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3 - A poética brasileira de autoria feminina

A consolidação da literatura de autoria feminina, cuja trajetória, timidamente

iniciada em meados do século XIX, ganha consistência no transcorrer do século XX,

suscita, conforme têm demonstrado muitas pesquisas no âmbito dos estudos de gênero,

novas possibilidades, inclui outras perspectivas sociais e amplia a gama das

representações literárias tradicionais. É sabido que o cânone literário ocidental,

historicamente constituído de obras escritas por homens, brancos e da camada

sociocultural economicamente privilegiada, é impregnado de ideologias dominantes, as

quais lhe regem os códigos de produção e de representação. Daí não comportar qualquer

tipo de produção literária que não corresponda aos modelos propostos pela hegemonia

dominante, masculina, branca e de classe alta.

No Brasil, devido a questões de poder e de ideologia, a inserção da mulher no

cenário literário foi lenta e árdua. A institucionalização da leitura e da literatura foi

francamente discriminatória; prevalecia o pensamento de que as mulheres eram

intelectualmente inferiores aos homens, e, portanto, sua forma de pensar e de escrever

também o seria. Assim, ainda que a capacidade intelectual de muitas mulheres fosse

inquestionável, muitas vezes só existia de modo potencial. E, não possuindo nem a

independência intelectual nem a material – e uma coisa é ligada à outra –, a mulher

(aquela considerada moralmente válida) não tinha como avançar muito além dos muros

de seus quintais para adquirir uma cultura ampla e superior.

Foi com muita dificuldade que os cercos dessa cultura preconceituosa se

romperam e as mulheres começaram a publicar seus livros, já em meados do século

XVIII. Porém, só mais ao final do século XX foi possível o contato com obras que

revelam a intensa participação feminina nas letras nacionais. O trabalho algo

arqueológico das pesquisas acadêmicas e de alguns institutos culturais foi determinante,

e ainda tem sido, para trazer à luz a valiosa contribuição de escritoras do passado, seja
na prosa, na crônica ou na poesia. E hoje, graças a esforços conjugados, pode-se dizer

que a reconstrução de uma tradição literária feminina no Brasil já está bem estabelecida,

já se sabe que a lista de nomes femininos em nosso passado literário é bastante extensa,

embora, em sua maioria, esses nomes tenham amargado uma longa permanência na

invisibilidade.

A esse respeito, ao se olhar para as construções históricas que tratam de

narrativas literárias, encontrar-se-ão páginas repletas de escritores, que assumem a voz

nacional e, de acordo com diferentes historiadores e formadores do cânone literário,

proclamam as verdades do Brasil. Rita Schmidt reitera, no texto “Pensar (d)as margens:

estará o cânone em estado de sítio?” que nosso cânone, tal como se configura hoje nas

histórias literárias, nascia, assim, como um constructo estratégico cujo poder simbólico

residia na função de projetar uma realidade que dissimulava os mecanismos de exclusão

na função homogeneizadora, na intenção imaginária da sociedade como uma totalidade.

Evidencia-se assim, o fato de que as letras e a literatura foram formadas a partir

do reforço de um cânone masculino. É nesse viés que se pode compreender a ampla

resistência no reconhecimento da mulher como escritora já que esta não consegue

alcançar a alta qualidade da produção masculina. O Brasil é masculino e, como no

restante dos países de cultura Ocidental, os sujeitos femininos são marcados pela não

presença, sendo, assim, relegados a um segundo plano.

Entretanto, em um recente movimento passa-se a desconfiar da universalidade

do masculino pregado pela literatura. É no século XX, com o advento dos Estudos

Culturais, que a produção feminina de diferentes tempos começa a ganhar destaque.

