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Guarulhos
2022
DANILO MOURA MONTEIRO
Guarulhos
2022
Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos au-
torais nº 9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório Institu-
cional da UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer ressarcimento
dos direitos autorais para leitura, impressão e/ou download em meio eletrônico para fins de di-
vulgação intelectual, desde que citada a fonte.
Título em inglês: Policies and Industrial techniques: aspects of the manufacture of saltpeter
and iron in the captaincies of Minas Gerais and Bahia (1779-1812).
1. Salitre. 2. Ferro. 3. Manufaturas. 4. Brasil colônia. 5. Ciência. I. Júnia Ferreira Furtado. II. Políticas e
técnicas industriais: aspectos da manufatura do salitre e do ferro nas capitanias de Minas Gerais e da
Bahia (1779-1812).
DANILO MOURA MONTEIRO
Os planos econômicos pelas quais o quadro político português lançou mão durante a segunda
metade do século XVIII foram respaldados pela ciência ilustrada, cujas premissas estavam
assentadas em gestos pragmáticos e utilitários. Partindo dessa premissa, os naturalistas luso-
brasileiros, egressos dos centros de difusão científica daquele período, corroboraram com seus
estudos, mormente nos registros memorialísticos, para assegurar as reformas da economia do
Reino. Essas transformações, portanto, foram reverberadas na América portuguesa, de modo
que a conquista dos seus recursos naturais também foram debruçadas sobre uma metodologia
científica. Nesse sentido, o salitre e o ferro entraram na ordem de conquista das riquezas da
colônia brasileira, principalmente para os intelectuais que estavam sob a influência de D.
Rodrigo de Sousa Coutinho. Para o beneficiamento dos recursos brasileiros, o processo
manufatureiro foi proposto por José Vieira Couto, José de Sá Bittencourt e Accioli e Manuel
Ferreira da Câmara Bittencourt. Assim sendo, essa dissertação objetivou investigar os
movimentos para a instalação de fábricas e manufaturas no Brasil, ainda que em aspectos
ensaísticos, para a obtenção do salitre e do ferro nas capitanias de Minas Gerais e da Bahia.
Para esta investigação, partimos de uma análise crítica amplo acervo de documentações
administrativas oficiais, quais sejam cartas, oficios, alvarás e das Memórias publicadas pelos
naturalistas citados. Entendemos que, embora em grande medida, as fábricas não tenham
saído do plano teórico, elas sugerem um momento impar na história da colônia brasileira no
sentido promover um projeto de uma indústria química e metalúrgica que estiveram em
consonância com os anseios dos atores políticos.
The economic plans that the Portuguese political administration made use of during the
second half of the 18th century were supported by enlightened science, whose premises were
based on pragmatic and utilitarian gestures. Starting from this premise, the Luso-Brazilian
naturalists, egresses from the scientific diffusion centers of that period, corroborated with
their studies, especially in the memorialistic records, to ensure the reforms of the Kingdom's
economy. These transformations, therefore, were reverberated in Portuguese America, so that
the conquest of its natural resources was also based on a scientific methodology. Therefore,
saltpeter and iron entered the order of conquest of the riches of the Brazilian colony, mainly
for the intellectuals who were under the influence of D. Rodrigo de Sousa Coutinho. For the
benefit of Brazilian resources, the manufacturing process was proposed by José Vieira Couto,
José de Sá Bittencourt and Accioli and Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt. Hence, this
dissertation aimed to investigate the movements for the installation of factories and
manufactures in Brazil, albeit in essayistic aspects, to obtain saltpeter and iron in the
captaincies of Minas Gerais and Bahia. For this investigation, we started from a critical
analysis of a wide collection of official administrative documentation, such as letters, official
letters, permits and Memories published by the cited naturalists. We understand that, although
to a large extent, the factories did not go beyond the theoretical plan, they suggest a unique
moment in the history of the Brazilian colony in the sense of promoting a project of a
chemical and metallurgical industry that was in line with the wishes of political actors.
Tabela 1 - Propostas de atalhos exaradas pelos comissários designados pela Coroa portuguesa,
no ano de 1757, Para escoar o salitre dos Montes Altos.........................................................102
Tabela 2 - Custos pagos pelo transporte do salitre, nome do responsável e da sua propriedade
nos arredores dos Montes Altos1............................................................................................102
Tabela 3 - Extrato de todo o ferro e coado que entrou na Alfândega da cidade da Bahia,de
1791 a 1795, e pagou a dizima de seu valor...........................................................................118
Tabela 4 - Tipos de minas de ferro elencadas por José Vieira Couto e suas medidas.............153
LISTA DE ABREVIATURAS
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................15
Capítulo 1
O ideário ilustrado em Portugal: A ciência utilitária e a questão das manufaturas entre o
fim do século XVIII e o início do século XIX........................................................................25
1.1 Os memorialistas, D. Rodrigo de Sousa Coutinho e a questão das manufaturas na
metrópole portuguesa...........................................................................................................41
1.1.1 Considerações sobre as manufaturas na metrópole portuguesa..............................49
1.2 As manufaturas na América portuguesa: políticas ilustradas, necessidades econômicas e
o alvará de 1785...................................................................................................................53
Capítulo 2
A manufatura do salitre e do ferro na capitania da Bahia: perspectiva ilustrada nos
estudos do ferro e nos projetos da indústria salitreira na América portuguesa................75
2.1 A manufatura do salitre e as reformas ilustradas............................................................77
2.2 As iniciativas para a extração do salitre na Bahia..........................................................87
2.3 A manufatura do salitre nos Montes Altos....................................................................104
2.4 Considerações sobre a Memória sobre a viagem do terreno nitroso dos Montes-Altos
............................................................................................................................................107
2.5 A manufatura química brasileira: o caso do nitrato de potássio...................................112
2.6 As pesquisas e a manufatura do ferro na Bahia............................................................114
Capítulo 3
Projetos manufatureiros para a América portuguesa: o ferro e o salitre na conquista
econômico-científica da natureza em Minas Gerais..........................................................126
3.1 A manufatura do ferro na América portuguesa.............................................................127
3.2 A metalurgia na capitania de Minas Gerais..................................................................135
3.3 Antecedentes da produção de ferro em Minas Gerais..................................................141
3.4 Como animar a produção de ferro a partir de 1780......................................................144
3.5 As propostas metalúrgicas na Memória sobre a Capitania de Minas Geraes; seu
territorio, clima e producções metálicas, de José Vieira Couto..........................................148
3.6 O projeto e a formação da Real Fábrica de Ferro do Morro do Pilar...........................155
3.7 As iniciativas para a extração do salitre em Minas Gerais...........................................166
3.8 Considerações relativas à Memória sobre as nitreiras naturaes e artificiaes de Monte
Rorigo.................................................................................................................................167
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................175
REFERÊNCIAS....................................................................................................................181
Fontes......................................................................................................................................181
Bibliografia.............................................................................................................................187
15
INTRODUÇÃO
5
Cf. SAMPAIO, Antonio C. J. A economia do império português no período pombalino. In: FALCON,
Francisco; RODRIGUES, Cláudia (Org.). A “época pombalina” no mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2015. pp. 31-58.
18
influente entre os naturalistas. Domingos Vandelli, lente em História Natural, foi um dos mais
influenciados pela Fisiocracia: um grande número de memórias foram redigidas pelo
estudioso a fim de modernizar os processos agrícolas do Reino. As ideias smithiannas e
mercantilistas também orbitavam nas propostas econômicas de outros pesquisadores do
período, apesar das últimas estivessem em abandono no período.
Todavia, a questão manufatureira também foi levada ao debate e as considerações
relativas à indústria portuguesa também ganharam contornos, como foi apontado na Memória
de Eschwege sobre o estado das fábricas de ferro da Metrópole. 6 Como parte do conjunto dos
esforços de transformação econômica do Reino, foi usual a prática da publicação das
Memórias a fim de ampliar o acesso aos resultados das pesquisas desenvolvidas pelos
naturalistas.
Essas movimentações de transformação do Reino a partir do cariz de uma ciência
marcada por uma estratégia metodológica capaz de auferir ganhos econômicos em grandes
quantidades, como afirmamos, também se projetou no Brasil. Muitos naturalistas luso-
brasileiros foram enviados para realizar viagens filosóficas a fim de pesquisar as
potencialidades das riquezas naturais brasileiras, especialmente com o objetivo de sofisticar as
práticas na agricultura e na mineração. Esses mesmos naturalistas egressos dos centros
acadêmicos portugueses também escreveram uma série de memórias que registraram as
disposições dos recursos da natureza brasileira e dos intentos que poderiam ser aplicados com
eles.
A documentação oficial trocada entre os responsáveis pelas capitanias da América
portuguesa, os naturalistas luso-brasileiros e os administradores portugueses revelam o quanto
foi intensa a movimentação para se aplicar o saber pragmático que auxiliasse nas reformas da
economia do Reino in loco. Dentro desse universo de trocas de informações e amostras dos
resultados das pesquisas empreendidas, o salitre e o ferro ganharam importante destaque.
Nesse ponto, vale realçar a postura de D. Rodrigo de Sousa Coutinho quando foi
ministro de Estado na pasta da Marinha e dos Domínios Ultramarinos (1796-1801). Homem
altamente influenciado pelas premissas ilustradas, Sousa Coutinho esteve à dianteira de uma
enorme incursão para uma nova conquista dos recursos naturais brasileiros. Destarte, Conde
de Linhares foi um grande apoiador da abertura para a aplicação de uma ciência que
6
Cf. ESCHWEGE, Guilherme B. de. Memória sobre as dificuldades das fundições, e refinação nas fábricas de
ferro, para ganhar esse metal na maior quantidade, e da melhor qualidade para os diferentes fins. In: CARDOSO,
José Luis (Dir.). Memórias econômicas da Academia Real das Ciências de Lisboa 1789-1815. Lisboa: Banco de
Portugal, 1991. pp. 97-101.
19
7
É preciso reiterar que no Brasil, tanto a produção do salitre como a do ferro tiveram uma história pregressa ao
recorte temporal desta pesquisa. Como propomos ao longo dos capítulos, algumas tentativas de fabricação do
ferro no século XVII assim como a do salitre, embora incipientes, obtiveram certa atenção por parte da Coroa
portuguesa e tiveram certa liberalidade para que indivíduos com o uso de cabedais próprios organizassem essas
empreitadas.
20
Rodrigo de Sousa Coutinho, entre os quais serão fontes para nosso estudo os registros e
experiências de José Vieira Couto, José de Sá Bittencourt e Accioli e Manuel Ferreira da
Câmara Bittencourt.
Com o objetivo de buscar o entendimento de como os naturalistas luso-brasileiros
contribuíram para o beneficiamento do salitre e do ferro a partir do fomento da instalação de
manufaturas com a referência nas práticas aplicadas em diversos centros europeus, esta
pesquisa procura analisar à luz dos debates historiográficos e sob o amparo das fontes, nesse
caso, os documentos oficiais expedidos pelas autoridades administrativas da colônia e de
Portugal, assim como as memórias redigidas pelos pesquisadores do período, como se deu a
articulação das iniciativas da Coroa portuguesa com os intelectuais para aplicação das
políticas e técnicas industriais.
Este estudo se assentou em documentação primária referente ao período colonial da
América portuguesa disponível nos arquivos digitalizados. Foram elencados os documentos
relativos ao período pretendido nos arquivos digitalizados no Arquivo Histórico Ultramarino
(AHU – Projeto Resgate) e no Arquivo Público Mineiro (APM). É importante ressaltar que a
documentação dos arquivos citados contemplou diversos formatos, sendo os mais comuns as
leis, cartas régias, alvarás e provisões. Além disso, utilizamos uma série de publicações
encontradas em periódicos que transcreveram os textos do período que aqui estudamos, sendo
eles o Auxiliador da Indústria Nacional, a Revista do Arquivo Público Mineiro e a Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Como referencial teórico, procuramos concernir os campos de estudo capazes de dar
suporte aos problemas propostos, vale citar: qual o perfil das manufaturas propostas nas
capitanias de Minas Gerais e da Bahia para a elaboração d salitre e do ferro tendo em vista as
técnicas industriais e políticas econômicas adotadas por Portugal em fins do século XVIII e
início do século XIX? Quais foram os reflexos das pesquisas dos naturalistas para a produção
efetiva do salitre e do ferro? Para responder estas questões, partiremos de uma abordagem
orientada por dois campos de estudo: a História da Ciência e a História Econômica.
Assim sendo, em relação à História da Ciência, um grande número de trabalhos tem
sido publicados ao longo das últimas décadas, procurando desvelar a ciência empregada ao
longo do século XVIII e início do século XIX no Brasil colônia. 8 Podemos citar os trabalhos
8
Merece destaque a vultosa tese de doutoramento de Ermelinda Pataca Moutinho. Cf. PATACA, Ermelinda
Moutinho. Terra, água e ar nas viagens científicas portuguesas (1755-1808). 2006. 698 f. Tese (Doutorado em
Geociências) – Universidade de Campinas, Instituto de Geociências.
21
9
Cf. FERRAZ, Márcia Helena M. As ciências em Portugal e no Brasil(1772-1822). O texto conflituoso da
química. São Paulo: EDUC, 1997.
10
Cf. SILVA, Clarete Paranhos da. O desvendar do grande livro da natureza: um estudo da obra do
mineralogista José Vieira Couto, 1798-1805. São Paulo, Annablume, 2002.
22
Capítulo 1
O ideário ilustrado em Portugal: A ciência utilitária e a questão das manufaturas entre o fim
do século XVIII e o início do século XIX
CARDOSO, José Luís. CUNHA, Alexandre M. Discurso econômico e política colonial no Império Luso-
brasileiro (1750-1808). Tempo, Niterói, v. 17, pp. 65-88, 2011, pp. 68-69.
18
Existiram também outros espaços cujas ideias ilustradas puderam ser colocadas sob discussão. Entre elas, é
imprescindível mencionar a Universidade de Coimbra e os Museus de História Natural.
19
Para entender o pano de fundo que dava margem à escrita das memórias, é fundamental saber que os
memorialistas ligados à Academia Real tinham por “[…] propósitos: estabelecer um inventário da natureza e dos
povos, constituir um repertório de informações científicas sobre os territórios coloniais, delimitar fronteiras e
informar sobre as potencialidades exploratórias das possessões. [...] As memórias se transformaram em
impressos, peça fundamental da cultura científica fomentada pelo governo luso.”. ABREU, Jean Luiz Neves. O
memorialismo e a produção do conhecimento sobre o território brasileiro: perspectivas para uma historiografia
das ciências. In: MATA, Sérgio Ricardo da; MOLLO, Helena Miranda; VARELLA, Flávia Florentino (Org.).
Caderno de resumos & Anais do 2º. Seminário Nacional de História da Historiografia. A dinâmica do
historicismo: tradições historiográficas modernas. Ouro Preto: EdUFOP, 2008, p. 1. Para as memórias
produzidas na América portuguesa, vale acrescentar o que Clarete Paranhos da Silva define: “o termo ‘Memória’
é aqui expressado no sentido de um registro imediato, de uma narrativa testemunhal do que é visto e é, portanto,
diferente da memória como ‘processo ou faculdade psicológica historicamente construída’.”. SILVA, Clarete
Paranhos da. Garimpando memórias: as ciências mineralógicas e geológicas no Brasil na transição do século
XVIII para o XIX. 2004. 282 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Geociências, p. 3.
28
senão as que favorecem estes artigos, pois que todas as nações que tem florescentes manufacturas, a devem ou a
superioridade da matéria primeira que trabalham, ou ao jornal barato do manufactureiro [...]”. COUTINHO, D.
Rodrigo de Sousa. Textos políticos, econômicos e financeiros (1783-1811). Tomo I. Lisboa: Banco de Portugal,
1993, p. 12.
23
Cf. MATOS. Ana Maria Cardoso de. op. cit., 1997.
24
Segundo Cardoso, “no plano estritamente teórico, e de uma forma que não é generalizável a todos quantos
escrevem durante o período, os autores portugueses procuram assimilar os pressupostos filosóficos da obra dos
fisiocratas e de Smith que, em países diferentes e sob vestes diversas, protagoniza de forma ineludível a gênese
de um novo discurso para a ciência econômica que torna a análise da riqueza das nações distinta da análise dos
fatores de opulência dos Estados.”. CARDOSO, José L. M. op. cit. 1988, p. 135.
25
O processo de controle, ainda que de perfil mais pontual em algumas regiões do Brasil, pode ser observado
desde a época em que Marquês de Pombal foi ministro. O que diferencia dos anos seguintes à saída do ministro é
o controle menos assentado nas companhias monopolistas das potencialidades para com as matérias-primas
brasileiras. Cf. FALCON, Francisco C. A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada. São
Paulo: Editora Ática, 1982.
26
De acordo com Lorelai Kury, “[…] os governadores e capitães-generais das diferentes capitanias tiveram papel
fundamental no exercício da nova política de conhecimento e exploração do ultramar.”. KURY, Lorelai, op. cit.,
2004, p. 112.
27
Entre eles, se destacam José Bonifácio de Andrada e Silva.
30
ção e aplicação dos saberes ilustrados, especialmente para os estudos relativos à mineralogia e
à metalurgia que vieram a ser realizados no Brasil.28 Alguns desses bacharéis formados que re-
tornaram à América portuguesa para colocar em prática sua expertise pertenciam à rede de in-
fluência de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, cujos estudos desenvolvidos nas capitanias de Mi-
nas Gerais e da Bahia reforçaram o projeto reformador da economia da qual o referido minis-
tro estava à dianteira.29
Patrocinados pela Coroa e seus representantes diretos, esses cientistas, além de proje-
tarem seus pensamentos para investigar os depósitos naturais brasileiros, pautaram seus estu-
dos pela razão iluminista, estimulados pelas leituras que levaram da Europa para o Brasil.
Kenneth Maxwell chamou esse grupo de intelectuais de a geração de 1790.30
É notável, portanto, a influência do pensamento ilustrado nos naturalistas luso-brasilei-
ros que se valeram da ciência utilitária para aproveitamento dos gêneros de interesse econômi-
cos disponíveis no Império colonial brasileiro. Vale lembrar que as chamadas viagens filosófi-
cas para pesquisar as riquezas outrora relegadas à segunda importância e que naquele momen-
to urgiam para a Coroa foram impulsionadas, sobretudo, por Dom Rodrigo de Sousa Coutinho
no período que foi ministro de Estado a frente da pasta da Marinha e dos Domínios Ultramari-
nos.
José Vieira Couto, Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt, José de Sá Bittencourt e
Accioli, Joaquim Veloso de Miranda, entre outros, colocaram à disposição de Portugal seus
conhecimentos adquiridos ao longo dos anos de estudo na Universidade de Coimbra e nos es-
tágios realizados por vários centros industriais e acadêmicos europeus. Esses estudiosos pro-
duziram importantes registros, a exemplo das memórias econômicas que continham o saber
metódico para o aproveitamento do domínio ultramarino português na América, entre elas a
28
O deslocamento de estudiosos para o mundo americano era procedimento natural, pois parte da ciência do
século das luzes se completava com o resultado das pesquisas desenvolvidas nos domínios ultramarinos,
principalmente aquelas ligadas ao período pós-pombalino. Segundo Oswaldo Munteal Filho: “viajar era preciso
e era natural para os homens do renascimento científico-cultural do chamado Grande Século. A necessidade de
que fossem trilhados caminhos para dentro e para fora de Portugal, com as mesmas finalidades e objetivos,
reside nos sentidos de explorar e conhecer.”. MUNTEAL FILHO, Oswaldo. Academia Real das Ciências de
Lisboa e o Império Colonial Ultramarino (1779-1808). In: FURTADO, Júnia Ferreira (Org.). Diálogos
oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para o império ultramarino português. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2001, pp. 486-487.
29
Neste trabalho, destacamos os estudos de José Vieira Couto e José de Sá Bittencourt e Accioli.
30
Cf. MAXWELL, Kenneth. A geração de 1790 e a ideia do império luso-brasileiro. In:_____. Chocolate,
piratas e outros malandros: ensaios tropicais. São Paulo: Paz e terra, 1999, pp. 157-207. No que se refere ao
tema dos ilustrados luso-brasileiro, faz-se obrigatório mencionar o trabalho clássico de Maria Odila Dias, cujo
título é Aspectos da ilustração no Brasil, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Cf.
DIAS, Maria Odila Leite. Aspectos da ilustração no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 278, pp. 105-170, 1968.
31
Memória sobre as nitreiras naturais e artificiais de Monte Rorigo (1803), redigida por José
Vieira Couto.
É importante mencionar que o registro dessas memórias não necessariamente estava
sob o cuidado da Academia Real das Ciências de Lisboa. Centenas de memórias foram produ-
zidas para pontuar as considerações que os intelectuais do período elencavam com o intuito de
subtrair as riquezas tanto da metrópole quanto das colônias portuguesas. Esse tipo de texto
memorialístico era uma das expressões da ilustração, bem como servia como referência cien-
tífica para localidades onde não existia uma imprensa estabelecida, tal como no Brasil antes
da chegada da Corte portuguesa.
A historiografia é farta ao tratar dos estudos referentes às obras dos naturalistas 31, à
ciência produzida na América portuguesa32 e aos aspectos da ilustração nos âmbitos palacia-
nos que nortearam as ações políticas33. No entanto, cabe nesta dissertação viabilizar a com-
preensão sobre a projeção e a replicação do que o correu no fim do século XVIII e início do
século XIX como forma de dissecar parte do processo de surgimento das bases da sofisticação
da manufatura brasileira que tinha por pano de fundo as diretrizes ilustradas aplicadas pelos
naturalistas luso-brasileiros. O que foi tratado tradicionalmente próximo a esse respeito foi o
aspecto tímido e rudimentar do que se passou ao longo do período colonial brasileiro referente
às manufaturas e fábricas. É evidente que os outros ramos econômicos que não o da produção
de gêneros tropicais e da produção auríferas foram consideravelmente de menor importância
para as atividades econômicas e comerciais praticadas no Brasil colonial.
A movimentação que os administradores portugueses e seus representantes diretos ins-
talados nos domínios ultramarinos manifestaram foi sintomática no sentido de promover uma
política e técnica industrial que suprimisse certos atrasos na economia do Reino. Promover
essa dinâmica na América portuguesa era parte da extensão da conquista colonial ancorada
num método e experimentação. As cartas trocadas entre as autoridades que governavam as ca-
31
Cf. DIAS, Maria Odila L. da S. op. cit., 1968; FILGUEIRAS, Carlos. A química de José Bonifácio. Química
Nova, São Paulo, v. 9, n. 4, pp. 263-268, 1986; KURY, Lorelai. op. cit., 2004.
32
Cf. PATACA, Ermelinda Moutinho. Terra, água e ar nas viagens científicas portuguesas (1755-1808). 2006.
698 f. Tese (Doutorado em Geociências) – Universidade de Campinas, Instituto de Geociências; VARELA, Alex
G. Atividades Científicas na "Bela e Bárbara" Capitania de São Paulo (1796-1823). 2005. 368 f. Tese
(Doutorado em Geociências) – Universidade de Campinas, Instituo de Geociência; SILVA, Clarete Paranhos da.
op. cit., 2004.
33
Cf. FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas
setecentistas. São Paulo: Hucitec, 2006; SANTOS, Nivia Pombo C. dos. O palácio de Queluz e o mundo
ultramarino: circuitos ilustrados. Portugal, Brasil e Angola, 1796-1803. 2013. 395 f. Tese (Doutorado em
História) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia.
32
pitanias evidenciam o pleno concurso para a realização do projeto racional e utilitário que a
classe política e intelectual almejavam.
Embora oficialmente as manufaturas estivessem proibidas na América portuguesa en-
tre 1785 e 1808, houve um claro e inquietante posicionamento dos governadores das capitani-
as e dos naturalistas luso-brasileiros, com a anuência da metrópole, em aplicar um conheci-
mento fundamentado em condições metodológicas para suprir as demandas internas de produ-
tos indispensáveis para a vivência cotidiana e para o aumento de captações para o Erário Ré-
gio, ou seja, o pleno apoio para que se erigissem fábricas que produzissem o que era necessá-
rio à colônia e ao Império português como um todo.34
O grande volume de amostras de minérios e minerais que foram enviadas para avalia-
ção na metrópole indicou que, para além de expressões pecuniárias que determinados elemen-
tos dispostos na natureza ultramarina sinalizavam aos interesses imediatos à economia do Es-
tado, o incentivo à busca e do aproveitamento de determinados produtos demonstravam-se
cruciais para a consolidação de um esforço pragmático que, daquele momento em diante, não
deveriam ser mais alicerçados em uma exploração desarranjada, mas sim numa postura de
planejamento cuja prescrição de uma linha metódica orientasse seguros resultados. O exercí-
cio e o emprego das manufaturas entraram, portanto, como peça indispensável para que se ob-
jetivasse os interesses dos portugueses e de seus representantes diretos.
Outrossim, os naturalistas luso-brasileiros exerceram algumas de suas experimenta-
ções científicas buscando a produção por meio de manufaturas, ainda que essas, por vezes,
fossem apresentadas em plano teórico, ou, em alguns casos, em caráter de protótipos. No caso
desta pesquisa, as nitreiras artificiais são um dos exemplos mais patentes de produção planeja-
da. O episódio de Joaquim Veloso de Miranda, na fazenda de Mau Cabelo, é um indicativo de
como a busca do fabrico do salitre de forma artificial passou por uma condução industrial or-
ganizada e orientada nos métodos científicos.
As descrições de Veloso evidenciam que as manufaturas eram parte da efetivação da
busca utilitária dos recursos disponíveis na natureza.35 Assim sendo, as memórias produzidas
34
Aqui vale destacar o período dos primeiros sinais de esgotamento que a mineração causou na capitania das
Minas Gerais e a busca de instrumentos que auxiliassem os mineiros a realizar atividades mais complexas de
obtenção do ouro.
35
Conforme os estudos de Márcio Mota Pereira, “segundo Veloso de Miranda, nas vizinhanças da propriedade,
naturalmente e com grande facilidade, se ‘depositava o ácido nitroso nos muros das povoações e [dos] moradores
circunvizinhos, até a distância de mais de uma légua’, e que ‘os ditos muros [eram] formados do mesmo
piçarrão, ou concreção térrea, de que são feitos os do Mau Cabelo’. Junto a tal descrição, realizada no ano de
1797, foram enviadas amostras de nitro bruto e do salitre resultante do primeiro cozimento realizado por Veloso
de Miranda em sua propriedade, visando testemunhar a riqueza das lavras, bem como a real possibilidade de seu
33
aproveitamento econômico. No ano seguinte, replicando Veloso de Miranda, Lorena informou a Dom Rodrigo de
Sousa Coutinho que ‘não há dúvida nenhuma que aqui, [na Fazenda do Mau Cabelo], se pode fabricar o salitre,
compreendendo já grande distância a terra própria para a sua extração’, e que o naturalista se ofereceu para o
cargo de ‘Diretor da fábrica, quando [esta] deva estabelecer-se’.”. PEREIRA, Márcio Mota. Saber e honra: a
trajetória do naturalista luso-brasileiro Joaquim Veloso de Miranda e as pesquisas em História Natural na
capitania de Minas Gerais (1746-1816). 2018. 412 f. Tese (doutorado em História) - Universidade Federal de
Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, p. 193.
36
SILVA, Clarete Paranhos da. op. cit., 2004, p. 229.
34
Ademais, podemos notar o quanto o Império português, durante o século XVIII, cami-
nhava em direção ao controle ostensivo de suas produções, mapeando rigorosamente seus re-
cursos e planificando o emprego de determinadas atividades, uma das explicações usualmente
utilizadas para a publicação do alvará proibindo as manufaturas têxteis no Brasil 38. Conforme
expôs Fernando A. Novais39, havia urgências de reformas que mobilizassem os lusitanos em
direção à modernização e à integração de sua colônia na América aos ditames do mercado
mundial, mas que, ao mesmo tempo, reforçava as preocupações em fazer com que o esclareci-
mento circulasse entre os colonos e desembocasse numa sublevação ou em ato de ruptura re-
volucionária.
O ideário ilustrado trouxe à América portuguesa não apenas a circularidade das pro-
postas científicas, mas também a centelha de se efetivar as manufaturas como parte funda-
mental do empreendimento com o uso pragmático dos elementos disponíveis na natureza. A
ciência, nesse caso, esteve operando junto à política, buscando a superação do mercantilismo
e dos ditames do Antigo Regime, bem como uma técnica industrial que melhor gerasse resul-
tados econômicos.
É possível compreender que os portugueses, dentro das possibilidades que estavam da-
das, tentaram construir um conjunto de ações que fossem capazes de tornar sua economia
competitiva dentro do cenário europeu. O que fica claro é que as medidas apresentadas pelos
naturalistas memorialistas refletiram a total adesão ao ideário ilustrado que eram indispensá-
veis para superar certos atrasos e fraquezas que o Reino manifestava. Em outras palavras, a
urgência de um trabalho que superasse as defasagens urgiu no império ultramarino quando a
produção aurífera declinou e exigiu novas tecnologias de prospecção. 40 Uma das veias desse
37
MUNTEAL FILHO, Oswaldo. op. cit., 2001, p. 490.
38
O tratado de Methuen celebrado entre Portugal e Inglaterra trouxe prejuízos à indústria de tecidos portuguesa.
A avançada técnica industrial inglesa pressionou a administração lusa a adotar uma postura de maior proteção
aos tecidos produzidos em Portugal.
39
Cf. NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777 – 1808). São Paulo:
Hucitec, 1983.
40
O matemático Antonio Pires da Silva Pontes Leme, por volta do ano de 1800, observou com clareza a falta que
o ferro fazia para que os trabalhos da mineração se concretizassem. Segundo Leme, “contudo os mineiros
chamados de rodas inda hoje ainda não sabem outro methodo de esgotar aquelles possos, senão com esses
engenhos q’. dependem de muito. ferro, e suposto q’. as Minas Geraes sejão quasi todas de ferro q’. que os
naturalistas nomeão por Emathytis […] com tudo não se aproveitão desta nova faculdade para os seus trabalhos
assim lançando os mineiros o ferro q’. lhes natureza mesmo com oportuna liberalidad. e , esperão pelo ferro da
Biscaia e da Suecia pa. combater oferro de suas lavras […].”. LEME, Antonio Pires da Silva Pontes. Memória
sobre a utilidade pública em se extrair o ouro das minas e os motivos dos poucos interesses que fazem os
particulares, que mineram igualmente no Brasil. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ouro Preto, v. 1, n. 3, pp.
