo".
Na relação entre o espaço e o tempo, estes dois elementos não se
sujeitam de forma invariável um ao outro. O espaço sobrevive ao tempo, vê
o tempo passar e mantém-se intacto, unindo e representando os diversos
momentos que são a história de uma vida: "O velho soalho de tábuas pode
conter/pés futuros" (Brandão,2000: 57) ou ainda "só o soalho [...] tem
memória" (íd;72).
A casa e o jardim que a circunda representam na obra de Fiama um
espaço privilegiado, dada a capacidade que têm de presentificar diversos
tempos da história familiar. Configuram um espaço simultaneamente fami-
liar e universal, capaz de exceder os limites impostos pelo tempo. Da parte
do sujeito lírico há a premente necessidade de se sentir acompanhado, de
entender fisicamente a relação entre o passado, o presente e o futuro.

A minha casa está, e os parentes


são mortos e vivos e moventes.
Bendito este lugar estático
que contém gestos e passos
marcados para os olhos vagos
que eu tive no passado e no futuro.
E me seja dada enfim a graça
de ser eu cega e ser eu coxa
na üda e na parábola.

(Brandáo, 2OOO:71-72)
A poesía de Fiama FIasse Pais Brandao 299

A incapacidade do olhar acompanhar o tempo transtorna a própria


noção de sequência temporal, como aliás já vimos num poema anterior (cf.
Brandão, 2000: 130): "olhos vagos/que eu tive no passado e no futuro". A
noção de passado e de futuro são abstracçÕes que não se enquadram na
necessidade de companhia fisica da parte do sujeito lÍrico.
O espaço, para anular o tempo, assr-rme um papel tão significativo que
o sujeito lírico acaba por pedir que lhe seja concedida a graça de ser "cega"
e "coxa", a fim de náo entender, visualmente, o modo como o tempo influi
no espaço, as alteraçÕes que o tempo exerce sobre a vida; procura também
corresponder a "este lugar estático" ao anular no corpo o movimento que
melhor se identifica com o tempo.
A prevalência do espaço sobre o tempo, a vivência total de cada
momento eíge muitas vezes do sujeito lírico uma atenção ao que o rodeia
sem qualquer preocupação com o passado que a memória transporta. No
poema "Vivenda1", essa relação com o espaço familiar marca uma entrega
ao momento presente e uma necessidade de afirmar uma liberdade pessoal
perante o passado.

Na tarde, o calceteiro bate no granito.


Na noite, o mocho pia no silêncio.
E além destes ruÍdos, a água
Escorre na bica do velho tanque.

Nos meus ouvidos, a minha vida


reparte-se entre outrora e tudo isto.
Entre um ouvido e outro, o centro
dos sons revive, porém não tenho
de reconhecer o quejá vi ou vejo,
nem o que abandono. Sou livre
para a traição e o esquecimento
quando aqui estou.

(Brandão, 2000: 78)

I Este poema surge no iivro Cenas Víuas, na página 78 e 30 (embora com algumas
breves diferenças). O mesmo sucede com um outro poema, embora com títulos distintos:
p. 78 e 91, respectivamente nleituras em Novembroo e um texto, entre vários, subordinado
ao tÍtulo "Lápideso.
300 Reuista Portuguesa de Humanídades

Este poema, emboÍa subordinado a um espaço por indicação do título,


acaba por, ironicamente, destacar a inevitabilidade do tempo: na primeira
estrofe, a tarde dá lugar à noite e a água marca, qual clepsidra, o tempo
que passa. No entanto, este tempo é sempre presente, porque se representa
como uma cena que se repete dia-a-dia, de forma indiferente e mecânica.
Depois da apresentaçáo do cenário geral exterior, o sujeito lírico parte para
o espaço interior, na segunda estrofe.
E curiosa a importância que a poetisa concede ao espaço interior em
número de versos, quando coloca o título "Vivenda", aparentemente menos
direccionado para o humano. No entanto, a vivenda é um todo, onde a uni-
dade é conseguida à custa da relação empática entre o espaço fisico e
humano.
No poema, distingue-se entre reviver os sons e "reconhecer o que já vi
ou vejo": o sujeito lírico reconhece a possibilidade de percepcionar senso-
rialmente, mas não a exigência de reconhecer. Ou seja, indo ao encontro de
interpretações relacionadas com a rratlureza e a realidade combinadas com
o passado no presente, entende-se facilmente a possibilidade de reviver os
sons, pelos sons, as cores pelas tonalidades das flores: deste modo, a
sugestão dos sentidos actualiza o passado; pelo contrário, para reconhecer
é exigida uma presença do passado, um acto racional, não sendo possível
captar por meio da sugestão dos sentidos, exigindo antes a memória, que se
prende em demasia com o tempo e náo com o espaço que é aqui privile-
giado.
Encontramos o espaço do jardim associado ao tempo em variados
excertos poéticos, as flores ligadas "a fragmentos de vida antiga".