Como forma de desconstrução de um discurso androcêntrico, que nega a legitimidade

dos discursos das mulheres e coloca o interesse da prerrogativa dos homens como o

modelo humano de representação, estes acabam por problematizar o conceito de

cânone, o qual passa a ser percebido como o espaço de conflitos e contradições

articuladas ao poder. Sobre os Estudos Culturais, no livro “Introdução aos estudos


literários”, Roberto Acízelo acentua, “partindo dessa premissa de que não há

propriamente cultura, porém culturas, os estudos culturais propuseram uma ampla

revisão do chamado cânone, isto é, o conjunto das grandes obras literárias reconhecidas

por seus supostos valores universais”. O teórico acrescenta que tais estudos aproximam

a literatura de uma noção de representação, colocando, assim, diferentes noções de

literatura em destaque. Sobre o afirmado ele notabiliza que “se há uma ‘literatura de

mulheres’, por exemplo, podemos supor que essa produção se define por deixar

transparecer uma identidade, ou, dizendo de outro modo, por ser representativo do

feminino, por ser sintoma dessa condição”. Nessa perspectiva, o século XX acentua o

importante trabalho de resgate de nossas escritoras como forma de mudar a

historiografia oficial, transformando também a maneira com que a história é encarada.

Colocar as mulheres em primeiro plano é deixar de ignorar suas significativas

contribuições à literatura.

Isto posto, o presente texto busca analisar o espaço reservado à poesia de autoria

feminina na literatura brasileira.

No século XIX, algumas poetas, a partir de reflexões sobre o que é “ser mulher”

e sobre as consequências derivadas dessa concepção em uma sociedade extremamente

machista, começaram a engendrar caminhos antes não percorridos e considerados tabus

para a época. Um deles é expressão do desejo que começa a ser tema de vários poemas.

Como escrever era uma transgressão, falar sobre o desejo, as aspirações da carne e da

alma era ainda mais transgressor. Por isso, de acordo com Sylvia Paixão, no livro “A

repressão do desejo na poesia feminina: a fala-a-menos”, as poetas se valeram de

estratégias retóricas para expressar, de forma sutil, esse desejo. Dentre essas estratégias,

uma delas foi o recurso a metáforas florais por meio das quais as mulheres puderam

falar de amor, dor, desejo, erotismo sem, necessariamente, romper com os códigos

comportamentais impostos ao sexo feminino. Ou seja, considerando-se que amor e flor

eram temáticas previamente determinadas, as poetas se valeram de tais temáticas, vistas


como amenas, para expor seus desejos mais íntimos, reprimidos e secretos, como forma

de escapar ao cerceamento social, apresentando uma eroticidade camuflada”.

Pensando nesta perspectiva, objetivamos com este texto colocar em contexto as

distintas perspectivas em que o erotismo se configura como denominador comum na

poesia produzida por mulheres brasileiras. Para realização do referido estudo,

trabalharemos com as autoras Gilka Machado (1893-1980), Hilda Hilst (1930-2004),

Adélia Prado (1935) e Marina Colasanti (1937). Mostraremos em nossas análises que as

poetas citadas usam como característica principal em suas poesias o sujeito lírico

feminino em primeira pessoa do singular, para confessar ao leitor os seus impulsos

eróticos e desejos. Esse traço característico funciona como uma crítica às normas

impostas geralmente ao corpo feminino, e um convite às mulheres para a descoberta de

seus próprios desejos. Diferente disso, na poesia erótica de autoria masculina, o que

comumente prevalece é a contemplação (ou idealização) do corpo e da sexualidade

feminina. Observamos que em contrariedade a tal posicionamento machista e patriarcal,

as mulheres buscam produzir seus textos poéticos enfocando a libertação de si e de seus

desejos amorosos, sexuais e eróticos.

Nossa sociedade, orientada por valores patriarcais, sempre buscou autoimpor

regras sobre o que não pode ser mostrado e o que pode ser visto. Aos olhos de uma

sociedade massivamente patriarcal, o corpo masculino nunca representou desordem na

conduta imposta. As questões relacionadas a esse corpo não passavam pelas mesmas

restrições que a mulher era submetida, dessa forma, para Simone de Beauvoir, a

humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele;

ela não é considerada um ser autônomo.