35
declínio da indústria aurífera era a falta de instrumentos de ferro para auxiliar na mineração.
Mesmo possuindo enormes depósitos de minério de ferro à sua disposição na capitania de Mi-
nas Gerias, os mineiros eram obrigados a importar instrumentos já manufaturados, o que sina-
lizava o pleno concurso para a criação de fábricas de ferro.
Alguns produtos manufaturados eram substanciais para que outras manufaturas fossem
capazes de existir, fato que tornava mais urgente a adoção de uma conduta que fosse compe-
tente para solucionar a falta de certos gêneros que dessem ao Estado português a força de uma
economia ativa e que gerasse receitas aos cofres Reais. Consequentemente, o salitre e o ferro 41
mostravam-se como elementos imprescindíveis para consolidar o poder do Reino português.
O salitre era parte dos insumos para a fabricação da pólvora, e esta última por sua vez é essen-
cial na construção e na manutenção dos arsenais de guerra e na exploração mineral.42
Importa lembrar que o controle do Estado português em relação ao salitre entrou na or-
dem das preocupações do final do século XVIII, em grande medida pela pólvora ser um imi-
nente instrumento de sedição na América portuguesa.43 Já o ferro, tal como mencionado nos
parágrafos anteriores, era produto obrigatório na criação de diversos utensílios, a exemplo das
enxadas e almocafres. Portugal não possuía uma larga tradição na produção de ferro, o que
suscitou ainda mais mudanças em relação à manufatura desse minério.44
no ano de 1799, dizia o dr. José Vieira Couto em suas Memórias sobre a capitania
de Minas Gerais: “O ferro, metal tão necessário a todas as artes, a todos os ofícios e
ainda às mesmas ciências, mais precioso que o ouro e a prata, é o que a Providência
derramou com prodigiosidade entre nós espantosa. Ele por toda a parte se nos mos-
tra, cobrindo de negro nossas estradas […]”.47
A capitania da Bahia também era alvo de grande projeção dos desejos das reformas
econômicas de Portugal, assim como de notáveis incentivos de pesquisas científicas, entre as
quais as já destacadas de José de Sá Bittencourt e Accioli sobre o salitre. Maria Beatriz Nizza
da Silva fez importantes observações a respeito da ilustração baiana e de como elementos
naturais que estavam dispostos no solo baiano passaram a ser uma das preocupações da
administração ultramarina de D. Rodrigo de Sousa Coutinho: De acordo com a autora,
pelo que se referia ao reino mineral, surgiram agora novos interesses pelo cobre,
pedra-ume, salitre, ferro, estanho e chumbo. A pergunta crucial era: havia na Bahia
É importante notar também como a história das duas capitanias se ligam a partir da
procura e do escoamento de alguns produtos, especialmente do salitre. O conhecimento dos
antigos colonizadores acumulados ao longo dos anos com a conquista dos sertões brasileiros
indica o quanto as fronteiras estabelecidas entre Minas Gerais e Bahia estavam ligadas à
potencialidade do escoamento dos recursos naturais:
A extração e o escoamento da produção do salitre mineiro para a Bahia era, já antes da
segunda metade do século XVIII, de considerável importância para a fabricação da pólvora.
Em documento do ano de 1758, José Antonio Caldas testifica o beneficiamento do salitre
mineiro e do seu processamento na fábrica de pólvora que existia na Bahia. 49 Na Figura 1, é
possível observar a estrutura da fachada desenhada por Caldas.
48
SILVA. Maria Beatriz Nizza da. A ilustração baiana. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
Rio de Janeiro, v. 446, pp. 53-65, 2010, p. 55.
49
Cf. Ibidem. Vale apontar que é possível que o salitre obtido na capitania de Minas Gerais, ainda na primeira
metade do século XVIII e que Luciano Emerich Faria comentou, era obtido, em grande medida, à revelia dos
procedimentos oficiais. Como veremos no terceiro capítulo, o salitre mineiro foi tema dos registros oficiais para
beneficiamento manufatureiro apenas na segunda metade do século XVIII.
38
Figura 1 - Planta, profil, fachada, e a metade do telhado da caza em q. se fabricou a polvora na cidade da
Bahia: sita ao pé do Forte de S.Pedro
Fonte: CALDAS, José Antonio. Biblioteca Nacional de Portugal, Coleção Iconografia, D. 259 V., 1756.
Figura 2 apresenta um dos métodos que até então era usado para a obtenção do ferro e que foi
aperfeiçoado em fins do século XVIII, qual seja, o método catalão.
Aqui é necessário salientar a postura de D. Rodrigo de Sousa Coutinho enquanto
esteve à frente da pasta da Marinha e dos Domínios Ultramarinos. Pelo ativo
compartilhamento de informações no Conselho Ultramarino, D. Rodrigo foi possivelmente o
maior patrocinador do desenvolvimento de manufaturas no Brasil a partir do momento em que
se tornou ministro em 1796. A comunicação entre o Conde de Linhares e alguns naturalistas
luso-brasileiros, bem como entre os governadores indica que o objetivo daquele secretário de
Estado era estimular a produção de gêneros de grande valia para Coroa, não obstante que os
resultados dessa mesma produção inicialmente fossem em grande parte alocados para a
metrópole.
Para além da força primária com o qual o desenvolvimento da agricultura apresentava-
se nos estudos dos intelectuais lusos, os naturalistas luso-brasileiros propuseram outros
recursos para elevação econômica do Império ultramarino, sendo as manufaturas do salitre e
do ferro as que ganharam notório destaque dentro do aproveitamento industrial dos tesouros
naturais no Brasil.
O que houve no Brasil entre os séculos dezoito e dezenove foi a promoção de uma
integração dentro um mercado mundial que exigia certas posturas que o Estado português,
embora o reflexo desse mesmo mercado não tivesse mudado algumas das bases elementares
que guiaram a vida econômica na colônia, em especial a total dependência da mão de obra
escrava para operar as atividades mais rendosas.
Diante desse quadro, é importante ponderar sobre o deslocamento desses agentes,
especialmente os naturalistas luso-brasileiros envolvidos nas reformas econômicas a partir de
uma mensuração específica de atuação para o aproveitamento dos minérios e minerais que
basavam as pesquisas e que interessavam aos envolvidos. Essa mensuração que nos aproxima
de uma abordagem da micro-história, nos direciona para avaliar um ponto relevante: embora
ligados a um amplo contexto, o beneficiamento do ferro e do salitre não sugerem uma
linearidade diante das transformações macro-históricas ocorridas entre 1779 e 1812.51
51
Cf. REVEL, Jacques Micro-história, macro-história: o que as variações de escala ajudam a pensar em um
mundo globalizado. Revista Brasileira de Educação, [Online], v.15, n. 45, pp.434-444, 2010.
40
52
MATOS, Ana Maria Cardoso de. op. cit., 1997, p. 45.
53
Cf. FALCON, Francisco José Calazans, op. cit., 1986. Não é possível afirmar que a monarquia portuguesa
lançava mão de um projeto que procurava amortecer uma iminente separação do Brasil. No entanto, o exemplo
que ocorrera nos Estados Unidos provocava na Europa uma crescente tensão.
41
podemos considerar que parte da ação administrativa lusa sinalizava tanto para a
exploração exaustiva da Natureza colonial quanto para um processo de reforma do
Estado burocrático fundado nos articuladores da política proporcionada pela
“viradeira”, que não objetivava mudar a natureza despótico-absolutista do poder em
essência. O fomentismo possibilitado pelo poder régio e o naturalismo experimental
conduzido pela Academia Real das Ciências representaram o esforço português de
estabelecer uma doutrina reformista fundada nas propostas do subgrupo naturalista-
utilitário da própria Academia.55
54
MUNTEAL FILHO, Oswaldo. Uma sinfonia para o novo mundo: a Academia Real das Ciências de Lisboa e
os caminhos da ilustração luso-brasileira na crise do Antigo sistema colonial. 1998. 585 f. Tese (Doutorado em
História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, p. 303.
55
MUNTEAL FILHO, Oswaldo. op. cit., 2001, p. 503.
42
56
Plano de Estatutos em que convierão os primeiros sócios da Academia de Sciencias de Lisboa com beneplácito
de Sua Magestade. In: RIBEIRO, José Silvestre. Historia dos estabelecimentos scientificos litterarios e artisticos
de Portugal nos successsivos reinados da monarchia, tomo II. Lisboa: Academia Real das Sciências, 1872, p. 39.
Vale lembrar que “indústria” tem o sentido de toda atividade que manipula e transforma a natureza.
57
Aqui se faz necessário abrir parênteses. Os termos absolutismo ilustrado, despotismo ilustrado ou mesmo
despotismo esclarecido não pode ser confundido com Ilustração política que, conforme Francisco Falcon, “[…]
esta, sim, verdadeira herdeira política do Iluminismo, apropriada pelas correntes políticas e ideológicas do século
XIX – liberalismo, democratismo, socialismo – e viva ainda em pleno século XX. Acrescente-se que foi
precisamente contra concepções racionalistas e universalistas típicas da Ilustração política que se produziu, já no
final do século XVIII, a teoria romântica do Estado, calcada nas ideias de nação, povo, tradição e história.”. Cf.
FALCON, Francisco J. C. op. cit., 1986, p. 14.
58
Nesse sentido, as observações feitas por Breno Leal Ferreira são importantes: “para se referir a essa renovação,
a historiografia consagrou o termo ‘Iluminismo Católico’. Como mostrou Plongeron, o conceito foi inicialmente
introduzido na historiografia germânica, que questionava a tendência de se enquadrar o Iluminismo
exclusivamente como um fenômeno francês, ou no máximo um fenômeno estendido à Inglaterra ou à Alemanha.
Pretendia-se romper com a oposição entre ‘modernidade’ e ‘catolicismo’, ou religiões em geral, permitindo-se a
compreensão do pensamento desenvolvido em países católicos e nas áreas coloniais também com ilustrados.”.
FERREIRA, Breno Ferraz Leal. A economia da natureza: a história natural, entre a teologia natural e a economia
política (Portugal e Brasil 1750-1822). 2016. 233 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia.
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 23.
43
das premissas do capitalismo mercantil ativo naquele momento.59 Como indicamos em tópico
anterior, a influência maior que notamos foi o da Fisiocracia, escola que pressupunha a
agricultura como primeiro motor de toda vida econômica e social. Havia também, em certa
medida, a influência do Liberalismo econômico smithiano, embora apenas alguns conceitos
pontuais apresentaram alguma influência, a exemplo do resguardo das liberdades individuais
como guia para o desenvolvimento econômico e do apelo ao menor controle do Estado nas
atividades comerciais. Vale lembrar que, dentro dessa conjuntura que mesclava teorias
econômicas, existiam os partidários de que a proteção da indústria portuguesa, especialmente
aquela de escopo colbertista, era uma delonga da era mercantilista, o que prejudicava o
assentamento das premissas ilustradas.60
O pano de fundo que dava limites a margem na execução desses conceitos econômicos
era a monarquia e seus privilégios. O fato é que uma série de problemas pontuais marcavam o
desenvolvimento do pensamento econômico português, a exemplo da superação da proteção
alfandegária que entrava em choque com os interesses produtivos lusos em relação aos
produtos manufaturados ingleses. Assim, diante desse cenário particular movidos pela disputa
dos interesses particulares, estamentais e do Estado gerido pela monarquia portuguesa, a
circulação e a ventilação de diversas correntes econômicas confluíram e geraram um ethos
característico que permitia a sobrevivência de Portugal dentro do mercado que estava se
mundializando naquele momento.
As Memórias Econômicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa para
adiantamento da agricultura, das artes e da indústria em Portugal e suas conquistas (1789-
1813) constituem os registros publicados sob os cuidados da Academia Real com a intenção
de disseminar os parâmetros científicos que os intelectuais julgavam mais importantes para
orientar a nação.61 As Memórias Econômicas contribuem, sobretudo, como o próprio nome
indica, para a formação bibliográfica de um saber que fosse capaz de instruir e melhorar a
economia de Portugal.62
59
Conforme a proposição de Cardoso e Cunha, “não obstante, o que precisa ser apreendido aqui é que o próprio
mercantilismo é um espaço de recombinações e entrecruzamento de influências nessa segunda metade do século
XVIII, e são essas recombinações que começam a haver no período pombalino e inspiram um ambiente de
reformas que estamos aqui a perseguir.”. CARDOSO, José Luís; CUNHA, Alexandre M. op. cit., 2011, p. 75.
60
Cf. CARDOSO, José Luis. op. cit., 1988.
61
A Academia Real também foi responsável pela publicação de outros volumes investigativos, entre eles,
Memórias de Agricultura Premiada, Memórias de Literatura Portuguesa, história e Memória, História
Portuguesa, Coleção dos Principais Autores Portugueses.
62
É necessário lembrar que esse conhecimento construído na Academia Real das Ciências de Lisboa ficou, em
grande medida, fechado aos círculos das elites. Como boa parte dos sócios envolvidos na Academia eram
advindos dos extratos sociais mais ricos, era natural que os estudos gerados contribuíssem para o fortalecimento
44
De acordo com os estudos de José Luis Cardoso 63, as Memórias Econômicas estavam
voltadas especialmente para o melhoramento da agricultura portuguesa e de seus domínios
ultramarinos e da consolidação da História Natural. Seguindo a tabulação proposta por
Cardoso em sua tese de doutorado64, as memórias podem ser classificadas em sete grupos,
sendo o primeiro composto por memórias físico-químicas aplicadas; memórias botânicas e
agronômicas aplicadas; memórias descritivas dos recursos naturais e atividades produtivas
de âmbito particular; memórias descritivas dos recursos naturais e atividades produtivas de
âmbito geral; memórias sobre a situação e o fomento da agricultura ; memórias sobre
problemas e mecanismos econômicos e memórias sobre reforma e assistência social. A
considerável variedade de temas das memórias indica, portanto, o quanto a expertise dos
autores era diversa e que, apesar da forte presença de textos cujo conteúdo era ligado à
História Natural e à agricultura, tópicos que estavam na ordem, tais como a questão da
assistência social ou mesmo as questões referentes às manufaturas.
A partir de uma visão ampliada, é possível notar que os intelectuais e suas respectivas
memórias trabalhavam para criar uma ligação entre os pressupostos de uma economia que
necessitava passar por uma reformulação regulando-se por um sistema científico que
orientasse um pleno reconhecimento da natureza. Portanto, a História Natural se aliava ao
ecletismo teórico econômico65 em que se destacava a Fisiocracia, tornando-se a base para a
instrumentalização das ações do Estado.
Para as questões relativas à agricultura e à História Natural, destacam-se as memórias
escritas por Domingos Vandelli. No texto intitulado Memória sobre as produções naturais do
reino e das conquistas, primeiras matérias de diferentes fábricas ou manufaturas, Vandelli
apresenta o argumento que valoriza aquilo que ele chama de “[…] mais necessárias de todas
as fábricas […] chama agricultura [...]”,66 o que torna patente a adoção das teses da
Fisiocracia que exerciam força nos âmbitos acadêmicos daquele período.
desses grupos. Cf. MATOS, Ana Maria Cardoso de. op. cit., 1997.
63
Cf. CARDOSO, José Luis. op. cit., 1988.
64
Ibidem. É possível mencionar também a organização e divisão das Memórias Econômicas que estão na
introdução da edição dirigida por Cardoso. Cf. CARDOSO, José Luís. Memórias Econômicas da Academia Real
das Ciências de Lisboa para adiantamento da Agricultura, das Artes, e da Indústria em Portugal, e suas
conquistas (1789-1815). Tomo I. Lisboa: Banco de Portugal, 1990.
65
Para Oswaldo Munteal Filho, havia no período aqui estudado uma plena sobrevida do mercantilismo. Cf.
MUNTEAL FILHO, Oswaldo. op. cit., 1998. No entanto, como já notamos, existiram diversas influências
teórico-econômicas em Portugal. Para José Luis Cardoso, a Fisiocracia se sobressaia às demais correntes, mas o
Liberalismo era também influente em alguns pontos, a exemplo das liberdades individuais para o amplo
concurso econômico. Cf. CARDOSO, José Luis. op. cit. 1988.
66
CARDOSO, José Luís. op. cit. 1990, p. 169.
45
Em outro texto, o título67 que Vandelli dá ao mesmo determina sem qualquer dúvida a
sua firme defesa do pressuposto de que antes de qualquer operação industrial ou
manufatureira, a natureza é a fornecedora de todos os recursos primordiais para que sejam
posteriormente transformados, modificados ou purificados. Conforme o autor: “querer fazer
independentes entre si a agricultura e a indústria é um paradoxo, porém querer entre nós
antepor a indústria à agricultura, é outro mais pernicioso ainda.”.68
Sem embrago, é preciso lembrar que boa parte do incentivo às manufaturas na
metrópole foi crescente especialmente durante a época pombalina. Como elemento das
características do mercantilismo que buscavam manter a balança comercial favorável, era
lugar comum o estímulo da indústria portuguesa que atendesse ao consumo popular e não
apenas de artigos de luxo:
67
Cf. VANDELLI, Domingos. Memória sobre a preferência que em Portugal se deve dar à agricultura sobre as
fábricas. In: CARDOSO, José Luís. op. cit., 1990, pp.185-193.
68
Ibidem, p. 186.
69
FALCON, Francisco J. C. op. cit., 1982, p. 464.
46
à frente de pastas ministeriais a partir de 1796, D. Rodrigo entendeu que o Estado necessitava
gerar receitas e as operações das manufaturas eram parte desse processo. Não bastava
entender o Império atlântico como um mero exportador de matérias-primas, mas sim, como
parte desse mecanismo que fortaleceria o Erário Régio.
Parte do ideário econômico de Sousa Coutinho esteve voltado para a questão dos
incentivos fiscais da entrada de produtos na colônia, entre os quais o ferro chegou a ser um
dos beneficiados. Provavelmente a substituição das importações foi uma das inquietações para
o ministro. O salitre, por exemplo, tornou-se uma grande meta para superação das
importações no Reino.74 O ministro português via nas riquezas naturais América portuguesa
uma grande oportunidade de como a substituição das exportações poderia ser aplicada, pois
seus recursos apontavam para a possibilidade de fornecimento de inúmeros produtos
manufaturados.
Em relação ao salitre, podemos citar de passagem o projeto manufatureiro que, embora
a historiografia não tenha desvelado com profundidade, D. Rodrigo esteve envolvido dentro
da metrópole. Magnus Pereira fez apontamentos sobre esse tema:
espalhadas por diferentes continentes, deveriam ser dados identidade e status. Isso era particularmente verdade
para o caso do Brasil no século XVIII, uma vez que se fazia autoevidente sua importância econômica para o
império. Já quanto à unidade econômica do império.”. CARDOSO, José L; CUNHA, Alexandre M. op. cit.,
2011, p. 83.
74
De acordo com Magnus Pereira, “como dito anteriormente, as políticas de d. Rodrigo não foram exatamente
‘coloniais’. Suas atividades referentes à produção de salitre tiveram início assim que assumiu a pasta do
Ultramar. Afora as experiências em pequena escala conduzidas por Feijó e Veloso, o ministro promoveu em
Lisboa uma tentativa relativamente bem-sucedida de produção de salitre em maior escala. Manoel Jacinto
Nogueira da Gama foi responsável por ela e deixou um extenso relato sobre essa vertente reinol da proposta de
Souza Coutinho.”. PEREIRA, Magnus R. M. D. Rodrigo e frei Mariano: A política portuguesa de produção de
salitre na virada do século XVIII para o XIX. Topoi, Rio de Janeiro, v. 15, n. 29, pp. 498-526, 2014, p. 514.
75
Ibidem. A memória citada por Magnus Pereira foi intitulada Memoria sobre a absoluta necessidade que ha de
Nitreiras nacionaes para a independencia e defensa dos Estados: com a descripção da origem, actual estado, e
vantagens da Real Nitreira Artificial de Braço de Prata. Cf. GAMA, Manoel Jacinto Nogueira da. Memoria
sobre a absoluta necessidade que ha de Nitreiras nacionaes para a independencia e defensa dos Estados: com a
48
igualmente nós nunca podemos figurar uma nação, mesmo meio bárbara, que não
tenha tido mais ou menos indústria; porque todas têm ofícios, e profissões, em que
os homens se ocupam, já na agricultura, e no comércio, já na estrutura das casas e no
78
Como aponta Júnia Ferreira Furtado, “durante nove anos, os brasileiros José Bonifácio de Andrada e Silva
(1763-1828), Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt (1762-1835) e o português Joaquim Pedro Fragoso (-1833)
tiveram aulas com os mais conceituados mestres e fizeram visitas técnicas e estágios práticos nos principais
centros mineradores da Europa, depois passaram por Paris, onde permaneceram por cerca de um ano e
frequentaram cursos de Mineralogia e Química, e por Freiburg, entre 1792 e 1794, onde completaram cursos de
mineralogia, Metalurgia e Geologia, este último com Gottlob Werner (1749-1817), os três foram excursionar por
diversas localidades europeias, onde a exploração mineral era intensa – viagens de investigação, aprendizado e
intercâmbio intelectual, visitando as principais minas europeias.”. FURTADO, Júnia Ferreira. Ciência,
diplomacia e viagem: Dom Rodrigo de Souza Coutinho e o tour mineralógico dos savants luso-brasileiros José
Bonifácio de Andrada e Silva e Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt em Turim. In: MOTA, Isabel Ferreira da;
SPANTIGATI, Carla Enrica (Org.). Tanto ella assume novitate al fianco: Lisboa, Turim e o intercâmbio cultural
do século das luzes à Europa pós-napoleónica. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2019, p. 145.
50
um destes exercícios sem o outro, nos objetos de primeira necessidade, não poderia
permanecer muito em um Estado e mesmo fazer vantajosos progressos, porque o
comércio exterior sujeito a muitas contingências, não pode alcançar sempre com
prontidão tudo o que é mais necessário e se não há de casa alguma parte do que falta
para dar lugar ao efeito útil de sua diligência, será forçoso sujeitar-se á lei da
necessidade e impossível negociar com proveito, além do que, o trabalho dos
artífices ajuda e suscita o dos lavradores, assim como o destes dá a matéria, e
sustenta ao do artífice.81
Jacinto Rebelo é mais próximo às proposições da Academial Real, de modo que suas
ideias estão mais concatenadas dentro de um fio teórico pragmático pelo qual sua proposta
econômica serviria como projeto em conjunto aos ritos das Memórias Econômicas como viés
de ação política das autoridades.
Destarte, os tratados propostos por Rodrigues de Brito e Jacinto Rebelo sinalizavam
para um esforço que as autoridades deveriam empregar para resolver questões latentes,
especialmente aquelas ligadas aos problemas do Antigo Regime. Ainda que para ambos a
agricultura permaneça como força primordial da economia portuguesa, os autores entendem
que a indústria82 deveria ser estabelecida e desenvolvida.
79
BRITO, Joaquim J. Rodrigues de. Memórias politicas sobre as verdadeiras bases da riqueza das nações e
principalmente de Portugal (1803-1805). Tomo I. Lisboa: Banco de Portugal, 1992, p. 53.
80
Conforme Cardoso, “Smithiano sem o querer ser, fisiocrata sem sempre o ser, Joaquim José Rodrigues de
Brito foi acima de tudo expoente da literatura política e econômica portuguesa no limiar do oitocentos, um autor
que procurou com suas memórias políticas contribuir para a mudança gradual e moderada da (e na) estrutura
social do antigo regime.” CARDOSO, op. cit., 1988, p. 521.
81
REBELO, Manoel Jacinto. Economia Política. Lisboa: Banco de Portugal, 1992, p. 42.
82
Aqui entende-se a indústria como desenvolvimento manufatureiro.
51
84
Cf. ESCHWEGE, Guilherme Barão de. Memória sobre as dificuldades das fundições e refinações nas fábricas
de ferro para ganhar este metal na maior quantidade, e da melhor qualidade para os diferentes fins. In:
CARDOSO, José Luís. Memórias Econômicas da Academia Real das Ciências de Lisboa para adiantamento da
Agricultura, das Artes, e da Indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo IV. Lisboa: Banco de
Portugal, 1991, pp. 97-101.
53
direciona para avaliarmos que a agricultura não era o único setor que despertava o interesse
dos estudiosos, administradores e empresários portugueses. Criada em 1755, a Junta de
Comércio reunia os comerciantes com o intuito de promover a economia sob a égide das
políticas pombalinas. Contudo, após 1788,
[…] o recrutamento dos seus membros foi feito de forma diversificada. Quando
analisamos a composição desta instituição verificamos que a presença de homens
como Domingos Vandelli só pode ser entendida se a interligarmos com a
preocupação, constante nessa instituição, de introduzir novos métodos e processos
de fábrico. Durante os anos em que exerceu este cargo Domingos Vandelli deu
pareceres sobre os novos inventos, sobre a nomeação de pessoas para determinados
cargos e sobre a implementação de determinadas indústrias. 85
diz o alvará que desde alguns annos se tinham diffundido em diferentes capitanias do
Brazil “grande número de fábricas e manufacturas.” — Era talvez o acto mais
arbitrário e oppressivo da metrópole contra o Brazil, desde o princípio do reinado
anterior, e houvera justificado qualquer opposição ou rebeldia que a ele
apresentassem os povos. Em vez desta, que seria justíssima, por sua origem, outra se
manifestou e tomou corpo, chegando a converter-se em uma tal ou qual
conspiração.86
precisamos começar esta matéria por distinguir os centros urbanos da zona rural. Os
edifícios mecânicos se exercem diferentemente nestes dois setores. [...] as artes
mecânicas e indústrias constituem um simples acessório dos estabelecimentos
agrícolas e mineiros. Para o manejo destes, ou para atender a necessidade de seus
numerosos moradores – proprietários e sua família, escravaria e agregados – torna-
se necessário, por motivos das distâncias [...] a presença de toda uma pequena
indústria de carpinteiros, ferreiros e outros, bem como, frequentemente, manufaturas
de pano e vestuário.87
86
VARNHAGEN, F. Adolfo de. História geral do Brazil. Tomo II. Rio de Janeiro: E. e H. Laemmert, 1877, p.
1014. Capistrano de Abreu é também enfático ao afirmar a negligência deste processo: “depois de brutalmente
extintas as primeiras tentativas industriais, ficaram nas cidades apenas mecânicos que trabalhavam por
encomenda e a quem se pagava só o feitio.”. ABREU, Capistrano de. Capítulos da história colonial, 1500-1808.
Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1963, p. 226. Nesse ponto, as sentenças de alguns economistas do
início do século XX apontam para a mesma direção: “Portugal não via com bons olhos o surto rápido da colônia,
a despeito de tantos óbices e vexames.”. BRITTO, Lemos. Pontos de partida para a história econômica do
Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939, p. 191.
87
PRADO Jr., C. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2011, pp. 232-233. Roberto
Simonsen também reitera o perfil incipiente da indústria que existiu no Brasil colônia. Segundo o autor, “na era
colonial, afora os estaleiros navais, que os houve, importantes e produtivos, e os engenhos, rara foi a indústria
instalada no país. No século XVIII proibiram-se os ourives – para evitar o contrabando do ouro ou a exportação
das moedas. Mais tarde, em 1785, houve o célebre decreto da Rainha D. Maria, mandando abolir as indústrias e
fábricas do país – para não distrair braços da lavoura – e para assegurar uma diferenciação na produção entre a
metrópole e a colônia, que permitisse o fomento do comércio e o aumento do consumo dos produtos industriais
da metrópole. Era essa, aliás, a política seguida pelos demais países europeus – não consentindo a Inglaterra, em
seu regime colonial, que nos Estados Unidos se fabricassem simples pregos!.”. SIMONSEN, Roberto C.
História econômica do Brasil (1500-1820). Brasília: Senado Federal, 2005, p. 481.
55
fabrica, Manufactura. Esses dous termos teem diversas acepções: tomam-se 1.º o
local onde um certo número de obreiros se reunem para trabalhar um certo número
de obra; 2.º pela mesma obra que fazem; 3.º pela qualidade d’esse gênero de obra.
Fábrica apresenta especialmente a ideia de indústria, de arte, do trabalho mesmo da
fabricação. Manufactura diz respeito ao gênero de estabelecimento ou empresa às
mesmas obras, e ao seu commercio. Fábrica entende-se o estabelecimento onde se
prepara objetos mais communs, e do uso ordinário; manufacturas de aquelle onde se
fazem os que mais captivam a atenção. Fábrica é uma manufactura em ponto
pequeno, e a manufactura uma fábrica em ponto grande.90
88
Durante o século XVIII, a palavra “indústria” era entendida como toda atividade que transformava a natureza,
o que abrangia diversos trabalhos. Indústria no sentido contemporâneo do termo foi construído ao longo do
século XIX.
89
BLUTEAU, Rafael. Diccionario da Lingua Portugueza. Segundo tomo. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo
Ferreira,1789, p. 56.
90
SILVA, Antonio de Morais. Diccionario de Lingua Portugueza. Segundo tomo. Lisboa: Typ. de Joaquim
Germano de Souza Neves, 1877, p. 5.
56
divisões específicas do trabalho que visavam ampliar os produtos das elaborações que eram
objetivadas de acordo com os propósitos de cada ramo de produção.
Ainda segundo as definições daquele período, esse processo metódico que era exigido
para obtenção de algum produto era chamado de arte.91 É importante lembrar também que, em
meados do século XVIII, os portugueses ainda não conheciam as maquinofaturas, processo
que revolucionaria o sistema fabril.92
O conteúdo do alvará publicado em 5 de janeiro de 1785 tem maior significado ao se
pensá-lo não apenas no viés de simples reflexo de uma tradicional postura mercantilista, ou
mesmo da confluência das ideias da Fisiocracia nas ações do Estado português. As
interpretações dos historiadores e economistas citados anteriormente evidenciam o quanto a
discussão do alvará precisa ser redimensionada a partir da conjuntura reformista que se
apresentou no século XVIII em Portugal.
Havia evidentemente a preocupação com o crescimento do desenvolvimento
manufatureiro de forma autônoma na colônia portuguesa estabelecida na América. No
entanto, as considerações pragmáticas dos estudiosos da Academia Real e dos naturalistas
luso-brasileiros não poderiam dispensar o uso das riquezas naturais a partir de sua
transformação nas fábricas e nas manufaturas, de forma a consolidar o poder da economia do
Reino. A farta documentação autorizando a busca e a produção de diversos produtos atesta
que o alvará esteve circunscrito ao momento em que foi publicado e para os fins que urgiam
para a economia portuguesa, sobretudo o controle alfandegário. O mercado colonial não
poderia se restringir a comprar os produtos manufaturados de Portugal. O fato de se proibirem
manufaturas têxteis, como é possível notar no alvará, buscou proteger a indústria têxtil
metropolitana.