Noutra manhã, eu vejo, deslumbrada,


a poalha da brancura florida
que envolve os troncos velhos da ameixoeira,
flores que o ar conhece e o vento leva,
há muito, para lugares e tempos.
Poalha em que não estão vultos humanos.
Apenas um nó de sombra, atrás
de cada flor, mostra a imagem de antes
ou â espessura de um fruto futuro.
São as flores do jardim que guardam o enigma,
pois cada espécie vista tem em si
um sinal visível de outra estação.
Flores solitáriâs que, uma a uma, vêm
A poesía de Fíama F/asse Pais Brandao 30i

ligar-se a fragmentos de vida antiga.

(Brandão, 2000: 106-107)

A poetisa considerou necessário referir que na "Poalha [...] não estão


\rultos humanos" porque não seria estranho, no contexto da sua obra,
encontrar um verso que referisse o contrário. Mas, se os "l-ultos humanos"
não se encontram na "poalha da brancura florida", nela se perscruta "um
nó de sombra, atrás/de cada flor". Neste sentido, podemos entender o "nó
de sombra" como a imagem simultaneamente da presença e da ausência de
algo que como sombra não se mostra autónoma e como tal não vale por si,
embora 1á se encontre. Por outro lado, o vocábulo "nó" sugere intensidade,
potência disponÍvel para o acto, capacidade de representar. O "nó de som-
bra" como que se situa "num intervalo entre o concreto e o abstracto"
(Brandão, 2000: i09) como vimos atrás, entre "a imagem de antes/ou a
espessura de um fruto futuro". Na flor, guarda-se o enigma, porque nela se
encontra "um sinal visível" de outros tempos, "fragmentos de vida antiga".
A eternidade na poesia de Fiama apresenta algumas variações. Em
certos contextos, como tivemos oportunidade de ver, mais dependente do
espaÇo que absorve e representa a memória do passado, noutras ocasiões a
eternidade surge entre o espaço e o tempo. No poema que se segue, a poe-
tisa coloca-nos perante a experiência da "Eternidade" vivida em "cada
minuto".

Alguém que bate na chapa do portão


e nâo faz apenas tilintar o sino,
deixa os habitantes da casa presos
entre a angústia e o espanto.
Aquela chapa ressoa tão alto
e, entre os sons naturais do campo,
insólita paralisa-nos por momentos etemos.
Ensina-nos que a Eternidade
cada minuto perpassa na consciência,
em cada imenso sofrer.

(Brandão, 2000: 83)

Os sons que não são "naturais do campo" invadem a estabilidade


humana e provocam um corte com a r,atureza, dilacerando o sentimento de
302 Reuista Portuguesa de Humanídades

harmonia em que vivemos na troca de experiências, de imagens, de tempos:


o espaço que se situa dentro do "Portão" (título do poema que estamos a ler)
representa um ambiente de graça, indiferente ao tempo que corre no seu
exterior. A eternidade é um momento em que tudo pára, tudo fica sem sen-
tido, um momento vazio, entre o bater no portão e a sua abertura, repre-
senta a dependência absoluta perante o desconhecido e o não controlado, a
quebra total de laços do espaço com o tempo, da natureza e da realidade
dominada com o eu.
o excesso de tempo representado pela "Eternidade" contrapõe-se ao
excesso de espaço com o qual o sujeito lírico convive. A coabitação dificil
com o tempo transtorna o equilíbrio de forças no espaço da casa e do jar-
dim e provoca um "imenso sofrer". A concentração de todas as atenções
num determinado momento elimina a realidade circundante e desperta o
sujeito lírico para o protagonismo do tempo em excesso e para a ansiedade
que a origina.

