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Literatlu:ta-
Estudos Clássicos
=R'EVISTA
===PORTIJGUESA
DE
"=#ilUIVIANIDADE
Vol. I
Ano 2004
DIRECTOR ADJUNTO
Augusto Soares da Silva
SECRETÁNO
Miguel Gonçalves
Luís da Silva Pereira
CONSELHO DE REDÁCÇÃO
Alfredo Dinis, Amadeu Tones, Ana Paula Pinto, António Melo, Augusto Soares Silva, Carlos Vaz,
João Amadeu Silva, José Alves Pires, José Cândido Martins, José Gama, Luís da Silva Pereira,
Manuel Losa, Maria José Ferreira, Mário Garcia, MigueÌ Gonçalves, Nuno da Silva Gonçalves
COMISSÃO CIENTÍFICA
Aires A. Nascimento, Universidade de Znóoc João Malaca Casteleiro, Universìdade de Lísboa
Aníbal Pinto de Casto, Universidade de Coímbra Jorge Morais Barbosa, Universidade de Coimbra
AméricodaCostaRamalho,UniversidadedeCoimbra JosêLuisCifuentesHonrubia,UniversidadedeAlicante
António Lopez Eire , Universidade de Salamanca José Sánchez Marín, Universidade de Granada
António Machado Ptes, Universidade dos Áçores José V de Pina Martns, Academia das Ciências de Lisboa
António Martins de Araújo, Univ. Federal do Rio de Janeiro Leodegário A. Azevedo Filho, Academia Bruileira de Filologia
Amaldo Saraiva, Universidade do Porto Maria Helena da Rocha Pereira, Universidade de Coimbra
Carlos Reis, Universidade de Coimbra Máno'Vllela, Uníversìdade do Porto
Clarinda Azevedo M aïa, Universídade de Coimbra Nrcole Delbecque, Universídade de Leuven
Dieter Messner, tJniversidade de Salzárry Onésimo Teotónio Almeida, Universidade de Brcwn
Dirk Geeraers, Universidade de Leuven OswaldDucrol, EHESS - Pais
Enrique Bemardez, Universidade Compluteree de Madrid Per Aage Brandi, Universidade de Aarhus
Eusiaquio Sanchez Salor, Uniyersidade da Exnemadura PlNnón Almela Pérez, Universidade de Murcia
Evanildo Bechara, tJniv. do Estado do Rio de Janeirc Ronald W Langacker, Universidade da Califómia, San Diego
Gilbert Toumoy, Universidade de Leuven Sílvio CastÍo, Universidade de Pádua
Horácio Rolim de Freïtas, tJniv Esndual do Rio de Janeiro T]rtomasEarle, Universidade de Oxford
Isabel Hub Faria, Universidade de Lrsàoa Toru Maruyama, Universídade de Narean, Nagoya
Jean-ClaudeMargohn,UníversidadedeTours YítorManuelPiresdeAguiareSilva,UniversidadedoMinho
PROPNEDADE
Faculdade de Filosofia de Braga - Publicações
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ASSINATURÁ
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DISTNBUIÇÃO
SODILIVROS
TIRÀGEM
500 exemplares
CAPA
Marcelo Marques
IMPRESSÃO
e pela noção e pelo conceito surge o nome: "a palavra água torna aparente a
visão da ave, que só existe agora, pensada e dita, um nome" (lb.). No ter-
ceiro momento, memorizam-se "pequenas cenas e paisagens" (íd': 111) e
dessa forma a autora chega "até ao discurso poético literalmente discursivo,
longo, enunciativo e confessional" (íb.), necessitando, assim, de versos lon-
gos entre 1967 e 1969. As características deste terceiro momento, com ligei-
ras variaeões, podem encontrar-se na sua poesia publicada posteriormente.
Sem pretendermos desenvolver uma abordagem exaì-rstiva dos três
momentos referidos pela poetisa, podemos recorrer ao primeiro poema do
Tivro Morfismos a fim de percebermos o ponto de partida de uma longa obra
literária. Perante esse texto, sentiremos a necessidade de eliminar qualquer
(pré)conceito crítico, entendendo o poema como uma realidade que se funda
no acto da escrita.
