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Alexandro F. Souza
Mestre em Ciência da Religião/UFJF
Doutorando em Ciência da Religião/UFJF
alephsouza@gmail.com
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Ano I, Nº 03, Juiz de Fora, dezembro/2010 - março/2011
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Persona era o nome da máscara usada pelos atores no teatro grego. A palavra deriva-se do verbo
“personare” (soar através de).
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JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente, p. 32.
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Perguntado em uma entrevista se lhe aprazia essa interpretação junguiana da sua obra, Bergman afirma:
“Acho isto muito bem dito e é uma fórmula que se aplica bem, também, ao meu filme. Para mim, estes
seres que primeiro trocavam suas máscaras e depois subitamente dividem a mesma máscara, era
fascinante”. BERGMAN, Ingmar. In: O cinema segundo Bergman. BJÖRGMAN, Stig et alii, p. 164.
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JUNG. Op. cit. p. 68.
5
Ibidem, p. 69.
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KIERKEGAARD, Soren. O conceito de angústia.
7
KIERKEGAARD. Op. cit., p. 66.
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Sem um sentido, a não ser o dado por si mesmo em sua total liberdade;
sem um destino, a não ser o atribuído por si mesmo, o indivíduo descobre-se
absolutamente livre para a sua própria realização; descobre que o seu “eu” não é
dado, o que é dada é a pura possibilidade de realização desse “eu”. Sem ter onde
apoiar-se, o indivíduo sente a angústia de estar entregue à sua própria
responsabilidade. Como diz Gilles em sua História do existencialismo e da
fenomenologia, “[s]ó na medida em que for capaz de sofrer a prova desse
abandono será [o indivíduo] existencialmente livre”8.
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GILES, Thomas Ransom. História do existencialismo e da fenomenologia, p. 44.
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KIERKEGAARD. Op. cit., p. 45.
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GILES. Op. cit., p. 44.
11
KIERKEGAARD.Op. cit., p. 66.
12
Ibidem, p. 26.
13
GILES. Op. cit., p. 44.
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A angústia em Persona
O indivíduo é uma síntese entre alma e corpo, síntese essa suportada pelo
espírito. Tal espírito tende a tornar-se mais forte com o aprofundar da relação, com
o voltar-se para o interior de si mesmo e isso se traduz na busca de uma existência
autêntica à despeito do risco de sua não realização. Aqui a angústia toma parte
como esse convite à realização de si mesmo, descortinando para o indivíduo as suas
possibilidades. O oposto de tal atitude é a a-espiritualidade, onde o indivíduo ainda
não realizou o salto qualitativo e sua liberdade é apenas um mero devaneio. Para
Kierkegaard, “[a]inda que na a-espiritualidade a angústia, do mesmo modo que o
espírito, seja abolida, permanece aí como expectativa” 14. Ao tocar nesse ponto do
pensamento kierkegaardiano, nossa intenção é procurar observá-lo no
comportamento de uma das personagens da obra de Bergman.
Alma, a jovem enfermeira sente que o seu caminho já está traçado: ela se
casará com Karl-Henrik, terá filhos e continuará com o seu trabalho de enfermeira,
uma vocação “herdada” de família. Como ela própria afirma, “[...] tudo isto está
predestinado [...]”. Em tal personagem a liberdade não se efetiva e seu espírito vive
a sonhar com outras possibilidades de realização. Tais divagações aumentam com o
contato com Elisabeth Vogler; para Alma, a atriz “[...] pode fazer o que quiser [...]”,
enquanto ela não tem o que pensar. Assim, no contato com Elisabeth Vogler, Alma
sente que seu espírito é pequeno demais para dar conta do problema da atriz que,
como veremos mais adiante, é justamente o oposto da a-espiritualidade de Alma.
Em suas conversas com a atriz, a enfermeira deixa transparecer sua ingenuidade e
uma certa falta de sentido para a sua existência, que se resume a incorporar a si
atitudes alheias. Dessa forma Alma toma parte numa orgia à beira-mar e assume,
também, atitudes de Elisabeth. Pode-se, nesse sentido, falar em uma persona, no
14
KIERKEGAARD. Op. cit., p. 101.