ARealidadeeaMorte

A morte, como experiência próxima e diária, provoca no sujeito lírico


uma atitude de defesa perante o sofrimento. A transferência do foco das
emoçÕes pessoais, anulando a noção do tempo, permite que se viva a vida
quase sem dor, quase sem despedidas.

t...1
Ao partirem, eu dizia que a ausência
seria mais dura do que o bater da onda.
Dizia que as duas vozes afastando-se
vazavam de sons o meu peito,
e que estar a ver partir o barco
me deixaria na margem a meditar,
e far-me-ia escrever poemas desabridos
e aÍnar outras crianças similares
que não haviam partido ainda.

(Brandáo,2000: 81)

Neste excerto do poema "Partida", a despedida como que é anulada


pelo aparecimento de "outras crianças similares". A morte ou a partida
A poesia de Fiama.FIasse Pais Brandao 303

surge deste modo anulada porque a saudade náo dilacera diante de um


constante e absoluto presente: assim podemos ver a recorrência à natureza
e à realidade em geral, para trazer ao presente as imagens sugeridas pelas
cores e pelas formas das flores, por exemplo. Mas o sujeito lírico pode tam-
bém optar, como vimos, por assì-rmir a liberdade de trair ou esquecer o pas-
sado (cf. Brandão, 2000: 78), ate porque, na vida como "No teatro, cena e
cenários podem/fechar-se com um movimento de pálpebras./Tudo ou nada
fi.cará dentro no tempo" (íd.: 89).
No poema "O Urogalo", interessante sobre variados aspectos, verifica-
mos que a posição que o sujeito lírico assume perante a morte é um pouco
semelhante a atitudes que apreciámos noutras ocasiões, quando afirma
"Não mais interiorizo a Natureza próxima" e desse modo se despede dos
"sentimentos" e procura sublimar o fenómeno da morte nos "nomes" e nos
"mitos", uma opção menos pessoal, mais distante, eliminando a implicação
emocional, valorizando a compreensão do que se pode eternizar e actualizar
pela representação iniciática.

O urogalo não cantou toda a manhã.


Despida de sentimentos, procuro
os nomes e os mitos. E a grande sombra
da árvore de palma veio pousar
sobre a relva nua e o decepado coto.
Não mais interiorizo a Natureza próxima.
Que o morto aloendro leve consigo
anos de infância e juventude, carÍcias
do vento, para sempre e em todo o lugar.

O urogalo viria em vez do melro,


cujo corpo sacode o restolho de velhas folhas,
cujo assobio se abafa na hera invasora.
Seria o sinal do último cantor da casa,
o desconhecido urogaÌo, que apagaria
esta tristeza de nada desejar, aqui e agora,
entre estes cepos, esta terra revolta
e os mortos tão absolutos e esquecidos,
depois de tão eternamente vivos.

(Brandão, 2000: 79-80)


304 Reuista Portuguesa de Humanídades

O desaparecimento do melro eíge que se efectue a transferência dos


sentimentos que lhe foram votados para um novo objecto que é o urogalo.
Como objecto de substituição absoluta, representa o novo pólo de concen-
tração emotiva e anula "a tristeza de nada desejar, aqui e agora". Estes
advérbios reforçam o espaço e o tempo que já tivemos oportunidade de ler
na obra de Fiama e neste contexto mostram como essencial somente o
espaço familiar da casa e o momento presente, assim como "os nomes e os
mitos" que só interessam enquanto actualizaçÕes do passado. Nessa
sequência, sente necessidade de afirmar um distanciamento definitivo dos
"mortos tão absoiutos" e necessariamente "esquecidos",
Tudo o que está para além das "praias e arvoredos" não move o "pen-
samento" do sujeito lírico, a sua atenção prende o próprio corpo à realidade
circundante. Por isso, "Ignoro como moveria o corpo para além".

Temo correr para mais longe do que a fábula


que é a carreira longínqua vida dentro.
Ignoro como moveria o corpo para além,
quando o pensamento vê praias e arvoredos.
Não sei deslocar-me inteira para a cena
onde enfim poderia ter visão inteira.
Se eu pudesse alcançar tudo sem o percurso
que dizem ser uma dádiva da morte.