Outro problema apontado no alvará girava em torno da escassez de população que
havia no Brasil e do crescente número de manufaturas existentes nas capitanias, o que,
segundo o documento, contribuía para o crescente deslocamento de mão de obra que poderia
ser aplicada na agricultura e na mineração. É possível ler que:
eu a Rainha faço saber aos que este Alvará virem: sendo-me presente o grande
número de Fábricas, de Manufacturas, que de alguns annos a essa parte se tem
diffundido em differentes capitanias do Brazil, com grave prejuízo da Cultura, e da
91
De acordo com Morais Silva, “collecção de regras, ou methodos de fazer alguma cousa com acerto [...]”.
Ibidem, p. 231.
92
Conforme enfatiza Novais: Entre "fabrica" e "manufactura" a distinção não era nítida, na época, em Portugal,
até porque ali se desconhecia a maquinofatura, característica específica do Sistema Fabril.”. NOVAIS, Fernando
A. op. cit., 2000, p. 217.
57
93
MARIA I. Alvará de 5 de janeiro de 1785. In: SILVA, Antonio delgado da. Collecção da legislação
portugueza. Volume 3. Lisboa: Tipografia Maigrense, 1828, p. 370.
94
Aqui vale reiterar os apontamentos de Caio Prado Junior sobre o tema: “o século XVIII abre-se com a
revolução demográfica que provoca a descoberta do ouro no centro do continente: nas Minas Gerais, seguidas
logo por Mato Grosso e Goiás. Em poucos decênios, redistribui-se o povoamento da colônia que tomará nova
estrutura e feição. […] Durante toda a primeira metade do século, em que se sucedem as novas descobertas e
também as explorações e tentativas malogradas, assistimos a deslocamentos bruscos e violentos que agitam e
transformam a cada momento a estrutura demográfica da colônia.”. PRADO Jr., Caio. op. cit., 2011, p. 74.
95
Lemos Britto aponta o irrisório número de manufaturas aos cuidados de particulares. De acordo com o autor,
“vejamos, agora, conforme as pesquizas de Luiz de Vasconcellos, quaes eram as pessoas que possuíam
manufacturas do Rio de Janeiro, e qual o numero de seus teares. Pessoas que tem teares de tecidos de ouro e
prata: Jacob Munier, cinco teares, quatro armados e um desarmado. O capitão José Antonio Lisboa, três teares.
Miguel Xavier de Moraes, um tear. José Mario Xavier, um tear. Sebastião Marques, dois teares e um pequeno
desarmado. Pessoas que tem teares de tecidos de lã, linho e algodão: João Monteiro Celi: tem teares de
grosserias de algodão, em que algumas vezes fabricava uns cobertores felpudos de algodão fino, e pannos
grossos ou baetões do mesmo algodão, José Luiz: tem teares da mesma qualidade de grosseria de algodão nos
quaes algumas vezes fabricava toalhas de mesa e guardanapos [...]”. BRITTO, Lemos, op. cit., 1939, pp. 213-
214.
96
MENZ, Maximiliano Mac. op. cit., 2013, p. 49.
58
97
NOVAIS, Fernando A., op. cit., 2000, pp. 223-224.
98
Não era apenas pela pouca tradição em produzir ferro, mas também pelo fato de o solo português não ter a
mesma qualidade de combustíveis para se fazer a fundição desse minério.
59
99
Cf. NOVAIS, Fernando A. op. cit., 2000.
60
O alvará de primeiro de abril de 1808, que revogou o alvará de 1785, é bem explícito
ao dizer que toda e qualquer pessoa poderia estabelecer fábricas e manufaturas em todo o
território continental americano sob domínio dos portugueses:
[…] e convindo remover todos os obstaculos que podem inutilisar e frustrar tão
vantajosos proveitos: sou servido abolir e revogar toda e qualquer prohibição que
haja a este respeito no Estado do Brazil e nos meus Domínios Ultramarinos e
ordenar que daqui em diante seja licito a qualquer dos meus vassallos, qualquer que
seja o Paiz em que habitem, estabelecer todo o genero de manufacturas, sem
exceptuar alguma, fazendo os seus trabalhos em pequeno, ou em grande, como
entenderem que mais lhes convem; para o que hei por bem derogar o Alvará de 5 de
Janeiro de 1785 e quaesquer Leis ou Ordens que o contrario decidam, como se
dellas fizesse expressa e individual menção, sem embargo da Lei em contrario.100
100
ARAUJO, José Paulo de Figueiroa Nabuco de. Legislação brazileira. Tomo 1. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e
Const. de J. Villeneuve e Comp., 1836, p. 4.
101
Manuel Ferreira da Câmara conseguiu boa parte dos fomentos para erigir a Real Fábrica do Morro Gaspar
Soares foram de recursos oriundos da extração dos diamantes. Cf. MENDONÇA, Marcos Carneiro de. O
intendente Câmara. Manuel Ferreira da Câmara Bithencourt e Sá, intendente geral das Minas e dos Diamantes,
1764-1835. São Paulo: Brasiliana, 1958.
61
hei por bem conceder-lhes a Graça não só de isentar todos os direitos todo o ferro,
que das minas de Angola se exportar para os portos do Brazil; mas mandar crear
hum estabelecimento para excavação das minas de Sorocaba na capitania de S.
Paulo; e animar todos os descobrimentos, que outras quaesquer partes se possão
fazer desse metal; como também permitir se estabeleção fábricas Reaes, para com o
salitre do Paíz se fabricar polvora por conta da minha Real Fazenda.102
finalmente, tendo mandado criar hum estabelecimento para a escavação das Minas
de Ferro que existem na capitania de São Paulo, de que necessariamente se hão de
erguer as maiores vantagens aos meus vassallos: ordeno ao governador e capitão
general da mesma capitania que faça logo trabalhar nas referidas minas e ponha em
venda por conta da minha Real Fazenda o ferro que delas se extrahir, com dez por
cento sobre o custo que o mesmo fizer, ficando livre o referido metal de pagar
direito de entrada nas outras capitanias.105
enquanto a segunda graça a resp to. do ferro excede o calculo na contadoria geral da
junta dos impostos daqueles dirtos. ou bruto ou lacerado deve somte. ter respas.
quando estabelecidas forem as fábricas, pois reconhecendo as indigências dos
habitantes não devemos esperar o estabelecimto. das mmas. ainda usando a experiência
dos artífices para a manufatura […].106
João Manso Pereira foi um notório representante das projeções dos interesses da Coroa
portuguesa, especialmente no sentido de estender o controle do Estado sobre particulares em
relação à pesquisa de ferro. Em ofício de 19 de agosto de 1799, Bernardo José de Lorena
atende as requisições do príncipe regente de modo a atribuir a Manso Pereira as pesquisas de
minas de ferro em três capitanias:
pela carta régia incluza verá V. S a. que sua Alteza real manda encarregar João Manso
Pera., como Sagto. mais capaz da inspecção e exame das minas e trabalhos do ferro
nas três capitanias de S. Paulo, das Minas Geraes e do Rio de Janeiro, e que
104
APM, Secretaria de Governo da Capitania, cód. 259, fl. 19, 20 de outubro de 1795.
105
AHU, Projeto Resgate - Avulsos (BG), cx. 31, doc. 2542, 19 de maio de 1799. É importante reiterar que no
mesmo alvará D. Maria I deu incentivos ficais em relação ao ferro que vinha do Reino de Angola.
106
APM, Câmara de Ouro Preto, cx. 87, doc. 45, 30 de novembro de 1795.
63
se em toda parte do mundo he este metal necessario, em nenhuma outra he mais que
nestas minas; qualquer falta que dele se experimente, céssa toda qualidade de
trabalho [...] Fabricando-se aqui pode custar hum preço muito mais módico [...]
Essas considerações são importantes me obrigando a ouvir hum homem que aqui me
veio me falar e assegurou ter achado um segredo para o fabricar.109
107
APM, Secretaria de Governo da Capitania, cód. 269, fl. 34-v, 19 de agosto de 1799. Dom Rodrigo de Sousa
Coutinho, já no ano de 1796, indicou os trabalhos de João Manso Pereira através de avisos direcionados ao vice-
rei do Brasil e aos governadores de Minas Gerais e São Paulo. No documento do ano citado, D. Rodrigo solicita
o apoio financeiro para que João Manso realizasse as viagens mineralógicas e concluísse suas pesquisas. Outro
ponto interessante sobre esta personagem é que ele esteve também envolvido nas pesquisas do salitre na
capitania de São Paulo. De acordo com carta de 31 de outubro de 1799, o Conde de Resende orienta Bernado
José de Lorena o pagamento pelos serviços de José Manso Pereira na pesquisa do salitre: “em aviso de 11 de
março do presente ano foi S. Maje. servida determinar, que recebesse sua pensão de quatrocentos mil reis cada
ano João Manso Pereira, encarregado do descobrimento das nitreiras naturais nas barreiras da capitania de S.
Paulo [...]”. APM, Secretaria de Governo da Capitania, cx.73, doc. 75, 31 de outubro de 1797.
108
No capítulo 3, esse documento é analisado com mais detalhes.
109
APM, Coleção Secretaria de Governo da Capitania, cód. 224, fls. 8-v - 9, 4 de agosto de 1780.
110
Conforme as palavras de Tavares sobre os resultados das pesquisas de José Correia, “2º Está pronto a
estabelecer uma fábrica não somente de salitre e de cobre para o Reino, mas para o giro do negócio; ou seja, a
fábrica por conta da Fazenda Real [...]”. AHU, Projeto Resgate - Bahia Avulsos, cx. 209, doc. 14851, 15 de
junho de 1798.
64
tendo representado a sua majestade Domingos José Correa, boticário nessa cidade,
que em pouca distância da mesma havia abundância de ótimo salitre, de cobre
finíssimo e de ótimo pau Brasil, V. Sa. o mandará chamar à sua presença e lhe
declarará no Real nome de Sua Majestade que fazendo ele fazendo suas descobertas,
e indo logo estabelecer uma oficina de lavagem de salitre […] e que sua Maj e. não
duvidará depois acrescentar novas graças, se a produção de salitre e cobre, assim
como a de pau Brasil corresponder à expectação que ele dá.112
111
A.N.R.J., cód. 807, v.1, fl.49 apud MUNTEAL FILHO, Oswaldo. op. cit., 1998.
112
AHU, Projeto Resgate - Códices (1548-1821) e (1671-1833), códice 606, fls. 189-189-v, 27 de junho de 1798.
113
AHU, Projeto Resgate - Avulsos (BG), cx.30, doc. 2491, 4 de outubro de 1798. É sintomático notar no mesmo
documento as ordens relacionadas a fins militares, especialmente a defesa dos domínios ligados à América
portuguesa. Sendo assim, não é estranho encontrar suporte técnico para a obtenção do salitre.
114
É provável, neste caso, que as cópias que tenham sido enviadas para o Brasil sejam aquelas impressas na
oficina de João Antonio da Silva em 1797. Cf. BROWN, Jeremiah. Extracto do modo de se fazer salitre nas
Fábricas de tabaco da Virgínia. Lisboa: Officina João Antonio da Silva, 1797. Aqui vale destacar outros escritos
relacionados ao salitre encaminhados à capitania de São Paulo. De acordo com a tabela dos impressos elencada
por Ivana Veraldo, entre os livros encaminhados estão Mineralogias de Bergman – jogos; Mineralogias de
Bergman – volume avulso; Cartas sobre a Nitreira Artificial do Manso; Memória sobre o salitre – D’Urtubie;
Memorias sobre a pratica de fazer Salitre; Extrato sobre o método de preparar a potassa; Extrato do método de
fazer Nitrato de Potassa; Impresso sobre o modo de conhecer as terras onde há salitre. Cf. VERALDO, Ivana.
O comércio de impressos na capitania de São Paulo (1797-1802): uma estratégia civilizadora e educativa.
Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.18, pp. 10-18, 2005.
115
AHU, Projeto Resgate - Códices (1548-1821) e (1671-1833), códice 606, fl. 159, 6 de outubro de 1797.
65
A extensão dos cuidados para com que os encarregados particulares deveriam dar à
investigação do salitre também assinalam a preocupação com que o beneficiamento desses
itens valiosos faziam parte das políticas administrativas do ministério de D. Rodrigo. Vale
reiterar que a prática de permissão para investigação particular dos recursos naturais valiosos
era firmado pelo interesses de recompensa com possíveis resultados das investigações. Em
carta endereçada a Antonio Pires da Silva Pontes, o ministro salientou que:
É possível citar também o caso de João Nogueira Duarte que solicitou, por meio de
Paulo José Lima, para aproveitar das nitreiras que estavam dispostas nas posses do
requerente:
agora se me apresenta José Nogueira Duarte, morador nesta Com ca. efo. famílias do
capm. João Nogueira Duarte, dizendo-me q. por nat al. inclinação que tem as nitreiras
naturais, estava a fazer suas experiências pa. descobrir o salitre […] em tanta conta q.
demorando-se […] pode fazer duas libras q. o queria apresentar a V. E xa. pedindo-me
que quisesse eu de algum modo abonar na respeitável presença de V. E xa. a fim de
ser ouvido neste descobrimento e em outros a q, ele se tem aplicado […], 118
116
VERALDO, Ivana. op. cit., 2005, p. 15.
117
AHU, Projeto Resgate - Códices (1548-1821) e (1671-1833), códice 606, fl. 201, 25 de julho de 1798.
118
APM, Secretaria de Governo da Capitania, cx. 42, doc. 09, 17 de janeiro de 1799.
66
As instruções para o tratamento das remessas que os sócios da Academia Real das
Ciências de Lisboa sugerem a elaboração de relatórios que deveriam ser redigidos em relação
às artes e manufaturas, assim como o estudo da agricultura que elucidam para as
considerações a partir de um conjunto de referências para aplicar melhoramentos às
produções do Império colonial, método usual mesmo para aqueles que não tinham ligação
direta com a instituição:
nas frequentes conferências que tive com o sobredito José de Sá, depois que se
recolheu, lhe fiz saber que era preciso apontar a Sua Majestade os empregos que se
haverão de criar para as Fábricas de salitre e sua administração e julgo serem
indispensáveis um administrador com conhecimento de História Natural, muito
principalmente da matéria de que se trata […].120
119
BREVES instrucções aos correspondentes da Academia Real das Sciencias de Lisboa sobre as remessas dos
productos, e noticias pertencentes a história da natureza, para formar hum museo nacional. Lisboa: Regia
Offiicina Tipográfica, 1781, p. 45.
120
AHU, Projeto Resgate - Bahia Eduardo de Castro e Almeida (1613-1807), cx. 97, doc. 19081, 25 de janeiro de
1799.
67
121
É interessante notar o volume de livros publicados por ilustrados franceses que circulavam no Brasil em fins
do século XVIII, especialmente entre alguns dos naturalistas. O caso de José Vieira Couto é sintomático, mesmo
que ele não tenha participado diretamente na inconfidência mineira. Cf. FURTADO, Júnia Ferreira.
Enlightenment Science and Iconoclasm: the Brazilian Naturalist José Vieira Couto. Osiris, Chicago, v. 25, pp.
189-212, 2010.
122
Conforme Farias e Filgueiras, “nota-se que o salitre, contado até mesmo em verso e prosa, era um produto
químico de uso cotidiano e deveria ser tão comum e conhecido naquela época como hoje é conhecido o fósforo
dos palitos ou mesmo o cloro (ou hipoclorito) da água sanitária.” FARIAS, Luciano E; FILGUEIRAS, Carlos A.
L. Salitre: o produto químico estratégico no passado do Brasil. Química Nova, São Paulo, v. 44, n. 4, pp. 519-
535, 2021, p. 520.
123
É necessário lembrar também dos interesses imediatos que rendiam riquezas ao Erário Real, qual seja o da
mineração. Deste modo, Antonio Pires da Silva Pontes Leme sugere a manufatura imediatamente para se
substituir as importações e assim dar progresso à produção do ouro em Minas Gerais: “[…] quando cumqualquer
principio d’arte se podem construir os fornos em q’. juntem aquellas differentes especies de ferro p a. formar hum,
q.o Seja maleavel, e capaz pa. os usos q’. lhes dão os ferreiros ordinarios.”. LEME, Antonio Pires da Silva Pontes.
op. cit., 1896, pp.420-421.
68
foram pleiteadas e tiveram nos textos memorialísticos um grande viés pelo qual os resultados
direcionaram para proveito industrial.
Além da inventariação dos elementos dispostos na natureza elencados pelos
naturalistas, podemos notar o quanto Portugal estendeu o controle do Estado para estabelecer
o uso discriminado das manufaturas que eram necessárias tanto na metrópole quanto nos
domínios ultramarinos. Curiosamente nota-se a força de decisão do governo português, sem
desconsiderar os interesses estamentais no exercício econômico dos domínios ultramarinos.
A partir de 1808, com a chegada da família real ao Brasil, os interesses manufatureiros
passam, ao menos teoricamente, ao controle dos particulares.124 O já citado alvará de primeiro
de abril de 1808 lança mão da iniciativa dos particulares para o estabelecimento de fábricas e
manufaturas no Brasil, mesmo que na prática o Estado tenha continuado a estabelecer os
investimentos mais onerosos em relação ao ferro e na produção da pólvora.
É necessário realçar que após a abertura dos portos às nações amigas, de acordo com a
publicação do decreto de 28 de janeiro de 1808, a tímida indústria no Brasil foi muito
prejudicada em função da enxurrada de produtos manufaturados que chegavam aos portos
brasileiros, sobretudo aqueles oriundos da Inglaterra, encontrados por valores irrisórios. 125
Mesmo com incentivos fiscais, a indústria que havia no Brasil não conseguia competir com o
preço dos produtos importados.
Outro ponto importante a se destacar é a questão da mão de obra especializada que os
empreendimentos manufatureiros necessitavam. Grosso modo, os trabalhadores que
trabalharam nas fábricas, ou nos projetos e protótipos delas, no fim do século XVIII e início
do XIX, eram pessoas em situação de escravidão. Conforme a intensificação das diferenças
entre os âmbitos particulares e públicos de trabalho, houve também mudanças que refletiram
124
Como veremos mais detalhadamente nos próximos capítulos, o reformismo ilustrado e os interesses comuns
que orientavam as ações do Estado português apresentou uma ruptura entre 1807 e 1808, acima de tudo em
função do deslocamento da família Real para o Brasil. Esse monopólio do Estado do controle da natureza
pulveriza-se nesse período. Como aponta Munteal Filho: “o reformismo ilustrado que objetivara a recuperação
econômica do Reino e o rebalizamento da política colonial acabara por aplacar as diferenças, pelo menos
provisoriamente, quer dizer, até as invasões francesas de 1807-1808, o desmantelamento do monopólio e do
‘exclusivo’ e o acontecimento da setembrizada de 1810-1811, que levaria a ferros e ao exílio alguns membros do
grupo naturalista-utilitário da Academia das Ciências, no bojo da crise da Europa napoleônica.”. MUNTEAL
FILHO, Oswaldo. op. cit., 1998, p. 329.
125
Segundo Célia de Barros Barreto e outros autores, conforme as embarcações ingleses chegavam aos portos
brasileiros, “[…] trouxeram tal quantidade de mercadorias que logo abarrotaram o mercado. […] os trabalhos de
desembarque eram lentos e os navios ficavam esperando dias e dias para descarregar, gastando grandes somas
em taxas portuárias. […] Descarregadas, as mercadorias eram colocadas em armazéns pequenos, insuficientes
para o comércio em grande escala e que logo ficavam superlotados.”. BARRETO, Célia de Barros et. al.
História geral da civilização brasileira. O processo de emancipação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p.
86.
69
no tratamento e nas exigências das pessoas escravizadas que operavam as fábricas que tinham
referencial técnico europeu.126 Embora as relações de trabalho fossem diferentes em relação
ao espaço de particulares, os escravos sofreram com as péssimas condições nessas fábricas,
especialmente as de produção de ferro.127
Além disso, havia a questão do transporte dos produtos manufaturados na América
portuguesa, como trataremos mais aprofundadamente nos capítulos 2 e 3. Os administradores
instalados na colônia brasileira pouco se movimentaram para resolver a questão das estradas
para escoar as eventuais produções, apesar das determinações expressas diretamente da Coroa
para a abertura de estradas de modo a escoar a produção de salitre, por exemplo. 128 O ferro
produzido na Real Fábrica de Ferro de Morro de Gaspar Soares foi altamente oneroso em
função do seu transporte ser caro, fato esse que contribuiu para o fracasso da empresa.129
É importante mencionar também que, antes da chegada da família Real ao Brasil,
havia a preocupação com a extração de outros elementos mais rentáveis, com ganhos mais
rápidos do que o salitre e o ferro, a exemplo do tão almejado ouro e diamantes. Assim,
podemos afirmar que a indústria da extração desses elementos menos cobiçados foi preterida
no seu alvorecer.
De fato, a indústria brasileira de larga escala iniciou-se apenas após a transmigração da
corte portuguesa ao Brasil. Os primeiros grandes empreendimentos que se seguiram ao ano de
1808 indicam a etapa prática que as manufaturas de larga escala tomaram no século XIX. A
Real fábrica de ferro de Gaspar Soares, a Fábrica Patriótica, a Real Fábrica de Ferro de São
João de Ipanema e a Real Fábrica de Pólvora do Rio de Janeiro evidenciam os primeiros
passos da indústria nacional no moderno sentido do termo.
É preciso lembrar que o grosso da economia brasileira que se seguiu ao século XIX
manteve-se alicerçada no binômio monocultura-latifúndio, especialmente por este ter sido o
século em que o café se tornou o principal gênero cuja produção atravessou em alta todo o
século dezenove e foi e manteve-se em altos níveis até meados de 1930.
126
Aqui vale importante ressalva. Muitos africanos raptados e levados em situação de escravidão ao Brasil
tinham conhecimento técnico nativo notadamente apurado em produzir ferro. Essas pessoas vinham sobretudo
do Reino de Angola e eram preferencialmente escolhidas para trabalhar nas oficinas de ferreiros em Minas
Gerais. Cf. ALFAGALI, Crislayne. op. cit., 2012.
127
Cf. ROCHA, Ilana Peliciari. Escravos da nação: o público e o privado na escravidão brasileira, 1760-1876.
São Paulo: Edusp, 2018.
128
Em carta régia do ano de 1799, é solicitado ao governador da Bahia a abertura de uma estrada de Montes
Claros à Camamú para o transporte de salitre e madeira, o que reforça que a metrópole também interferia para o
melhor resultado do aproveitamento dos referidos gêneros. Cf. AHU, Projeto Resgate - Bahia Avulsos, cx. 213,
doc. 15044, 12 de julho de 1799.
129
Cf. MENDONÇA, Marcos Carneiro. op. cit., 1958.
70
aplicado na colônia brasileira, não pode ser confundido com a dinâmica que era usual nas
oficinas dos ferreiros. Em linhas gerais, o ferro manipulado nas oficinas dos ferreiros em
Minas Gerais era importado em barras de outras localidades da Europa, o que dispensava as
etapas iniciais de obtenção daquele minério.131 Vale destacar também que a manufatura do
salitre, em grande medida, esteve majoritariamente sob tutela orientação das diretrizes
ilustradas que os administradores consideravam melhores ao seu beneficiamento.
Entre outras características da conjuntura do período aqui estudado, é preciso reiterar a
questão do já citado esgotamento das minas de ouro, momento que demandava por mais
ferramentas específicas para obter o ouro que não estava mais depositados nas superfícies dos
rios, por exemplo. Testemunho que ilustra as recomendações do estabelecimento de
manufaturas para substituir o ferro importado, assim como outras fábricas a exemplo do
salitre, é o do político José Elói Ottoni. Em memória escrita no ano de 1798, Ottoni apresenta
argumentos favoráveis à instalação de alguns ramos manufatureiros em Minas Gerais, de
modo que com as mesmas indústrias se superassem certos problemas que decorriam da falta
de alguns produtos naquela capitania:
o que tudo cessa, querendo Sua Mag. servir dos meios que acabo de propor a
benefício da Industria; pois esta (jamais deixarei de repetir) he som. e quem pode
fazer com que se percebão as grandes vantagens daquelle paiz. Eu não digo que se
lhe permittão o uzo de todas as Fábricas, nem todos os generos de manufacturas;
porem não acho razão, por que se lhe neguem aquelles ramos da Industria que por
negligencia compramos as Naçoens extranhas, e que de algum modo esgotão o
sangue do Estado, como são o ferro, o aço, o salitre […].132
131
Cf. ALFAGALI, Crislayne. op. cit., 2012.
132
OTTONI, José Eloi. Memória sobre o estado actual da capitania de Minas Geraes. In: ANNAES da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro. Volume 3. Rio de Janeiro: Oficinas Graphicas da Biblioteca Nacional, 1930, p. 315.
Ao longo do texto, o autor faz apontamentos para o melhoramento da agricultura, para melhor proveito da
extração do ouro, mas defende veementemente a questão das manufaturas como setor fundamental para as boas
finanças da capitania de Minas Gerais. Já no início da memória, Ottoni indica que: “[…] por não haver na
Capitania hum só gênero, q. possa suster a força de um imposto ainda o mais leve enquanto não se crearem n
Brazil alguns ramos do mecanismo e da indústria. Eis aqui a origem da abundância, a protetora das artes, a mão
do provido trabalho, a indústria… eis aqui some. quem pode assegurar a independência das naçoens. He tão
evidente a força desta questão, que não precisa ser demonstrada .”. p. 307.
72
não basta somente ter-se mostrado aos mineiros o como devam abrir c trabalhar as
suas minas; cumpre mais administrar-lhes certos meios e remover alguns obstáculos
que se apresentem ou possam tolher o expedito giro desta máquina. O ferro, este
melai tão necessário a todas as artes, a Iodos os ofícios, que rasgando a terra obriga
esta a ornar-se de uma verdura mais amena e alegre e a desentranhar-se em dons e
riquezas, que levado às nossas fronteiras mostra aos nossos inimigos um muro
inconquistável - a morte c o espanto; este metal, mais precioso ao homem do que o
ouro e a prata, que é o que a Providência derramou sobre nós com uma
prodigalidade espantosa. Não sei porque fatalidade, ainda até hoje não nos temos
abaixado para levantarmos da terra estas riquezas que ela tão largamente nos
oferece: porque razão estamos a sustentar com o nosso dinheiro as fundições da
Suécia, da Alemanha e da Biscaia, nós que as podemos arruinar todas ou, ao menos,
tirar-lhes grande parte dos seus lucros! Por que razão uma nação de necessidade
mineira como a nossa esperará que lhe venha do fundo do norte, por um preço
exorbitante, o ferro c o aço para poder trabalhar as suas minas? Quanto estas coisas
não devem retardar, empecer e ainda quase de lodo impossibilitar o exercício de
muitas lavras! Isto é patente aos olhos da razão e nós, os moradores deste continente,
o vemos todos os dias com os nossos próprios olhos. E, na verdade, sendo o ferro e o
aço os gêneros de maior necessidade e consumo para o mineiro e a sua falta um
empecilho para a mineração, logo que o listado providenciar para que estes mesmos
gêneros haja, em abastança e por um baixo preço, ele terá já dado um grande passo
para animar o trabalho desta mesma mineração e para a constituir em um muito
melhor pé. O meio. porém, de termos estes mesmos gêneros baratos e sempre
prontos, não vejo outro senão lançarmos mão daquele mesmo ferro que a natureza
nos oferta junto às bocas das nossas minas, estabelecendo nós neste país as nossas
fundições.133
por toda a encosta da serra desde os Montes Altos, até a Tabocas […], que abunda de
muita lenha, e madeiras de construcção, taessão os amargos, páos pretos, páos de
arco, cedros, tamboris, aroeiras e havendo igualmente muita pedra de cal por toda a
planície, de que se observam aqui, e ali vários cervos espalhados no plano das
caatingas, que ficam entre as serras dos Montes Altos, e das Emburanas […]. Destas
serras tenho alguma notícia communicada dos habitantes, que todas as vezes que
fazem lapas, contém salitre, o que não observei por me ficarem fora do giro da minha
viagem, e não querer retardar as notícias, e observação dos mais lugares, que me
restava fazer, o querem qualquer outro tempo se pode executar depois de estabelecida
a fábrica neste lugar, havendo homens hábeis, que bem o possam executar, ainda que
eu encarreguei esta observação a Manoel Ribeiro de Vasconcellos, sujeito
intelligente, que assistio comigo em todos os exames, e é um dos homens brancos
que ha no lugar dos Montes Altos […] e um negro vaqueiro, de que é administrador
José Pereira da Silva, homem pardo […] sendo o sobredito terreno muito necessário
para a administração, comodidade do serviço, caso a vista dos exames, que remete
haja sua Magestade por bem levantar fábrica, como também todo o mais terreno, que
acompanha a serra […].134
133
COUTO, José Vieira. op. cit., 1994, p. 73.
134
ACCIOLI, José de Sá Bittencourt. Sobre a viagem ao terreno nitroso nos Montes Altos em 1799. O auxiliador
da Indústria Nacional, Rio de Janeiro, v.13, n.4, pp. 97-114, 1845, p. 103.
73
135
Segundo Oswaldo Munteal Filho, “a utilidade desses acontecimentos acumulados revestiam-se, portanto, de
grande importância se considerarmos a orientação da política portuguesa dirigida à burocracia colonial que, por
sua vez, era também metropolitana, quer dizer, cada vez mais a elite burocrática do Império colonial ultramarino
associava-se ao reformismo lisboeta e coimbrão.”. MUNTEAL FILHO, Oswaldo. op. cit., 1998, p. 313.
74
período colonial, assim como sua influência para que, completando os ensejos circunscritos à
época, as manufaturas se instalassem com um verniz operativo objetivando consideráveis
resultados.
75
Capítulo 2
o salitre foi outro dos produtos químicos sobre a qual o governo fez recair as suas
preocupações de substituição da importação pela produção nacional. A auto-
suficiência na produção da pólvora era fundamental para os governos assegurarem a
sua independência no abastecimento de munições aos seus exércitos. Para Portugal
essa auto-suficiência assumiu particular importância na altura em que Portugal a
invasão francesa era iminente.136
Em outras palavras, a exploração do salitre foi uma das chaves para o fortalecimento
da formação dos Estados europeus. Vale reiterar que, antes do desenvolvimento do
trinitrotolueno e nitroglicerina no século XIX, esse mineral era um dos insumos
indispensáveis para se fabricar a pólvora. Além de sua importância bélica, a pólvora era
componente importante na exploração de ouro e diamantes, pois era utilizada para o desmonte
dos morros e abertura de minas subterrâneas.
