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SOBRE ‘ENTER THE VOID’

Se você procura um filme sobre vida após a morte que não sejam os apologéticos baseados
em EQMs ou relatos semelhantes, talvez se interesse por Enter The Void. A proposta filosófica e
ambiciosa desse longa, além de detalhes técnicos impressionantes, causa, em qualquer um,
reflexões sobre a morte e a vida nesse mundo.
O diretor, Gaspar Noé, tem sua própria maneira de pensar o roteiro, sendo um ateu. Mas, e
isso é importante entendermos, a obra transcende o artista, mesmo que não seja possível eliminar
sua própria intenção dos fatores. No caso desse filme, o artista ser ateu é justamente o que permitiu
que se livrasse de conceitos prévios, e se apegasse a sua visão ao livro em que toda a jornada se
baseia: Bardo Todol, o livro tibetano dos mortos. Se fosse possível resumir ao máximo a história,
poderíamos dizer que é o Bardo Todol sob psicodélicos. Inclusive, o filme simula experiencias com
drogas por parte do próprio diretor, e eu diria que ele bastaria nesse sentido, descartando a
necessidade de quem assiste se tornar usuário, mas dificilmente quem pretende vai ouvir esse
conselho, certo?
O bar em Toquio chamado The Void se torna o vazio onde cai nosso protagonista, que
também somos nós, pois a gravação é habilmente feita em primeira pessoa. A relação com os ciclos
de hedonismo, magoas e violência que permeiam a vida urbana, de forma intensa na vida de Oscar,
formam um redemoinho constantemente levando à morte, e a esse vazio que a própria morte
significa. Se chocam em toda a história nossos dramas psicológicos humanos, em tiros
visceralmente psicanaliticos e de peso emocional para qualquer um, e com eles conceitos do
budismo tibetano, como as estados da mente no livro-inspiração, as luzes, as ilusões, e a
reencarnação.
Gostaria de destacar dois pontos extremamente “gnósticos” nessa obra. Primeiramente, a
morte e o sofrimento injustificado no mundo são mostrados em sua nudez. Uma bela família é
destruída por um acidente de carro, irmãos órfãos são traumatizados, separados, e crescem com
maculas e obsessões que nossa mente e nossa biologia produzem e marcam nossas ações de maneira
morbidamente oculta. A morte não tem qualquer sentido quando olhada sem lentes de crenças,
como faz Gaspar Noé. A vida nesse mundo é toda impregnada de dor, cisão, vazio, e promessas
feitas enquanto na pureza infantil são sempre partidas quando o mundo se impõe. Sem divergir das
máximas budistas sobre a vida ser sofrimento, Enter The Void tem é ambientada da já cyberpunk
Tokyo, cheia de neons, mostrando uma visão contemporânea e empática do mundo contemporâneo.
O segundo ponto que quero destacar é o final ambíguo, que pretendo trazer uma terceira
visão. Normalmente, quando parece que Oscar vai reencarnar através de sua irmã, por quem ele foi
obcecado de forma muitas vezes edípica, podemos simplesmente tomar essa ideia como a mais
verdadeira. Por outro lado, e principalmente nos baseando na visão do diretor, podemos dizer que
tudo foi uma viagem alucinante de um cérebro que criou um desenrolar cíclico de fatos, baseado no
próprio livro que o morto estava lendo antes de morrer. Esse ponto de vista é justificável, já que a
própria cena ambíguia, em que não podemos ver o rosto de sua nova mãe, poderia ser a lembrança
do nascimento, e do primeiro contato com o seio materno.
Porém, contudo e todavia, essa interpretação abre uma nova possibilidade, que foi explorada
por Philip K. Dick. Segundo ele, já estamos mortos, num purgatório cíclico. A queda do homem
também e principalmente foi uma parte da Grande Mente\Deus que morreu, ou se “ossificou”,
podemos dizer. A parte ossificada da Grande Mente então passa a recircular o último pensamento
vivenciado, uma lembrança repetida infinitamente durante um tempo linear falso. “Ele faz com que
as coisas pareçam diferentes, para parecer que o tempo passou”, escreve PKD em sua Exegesis.
Dessa forma, estaríamos também vivenciando sempre a mesma vida, até que houvesse uma nova
inscrição em nós. Uma mudança no “groove”.
Poderia Oscar, então, e sem intenção do roteirista, estar reiniciando o ciclo de morte e
renascimento, que na verdade é a mesma vida relembrada novamente na matriz ossificada, que
apenas parece diferente através do tempo… Ufa! Não é o cenário que quem espera o Céu quando
morrer vai gostar de imaginar, mas nos faz pensar sobre mudar o curso de nossos egos e do inferno
da repetição, o mais rápido possível, não?

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