(Brandão, 2OOO: 92)

A "fábula" promove a transferência, a convivência e a aprendizagem e,


nesse sentido, a "fábula" em que somos personagem permite um maior
conhecimento pessoal, sem uma fuga "para além". A poetisa não se conse-
gue imaginar a si distante do espaço em que vive e no tempo artificial que é
a representação teatral, embora essa fosse a forma de se entender melhor,
como representação artificial se se pudesse transportar toda para a boca da
cena. Repare-se que aqui não estaríamos perante Cenas Viuas, mas tão só
diante de cenas artificiais.
Os laços que unem e identifi.cam o sujeito lírico com a realidade
impossibilitam o seu afastamento de uma forma una e inteira. Por outro
lado, o percurso sugerido pelos verbos "correr", "moveria" e "deslocar-me"
contrapõem-se aos verbos "vê" e "pudesse alcançar" que se subordinam a
um único espaço indiferente ao tempo e incompatível com o "percurso" que
se assume como uma "dádiva da morte": recordem-se, a este propósito, os
A poesia de Fíama.F/asse País Brandao 305

versosjá comentados "E me seja dada enfim a graça/de ser eu cega e ser eu
coxafna vida e na parábola" (Brandão,2000: 72). A casa, a área limitada
pelo portão, o jardim são espaços fundamentais para que se compreenda
toda a poesia de Fiama e representam uma das possibilidades daquela
"visáo inteira" referida pelo sujeito lírico sem necessitar de sujeitar o
cenário aos efeitos devastadores do tempo que culmina com a morte.
As Cenas Víuas são, deste modo, as imagens vivas do espaço, signifi-
cam a captação representativa das emoçÕes e dos sentimentos abstraídos
da capacidade corrosiva do tempo, configuram a constante actualização dos
momentos marcantes de uma vida através da recorrência à rrattoreza e a
toda a realidade circundante.

Uma Arte Poética

Até aqui reflectimos sobre o modo como desenvolveu a poetisa diversos


temas a fim de consolidar uma mundividência fundada na palavra poética.
Interessa agora entender a relação da palavra com a realidade e de que
maneira a pode substituir ou representar.
No terceiro conjunto de poemas de Cenas Víuas, titulado "As Poéticas",
encontramos títulos sugestivos no contexto da leitura que estamos a desen-
volver da obra - destacamos dois: "Catálogo botânico da primavera" e "Teo-
ria da realidade, tratando-a por tu", ambos associados à realidade, estando
o primeiro particularmente próximo da natureza, ligado a uma imagem de
rigor, precisão e representação do "Cátologo", enquanto sugestão da capaci-
dade de transformar, num momento de consulta, toda uma imagem
reconstituída a partir da diacronia.
No entanto, esta reflexão sobre a poética está presente de forma mais
ou menos evidente ao longo de toda a sua obra. No poema "Ninguém tanto
quanto Sócrates", a poetisa trata exactamente desse aspecto, reflectindo
sobre a questão da palavra como representação e a possibilidade dela anu-
lar "o mundo, memorizado até ao fascínio".

Ninguém tanto quanto Sócrates desprezou


a escrita, por faJaz instrumento,
disse-nos. Porque nos faria esquecer
o mundo, memorizado até ao fascínio,
pelos olhos e pela fala. Mas eu amo-o,
porque no Fedro o seu pensâmento
306 Reuí.sta Portugue sa de Humanidade s

teve medo de perder a realidade,


se a muda mão duplicasse mesquinha
o esplendor dos dentes, da lÍngua, do palato.
Se o silêncio, que sempre colocámos
por detrás das órbitas, se esvaziasse
dos sons e das figuras que o preenchem.

(Brandão,2000: 51)

Neste poema, o sujeito lírico decide-se por uma clara opção pelo
mundo, pela realidade, pelos sons e pelas figuras, negando à escrita a pos-
sibilidade de se afastar desse ambiente. A escrita verificar-se-ia falaciosa se
nos fizesse esquecer o mundo, se a duplicação da realidade transformasse o
silêncio numa realidade vazia de sons e de figuras. Na poesia de Fiama,
entra toda a Natureza pelo olhar atento, todos os sentidos estão disponÍveis
para captar a realidade e transmitir a sua beleza.
nToda anatureza me coube nas pupilas,/mestra dos sentimentos, e eu
discípula" (Brandão, 2000: 10) e como aprendiz, a poetisa, criança sempre
vigilante, reconhecia no melro e no grilo os atributos que anseia para as
suas palavras, "Porque cantam sem pensarem no seu canto/e conhecem
dos meus nomes o mais eterno" (id.: 37). O conhecimento "dos meus nomes
o mais antigo" representa a crença absoluta na natureza, na sabedoria com
que nos brindam os animais, no modo como comunicam e vivem, na rela-
ção que criam com aqueles que thes dá atenção. Num outro momento cla-
ramente distinto deste, no entanto, com evidente interesse a propósito dos
nomes, leiam-se os versos que se seguem, como homenagem a Sophia de
Mello Breyner Andresen que nos deixou, quando estávamos a escrever este
texto (2 de Julho de 2004).