136
MATOS, Ana Maria Cardoso de. Ciência, tecnologia e desenvolvimento industrial no Portugal oitocentista: o
caso dos Lanifícios do Alentejo. 1997. 599 f. Tese (Doutorado em História Contemporânea) - Universidade de
Évora, p. 80.
76
Consoante ao que sintetiza de Luciano Faria, o salitre “[...] como se referem ainda os
antigos autores, nitro ou nitre [...] misturado com enxofre e carvão em proporções que
poderiam variar entre nações ou culturas, a Pólvora era o mais almejado produto final do
salitre.”137, sendo que sua fórmula química contemporânea é apresentada por KNO 3 e que no
período aqui estudado era conhecido cientificamente por nitrato de potassa, atualmente
intitulado nitrato de potássio.
Esse mineral se tornou um dos interesses operacionais da máquina administrativa pela
qual o Estado português permitiu a sua manufatura no Brasil a partir do final do século XVII,
embora as invasões holandesas ao continente Americano tenham suscitado, desde a década de
1620, a necessidade de se obter o salitre como garantia para a produção de munição com a
finalidade de combater aos possíveis invasores, assim como para dar respaldo ao processo de
conquista ao interior.
O Estado teve papel fundamental no fomento da produção salitreira durante todo o
período colonial brasileiro. À máquina administrativa coube os investimentos essenciais à
vida econômica dos domínios ultramarinos que progressivamente se integraram ao corolário
centralizador do despotismo ilustrado, ao passo que havia uma clara indução ou mesmo a
proteção de certas atividades, como é o caso do salitre.138
Desde o início da colonização, Portugal dispôs de um vasto depósito de recursos
naturais a ser conquistado na América. Ao longo do processo da exploração dessas riquezas,
os colonizadores notaram prontamente as quantidades de salitre em forma de nitreiras
naturais, ou seja, em cavernas calcárias. Esse arranjo em cavernas calcárias garantia que o
salitre não se dissolvesse, pois, como salienta Frei Mariano Veloso, notável conhecedor da
viabilidade da exploração daquele mineral no período aqui estudado, “he muito dissoluvel
porque trez ou quatro partes de água fria dissolvem huma parte do Salitre, e a água quente
dissolve o dobro do seu pezo.”139. Não menos importante foi a possibilidade de fazer no Brasil
uma potencial indústria salitreira a partir do método artificial de produção, conforme notaram
137
FARIA, Luciano Emerich. Mineralogistas e seus estudos sobre os minerais úteis nas Minas Gerais dos
períodos colonial e imperial. 228 f. 2019. Tese (Doutorado em Ciência) – Universidade Federal de Minas Gerais,
Departamento de Química, p. 23.
138
Cf. WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. M. Formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova
fronteira, 1999. Não podemos deixar de lembrar que o contrabando era uma atividade que existia ao arrepio do
controle do Estado. Isso não é diferente para o salitre. Como indicamos no primeiro capítulo, o salitre era um
produto altamente usual na vida colonial não apenas para fins bélicos, mas também para uso medicinal.
139
VELOSO, José Mariano da Conceição. Alographia dos alkalis fixos. Lisboa: Offic.. de Simão Thaddeo
Ferreira, 1798, p. 47.
77
alguns dos naturalistas encarregados de realizar sua investigação no final do século XVIII e
início do século XIX.
As invasões da baía do Guanabara pelos franceses, em 1711, evidenciaram para a
Coroa portuguesa a necessidade de fortalecer a proteção das áreas costeiras colonizadas pelos
lusos. D. João V enviou à América portuguesa o engenheiro militar Joseph Fernandes Pinto
Alpoim para o ensino da artilharia, que incluía a instrução para o fabrico da pólvora. 140 Joseph
Alpoim deixou registros, entre os quais indica formas de se obter o salitre. Esse registro pode
ser observado no livro intitulado Exame de bombeiros141.
ultramarino, com destaque para o Brasil. Embora as viagens filosóficas em solo brasileiro não
fossem parte da grade curricular, as mesmas foram empreendidas sob o estímulo do ministério
da Marinha e dos Domínios Ultramarinos.
O fortalecimento do aparato bélico a partir das possibilidades de aproveitamento
industrial dos recursos naturais, desde o início da colonização, contou com um diversificado
leque de minerais à disposição. Outrossim, como veremos mais aprofundadamente neste
tópico, mesmo quando se empregavam as técnicas rudimentares para a extração do salitre, a
qualidade desse mineral no Brasil suscitou uma considerável indústria salitreira, embora os
resultados desfavoráveis tenham acompanhado os primeiros projetos nesse setor da produção
química. As técnicas que mais tarde foram empregadas pelos naturalistas luso-brasileiros
testificam um aperfeiçoamento da forma de obtenção do nitrato de potássio, a exemplo da
produção artificial da potassa, elemento que contribuía para a manufatura no momento em
que se filtravam as terras nitrosas.
Ao longo dos anos, as abordagens historiográficas, sobretudo aquelas da segunda
metade do século XIX, sublinharam as posturas dos naturalistas em pesquisar e produzir o
salitre no período colonial como meros feitos que os tornaram homens distintos. 143 É preciso
reiterar que a busca dos naturalistas pelo salitre era parte de uma rede planejada de intentos
políticos de cooperação que tomou corpo nas últimas décadas do setecentos. Esses intentos
estavam notadamente ligados ao círculo de intelectuais sob a órbita de D. Rodrigo de Sousa
Coutinho, ministro da Marinha e dos domínios Ultramarinos a partir de 1796 e dos Negócios
Estrangeiros a partir de 1807.144
Entre as duas figuras proeminentes que estavam conectados ao ministro estavam João
da Silva Feijó, que inauguraria as pesquisas do salitre na capitania do Ceará, em 1799, e Frei
José Mariano da Conceição Veloso, que dirigiu a Casa Tipográfica do Arco do Cego, braço
editorial na promoção da implementação e transformação da indústria química e agrícola
planejada por Sousa Coutinho.
D. Rodrigo de Sousa Coutinho exerceu importante papel para a consolidação da
Ilustração no Brasil e também para a manutenção da unidade do Império, assim como foi um
grande incentivador da indústria química e da metalurgia. Suas disposições apontavam para a
abrandamento do pacto colonial, especialmente quando se tratou da manufatura do salitre na
143
Cf. PEREIRA, Magnus Roberto de Melo. D. Rodrigo e frei Mariano: A política portuguesa de produção de
salitre na virada do século XVIII para o XIX. Topoi, Rio de Janeiro, v. 15, n. 29, pp. 498-526, 2014.
144
Não podemos afirmar que as movimentações desses naturalistas eram despojadas de interesses particulares.
79
148
PEREIRA, Magnus Roberto de Melo. op. cit., 2014, p. 503.
149
O destaque para o progressivo aumento do Estado sobre o controle do aparato bélico e militar foi usual
durante a segunda metade do século XVIII. No Reino português, as colônias ultramarinas foram proibidas de
manufaturar a pólvora, pelo menos até a chegada da família Real ao Brasil.
82
les proportions des trois ingrédiens que l'on le indiqués ci-dessus devoir composer la
poudre, ount souvent varié. En le France elles sont fixés, par ordonnance, à trois
quarts de salpêtre, un huitieme de soufre et un huitieme de charbon. Ces proportions
ne sont pas suivies par toutes les nations, chacune la frabiquant à samaniere:
plusieurs emploeint trois quarts ou quatre cinquiemes de salpêtre, et divisent la rest,
de sort que le charbon entre en le plus fort dose que le soufre.150
150
D’URTUBIE, Théodore. Manuel de l'artilleur. Paris: Magmel, Libraire pour l’art militaire et les
sciences et arts quai des Augustins, près le Pont-neuf, 1793, pp.128-129. O autor chega a citar o exemplo dos
chineses: “Les Chinois, dit-on, mettent trois parties en charbon sur deux de soufre.”. p. 129.
151
Ibidem, p. 130.
152
Cf. Ibidem.
153
Ibidem, p. 131.
154
Ibidem, p. 131.
83
A disseminação dos conteúdos científicos, ou, pelo menos, a intenção de adotar esse
viés, é significativa se considerarmos que a Metrópole portuguesa pretendia associar a elite
intelectual dos brasileiros que haviam tido alguma instrução nos centros de difusão científica
de Portugal, em especial a Universidade de Coimbra. Como reiteramos, o fato de Portugal
dinamizar as questões relativas ao pacto colonial evidencia o temor quanto às sublevações
internas que poderiam ocorrer e que de fato aconteceram, a exemplo da Inconfidência Mineira
155
Havia também uma publicação cuja autoria é desconhecida intitulada Instruction sur la fabrication du
salpêtre brut (179-?) na qual se prioriza o modo de se extrair o salitre em sua forma bruta. O curioso dessa
publicação é seu formato panfletário, assim como a responsabilidade de sua reprodução estava aos cuidados dos
responsáveis da Revolução Francesa, como o frontispício indica.
156
Na França, a pólvora foi um recurso importantíssimo durante o processo revolucionário e ao que se seguiu à
Revolução de 1789.
157
FERRAZ, Márcia Helena M. A produção do salitre no período colonial. Química Nova, São Paulo, v. 23, n. 4,
pp. 845-850, 2000, p. 845.
84
(1789) e a Conjuração Baiana (1798).158 Uma das questões que debateram os inconfidentes
mineiros foi exatamente sobre o acesso e a produção de pólvora necessária para sustentar a
guerra que se seguiria à declaração de independência que eles pretendiam lançar.
É necessário destacar que as transformações econômicas de fins do século dezoito
fizeram com que Portugal reformulasse suas estratégias político-administrativas. Os setores
agrícolas e mercantis, que tinham dominado os mercados europeus durante os séculos XVI e
XVII, tiveram à dianteira as potências ibéricas. Já, no século XVIII, assistia-se a ascensão do
setor industrial, em que os países do noroeste europeu pareciam tomar a frente.159
Mas as nações ibéricas não se fizeram esperar e um exemplo da industrialização
encetada nos ministérios de Luís de Sousa Coutinho, 1º. visconde de Balsemão, ministro dos
Negócios Exteriores, e de D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Os portugueses mergulham no
processo de tomada de consciência das potencialidades do Brasil que poderiam deslanchar a
força econômica de Portugal sob o signo da sofisticação técnica manufatureira. Para isso, os
administradores e os naturalistas defenderam que era necessário adotar os novos
conhecimentos de viés científico, atualizando as atividades extrativas que haviam
caracterizado os primeiros séculos da colonização, inclusive incumbindo escravos para o
exercício dessas transformações.
Como testemunho dessa postura aplicada rumo à produção manufatureira do salitre,
para além da proposta do recorte espacial proposta neste estudo, que se centra na Bahia e em
Minas Gerais, cabe salientar os exames realizados por José da Silva Feijó, empreendidos na
capitania do Ceará. Em 1802, o governador da capitania do Ceará, Bernardo Manuel de
Vasconcelos, informou o então ministro da Marinha e dos domínios ultramarinos, João
Rodrigues de Sá e Melo, sobre a abertura de estrada para o escoamento do salitre produzido
na mina de Tatajuba. De acordo com o ofício,
158
Neste ponto, é necessário ressaltar que a mentalidade na colônia engendrada a partir do contato com a
literatura científica, com os cursos universitários e, não menos importante, com a dependência orientadora de
Portugal para as atividades da vida colonial, tinha sua particularidade. O ethos formado do sincretismo desses
pressupostos, tendo como uma das pontas a adesão ao pensamento científico ilustrado, não significou um amplo
anseio comum de mudança das bases que norteavam o Brasil nos últimos dois séculos de colonização. Como
sugere Carlos Guilherme Mota, o desejo sobre o controle da propriedade que, naquele momento era de perfil
agrário operada por mão de obra escrava, permeava a mentalidade de alguns sediciosos e mesmo de alguns
naturalistas, como é o caso de José de Sá Bitencourt e Accioli e José Vieira Couto. Portanto, houve uma versão
colonial do reformismo ilustrado. Assim, “[...] é em relação a tal ordem estabelecida que se ajustam – ou não –
certas formas de pensamento e certos comportamentos. [...] As formas de pensamento serão ajustadas aos tipos
de comportamento [....].”. MOTA, Carlos Guilherme. Atitudes de inovação no Brasil (1789-1801). Lisboa:
Livros Horizonte, 1970, p. 97. A propriedade de manufaturas, como ainda sugere Mota, é símbolo dos novos
tempos que alguns dos homens das ciências tinham a intenção de desenvolver no Brasil.
159
Cf. MOTA, Carlos Guilherme. op. cit., 1970.
85
[…] tinha encarregado o Sargento Mór. naturalista de fazer abrir huã estrada desde o
lugar do Baturité até a mina da Tatajuba onde se extrahe e purifica o salitre, e forma
a distancia de 30 legoas, a fim de se poder praticar por ella se condusção da caldeira
para onde ter minna, agora pois que a referida estrada se acha assim concluida,
[…].160
A inquirição que João da Silva Feijó realizou na capitania do Ceará também evidencia,
portanto, como os administradores régios agiram em favor da exploração do salitre. Embora
não tenha sido vultosa as quantidades obtidas por Feijó, é necessário apontar que:
para se ter uma ideia de tal soma, basta pensarmos que no ano de 1800 a arrecadação
dos dízimos de toda a Capitania do Ceará Grande alcançou somente a cifra de
16:685$000257. O relatório enviado já em 1802, pelo Escrivão deputado da Junta da
Fazenda, Francisco Bento Maria Targine explicita que, no ano de 1801 dos cofres
reais haviam saído 1:249$360 réis e a produção de salitre do sítio Tatajuba tinha
ficado apenas em 34 quintais. No ano de 1802 somente para jornais dos
trabalhadores e as conduções, segundo o relatório do mesmo escrivão da Fazenda, já
tinha saído 1:240$020 réis (um conto, duzentos e quarenta mil e 20 réis) extraindo
com isso a parca quantia de 21 quintais de salitre. O escrivão da Fazenda argumenta
ainda que, cada quintal extraído, incluindo-se o valor dos utensílios do Laboratório,
teria chegado à quantia de 61$235 réis, e que o computado unicamente com as
despesas de extração e condução teria tomado o espantoso vulto de 524$235 réis.
Ainda dessa soma, dever-se-ia adicionar o frete da Capitania do Ceará para os portos
de Pernambuco, posto que no ano de 1802, ainda não havia se estabelecida a
navegação direta para o reino.161
160
AHU, Projeto Resgate - Ceará (1618-1832), cx. 17, doc. 944, 30 de setembro de 1802.
161
OLIVEIRA, Antonio José Alves. João da Silva Feijó e os dilatados sertões: Pensamento Científico e
representações do mundo natural na Capitania do Ceará (1799 – 1816). 2014. 231 f. Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, p. 171.
162
É necessário dizer que alguns autores pontuam que havia fábricas de pólvora na metrópole e, portanto, não
tinham interesse em desenvolver fábricas na América portuguesa. Conforme Lemos Britto, “uma das razões que
militaram em favor desta prohibição foi, sem duvida, a da concorrência que a nova industria faria às polvoras
portuguesas, conhecidas por polvoras do reino, até que a Inglaterra passou a tomar o Jogar que deveria ser
nosso.”. BRITTO, Lemos. op. cit., 1939, pp. 514-515. No entanto, já na primeira metade do século XVIII, na
capitania da Bahia, foi fabricado pólvora com anuência da Coroa portuguesa.
86
163
FURTADO, Junia F. O Livro da Capa Verde: a vida no Distrito Diamantino no período Real Extração. São
Paulo: Anna Blume, 1996, p. 48.
164
Na academia brasileira, essas discussões tiveram seu ápice nos anos 70 e 80, amparadas sobretudo pela teoria
marxista, mas com certa revisão, consideradas as particularidades que a América portuguesa apresentava. Esses
debates se assentavam, entre outros, na classificação da economia brasileira dentro dos aspectos feudais, pré-
capitalistas e capitalistas. Essas mesmas discussões se acentuaram, mormente, em função do trabalho escravo
que foi usual em toda história colonial. Cf. HIRANO, Sedi. Formação do Brasil Colonial: pré-capitalismo e
capitalismo. São Paulo: Edusp, 2008.
87
usuais que sustentavam a economia colonial, principalmente o trabalho escravo que foi parte
indissociável da instalação das indústrias química e metalúrgica brasileiras.
tem muito pào de que se fazem as tintas, Em algumas parte d'elle se dá trigo, cevada,
e vinho muito bom, e em todas todos os fructos e sementes ele Hespauha, do que
haverá muita qualidade, se Sua Magestde mandar prover n'isso com muita instancia,
e no descobrimemo dos metaes que n'esta terra ha; porque lhe não falta ferro, aço,
cobre, ouro, esmeralda, crystal e muito salitre, e em cuja costa sahe do mar todos os
annos muito bom âmbar.165
165
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descriptivo do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia de João Ignacio da
Silva, 1879, p. 2.
88
desse mineral com a análise dos terrenos em que poderiam encontrar e fazer desse um produto
proveitoso.
A pólvora está intrinsecamente ligada à história da conquista da América pelos
europeus e, particularmente, do Brasil, como para a manutenção das fronteiras Sul-
Americanas. Capítulo particular que acentuou a importância da pólvora foram as descobertas
auríferas em Minas Gerais.166
É importante salientar que, devido ao clima temperado, o salitre não era facilmente
encontrado na Europa em nitreiras naturais, sendo mais comum a sua obtenção a partir de
nitreiras artificiais. As colônias ultramarinas, seja a Índia ou a América portuguesa, com
territórios muito maiores e situadas em climas tropicais, eram mais promissoras.167 No século
XIX, de acordo com levantamento d’O Auxiliador da Indústria Nacional, no ano de 1855, o
salitre movimentava o mercado europeu de forma crescente:
166
Cf. ZEMELLA, Mafalda P. O abastecimento da capitania das minas Gerais no século XVIII. São Paulo:
Hucitec, 1990.
167
Cf. GANDOLFI, Haira E.; FIGUERÔA, Silvia Fernanda de M. As nitreiras no Brasil dos séculos XVIII e
XIX: uma abordagem histórica no ensino de ciências. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro,
v. 7, n. 2, pp. 279-297, 2014.
168
O AUXILIADOR da Indústria Nacional, Rio de Janeiro, v. 4, pp. 227-239, 1855, p. 227.
169
Ibidem, p. 227. Vale destacar que no mesmo texto é reforçado que as nitreiras naturais, no período em que foi
escrito, ainda não estavam plenamente mapeadas: “por falta de investigações rigorosas não é possível afíirmar,
qual é a quantidade de salitre que o Brazil pôde extrahir de suas fontes naturaes; mas julgandorse pela extensão
enorme de suas terras nitrosas, o seu producto não podera deixar de ser importantíssimo.”. p. 227.
89
170
FARIAS, Luciano E.; FILGUEIRAS, Carlos A. L. Salitre: o produto químico estratégico no passado do
Brasil. Química Nova, v. 44, n. 4, pp. 519-535, 202, p. 520.
171
D. João de Alencastre, governador da Bahia no fim do século XVI, encaminhou ao Rei amostras de salitre
com a intenção de erguer uma fábrica de salitre na referida capitania.
172
VITA, Soraya; LUNA, Fernando J.; TEIXEIRA, Simone. Descrições de técnicas da química na produção de
bens de acordo com os relatos dos naturalistas viajantes no Brasil colonial e imperial. Química Nova, São Paulo,
v. 30, n. 5, 1381-1386, 2007, p. 1383.
90
173
PESSOA, José Martins da Cunha. Memória sobre o Nitro. In: CARDOSO, José Luis. Memórias Econômicas
da Academia Real das Ciências de Lisboa. Lisboa: Banco de Portugal, 1991, pp.161-162. Esse processo foi
provavelmente o mais utilizado entre fins do século XVII até o início do século XIX pelo fato de ser um
procedimento mais simples de se obter o salitre, o que exigia apenas a lavagem das terras nitrosas e da
evaporação que eliminasse todo o sal.
91
Legenda: Forno com caldeira de cobre e bacia de evaporação de madeira. A legenda da imagem pode ser lida: A
- câmara da fornalha, sem grelha e onde se deve queimar lenha; B – porta do forno; C – passagem abobadada; D
- chaminé horizontal, na qual é colocada a bacia de evaporação; E - chaminé vertical, continuação da horizontal;
F – alvenaria sólida; G - fogão ou caixa grande de chumbo ou cobre, chamada bacia de evaporação; H - Barras
de ferro usadas para suportar esta caixa; J - tubulação terminada por uma torneira para levar a água da bacia G
para a caldeira K e para substituir a que evaporou; K – caldeira de cobre; L - caldeirão com alça, suspenso por
uma corrente e que se sobe de tempos em tempos usando um balde; M - aro de madeira ou pedra sobre o qual se
apoia a caldeira K; N - cuba cujas águas correm por um poço na bacia G; P - cavalete para carregar esta cuba.
Fonte: INSTRUCTION sur la fabrication du salpêtre brut. [s.l.: s.n.], [179- ?}.
esse processo, peneirava-se o restante da água. O mineral que ali permanecia era o salitre em
sua forma bruta.176 Essa forma ordinária de se obter o salitre foi usual entre os brasileiros e os
colonos. Para esse processo, não eram necessários grandes conhecimentos técnicos. O que se
tornou obstáculo para os produtores de salitre no Brasil colonial foram justamente os recursos
instrumentais necessários à mineração, bem como o processo de transporte dos resultados
obtidos até a área litorânea.
Em relação ao processo de refinamento do salitre, o Extracto do modo de se fazer o
salitre nas fábricas de tabaco da Virginia, manual traduzido para auxiliar a manufatura do
nitrato de potássio, é possível ler que
176
Após esta última etapa, o salitre bruto era refinado.
177
BROWN, Jeremiah. Extracto do modo de se fazer o salitre nas fabricas de tabaco da Virginia. Lisboa: Off.
João António da Silva, 1797, pp. 5-6.
93
Legenda: Forno com caldeira de cobre e cuba de evaporação de madeira. A legenda da imagem pode ser lida: A
– sala do forno; B – passagem que segue o calor e a fumaça; C - tubo cilíndrico de cobre, nove polegadas de
diâmetro, que se encaixa no final da passagem B, atravessa a bacia de evaporação F, a três polegadas de
isolamento do fundo e junta-se ao cano da chaminé D onde a fumaça evapora; D – chaminé de tijolo; E - caldeira
de cobre de forma regular; F - grande caixa de madeira, servindo como bacia de evaporação por onde passa o
tubo C, cujo calor é transmitido ao líquido circundante; G - tubulação alinhada com sua torneira despejando na
caldeira E; H - cuba cuja água culmina na bacia F; J - aro de madeira ou pedra que sustenta a caldeira; K -
caldeirão onde os depósitos de terra são coletados; L – alvenaria sólida; M - barra de ferro colocada no forno; N -
válvula que fecha a passagem P que une a chaminé comum D. Esta passagem só será utilizada (abrindo a válvula
O, e fechando a passagem B, C, por uma válvula num ponto B) apenas quando as águas ferventes da caixa F
fosse considerável, ou que houvesse reparos a serem feitos lá; O - laço para segurar a corrente e a corda da polia.
Fonte: INSTRUCTION sur la fabrication du salpêtre brut. [s.l.: s.n.], [179- ?].
notícias dando conta da descoberta de salitre, não foi implantada nenhuma fábrica na
Colônia.178
178
CARRARA Jr., Ernesto; MEIRELLES, Helio. A indústria química e o desenvolvimento do Brasil (1500-
1889). Tomo I. São Paulo: Metalivros, 1996, p. 134.
179
Nas palavras de Varnhagen, “o mesmo Lancastro veiu também a receber a autorisação que, por proposta do
mesmo Antônio Luiz, obtiveram então os governadores para poderem criar novas villas; e, em virtude das ordens
do governo, passou em pessoa aos sertões da Bahia, para as bandas da Jacobina, afim de examinar as nitreiras
delles. Dois annos depois a casa da Torre se comprometteu a pôr annualmente na Caxoeira vinte mil quintaes de
salitre; porém sem tardança se viu obrigada a rescindir o contracto, offerecendo sessenta mil cruzados á Coroa, a
título de indemnisação, o que lhe foi acceito (1699) [...].”. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral
do Brazil. Vol. 2. Rio de Janeiro: Em casa de E. e H. Laemmert, 1877, pp. 790-791.
180
GANDOLFI, Haira Manuela; FIGUEIRÔA, Silvia Fernanda de Mendonça. op. cit., 2014, p. 283.
95
fornecer cabedais próprios num empreendimento que não assegurasse retornos interessantes
aos investidores.
Conforme documento orientador dos membros do Conselho Ultramarino, foi exarada
ordem, datada do ano de 1694, sobre como deveriam ser realizadas as diligências para se
reconhecer as nitreiras naturais da Bahia:
para se dar principio ao exame das terras salitrozas da Bahia deve V.S. ordenar q. a
pessoa ou pessoas q. troucherao do sertao a terra q veyo a S. Mag de. em q. fis a
experiencia vao em compa. de V.S. a esta [...] e mostrem o sitio de onde a tirarão p a.
q. conferida a do sertão com a amostra q. he a que veyo se examine provando a em
huãs brasas bem vivas; por ser o modo mais efficas e conveniente p a. se conhecer a
terra salitroza.181
Os exames primários das terras salitrosas poderiam ser feitos por qualquer pessoa que
o governador indicasse, desde que fosse dado conhecimento dessa análise ao Conselho
Ultramarino. Resultado dessas investigações, ainda que realizadas de forma pouco metódica,
em 1695, a Coroa portuguesa já tinha conhecimento de que o salitre baiano era de boa
qualidade, embora em quantidades que não permitiam a abertura de uma fábrica. Nesse
sentido, as pesquisas continuaram em Jacobina:
181
AHU, Projeto Resgate - Bahia Luísa da Fonseca (1599-1700), cx. 30, doc. 3874, 26 de novembro de 1694.
182
CARRARA Jr.; MEIRELLES. op. cit., 1996, p. 134.
96
A primeira fábrica foi fundada por Pedro Barbosa Leal, depois da descoberta de
jazidas de salitre e ametista, em março 1697, em Jacobina.184 Como aponta Helida Conceição,
sua habilidade para a administração dos negócios reais foi destacada na Carta de
Nomeação para o cargo das minas, “Por ser muito capaz nesta ocupação, de que eu o
julgo benemérito, pelas experiencias que eu tenho do seu zello, experiencia e
actividade e bom procedimento”. Vale destacar que as jornadas de descobrimento às
minas de salitre no sertão da Jacobina foi realizada às custas de seus escravos,
criados, cavalos.185
É interessante notar que, embora Pedro Barbosa Leal fosse recompensado com a
quantia de cento e cinquenta mil reis para a administração da fábrica salitre, o descobrimento
da jazida foi feito amparado com fundos próprios:
D. Rodrigo da Costa. Sua Magde. que deus guarde foy servido resolver que as
fabricas de salitre que assentou Dom Joam de Lancastro nos dsitrictos da capitanya
da Ba. não só se conservem mas que se procurem augmentar, facilitando os meios de
sua authoridade e melhora das ditas fabricas pello interesse que nisso poderá ter a
faza. Real...e importância de que... hum gênero tam necessário pa. a defença.187
183
Ibidem, pp. 134-135.
184
Katia Mattoso expõe que as atividades mineradoras foram importantes para colonização dos sertões: “um
terceiro exemplo é demonstrativo de como a atividade mineradora podia abrir uma região à colonização.
Partindo de Salvador em 1696-1697, o baiano Pedro Barbosa Leal explorou a serra dc Jacobina, ali encontrando
salitrc e ametistas. Nomeado governador da fábrica de salitre em Curaçá [...].”. MATTOSO, Katia M. de
Queirós. Bahia, século XIX: uma província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 75.
185
Ibidem, p. 7.
186
ANNAES do Archivo Publico e do Museo do Estado da Bahia. Salvador: Imprensa Official do Estado, v. VI e
VII, ano IV, 1920, p. 353.
187
Ibidem, p. 354.
97
são claramente indicadas com as possíveis quantias que poderiam ser angariadas com os
excedentes gerados após a execução do projeto.
De acordo com Carrara Jr. e Meirelles, esses estabelecimentos produziram muito
pouco, chegando apenas a 2.550 kg de salitre. 188 Em razão da baixa produtividade e os altos
custos de transporte do produto até o litoral fizeram com que a Coroa interrompesse o
incentivo às fábricas. Nos Montes Altos, em 1702, afirma Lemos Britto em Pontos de partida
para a História Econômica do Brasil (1939) que “extrahiram-se della 170 arrobas.”189
No ano de 1701, a atividade realizada por Gaspar dos Reis Pereira foi um dos últimos
empreendimentos salitreiros antes do abandono dessa indústria na primeira metade do
setecentos:
esta instalação ficava no “campo dos Aflitos”, onde hoje se situa o quartel do
Comando Geral da Policia Militar da Bahia. Originalmente, no local havia uma Casa
do Trem, substituído pelo prédio ilustrado, construído em 1705. Depois o edifício
voltaria a ser usada como Casa do Trem.192
188
CARRARA Jr.; MEIRELLES. op. cit., 1996, p. 135.
189
BRITTO, Lemos. op. cit., 1939, p. 152.
190
CARRARA Jr. Ernesto; MEIRELLES, Helio. op. cit., 1996, p. 135.
191
ANNAES do Archivo Publico e do Museo do Estado da Bahia. Salvador: Imprensa Official do Estado, v. VI e
VII, ano IV, 1920, pp. 355-356.
98
Por esse trecho, é possível inferir que a fábrica de pólvora chegou a ser construída, e
sua conclusão ocorreu em 1705. Até 1715, esteve à frente do empreendimento o perito
Manoel da Costa. No entanto, é provável que a operação de fabrico, que perdurou até o fim de
1730193, tenha sido esporádica194, pois a produção do salitre foi interrompida por ordens de D.
João V.195 Na Figura 5 podemos notar a planta da fábrica de pólvora da cidade da Bahia
encontrada no livro Arquitetura colonial baiana: Alguns aspectos de sua história (2010), de
Robert C. Smith.
192
CASTRO, Adler H. Fonseca de. A pré-indústria e governo no Brasil: iniciativas de industrialização a partir do
arsenal de guerra do Rio de Janeiro. 2017. 633 f. Tese (Doutorado em História Comparada) – Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Instituto de História, p. 11.