Gilka Machado foi uma das principais poetas que cravou em suas obras a

temática do desejo enquanto expressão erótica da existência. Ela “introduz na sua fala a

proposta desse deleite sensual fazendo do olfato, da audição e, sobretudo, do tato, a

maneira de cindir o seu próprio Eu, identificando-se inteira no seu desejo do outro. No
conjunto de sua obra, Machado, mais que objeto de desejo, mostra-se como sujeito que

deseja; de tal forma que alguns estudiosos chegaram a confundi-la com o eu lírico dos

poemas que escreveu. No poema “Volúpia”, por exemplo, em consonância com a

produção de outras poetas oitocentistas, Gilka Machado fala do desejo que não lhe é

permitido expressar abertamente. Por isso, camufla esse desejo a partir de metáforas. O

título do soneto sinaliza para o prazer sexual que se espraia ao longo de cada verso e

que tem na imagem da serpente a sua maior expressão. A volúpia de que trata o poema

se afigura como uma força atávica que faz parte da natureza. Para Angélica Maria

Santos Soares, no livro “A paixão emancipatória: vozes femininas da liberação do

erotismo na poesia brasileira”, a voz poética de Gilka é de tão grande potência que tem

a capacidade de romper com os paradigmas patriarcais que circulam no universo

literário. No soneto “Sensual”, a poeta em tom confessional expressa seus desejos

carnais. Nesse poema, o eu lírico expressa seus desejos e sensações por meio de um

discurso que parte de suas mais simples confissões. O eu lírico que representa o sujeito

feminino vive um grande paradigma: embora ele sinta o desejo de viver as mais belas

aventuras, se sente preso as regras pré-estabelecidas pela sociedade tradicional que por

muito tempo limitou o espaço da mulher no mundo. Por medo de perder seu valor

diante da sociedade o eu lírico prefere não libertar seus desejos e viver as emoções que

pode lhe custar muito caro.

Hilda Hilst é outra autora que teve uma produção literária marcada pela

expressão erótica. O erotismo está presente em todos os gêneros literários escritos pela

autora. A poesia de Hilda pode despertar o senso de comédia ou de tragédia. Isso ocorre

porque a autora mistura tons de humor e erotismo em suas poesias. No poema “Araras

versáteis” é possível perceber que a ambientação usada por Hilda mescla o espaço

natural com a relação sexual animalesca. O eu lírico sutilmente esquece os julgamentos

para fazer uma breve descrição do corpo feminino. Embora haja certo deboche na

descrição do corpo, a ideia não é satirizar, mas sim expressar os desejos mais fugazes.
Adélia Prado usa suas próprias experiências de vida como estímulo para sua

escrita e assim traduz suas contradições íntimas e vivências em lírica erótica. O poema

“Festa do Corpo de Deus”, por exemplo, traz alguns das representações com os quais

Adélia trabalha: o poema é atravessado por representações que dialogam com a

fragilidade do corpo, com a religião, sentimento, entre outros. Dessa forma, por possuir

uma linguagem complexa e multifacetada o poema pode ser percebido como

transgressor. Reitera Soares (1999), o poema de Adélia junta questões que circulam

entre no universo do profano ao simbolizar a festa e, no campo do sagrado com a

representação do corpo de Cristo que em outras palavras podemos inferir que o poema

revela a celebração de um ‘Cristo erotizado’.

Apesar de Marina Colasante ter alcançado reconhecimento nacional e

internacional por sua vasta produção literária direcionada para leitores do público

infantil e juvenil, a autora também é responsável por uma poética de expressão erótica,

que aparece em obras como “Gargantas abertas” (1998), “Fino sangue” (2005) e

“Passageira em trânsito” (2009). O poema “Rota de colisão” é atravessado por

características da poética erótico-amorosa, por possuir uma linguagem repleta de

subjetividade e um contexto que retrata o processo de amadurecimento (ou mesmo o

envelhecimento feminino). Aspectos do existencialismo feminino são representados

pela interrogações no início do poema: esses sinais de pontuação podem representar a

dificuldade de identificação do eu lírico feminino com o seu próprio corpo. Esse e

demais outros poemas de Marina Colasante representam uma grande ruptura no

cenário literário brasileiro. Como mostrado no poema, Colassante mescla temáticas

muito próximas do ser humano, como os próprios questionamentos acerca de sua

existência, o erotismo e a própria condição de ser humano. “Os poemas eróticos de

Colasanti transgridem a lógica tradicional ao instaurar a temática erótica, por meio de

uma linguagem explícita e a partir da enunciação feminina”.