Nos meus vinte anos,


almoçar em casa de Sofia
t..l
Era escutar as palavras da boca
do vocábulo grego para a sabedoria,
o que me confirma o poder dos nomes,
ao serem Verbo, sobre os seres e as coisas.

(Brandão, 2OOO:41-421
A poesia de Fiama.Flasse Pais Brandao 307

No poema "Na rua das Mónicas", Fiama, num dos diálogos que man-
tém com determinados poetas ou obras literárias, recorda-se das visitas que
fazia a casa de Sophia.
A relação profunda entre os nomes e a realidade, a representação
absoluta da realidade nos nomes ou o "poder dos nomes [...] sobre os seres
e as coisas" promove uma relação biunÍvoca entre os nomes e a realidade.
Deste modo, tanto será de realçar o papel primordial das palavras,
enquanto entidade matricial, como o conhecimento que na natureza os
animais têm dos sons e da origem já que "conhecem dos meus nomes o
mais eterno". Será neste duplo sentido que podemos ler a poesia de Fiama
Hasse Pais Brandão, numa entrega à natureza e à realidade, com o sentido
apurado de transpor para as palavras os cinco sentidos e a proximidade
vivida da realidade que a circunda.
Encontramos no poema "Espaços", novamente, a relação que o sujeito
lÍrico mantém com as coisas e com os seres, o sentido de abrangência e o
modo como os procura apreender distanciados no tempo. Nesta perspectiva,
é desde logo interessante o tÍtulo do poema, dada a clara tentativa de captar
a realidade abstraindo-se do tempo que a degrada.

Todas as coisas e seres


sáo dados aos poemas e exigem estar.
Próximas paisagens distantes,
seres presentes.
Entre o aparo e a escrita.
Próxima, não a respiração
mas a presentificaçáo das coisas,
e infindos riscos.

(Brandão, 2OOO:941

Para além da evidência do texto poético, destacaríamos as coisas e os


seres que assumem o espaço do poema, não como indícios, mas como pre-
senÇas efectivas que nele "exigem estar",
No conjunto de poemas com o título "Sistema solar", encontram-se,
para além de outros, os três textos que a seguir apresentamos. Manifestam
uma determinada unidade e uma clara evolução no sentido de uma arte
poética, como procuraremos comprovar. Antes de iniciarmos a sua leitura,
parece oportuno dedicar alguma atenção ao número de versos de cada um
dos poemas: sete, nove e sete versos. Estes números alertam o leitor espe-
308 Reuista Portuguesa de Humanídades

cialmente pela directa referência do sujeito lírico ao número de versos no


último destes três textos. Entre o número de versos e a simbologia do
número sete podem destacar-se alguns aspectos interessantes: a relação
entre o número sete e o culto de Apolo, o sete como o número que simboliza
a conclusão cíclica e a sua renovação, ou ainda como símbolo universal de
uma totalidade em movimento (cf. Chevalier, 1992: 826-83 1). Por outro
lado, o número nove apresenta algum interesse para o segundo texto: "E o
símbolo da multiplicidade retornando à unidade e, por extensão, o da soli-
dariedade cósmica e da redenção" (Chevalier, 1992: 643), representa ainda
o último número da série de algarismos e por isso anuncia simultanea-
menteofimeorecomeço.

Cadavoz tem o seu contraponto


num ruído natural. Cada silêncio,
no silente espaço que rodeia, por vezes,
cada coisa. A beira do berço as bocas
percutem sobre a criança. Depois, no sono,
abrem-se como qualquer flor. Sobre
os cílios da adolescente tecem frases.