Grafia 1
se
onde
(Brandáo, 7991:9)
(Brandáo, 799I:4571
(Brandão, 1991:569)
Começando pelo título, Cenas Viuas permitem várias leituras ora asso-
ciadas ao teatro, enquanto representação da vida, ora relacionadas com a
poesia, enquanto configuraçáo da eternidade, "Quando um verso marca o
lugar das coisas/elas aí ficam para sempre" (Brandão, 2000: 77). A cena
como representação da realidade assÌrme-se também como Ìrm modo de
filtrar a quotidianidade e representar, num espaço fora do tempo, aquilo
que não deixa de estar associado inevitavelmente à realidade: as cenas não
poderiam sê-lo sem terem por detrás essa realidade, mas elas são também
um modo de a purificar, representam uma depuração, uma atitude eremita,
uma forma de transformar o concreto em abstracto, o concreto em imagem
da realidade. O adjectivo Víuas aplicado a Cenqs torna-se também muito
interessante pela força que faz recair sobre as cenas, a sua capacidade
representativa, a vitalidade e a possibilidade de se aproximarem da reali-
dade, um modo de ter a pedra do eremita no deserto e nela encontrar a sua
"qualidade húmida".
O título Cena.s Viuas sugere a importância de um espaço e promove
uma reflexão sobre a questão do tempo, para aIém de não definir ou indefi-
nir as cenas. Esta referência ao título náo deve parecer excessiva, a sua
pertinência será comprovada quando tratarmos das relaçÕes do tempo e do
espaço no livro, assim como do papel da realidade, da palavra poética e do
corpo que nestas cenas, por serem vivas, também o implicam.
ANaturezaeaRealidade
(Brandão,2000: 10-11)
Afirmar que toda "a natureza me coube nas pupilas" e ela se mostrou
como "mestra dos sentimentos" exige que nos questionemos acerca do
modo como surge essa mestria na área dos sentimentos. À medida que
formos lendo este livro, construiremos uma visão dessa relação com a
natureza e entenderemos a forma como esse diálogo construiu uma
determinada personalidade poética.
A poesía de Fiama FIasse Pais Brandao 29r
(Brandão, 2OOO:25-261
(Brandão,2000: 107)
[...] Fosses tu
um homem dos oficios rurais, e ainda habitarias
os campos, não, nunca, na memória, mas aqui.
Ou tal como os outros mortos cuidadosos,
em corpo visto, na luz reconhecida,
nesta suspeita que recebo do real,
como se eu tentasse entender uma pintura eterna.
(Brandão,2000: 18)
t...1
Criança, a tua máo de areia
construiu a praia. Os teus dedos
sonoros chamam-me agora.
Chamei-te, outrora, eu, no transe
do som a pousar no meu mar.
Aceita a água que vem
para os teus pés, recebe a luz, colhe
as pequenas algas. São-te dadas
pelo passado tempo, ainda
recordado, em ti, por mim, realidade.
(Brandão,2000: 130)
OTempoeoEspaço
(Brandáo, 2OOO:71-72)
A poesía de Fiama FIasse Pais Brandao 299
I Este poema surge no iivro Cenas Víuas, na página 78 e 30 (embora com algumas
breves diferenças). O mesmo sucede com um outro poema, embora com títulos distintos:
p. 78 e 91, respectivamente nleituras em Novembroo e um texto, entre vários, subordinado
ao tÍtulo "Lápideso.
300 Reuista Portuguesa de Humanídades
ARealidadeeaMorte
t...1
Ao partirem, eu dizia que a ausência
seria mais dura do que o bater da onda.
Dizia que as duas vozes afastando-se
vazavam de sons o meu peito,
e que estar a ver partir o barco
me deixaria na margem a meditar,
e far-me-ia escrever poemas desabridos
e aÍnar outras crianças similares
que não haviam partido ainda.