193
Considerarmos também as reformas pelas quais a casa da pólvora passou entre a sua fundação até o fim de
suas operações em 1730, quando Afonso Luiz da Silva entregara a fábrica ao almoxarife Francisco de Torrez
Bayam. Cf. SMITH. Robert C. Arquitetura colonial baiana. Alguns aspectos de sua história. Salvador:
EDUFBA, 2010.
194
É possível deduzir este ponto se considerarmos, por exemplo, a carta do vice-Rei, Visconde de Sabugosa, em
1726, solicitando o provimento de canhões, morteiros e pólvora. Cf. AHU, Projeto Resgate - Bahia Avulsos
(1604-1828), cx. 27, doc. 2439, 28 de junho de 1726.
195
Entre 1706 e 1739, a extração do salitre não foi apontada nos livros de registros oficiais. Assim sendo, o
fabrico deste elemento provavelmente ficou reduzido a produções pontuais para usos diversos do dia a dia dos
habitantes da capitania, sobretudo para uso doméstico. De acordo com Ignacio Accioli Silva, os registros oficiais
indicam que a autorização de particulares para a exploração do salitre foi indicada apenas em 1739, sem
qualquer subsídio por parte do Estado: “não apparece nos livros desta secretaria outra alguma ordem a este
respeito até o anno de 1739, expedindo-se então uma provisão pelo conselho ultramarino, datada em i3 de
outubro do dito anno, com que S. M.,por resolução sua de ia de julho daquelle anno, foi servido conceder licença
a Manoel Fernandes Lavado, João Baptista Rodrigues, e mais sócios pela experiencia, que adquirirão nos sertões
do estado do Brasil , para abrirem em diversas paragens delles, minas de salitre,que tinhão descoberto, com os
privilégios e condições declaradas na mesma provisão, sem que igualmente conste de resultado desta
sociedade.”. SILVA, Ignacio Accioli de Cerqueira e. Memórias historicas e políticas da província da Bahia.
Tomo I. Bahia: Typ. do Correio Mercantil, de Précourt e C., 1835, p. 239.
99
Em meados de 1757, Roby de Barros foi incumbido de remeter ao Reino amostras das
nitreiras naturais dos Montes Altos, embora não tenha realizado ele mesmo as prospecções 196,
que foram feitas pelo mestre de campo Pedro Leolino Mariz 197, pelo engenheiro Manoel
Cardozo de Saldanha e pelo tenente de infantaria Francisco da Cunha de Araujo. Em 1758, os
resultados das análises empreendidas encaminhados para Portugal foram auspiciosas. Ainda
durante a década de 1760, as ordens régias foram categóricas para se intensificarem as
pesquisas do salitre na comarca de Jacobina:
Como resultado desses estudos, em 1761, por ordem régia, foi criada uma fábrica nos
Montes Altos, quando foram remetidos ao Brasil os seguintes utensílios sob os cuidados do
tenente Luiz de Almeida Pimentel:
constava esse laboratório, para cuja direcção chegou tambem de Lisboa, o major
engenheiro Luiz de Almeida Pimentel, vencendo soldo dobrado desde o dia do seo
embarque, do seguinte: 16 caldeiras grandes de cobre, para purificar o salitre, com o
peso todas de 123 arrobas e 18 libras; a caldeiras mais que pesavão 33 arrobas e 15
libras; as celhas de páo para alixivia; 1 celha grande de cobre de peso de 58 libras,
para fazer correr o salitre depois dc cozido; 4 escumadeiras grandes com o peso de
15 libras, dois cabaços de cobre, para tirar o salitre das caldeiras, pesando 13 libras;
4 ferros de cortar o salitre, 4 maxadimhas; 7 colheres de ferro; 4 baldes de páo; 1
crivo de latão; 3 taxas grandes de cobre, que pesavão 42 libras; 2 ferros de moer o
salitre nas caldeiras; 2 chaminés de ferro e seos pertences; 12 pás grandes de
madeira; 1 caixão de pedra hume com 150 libras; outro de gomma de peixe com 1
arroba; 24 peneiras de pano; 2 pás; 6 cabaços pequenos de cobre com 22 libras, e 6
vassouras de cabello.199
196
Cf. SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do distrito diamantino. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 1976.
197
Pedro Leolino Mariz, já no ano de 1755, havia sido indicado para analisar o salitre dos Montes Altos, como
aponta documento do Arquivo Histórico Ultramarino. Em carta, Leolino Mariz justifica o atraso nas análises.
Entre as justificativas para o atraso, o pouco tempo disponível e o inverno foram argumentos para o não
cumprimento das ordens. Cf. AHU, Projeto Resgate - Minas Gerais, cx. 69, doc. 76, 11 de maio de 1756.
198
SILVA, Ignacio Accioli de Cerqueira e. op. cit., 1835, p. 229.
199
Ibidem, pp. 229-230.
101
concessão de subsídios pagos pelos cofres régios. A Tabela 1 apresenta os trechos do caminho
onde deveriam ser abertos atalhos, sua distância e os custos para a Fazenda Real. O transporte
também foi calculado de acordo com a disponibilidade de alguns indivíduos cujas
propriedades se encontravam no trajeto até o porto de São Félix. A Tabela 2 lista o nome dos
particulares responsáveis pelo transporte do salitre a partir de suas propriedades nos arredores
dos Montes Altos e o valor a ser pago a cada um.
102
Tabela 1 - Propostas de atalhos exaradas pelos comissários designados pela Coroa portuguesa, no
ano de 1757, para escoar o salitre dos Montes Altos
Local Atalho - Distância total Custos adicionais à Fazenda Real
Montes Altos até 6 léguas Sem custos adicionais
fazenda do Pé da
Serra
Fazenda do Pé da 7 léguas Sem custos adicionais
Serra até a
Fazenda do
Ambuzeiro
Rio das Contas Até 6 léguas 100$000 rs.
o Sincurá
Fazenda Manoel 13 léguas 200$000 rs.
José d’Ermon até a
Fazenda das Flores
(Com entreposto
na fazenda da
Palma)
Cabeça do Touro 7 léguas Sem despesas
até fazenda Boa-
Vista
Total de gastos adicionais para a Fazenda Real com os atalhos: 300$000 rs.
Fonte: SILVA, Ignacio Accioli de Cerqueira e. op. cit., 1835, pp. 211-212.
Não menos importante para realizar os ensaios para a instalação de fábricas nos
Montes Altos foi a questão do conhecimento adequado para a realização de todas as tarefas
relativas ao processo de extração e transporte. Os chamados “homens peritos” eram
frequentemente solicitados para os auxiliarem nessas atividades. Da mesma forma, os
instrumentos adequados eram constantemente requisitados para o empreendimento, como
alguns vistos na Figura 4.
Pode-se apurar pela leitura da documentação relativa à fábrica dos Montes Altos que
três grandes pontos de estrangulamento ainda dificultavam a instalação de fábricas de salitre,
na segunda metade do século XVIII, na capitania da Bahia: o transporte, os instrumentos
necessários para as atividades mineradoras e a falta de peritos especialistas na obtenção do
nitrato de potássio na sua forma disposta nas nitreiras naturais.
Em relação ao transporte, como dito, o corpo dos examinadores da década de 1750
listou as ofertas disponíveis para as “emendas de caminho”, ou seja, os locais que permitiriam
reduzir o tamanho do caminho através de atalhos construídos dentro das fazendas e dos sítios
com o intuito de escoar a produção até o porto de São Felix, apontando os recursos
necessários para a empreitada.
No que se refere aos instrumentos que não eram manufaturados no Brasil, caberia à
Coroa portuguesa subsidiar os custos para que estes meios de produção chegassem à América
portuguesa, o que foi assumido pela Coroa quando da construção das duas fábricas de salitre
nos Montes Altos.
Já em relação aos homens que possuíssem o conhecimento necessário para a obtenção
do salitre, os primeiros peritos eram membros das forças militares, geralmente engenheiros
militares, a exemplo de Alpoim, que recebiam treinamento adequado para tanto. Nas últimas
décadas do século XVIII, os naturalistas luso-brasileiros completaram esse quadro.
D. Rodrigo de Sousa Coutinho foi o ministro encarregado de arregimentar o corpo de
experts, bem como de articular uma das bases importantes para a efetivação desse processo,
qual seja a divulgação dos conhecimentos técnicos através de publicações 200 que orientassem
metodicamente seus interlocutores.
200
Entre os empreendimentos editorais que apontavam para este caminho estão as traduções de panfletos que
orientassem a produção do salitre. Entre esses panfletos que foram traduzidos exatamente por Frei Veloso, vale
mencionar novamente, está o Extracto do modo de se fazer o salitre nas fabricas de tabaco da Virginia, de
Jeremiah Brown. Mariano Veloso também traduziu a Memoria, ou extracto sobre o Salitre: trasladada do manual
do artilheiro de Theodoro D'Urtubie, em 1797.
104
201
PORTARIA de 18 de maio de 1799. In: O Auxiliador da Industria Nacional, Rio de Janeiro, v. 13, pp. 77-85,
1845, p. 77.
105
abrir húma estrada de 60 legoas dé extensão parecerá a primeira vista huma grande
empreza, quando realmente não he, e se não houvessem outras provas bastaria dizer-
se, que a totalidade do nosso Brasil está cortada de estradás muitas dellas de 300,
400, e 500 legoas de comprido, feitas pelos poucos habitadores de hum tão vásto
terreno, sem socorro directo da parte do Governo; e quando agrade a S. A. Real
mandar abrir a.estrada de que se trata, he mui provável qué caiba a S. A. Real a
gloria de fazer o primeiro beneficio d'esta natureza aos povos, que habitão o interior
do Brasil, tão próprio pára a cultura do gado, genero de industria, a que só podem
recorrer pela sua posição, é feliz constituição do terreno e clima. 204
202
Ibidem, p. 78.
203
Ibidem, p. 79.
204
Ibidem, p. 79.
106
[...] dando-se-lhes alimentos como recompensa de seus trabalhos [....] e como recompensa de
seus trabalhos, alguns instrumentos de ferro [...]”205.
O trabalho forçado dos nativos e africanos foi apresentado como indispensável para a
realização do empreendimento. Abertas as estradas e instalados os laboratórios, caberia ao
Estado trazer para trabalhar nas instalações “[...] cazaes de pretos que possam adaptar-se, seja
na manipulação do salitre, seja em procurar a subsistência das pessoas [...]” 206 Não menos
importante era a questão dos instrumentos necessários para a manufatura. José de Sá
Bittencourt especifica que o cobre era necessário para fazer as caldeiras. Em relação a este
ponto, também aponta que o custeio deveria partir do governo português. A disponibilidade de
animais habilitados com o transporte de cargas e o fornecimento de carros completaram as
diligências elencadas pelo naturalista.
Consideradas essas disposições, detalhadas na Memória que encaminhou à pasta da
Marinha e dos Domínios Ultramarinos, José de Sá defende que o salitre já formado pela
natureza cobriria, com juros, todos os gastos que o governo haveria de empregar. No entanto,
informa que, depois de realizar várias pesquisas, “não achei minas de salitre, porque as não
há, nem é possível que existão. Achei na grande extensão de 30 legoas uma rocha muito
propria para aformação do Nitro [...]”207. Levado em conta a disposição atmosférica e as
intempéries, havia então “[...] a melhor baze para a formação de Nitreiras artificiaes”208.
Ele reitera que, para o êxito da empreitada, necessariamente, os gastos deveriam ser
custeados pelo Estado e que os frutos colhidos dos seus resultados, seguindo-se as orientações
que expôs na sua Memória, tornariam compensadores todos os investimentos. Além disso,
informa que o emprego da mão de obra escrava reduziria os custos de produção. Fica evidente
que um dos fatores de produção para o exercício da manufatura do salitre era o trabalho
escravo. Esses trabalhadores ficaram conhecidos “escravos do fisco”, indivíduos alocados em
empreendimentos régios, tal como aqueles encontrados na Real Fábrica de Ferro de São João
de Ipanema, em São Paulo.
José de Sá Bittencourt acrescenta que um dos grandes obstáculos é “[..] convencer aos
capitalistas, para que hajão de abraçar um gênero de industria [..]”209 e sugere, para levantar
205
Ibidem, p. 80.
206
Ibidem, p. 80.
207
Ibidem, p. 81.
208
Ibidem, p. 81.
209
Ibidem, p. 83.
107
2.4 Considerações sobre a Memória sobre a viagem do terreno nitroso dos Montes-Altos
210
Ibidem, p. 83.
211
Originalmente a escrita desta memória foi concluída em 1799.
212
ACCIOLI, José de Sá Bitancourt e. Memória sobre a viagem do terreno nitroso dos Montes Altos. O
Auxiliador da Industria Nacional, Rio de Janeiro, v. 13, pp. 85-114, 1845, p. 85.
213
Ibidem, p. 85.
108
Para fazer suas análises, mapear os terrenos, assim como para verificar as produções
da terra, Bittencourt propõe se valer da “[...] Chymica, para dar de tudo uma exacta, e
circunstanciada razão do que observei [...]”214.
Entre os malogros apontados para assentar as bases da indústria do salitre no Brasil,
José de Sá considerou que ocorreu a falta de peritos para exploração do salitre, capazes de
analisar corretamente as terras nitrosas da colônia brasileira:
he verdade que os conhecimentos da natureza então erão muito poucos, e por isso os
primeiros enviados para este exame forão Legistas, ou Canonistas, ou totalmente
ignorantes, que não sabendo combinar as leis da natureza, nem conhecer o modo
como Ha obra, discorria cada hum conforme os seus principios, de que resultou o
atrazamento de huma obra tão interessante do Estado.215
Para sanar essas faltas, o proponente percorreu todas áreas possíveis dos Montes Altos,
inclusive aquelas que haviam sido relegadas nas primeiras tentativas de erigir fábricas. Como
bom conhecedor do composto químico, a partir das análises que realizou embasada na forma
como a ciência de seu tempo entendia esses elementos, José de Sá Bittencourt apresentou o
nitrato de potássio como composto pela junção do ácido nitroso e pelo alcáli fixo vegetal. Não
menos importante, explanou a terra onde é formado, resultado da mistura de substâncias e do
contato com a água, assim como com o ar atmosférico.
Embora tenha apontado no início da portaria de maio de 1799 que o salitre em sua
forma natural não apresentava grandes possibilidades de aproveitamento, quando levados em
consideração os investimentos necessários, Bittencourt sublinhou que “[…] no Brasil o ha
com abundância, principalmente nos Montes-Altos, cuja observação faz o importante objecto
da presente Memória.”216. Sobre a descrição geográfica daquele local, descreveu:
a serra dos Montes Altos, que não é outra mais do que hum ramo da grande serra,
que atravessa do Rio de Janeiro á Bahia, he situada entre a Villa do Urubu, o Arraial
do Castilhè da parte d'Oesle da Estrada geral, que segue da Bahia para Minas
ficando entre a Estrada de Minas, e a de Goyaz, que lhe passa á légua e meia
desviada; a sua direcção he de Leste Sueste para Oeste Noroeste, formando
différentes ângulos, cuja figura representa huma grande Fortaleza com guaritas
naturaes em alguns ângulos, formando por cima huma bateria plana, sendo para
cima de vinte legoas pela face do Leste, aonde ella forma a muralha com dous
filoens encarpados huns sobre os outros, que parecem duas serras huma por cima da
outra, deixando ás vezes algum espaço de terreno entre hum e outro Filão, porem
Íngreme bastante.217
214
Ibidem, p. 86.
215
Ibidem, p. 86.
216
Ibidem, p. 88.
217
Ibidem, p. 88.
109
muitas lapas não abundão de salitre por dous princípios, ou por muito altas, porque
então lhes passa pelo meio o Filão, que o produz, não tendo humidade alguma para
desenvolver os seus princípios, e só no tempo das chuvas, quando vem tangidas do
Norte, que então por demaziadas, farão destruir os seus princípios, e deste modo em
vez de cooperarem para sua formação, o arrastarão com demaziada rega, o deixando
as terras estereis [...].221
Bittencourt se queixava que a falta de homens brancos nos Montes Altos era um dos
fatores do abandono pela qual a região passara, e nessa crítica deixou subtendido que também
218
Ibidem, p. 89.
219
Ibidem, p. 89.
220
Ibidem, p. 96.
221
Ibidem, pp. 98-99.
110
o governo deveria ofertar um corpo de oficiais ligados ao aparato de justiça para que os
empreendimentos pudessem lograr êxito.
Como apontamos anteriormente, o naturalista propôs duas formas de controle das
possíveis fábricas, ou pelo Estado ou pelas companhias. Nos dois casos sugere que deveriam
ser observados dois pontos que ponderou indispensáveis, quais sejam o da extração e o da
exportação. Em relação à extração, defendeu que não se empreguem jornaleiros e sim pessoas
em situação de escravidão. Entre as razões para essa sugestão, argumentou que seria mais
oneroso ao Estado pagar jornaleiros, além do que tiraria esses trabalhadores de outros ramos.
Menos oneroso seria importar escravos de Benguela e Moçambique, pois os custos com seu
vestuário e comida também seriam menores. Para ele, a mão de obra escrava deveria abranger
“os mesmos officiaes de pedreiros, carpinteiros, ferreiros, caldereiros, cavouqueiros, e oleiros
devem; ser da mesma qualidade pela mesma razão [...]”222.
Em relação à exportação, primeiro levou em consideração a questão do transporte do
salitre. O transporte pelo rio São Francisco seria muito interessante se não houvesse os
perigos e os incômodos inerentes a esse trajeto, como o emprego de bestas até referido rio e o
longo percurso de 200 léguas até a cachoeira de Paulo Afonso, sendo que, desse ponto, outras
baldeações seriam necessárias. Para piorar, esse caminho ficava interrompido no período das
inundações, que eram constantes. Havia ainda um caminho de terra, pela estrada de Peruasú,
que possuía cerca de 180 léguas de extensão, mas que deflagrava problemas de insalubridade
devido às inúmeras moléstias que atacavam aqueles que se aventuraram por desse trajeto.
Para solucionar esse problema, José de Sá Bittencourt defendeu a abertura de um caminho
alternativo:
222
Ibidem, p. 107.
223
Ibidem, p. 109.
111
que foi também praticada nos centros de demanda europeia setecentista, demonstra a
formação de uma manufatura do nitrato de potássio filtrado pelo controle central português no
que diz respeito aos seus elementos de demanda interna para o escoamento da produção.
Embora a produtividade contribuísse com o êxito da empresa, o objetivo principal era o pleno
atendimento dos interesses imediatos do Estado português, pois, era parte substancial do
arsenal armamentista das nações do período. Vale lembrar que José Vieira Couto recomendou
a instalação de fábricas de pólvora próxima ao Monte Rorigo.
O caso das propostas apresentadas pelos naturalistas luso-brasileiros no sentido de
abrir nitreiras artificiais movimentam, pois, não apenas um aparato instrumental necessário à
sua realização, mas também o deslocamento de experts para monitorar os procedimentos de
instalação e de execução dos trabalhos. O exercício da manufatura do salitre pode ser
compreendido para além de uma complementariedade de um setor exportador, mas na
cooperação que eliminava algumas partes intermediárias que eram usuais na agroindústria e
na exploração aurífera. Coube ao Estado português, como proposto por José de Sá Bittencourt
ser o grande realizador de tal empreendimento.
O momento da redação das Memórias sobre o salitre é sintomático para refletir a
maneira como a metrópole se relacionou com a colônia, no que diz respeito ao beneficiamento
de seus produtos naturais. Seu objetivo principal era manter as colônias ultramarinas sob sua
égide. Os meios utilizados para instalar uma manufatura química na América portuguesa
reforçam que a metrópole não poderia, possivelmente no período mais crucial que foi o do
esgotamento aurífero e da mudança do eixo da dinâmica econômica para os países cuja
industrialização progressivamente tomou conta dos mercados, abrir mão de suas produções
coloniais.
Embora tenha sido o Estado o monopolizador das produções do salitre, ou da intenção
de produzi-lo em larga escala sob a tutela dos naturalistas, parece evidente a forma como o
interesse bélico de Portugal determinou a necessidade de controle das fabricações coloniais
estratégicas. Pelo alto valor do nitrato de potássio, a extração desse produto na Bahia e em
Minas Gerais recaia sobre o erário português.
A proposta da instalação de fábricas de salitre na Bahia e em Minas Gerais revela
como a dependência dos recursos brasileiros esgarçava os limites impostos pelo pacto
colonial. Isso se deu, em síntese, porque a América portuguesa não poderia mais participar
como mera exportadora de matérias-primas dentro do circuito Brasil-Portugal, o que exigia
114
o que há, portanto, é uma única totalidade, ou melhor, um único processo em que o
“sentido” e os rumos são animados pelas contradições que animam as economias
metropolitanas. Se economia colonial e economia metropolitana são faces da mesma
moeda, empresa colonial e manufatura tomada (tomada como a estrutura produtiva
que apanha o “sentido” da marcha rumo ao “capitalismo industrial”) também o
são.224
para se poder mais algumas noções desta descoberta, se faz necessário que V. Exa.
ordene ao dito juiz de fora, louvando-lhe no Real nome de S. M. a efficacia e zelo,
comque tem servido, que procure examinar, e fazer cavar superficialmente o terreno
em que o dito cobre foi achado, afim de ver se ha indicios de alguma mineral mesmo
de cobre ou de ferro.228
numa evidente superficialidade pela qual os minérios eram coletados, o que denota também a
ausência de perícia que marcava o estudo dos envolvidos. Como sustenta Alfredo Vieira
Pimentel:
estando o juiz de fora da caxoeira com dois meses de tempo p a. acabar este lugar e
desejndo V. Exa. saber […] se alem desse cobre virgem descoberto se poderá achar
maior porção, e averiguar quanto he possível a sua origem e se nos montes […]
existem minas do cobre pyriticoso e de ferro, como he mto. Provavel […]. 232
230
Ibidem, p. 414.
231
AHU, Projeto Resgate - Bahia Eduardo de Castro e Almeida (1613-1807), cx. 106, doc 20656, 7 de julho de
1800.
232
AHU, Projeto Resgate - Bahia Eduardo de Castro e Almeida (1613-1807), cx. 60, doc. 11460, 28 de agosto de
1782.
117
233
AHU, Projeto Resgate - Bahia Eduardo de Castro e Almeida (1613-1807), cx. 60, doc. 11463, [s.d] 1782.
Possivelmente as amostras citadas por Domingos Vandelli sejam as da leva que D. Affonso Miguel de Portugal
havia enviado à Metrópole.
234
Cf. AHU, Projeto Resgate - Bahia Eduardo de Castro e Almeida (1613-1807), cx. 106, doc 20656, 7 de julho
de 1800.
235
Ibidem.
118
236
Cf. CARMO, Maiara Alves. Rerum novus nascitur ordo: a trajetória de Francisco Agostinho Gomes (1769-
1842). 2018. 167 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas.
237
Cf. MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit., 1958.
119
lembra-me que V. Excia. me disse, não há muito tempo, que havia um particular na
Bahia, se bem me recordo um boticário, que pedia para o extrair um privilégio
exclusivo; guarde-se V. Excia. de favorecer semelhante emprêsa, por quem é lho
rogo, pois que como V. Excla. bem sabe as minas de todo gênero fazem uma das
exceções dos objetos administráveis, e se por algum tempo florescem arruinam-se e
decaem logo, postas nas mãos de particulares e dirigidas por êles.238
A recomendação de Manuel Ferreira nos revela como foi usual a postura entre os
naturalistas em fundamentar as atividades chaves para a exploração econômica sob a tutela de
estudiosos egressos dos centros acadêmicos portugueses. A falta de projetos relativos à
instalação de uma indústria metalúrgica no Bahia abre a hipótese da falta de naturalistas para
apoiar a exploração do minério de ferro.
Embora não sejam encontrados registros de sua passagem pela Universidade de
Coimbra, Agostinho Gomes esteve imerso nos assuntos que eram de interesse das reformas
econômicas que entraram nas pautas dos administradores, mormente para o melhoramento da
agricultura e das extrações mineralógicas.239 Uma das chaves para reconhecer seu interesse
pelas ciências daquele período é notar que o religioso era dono de uma ampla biblioteca.
Francisco Gomes era dono da mais completa biblioteca da Bahia. 240 Em 1801, o religioso
voltou de Portugal à Bahia com um considerável número de livros, sendo que, segundo
Maiara Carmo, alguns deles eram títulos proibidos pela Real Mesa Censória:
trouxe na bagagem 356 títulos de livros, com autorização da Real Mesa Censória -
alguns deles, inclusive, constavam na lista de censura da Real Mesa Censória. Os
assuntos eram os mais diversos: havia obras sobre minérios, botânica, animais,
política, agricultura, indústria e economia, áreas de conhecimento que muito lhe
interessaram no início do século XIX e que nos permite vislumbrar aspectos de sua
personalidade.241
Portador de uma miríade obras dos mais variados temas que urgiam naquele período,
Agostinho Gomes era versado nos temas metalúrgicos e mineralógicos, cujo conjunto dos
títulos nos revelam o seu interesse nesses temas:
É notável, destarte, que o religioso tenha sido mais um dos intelectuais incorporados
pela administração portuguesa, no caso por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, a participar do
projeto de reformas do Reino. Era mais interessante aos portugueses ter Agostinho Gomes
como colaborador desse projeto de reforma econômica, assim como outros intelectuais
implicados em outras sedições e inconfidências. Vale ressaltar que Agostinho Gomes
mantinha, ao que indica a documentação, boa relação com D. Rodrigo de Sousa Coutinho.
Nesse sentido de proximidade, é possível atestar, em carta particular datada de 1801 que
Francisco Agostinho parabeniza D. Rodrigo pela nomeação do último como ministro do Real
Erário.243
Agostinho Gomes fazia parte do circulo de estudiosos que, de certa forma, atendeu os
anseios da Coroa, mas que possivelmente visou conciliar os seus interesses particulares ao
passo das reformas econômicas da capitania da Bahia. Sua situação em relação ao processo
sedicioso em que foi implicado no ano de 1798 o colocava como indivíduo pela qual o Reino
português pretendeu subsumir ao projeto reformista utilitário:
é possível também que Francisco Agostinho Gomes houvesse feito a proposta para
exploração das minas com o objetivo de retirar sobre si qualquer suspeita de
“inimizade” com a Coroa, colocando-se, através do projeto, à disposição para servir
ao Império. A proposta da exploração das minas de ferro e cobre, feita por Francisco
Agostinho Gomes, atendia aos novos modelos econômicos aplicados no Império
Português.244
242
Ibidem, p. 77.
243
Cf. AHU, Projeto Resgate - Bahia Eduardo de Castro e Almeida (1613-1807), cx. 116, doc. 22948, [s.d.]
1801.
244
CARMO, Maiara Alves. op. cit., 2018, p. 75.
121
conservála, pela excessiva carestia a que tem sahido estes metaes tão necessários […]” 245. De
acordo com o requerente, era mais do que necessário a busca desses metais em respostas as
contingências que urgiam no momento “[…] em que a Inglaterra acaba de prohibir a sahida de
todo o seu cobre […]”246.
A princípio, como é possível notar em carta régia de 12 de julho de 1798 247, a
companhia proposta por Gomes fora bem recebida por parte da Coroa e de sua administração
direta. Um empreendimento desse tipo era interessante à agricultura, artes e navegação, ao
passo que o ferro era um produto que onerava sobremaneira as atividades citadas e, portanto,
era necessário substituir a importação desse elemento tão importante.
Para que a companhia fosse autorizada, as recomendações régias recomendaram que
deveriam ser feitas análises prévias nos terrenos pleiteados por um magistrado e um mestre de
artilharia. Em averiguado e atestado a qualidade dos minérios encontrados nos terrenos
solicitados pelo suplicante, a Coroa também, da mesma forma que aconteceu nos
empreendimentos localizados na capitania de Minas Gerais, permitiu a contratação de um
corpo de especialistas estrangeiros para auxiliar no percurso de manipulação do ferro: “que
poderá a Companhia vir de fôra do Reino todos os homens hábeis, que julgar necessario para
os trabalhos das minas […]”248. Agostinho Gomes havia suplicado junto à Coroa as seguintes
localidades: […] o de minas de cobre da Serra da Borracha; todo o lugar onde elle se
descobrir na enseada de Vasa-barris; o de minas de Cobre da Cachoeira; o de minas de ferro
de Tapicurú e as que se acharem nas vizinhanças na mesma Serra da Borracha […]249.
Vale destacar que, para a que os trabalhos da companhia fossem realizados, caberia a
Coroa garantir o produto das matas adjacentes a fim de dar os insumos necessários à
fabricação do carvão. Notamos, mais uma vez, como era importante reservar os recursos
necessários para a realização dos trabalhos metalúrgicos, no caso, o carvão que era o
combustível usual para o aquecimento dos fornos e, portanto, na redução do minério.
Outro ponto que é necessário ressaltar sobre a localidade pleiteada por Agostinho
Gomes é que foi de feição de sesmarias. Deste modo, o perfil de análise utilizada nesses lotes
de terras cedidos pela Coroa mantinham a característica que demandava os cabedais dos
245
Fundação Biblioteca Nacional, BNdigital. Carta régia ao governador e capitão general da Bahia, Fernando
José de Portugal, sobre a proposta, em cópia anexa, de Francisco Agostinho Gomes, concernente à exploração
das minas de ferro e cobre daquele estado. II-33,34,20 – Manuscritos. 12 de julho de 1799.
246
Ibidem.
247
D. JOÃO VI. Carta Régia. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 4, pp.
403- 408, 1842.
248
Ibidem, p. 405.
249
Ibidem, p. 406.
122
Desse modo, Fernando José de Portugal foi autorizado pelo príncipe regente a atender,
em 1799, os pedidos de concessão ao padre Agostinho Gomes com algumas recomendações
para que empresa alcançasse benefícios tanto para a Fazenda Real quanto para o andamento
dos interesses econômicos mantidos na colônia. Conforme ofício de 12 de julho de 1799:
que além dos sobreditos concedidos terrenos pedidos, que lhe serão doados, em
quanto trabalharem as mesmas Minas, será permittido a companhia arrematar em
Praça publica em preferencia tanto pelo tanto a qualquer outro lançador as mattas,
que a mizericordia possui nos destricto da Villa da Cachoeira, no cazo que esta seja
obrigada a alienallas, ou as venda voluntariamente: que se lhe vendera toda a
polvora de que se necessitarem as Minas pelo preço que se ajustar, e que será,
aquelle, a que a mesma sahir a Real Fazenda posta na cidade da Bahia. Que a
companhia será izenta de pagar direitos, não só de ferro, aço e enxofre de que se
necessitar para o trabalho das Minas, mas de todos os escravos até o numero de dois
mil, com tanto porem que sejão empregados nos ditos trabalhos. Que igualmente
será izento de todo e qualquer direito o ferro e cobre extrahidos destas Minas por
espaço de dez annos, e findo este termo, ficará a companhia obrigada a pagar a
Minha Real Coroa dez por cento do producto liquido, que tirar destas Minas de
cobre e de ferro […].252
250
CARMO, Maiara Alves. op. cit., 2018, p. 78.