A beira do berço as bocas


percutem sobre a criança. Depois no sono
adensam-se como qualquer árvore. Sobre
os síiios da adolescente tecem frases.
Cada silêncio corporiza-se no espaço.
As coisas têm eixos e rodam
com ruídos diferentes do seu nome.
E o Sol tramonta entre vestígios,
além dos montes e vales e o maÍ.

E o Sol tramonta sobre as nossas casas


e os montes e vales e o nosso mar.
Quando um verso marca o lugar das coisas
elas aí ficam para sempre. O Sol
que perpassa em cumes e em cristas
nasce nas arestas serranas do nascente
e vai até ao mar em sete versos.

(Brandáo, 2OOO:77\
A poesía de Fiama FÍasse Pais Branddo 309

Estes três textos são construídos de uma forma paralelística, sendo de


poema para poema revisitadas diversas construções frásicas, expressões ou
vocábulos. Os ciclos temporais estáo presentes nos três poemas à seme-
thança da própria carga simbólica do número sete como uma totalidade em
movimento, conseguida à custa do percurso da criança para o adolescente,
no primeiro texto ou em virtude da "solidariedade cósmica e da redenção",
no segundo. O terceiro poema volta aos sete versos, embora agora deixe de
se centrar na criança e passe avaTorizar o "Sol" e, especialmente, o verso.
Desenvolve-se um paralelismo entre a natwreza e o ser humano, ao
longo do primeiro e do segundo poema, com a intenção de reforçar a pro-
funda relação que existe entre as duas realídades. O ciclo solar diário cor-
responde ao ciclo criança - adolescente e berço - sono - flor (primeiro
poema); berço - sono - árvore (segundo poema). Nestes dois primeiros tex-
tos, verifica-se uma concentração num determinado espaço (berço - sono)
associado ao espaço da natureza representado pela flor - árvore.
O espaço é o elemento essencial desta poética como já várias vezes
tivemos oportunidade de comprovar e volta neste conjunto de poemas a
assumir um papel fulcral. "Cada silêncio corporiza-se no espaço" pela aten-
ção à vida e às coisas, pela concentração de energia, pela carga que o
espaço representa no ciclo vital, dada a história que em si contém, como
acumulado de experiências. A configurar essa valorização surge a opção do
sujeito lírico com a selecção dos tempos verbais somente no presente.
Dos dois primeiros poemas para o terceiro, detecta-se uma evolução
sobre vários aspectos: o ciclo fecha-se simbolicamente com o número sete e
da perspectiva geral dos dois primeiros poemas o sujeito lírico passa a
incluir-se com os determinantes possessivos aplicados a "casas" e "mar"; o
espaço já referido no segundo poema de forma explícita assume no terceiro
um papel central associado a "verso". "Quando um verso marca o lugar das
coisas/elas, aí ficam para sempre" e o tempo limitado ao ciclo solar diário é
o único que é captável pelos "sete versos" que dissecam as coisas do tempo
e eternizam a vida humana num mesmo espaço, sendo esta afinal a função
da poesia e a imagem de uma arte poética.
Com a intenção de reflectir sobre um certo compromisso social desta
poesia, terminamos a referência à arte poética com um breve excerto do
longo poema "Peregrinação e catábase" (Brandão, 2000: 110-121): uma
imagem de procura, de reconstituição conseguida a custa da memória de
uma criança, do contacto com a vida, com a realidade e com a natureza,
mas num tempo atribulado, onde a síntese se torna essencial depois de
310 Reuí,sta Portuguesa de Humanídades

diversos momentos de angústia. Narra aquilo que hoje possui do passado,


sendo útil para o presente.

Porque aquela de quem era filha


me levou como peregrina outrora
onde não soube ver senáo os rostos
e os percursos que a memória trouxe,
sou hoje a narradora, até ao milénio,
desta peregrinação e da catábase
com que me torturo e salvo, nestes versos,
em nome dos homens do meu século.

