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Outros livros da FILÕ FILÕMARGENS autêntica

F IL Õ FIL Õ E S P IN O S A

A teoria dos incorporais no estoicismo antigo Breve tratado de Deus, do homem


Émile Bréhier e do seu bem-estar
Espinosa
A sabedoria trágica
Sobre o bom uso de Nietzsche A unidade do corpo e da mente
M ichel Onfray Afetos, ações e paixões em Espinosa

F IL Õ A G A M B E N
Chantal Jaquet

F IL Õ EST ÉT IC A
Slavoj Zizek
A comunidade que vem
Gioigio Agamben

O homem sem conteúdo


0 bek> autônomo
Textos clássicos de estética
Rodrigo Duarte (oig.)
Boris Gunjevic
0 sofrimento de Deus:
Gioigio Agamben

Ideia da prosa O descredenciamento filosófico


da arte
Giorgio Agamben
Arthur C. Danto
Introdução a Giorgio Agamben
Uma arqueologia da potência
Edgardo Castro
Do sublime ao trágico
Friedrich Schiller

íon
inversões do Apocalipse
Meios sem fim
Platão
Notas sobre a política
Gioigio Agamben
F IL Õ M A R G E N S
Nudez
Gioigio Agamben 0 amor impiedoso.
(ou: Sobre a crença)
A potência do pensamento
Slavojlilek
Ensaios e conferências
Gioigio Agamben Estilo e verdade em Jacques Lacan
Gilson lanninl
FILÕ BATAILLE
Introdução a Foucault
Edgardo Castro
O erotismo
Geoiges Bataille Kafka
Por uma literatura menor
A parte maldita
Gilles Deleuze
Tradução
Precedida de “A noção de dispêndio”
Georges Bataille
Félix Guattari
Rogério Bettoni
Lacan, o escrito, a imagem
FILÕ B EN JA M IN Jacques Aubert, François Cheng, JearrCIaude
Milner, François Regnault, Gérard Wajcman
O anjo da história
Walter Benjamin
A N T IFILÕ
Imagens de pensamento
A Razão
Sobre o haxixe e outras drogas
Pascal Quignard
Walter Benjamin

Origem do drama trágico alemão


Walter Benjamin

Rua de mão única


Infância beriinense: 1900
Walter Benjamin
C opyright © 2012 Slavoj Z iíe k e Boris Gunjevié
Publicado originalm ente por Seven Stories Press, N ew York, U.S.A., 2012. Sumário
Esta edição é publicada m ediante acordo especial com SEVEN STORIES PRESS em
co nju n to com o agente devidam ente nom eado, VBM Agência Literária.
C opyright © 2015 Autêntica Editora

Título original: G od in Pain: Inversions o fA p ocalyp se

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida,
seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.
7. Introdução: Por uma suspensão teológico-política do ético
Os trechos da Bíblia usados com o citação foram extraídos da Bíblia d e Jerusalém (São Paulo: Paulus, Slavoj Zizek
2 ed., 2003). Os trechos do Alcorão fo ra m citados de Tradução d o sentido d o N obre Alcorão para a lingua
portuguesa (Tradução de Dr. Helmi Nasr. Complexo de Impressão do Rei Fahd, [s.d.]).
7. Introdução: A mistagogia da revolução
Boris Gunjevic
C O O RDENAD O R D A COLEÇÃO FILÓ EDITORA RESPONSÁVEL
Gilson lannini Rejane Dias

CONSELHO EDITORIAL EDITORA ASSISTENTE 35. 1. O cristianismo contra o sagrado


Cecília Martins
Gilson lannini (UFOP); Barbara Cassin (Paris); Zizek
Cláudio Oliveira (UFF); Danilo M arcondes PROJETO GRAFICO

(PUC-Rio); Ernani Chaves (UFPA); Guilherme D io g o Droschi


Castelo Branco (UFRJ); João Carlos Salles REVISÃO
59. 2. Virtudes babilónicas: palavra da minoria
(UFBA); M onique David-M énard (Paris); Aline Sobreira
Olímpio Pimenta (UFOP); Pedro Süssekind
Lívia Martins Gunjevic
(UFF); Rogério Lopes (UFMG); Rodrigo CAPA

Duarte (UFMG); Rom ero Alves Freitas Alberto Bittencourt


(sobre capa da edição original) 85. 3. Uma olhadela nos arquivos do islã
(UFOP); SlavojZizek (Liubliana); Vladimir
Safatle (USP) D IA G R A M A Ç Ã O Zizek
Christiane M orais

105. 4. Todo livro é como uma fortaleza:


a carne foi feita verbo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Gunjevic
ZiJek, Slavoj
O sofrimento de Deus: inversões do Apocalipse/ Slavoj 2i2ek , Boris Gunjevic; tradução 129. 5. Apenas um Deus que sofre pode nos salvar
Rogério B e tto n i. - 1. ed. - Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2015. - (Filó/Margens)
Zizek
Título orig ina l: God in Pain: Inversions o f Apocalypse.
Bibliografia
ISBN 978-85-8217-463-0
161. 6. A emocionante aventura da ortodoxia radical:
1. Religião e política 2. Religião - Filosofia - História I. Gunjevié, Boris. II. Título. III. Série. exercícios espirituais
14-10468 CDD-200.1 Gunjevic
Indices para catálogo sistemático:
1. Filosofia e religião 200.1 185. 7 . O olhar animal do Outro
Zizek
<@ G R U P O A U T Ê N T I C A

Belo Horizonte São Paulo


203. 8. Rezai e observai: a subversão messiânica
Rua Aimorés, 981, 8o a n d a r. Funcionários Av. Paulista, 2.073, C onjunto Nacional, Gunjevic
30140-071 . Belo H orizonte . MG Horsa I . 23° andar, Conj. 2301 . Cerqueira
Tel.: (55 31) 3214 5700 C é sa r. 0 13 11-940 . São Paulo . SP

Televendas: 0800 283 13 22


Tel.: (55 1 1 )3 0 3 4 4 468 227. Referências de “A mistagogia da revolução” e dos
w w w .g ru po a u te n tica.com .br capítulos 2, 4, 6 e 8
1. 0 cristianismo
contra o sagrado
Slavoj Zizek
E m bora a declaração “ Se Deus não existir, então tudo é p erm itid o ”
seja com um ente atribuída a O s irmãos Karamàzov, D ostoiévski nunca
a proferiu1 (o prim eiro a atribuí-la a ele foi Sartre, em O ser e o nada).
N o entanto, o próprio fato de essa atribuição equivocada ter perdurado
durante décadas dem onstra que, ainda que factualm ente falsa, ela atinge
u m ponto sensível de nosso edifício ideológico. N ão surpreende que
os conservadores gostem de evocá-la a propósito dos escândalos entre
a elite ateísta-hedonista: de m ilhões de pessoas m ortas nos gulags até o
sexo anim al e o casam ento gay, é nesse ponto que term inam os quando
negam os toda a autoridade transcendente que estabeleceria os lim ites
insuperáveis às iniciativas hum anas. Sem esses lim ites —pelo que se diz
—não há nen h u m a barreira suprem a que nos im peça de explorar cruel­
m ente o próxim o, de usá-lo com o ferram enta para o lucro e o prazer,
escravizando-o e h u m ilh an d o -o , ou assassinando-o aos m ilhões. Então,
tu d o que nos separa desse vácuo m oral suprem o são os “pactos entre
lobos”, tem porários e não obrigatórios, ou seja, lim ites autoim postos

1 C h e g am o s apenas a a p ro x im açõ es dessa declaração, co m o a afirm ação de D m itri em


sua discussão com c o m R a k itin (com o relata D m itri para A líocha): ‘“ M as e n tã o o que
será dos h o m e n s’, p e rg u n te i-lh e , ‘sem D e u s e a v id a im o rtal? E n tã o todas as coisas são
p e rm itid a s, que p o d e m fazer o que q u iserem ?’”. V er D O S T O Y E V S K Y , F yodor. T h e
Brothers K aram azov. N e w Y ork: D o v er, 200 5 . p. 672. N e sta trad u ç ão , a seg u n d a frase
com eça com “E n tã o todas as coisas são lícitas”; depois de c o m p a rá-la c o m o o rig in a l,
m o d ifiq u e i “ lícitas” p o r “ p e rm itid a s”, pozvoleno, em russo.