251
Fundação Biblioteca Nacional, BNdigital. Carta régia ao governador e capitão general da Bahia, Fernando
José de Portugal, sobre a proposta, em cópia anexa, de Francisco Agostinho Gomes, concernente à exploração
das minas de ferro e cobre daquele estado. II-33,34,20 – Manuscritos. 12 de julho de 1799.
252
AHU, Projeto Resgate - Bahia Avulsos (1604-1828), cx. 213, doc. 15045, 12 de julho de 1799.
123
253
D. JOÃO VI. Carta régia em que se dirigem diversas instrucções ao capitão general da capitania da Bahia,
Francisco da Cunha Menezes. Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 26, pp. 235-
241, 1916, p. 239.
124
254
AHU, Projeto Resgate - Bahia Eduardo de Castro e Almeida (1613-1807), cx. 106, doc 20656, 7 de julho de
1800.
255
Ibidem.
256
Ibidem.
125
257
AHU, Projeto Resgate - Avulsos (ULT), cx. 12, doc. 968, julho de 1799.
258
Cf. CALÓGERAS, João Pandiá. op. cit., 1904.
259
Cf. CARMO, Maiara Alves. op. cit., 2018.
126
Capítulo 3
260
Como aponta Neldson Marcolin, a siderurgia estava em pleno concurso na Europa já no início do século XIX:
“nesse período a siderurgia já estava avançada na Europa, onde os altos-fornos eram feitos com base no
conhecimento científico acumulado nos últimos séculos.”. MARCOLIN, Neldson. Siderurgia na colônia. Revista
FAPESP, São Paulo, n. 209, pp. 86-87, 2013, p. 86.
127
261
CARVALHO, Pedro Sergio Landim de, et al. Minério de Ferro. BNDES setorial, Rio de Janeiro, n. 39, pp.
197-234, 2014.
262
Ibidem, p. 198.
263
Cf. Ibidem.
264
Ibidem, p. 199.
265
Cf. LANDGRAF, Femando José G; TSCHIPTSCHIN, André P.; GOLDENSTEIN, Hélio. Nota sobre a
História da Metalurgia no Brasil (1500-1850). In: VA RGAS, Milton. História da Técnica e da Tecnologia no
Brasil. São Paulo: UNESP, 1995, pp. 107-129.
128
relevante no sentido de se perscrutar sua história e produção nas Américas. Ele afirma que,
“para confirmar isto, basta dizer que o primeiro engenho de ferro montado na América foi no
Brasil, em São Paulo, em fins do século XVI, pois os de Jamestown, em Virginia, Estados
Unidos, são posteriores a 1607.”266 Entre as primeiras indicações da boa disposição do ferro
estão sublinhadas na carta do padre José de Anchieta, datada de 1554:
acresce também a isso que, como todas as orações e gemidos dos nossos Irmãos,
depois que aqui estão, se afadigam pedindo contínua e fervorosamente a Deus
Ótimo e Maximo que enfim se digne algumas vezes mostrar e descobrir algum
caminho em que para aqui se dirijam os gentios a receberem a sua fé, agora
finalmente se descobriu uma grande cópia de ouro, prata, ferro, e outros metais, até
aqui inteiramente desconhecida (como afirmam todos), a qual julgamos ótima e
facilima razão, de que já por experientia estamos instruidos.267
Em carta que data ao ano de 1535, D. João III emitiu as primeiras ordens para que, na
capitania de São Vicente, doada a Martim Afonso de Sousa, “[…] havendo nas terras da dita
capitania […] qualquer sorte de pedraria, aljofar, ouro e prata, coral, cobre, estanho e chumbo
ou outra qualquer sorte de metal, pagar-se-á a mim o quinto, do qual quinto haverá capitão de
seu redizimo [...]”268. Essas diretrizes apontam que a exploração inicial dos recursos locais
deveria ser iniciativa particular dos homens que possuíssem os recursos necessários para
empreitada desse perfil, cabendo apenas o pagamento à Coroa do quinto de tudo que se
produzisse nas conquistas.
O Tratado descriptivo do Brasil, publicado em 1587, indica as primeiras
movimentações para a manipulação do ferro na Bahia:
bem por culpa de quem a tem não ha na Bahia muitos engenhos de ferro, pois o elIa
está mostrando com o dedo em tantas partes, para o que Luiz de Brito levou
apparelhos para fazer um engenho de feito por conta de S. A. e ofliciaes d'este
mister; e o porque se não fez, não serve de nada dizer-se; mas não se deixou de fazer
por falta de ribeiras de agua, pois a terra tem tantas e tão capazes para tudo; nem por
falta de lenha e carvão, pois em qualquer parte onde se· os engenhos de ferro
assentarem ha disto muita abundancia. Tambem na Bahia, trinta leguas pela terra
dentro, ha algumas minas descobertas sobre a terra de mais fino aço que o de Milão;
o qual está em pedra sem outra nenhuma mistura de terra nem pedra; e não tem que
fazer mais que lavrar-se em vergas para se poder fazer obra com elle, do que ha
muita quantidade que está perdido sem haver quem ordene de o aproveitar; e d'esta
pedra de aço se ser· vem os indios para amolarem as suas ferramentas com ella á
mão.269
266
LIMA, Heitor Ferreira. Formação Industrial do Brasil (período colonial). Rio de Janeiro: Fundo de Cultura,
1961, p. 114.
267
ANCHIETA, José de. Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1933, p. 49.
268
D. JOÃO III. Forais da capitania de S. Paulo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de
Janeiro, Tomo IX, pp. 467-473, 1871, p. 468.
129
269
SOUSA, Gabriel Soares. Tratado descriptivo do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia de João Ignacio da Silva,
1879, pp. 326-327.
270
Cf. LANDGRAF, Femando José G; TSCHIPTSCHIN, André P.; GOLDENSTEIN, Hélio. op. cit., 1995.
271
TAQUES, Pedro. Notícias das Minas de São Paulo e dos sertões da mesma Capitania. São Paulo: Livraria
Martins Editora, 1953, p. 33.
272
Pandiá Calógeras acrescenta que: “D. Francisco de Sousa, que já pesquisara minas durante sua primeira
missão como governador geral do Brasil e então auxiliara Gabriel Soares em suas mallogradas explorações,
voltou como governador das capitanias sulinas. Tratou de fomentar a fundação de pequenas forjas de producção
directa de ferro segundo o methodo catalão.” CALÓGERAS, Pandiá. Formação histórica do Brasil. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1938, p. 49. Essas mesmas minas foram entregues aos cuidados de Diogo
Gonçalves Laço em 1598.
273
As primeiras notícias que se deram da existência de minérios na capitania de São Vicente foram dadas a D.
João III pelo bispo Pedro Francisco Sardinha.
274
MARCOLIN, Neldson. op. cit., 2013, p. 86.
130
Fonte: LANDGRAF, Femando José G; TSCHIPTSCHIN, André P.; GOLDENSTEIN, Hélio. Nota sobre a
História da Metalurgia no Brasil (1500-1850). In: VARGAS, Milton. História da Técnica e da Tecnologia no
Brasil. São Paulo: UNESP, 1995, pp. 107-129.
[…] uma variação das primitivas forjas tradicionais, utilizadas desde que o homem
iniciou o trabalho em ferro, fornos de chão ou “fornos baixos”, processo milenar de
redução direta do minério por meio de carvão vegetal em fornos de pequenas
dimensões, em torno de um metro de altura. Composta por dois orifícios, o superior,
por onde é carregado o minério e o carvão, e frequentemente retirado o metal
reduzido, e o inferior, por onde sopra-se o ar e retira-se a escória.275
Em 1609, numa parceria entre Diogo Quadros, Francisco Lopes Pinto e Antonio de
Sousa foi estabelecido o controle sobre a fábrica de ferro de Santo Amaro 276, em Ibirapuera. É
importante notar que os três sócios já receberam pronta a estrutura de uma fábrica e não
erigiram uma nova instalação. Como bem observou Sérgio Buarque de Holanda,
275
FACIABEN, Marcos Eduardo. Tecnologia siderúrgica no Brasil do século XIX: conhecimento e técnica na
aurora de um país (o caso da fábrica de ferro de São João do Ipanema). 2012. 200 f. Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, p. 69.
276
É preciso lembrar que entre 1832 a 1935, Santo Amaro foi um município independente dentro do Estado de
São Paulo. Muitos dos autores aqui citados escreveram seus estudos durante esse período.
131
277
HOLANDA, Sérgio Buarque de. A fábrica de ferro de Santo Amaro. Digesto Econômico, Rio de Janeiro, n.
38, pp. 78-81, 1948, p. 79.
278
Cf. CALÓGERAS, João Pandiá. O Ferro (Ensaio de História Industrial). Revista do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo, São Paulo, v. 9, pp. 20-100, 1904.
279
Cf. MORAES. Frederico Augusto Pereira. Subsídios para a história do Ypanema. Lisboa: Imprensa nacional,
1858.
280
Entre os quais, podemos citar: SANTOS, Nilton Pereira dos. A fábrica de ferro de São João de Ipanema:
economia e política nas últimas décadas do segundo reinado (1860-1889). 2009. 181 f. Dissertação (Mestrado
em História) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas; PIZOL, Helton
de Bernardi. A fabricação do ferro no começo do século XIX em Ipanema no período de Hedberg e Varnhagen.
2009. 95 f. Dissertação (Mestrado em História da Ciência) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
281
Cf. ALFAGALI, Crislayne. Em casa de ferreiro pior apeiro: os artesãos do ferro em Vila Rica e Mariana no
século XVIII. 2012. 220 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas.
132
Fonte: LANDGRAF, Femando José G; TSCHIPTSCHIN, André P.; GOLDENSTEIN, Hélio. Nota sobre a
História da Metalurgia no Brasil (1500-1850). In: VA RGAS, Milton. História da Técnica e da Tecnologia no
Brasil. São Paulo: UNESP, 1995, pp. 107-129.
Conforme apontamos no parágrafo anterior, parte das forjas que foram instaladas
inicialmente na América portuguesa empregavam o “método catalão”, usando fornos
intermediários entre os baixos fornos e altos-fornos, valendo-se de carvão vegetal e de foles
elaborados a partir de peles de animais e de madeira, que eram aplicados para insuflar a
combustão, ou, como característica singular de tal método, também valiam-se das “rodas
d’água”, mecanismos hidráulicos que auxiliavam na formação da corrente de ar. 282 Vale
282
Cf. ZEQUINI, Anicleide. Arqueologia de uma fábrica de ferro: Morro de Araiçoba séculos XVI-XVIII. 2006.
223 f. Tese (Doutorado em Arqueologia) - Universidade de São Paulo, Museu de Arqueologia e Etnologia.
133
283
Cf. FERRAND, Paul. A industria do Ferro no Brazil (província de Minas Gerais). Annaes da Escola de Minas
de Ouro Preto, Rio de Janeiro, n. 4, pp. 167-188, 1885.
284
Conforme a descrição de Paul Ferrand, a planta da forja disposta na figura 9 é composta por “um forno de
quatro cadinhos (A). Uma a duas forjas de reaquecimento, semelhantes as nossas tendas de ferreiro (B). um
malho (C) movido por uma roda hydraulica (D). Duas trompas para mandar o vento, uma (E) aos cadinhos a
outra (F) à forja de reaquecimento. Duas bigornas (G e H) collocadas na proximidade da forja de reaquecimento
para o trabalho das peças delicadas. Finalmente, diversos utensílios, servindo para manejar as lupas e para o
acabamento das barras. O carvão de madeira é collocado ao abrigo da chuva, por baixo de um telheiro de
alvenaria (I). O minerio, que é trazido á medida das necessidades é posto em montes (M) na proximidade dos
cadinhos. Todos os telheiros se achão encostados á montanha a agua é trazida por um duplo canal de tábuas (L e
N) e se despeja de um lado na roda e na trompa (F) e do outro na trompa (E), cahindo depois em um canal de
vasão (PQ) que leva á torrente.”. FERRAND, Paul. op. cit., 1885, p. 169.
134
Essas investidas iniciais para a instalação dessas fábricas foram custeadas, quase na
totalidade, por fundos de particulares, caso das fábricas de salitre de fins do século XVII e
início do XVIII elencadas no segundo capítulo. Os administradores reais 285, em linhas gerais,
tiveram pouca participação.
Após extinção do contrato para o controle da fábrica de ferro de Santo Amaro e do
abandono das primeiras experiências da manipulação do ferro, ainda no século XVI, o
progressivo crescimento da plantation de cana-de-açúcar dominou, a partir do século
seguinte, as atividades produtivas na colônia. Ainda assim, em 1682, os irmãos Jacinto
Moreira Cabral e Pascoal Moreira Cabral e o frei Pedro de Sousa foram incumbidos de
averiguar o valor dos minérios em Biraçoiba.286 Segundo Calógeras:
a 2 de maio de 1682 mandou o Príncipe várias cartas autographas aos paulistas mais
ilustres da Capitania, afim de que elles se auxiliassem […]. E em 5 de Maio do
mesmo anno outra carta régia autorizava o alcaído mór Jacintho Moreira Cabral,
Martim Garcia Lumbria e Manoel Fernandes de Abreu a levantarem uma fábrica de
ferro em Arayçoba. Não se encontra nos documentos até hoje divulgados de ter sido
levado a effeito essa construção.287
a medidas imediatas para aumentar o volume de mão de obra escrava no setor e novas
técnicas de exploração foram empregadas.291
Não deixa de ser curioso que, apesar da capitania Minas Gerais possuir enorme
potencial para instalação de fábricas de ferro, devido às volumosas jazidas ali existentes, foi
em Biraiçoba, em 1765, que, novamente, foram estabelecidas tentativas para se fundir ferro
não como uma pequena indústria apêndice à outra de maior vulto, como eram os casos das
produções domésticas que podem ser verificadas ao longo do século XVIII, mas uma empresa
livre com intuito exclusivamente metalúrgico.292 A concessão da autorização concedida a
Domingos Ferreira Pereira não foi automática, pois justificava-se que os envolvidos não
tinham experiência nem conhecimento técnico necessário para a manipulação do aço. Os
pedidos para a contratação de mestres biscainhos visaram superar essas dificuldades, mas,
conforme afirma Pandiá Calógeras, não se sabe se a Coroa atendeu essas solicitações. É
possível que sim, pois a fábrica manteve-se em atividade até, aproximadamente, a década de
1780.293
294
Cf. FURTADO, Júnia F. Ciência, diplomacia e viagem: Dom Rodrigo de Souza Coutinho e o tour
mineralógico dos savants luso-brasileiros José Bonifácio de Andrada e Silva e Manuel Ferreira da Câmara
Bittencourt em Turim. In: MOTA, Isabel Ferreira da; SPANTIGATI, Carla Enrica (Org.). Tanto ella assume
novitate al fianco: Lisboa, Turim e o intercâmbio cultural do século das luzes à Europa pós-napoleónica.
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2019. pp.143-187.
295
FURTADO, Júnia Ferreira, Estudo crítico. In: COUTO, José Vieira. Memórias sobre a capitania das Minas
Gerais. Coordenação de Junia Ferreira Furtado. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, dez.1994, pp.32-33.
137
Portugal esteve envolvido, no início da segunda metade do século XVIII, com uma
curiosa experiência no fabrico de ferro em instalação de grande porte estabelecida no Reino
de Angola.296 A Real Fábrica de Ferro de Nova Oeiras foi um empreendimento liderado por
Francisco de Sousa Coutinho e revela as mesmas intenções das autoridades portuguesas de
caminhar para substituição das importações desse minério, sendo que o projeto pretendia
exportar para o Reino boa parte das produções da fábrica. Em outras palavras, os
administradores lusos estavam propensos, desde a década de 1760 a promover a indústria
metalúrgica dentro do Reino.
Apesar do corpo de técnicos que operaram as primeiras fábricas de ferro brasileiras ter
sido composto por número considerável de suecos e alemães, a exemplo da Real Fábrica de
Ferro de Ipanema, as primeiras movimentações para que se desenvolvesse uma siderurgia em
larga escala no Brasil estiveram circunscritas às pesquisas desenvolvidas pelos naturalistas
luso-brasileiros, entre os quais se destaca José Vieira Couto.
O objetivo de parte deste capítulo, portanto, é revelar a política metalúrgica que uniu a
administração portuguesa e os esforços dos naturalistas luso-brasileiros, visando o
aproveitamento dos recursos naturais dos domínios ultramarinos para sustentar a economia do
Reino como um todo. Não se trata de analisar, aqui, essas experiências em termos de fracasso
e ou de sucesso, como foi usual em algumas abordagens historiográficas do século XX
referentes ao tema.
Além disso, vale destacar, novamente, a questão da mão de obra escrava que esteve
envolvida na produção de ferro na colônia. Como apontou Crislayne Alfagali 297, no século
XVIII, foi dada preferência, por exemplo, às pessoas oriundas de Angola que, entre outros
motivos, constava o conhecimento na manipulação do minério de ferro nos seus locais de
origem, das quais eram fundamentais para o trabalho nas pequenas oficinas já instaladas na
capitania de Minas Gerais. A disposição de trabalhadores escravizados que recebiam jornais
ou mesmo dos chamados “escravos do Reino” foram recorrentes nas instalações implantadas
no Brasil no século XIX.
O processo de manipulação do ferro antes das viagens filosóficas empreendidas pelos
naturalistas luso-brasileiros na capitania de Minas Gerais e do estabelecimento das fábricas de
296
Cf. ALFAGALI, Crislayne. Ferreiros e fundadores de Ilamba. Uma história social da fabricação do ferro e da
Real Fábrica de Nova Oieras (Angola, segunda metade do século XVIII). 2017. 407 f. Tese (Doutorado em
História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
297
Cf. Ibidem.
138
ferro em média e grande escala298 ocorria em pequenas oficinas locais. Essa produção
doméstica, produzida nas oficinas ou tendas de ferreiros e ferradores, era feita a partir de
barras de ferro importadas da Europa e que, a altos custos, chegava aqueles locais. Como
sintetizou Alfagali:
298
Como é o caso da indústria que operava com alto-forno e que exigia um corpo técnico com um certo tipo de
especialização.
299
ALFAGALI, Crislayne. op. cit., 2012, pp. 70-71.
300
ALFAGALI, Crislayne. op. cit., 2012, p. 87.
139
europeias, que a siderurgia colonial estivesse em compasso com a Revolução Científica e com
a Revolução Industrial do final do século XVIII.
O círculo de pesquisadores ilustrados em torno de D. Rodrigo de Sousa Coutinho
defendia não apenas uma nova empresa exploradora das riquezas minerais na América
portuguesa, mas também uma reformulação da participação do Brasil no beneficiamento
desses mesmos produtos, o que se articulava dentro de um projeto político mais amplo de
equiparação da colônia e sua elite intelectual ao reino.301 Vale destacar que, para compreender
o movimento que modificou a busca do ferro no Brasil nas duas últimas décadas do século
XVIII, é necessário identificar os limites que o estabelecimento da indústria encontrou dentro
do escopo de reformulação da posição econômica colonial.
Entre esses limites, cabe ressaltar a falta de um corpo técnico preparado para atuar em
uma produção metalúrgica de cariz industrial. A mão de obra escrava, empregada na maioria
das atividades pregressas coloniais, dominava um saber fazer distante do referencial teórico
europeu,302 ao passo que portugueses lançaram mão dos mesmos trabalhadores para efetivar
esses projetos.
É importante também mencionar as mudanças que ocorreram com a transferência da
Família Real para o Brasil. Então, findaram abertamente alguns dos elementos fundantes do
sistema colonial, como o exclusivo metropolitano, e novas perspectivas abriram-se no sentido
da organização econômica brasileira, muitas delas relativas à matriz industrial. Formalmente,
os recursos legais que bloquearam, ao menos teoricamente, a instalação de fábricas
metalúrgicas foram liquidados a partir de 1808. A Real Fábrica de Ferro do Morro do Pilar e a
Real Fábrica de Ferro de São João do Ipanema são exemplos que emergiram desse processo.
É interessante pontuar que tais fábricas, operadas ao longo da primeira metade do século XIX,
funcionaram com capital público e privado. Isso sugere as normativas econômicas liberais que
influenciavam os círculos administrativos. Antes da chegada da Família Real, as medidas para
erigir uma indústria de ferro no Brasil ficaram circunscritas ao Estado, aos administradores
das capitanias e ao corpo de intelectuais que atuavam no Reino e na colônia.
301
Cf. FURTADO, Júnia F. Um cartógrafo rebelde? José Joaquim da Rocha e a cartografia de Minas Gerais.
Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 17, n.2, pp. 155-187, 2009.
302
A transferência de europeus, a exemplo de Carl Gustav Hedberg, para a direção das fábricas de ferro do início
do século XIX são indicadores de como, de modo geral, havia carência de pessoal com especialização na
execução desses trabalhos.
140
tem sua Magde. resolvido em segdo. Lugar qe. em todo o continente do Brazil se
possão abrir Minas de Ferro, se possão manufacturar todos e quaesquer Instrumentos
desse genero, mas para suprir o desfalque q e. huma simillante liberdade possa
ocazionar nos Reais Direitos. He a mesma Senhora outrora servida Ordenar q e.
ouvindo V. Sa. as Camaras dessa capitania haja de assentar com ellas em huma tarifa
moderada dos Direitos, qe. hum simillante genero devera pagar na Fabricas do Pais,
logo qe. ali se puder fazer venda, tanto qe. respeito ao Ferro bruto ou em barra, como
daquelle qe. se vender já manufacturado pa. instrumentos de agricultura e outros
utensílios domestico.303
O documento expedido por Luis Pinto de Sousa Coutinho, portanto, ocupa uma
posição intermediária entre o alvará de 1785 e o decreto de 1º de abril de 1808, que autorizou
toda e qualquer manufatura. Esse pioneirismo por parte de D. João, príncipe regente, em
1795, revela como a necessidade de reformulação das políticas econômicas fazia-se premente.
Mesmo com a política oficial, parte das experiências de aproveitamento manufatureiro
do ferro, após 1795, se valeram dos esforços e dos fundos de particulares. Coube, ao corpo de
intelectuais dos naturalistas luso-brasileiros inaugurar, com o suporte dos administradores
metropolitanos, as primeiras tentativas da introdução no Brasil de modernas técnicas
industriais relativas à metalurgia, passando pela esquematização da averiguação da
disponibilidade dos minérios, o envio de amostras para a metrópole e das sugestões da
implantação das fábricas.
referentes ao sal e ferro e a entrada de escravos seriam avisados ao ministro interino. Cf. AHU, Projeto Resgate -
Pernambuco (1590-1826), cx. 189, doc. 13079, 18 de agosto de 1795.
306
MORAIS, Geraldo Dutra de. História de Conceição de Mato Dentro. Belo Horizonte: Biblioteca Mineira de
Cultura, 1942, p. 252.
142
de Andrade pa. a experiencia de fazer ferro, […] a sua fabrica a qual serve de beneficio ao
bem comum […].”312. O ouvidor-mor de Sabará, José Lobo Pessanha, deu parecer positivo em
relação ao estabelecimento dessa natureza. Segundo Pessanha:
A resposta da solicitação não foi encontrada. Porém, tudo indica que a mesma não foi
atendida.
O alto custo pela qual o ferro acabava por chegar aos mineiros eram um dos motivos
de insatisfação e corroboraram para que na América portuguesa se pleiteasse a substituição de
importações daquele produto. Conforme expõe Alfagali;
312
AHU, Projeto Resgate - Minas Gerais (1680-1832), cx. 94, doc. 49, 17 de março de 1769.
313
APM, Secretaria de Governo da Capitania, cód. 166, f. 62, 19 de dezembro de 1769.
314
ALFAGALI, Crislayne. op. cit., 2012, p. 80.
315
Cf. CARRARA, Ângelo Alves. A administração dos contratos da capitania de Minas: o contratador João
Rodrigues de Macedo, 1775-1807. América Latina en La Historia Económica, Ciudad de México n. 35, pp. 31-
52, 2011. Um recibo passado por Manuel Velho da Silva a Antonio Gonçalves Ledo referente a compra de ferro
revela que “[…] duzentos quarenta e quatro mil quinhentos e sincoenta seis produto de quarenta e sinco qtes.
duas arobas e vinte [ilegível] libras de ferro que me havia comprado Luis Pinto de Govea […]”. APM, Secretaria
de Governo da Capitania, cx. 10, doc. 25, 18 de dezembro de 1780.
316
ALFAGALI, Crislayne. op. cit., 2012, p. 80
144
317
COELHO, José Teixeira. Instrucção para o governo da capitania de Minas Geraes. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, Tomo XV, pp. 255-481, 1888, p. 260.
318
É preciso lembrar das movimentações quanto a preocupação com as sublevações e sedições que poderiam
ocorrer no período em que a Exposição fora escrita. Assim, reformas eram necessárias também com vistas a se
proteger e manter o domínio dos portugueses sobre o Brasil, especialmente na capitania de Minas Gerais. Cf.
FERREIRA, O. S. Administração nas Minas Gerais. Revista de História, [S. l.], v. 19, n. 39, pp. 181-193, 1959.
319
MENEZES, D. Rodrigo José de. Exposição do governador D. Rodrigo José de Menezes sobre a decadência da
capitania de Minas Gerais e os meios de remediá-lo. Revista do Arquivo Público Mineiro, Ouro Preto v. 2, pp.
311-327, 1897, p. 312.
145
a este inconveniente, porem, se pode remediar por diversos modos, primeiro tendo
nesta fábrica o Contratador, ou a Real Fazenda, segundo parecer mais conveniente,
hum homem de confiança q. vá marcando o ferro a medida em que se for
fabricando, e contando iguaes Direitos aos que paga quando entra, segundo, sendo a
mesma Real Fazenda o principal interessado na sobre dita fábrica, ficando o
segundo descobridor do Segredo administrando-a com lucro de um tanto por cento
sobre as vendas q. se fizerem, terceiro, tomando-a a Fazenda Real totalmente a si a
imitação da polvora de Lisboa fazendo a administrar p.r sua conta. 325
Ainda em 1780, Manuel Monteiro Novais pediu licença a D. Rodrigo José de Menezes
para manufaturar o ferro na freguesia de Tamanduá. Conforme observou Nilton Baeta, “este,
morador naquela freguesia de Tamanduá, recebeu assim, em 20 de abril de 1780, autorização
para realizar uma experiência, condicionando porém o prosseguimento da atividade a nova
ordem governamental.”.326
No entanto, nos parece que o plano não foi adiante e as fábricas de ferro ficaram
relegadas à segunda ordem nos meios administrativos por aproximadamente 15 anos. Após D.
Rodrigo de Sousa Coutinho assumir a pasta da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, em
1796, houve novas e mais consistentes iniciativas para averiguar a possibilidade de
aproveitamento do minério de ferro em Minas Gerais. A missão foi encarregada a José Vieira
Couto, que recebeu subsídios régios para esse intento.
José Vieira Couto (1752-1827), nascido no arraial do Tejuco, estudou Matemática na
Universidade de Lisboa, tendo concluído seus estudos em 1778. 327 De acordo com Márcio
Mota Pereira, Vieira Couto,
De acordo ao que propôs Nilton Baeta330, o simples fato de D. João VI, sob os
cuidados de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, encaminhar José Vieira Couto de fazer as análises
mineralógicas na capitania de Minas Gerais, a partir de 1797, nos revela que havia a intenção
do beneficiamento do ferro em dimensões industriais. Sobre o tema e as viagens de Couto
houve intensa troca de correspondência entre as autoridades instaladas na colônia e no reino e
os resultados das pesquisas eram enviados a Portugal.
Essas pesquisas enfrentaram vários percalços. Vieira Couto observou que as
dificuldades ocorriam não apenas em circunstância da insalubridade dos territórios que as
viagens filosóficas percorriam, mas também devido à oposição de parte das autoridades
locais, como pela falta ou pela precariedade dos equipamentos para conduzir os experimentos
químicos necessários à avaliação das amostras minerais. A 30 de julho de 1799, Vieira Couto
solicitou a D. Rodrigo de Sousa Coutinho alguns equipamentos e se queixa que
Vale mencionar que muitas dessas pesquisas foram também empreendidas, como
aponta o documento, por ou conjuntamente com Joaquim Veloso de Miranda que fez vários
ensaios e sugeriu o aproveitamento em larga escala do salitre e do ferro brasileiro.
Além de Vieira Couto e Joaquim Veloso de Miranda, é necessário lembrar de João
Manso Pereira.332 Embora não tenha frequentado os âmbitos acadêmicos de Portugal, Manso
Pereira praticou algumas experiências químicas como autodidata, entre os quais se destaca
sobre os alambiques. Além disso, Manso Pereira, reconhecido pelos serviços exercidos no
Brasil, foi incumbido pelo príncipe regente de fazer pesquisas das minas de ferro nas
capitanias de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro e verificar o melhor local para se
instalar fábricas de ferro. A 19 de agosto de 1799 escreveu D. João:
sendo me prezente os grandes e uteis rezultados que soube tirar das Minas de Ferro
da capitania de S. Paulo o hábil chimico methalurgico João Manso Per. a que se
pantenteião no vazo de ferro coado, e no Aço que fez subir a Minha Real Prezença: e
metalúrgicas. Cf. AHU, Projeto Resgate - Minas Gerais (1680-1832), cx. 145, doc. 46, 20 de setembro de 1798.
330
Cf. BAETA, Nilton. op. cit., 1973.
331
AHU, Projeto Resgate - Minas Gerais (1680-1832), cx. 149, doc. 30, 30 de julho de 1799.