(Brandão, 2000: 113)

Entenda-se destes versos o seu poder salvífico, a capacidade de incor-


porar a vida e a morte numa atitude de integração dos contrários, de uni-
dade num todo, onde por um lado a peregrinação em sentido específico e
simbólico e por outro a catábase de uma geração ou várias geraçÕes exigem
uma reflexão, uma tomada de posição, exigem uma "narradora" que
assuma os seus versos como momento de tortura e salvaçáo.

rrSumário Líricou

Assumindo, como nosso também, o título do último poema do livro


Cenas Víuas de Fiama Hasse Pais Brandão, terminamos esta proposta de
leitura, procurando de algum modo apresentar uma imagem panorâmica a
partir, precisamente, deste "Sumário Lírico" (Brandão, 2000: 136-139),
composto por dezassete quintilhas e um verso solto. Como sumário, não
podem ser estranhas a este texto poético algumas particularidades que
foram sendo destacadas ao longo da sua obra: diversos momentos e pers-
pectivas, métodos e temas estarão aqui presentes. Digamos que, se o sumá-
rio foi criteriosamente elaborado, deve representar todo um percurso, focali-
zando os momentos mais significativos desse caminho.
Tentando agnrpar alguns aspectos centrais do poema, apresentamos
em primeiro lugar a ideia reforçada em vários momentos de uma poética
pessoal e uma valorização de outras vozes que lhe deram "todos juntos o
cerne das palavras" (Brandão, 2000: 136). Num segundo grupo, distingui-
mos alguns versos que marcam significativamente a sua poesia. Um ter-
A poesia de Fiama.Flasse Pqis Brqndao 311

ceiro é representado por vários vocábulos que sáo, para além de recorrentes
neste poema, muito significativos no contexto da obra de Fiama. São eles
lanela", "vidraças" e "vidro", associados a outros elementos como "cisco",
"marca preta" e espaços relacionados com realidades interiores e exteriores
ao vidro.
Vamos por partes. O sujeito lírico considera a poesia como uma activi-
dade pessoal de reescrita do "mundo" (Brandão, 2000: 136) e de reescrita
de si próprio "sem outra alternativa" (íb.). O verbo reescrever pressupõe
uma primeira escrita que se encontra no mundo, no corpo e nos sentidos
do sujeito lírico; a reescrita será uma segunda escrita, um modo de mostrar
de cor o que vê e sabe de tanto ter olhado, de tanto ter sentido a respiração
de tudo que o rodeia. Esta reescrita da realidade e do corpo representa-se
também como intersecção e unidade, "Avança pelo estuário, golfinho entre
golfinhos,/um, o que passou pelo interior de meu corpo,/menos vasto do
çlue o mar, menos amplo do que o teu" (id.: 1371.
Relativamente ao diálogo que a poesia de Fiama mantém com outras
poesias e outros autores, apreciamo-lo, não só pela forma como afirma
valorizá-lo, como também pelas relações intertextuais que pressupÕe. Os
versos "Imagens que sempre ficais nestas vidraças,/emprestai vosso vidro e
revérbero à luz/do farol extinto" (Brandão, 2000: 136) fazem-nos recordar
respectivamente Camilo Pessanha com os versos "Imagens que passais pela
retina/Dos meus olhos, porque não vos fixais?" e Cesário Verde com "A
esguia difusão dos vossos reverberos,/E a vossa palidez romântica e lunar!"
dirO S"trlitnento dum Ocidental". O sentido dos versos de Pessanha é alte-
rado radicalmente, sendo valorizada uma clara fixidez do espaço em detri-
mento do tempo que degrada. Igualmente curiosa é a capacidade actuante
do "vidro" e reflexo sobre o "farol extinto", já que em Cesário os reflexos são
difusos e surgem num espaço nocturno de luminosidade reduzida, os refle-
xos irrompem da própria realidade. No poema de Fiama, os reflexos e a luz
sáo cedidos pelo vidro ao farol, funcionando exactamente no sentido inverso
do que seria de esperar.
Naquele que atrás denominamos de segundo gruPo, no âmbito do
poema que estamos a ler, podemos destacar versos como "começo devagar a
reescrever o mundo quedo/que é o único que conheço e vivo, sei e de cor
vejo" (Brandão, 2000: 136), "Qualquer vidro ressuma por dentro o seu frio
exterior" (id.: 13S) "E o tempo náo existe quando tudo se reúne" (íb.). Todos
estes versos são bastante significativos no contexto da obra poética e em
especial da sua obra a partir do final da década de sessenta. O vagar da sua
312 Reuista Portuguesa de Humanídades