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aceitos em benefício da própria sobrevivência e bem -estar, e que podem o façam , é preciso u m a C ausa “sagrada” m aior, u m a Causa que faça
ser violados a qualquer m om ento... Mas as coisas são realm ente desse jeito? qualquer preocupação individual m ín im a em relação à m atança parecer
C o m o é am plam ente sabido, Jacques Lacan afirm ou que a prática trivial. A religião e o pertencim ento étnico são perfeitam ente compatíveis
psicanalítica nos ensina a inverter o dito de Dostoiévski: “ Se D eus não com esse papel. É claro que existem casos de ateus patológicos capazes
existir, então tu d o é proibido”. Essa inversão é difícil de engolir para de com eter assassinatos em massa p o r puro prazer, m atando p o r matar,
nosso senso co m um m oral: nu m a resenha um tanto positiva sobre u m mas eles são raras exceções. A m aioria das pessoas precisa estar aneste­
livro de Lacan, u m jo rn a l esloveno de esquerda publicou assim a versão siada contra a sensibilidade elem entar para com o sofrim ento do outro.
de Lacan: “M esm o se D eus não existir, nem tudo é p erm itid o !” - um a Para isso, é preciso um a Causa: sem ela, teríam os de sentir todo o peso
vulgaridade benevolente, transform ando a inversão provocadora de La­ do que fazemos, sem n en h u m absoluto sobre o qual descarregaríam os
can na garantia m odesta de que m esm o nós, ateus ím pios, respeitam os nossa responsabilidade final. Os idealistas religiosos costum am afirm ar
alguns lim ites éticos... C o n tu d o , m esm o que a versão de Lacan pareça que, verdadeira ou não, a religião leva pessoas geralm ente ruins a fazer
u m paradoxo vazio, u m breve exam e de nossa paisagem m oral confir­ coisas boas. Pela experiência atual, deveríam os antes nos ater à afirmação
m a que é m u ito m ais apropriado descrever o universo dos hedonistas de Steve W einberg: em bora sem religião, as pessoas boas co ntinuariam
liberais ateus: eles dedicam a vida à busca dos prazeres, m as com o não fazendo coisas boas, e as ruins, coisas ruins, som ente a religião pode levar
há n e n h u m a autoridade ex tern a que lhes garanta o espaço para essa pessoas boas a fazer coisas ruins.
busca, eles acabam intricados nu m a densa rede de regras autoim postas e N ão m enos im portante, o m esm o parece ser válido para a dem ons­
politicam ente corretas, com o se u m supereu m uito mais severo que o da tração das cham adas “ fraquezas hum anas”: formas extrem as e isoladas
m oral tradicional os controlasse. Eles se to rn am obcecados com a ideia de sexualidade entre hedonistas ím pios são im ediatam ente elevadas a
de que, ao buscar seus prazeres, eles po d em h u m ilh a r ou violar o espaço símbolos representativos da depravação dos ím pios, ao passo que qual­
dos outros, p o r isso regulam seu com portam ento em regras detalhadas quer questionam ento, digam os, da relação entre o fenôm eno m uito mais
de com o evitar “assediar” os outros, isso sem m encionar regras m enos com um da pedofilia entre padres e a Igreja com o instituição é rejeitado
complexas relacionadas ao cuidado de si (ginástica, alim entação saudável, com o difam ação antirreligiosa. A história b em -d o cu m en tad a de com o a
relaxam ento espiritual...). N a verdade, nada é m ais opressor e regulado Igreja católica com o instituição protege os pedófilos dentro de sua própria
que u m simples hedonista. hierarquia é o u tro b o m exem plo de com o, se D eus existir, então tudo
A segunda coisa, estritam ente correlata à prim eira observação, é é perm itido (para aqueles que se legitim am com o servos de Deus). O
que, hoje em dia, tu d o é p erm itido para aqueles que se referem a Deus de que torna tão repugnante essa atitude p rotetora em relação aos pedófilos
u m a m aneira bru talm ente direta, percebendo-se com o instrum entos da é o fato de não ser praticada p o r hedonistas tolerantes, mas sim —para
vontade de Deus. São os cham ados fundam entalistas que praticam um a piorar ainda mais as coisas - pela m esm a instituição que posa de guardiã
versão pervertida do que K ierkegaard chamava de suspensão religiosa do m oral da sociedade.
ético: para cu m p rir um a missão de D eus, tem -se perm issão para m atar Mas e quanto aos assassinatos em massa realizados pelos comunistas
m ilhares de inocentes... E ntão p o r que testem unham os hoje o aum ento stalinistas? E quanto à liquidação extralegal de m ilhões de anônim os? E
da violência justificada religiosam ente (ou eticam ente)? Porque vivem os fácil perceber com o esses crim es sem pre foram justificados pelo próprio
n um a época que se considera pós-ideológica. C om o as grandes causas falso deus dos stalinistas, “o D eus que fracassou”, com o o cham ou Ignazio
públicas não po d em m ais ser usadas com o fundam entos para a violência Silone, u m dos grandes ex-com unistas decepcionados — eles tin h a m
em massa (ou guerra), isto é, com o nossa ideologia hegem ônica nos incita seu próprio Deus, p o r isso tu d o lhes era perm itido. E m outras palavras,
a gozar a vida e com preender nossos Eus, é difícil, para a m aioria, superar a m esm a lógica da violência religiosa aplica-se aqui. O s com unistas
essa repulsa pela to rtu ra e pelo assassinato de outro ser hum ano. A grande stalinistas não percebem a si próprios com o individualistas hedonistas
m aioria das pessoas é espontaneam ente m oral: to rtu ra r ou m atar outro abandonados à própria liberdade; não, eles se veem com o instrum entos
ser h u m an o é p ro fundam ente traum ático para elas. E ntão, para que elas do progresso histórico, instrum entos de um a necessidade que im pulsiona

38 f il Om a r g e n s S L A V O J Í 1 Í E K / B O R IS G U N JE V IC 0 SO FRIM EN TO DE DEUS: IN VERSÕ ES DO APOCALIPSE 39


a h u m an id ad e para u m estagio superior” do com unism o — e é essa jam ais teria vontade de com eter n en h u m mal... Essa fórm ula da suspen­
referência a seu próprio A bsoluto (e à relação privilegiada que eles têm são religiosa “ fundam entalista” do ético já foi proposta p o r A gostinho
com ele) que lhes perm ite fazer o que querem (ou o que consideram quando ele escreveu: “A m e a D eus e faça o que tiver v ontade”. (O u,
necessário). É p o r isso que, no m om ento em que a rachadura aparece em outra versão: “A m e e faça o que tiver vo n tad e” —da perspectiva cristã,
seu escudo ideológico, o peso do que fizeram se torna insuportável para as duas coisas acabam resultando na m esm a, pois Deus é Am or.) A ar­
m uitos indivíduos comunistas, pois eles têm de enfrentar suas ações com o m adilha, obviam ente, é que se você realm ente am ar a D eus, você vai
suas próprias ações, sem o pretexto de u m a R azão da H istória superior. querer o que ele quer —o que o agrada agradará a você, e o que o d e­
E p o r esse m otivo que, depois do discurso de K hrushchev, em 1956, sagrada fará de você u m miserável. E ntão não é que você sim plesm ente
denunciando os crim es de Stalin, m uitos oficiais com eteram suicídio: possa “ fazer o que q u er”: seu am or p or D eus, se verdadeiro, garante que
eles não aprenderam nada de novo com o discurso, todos os fatos lhes você seguirá os padrões éticos mais supremos naquilo que quiser fazer.
eram mais ou m enos conhecidos, mas eles foram privados da legitim ação E com o aquela famosa piada: “M in h a noiva nunca se atrasa para um
histórica de seus crim es dada pelo Absoluto histórico com unista. encontro, pois quando se atrasar, não será mais m in h a noiva” —se você
O stalinism o acrescenta outra virada perversa a essa lógica: para am a D eus, pode fazer o que quiser, porque quando fizer algum a coisa
ju stificar seu exercício cruel do p o d er e da violência, os stalinistas não ru im será a prova de que você realm ente não am a D eus. N o entanto, a
só tiveram de elevar seu próprio papel n u m in stru m en to do Absoluto, am biguidade persiste, pois não há garantia, externa a sua crença, do que
com o tam bém tiveram de dem onizar seus oponentes, de retratá-los com o D eus realm ente quer que você faça —na ausência de quaisquer padrões
a corrupção e a decadência em pessoa. Isso foi verdadeiro a u m nível éticos externos a sua crença em Deus e a seu am or p or ele, você sempre
ainda m aior de fascismo. Para os nazistas, todo fenôm eno de depravação correrá o risco de usar seu am or p o r D eus com o legitim ação para os
era im ediatam ente elevado a sím bolo da degeneração judaica. Logo foi feitos mais horrendos.
declarada a existencia de um a conexão entre especulação financeira, Adem ais, q u ando D ostoiévski in tro d u z a lin h a de pensam ento
antim ilitarism o, m odernism o cultural, liberdade sexual, etc., um a vez de que “se D eus não existir, então tudo é p erm itid o ”, ele não está, de
que todos eram vistos com o oriu n d o s da m esm a essência judaica, o m odo algum , apenas nos alertando contra a liberdade ilim itada — isto
m esm o agente sem i-invisível que controlava secretam ente a sociedade. é, defendendo D eus com o agente de u m a proibição transcendente que
Essa dem onização tinha um a função estratégica precisa: ela justificava lim itaria a liberdade hum ana. N u m a sociedade liderada pela Inquisi­
que os nazistas fizessem o que quisessem, um a vez que, contra u m in i­ ção, não se perm ite definitivam ente tudo, um a vez que D eus atua aqui
m igo desse tipo, no que hoje é u m perm anente estado de em ergência, com o u m po d er superior que restringe nossa liberdade, e não com o a
tu d o é perm itido.
fonte da liberdade. O po n to central da parábola do G rande Inquisidor é
E, p o r fim, mas não menos im portante, devemos notar aqui a m aior justam ente que a sociedade oblitera a própria m ensagem de C risto —se
das ironias: em bora m uitos daqueles que lam entam a desintegração dos C risto retornasse para essa sociedade, ele teria sido queim ado com o um a
lim ites transcendentes se apresentem com o cristãos, o desejo p o r um am eaça m ortal à ordem pública e à felicidade, um a vez que ele levou
novo lim ite exterior/transcendente, por u m agente divino que im ponha para o povo a dádiva (que se revela com o u m fardo pesado) da liberdade
esse lim ite, é p ro fundam ente anticristã. O D eus cristão não é o D eus e da responsabilidade. A afirm ação im plícita de que se D eus não existir,
transcendente das lim itações, mas sim o D eus do am or im anente —Deus, então tudo é perm itido, desse m odo, revela-se m uito mais am bígua —vale
afinal, é am or, ele está presente onde existe am or entre seus fiéis. N ão a pena exam inarm os m ais de p erto essa parte de Os irmãos Karamàzov,
surpreende, portanto, que a inversão de Lacan, “ Se D eus existir, então a longa conversa no Livro V entre Ivan e A líocha que acontece em um
tu d o é perm itido! , seja abertam ente declarada p or alguns cristãos com o restaurante. Ivan conta para A líocha um a história sobre o G rande In q u i­
consequência da noção cristã da superação da Lei proibitiva em amor: sidor que ele im aginou: C risto volta para a terra em Sevilha na época da
se você habita no am or divino, então não precisa de proibições, pode Inquisição; depois de realizar um a série de m ilagres, o povo o reconhece
fazer o que quiser, pois se realm ente habitar no am or divino, é claro que e o adm ira, mas ele logo é preso pela Inquisição e condenado à m orte na