332
Cf. FURTADO, Júnia F. Súditos de um império ilustrado: a Real Academia das Ciências de Lisboa, os
naturalistas e a capitania de Minas Gerais. In: Vicente Coelho de Seabra: o primeiro químico moderno brasileiro
- 250 anos de nascimento. Belo Horizonte: CRQ-MG, 2014, pp .159-172
148
De acordo com Nilton Baeta, Manso Pereira possivelmente não chegou a cumprir as
ordens dadas pelo príncipe regente, pois o governador Bernardo José de Lorena informou ao
reino que o estudioso não dera notícias após as ordens dadas para averiguação das minas, pelo
menos até a data de 12 de dezembro de 1799, e a questão voltou a ser tratada em 4 de julho de
1800, quando foi informado que “[...] discorrendo sobre a abundância de água e de reservas
florestais que se achavam ao inteiro dispor da fábrica de ferro planejada, aguardando apenas a
presença do técnico encarregado do assunto.”334. As investigações se faziam necessárias
porque “ninguém de bom senso animaria a produzir ferro em grande quantidade, sem saber
primeiro como mobilizar fatores de produção, principalmente matéria-prima.”335.
Após as últimas informações sobre o ferro fornecidas por Vieira Couto e com o não
cumprimento das tarefas por parte de João Manso Pereira, paralisaram-se as pesquisas e o
estabelecimento da manufatura do ferro até a chegada da família Real ao Brasil em 1808. 336
Por essa razão, a análise aqui estabelecida se centra no trabalho dos naturalistas José Vieira
Couto e Manuel Ferreira da Câmara que versaram sobre o ferro e suas formas de
beneficiamento.
333
APM, Secretaria de Governo da Capitania, cód. 269, fl. 36, 19 de agosto de 1799.
334
BAETA, Nilton. op. cit., 1973, p. 71.
335
Ibidem, p. 63.
336
Cf. Ibidem.
149
naquele momento, levava a que muitos procurassem como alternativa a agricultura: “os
mineiros enfim desgostozos com sua occupação e vendo q. a fertild. de da terra poderá melhor
satisfazer suas necessidades, largarão os picões e as alavancas e correrão p a. a agricultura
[...]”337. Havia, portanto, uma propensão ao abandono da mineração em função da decadência
que essa atividade representava no final do século XVIII. Júnia Ferreira Furtado salientou
que, em parte, esse “estado decadente das Minas” era um argumento de retórica que
empregava a retórica iluminista da luz e da escuridão para reforçar a necessidade de
reformas.338 Vieira Couto chegou a afirmar que “[…] e dos Mineiros, q. são os consumidores,
nem os mesmos agricultores acharão sahida aos seus generos […]”339.
No tópico Arte Metallurgica Nacional, Vieira Couto expõe abertamente suas
proposições e considerações referentes ao aproveitamento das minas e abre seu discurso
ponderando que as nações mais cultas fazem amplo proveito dos seus minérios valiosos,
defendendo que, na América portuguesa, haveria a possibilidade de se aplicar o mesmo,
levando em conta os fartos depósitos de ferro que existiam na região.
Homem ilustrado, Vieira Couto defendeu os livros como forma de difusão dos
conhecimentos metalúrgicos, permitindo “[…] girar entre o povo o corpo completo da Arte
Metallurgica [...]”340, sendo esta obra composta por três volumes tratando o primeiro da
“metallurgia mechanica”, o segundo da “metallurgia pyrotechnica” e o terceiro da
“metallurgia docimastica”. Argumentou que o primeiro volume da “metallurgia mechanica”
deveria tratar de disseminar os conhecimentos de como se abrir as minas, o modo de se
reconhecer as pedras, a maneira de identificar os sais, o enxofre e, por fim, os metais. Feitas
essas observações, o volume deveria seguir evidenciando as “matrizes dos metaes”, de modo
que se verifique adequadamente o que se encontra em “cumulos”, “vieiros” e “fendas”.
Munidos desses conhecimentos,
he tempo de já fazer descer o mineiro pela sua nova mina. Esta he formada de poços,
de galerias, de canos, de azos, de canaes de esgotos. Mostrar q tas. qualidaes, ha de
poços: estes pela maior pe. descem perpendicularmte. ao centro da terra, e ha poços
[…] pa. a serventia de descer e subir somt e. a gente, outros para o esgoto das aguas, e
assento das maquinas pa. este effeito, outros p a. o uso dos ventiladores que devem
renovar e purificar continuamte. o ar na profundeza da Mina. No extremo de cada
poço ficão as galerias, q. cortão orizontalm te., a direita e a esquerda e servem p a.
descortinar os vieiros, arrumar entulhos, e encaminhar as aguas soteraneas. Os canos
são como galerias mais estreitas e servem pa. repassar a montanha e hir-se por meio
337
AHU, Projeto Resgate - Minas Gerais (1680-1832), cx. 147, doc. 1, 3 de janeiro de 1799, pp. 15-16.
338
FURTADO, Júnia F. op. cit., 1994, pp. 27-30.
339
AHU, Projeto Resgate - Minas Gerais (1680-1832), cx. 147, doc. 1, 3 de janeiro de 1799, p. 16.
340
Ibidem, p. 28.
150
delles em busca de novos vieiros. A azos q. são como huns nichos postos ao lado dos
poços, servem tambem para arrumar os entulhos, descobrir os vieiros e nellas
separarem os obreiros a verdadeira mina da ganga ou pedra esteril. Os canaes de
esgoto tem sua entrada nas fraldas do monte e vão-se communicar depois com as
galerias interiores, receberem as aguas exauridas pelas maquinas, e conduuzirem p a.
fora do mesmo monte. 341
Vieira Couto seguiu propondo que o monte em que se realizasse a exploração deve ser
fortificado pela alvenaria e carpintaria, ao que ele chama de “architetura soterranea”, assim
como os trabalhos empregados no desenvolvimento das “máquinas” que cuidam das águas
são dependentes do emprego de conhecimentos relativos à “hydraulica soterranea”. Isso
posto, pode-se inferir que propunha-se o avanço na especialização dos conhecimentos para
que tal empresa mineradora lograsse êxito.
Essas orientações poderiam ser aplicadas na extração do ouro, mas Vieira Couto
assegurou que, quanto mais se estenderem as pesquisas, mais metais podem ser extraídos dos
montes em que se aplicam tais trabalhos. O segundo volume, Metallurgia pyrotechinica
deveria tratar dos assuntos referentes ao reconhecimento e maneira de “[…] ensinar como se
extrae pelo fogo os metaes das suas pedras” 342. O mesmo volume trataria de instruir os
processos de trituração, da lavagem, da calcinação e dos fornos que deveriam ser aplicados na
sua produção. Nesse segundo volume, por conseguinte, deveriam ser tratadas as questões
relativas aos fornos de fusão e, não menos importante, seria descrito como deveria ser a fusão
de cada gênero de metal. Sobre a instrução da separação de cada metal, o naturalista apontou
que:
os metaes depois de fundidos. saem pela maior pe. huns misturados huns com os
outros e impuros, e por isso convem separallos e purificallos. Essa separação é toda
fundada sobre as leis das afinidades q. tem os metaes huns com os outros, e sobre o
differente gráo de dificulde. de cada um dos mesmos metaes.343
341
Ibidem, p. 30.
342
Ibidem, p. 31.
343
Ibidem, p. 32.
151
experiencias feitas sobre as próprias minas e sobre os próprios fundadores do pais; isto avança
muito.”344.
O terceiro volume “Metallurgia Docimastica” deveria ser um manual que orientasse os
mineiros a reconhecer a qualidade dos metais, mais especificamente o valor que poderia ser
atribuído ao ouro e a prata. Importa reiterar que essas proposições indicavam uma plena
adoção de recursos pragmáticos para qualificar e classificar as produções minerais, sobretudo
no que se refere ao ouro, a prata e o cobre.
Tratando mais especificamente sobre o estímulo às fundições de ferro, Vieira Couto
fez importante observação sobre este minério:
o ferro, este metal tão necessario á todas as artes á todos os officios, q. rasgando a
terra obriga esta a ornar-se de huma verdura mais amena e alegre a desentranhar-se
em dons e riquezas, q. levado a nossas fronteiras mostra aos nossos hum muro
inconquistavel, a morte e o espanto, este metal mais precioso ao homem, do q. o
ouro e a prata, he o q a Providencia derramou sobre nos com huma prodigalid e.
espanntoza. 345
É sintomático notar como ele posicionou o ferro como um minério mais importante
que o ouro e a prata. Era natural que, sabendo dos enormes depósitos desse metal, o estímulo
ao aproveitamento industrial do ferro ganhasse destaque na Memória. José Vieira Couto
sublinha que: “não sei porq. fatalide. ainda ate hoje não nos temos abaixado pa. levantarmos da
terra essas riquezas q. ella tão largamte. nos offerece […]”346. Insiste que, até então, se pagava
“[…] hum preço exorbitante [...]”347 pelo ferro manufaturado, sendo um dos argumentos
centrais que direcionavam para a substituição das importações. Advogava que as fábricas de
ferro deveriam ser instaladas da seguinte forma:
a fábrica de ferro, ou as fundições e forjas deste metal, he uma das cousas mais
complicadas na arte metallurgica. O ferro sendo um metal de vil preço, he por
consege. preciso q. a fabrica para haver de fazer utili de. e fundam to. e em grandes
quantides. ao mesmo tempo, e esteja sempre em actual ativid e, o q. não succede assim
nos outros metaes, q. os seus fornos são mais pequenos e suas fundições em menores
quantides. e seguindo nisto mesmo a ordem da natureza q. tambem os criou com
maior escassez e os doou ao mesmo tempo de maior valor. Por cuja causa, tais
fabricas de ferro e tais fundições, tudo deve ser em hum ponto em grande. Os fornos
são de vinte pés em quadre, e vinte e cinco de alto; os folles de madeira e de quinze
pés de comprido, não ha braços que os possão mover e huma torrente d’agua os
agita por meio de huma roda, o forno […] vomita de tempos em tempos huma lava
de ferro de quinze pés de comprido. E sobre dois mil arreteis de peso. Esta he
344
Ibidem, p. 33.
345
Ibidem, p. 36.
346
Ibidem, p. 36.
347
Ibidem, p. 36.
152
condusida por maquinas a huma forja ao depois a huma grande bigorna onde hum
martelo de mil e duzentos arreteis de massa, e tambem movida por outra maquina
d’agua, a malha onde he formada em barras. Esse exercicio nessa labutação atura
sem cessar dez ou doze meses continuos.348
Vieira Couto descreve que o processo da fabricação de ferro exigia esforço para que os
resultados lograssem êxito. Para que fossem aproveitados os grandes depósitos de ferro eram
necessárias, entre outras, máquinas que auxiliassem na manufatura. O resultado seria
compensador visto que, produzir o ferro em larga escala, segundo aquele naturalista,
garantiria lucros maiores aos donos do empreendimento do que produzir em pequena escala:
eis aqui como estas fábricas podem fazer utilide. Suprindo a quantidade de metal ao
seu barato e ao reves em hum pequeno ponto e fundindo as arrobas, nunca o
proprietário tera lucro consideravel e cada libra lhe ficara por hum preço
consideravel.349
deve observar como se fazem estas operações tend es. a taes fundições, tirar planos
dos edifícios, dos fornos, levantar modelos de varias maquinas, de vários
instrumentos, descrever o numero e os deveres de cada official ou artífice; o numero
de trabalhadores, as oras de cada fornada, e mil cousas dessa natureza.351
Elencar esses pontos era necessário, de acordo com Vieira Couto, para que o Estado
português conseguisse disso tirar bom proveito dos tesouros depositados na natureza brasileira
348
Ibidem, pp. 36-38.
349
Ibidem, p. 38.
350
Ibidem, p. 38.
351
Ibidem, p. 38.
153
e que ainda não haviam sido aproveitados. A Tabela 4 apresenta a classificação do ferro
disposto na capitania de Minas Gerais de acordo com Vieira Couto pois, para a viabilidade do
projeto, era necessário reconhecer as particularidades dos minérios daquela localidade, de
modo que:
tal mina de ferro he so própria pa. formar peças fundidas, aquella da hum bom ferro
flexível e próprio pa. ser forjado antes, aquella outra serve p a. se converter em bom
aço; humas vão mais boas e mais ricas, porem não fundem e dão hum ferro
quebradiço e misturada com outras estas lhes servem de fundentes e bom tempero
[...]. 352
Tabela 4 - Tipos de minas de ferro elencadas por José Vieira Couto e suas medidas
Classificação da Mina Quantidade
Tesselare 2 Em quintal: 56 libras
Crystalinum 3
Chalybeatum 4
Rhombeum 6
Selectum 8
Granorum 9 Todas essas Minas são riquíssimas em ferro e dão
Commune 10 em cada quintal de Mina de 70 para 108 libras de
Falcorum 12 ferro puro
Decupatum 14
Icamorum 16
Ipecularis Wal
Carulucens 19 47 libras de ferro em quintal
Homatites 22 57 para 84 libras em quintal
Arenorum 24 29 para 36 libras em quintal
Fonte: AHU, Projeto Resgate - Minas Gerais (1680-1832), cx. 147, doc. 1, 3 de janeiro de 1799, p. 11.
352
Ibidem, p. 39.
353
FURTADO, Júnia F. op. cit., 1994, p. 33.
154
habitão longe de povoados, a derrubar e incendiar mais da metade dos seus matos [...]” 354. Vi-
eira Couto apontou que viu disposto na natureza muito minério de ferro em algumas localida-
des, mas que, por falta de lenha, não poderiam ser explorados. Nas suas palavras: “observei
em mtos. lugares riquíssimas veias e camadas de excellente ferro, q. já mais virão a ser úteis a
ninguém pela distancia da lenha.”355. Outro ponto que chamou a atenção do estudioso foi o
excesso de dias santos, ao que propôs abolir esses dias para a indústria e o comércio conquis-
tassem maior espaço.356
Questão sensível ao bom funcionamento da empresa extrativa de minérios em Minas
Gerais, do mesmo modo que em relação ao salitre, era relativa ao escoamento das suas
produções. Não caberia apenas a população local consumir os excedentes que as fábricas
produzirem, pois “he certo q. as nossas fundições tarde ou sedo perecerão, principalm te. a dos
metaes mais vulgares se não entendermos na cômoda exportação delles. O pais não pode nem
deve consumir todos elles, o Estado necessita do ferro para instrumentos bellicos [...]”357.
Apontadas como inviáveis para o escoamento dos metais as estradas existentes, a
Memória sugeriu o uso da navegação para solver esse problema, a partir de uma série de rios,
entre os quais o Rio das Velhas e o Paraúna. Isso facilitaria, segundo o autor, reduzir os custos
de exportação. Porém, apenas a comunicação feita por rios não seria suficiente: a abertura de
estradas era necessária para concluir com mais rapidez os trajetos. Estradas bem localizadas e
plenamente abertas permitiriam o escoamento dos produtos. Além disso, sugeriu o emprego e
a domesticação de alguns animais para tração, como o camelo e a anta.
Suas proposições para a metalurgia defendiam que, após o aporte do Estado, os
particulares seriam animados também a investir no mesmo projeto, levando em conta a
enorme quantidade desse minério na capitania de Minas Gerais e que apenas o Estado, a
longo prazo, não teria condições de explorar as jazidas:
mas isto he so praticável neste pais, onde as minas se achão todas quasi juntas em
hum pequeno espaço de terreno. No Brasil, onde ellas podem ficar em distancias de
cem e mais legoas desviadas humas das outras, fica oneroso multiplicar o Estado
tantas fabricas e fundições, e q. pela maior p e. estarão agora no principio das cousas,
sem ter que fazer maior pe. do anno. O melhor sempre será nestes começos
desonerar Sua Magestade os povos desse direito, p a. q. elles com a esperança de
maior grangearia se afoitem a extrahir estes novos metaes, e ate será conveniente
animallos cõ algumas isenções e privilégios. Estabelecidas as depois estas fabricas e
354
AHU, Projeto Resgate - Minas Gerais (1680-1832), cx. 147, doc. 1, 3 de janeiro de 1799, p. 44.
355
Ibidem, p. 44.
356
Cf. FURTADO, Júnia F. op. cit., 1994, pp. 33-34.
357
AHU, Projeto Resgate - Minas Gerais (1680-1832), cx. 147, doc. 1, 3 de janeiro de 1799, p. 46.
155
postas de huma vez de assento arraigado este genero de mineração, será então mui
fácil achar-se hum verdadro. meio de arrecadar-se estes mesmos direitos.358
Junto a José Bonifácio de Andrada e Silva e Pedro Fragoso, Câmara fez importante
viagem filosófica em escolas de fundição e fábricas de ferro europeias, a exemplo das Minas
de Freiberg. De acordo com Américo Antunes, “durante essa longa expedição, Manuel
Ferreira da Câmara chegou a produzir importantes trabalhos científicos. Entre eles, destacam-
se a descrição das Minas alemãs de chumbo e prata e a produção de ferro com novas
tecnologias, para reduzir o uso de combustíveis.”359.
Com referência à difusão dos saberes científicos através de publicações, Manuel
Ferreira da Câmara redigiu, entre outros, o Ensaio da descrição física e econômica da
Comarca de Ilhéus na América (1789) e as Observações a cerca do carvão de pedra da
Freguesia da Carvoeira (1789). Inicialmente, muito do que foi escrito sobre a biografia sobre
Manuel Ferreira da Câmara estava relacionado às suas atividades políticas, especialmente
quando atuou como parlamentar.360
O resgate por parte dos historiadores e historiadoras, assim como de outros
especialistas, na área de História da Ciência tem evidenciado sua importância enquanto
homem ilustrado e que esteve inserido nas reformas econômicas do Reino. O trabalho
pioneiro nesse aspecto foi volumoso estudo de Marcos Carneiro de Mendonça 361, que serviu
de grande referência teórica para a construção deste tópico. Além disso, como aponta Alex G.
Varela, “somente nos últimos anos, em razão do resgate da história das ciências na América
Latina sob novo arcabouço historiográfico, é que Câmara voltou a ser objeto de estudo,
destacando-se os trabalhos de Manuel Serrano Pinto e Silvia Figueirôa.”362.
Câmara foi também um dos intelectuais que estavam inseridos no círculo de influência
de D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Em 1800, ele foi indicado a assumir a Intendência Geral
das Minas, na capitania de Minas Gerais, por recomendação de D. Rodrigo, baseada na sua
expertise adquirida ao longo de anos nos centros acadêmicos europeus. Júnia Ferreira Furtado
destaca como a experiência que Coutinho adquiriu em sua passagem como diplomata no
Reino do Piemonte, na Itália, foi fundamental para esboçar sua política mineralógica e
359
ANTUNES, Américo. Do diamante ao aço: a trajetória do Intendente Câmara. Belo Horizonte: UNA, 1999,
pp. 32-33.
360
Parte das memórias de Manuel Ferreira da Câmara já começaram a ser estudadas com o intuito de revelar o
perfil científico daquele autor, a exemplo do que analisou Alex G. Varela. Cf. VARELA, Alex G. Atividades
científicas no Império português: um estudo da obra do ‘metalurgista de profissão’ Manuel Ferreira da Câmara –
1783-1820. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, n. 4, pp. 1201-1208, 2008. Entre
outros naturalistas luso-brasileiros que igualmente se destacaram como parlamentares e cientistas, vale
mencionar José Bonifácio de Andrada e Silva.
361
Cf. MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit., 1958.
362
VARELA, Alex G. A trajetória do ilustrado Manuel Ferreira da Câmara em sua “fase européia” (1783-1800).
Tempo, Niterói, v. 12, n. 23, pp.150-175, 2007, p. 152.
157
metalúrgica quando se tornou ministro de Estado. Por instância sua, Câmara e José Bonifácio
estiveram em Turim e, ainda que ele estivesse ausente na viagem, a partir dali estreitou os
laços com os dois, especialmente após o retorno dos três a Portugal.363
Como bem observou Alex G. Varela, o Intendente Câmara no Ensaio da descrição
física e econômica da Comarca de Ilhéus na América (1789), assim como José Vieira Couto,
apontou a necessidade do controle do Estado português em relação ao corte das madeiras,
sendo esses insumos necessários para a construção, entre outros, de casas e de navios. Além
disso, o interesse de Câmara em relação às madeiras entendia que “pois estas eram fontes de
abastecimento energético das siderúrgicas [...] uma vez que o carvão, fonte de combustível
com o advento da revolução industrial inglesa, não existia em quantidade suficiente em
Portugal e no Brasil.”364 Nas palavras do naturalista:
são bem conhecidas as utilidades, que resultao das madeiras do Brazil a Portugal: he
também sabido, que todas as terras do Brazil, exceptuados alguns campos
primitivos, estão cubertas de grandes, e espessas matas y em cuja destruição
trabalhão allaz os habitantes sem ainda constar, que se tenha plantado hum só pé das
necessarias á construçção, e á combustão diaria; e pelo axioma de que ninguém dá
mais do que tem, em hum dado tempo virse-hão a consumir todas as especies de
preciozas madeiras, que poíssuimos y para o que principalmente contribue o não
renascerem as especies primitivas; e senao houver grande cuidado a respeíto
daquellas terras vizinhas aos portos marítimos e de fácil exportação como a
Comarca dos Ilhéos, que ainda não tem sido tão atacada em breve tempo as
madeiras serao hum genero mui caro; e esta falta já tem sentido o Estado ha uns
annos a esta parte.365
363
Cf. FURTADO, Júnia F. op. cit., 2019.
364
VARELA, Alex G. op. cit., 2007, p. 160.
365
BITTENCOURT, Manuel Ferreira da Câmara. Ensaio de descripção fizica, e economica da Comarca dos
Ilheos na America. Lisboa: Offic. da Academia Real das Sciencias, 1789, p. 44.
366
Cf. VARELA, Alex G. op. cit., 2007.
158
propostas ilustradas de José Vieira Couto. De acordo com Silvia Filgueirôa e Clarete Paranhos
da Silva, os projetos que Câmara propôs foram aceitos, embora ao final apenas parte das suas
ideias tenham sido cumpridas:
an early efforto achieve some of his scientific goals was legislation that Camara
proposed to the Brazilian Assembly supporting a "general system of mineral
economy." When the bill was passed into law on 15 March 1803, however, he had
not attained his goals. As he reported to the Portuguese minister of foreign and
colonial affairs, Luiz de Sousa Coutinho, a key figure in the Portuguese government
and a tenacious advocate of the mining sector, the bill had "suffered more discussion
than any other ever presented at the Assembly, and in the end was so [changed and]
disfigured that he could perceive only the faint outline of his ideas.". 367
Câmara foi escolhido e contratado por D. Rodrigo de Sousa Coutinho para ser o
consultor do Reino para assuntos de minas e metalurgia, após sua chegada das viagens
filosóficas na Europa. Entre elas, “foi convidado a emitir diversos pareceres pelo governo
português, dentre os quais se destacaram: o parecer sobre a Memória Sobre o Melhoramento
dos Domínios de Sua Majestade na América [...]”368. Vale lembrar que Câmara também
propôs a criação de uma escola de mineralogia e de metalurgia, tendo como referência na
escola de Minas de Freiberg. Além disso,
o mesmo Senhor [Príncipe Regente] há por bem de participar-lhes ter nomeado para
Intendente Geral das referidas Minas a Manuel Ferreira da Camara Betancourt no
decreto do dito dia doze de julho, com o ordenado annual de três contos e duzentos
mil reis para lhe serem pagos por essa junta [...].370
367
FIGUEIRÔA, Silvia; SILVA, Clarete Paranhos da. Enlightened Mineralogists: Mining Knowledge in Colonial
Brazil, 1750-1825. Osiris, Chicago, v. 15, pp. 174-189, 2000, p. 182.
368
VARELA, Alex Gonçalves. Ciência e patronagem: análise de trajetória do naturalista e intendente das minas
Manuel Ferreira da Câmara (180-1822). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro,
n. 446, pp. 67-92, 2010, p. 74.
369
Ibidem, pp. 74-75.
159
Após cinco anos aguardando sua posse como Intendente Geral das Minas e dos
Diamantes, a mesma ocorreu em 1807 e Câmara se tornou o primeiro brasileiro a assumir esse
cargo, que havia sido criado pelo Alvará de 1803. Outro ponto que importa ressaltar foi que,
no mesmo ano de 1807, a Família Real e o aparato administrativo português partiam para o
Brasil, fato que alterou seus planos do ao passo que abriu outras possibilidades em relação à
metalurgia na colônia.
Como sugeriu Alex G. Varela371, todo o trabalho pregresso que Manuel Ferreira da
Câmara desenvolveu, especialmente as consultorias realizadas junto a D. Rodrigo de Sousa
Coutinho, ajudaram a construir sua reputação como naturalista, o que provavelmente estreitou
as relações com o mesmo ministro e confirmou a confiança da Coroa portuguesa em lhe
atribuir os trabalhos relativos à Real Fábrica de Ferro de Gaspar Soares.
O perfil de homem ilustrado pela qual se valia de uma metodologia capaz de
transformar a natureza com a intenção de angariar ganhos econômicos contribuiu também
para a sua nomeação como primeiro brasileiro a cuidar da Intendência dos Diamantes, no
arraial do Tejuco.
A transferência da Família Real para o Brasil resultou na criação de inúmeras fábricas
e instituições, como a Real Fábrica de Pólvora e o Banco do Brasil. Nesse processo, os planos
de Câmara referentes à metalurgia foram acelerados, o que culminou na instalação da Real
Fábrica de Ferro do Morro do Gaspar Soares:
Camara was able to establish the Royal Iron Works (Real FJbrica de Ferro) at
Gaspar Soares (in Minas Gerais). (This was certainly one of the first iron works in
Brazil, although credit is often given to the German Wilhelm L. von Eschwege, who
established one in Minas Gerais at the same time.372
370
Biblioteca Nacional, BNdigital, Provisão do presidente do Real Erário, Dom Rodrigo de Souza Coutinho, à
Junta de Adminitração e Arrecadação da Real Fazenda de Minas Gerais nomeando Manoel Ferreira da Câmara
Bitencourt como intendente geral das minas. I-25,20,028 – Manuscritos. 12 de agosto de 1803.
371
Cf. VARELA, Alex Gonçalves. op. cit., 2010.
372
Ibidem, p. 184.
160
devendo-se annualmente dar conta a sua Alteza Real pelo Real Erario do estado
deste estabelecimento, para que se conheça, o interesse que houve, sendo calculado
o preço do ferro, que desta nova fabrica consumir a Administração Diamantina, pelo
medio deduzido dos preços porque á mesma adminístração chegou o ferro nos tres
proximos annos precedentes, e não pelo que se vender aos particulares [...].375
Soares, próximo a Vila Rica, local estratégico escolhido em função das estradas e rios
próximos que facilitariam o escoamento da produção para o Rio de Janeiro e a Bahia. Nas
palavras de Marcos Carneiro de Mendonça, Câmara julgou o local
sôbre o justo requerimento para o estabelecimento duma fábrica de ferro que temo
por ora não possa ainda executar-se sem fundidores, ou mineiros da Alemanha, que
venham trabalhar debaixo das suas ordens, exceto por um daquêles milagres, que
podem esperar-se dos seus grandes talentos, suprindo tudo, e principiando a
organizar um estabelecimento de que tanto necessitamos [...]. 378
376
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit., 1958, p. 190.
377
VARELA, Alex G. op. cit., 2010, p. 80.
378
COUTINHO, D. Rodrigo de Sousa, 1808 apud MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit., 1958, p. 191.
379
ANTUNES, Américo. op. cit., 1999, p. 72.
380
SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do distrito diamantino da comarca do Serro Frio. São Paulo: Ed.
Da Universidade de São Paulo, 1976, p. 216.
162
a parte superior do equipamento tinha três polegadas de diâmetro. 381 No entanto, ainda como
aponta o mesmo autor, Câmara modificou os planos iniciais em função da falta de água para a
movimentação dos foles, o que culminou na construção de 3 fornos ao estilo catalão, cujas
medidas eram de pequeno porte, para auxiliar na operação do alto forno. Mesmo assim, os
fornos deixavam de operar pela escassez de água durante alguns dias da semana.382
Os primeiros resultados da Real Fábrica de Ferro de Gaspar Soares se concretizaram
apenas em 1815, pois além dos diversos problemas mencionados, Câmara também enfrentou
a falta de peritos adequados. Quando os ensaios culminaram na fusão do minério, em 1815, as
instalações da fábrica também dispunham de uma casa de moinho e de armazém e seus
funcionários somavam administradores pagadores, administradores feitores, oficiais
operadores dos fornos baixos catalães, mestres moldadores e mestres para operar o forno alto
alemão.
Diversas etapas foram concluídas até esse momento como a construção de um açude e
do alto forno, que aconteceram em 1812. Entre 1812 e 1815, ocorreram uma série de
imprevistos nos ensaios:
385
Ibidem.
386
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit., 1958, p. 193.
387
CARVALHO, Daniel de. Documentos sobre a Fábrica de Ferro do Morro do Pilar. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 263, pp.203-235, 1964, p. 208.
388
Ibidem, p. 209.
164
considerações. A empreitada foi, como apontaram, entre outros, Marcos Mendonça Carneiro e
Sílvia Figueirôa, o primeiro empreendimento de metalurgia moderna e que teve por objetivo
produzir ferro em larga escala no Brasil. Seus resultados foram pouco atraentes,
especialmente se comparados a outras investidas que se seguiram, a exemplo da Fábrica
Patriótica, cuja obra foi autorizada em 1812 e alguns naturalistas estrangeiros, entre os quais,
Guilherme von Eschwege lhe deram pouca importância,389 mas resultou na primeira produção
real de ferro fundido em alto forno, o que ocorreu em 1815.
Para avaliar sua real dimensão, é necessário lembrar a enorme oposição que Manuel
Ferreira recebeu tanto das autoridades administrativas e intelectuais. José Vieira Couto foi um
dos desafetos de Câmara,390 bem como o governador da capitania de Minas Gerais, D. Manuel
de Portugal e Castro. Como aponta Júnia Ferreira Furtado, Vieira Couto ressentia-se que todas
as suas principais ideias foram encampadas por Câmara, que o acusava de ser um simples
curioso, sem formação adequada, e ele viu recair sobre o último todos os postos e as glórias
que almejava.391
Outra rivalidade, como percebeu D. Rodrigo de Sousa Coutinho, foi a gerada pelo
início da operação da Real Fábrica de Ferro do Ipanema:
muito estimo o que me diz sôbre a sua fábrica de ferro, que irá rivalizar com outra
que vai erigir-se em S. Paulo na famosa mina de Sorocaba pelos alemães, que
vieram de Portugal, e com as de Sabará para onde espero vá uma companhia de
mineiros de Suécia, que brevemente vai chegar, Se desta vez não tivermos ferro para
o Brasil e para a Ásia será grande desgraça. 392
Alguns pontos cruciais são necessários ser destacados sobre os anos iniciais da
construção da Real Fábrica de Gaspar Soares. Em primeiro lugar, as construções físicas
estiveram, desde o começo, prejudicadas pela falta de técnicos adequados. O talude foi o
maior exemplo, cuja construção original foi condenada por Câmara, o que acarretou atrasos.