A poesia de Gilka, Hilda, Adélia e Marina reverbera o erotismo sob diversas

perspectivas colocando “corpo e prazer ainda precisam ser reivindicados”, o “corpo

e natureza se mesclam e se envolvem nesse processo de autodescoberta”, em

outros casos “o riso e o sarcasmo nas descrições do sexo são formas de

estremecer a moral vigente”.

Esta antologia é aberta pelo emblemático poema “Vozes-mulheres”, de

Conceição Evaristo. Nesse poema aparecem vozes de mulheres de diferentes gerações

(bisavó, avó, mãe e filha), cada qual ecoando algo diferente. A voz da bisavó ecoa

“lamentos de uma infância perdida”, a da avó, “obediência aos brancos-donos de tudo”,

a da mãe, “revolta”, a voz do eu-lírico ecoa “versos perplexos com rimas de sangue e

fome”, e a da filha recolhe todas essas vozes, ecoando “vida-liberdade”. Esse processo

reflete a tomada de voz, a apropriação da escrita como uma forma de resistência a

sistemas de opressão como o patriarcado, o racismo e toda espécie de preconceito e

estereótipos. Na antologia, autoras mais conhecidas como Cristiane Sobral, Esmeralda

Ribeiro, Conceição Evaristo e Mel Duarte dividem espaço com poetas e escritoras

iniciantes.

Jarid explica que em 2019 abriu uma chamada pública para escritoras negras

enviarem seus contos e poemas para comporem uma antologia, independentemente de

essas autoras já terem sido publicadas ou não. Como a grande maioria dos textos

enviados foi poema, ela optou por publicar exclusivamente poemas. Seu objetivo com o

livro era refletir a diversidade estética e temática do universo de escritoras negras e

mostrar a existência dessas autoras, que ainda lutam para ter visibilidade em um

mercado editorial que ainda exclui muitas delas.

Somos agraciados com esta antologia, que apresenta diversas escritoras do Brasil

afora. Alguns dos poemas são acompanhados de ilustrações e todos são iniciados pelo
nome da autora, sua cidade e estado. São autoras de todas as regiões do país e de

diversos estilos literários.

Dentre os variados temas aparece com grande recorrência o corpo da mulher

negra como um corpo digno de respeito, de beleza, de admiração, diferentemente da

forma estereotipada como esse corpo geralmente é apresentado na literatura e na mídia.

A negritude é exaltada ao longo da grande maioria dos poemas.

Dentre os temas aparece a solidão da mulher negra, o amor que muitas vezes não

chega a essa mulher, reflexo do racismo fundante da sociedade brasileira. A

ancestralidade encontra um grande eco e as vozes dos ancestrais são reverenciadas.

Aparecem também a desigualdade de oportunidades entre brancos e negros na

sociedade brasileira, a denúncia do genocídio de jovens negros, do encarceramento em

massa, a falsa meritocracia que embasa discursos racistas.

Temas como direito ao corpo, aborto, orgasmo, amor heterossexual e

homoafetivo, maternidade, gozo como ato revolucionário, entrega, memória, medo,

resistência ao silenciamento imposto e à submissão, denúncia da violência doméstica

também aparecem com grande recorrência ao longo dos poemas.

Há também uma reflexão sobre o processo de escrita. No poema “mãos que

escreveram primeiro”, de Carina Castro, lemos:

toda vez que me faço fio no papel

a terra reverbera

subterraneidades
inscritas na pedra

com os dedos trançados

o ontem e o hoje abrem caminhos na ponta afiada (p. 26).