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FILOMARGENS SLAVOJ iÜ E K / B O R IS G U N JEVIC 0 SO FRIM EN TO DE DEUS: IN V E R SÕ E S DO APO C ALIPSE 41
fogueira no dia seguinte. O G rande Inquisidor o visita em sua cela para de C risto A nrit »-foicalmente livres, então essa liberdade tam b ém _
lhe dizer que a Igreja não precisa mais dele - seu reto rn o interferiria na t raz consigo o fardo peoçfo da. responsabilidade total. Essa posição mais
missão da Igreja, que é levar a felicidade para as pessoas. C risto ju lg o u autêntica tam bém não im plica u m sacrifício? D epende do que querem os
m al a natureza hum ana: a m aior parte das pessoas não consegue lidar dizer com esse term o.
com a liberdade que ele lhes deu; ao dar aos seres hum anos a liberdade E m seu “Esboço de u m conceito fenom enológico de sacrifício”,2
de escolha, C risto excluiu da redenção a m aior parte da hum anidade e Jean-L uc M ario n com eça com a afirm ação de que nossos tem pos ímpios
a condenou ao sofrim ento. “aboliram toda diferença entre sagrado e profano, p o rtan to toda pos­
Para levar felicidade para as pessoas, o Inquisidor e a Igreja, p o r­ sibilidade de atravessá-la p o r m eio de u m sacrifiement (ou, ao contrário,
tanto, agem de acordo com “o espírito sábio, o tem ível espírito da m orte p o r um a profanação)”. A p rim eira coisa que precisam os acrescentar aqui
e da destruição” —o dem ônio, capaz de fornecer sozinho as ferram entas é a distinção feita p o r A gam ben entre secular e profano: o profano não
para acabar com to d o o sofrim ento hum ano e u n ir todo m undo sob o é o secular-utilitarista, mas o resultado da profanação do sagrado, e p or
estandarte da Igreja. A m ultidão deveria ser guiada p o r aqueles poucos isso é inerente ao sagrado. (T am bém devem os interp retar a fórm ula do
que são fortes o suficiente para carregar o fardo da liberdade - som ente “sacralizar” de m aneira literal: é o p róprio sacrifício que sacraliza u m
dessa m aneira toda a hum anidade conseguirá viver e m o rrer feliz na ig­ objeto ordinário, isto é, não há nada de sagrado no objeto com o tal, em
norância. Esses poucos fortes são os verdadeiros m ártires-de-si-m esm os, seu ser im ediato.) M arion, então, fornece um a descrição detalhada dos
que dedicam suas vidas para proteger a hum anidade de ter de encarar a três m odos de sacrifício:
liberdade de escolha. E p o r isso que, na tentação no deserto, C risto foi E m prim eiro lugar, há o aspecto negativo-destrutivo que sobrevive
forte para rejeitar a sugestão do diabo para que ele transform asse pedras em nossa era ím pia com o p u ra destruição (terrorista): a única m aneira
em pães: as pessoas sem pre seguirão aqueles que alim entem suas b arri­ que ainda tem os de apreender o Sagrado é pelos atos despropositados da
gas. C risto rejeita a tentação, dizendo: “O hom em não vive só de pão”, destruição que subtraem algo do curso utilitarista-funcional das coisas.
ignorando a sabedoria segundo a qual devem os prim eiro “alim entar os Sj- U m a coisa é “sacralizada” quando é destruída - é p o r isso que as ruínas do
hom ens, depois exigir deles a v irtu d e!” (ou, com o B recht colocou em 11 de Setem bro (“M arco Z ero ”) são sagradas... (Aqui M ario n acrescenta
sua Opera dos três vinténs: “Erst kom m t das Fressen, dann kommt die Moral!”). um a subdivisão a esse sacrifício negativo-destrutivo: o sacrifício ascético
E m vez de responder ao Inquisidor, C risto, que se m anteve em de todos os bens m ateriais “patológicos” ou todas características do Si
silêncio o tem po inteiro, beija-lhe os lábios. C hocado, o Inquisidor liberta para afirm ar o próprio Si em sua autonom ia autárquica. A fina, o que é
Cristo, mas lhe pede para nunca mais voltar... Alíocha responde à história sacrificado aqui é o conteúdo “patológico” não essencial, que perm ite a
repetindo o gesto de Cristo: ele tam bém beija Ivan levem ente nos lábios. autoapropriação da autonom ia autárquica do Si —ao fazer o sacrifício, eu
O propósito da história não é sim plesm ente atacar a Igreja e d e­ não perco nada, ou seja, apenas aquilo que é irrelevante em si mesmo.)
fender o re to rn o da plena liberdade que nos foi dada p o r C risto. O E m segundo lugar, há o aspecto de troca, ou sacrifício, com o
p róprio D ostoiévski não poderia chegar a um a resposta direta sobre a dádiva condicional — nós dam os algo para receber algo de volta: “o
questão. P ode-se argum entar que a história da vida de E lder Zossim a, sacrifício destrói tanto quanto a dádiva oferece, pois am bos trabalham
que acontece logo depois do capítulo sobre o G rande Inquisidor, seja para estabelecer a troca; ou m elhor, quando o sacrifício destrói e a dádiva
um a tentativa de responder as questões de Ivan. Zossim a, em seu leito oferece, eles trabalham exatam ente da m esm a m aneira para estabelecer
de m orte, conta com o encontrou sua fé durante sua ju v en tu d e rebelde, a econom ia da reciprocidade”. Isso acaba n u m impasse, um a vez que o y
no m eio de u m duelo, e decidiu se to rn ar m onge. Zossim a ensina que as sacrifício com o ato de troca anula a súm esm o: / r / _ Is /h /
pessoas devem p erdoar as outras reconhecendo os próprios pecados e a
própria culpa perante os outros: não existe pecado isolado, p o r isso todos
e “sett*.h F p * * '
2 O ensaio in é d ito de M a rio n é baseado e m seu “ E sboço de u m c o n ce ito fe n o m e n o ­
são responsáveis pelos pecados do próxim o... N ão seria essa a versão de lógico d o d ád iv a”, p u b licad o e m O L IV E T T I, M . M . (O rg.). Filosofia delia rívelazione.
Dostoiévski do “ Se D eus não existir, então tudo é proibido”? Se a dádiva R o m a : B ib lio tec a d e li’ A rc h iv io di F ilosofia, 1994.