Somente no segundo semestre de 1812, ele deu início às primeiras tentativas de fundição. Os
encadeamentos dos foles, realizados originalmente com couro animal, também exigiram
389
Para Marcos Carneiro de Mendonça, Eschwege pouco caso fez da experiência da Real Fábrica de Ferro do
Morro de Gaspar Soares, ao que diz: “[…] Eschwege, o que se pode deduzir dos relatórios a êste enviados
periodicamente, e dos quais o barão serviu-se mais tarde para tentar ridicularizar a obra de Ferreira da Câmara,
esquecendo que o valor daquela iniciativa, colocara êste ilustre brasileiro acima de qualquer tentativa nêsse
sentido.” MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit., 1958, p. 194.
390
Cf. ANTUNES, Américo. op. cit., 1999. Vieira Couto criticou, entre outras coisas, a dificuldade com que a
fábrica sofreu em relação à disposição de água, ao passo que chegou a denominar a fábrica fábula de ferro. Cf.
Ibidem.
391
FURTADO, Júnia F. Enlightenment Science and Iconoclasm: the Brazilian Naturalist José Vieira Couto.
Osiris, v. 25, pp. 189-212, 2010, especialmente pp. 207-210.
392
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit., 1958, p. 192.
165
393
Cf. MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit., 1958.
394
Cf. Ibidem.
166
o relato de Felício dos Santos, após indicar a extração de salitre em Montes Altos na
Bahia, continua mencionando acertadamente o território das Minas Gerais como
fonte do mineral. A descoberta foi feita em 1757 por dois “aventureiros”, Miguel
Luiz Filgueiras e Antônio José Fernandes – o primeiro, partindo do Tijuco (atual
Diamantina), vai ao encontro do outro, que residia na confluência do rio das Velhas
com o São Francisco.396
Foi sob a influência de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, que ocorreu, entre fins do
século XVIII e início do século XIX, sob a justificativa das reformas estruturais da economia
do Reino, o incentivo à investigação sobre o nitrato de potássio, com destaque, no Distrito
Diamantino, para a ação de José Vieira Couto e de Joaquim Veloso de Miranda, que foram
incumbidos de fazer as primeiras pesquisas com o auxílio da Coroa.
No ano de 1799, Vieira Couto foi responsável por analisar as nitreiras de Serra Cabral.
Mais uma vez de acordo com Felício dos Santos, foi D. Rodrigo quem o incumbiu dessa
missão e, caso fossem promissores os resultados, ali se erigiria uma fábrica de salitre:
em 1803, o dr. José Vieira Couto, por comissão do ministro D. Rodrigo de Souza
Coutinho, foi encarregado de ir examiná-las, e informar, se com uma fábrica, que ali
se estabelecesse por conta da fazenda real, poderia o salitre chegar aos portos do mar
no custo de 5$000 a 6$000 réis. Ali demorou-se o dr. Couto por espaço de quarenta
dias em exames.397
395
Como indica Felício dos Santos, “Com este animo partiu do Tijuco, em 1757, Miguel Luiz Filgueiras e
juntando-se na barra do rio das Velhas com Antonio José Fernandes, que ali residia, embrenharam-se ambos
pelos sertões; e depois de muitas fadigas, trabalhos e perigos por que passaram, descobriram afinal uma rica
nitreira da serra da Lapa, que formava os confins do distrito diamantino com a comarca do Sahará. Satisfeitos os
seus intentos, vieram comunicar este descobrimento ao intendente Thomaz Roby de Barros, trazendo as amostras
do salitre, que achara, já puro e cristalizado; e pediram que fossem seus nomes recomendados a El-Rei para
serem eles remunerados. Não nos consta terem obtido as recompensas esperadas.”. SANTOS, Joaquim Felício
dos. Memórias do distrito diamantino da comarca do Serro Frio. São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo,
1976, p. 113.
396
FARIA, Luciano Emerich. Mineralogistas e seus estudos sobre os minerais úteis nas Minas Gerais dos
períodos colonial e imperial. 2019. 328 f. Tese (Doutorado em Química) – Universidade Federal de Minas
Gerais, Departamento de Química, p. 36.
397
SANTOS, Joaquim Felício dos. op. cit., 1976, p. 223.
167
Não apenas as nitreiras naturais, mas também as nitreiras artificiais foram tomadas
como possíveis fontes de produção. As nitreiras artificiais seguiram testadas principalmente
na capitania de Minas Gerais, sendo um dos grandes expoentes desses testes Joaquim Veloso
de Miranda. Esse naturalista esteve envolvido na construção, em suas propriedades, de
nitreiras artificiais. De acordo com Márcio Mota Pereira, ele foi responsável pelas “[...]
Nitreiras e Fábrica de Pólvora da Capitania das Minas [...] nos sertões do Ouro Branco, o que
não significa que tais ações tenham gozado de longa vida e operação”. 398 Enquanto esteve à
frente da pasta da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, entre 1796 e 1801, D. Rodrigo era
informado de tais empreendimentos, o que foi substancial para que fossem realizadas.
398
PEREIRA, Márcio Mota. Saber e honra: a trajetória do naturalista luso-brasileiro Joaquim Veloso de Miranda
e as pesquisas em história natural na capitania de Minas Gerais (1746-1816). 2018. 412 f. Tese (Doutorado em
História) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, p. 187.
399
AHU, Projeto Resgate - Códices (1548-1821) e (1671-1833), códice 2095, f. 3 – 3v, 20 de maio de 1803.
400
Idem, p. 1. Vieira Couto reitera outras localidades, quais sejam: “Em as margens do rio Cipó em a sua direita,
e logo por baixo da estrada, na comarca do Serro, no mesmo cipó, mais abaixo, á sua esquerda, na comarca de
Sabará, no Paraúninha, comarca do Serro, em a Serra da Lapa, em huma caverna, chamada a da Velha; na
demarcação Diamantina, em huma pequena lapa [...]”. p. 2.
168
terra, que de hora em diante haverá nome de Monte Rorigo.” 401. Descreve as terras da
localidade como sendo de tonalidade vermelha, pesada e fértil.
Tal prodigalidade seria demonstrada pelo envio de amostras para avaliação em
Portugal. Em documento que acompanhou sua Memória, Vieira Couto fez os seguintes
apontamentos: “Tenho a honra de pôr na prezença de S. A. Real por via de V. Ex ca. dous
caixões de salitre, extrahidas das nitreiras naturaes de huns montes ermos, a q. hora lhes
chamei monte Rorigo […].”402.
O Monte Rorigo é descrito como uma localidade que possuía diversas cavernas com
consideráveis formações de estalactites. Segundo ele, abundavam “vários saes estas cavernas,
sendo todavia dominantes os nitratos de potassa, de cal e magnesia. Os mais são os Muriatos
de soda, cal, ammonia, como também o sulfato de magnesia. Encontrão-se misturados e
confundidos todos esses saes”403. Ademais, as cavernas eram favorecidas pela umidade
necessária para a formação do salitre, além do que a água atmosférica é atraída “pelos saes
dos radicaes terreos.”404.
A formação de parte dos nitratos, assim como apontado por José de Sá Bittencourt em
seus estudos realizados nos Montes Altos, era resultado do apodrecimento de plantas e de
restos de substâncias animais. Posto isso, Vieira Couto estabelece os parâmetros para a
extração do salitre das nitreiras artificiais:
este fabrico consistirá pois em lavrar, ou descascar, digamo-lo afim, toda a superfície
destas cavernas, construindo-se para isso altissimos ãdaimes unidos as suas paredes;
as terras destas superficies serão lixiviadas e o sal colhido. Hum semelhante trabalho
não poderá ser repetido, senão passados tempos, e seis mezes ao menos será preciso
para a nova reprodução deste sal. 405
401
Ibidem, pp. 2-3.
402
AHU, Projeto Resgate - Minas Gerais (1680-1832), cx. 166, doc. 77, 20 de maio de 1803.
403
AHU, Projeto Resgate - Códices (1548-1821) e (1671-1833), códice 2095, 20 de maio de 1803, p. 11.
404
Ibidem, p. 17.
405
Ibidem, pp. 19-20.
169
Legenda: Lixiviação das terras salitrosas. A imagem pode ser explicada a partir da seguinte legenda: A -
cavidade preenchida com terra salitre perfurada com um buraco no fundo; B - plataforma de pedra ou madeira,
inclinada até o ponto C; D - tanque de barro escuro onde as águas lixiviadas se encontram; E - bomba que
transfere a referida água para as outras cubas, ou para o tanque de saturação; F - Calha de madeira, nivelada
sobre ferraduras, de onde sai a água pelas calhas G; H - locais que transportam as cubas; G - Calha que leva ao
tanque de saturação.
Fonte: INSTRUCTION sur la fabrication du salpêtre brut. [s.l.: s.n.], [179- ?}.
O autor seguiu afirmando que a extração do salitre das estalactites, a partir das
mesmas manobras, logo se esgotariam e, por fim, se extinguiriam pois “consumir-se-hão
todas essas terras calcareas; econtrar-se-há com o amago da montanha, que são rochedos de
cal, duros, e porventura não tão aptos para a reprodução dos nitratos” 406. Considerados, pois,
esses inconvenientes, propôs a solução que lhe ocorrera para superar os possíveis
esgotamentos naturais. Isto só seria possível graças à engenhosidade humana e à ciência
ilustrada, que deram total respaldo para a modificação da natureza.
No tópico que seguinte, José Vieira Couto apresentou os recursos gerais que seriam
necessários lançar mão para que fosse possível construir nitreiras artificiais, ponderando que
“cobrir-se-há de alpendradas toda a raiz do monte; porem a posição destas não sera
indistinctamente determinada.”408. É importante pontuar que sua primeira sugestão sobre a
necessidade de instalação das fábricas de salitre era anterior a 1803. Couto já havia proposto,
na Memória, datada de 1799, a instalação de manufaturas químicas, garantindo o bom
proveito de tal empreendimento: “o q, eu infiro desta facilid e. q. he em se formar sal nestes
paizes, he q. as nossas fabricas, ou nitreiras artificiaes terao todo o bom sucesso o q. não é
pequena vantagem.”409.
Entre os primeiros procedimentos que deveriam ser tomados, ele recomendou, como
perito, cobrir os montes metodicamente de modo que os topos “pegará com o monte, e o outro
pegará com o poente”410. A ideia era que a disposição das alpendrarias 411 dessem conta das
posições sul e norte do monte. A vantagem desse procedimento seria resguardar o monte do
sol. Dessa maneira “conserva-se-hão as terras das alpendradas sempre humidas, e evitar-se-há
huma evaporação muito rapida”.412
As extremidades dos muros das terras dispostas ao longo das alpendradas deveriam
tocar as extremidades das montanhas, cujas matérias já eram ricas em nitratos e demais sais,
em concurso com as substâncias decompostas de vegetais e animais. Esse procedimento não
era, deveras, muito diferente do que José de Sá Bittencourt Accioli havia apresentado no seu
modo de se produzir nitreiras artificiais, considerando os pressupostos elementares que
concorriam para a formação do salitre artificial, quais sejam, a retenção adequada do sol, o
contato com a umidade necessária e os insumos decompostos de animais e vegetais para a
formação do nitro. José Vieira Couto balanceou muito bem os recursos naturais necessários
para o estabelecimento da indústria química do nitrato de potássio: aproveitar-se-iam os sais
já formados pela natureza para que se formassem o composto químico desejado.
Couto reiterou várias vezes a qualidade do solo brasileiro e as oportunidades que se
poderiam tirar do mesmo para o êxito da indústria química. Havia, portanto, muitos recursos
408
Ibidem, p. 21.
409
AHU, Projeto Resgate - Minas Gerais (1680-1832), cx. 147, doc. 1, 3 de janeiro de 1799; COUTO, José
Vieira. Memória sobre a capitania das Minas Gerais. Coordenação de Junia Ferreira Furtado. Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro, dez.1994.
410
AHU, Projeto Resgate - Códices (1548-1821) e (1671-1833), códice 2095, 20 de maio de 1803, p. 21.
411
Conjunto de alpendres que tem por base uma construção.
412
AHU, Projeto Resgate - Códices (1548-1821) e (1671-1833), códice 2095, 20 de maio de 1803, p. 23.
171
tambem sabido que coisa he, que quando qualquer genero de qualquer fabrica, ao
sair della, pela vileza de seu preço se estanca, e não pode sofrer exportação alguma,
muitas vezes se esse genero, com mais huma pequena mão d’obra, he se susceptivel
de se lhe dar mais valor, então isso feito, he já exportado, e a fabrica, próxima a
expirar, florescer. 414
Ele advogou que alocar os mesmos trabalhadores, ie. escravos, que estivessem
envolvidos com a extração do salitre era a solução mais racional para que as atividades dessa
empreitada fossem possíveis. Em relação aos outros insumos necessários à fatura da pólvora,
caberia ao Estado fornecê-los. Entre os produtos rejeitados pelos mineiros envolvidos com a
extração do ouro, havia a abundância de “[…] pyrites sulforosas […]. Ficará muito mais
barato a S. A. compralas aos mineiros, do que extrahilas por sua conta […]”415 .
A parte que segue o trabalho das pesquisas desenvolvidas por José Vieira Couto na
Memória sobre as nitreiras naturaes e artificiaes de Monte Rorigo toca num ponto crucial
pela qual José de Sá Bittencourt também fez importantes apontamentos, qual seja o da
exportação das produções das ditas fábricas. A princípio, ele rebate o argumento de que um tal
413
Vale dizer que o naturalista afirma que a Fazenda Real tinha a intenção de, considerando o êxito da extração
do salitre, pagar “[…] de cinco a seis mil reis [...]”. Idem, p. 30.
414
Ibidem, pp. 33-34. Nesse caso, Vieira Couto afirma que “em tal caso, quando se não possa conseguir, que o
quintal de nitrato chegue a referido preço a porto de mar; na mesma fabrica, com mais hum pouco de trabalho,
lhe aumentaremos cinco ou seis vezes o seu valor, reduzindo-o a pólvora: hum quintal de polvora, que são dois
barris, em beira mar, o seu preço ordinario anda de 30: para 32:000 ŕ.”. Idem, p. 34.
415
Ibidem, p. 35.
172
gênero de indústria instalado no seio do sertão teria pouco escoamento e seria de grandeza
medíocre. Para resolver a importante matéria da exportação, o conselho apontado é o uso do
rio Paraúna, cujo acesso se daria a vinte ou trinta léguas das portas da fábrica, que desemboca
no rio das Velhas. O destino final era Vila Rica, de onde o produto poderia ser escoado, de
forma irradial, para outras comarcas e o litoral baiano ou carioca.
Havia também outro caminho apontado por ele como “muito mais expedito. Este he o
canal do Rio Doce.”416. Do monte Rorigo até o local de embarque, situado no Rio Vermelho,
ele calculou a distância em trinta léguas, o que corresponderia a seis a oito dias de viagem,
contando com a auxílio de animais próprios para o transporte de altas cargas. Como
conclusão, Vieira Couto justificou o empreendimento:
eis aqui a brilhante perspectiva das Fabricas de Monte Rorigo, perspectiva nada
chimerica, mas toda verdadeira e solida, como fundada na realidade das coizas: pois
que em Monte Rorigo existem estas riquezas e immensas existem essas estradas,
existe a forçosa necessidade, e carencia de hum tal sal […].417
416
Ibidem, pp. 41-42.
417
Ibidem, p. 46.
418
Ibidem, pp. 60-61.
173
manufatura, bem como ao fornecimento de mão de obra escrava que a divisão de trabalho em
uma fábrica de salitre exigiria.
Fonte: AHU, Projeto Resgate - Códices (1548-1821) e (1671-1833), códice 2095, 20 de maio de 1803.
aquele ministro um dos maiores interessados na promoção das pesquisas do salitre na colônia
brasileira419, o que contribuiu para projeto não saísse do plano teórico.
419
Cf. PEREIRA, Magnus R. M. D. Rodrigo e frei Mariano: A política portuguesa de produção de salitre na
virada do século XVIII para o XIX. Topoi, Rio de Janeiro, v. 15, n. 29, pp. 498-526, 2014.
175
CONSIDERAÇÕES FINAIS
420
Cf. NOVAIS, Fernando A. A proibição das manufaturas no Brasil e a política econômica portuguesa do fim do
século XVIII. Revista de História, [s.l.], n. 142-143, pp. 213-237, 2000.
421
A pólvora também foi essencial para o desmonte e acesso de áreas em estavam depositados o ouro que não
havia sido conquistado na capitania de Minas Gerais. Em outros casos, o salitre era usado para fins medicinais.
422
Houve um intenso envio de amostras de minérios e minerais para apreciação na metrópole.
177
intelectuais estiveram sob o patronato de D. Rodrigo de Sousa Coutinho quando esse foi
ministro de Estado.
As proposições relativas ao salitre ficaram mais circunscritas ao plano teórico.
Destarte, José de Sá Bittencourt e Accioli, na capitania da Bahia, e José Vieira Couto, na
capitania de Minas Gerais, apresentaram projetos específicos para o aproveitamento em escala
industrial daquele composto químico. As Memórias423 redigidas por esses naturalistas refletem
alguns pontos cruciais relativos à manufatura química, quais sejam: a ampla defesa da
instalação de fábricas de salitre a partir do método de nitreiras artificiais, cujos resultados
seriam muito maiores e mais efetivos; o estabelecimento de caminhos, sejam eles terrestres ou
fluviais para o escoamento das produções das fábricas tanto para as demais localidades do
Brasil quanto para os portos; a defesa do Estado português como financiador prioritário dessas
empreitadas, com vistas a substituir as importações no abastecimento das necessidades do
Reino e a ser o primeiro beneficiário com a venda dos excedentes da produção.
Em relação ao ferro, encontramos, mais vez, José Vieira Couto, na capitania de Minas
Gerais, como proponente da instalação de uma indústria metalúrgica local. 424 As análises de
Couto procuraram mapear os tipos de minérios que continham ferro, o que era inédito naquele
momento, ao mesmo tempo que era etapa inicial e fundamental para pleitear o beneficiamento
industrial daquele recurso. No entanto, para Vieira Couto, essa indústria constituiria um
apêndice da indústria aurífera.
De maneira prática, o projeto capitaneado por Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt,
outro que fez proposições acerca do beneficiamento do ferro na capitania de Minas Gerais,
efetivou as propostas que a administração pública elegera. Elas começaram a ser formuladas a
partir de 1780, quando chegou ao governo da capitania D. Rodrigo José de Menezes, que
passou a defender a implantação da metalurgia e da siderurgia no Brasil. Manuel Ferreira da
Câmara foi responsável pela construção da Real Fábrica de Ferro de Gaspar Soares,
empreendimento que foi marcado por uma série de revezes, principalmente em razão da falta
423
Cf. ACCIOLI, José de Sá Bitancourt e. Memória sobre a viagem do terreno nitroso dos Montes Altos. O
Auxiliador da Industria Nacional, Rio de Janeiro, v. 13, pp. 85-114, 1845; Arquivo Histórico Ultramarino.
Memória sobre as nitreiras naturais e artificiais de Monte Rorigo na capitania de Minas Gerais, escritas por José
Vieira Couto. Códice 2095. AHU_ACL_CU - Cod. 2095.
424
Cf. Arquivo Histórico Ultramarino. Memória escrita por José Vieira Couto sobre a capitania das Minas, seu
territorio, clima e produccoes metalicas, sobre a necessidade de se estabelecer e animar a mineracao decadente
do Brasil, sobre o comercio e exportacao dos metais e interesses regios, com um apendice sobre os diamantes e
nitro natural. cx. 147, doc. 1, 3 de janeiro de 1799. AHU_ACL_CU_011, Cx. 147\Doc. 1; COUTO, José Vieira.
Memória sobre a capitania das Minas Gerais. Coordenação de Júnia Ferreira Furtado. Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro, 1994.
178
de um corpo técnico especializado, tanto para a montagem da parte estrutural, quanto para a
operação dos fornos aos moldes que eram usuais na Europa.
A capitania da Bahia, em relação à pesquisa e à obtenção do ferro, apresentou algumas
características que não eram usuais para o período aqui analisado. Francisco Gomes
Agostinho, religioso e comerciante, foi o agente que propôs a instalação de uma companhia
de exploração metalúrgica, usando de cabedais próprios. Agostinho Gomes, embora não tenha
frequentado os centros acadêmicos lusitanos, era influenciado pelas premissas ilustradas. As
informações relativas à companhia, conforme as fontes que consultamos, não indicam que
tenha sido levada à diante ou tenha produzido resultados. De forma diversa à Real Fábrica de
Ferro de Gaspar Soares, esse o projeto de instalação desse estabelecimento não contou com o
investimento direto do Estado português e a exploração das áreas com os depósitos de
minérios se daria por meio da concessão de sesmarias ao proprietário.
Ponto fundamental para a realização das investigações e da efetiva instalação de
manufaturas, como observamos, foi a atuação de D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Defensor da
produção de salitre e do ferro na América portuguesa, D. Rodrigo forneceu a proteção política
para que os naturalistas luso-brasileiros realizassem suas viagens filosóficas e ensaiassem as
fábricas que beneficiassem esses recursos. A evidência desse processo é verificada quando ele
deixou a vida pública, em 1803 e boa parte dos projetos aqui analisados foram findados. A
criação de uma rede de intelectuais sob sua tutela, bem como o patrocínio para a publicação
de obras que auxiliassem essa política reformista marcaram suas ações na vida pública.
Outra questão que prejudicou a continuidade da indústria química brasileira foram as
agitações políticas ocorridas nos anos inciais do século XIX em Portugal. As atenções
estiveram voltadas para os conflitos que estavam ocorrendo entre as nações europeias e,
sobretudo, pelo temor das invasões napoleônicas que, para os administradores portugueses,
era iminente.
Conforme indicamos, as tentativas de instalação de fábricas no Brasil foram
prejudicadas pela ausência de especialistas aptos nos processos industriais que, em fins do
século XVIII e início do XIX, configuravam-se como os mais adequados para esses intentos.
Portanto, muitas dessas iniciativas foram reduzidas à aplicação dos conhecimentos dos
naturalistas, que, embora conhecessem as características necessárias para a instalação dos
processos industriais de produção, não poderiam exercer todas as atividades que esses
empreendimentos necessitavam. Assim, as propostas encontradas nas Memórias exigiam a
179
formação de um corpo técnico que não foi capaz de ser preparado a tempo para a implantação
da indústria química e metalúrgica. Importa lembrar que muitos dos naturalistas, entre eles
José de Sá, defenderam o uso de escravos para a realização dos trabalhos numa eventual
fábrica de salitre, visto que os valores finais da empreitada seriam menos onerosos ao Estado.
Além disso, como citamos, a questão do transporte das possíveis produções dessas
fábricas foi um ponto de estrangulamento para o êxito dos projetos registrado pelos
naturalistas. Não havia uma estrutura logística que garantisse o escoamento das eventuais
produções das fábricas de salitre e, no caso efetivo das produções da Real Fábrica de Ferro de
Gaspar Soares, o preço do produto final acabara por ser muito maior devido aos encargos do
transporte em estradas incipientes ou por rios altamente insalubres.
Notamos que essas experiências, excetuada a da Real Fábrica de Ferro de Gaspar
Soares, apesar de terem ficado circunscritas a planos teóricos, levaram em conta as
especificidades do Brasil e, conforme os métodos usuais na Europa daquele período,
procuraram tornar praticáveis as técnicas a partir da realidade climática, de disposição dos
minérios e minerais e dos recursos instrumentais disponíveis no Brasil. Em outras palavras,
houve um momento na histórica colonial em que um conjunto de intelectuais nascidos no
Brasil tentaram transpor os conhecimentos usuais iluministas da Europa para a América
portuguesa.
A adoção da ciência ilustrada nos sugere não apenas como o passado colonial
brasileiro ensaiou as práticas da química, da metalurgia e da mineralogia ensinadas nos
centros acadêmicos e na literatura científica do período subsumidas à realidade colonial, mas
também, a partir dessas mesmas práticas, abriu espaço para a manufatura do salitre e do ferro
num escopo pragmático e utilitário que visou resultados em escala industrial.
As Memórias redigidas pelos naturalistas luso-brasileiros, no caso desta dissertação as
escritas por José Vieira Couto e José de Sá Bittencourt e Accioli, também nos indicam como
os planos elaborados pelos mesmos pesquisadores apontam para as diretrizes iniciais
estabelecidas de forma que uma indústria na realidade da colônia pudesse operar.
Faz-se necessário reiterar que o pleiteamento para a instalação de fábricas operadas
com o pragmatismo utilitário só foi possível graças à ampla associação ao aparato político do
período aqui estudado. Ou seja, o encetamento para que existissem manufaturas químicas e
metalúrgicas dependeram dos anseios reformistas do quadro político. Podemos considerar,
portanto, que graças ao complemento do apoio governamental, assim como da sugestão do
180
Estado como controlador dessas empreitadas, podemos chamar essas experiências estudadas
nesta dissertação de manufaturas políticas.
Em síntese, observamos que as políticas do Estado português fomentaram medidas
técnicas para o estabelecimento de manufaturas na América portuguesa, embora essas mesmas
medidas tenham sido colocadas em prática apenas em parte. Em alguns casos, estiveram
restritas ao processo inicial de investigação, bem como à etapa de ensaios para
aproveitamento do salitre e do ferro, o que nos aponta para uma postura singular em relação à
conjuntura colonial brasileira. A estrutura da fábrica instalada por Manuel Ferreira da Câmara
Bittencourt representou o resultado prático do projeto luso-brasileiro de criação de uma
siderurgia em Minas Gerais. Ela fora inicialmente proposta por José Vieira Couto, a partir das
pesquisas sobre o ferro que realizou na mesma capitania. No entanto, ela enfrentou vários
problemas citados nesse trabalho. A despeito dessas dificuldades, esta dissertação procurou
revelar como os naturalistas luso-brasileiros procuraram transformar a natureza amparados
pela metodologia iluminista, de matiz científico e pragmático daquele período, empreitada
que contou com o apoio do Estado português, ainda que limitado e descontínuo em suas
ações.
181
REFERÊNCIAS
Fontes
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fazer o salitre, do envio de informações sobre o número de religiosos e dos bens e
rendimentos de cada uma das ordens; o estado em que se encontram as capitanias; o estado
das tropas, as propostas para os postos militares e os fardamentos de que necessitam, as
medidas para evitar o contrabando dos navios estrangeiros e para implementar a defesa dos
domínios do Brasil cx.30, doc. 2491. 4 de outubro de 1798. AHU_ACL_CU_003, Cx. 30\
Doc. 2491.
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a necessidade de canhões, morteiros e pólvora para a defesa da capitania. cx. 27, doc. 2439,
28 de junho de 1726. AHU_ACL_CU_005, Cx. 27\Doc. 2439.
CARTA particular de Francisco Agostinho Gomes para D. Rodrigo de Sousa Coutinho em que
o felicita por ter sido nomeado administrador das rendas reaes e do Real Erario. cx. 116, doc.
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Ceará
CARTA de José Vieira Couto para {D. Rodrigo de Sousa Coutinho] queixando-se da falta de
meios de subsistência e equipamento para as suas experiências químicas. Pede o
abastecimento dos vasos de vidro da lista que junta. cx. 149, doc. 30, 30 de julho de 1799.
AHU_ACL_CU_011, Cx. 149\Doc. 30.
CARTA de José Vieira Couto, informando ao secretário de Estado sobre o envio de dois
caixões de salitre extraídos das nitreiras naturais a que denominou Monte Rorigo. cx. 166,
doc. 77, 20 de maio de 1803. AHU_ACL_CU_011, Cx. 166\Doc. 77.
CARTA de Pedro Leolino Mariz, dando conta da necessidade que ha em se extrair salitre na
Serra dos Montes Altos. cx. 69, doc. 76, 11 de maio de 1756. AHU_ACL_CU_011, Cx. 69\
Doc. 76.
MEMÓRIA escrita por José Vieira Couto sobre a capitania das Minas, seu territorio, clima e
produccoes metalicas, sobre a necessidade de se estabelecer e animar a mineracao decadente
do Brasil, sobre o comercio e exportacao dos metais e interesses regios, com um apendice
sobre os diamantes e nitro natural. cx. 147, doc. 1, 3 de janeiro de 1799. AHU_ACL_CU_011,
Cx. 147\Doc. 1.
Pernambuco
Pinto de Sousa [Coutinho], sobre ter enviado cartas às câmaras e aos ministros desta e das
capitanias anexas, informando o aviso que determina o fim do monopólio do sal, a moderação
nos direitos sobre o ferro e a introdução de escravos. cx. 189, doc. 13079, 18 de agosto de
1795. AHU_ACL_CU_015, Cx. 189\Doc. 13079.
OFÍCIO [cópia] do [vice-rei do Estado do Brasil], conde de Resende, [D. José Luís de Castro]
ao [secretário de estado dos Negócios Estrangeiros, da Guerra e interino da Marinha e
Ultramar], Luís Pinto de Sousa [Coutinho], informando o cumprimento da ordem régia de 4
de Maio do mesmo ano, que determinava a extinção do monopólio do sal no Rio de Janeiro,
ficando livres todas as salinas que se puderem estabelecer naquela capitania e acessíveis a
todos os colonos, e compensação se proceda ao aumento do valor do imposto cobrado nos
direitos deste ou de outros gêneros, como o ferro, de modo a ressarcir o Erário Régio pelas
perdas ocorridas com a benesse concedida. cx. 156, doc. 11782, 31 de outubro de 1795.
AHU_ACL_CU_017, Cx. 156\Doc. 11782.
OFÍCIO [cópia] do [vice-rei do Estado do Brasil], conde de Resende, [D. José Luís de Castro]
ao [secretário de estado dos Negócios Estrangeiros, da Guerra e interino da Marinha e
Ultramar], Luís Pinto de Sousa [Coutinho], sobre a concordância da vila de São João da Praia
em aplicar a nova legislação relativa ao fim do monopólio do sal e do aumento do imposto da
mineração do ferro naquela capitania. cx. 156, doc. 11796, 4 de novembro de 1795.
AHU_ACL_CU_017, Cx. 156\Doc. 11796.
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minas de ferro e cobre daquele estado. II-33,34,20 – Manuscritos. 12 de julho de 1799.
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