Esse trecho nos mostra a potência da escrita dessas mulheres negras que se

expressam por meio da escrita e falam de um universo plural que lhes é próprio. Essa

escrita reverbera, traz o passado, o presente, questiona, analisa a realidade social em que

essas mulheres estão inseridas. No poema “Todas as cores de preta”, de Jéssica Regina,

podemos observar como o lugar da escrita se torna o lugar da autoafirmação:

Gritaram! Gritei!

Briguei! Calaram.

Não me calaram.

Não calarão.

Não apagarão

O negro em preto e branco

Sou preta

Sou negra de todas as cores.


De todos os tons

Sou todas as cores.

Sou todas as pretas. (p. 59).

Ao longo desta antologia nos deparamos com a pluralidade de ser mulher negra,

com sua luta para falar, para existir, para questionar um padrão que é socialmente

imposto e que tenta cercear a mulher negra da fala e do ato.

Jarid Arraes dá voz a essas escritoras negras que bradam contra o racismo, o

patriarcado, contra o apagamento de suas origens étnico-raciais. Os textos são marcados

por uma voz poética que fala contra um discurso hegemônico que destitui o corpo negro

de beleza, de intelectualidade. São recolhidas diversas vozes que revelam como a escrita

pulsa na mão dessas escritoras de diferentes gerações e regiões do país, que não aceitam

serem excluídas da cena literária, garantindo seu direito de fala, de grito, de denúncia.

ARRAES, Jarid (Org.). Poetas negras brasileiras: uma antologia. São Paulo:

Editora de Cultura, 2021.

Começamos esta reflexão com trechos de uma entrevista em que Esmeralda

Ribeiro apresenta alguns apontamentos acerca do processo de afirmação e consolidação

da literatura negra brasileira contempo-rânea a partir de 1978. Nesta linha de raciocínio,

ancorada por várias recordações que revisitam os antecedentes desse movimento, a

poeta negra brasileira narra a sua aproximação com o Grupo Quilombhoje Literatura

(1980); as estratégias e as posturas ideológicas assumidas pelo coletivo literário –

quanto ao resgate das raízes ancestrais negro--africanas e, por conseguinte, referente à

produção literária de autoria negra no Brasil.

Desse modo, cumpre assinalar que, nas formas de engajamento político e

epistêmico, Esmeralda relembra os momentos decisivos para assegurar a existência de


um movimento literário sob uma clave anticolonial e antirracista, cujas reflexões

postulam contornos diversos e se expandiram durante o século XX. Assim, era

necessário dar início a um movimento conjunto que adjudicasse o protagonismo ao

escritor negro e escritora negra no Brasil.

Nesse debate epistêmico-político, Esmeralda rememora que, na-quele contexto

de uma intensa disputa de narrativa e desejo de in-subordinação aos padrões artísticos

vigentes, surgiram muitas obras de poetas, prosadores, pensadores, críticos e

intelectuais, as quais interferiram fortemente na composição da historiografia, crítica e

teoria literária latino-americana. É no âmbito dessa perspectiva que a literatura negra

brasileira contemporânea investe na sua alforria como possibilidade de transgredir as

normas impostas do cânone literário.Quanto ao seu projeto estético, Esmeralda salienta

que esse mo-vimento literário negro brasileiro também denunciava as formas de

racismo, de discriminação, de opressão, de marginalização, de injusti-ças sofridas pela

população negra. Em uma perspectiva histórica atra-vessada pelo gênero e a raça,

chama a atenção ao fato de que indaga a ausência/presença de mulheres negras na

literatura: “Onde estão as escritoras?” Naquela época, as mulheres negras não tinham

apenas uma importância simbólica, mas eram convocadas a fazer parte desse tipo de

insurgência.Posta a problemática, ao falar do começo de sua trajetória, Esme-ralda

Ribeiro descreve a luta pelo direito a voz, escuta e visibilidade dos textos literários de

autoria negra e autoria negra feminina. Em paralelo, menciona que, no final dos anos

oitenta, ocorreu em São Paulo, I Encontro de Poetas e Ficcionistas Negros Brasileiros,

orga-nizado por jovens ativistas e militantes de movimentos sociais negros em que

desdobramentos incluíram impactos na linguagem e na visão de mundo dos

participantes.