42 FILÕMARGENS SLAVOJ Í I Í E K / B O R IS G U N JE V IC 0 SO FRIM EN TO DE DEUS: IN V ERSÕ ES DO APO C ALIPSE 43


A verdade do sacrifício acaba na troca, ou seja, na não verdade dadidade da dádiva, e p ortanto seu doador, desaparece nela: ‘ O recebedor
do sacrifício, porque ele deve consistir justam ente em dar sem não pode to m ar p o r conta própria a dádiva dada enquanto ainda a v ir no
obter nada em retorno; desse m odo, ela tam bém resultaria na rosto e na força de seu d eten to r prévio. Esse d eten to r (o doador) precisa
verdade da não dádiva por excelência, ou seja, na confirmação desaparecer, de m odo que a dádiva com ece a aparecer com o dada; p o r
de que toda vez que o sujeito acredita que fala de sacrifício e o fim , o doador precisa desaparecer com pletam ente, para que a dádiva surja
faz, na verdade ele sempre espera um a troca, e um a troca que com o definitivam ente dada, ou seja, cedida”. A qui entra o sacrifício: ele
lhe dê ganhos cada vez maiores, na medida em que ele afirmou torna visível a dadidade (e p o r isso o doador):
não ter perdido nada.
O sacrifício devolve a dádiva à dadidade, da qual ela provém,
O problem a é: essas duas dim ensões do sacrifício são suficientes? M arion retornando-a ao próprio retorno que a constitui originalm ente.
deixa claro que, na lógica da troca, a dim ensão essencial do sacrifício, O sacrifício não deixa a dádiva, mas habita totalm ente nela. Ele
do ato de ceder p u ro e supérfluo, perde-se: “a dádiva pode, e p o r isso rm ãm fesia dail3o novam ente a dadiva sua dadidade, porque ele
deve, ser libertada da troca ao deixar que seu significado natural seja a repete desde sua origem. [...] Não se trata em absoluto de um a
reduzido à dadidade. Pois, enquanto a econom ia (da troca) realiza um a contradádiva, com o se o doador precisasse recuperar o que lhe
econom ia da dádiva, a dádiva, se reduzida à dadidade, inversam ente se é devido (troca) ou recuperar um tributo suplementar (gratidão
excetua da econom ia, libertando-se das regras da troca”. N o te-se aqui com o salário simbólico), mas sim da reorganização da dádiva
a exata sim etria entre os dois aspectos: se o sacrificio-com o-destruição como tal, repetindo em sentido inverso o processo de dadidade,
acaba na autoapropriação da autonom ia, o que anula a própria dim ensão reestabelecendo a dádiva ali e resgatando-a de sua recorrência
do sacrifício (uma vez que perdem os apenas o indiferente-inessencial), o factual à classe (sem dadidade) de um objeto encontrado.
sacrificio -co m o -troca tam bém anula a dim ensão da troca - na verdade
Nessa estru tu ra do sacrifício eu realm ente não perco nada, apenas o
eu não sacrifico ou dou nada, pois espero que aquilo que dei será re tri­
status de dádiva do que ten h o é afirm ado com o tal. N ão adm ira que o
buído pela autoridade superior para a qual eu m e sacrifiquei. E m ambos
principal exem plo de M ario n seja o de A braão e Isaac, no qual Abraão
os casos, a perda sacrificial é anulada.
de fato não perde seu filho - tu d o que ele tem de fazer é m anifestar sua
Nessa descrição falta um a dim ensão mais radical do sacrifício que
prontidão para sacrificá-lo, baseada no reconhecim ento de que seu filho,
seja im an en te ao sacrificio-com o-troca: devo, de antem ão, sacrificar
antes de tudo, não é seu, mas dado a ele p o r Deus:
algo para en trar na própria instância da troca, e esse sacrifício é anterior
a qualquer sacrifício particu lar de algum conteúdo ou objeto - é o sa­ N a condição de realm ente perceber que, ao im pedi-lo de matar
crifício de m in h a própria posição subjetiva que faz de m im u m sujeito Isaac, Deus precisamente não recusa o sacrifício de Abraão, mas
da troca. Esse sacrifício é o preço que se paga pelo significado: sacrifico anula apenas o fato de que ele seria colocado à m orte, porque
o conteúdo pela form a, isto é, entro na form a dialógica da troca. O u isso não pertence à essência do sacrifício: a efetiva m orte de Isaac
só cum priria o sacrifício em sua concepção com um (destruição,
seja, m esm o que m eu sacrifício não tenha efeito, não posso in terpretar
privação, troca e contrato). [...] Ao poupar Isaac, dali em diante
a falta de efeito com o u m a resposta (negativa), pois qualquer coisa que
reconhecido (por Abraão) como dádiva (de Deus), Deus o dá n o ­
acontecer agora pode ser interpretada p o r m im com o um a resposta sig­
vamente a ele, dá a ele um a segunda chance, e tam bém ao ofertar
nificativa —em to do caso, há alguém com quem m e com unicar, alguém
uma dádiva por um a redundância, que o consagra definitivamente
para quem eu posso oferecer m eu sacrifício.
como dádiva. [...] O sacrifício duplica a dádiva e a confirma como
E m terceiro lugar, para elaborar u m a noção de sacrifício que não
tal pela prim eira vez.
se anule com o as outras duas, M arion se concentra no paradoxo do (sa­
crifício como) dom , u m p u ro ato de dar sem receber nada em troca. O A expressão “com o ta l” é fundam ental aqui: pela repetição, a dádiva não
paradoxo é que se a dádiva é verdadeiram ente dada, fora da econom ia é mais obliterada naquilo que é dado, mas afirm ada com o dádiva. E ntão
da troca, então mais um a vez ela anula a si m esm a com o dádiva, pois a quem se sacrifica aqui? D ádiva e sacrifício são opostos: D eus dá um a

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dádiva, o hom em sacrifica a dádiva propriam ente dita para reobtê-la com o grande O utro? O Espírito Santo não é o grande O u tro da com unidade
algo dado. O sacrifício para no últim o m om ento, de m aneira sem elhante sim bólica, mas u m coletivo que ne s ’autorise que de lui-même, na ausência
a ofertas educadas feitas para serem rejeitadas: eu ofereço (pedir desculpas, radical de qualquer apoio do grande O u tro . Isso significa que o sacrifí­
pagar a conta...), mas com a condição de que você rejeite m in h a oferta. cio de C risto definitivam ente abole (sacrifica) a form a m ais perversa de
N o entanto, há u m a diferença crucial aqui: enquanto nu m a oferta feita sacrifício, aquela que falta na classificação de M ario n e cujo papel central
para ser rejeitada tanto o doador quanto o recebedor sabem que a oferta foi desenvolvido p o r Lacan.
é feita para ser rejeitada, no sacrifício com o dádiva repetida eu obtenho Para Lacan, esse sacrifício “perverso” adicional tem dois modos.
a dádiva de volta (ela m e é dada de novo) apenas se eu realmente estava Prim eiro, o sacrifício representa a renegação da im potência do grande
disposto a perdê-la. Mas o m esm o não vale para o sacrifício de C risto, O utro: em seu aspecto mais elementar, o sujeito não oferece o sacrifício
em que ele perde a vida e a recebe de volta na Ressurreição? Q u e m são para lucrar com ele, mas sim para preencher a falta no Outro, para susten­
o doador e o recebedor nesse caso? N u m a tentativa rebuscada e bastante tar a aparência da onipotência do O u tro , ou, pelo m enos, a consistência.
inconvincente de inserir o sacrifício de C risto em seu esquem a, M arion R ecordem os de Beau geste, o clássico m elodram a hollyw oodiano de 1938,
vê D eus-Pai com o doador, C risto com o recebedor e o Espírito Santo no qual o mais velho de três irm ãos que m oram com a tia benevolente, no
com o objeto do sacrifício que C risto devolve ao pai e recebe de volta que parece ser u m gesto ingrato de crueldade excessiva, rouba um colar de
(na R essurreição) com o dádiva: diam antes extrem am ente caro, objeto que é m otivo de orgulho da família
da tia, e desaparece com ele, sabendo que sua reputação está arruinada
A m orte do Cristo realiza um sacrifício nesse sentido (mais que
e que será conhecido para sempre com o o defraudador ingrato de sua
no sentido comum): ao devolver seu espírito ao Pai, que a ele o
benfeitora - então p o r que ele o faz? N o final do filme, descobrimos que
concedeu, Jesus incita que o véu do Templo (que separa Deus da
ele o faz para evitar a descoberta constrangedora de que o colar era falso:
hum anidade e o torna invisível para ela) seja rasgado, e ao mesmo
fato desconhecido de todos os outros, ele soube que, algum tem po antes,
tem po surge com o “verdadeiramente o filho de D eus” (Mateus
27, 51, 54), fazendo aparecer não a si mesmo, mas o Pai invisível. a tia teve de vender o colar para u m rico marajá para salvar a família da
A dádiva dada, portanto, faz que o doador e o processo (aqui falência e o substituiu por um a im itação barata. Antes de seu “roubo”, ele
trinitário) da dadidade sejam vistos. soube que u m tio distante, que tam bém era dono do colar, queria vendê-lo
para ganhar algum dinheiro; se o colar fosse vendido, sua falsidade sem
O sentido do sacrifício de Cristo —que é do próprio Cristo, que ao m orrer dúvida seria descoberta, então a única m aneira de proteger a honra da tia
na cruz dá sua vida com o dádiva pura e incondicional à hum anidade como e Ha fa m ília era e n c e n a r o roubo... Esse é o próprio em buste do crim e do
recebedora —não se perdeu aqui? A leitura de M arion, nesse aspecto, roubo: esconder o fato de que, em últim a instância, não há nada para roubar
não é basicam ente pré-cristã, reduzindo C risto a u m m edo m ediador e - dessa m aneira, a falta constitutiva do outro é oculta, isto é, m anteve-se
co ncentrando-se no D eus-Pai com o único doador verdadeiro? As coi­ a ilusão de que o O u tro possuía o que foi roubado. Se, no amor, dá-se o
sas não são exatam ente o oposto disso? Aquele que aparece na cruz, no que não se tem , em u m crim e de am or rouba-se do O u tro am ado o que
sentido m ais enfático, não é justam ente o próprio C risto com o doador, o O u tro não tem... a isso alude o “beau geste” do título do filme. E nisso
e não o D eus-Pai que desaparece no pano de fundo da figura fascinante consiste tam bém o significado do sacrifício: sacrifica-se (a própria honra
do C risto sofredor? Seu ato de sacrifício não é a dádiva suprema? Em e o próprio futuro na sociedade de respeito) para m anter a aparência da
outras palavras, não seria m uito mais apropriado in terp retar a m orte de honra do O u tro , para salvar o O u tro am ado da vergonha.
C risto com o u m sacrifício para o real: C risto m orre real e plenam ente H á um a outra dimensão muito mais estranha do sacrifício. Permita-me
na cruz para que nós, seres hum anos, obtenham os a dádiva do Espírito usar outro exemplo do cinem a, o film e Enigma (1983), de Jeannot Szwarc,
Santo (a com unidade de fiéis)? A lém disso, se tom am os essa dádiva em história de u m jornalista dissidente que se tornou espião, im igrou para o
toda sua radicalidade, ela não nos obriga a in terp retar seu significado O cidente, foi recrutado pela C IA e enviado para a A lem anha O cidental
com o a plena aceitação do fato de que D eus está m orto, que não existe para se apoderar de u m chip de codificação e decodificação cuja posse