(Brandáo,2000: 81)
versosjá comentados "E me seja dada enfim a graça/de ser eu cega e ser eu
coxafna vida e na parábola" (Brandão,2000: 72). A casa, a área limitada
pelo portão, o jardim são espaços fundamentais para que se compreenda
toda a poesia de Fiama e representam uma das possibilidades daquela
"visáo inteira" referida pelo sujeito lírico sem necessitar de sujeitar o
cenário aos efeitos devastadores do tempo que culmina com a morte.
As Cenas Víuas são, deste modo, as imagens vivas do espaço, signifi-
cam a captação representativa das emoçÕes e dos sentimentos abstraídos
da capacidade corrosiva do tempo, configuram a constante actualização dos
momentos marcantes de uma vida através da recorrência à rrattoreza e a
toda a realidade circundante.
(Brandão,2000: 51)
Neste poema, o sujeito lírico decide-se por uma clara opção pelo
mundo, pela realidade, pelos sons e pelas figuras, negando à escrita a pos-
sibilidade de se afastar desse ambiente. A escrita verificar-se-ia falaciosa se
nos fizesse esquecer o mundo, se a duplicação da realidade transformasse o
silêncio numa realidade vazia de sons e de figuras. Na poesia de Fiama,
entra toda a Natureza pelo olhar atento, todos os sentidos estão disponÍveis
para captar a realidade e transmitir a sua beleza.
nToda anatureza me coube nas pupilas,/mestra dos sentimentos, e eu
discípula" (Brandão, 2000: 10) e como aprendiz, a poetisa, criança sempre
vigilante, reconhecia no melro e no grilo os atributos que anseia para as
suas palavras, "Porque cantam sem pensarem no seu canto/e conhecem
dos meus nomes o mais eterno" (id.: 37). O conhecimento "dos meus nomes
o mais antigo" representa a crença absoluta na natureza, na sabedoria com
que nos brindam os animais, no modo como comunicam e vivem, na rela-
ção que criam com aqueles que thes dá atenção. Num outro momento cla-
ramente distinto deste, no entanto, com evidente interesse a propósito dos
nomes, leiam-se os versos que se seguem, como homenagem a Sophia de
Mello Breyner Andresen que nos deixou, quando estávamos a escrever este
texto (2 de Julho de 2004).
(Brandão, 2OOO:41-421
A poesia de Fiama.Flasse Pais Brandao 307
No poema "Na rua das Mónicas", Fiama, num dos diálogos que man-
tém com determinados poetas ou obras literárias, recorda-se das visitas que
fazia a casa de Sophia.
A relação profunda entre os nomes e a realidade, a representação
absoluta da realidade nos nomes ou o "poder dos nomes [...] sobre os seres
e as coisas" promove uma relação biunÍvoca entre os nomes e a realidade.
Deste modo, tanto será de realçar o papel primordial das palavras,
enquanto entidade matricial, como o conhecimento que na natureza os
animais têm dos sons e da origem já que "conhecem dos meus nomes o
mais eterno". Será neste duplo sentido que podemos ler a poesia de Fiama
Hasse Pais Brandão, numa entrega à natureza e à realidade, com o sentido
apurado de transpor para as palavras os cinco sentidos e a proximidade
vivida da realidade que a circunda.
Encontramos no poema "Espaços", novamente, a relação que o sujeito
lÍrico mantém com as coisas e com os seres, o sentido de abrangência e o
modo como os procura apreender distanciados no tempo. Nesta perspectiva,
é desde logo interessante o tÍtulo do poema, dada a clara tentativa de captar
a realidade abstraindo-se do tempo que a degrada.
(Brandão, 2OOO:941
(Brandáo, 2OOO:77\
A poesía de Fiama FÍasse Pais Branddo 309
rrSumário Líricou
ceiro é representado por vários vocábulos que sáo, para além de recorrentes
neste poema, muito significativos no contexto da obra de Fiama. São eles
lanela", "vidraças" e "vidro", associados a outros elementos como "cisco",
"marca preta" e espaços relacionados com realidades interiores e exteriores
ao vidro.