Esmeralda Ribeiro considera que a literatura negra brasileira sofreu uma guinada

extraordiná-ria, pois, sendo herdeira de insurgências de seus/as antepassados/as,

resgatou esse legado negro-africano para enfrentar os desafios do presente. Nessa


configuração, intercambiando os seus dons e saberes diversos, a escritora acredita que

essa literatura passou corporificar um movimento de resistência política e cultural frente

aos cânones literário e historiográfico.

No livro “Uma história da poesia brasileira” Alexei Bueno No capítulo “A festa

modernista”, Cecília Meireles será a poeta escolhida como a de maior talento, entre as

mulheres, por Bueno. Após citar o nome da escritora em comparação ao de Jorge de

Lima na página trezentos e oito, “disputa” que a poeta sai na frente, ele dedica-se a

escrever algumas linhas sobre a escritora “moderna e intemporal” que Meireles foi.

Sobre a poeta o autor afirma “Tal livro [Obra Poética (1958)] marca a aparição da maior

poetisa brasileira de qualquer época, senhor de um estilo completamente pessoal dentro

do Modernismo brasileiro, no qual entre a forma fixa e o verso livre, desfilam todas as

possibilidades formais do idioma, com sutis influências ibéricas e portuguesas dos

cancioneiros até a contemporaneidade resultando num vasto e libérrimo arsenal de

processos expressivos através do qual se materializará o que de mais próximo à noção

de “poesia pura se escreveu no Brasil”. Suas origens simbolistas e elogios a poesia alta e

limpa de Meireles. Para Bueno, a poeta será, ao lado de Drummond, “um reservatório

inesgotável de surpresas, de riqueza técnica e expressiva” (2007, p. 325). O Romanceiro

da Inconfidência será lembrado por seu caráter épico nacional, por sua poesia alta e

limpa, de “uma popularidade que se julgaria difícil pelo há nela de aristocrático”6 , bem

como a citação de Memórias será utilizada como comprovação dos adjetivos que usa

para falar da poeta. feminina e da qual as mulheres não podem se esquivar, ainda que

tentem. Sendo como a serpente, o desejo encanta, seduz e, por mais que se procure
resistir, acaba-se inebriado por ele. Nesse sentido, ao expressar a relação desejo e

resistência, o eu lírico revela consciência de estar transitando por campos considerados

impróprios ao sexo feminino – corpo, sensualidade e desejo. Por isso, procura negar

esse desejo, mas o faz a partir de um discurso que se revela bastante sensual, o que

corrobora ainda mais o desejo que, a princípio, se quer negar. No final dessa luta, o que

temos é um corpo exangue em virtude dos efeitos que lhe causou o veneno forte e letal.

A impressão de leitura que fica é que, uma vez acontecida a irrupção do desejo, não há

como aplacá-lo. Embora fosse uma das temáticas prediletas entre os homens, o amor

como temário da produção literária de autoria feminina era tido como mais uma

transgressão, uma vez que, dentro das normas de pureza e recato, as mulheres não

poderiam expor suas emoções.

Em seu livro “Entre a literatura e a história”, Alfredo Bosi afirma que Cecília

Meireles, vinda do simbolismo do grupo Festa, exprimia nas cadências do seu verso um

modo de ser lírico que parecia aproximá-la antes da tradição portuguesa do que das

experimentações vanguardistas. No entanto, a poesia ressoaria fundo no ouvido de

Mário de Andrade, ainda que não concordasse com ela. Na análise de sua poesia, Mário

de Andrade escreveu dois artigos, publicados em “O empalhador de passarinho”,

intitulados “Cecília e a poesia” e “Viagem”. Neles, fica claro que o que atraía o leitor-

crítico era a capacidade da poeta de modular os metros mais tradicionais da língua

portuguesa, alguns dos quais medievais e populares, em função de um pensamento livre

e original que sofre, sente e indaga ao mesmo tempo. Sobre o poema “Música”, diz

Mário de Andrade: “Poesia pura. Momento de sensibilidade livre, nenhuma fixação

intelectual”.