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perm ite a leitura de todas as com unicações entre a sede da KGB e seus jouissance aos olhos do O u tro ... O que essas duas versões psicanalíticas
outros postos. Pequenos sinais dizem ao espião que há algo errado com do sacrifício significam para a perspectiva teológica? C o m o podem os
sua missão, ou seja, que os alemães orientais e os russos ficaram sabendo da evitar sua arm adilha? A resposta é esboçada em A marca do sagrado,3 de
chegada dele —então o que está acontecendo? Será que os com unistas têm Jean-P ierre D upuy, livro situado na ligação entre sacrifício e sagrado. O
u m inform ante dentro da C IA , responsável p o r delatar sua missão secreta? livro trata do m istério supremo das chamadas ciências hum anas ou sociais,
A m edida que nos aproxim am os do final do filme, a solução é m uito mais o m istério das origens do que Lacan cham a de “grande O u tro ”, do que
ingênua: a C IA já tinha o chip de codificação, mas, infelizm ente, os russos H egel cham ou de “exteriorização” (Entáusserung ), do que M arx cham ou
suspeitavam desse fato, p o r isso pararam de usar a rede de com putadores de “alienação” e —p o r que não? —do que F riedrich H ayek cham ou de
tem porariam ente para suas com unicações secretas. O verdadeiro objetivo “autotranscendência”: com o, a p a rtir da interação dos indivíduos, pode
da operação era convencer os russos de que a C IA não tinha o chip: a C IA haver a aparência de u m a “ord em objetiva” que não pode ser reduzida a
m anda u m agente para consegui-lo e, ao m esm o tem po, deixa intencio­ sua interação, mas é experim entada p o r eles com o u m agente substancial
nalm ente que os russos tom em conhecim ento de que havia um a operação que determ in a suas vidas? E fácil dem ais “ desm ascarar” tal “substância”
acontecendo para obter o chip, contando, obviam ente, com a possibilida­ para m ostrar, p or m eio de u m a gênese fenom enológica, com o ela gradu­
de de que os russos prenderiam o espião. O resultado final será que, ao alm ente é “reificada” e sedim entada a p artir da interação dos indivíduos:
conseguirem evitar a conclusão da missão, os russos estarão convencidos o problem a é que o pressuposto dessa substância espectral/virtual de certa
de que os norte-am ericanos não têm o chip e que p o r isso é seguro usar m aneira é cossubstancial com a existência hu m an a — aqueles que não
aquela via de com unicação... O aspecto trágico da história, obviam ente, conseguem se relacionar com ela dessa m aneira, aqueles que a subjetivam
é que a C IA quer que a missão fracasse: o agente dissidente é sacrificado diretam ente, são cham ados de psicóticos: é para os psicóticos que, p o r
em nom e do objetivo m aior da CIA, que é convencer o oponente de que trás de cada grande O u tro im pessoal, há u m grande O u tro pessoal, o
ela não detém o segredo deste. agente/m estre secreto do paranoico que controla tudo nos bastidores.
A estratégia, aqui, é m ontar um a operação para convencer o O utro (D upuy prefere d eixar em aberto a grande questão que espreita esse
(inimigo) que não se tem o que se procura - em suma, o sujeito simula tem a - tal substância transcendente pode surgir da interação im anente
um a falta, um a necessidade, para ocultar do O u tro o fato de que já tem dos indivíduos ou deveria ser sustentada p o r um a transcendência real? - ,
o agalma, o segredo mais íntim o do O utro. Essa estrutura não está de enquanto nós tentarem os dem onstrar que no m om ento em que a questão
algum a m aneira ligada ao paradoxo básico da castração simbólica com o é posta, a resposta “m aterialista” é a única consistente.)
constitutiva do desejo, em que o objeto tem de ser perdido para ser reob- A grande ru p tu ra teórica de D upuy é conectar o surgim ento do
tido na escala inversa do desejo regulado pela Lei? A castração simbólica “grande O u tro ” à lógica complexa do sacrifício constitutivo da dim ensão
costum a ser definida com o a perda de algo que nunca se possuiu, isto é, do sagrado, isto é, do advento da distinção entre sagrado e profano: pelo
o objeto-causa do desejo é um objeto que surge pelo próprio gesto de sua sacrifício, o grande O utro, agente transcendente que im põe limites a nossa
perda/recolhim ento; no entanto, encontram os aqui a estrutura inversa do atividade, é sustentado. O terceiro elo nessa cadeia é a hierarquia: a função
fingim ento de um a perda. N a m edida em que o O u tro da Lei simbólica suprema do sacrifício é legitim ar e representar um a ordem hierárquica (que
proíbe a jouissance, a única m aneira de o sujeito gozar é fingir que carece só funciona se tiver o suporte de algum a figura do transcendente grande
do objeto que fornece a jouissance, isto é, esconder do olhar do O u tro sua
O utro). E aqui que ocorre a prim eira virada propriam ente dialética na
posse, encenando o espetáculo da busca desesperada pelo objeto.
linha de argum entação de D upuy: baseando-se em Homo hierarchicus,4 de
Isso tam b ém lança novas luzes sobre o tem a do sacrifício: o sujeito
se sacrifica não para o bter algo do O u tro , mas para enganar o O u tro ,
3 D U P U Y , J e a n -P ie rre . L a marque du sacre. Paris: C a rn e ts N o rd , 2 0 0 8 . O s n ú m ero s
para convencê-lo de que ainda sente falta de algo, isto é, da jouissance.
e n tre parên teses nas p ró x im a s paginas se re fe re m a este liv ro .
È p o r isso que neuróticos obsessivos ex p erim en tam a com pulsão re ­
4 D U M O N T , L ouis. H o m o Hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. T rad u ç ão de
p etidam ente para realizar seus rituais de sacrifício — para renegar sua C arlos A lb e rto da Fonseca. 2 ed. São Paulo: E D U S P , 200 8 .