poesia, a atenção aos pormenores, a sensibilidade colocada no contacto


visual, "Hoje ou agora, os meus olhos/são somente como o tacto: apalpam"
(ld.: 38), a intenção de abstrair o tempo do espaço, um "mundo quedo",
como já tivemos oportunidade de referir são características distintivas que
definem uma arte poética pessoal. A propósito desta temática, o verso "E o
tempo náo existe quando tudo se reúne" (ld.: 138) vai ao encontro dessa
intenção de captar a realidade como se ela fosse única e una, como se ela
representasse, num momento eterno, todas as sequências temporais, como
"uma pintura eterna" (id.: 38). Um outro aspecto que se destaca da poesia
de Fiama tem a ver com a emotividade e a sensibilidade com que a poetisa
acede à realidade, já que o "vidro ressuma por dentro o seu frio exterior"
(ld.: 138) e ela não é indiferente ao sofrimento humano. O sujeito lírico
assume, em certos momentos, uma determinada atitude crítica perante
decisÕes políticas relativamente a África, às guerras lá travadas e as doen-
ças que hoje grassam por aquelas terras (cf. Brandão, 2000: 138).
Passando para o último dos grupos que atrás enunciámos, merecem
alguma atenção os vocábulos "vidro", "vidraça e "janela". Os dois primeiros
parecem-nos interessantes pela capacidade que têm de permitir a apreen-
são nítida da realidade e simultaneamente conseguir plasmar numa única
dimensáo próxima e distante dos dedos toda a realidade, como que distan-
cia e distingue o acto criativo e o serì criador da matéria-prima que é a rea-
lidade. Vidro, no entanto, pode também representar o próprio sujeito lírico
ou o olhar que se embacia, que se ofusca, que se esfuma e como que se
torna incapaz de recordar todas as imagens presentes na natureza e com a
qual muitos conhecidos seus contactaram. As vidraças são como a máquina
fotográfica atenta a eternizar todos os momentos, capaz de captar pelo
olhar vigilante e definitivo, na superficie límpida da palavra, a eternidade. A
vidraça, membrana transparente que afasta e aproxima o sujeito lírico da
reaÌidade, tudo reúne, fazendo com que o tempo não eísta: o olhar é "sem-
pre o puro tacto, quando o som/sai desta boca, sopro, e toca em sons e
seres" (lb.).

Foi nossa intenção perspectivar algumas linhas de força constantes ao


longo da obra de Fiama Hasse Pais Brandão. Os primeiros poemas que
comentámos demonstraram características que se foram encontrando ao
longo das décadas seguintes. Uma poesia de forte sensibilidade, mantendo
uma atenção a todas as circunstâncias e sempre consciente da capacidade
da palavra poética para eternizar e compreender o mundo e a vida. Ao longo
A poesía de Fiama.ÊIasse Pais Brandão 313

desta evolução, verificámos na palavra e no verso uma gradual aproximação


a realidade, uma cuidada atençáo e simultaneamente uma depuração no
sentido de transpor paÍa a palavra aquela imagem intemporal, como foto-
grafia que anula o tempo e focahza o espaço como realidade humana que
apazígaa as complexas vivências do ser humano.

Referências

Activas
BRANDÃo, Fiama Hasse Pais,
1991 Obra Breue, Lisboa, Editorial Teorema.
2000 Cenas Viuas, Lisboa, Relógio d'Água.
2001 uA minha poética nos anos 60 (memorandum talvez para os críticos)", Ín
Relô.mpago, Revista de Poesia, n" 8, pp. 109-112.

Passivas
AMARAL, Fernando Pinto do,
1991 O Mosaico Fluido: modemidade e pós-modemídade na poesia portuguesa maís
recente (autores reuelados na década de 70), Lisboa AssÍrio & Alvim.
CHEVALIER, Jean; GueeneRANT, Alain,
lgg2 Dicíondio de Símbolos (trad. do original Díctionaíre des Sgmboles, Paris, Ed.
Robert Laffont S.A. e Ed. Jupiter, 7982, por Vera da Costa e Silva, Raul de Sá
Barbosa, Angela Melim e Meiim), 6" ed., Rio de Janeiro, José Olympio Editora.
CoELHo, Eduardo Prado,
1988 A Noite do Mundo, col. "Estudos e Temas Portugueses", Lisboa, Imprensa
Nacional - Casa da Moeda.
CRUZ, Gastão,
1973 A Poesia Portuguesa Ho.7e, Lisboa, Piátano Editora.

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