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Em sua a-espiritualidade, Alma presente que algo não está bem, que a sua
existência pode se tornar algo maior do que é no momento. Assim, ao mesmo
tempo em que afirma ser preguiçosa demais para mudar, afirma também que isso a
faz sentir-se culpada, que isso a angustia. Ao ler a carta de Elisabeth Vogler, Alma se
reconhece na existência um tanto ingênua descrita pelo olhar mordaz da atriz, o
que a leva a iniciar um processo de desagregação de seu “estilo” existencial,
processo esse que poderia levá-la à afirmação de si como indivíduo autêntico, mas
que parece redundar no mais absoluto fracasso quando, no confronto com
Elisabeth, ela não consegue mais articular-se de maneira coerente.
No outro extremo temos a atriz Elisabeth Vogler. Bonita, bem sucedida nos
palcos e na vida pessoal, nada parece lhe faltar, como bem lembra a enfermeira
Alma no início do filme. Entretanto, apesar disso, ela se recusa a manter contato
com o mundo, decidindo fechar-se em si mesma. “Eu viveria assim para sempre”,
15
Ibidem, p. 99.
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diz ela, “em silêncio, vivendo uma vida reclusa, com poucas necessidades, sentindo
minha alma finalmente se acalmar”.
Pode-se afirmar que antes do episódio do palco, Elisabeth e Alma eram bem
parecidas. Como Alma, Elisabeth levava uma existência sem um sentido, sem a
busca de sua própria autenticidade. Sua profissão é uma metáfora de sua própria
vida, máscaras que vêm e vão ao sabor do instante, sem nenhum engajamento
profundo. Mas, algo no palco lhe revela a insensatez de sua vida e, angustiada, a
atriz sente a precariedade de sua existência. Esse algo que abre o reino da pura
possibilidade para Elisabeth é o instante, um “piscar de olhos” que desvela os
fundamentos da existência humana. Esse instante experimentado por Elisabeth,
segundo Giles:
16
GILES. Op. cit., p. 50.
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Conclusão:
Podemos, então, traçar um retrato esquemático da angústia em Persona.
Num extremo encontramos Alma e seu estado de a-espiritualiade e, no outro,
Elisabeth e sua recusa da liberdade. Em comum, as duas personagens possuem a
angústia, comum a todos os seres humanos, mas que na especificidade de Persona,
é uma angústia que leva uma a invejar a própria condição da outra e vice-e-versa.
Alma, em sua angústia, tateia um sentido para sua existência, encontrando em
17
KIERKEGAARD. Op. cit., p. 127.
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O corpo que Elisabeth vê incinerar-se é do monge budista Thich Quang Duc, nascido em 1897, que se
sacrificou até a morte numa rua movimentada de Saigon, em 11 de junho de 1963.
Enquanto seu corpo ardia sob as chamas, o monge manteve-se completamente imóvel.
Não gritou, nem sequer fez um pequeno ruído. Seu ato foi uma forma de protesto contra a perseguição da
elite católica vietnamita ao budismo.
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Elisabeth uma espécie de modelo a ser invejado. Por sua vez, Elisabeth recusa a sua
liberdade e inveja a “existência inocente” de Alma. Dessa forma, uma deseja
“trocar” de persona com a outra ou, como na atitude vampiresca de Elisabeth, uma
deseja “sugar” o ser da outra, fugindo assim às suas próprias condições. Assim
vemos as duas “soarem” através de suas próprias inautenticidades, uma buscando
refugiar-se na máscara alheia em detrimento de suas próprias individualidades.
Referências Bibliográficas:
BERGMAN, Ingmar. Persona. Quando duas mulheres pecam. Versátil
Seleções, 2006 [1966], 84”, DVD.
BJORGMAN, Stik et alii. O cinema segundo Bergman. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1978.
GILES, Thomas Ransom. História do existencialismo e da
fenomenologia. São Paulo: EPU, 1975.
JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1978.
KIERKEGAARD, Soren. O conceito de angústia. São Paulo: Hemus,
1968.
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