48 FILÖMARGENS SLAVOJ Z IÍE K / B O R IS G UN JEVIÒ 0 SO FRIM EN TO DE DEUS: IN VERSÕ ES DO APO C ALIPSE 49


Louis D u m o n t, ele m ostra com o a hierarquia im plica não só um a ordem relações sociais hierárquicas). Dessa perspectiva, é a religião que controla
hierárquica, mas tam bém sua volta im anente ou reversão: sim, o espaço secretam ente tu d o nos bastidores, que continua sendo a força oculta que
social é dividido em níveis hierárquicos superiores e inferiores, mas no perm ite e m obiliza o M al para o B em m aior. Somos quase tentados a
nível inferior, o inferior é superior ao inferior. U m ótim o exem plo é dado pela usar aqui o term o “sobredeterm inação”: em bora seja o p o d er secular
relação entre a Igreja e o Estado no cristianismo: em princípio, é claro, a que desem penha im ediatam ente o papel d eterm in an te, esse papel é, ele
Igreja está acima do Estado; no entanto, com o pensadores de A gostinho a m esm o, sobredeterm inado pelo Todo religioso/sagrado. (E claro, para
H egel deixaram claro, dentro da ordem secular do Estado, o Estado está acima da os partidários da “crítica da ideologia”, essa m esm a noção de que a re­
Igreja (isto é, a Igreja como instituição social deve ser subordinada ao Estado) ligião dom in a secretam ente a vida social, com o u m a força que controla
- se esse não for o caso, se a Igreja quiser governar diretam ente tam bém de m aneira gentil e direciona sua luta caótica, é a ilusão ideológica por
com o p o d er secular, então ela inevitavelm ente se corrom pe por dentro, excelência.) C om o devemos interpretar esse entretecim ento do “superior”
reduzindo-se a apenas mais um poder secular que usa seus ensinam entos com o “ in ferio r” ? H á duas alternativas principais que correspondem
religiosos com o ideologia para justificar seu governo secular. (C om o perfeitam ente à oposição entre idealism o e m aterialism o:
dem onstrou D um ont, essa reversão paradoxal é claram ente discernível, (1) A m atriz tradicional teológica-(pseudo-)hegeliana de conter
m uito antes do cristianism o, no antigo Veda indiano, a prim eira ideolo­ o pharmakon: o Todo superior e oniabrangente possibilita o Mal
gia da hierarquia elaborada em sua plenitude: a casta dos sacerdotes, em inferior, mas o contém, obrigando-o a servir ao objetivo superior.
princípio, é superior à casta dos guerreiros, mas, na estrutura de poder Há muitas figuras dessa matriz: a (pseudo-)hegeliana “Astúcia da
efetiva do Estado, os sacerdotes são de facto subordinados aos guerreiros.) R azão” (a Razão é a unidade com as paixões egoístas particulares,
O p róxim o passo de D upuy, ainda m ais crucial, é form ular essa m obilizando-as a atingir seu objetivo secreto da racionalidade
reviravolta na lógica da hierarquia, que é condição im an en te de seu universal); a “marcha da história” marxista, na qual a violência
funcionam ento, nos term os da autorrelação negativa entre universal e <prvp ao progresso- a “mão invisível” do mercado, que mobiliza
particular, entre o Todo e suas partes —isto é, com o processo em que os indivíduos egoístas para o bem com um...
o universal encontra-se entre suas espécies na form a de sua “ d eterm i­
(2) A noção mais radical (e verdadeiramente hegeliana) do Mal
nação opositiva”. V oltando ao exem plo da Igreja e do Estado, a Igreja
distinguindo-se de si mesmo ao exteriorizar-se na figura trans­
é a unidade abrangente de toda vida hum ana, representando sua mais
cendente do Bem. Dessa perspectiva, longe de englobar o Mal
alta autoridade e conferindo a todas as suas partes u m lugar apropriado
como seu m om ento subordinado, a diferença entre Bem e Mal
na grande ordem hierárquica do universo; no entanto, ela se encontra é inerente ao Mal. O Bem não é nada mais que o Mal univer­
com o elem ento subordinado do p o d er estatal sobre a terra que é, em salizado, e o M al é, em si, a unidade de si mesmo com o Bem.
princípio, subordinada a ela —a Igreja com o instituição social é protegida Ò M al controla e contém a si mesmo gerando o espectro de um
pelas leis do Estado e tem de obedecer a elas. U m a vez que o superior e B em transcendente; no entanto, ele só pode fazê-lo ao suplantar
o inferio r tam bém se relacionam aqui com o o B em e o M al (o dom ínio seu m odo “ordinário” do M al com um M al infinitizado e abso-
b o m do divino versus a esfera terrestre das lutas de forças, dos interesses lutizado. É por isso que a autocontenção do M al pelo ato de pôr
egoístas, da busca de prazeres vãos, etc.), tam bém podem os dizer que, alguma força transcendente que o lim ita pode sempre explodir
p o r m eio dessa volta ou virada im anente à hierarquia, o B em “superior” - por isso Hegel tem de adm itir um excesso de negatividade que
d o m in a, controla e usa o M al “ in ferio r”, m esm o que possa parecer, sempre ameaça perturbar a ordem racional. Todo o discurso sobre
superficialm ente (isto é, para u m olhar determ inado pela perspectiva a “reversão materialista” de Hegel, sobre a tensão entre o Hegel
terrestre da realidade com o dom ín io das egoístas lutas de forças e da “ idealista” e o Hegel “materialista”, é inútil se não for fundam en­
busca dos prazeres vãos), que a religião, com seu pretexto de ocupar um tado nesse tema preciso de duas maneiras opostas e conflitantes de
lugar “superior”, não passa de u m a legitim ação ideológica dos interesses interpretar a autorrelação negativa da universalidade. O mesmo
“ inferiores” (digamos, que a Igreja, em últim a análise, apenas legitim a as tam bém pode ser dito nos termos da metáfora do M al como um a