Ana Cristina Cesar é uma figura emblemática da poesia brasileira contemporânea.


Poeta, tradutora e professora de literatura, sua vida e, principalmente, a opção pelo
suicídio que cometeu ainda jovem e bela contribuíram para a criação de um mito em
torno de sua figura. Porém, mais interessante do que a forma como levou sua vida, é a
forma como se estrutura seu fazer poético: uma escrita em tom íntimo, que, no entanto,
não chega a ser confissão pessoal, dialogando e se distancia, simultaneamente, dos
poetas contemporâneos.
A produção poética de Ana Cristina Cesar costuma ser associada a uma leitura
biografista. Tal chave interpretativa é observada, por exemplo, nas edições póstumas de
seus escritos.  Recheadas de fotos, homenagens e referências, na iconografia, a trechos
de seus poemas, levam a uma leitura baseada na biografia da autora.
Não é difícil compreender os motivos que inclinam a leitura da obra de Ana
Cristina Cesar para a chave biográfica: o forte apelo editorial e de parte da crítica, o tom
de confissão de intimidades de seus escritos(poemas compostos aos moldes de cartas,
diários e fragmentos de conversa) e a ingênua ligação, feita por parcela de seus leitores,
entre sua poética e, o que poderíamos chamar, de estética da geração mimeógrafo, são
alguns dos aspectos a serem apontados. Na esteira deste tipo de interpretação, um
trabalho que merece bastante destaque é o estudo de Italo Moriconi (1996), que
mesclando um esboço de biografia com análises de seus poemas, constituiu uma leitura
que parece buscar na obra uma explicação para a vida de Ana C, bem como para seu
trágico fim.
No entanto, nos parece bastante redutor, ao se empenhar um estudo sobre a poética da
autora, considerar o viés interpretativo da biografia em detrimento da análise de seu
método de construção literária. É possível pensar a questão da construção do eu-lírico
na poesia de Ana C.. Qual a configuração desse eu marcado, mas não corporificado?
Podemos considerá-lo como um método de despersonalização, na esteira da construção
poética da modernidade, tendo como exemplo a obra de poetas emblemáticos da
tradição literária moderna como Baudelaire, Mallarmé e Eliot.
Considerada essa questão, uma outra se coloca: a interlocução característica da
dicção poética de Ana Cristina. A críticas literária Flora Süssekind(1985) em um
interessante estudo sobre presença de múltiplas vozes na poesia de Ana C. elucida tal
ponto da seguinte forma:
Dá pra falar em biografia então? Talvez. Mas a biografia imaginária, em
fragmentos, de uma voz. É nesta direção que se encaminham os livros
incluídos em A teus pés (1982) e as duas últimas seções de Inéditos e
Dispersos. Como voz, e não propriamente como personagem, auto-
retrato, emblema geracional ou figura com máscaras ou contornos fixos, é
que se define o sujeito nos textos de Ana Cristina César. E como colagem
de falas, sucessão de tons, ritmos, conversas, que se singulariza sua forma
de composição poética. (p. 13)

As considerações de Ana C. e Flora Süssekind, expostas acima, corroboram para


uma leitura que, em certa medida, diferencia a produção de Ana Cristina do grupo de
poetas a que costuma ser associada: os poetas marginais. O fazer poético de tal grupo
teve como característica principal uma tentativa de unir vivência e expressão poética, ao
ponto de haver uma simbiose entre essas duas esferas. Para atingir esse objetivo, a
revelação de intimidades e a aproximação biográfica entre poete e eu-lírico foi um
artifício bastante utilizado.

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