Vamos por partes. O sujeito lírico considera a poesia como uma activi-
dade pessoal de reescrita do "mundo" (Brandão, 2000: 136) e de reescrita
de si próprio "sem outra alternativa" (íb.). O verbo reescrever pressupõe
uma primeira escrita que se encontra no mundo, no corpo e nos sentidos
do sujeito lírico; a reescrita será uma segunda escrita, um modo de mostrar
de cor o que vê e sabe de tanto ter olhado, de tanto ter sentido a respiração
de tudo que o rodeia. Esta reescrita da realidade e do corpo representa-se
também como intersecção e unidade, "Avança pelo estuário, golfinho entre
golfinhos,/um, o que passou pelo interior de meu corpo,/menos vasto do
çlue o mar, menos amplo do que o teu" (id.: 1371.
Relativamente ao diálogo que a poesia de Fiama mantém com outras
poesias e outros autores, apreciamo-lo, não só pela forma como afirma
valorizá-lo, como também pelas relações intertextuais que pressupÕe. Os
versos "Imagens que sempre ficais nestas vidraças,/emprestai vosso vidro e
revérbero à luz/do farol extinto" (Brandão, 2000: 136) fazem-nos recordar
respectivamente Camilo Pessanha com os versos "Imagens que passais pela
retina/Dos meus olhos, porque não vos fixais?" e Cesário Verde com "A
esguia difusão dos vossos reverberos,/E a vossa palidez romântica e lunar!"
dirO S"trlitnento dum Ocidental". O sentido dos versos de Pessanha é alte-
rado radicalmente, sendo valorizada uma clara fixidez do espaço em detri-
mento do tempo que degrada. Igualmente curiosa é a capacidade actuante
do "vidro" e reflexo sobre o "farol extinto", já que em Cesário os reflexos são
difusos e surgem num espaço nocturno de luminosidade reduzida, os refle-
xos irrompem da própria realidade. No poema de Fiama, os reflexos e a luz
sáo cedidos pelo vidro ao farol, funcionando exactamente no sentido inverso
do que seria de esperar.
Naquele que atrás denominamos de segundo gruPo, no âmbito do
poema que estamos a ler, podemos destacar versos como "começo devagar a
reescrever o mundo quedo/que é o único que conheço e vivo, sei e de cor
vejo" (Brandão, 2000: 136), "Qualquer vidro ressuma por dentro o seu frio
exterior" (id.: 13S) "E o tempo náo existe quando tudo se reúne" (íb.). Todos
estes versos são bastante significativos no contexto da obra poética e em
especial da sua obra a partir do final da década de sessenta. O vagar da sua
312 Reuista Portuguesa de Humanídades
Referências
Activas
BRANDÃo, Fiama Hasse Pais,
1991 Obra Breue, Lisboa, Editorial Teorema.
2000 Cenas Viuas, Lisboa, Relógio d'Água.
2001 uA minha poética nos anos 60 (memorandum talvez para os críticos)", Ín
Relô.mpago, Revista de Poesia, n" 8, pp. 109-112.
Passivas
AMARAL, Fernando Pinto do,
1991 O Mosaico Fluido: modemidade e pós-modemídade na poesia portuguesa maís
recente (autores reuelados na década de 70), Lisboa AssÍrio & Alvim.
CHEVALIER, Jean; GueeneRANT, Alain,
lgg2 Dicíondio de Símbolos (trad. do original Díctionaíre des Sgmboles, Paris, Ed.
Robert Laffont S.A. e Ed. Jupiter, 7982, por Vera da Costa e Silva, Raul de Sá
Barbosa, Angela Melim e Meiim), 6" ed., Rio de Janeiro, José Olympio Editora.
CoELHo, Eduardo Prado,
1988 A Noite do Mundo, col. "Estudos e Temas Portugueses", Lisboa, Imprensa
Nacional - Casa da Moeda.
CRUZ, Gastão,
1973 A Poesia Portuguesa Ho.7e, Lisboa, Piátano Editora.