50 FILÕMARGENS SLAVOJ t l Í E K / B O R IS G U N JE VIC 0 SO FRIM EN TO DE DEUS: IN VERSÕ ES DO APO C A LIPSE 51


mancha no quadro: se, na teleologia tradicional, o M al é uma sacrifícios (mesmo os da m ag n itu d e de u m holocausto) to rn am -se h i-
m ancha legitimada pela harm onia global, contribuindo com ela, pocríticos, inoperantes, falsos, mas nós tam b ém perdem os a contenção
então, de um ponto de vista materialista, o próprio Bem é um a da violência encenada pelo sacrifício: “no que se refere ao cristianism o,
auto-organização/autolim itação da m ancha, resultado de um não se trata de um a m oralidade, mas de u m a epistem ologia: ele diz a
lim ite, um a “diferença m ínim a” no campo do Mal. E por esse verdade sobre o sagrado e p o r isso o priva de sua força criativa, para o
motivo que m om entos de crise são tão perigosos - neles, o an­ m elhor ou para o pior. Só os hum anos decidem isso” (161). Nisso reside
verso obscuro do Bem transcendente, o “lado escuro de Deus”, a a ru p tu ra h istó rico -m u n d ial in tro d u zid a pelo cristianism o: agora nós
violência que sustenta a própria contenção da violência, surge da
sabemos e não podem os m ais fingir que não sabemos. A lém disso, com o
seguinte maneira: “Acreditava-se que o bem governa o mal, seu
já vim os, o im pacto desse co n hecim ento não é apenas libertador, mas
‘oposto’, mas hoje parece que é o mal que governa a si próprio
tam bém profundam ente ambíguo: ele tam bém priva a sociedade do papel
assumindo uma distância de si mesmo, pondo-se fora de si mesmo;
estabilizante de usar alguém com o bode expiatório e por isso abre espaço
assim ‘autoexteriorizado’, o nível superior surge como bem ” (13).
para a violência não contida p o r n en h u m lim ite m ítico. É desse m odo
O argum ento de D upuy é que o sagrado é, quanto a seu conteúdo, que, n u m insight verdadeiram ente perspicaz, D u p u y entende os versos
a m esm a coisa que o terrível m al; sua diferença é puram ente form al e escandalosos de M ateus: “N ão penseis que vim trazer paz à terra. N ão
estrutural - o que o torna “sagrado” é seu caráter exorbitante, que o torna v im trazer paz, mas espada” (M ateus 10, 34). A m esm a lógica vale para
u m a lim itação do m al “o rd in ário ”. Para entender isso, devem os não só as relações internacionais: longe de im possibilitar conflitos violentos, a
nos concentrar nas proibições e obrigações religiosas, mas tam bém ter em abolição dos Estados soberanos e o estabelecim ento de u m único Estado
m ente os rituais praticados p o r um a religião e a contradição, já notada m undial ou poder abriria o cam po para novas formas de violência dentro
p o r H egel, entre proibições e rituais: “M uitas vezes, o ritual consiste em desse “ im pério m u n d ial”, sem que houvesse u m Estado soberano para
encenar a violação dessas proibições e violações” (143). O sagrado nada im por a ela u m lim ite: “L onge de g arantir a paz eterna, o ideal cosm o­
m ais é que a violência dos seres hum anos, mas um a violência “expul­ polita, antes, seria a condição favorável para um a violência sem lim ite”.3
sada, exteriorizada, hipostasiada” (151). O sacrifício sagrado aos deuses O papel da contingência é fundam ental aqui: no m undo pós-sagrado
é igual a u m assassinato — o que o torna sagrado é o fato de lim itar e um a vez que a eficácia do O u tro transcendente é suspensa e é preciso
co nter a violência, incluindo o assassinato, na vida com um . E m tem pos enfrentar o processo (de decisão) em sua contingência, o problem a é que
de crise do sagrado, essa distinção se desintegra: não há exceção sagrada, essa contingência não p o d e ser assum ida totalm ente, então ela tem de
u m sacrifício é entendido com o nada m ais que u m m ero assassinato — ser sustentada pelo que Lacan cham ou de le peu du réel, u m pedacinho
mas isso tam bém significa que não há nada, não há lim ite exterior, que do real contingente que age com o la réponse du réel, a “resposta do real”.
con ten h a nossa violência ordinária. H egel tin h a plena ciência desse paradoxo quando contrapôs a dem ocra­
Nisso consiste o dilem a ético que o cristianism o tenta resolver: ■ cia antiga à m onarquia m oderna: os gregos antigos precisaram recorrer
com o co n ter a violência sem a exceção sacrificial, sem u m lim ite ex­ a práticas “supersticiosas” — com o p ro cu rar sinais na trajetória de voo
terior? S eguindo R en é G irard, D upuy dem onstra com o o cristianism o dos pássaros ou nas entranhas dos anim ais - para g u iar a polis em suas
representa o m esm o processo sacrificial, mas com um a ênfase cogni- decisões cruciais ju stam en te p o r que não tin h am u m a figura da pura
| tiva crucialm ente diferente: a história não é contada pelo coletivo que subjetividade (o rei) no to p o de seu edifício estatal. Para H egel, estava
I encena o sacrifício, mas pela vítim a, do po n to de vista da vítim a, cuja claro que o m undo m o d ern o não podia dispensar esse real contingente e
| plena inocência é, desse m odo, asseverada. (O p rim eiro passo para essa organizar a vida social apenas através de escolhas e decisões baseadas em
IVeversão po d e ser percebido já no Livro deJó, em que a história é contada qualificações “objetivas” (a ilusão do que Lacan p o steriorm ente cham ou
do p o n to de vista da v ítim a inocente da fúria divina.) U m a vez que a
inocência da v ítim a sacrificial é conhecida, a eficácia de todo o m eca­ 5 C A N T O - S P E R B E R , M o n iq u e . In: D U P U Y , J e a n -P ie rre . D a n s l ’oeil du cyclone.
nism o sacrificial de usar alguém com o bode expiatório é destruída: os Colloque de Cerisy. Paris: C a rn e ts N o rd , 200 8 . p. 157.

52 FILÖMARGENS SLAVOJ Í IZ E K / B O R IS G U N JE VIC 0 SO FRIM EN TO DE DEUS: IN VERSO ES DO APO C ALIPSE 53


de D iscurso da Universidade): sem pre existe algo ritualístico em rece­ e m eritocráticas os mesm os papéis que a hierarquia nas sociedades tra­
b er u m título, ainda que a outorga do títu lo suceda autom aticam ente à dicionais” (208) —ela nos p erm ite evitar a conclusão dolorosa de que a
satisfação de determ inados critérios “objetivos”. U m a análise sem ântica, superioridade do outro é resultado de seus m éritos e feitos); (3) a contin­
digam os, do significado de “passar nas provas com as m aiores notas” não gência (o m esm o m ecanism o, mas sem o com ponente crítico-social: nossa
po d e ser reduzida a “provar que se tem certas propriedades efetivas — posição na escala social depende de um a loteria natural e social - sortudos
conhecim ento, habilidades, etc.” —nesses casos, é preciso acrescentar um são aqueles que nascem com m elhores talentos e em famílias ricas); (4) a
ritu al pelo qual os resultados da prova são proclam ados e a nota é confe­ complexidade (a superioridade ou a inferioridade dependem de u m processo
rida e reconhecida. Existe sempre um a lacuna ou distância m ínim a entre social com plexo que é independente das intenções ou dos m éritos dos
esses dois níveis: m esm o que eu tenha absoluta certeza de que respondi indivíduos - a m ão invisível do m ercado, digam os, pode provocar m eu
co rretam ente todas as perguntas da prova, tem de haver algo co n tin g en ­ fracasso e o sucesso do m eu vizinho, mesmo que eu tenha trabalhado m uito
te — u m m o m en to de surpresa, a em oção do inesperado —no anúncio mais e fosse m uito mais inteligente). Ao contrário do que pode parecer,
dos resultados; é p o r isso que, ao esperar o anúncio dos resultados, não nenhum desses m ecanism os contradiz ou am eaça a hierarquia, mas sim
a torna palatável, um a vez que “o que desencadeia a desordem da inveja
podem os escapar to talm en te da angústia da espera. Tom em os com o
é a ideia de que o outro m erece a boa sorte que tem e não a ideia oposta
exem plo as eleições políticas: m esm o que o resultado seja conhecido
que é a única que pode ser expressa abertam ente” (211). Dessa premissa,
de antem ão, sua proclam ação pública é esperada com em oção — com
D upuy tira a seguinte conclusão (para ele, óbvia): é u m grande erro pensar
efeito, a contingência é necessária para se transform ar algum a coisa em
que um a sociedade justa e que se percebe com o justa estará p o r isso livre
D estino. É isso que, via de regra, os críticos dos procedim entos com uns
de todo ressentim ento - pelo contrário, é justam ente nessa sociedade que
de avaliação” não entendem : o que to rn a a avaliação problem ática não
as pessoas que ocupam posições inferiores só encontrarão u m escoadouro
é o fato de que ela reduz sujeitos únicos, com um a experiência interna
para seu orgulho ferido em ataques violentos de ressentim ento.
m u ito rica, a um a série de propriedades quantificáveis, mas sim que ela
As lim itações de D u p u y nesse aspecto são claram ente visíveis em
tenta red u zir o ato sim bólico da investidura (investir o sujeito em um
sua rejeição da luta de classes com o d eterm inada p o r essa lógica da v io ­
título) a u m p ro cedim ento totalm ente fundam entado no conhecim ento
lência m ovida pela inveja: a luta de classes é, para ele, o caso exem plar do
e na m edida do que o sujeito em questão “realm ente é ”.
que R ousseau cham ou de am or próprio pervertido, em que o sujeito se
A violência am eaça eclodir não quando há contingência demais no
im porta m ais com a destruição do in im ig o (percebido com o obstáculo
espaço social, mas quando se tenta elim inar essa contingência. É nesse
a sua felicidade) que com a própria felicidade. Para D upuy, a ú nica saída
nível que devemos buscar o que cham aríam os, em term os bem brandos,
é abandonar a lógica do com plexo de v ítim a e aceitar as negociações
de função social da hierarquia. Nesse ponto, D upuy realiza outra virada
entre todas as partes envolvidas, tratadas com o iguais em sua dignidade:
inesperada, concebendo a hierarquia com o u m dos quatro procedim entos
( dispositivos simbólicos”) cuja função é tornar a relação de superioridade A transformação dos conflitos entre as classes sociais, entre capital
e trabalho, no decorrer do século X X , demonstra amplamente
não h u m ilh an te para os subordinados: (1) a própria hierarquia (ordem dos
que essa via não é utópica. Nós passamos progressivamente da
papéis sociais exposta externam ente em claro contraste ao valor im a­
luta de classe para a coordenação social, a retórica da vitimização
nente superior ou inferior dos indivíduos —desse m odo eu experim ento
foi quase toda substituída por negociações salariais. D e agora em
m in h a condição social inferior com o totalm ente independente de m eu
diante, chefes e organizações sindicais se veem como parceiros
valor inerente); (2) a desmistificação (o procedim ento crítico-ideológico com interesses ao mesmo tem po divergentes e convergentes (224).
que dem onstra que as relações de superioridade e inferioridade não são
fundadas na m eritocracia, mas são resultado de lutas sociais e ideológicas Mas essa é m esm o a ú nica conclusão possível que podem os tirar das
objetivas: m in h a condição social depende de processos sociais objetivos, premissas de D upuy? Essa substituição da luta pela negociação tam bém
não de meus m éritos —com o diz D upuy de m aneira incisiva, a desm istifi­ não se baseia no desaparecim ento m ágico da inveja, que reaparece sur­
cação social “ desem penha em nossas sociedades igualitárias, competitivas preendentem ente na form a de diferentes fundam entalistas?

54 FILÕMARGENS SLAVOJ ÍIZ E K / B O R IS G U N JEVIC 0 SO FRIM EN TO DE DEUS: IN VERSÕ ES DO APO C A LIP SE 55


A lém disso, deparam os-nos aqui com outra ambiguidade: não é que mas sim tratá-la com o u m ato falho de D eus, seu m om ento de loucura,
essa ausência de lim ites deva ser interpretada nos term os da alternativa- e inventar um a rede com plexa de sub-regras e condições que, em b o ­
padrão: “ou a hum anidade encontrará um a m aneira de im por lim ites a ra m antenh a intacta a possibilidade da pena de m orte, garantiria que
si própria, ou ela perecerá p o r sua própria violência não contida”. Se há essa possibilidade jam ais se realizasse.7 A beleza dessa solução é que ela
um a lição que podem os aprender com as cham adas experiências “tota­ inverte o proced im en to -p ad rão de proibir algo em princípio (como a
litárias é que a tentação é justam ente a oposta: o perigo de im por, na tortura), mas depois inserir diversas ressalvas (“exceto em determ inadas
falta de qualquer lim ite divino, um novo pseudolim ite, um a falsa trans­ circunstâncias extrem as...”) para g arantir que esse algo seja feito sempre
cendência em nom e da qual eu ajo (do stalinism o ao fundam entalism o que alguém de fato quiser faze-lo. Desse m odo, trata-se de u m Em
religioso). A té m esm o a ecologia funciona com o ideologia no m om ento princípio sim, mas na prática nunca”, ou “E m princípio não, mas quando
em que é evocada com o novo Lim ite: ela tem todas as chances de dar as circunstâncias excepcionais exigirem sim ”. N o te-se a assim etria entre
origem a form a predom inante de ideologia para o capitalism o global, os dois casos: a proibição é m uito mais forte quando perm itim os a to rtu ra
u m novo ópio para as massas que substitui a antiga religião6 ao tom ar em princípio - nesse caso, o “sim ” com fundam entação teórica nunca
para si a função fundam ental desta últim a, a de assum ir um a autoridade tem perm issão para se realizar, enquanto, no o u tro caso, o não com
inquestionável que pode im por lim ites. A lição que a ecologia costum a fundam entação teórica tem a perm issão excepcional de se realizar... N a
enfatizar bastante é a de nossa finitude: não somos sujeitos cartesianos
m edida em que o “D eus que nos incita a m atar” é o D eus dos nom es da
extraídos da realidade, somos seres finitos enraizados nu m a biosfera que
Coisa apocalíptica, a estratégia do estudioso em T alm ude e um a m aneira
ultrapassa em grande m edida nossos horizontes. Ao explorar os recursos
de colocar em prática o que D upuy cham a de “catastrofismo ilum inado :
naturais, estamos tom ando algo emprestado do futuro, portanto devemos
aceitam os a catástrofe final - a obscenidade das pessoas m atando o p ró ­
tratar a Terra com respeito, com o algo Sagrado, em ú ltim a instância,
xim o com o form a de justiça - com o algo inevitável, inscrito em nosso
algo que não deveria ser totalm ente descerrado, que deveria continuar
destino, e depois lutam os para adiá-la o m áxim o possível, de preferência
e co ntinuará sendo u m M istério, um a força na qual deveríam os confiar
indefinidam ente. Eis com o, nessa lin h a de raciocínio, D u p u y resum e as
em vez de dom inar.
reflexões de G uenther A nders a propósito da explosão da bom ba atôm ica
Está na m oda, em alguns círculos “pós-seculares” neopagãos da
sobre H iroshim a:
atualidade, afirm ar a dim ensão do Sagrado com o u m espaço no qual ha­
bita cada religião, mas que é anterior à religião (pode haver Sagrado sem Apenas naquele dia a história se tornou “obsoleta”. A humanidade
religião, mas não o contrário). (M uitas vezes, essa prioridade do Sagrado foi capaz de destruir a si mesma e nada pode fazê-la perder essa
recebe ainda um viés antirreligioso: um a m aneira de continuar agnóstico “onipotência negativa”, nem mesmo o desarmamento global ou
enquanto, não obstante, engajado num a experiência espiritual profunda.) a desnuclearização total do m undo. O apocalipse está inscrito como
N a esteira de D upuy, poderíam os m odificar as coisas exatam ente nesse destino em nossofuturo, e o melhor que podemos fazer é atrasar indefini­
ponto: a ru p tu ra radical introduzida pelo cristianism o consiste no fato damente sua ocorrência. Existimos em excesso. Em agosto de 1945,
de que ele é a prim eira religião sem o sagrado, um a religião cujo único entramos na era do “congelamento” e da “segunda m orte” de tudo
que existia: como o significado do passado depende de nossos atos
feito é precisam ente desm istificar o Sagrado.
futuros, o tornar-se obsoleto do futuro, seu fim programado, não
Q u e instância prática se segue desse paradoxo da religião sem o
significa que ele nunca teve nenhum significado. (240)
sagrado? H á um a história judaica sobre u m especialista em Talm ude
contra a pena de m orte que, constrangido pelo fato de a pena ser o rd e­ É nesse co n tex to que devem os in terp re tar a noção p aulina básica de
nada pelo próprio D eus, propõe um a solução prática m aravilhosa: não viver nu m a “ época apocalíptica”: a época apocalíptica é justam ente a
se deve subverter diretam ente a injunção divina, o que seria blasfêmia, época desse adiam ento indefinido, a época do congelam ento entre duas

6 U so aqui a expressão de A la in B adiou. 7 D e v o essa h istó ria a E ric S antner.

56 FILÖMARGENS SLAVOJ ÍIÊ E K / B O R IS G U N JE VIC 0 SO FRIM EN TO DE DEUS: IN V ER SÕ ES DO APO C ALIPSE 57


mortes: em certo sentido, nós já estamos m ortos, pois a catástrofe já existe
e projeta sua som bra do fu tu ro — depois de H iroshim a, não podem os
mais jo g a r o simples jo g o hum anista da escolha que tem os (“ depende
de nós seguirm os o cam inho da autodestruição ou o cam inho da cura
gradual”). U m a vez que a catástrofe já aconteceu, perdem os a inocência
de tal posição e só podem os adiar (talvez indefinidam ente) sua nova
ocorrência. D e m aneira hom óloga, o perigo da nanotecnologia não é
som ente que os cientistas criarão u m m onstro que se desenvolverá fora
do (nosso) controle: quando tentam os criar um a nova vida, é nossa m eta
decisiva p ro d u zir u m ente que se organize e se desenvolva (43). E desse
m o d o que, em m ais u m a jo g ad a herm enêutica, D u p u y in terp reta as
palavras céticas de C risto voltadas para os profetas da desgraça:
Q uando saiu do templo, um de seus discípulos lhe disse: “M es­
tre, vê que pedras e que construções!”. Jesus lhe disse: “Vês estas
grandes construções? Não ficará pedra sobre pedra que não seja
demolida”. Sentado no m onte das Oliveiras, frente ao Templo,
Pedro, Tiago, João e A ndré lhe perguntavam em particular:
“Dize-nos: quando será isso e qual o sinal de que todas essas
2. Virtudes babilónicas:
coisas estarão para acontecer?”. Então Jesus começou a dizer-lhes:
“Atenção para que ninguém vos engane. M uitos virão em meu
palavra da minoria
nome, dizendo ‘Sou Eu’; e enganarão a muitos. Q uando ouvir­
Gunjevic
des falar de guerras e de rumores de guerras, não vos alarmeis: c
preciso que aconteçam, mas ainda não é o fim. [...] Então, se alguém
vos disser ‘Eis o Messias aqui!’ ou ‘Ei-lo ali!’, não creiais. Hão de
surgir falsos Messias e falsos profetas, os quais apresentarão sinais
e prodígios para enganar, se possível, os eleitos. Q uanto a vós,
porém , ficai atentos” (Marcos 13, 1-23).

São versos espetaculares em sua inesperada sabedoria: eles não corres­


p ondem exatam ente à posição do supracitado estudioso do Talm ude?
Sua m ensagem é: sim, é claro, haverá um a catástrofe, mas ficai pacien­
tem ente atentos, não acreditai nela, não ficai presos em extrapolações,
não vos entregai ao prazer propriam ente perverso de pensar “E ntão é
isso!” em suas diversas form as (o aquecim ento global vai nos ex tin g u ir
em um a década, a biogenética representará o fim da existência hum ana,
etc., etc.). L onge de nos seduzir para u m arreb atam en to perverso e
autodestrutivo, adotar a posição propriam ente apocalíptica é, m ais que
nunca, a um ca m aneira de m anter a cabeça fria.

58 FILÕ M ARG EN S

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