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Uma mancha, uma terrível mancha de sangue colocada sobre o mapa de Minas Gerais, e por consequência,

também colocada sobre o mapa do Brasil e do Mundo. A cidade de Barbacena, interior de Minas Gerais,
situada a cerca de 170 quilômetros da capital mineira, teve seu solo manchado com o sangue de 60 mil pessoas
completamente inocentes. Pessoas que foram vítimas do maior genocídio já registrado em solo brasileiro.
Uma vergonha na história do Brasil, mas que se faz necessária, pois os erros da história apontam as diretrizes
do que não se deve fazer no futuro. A história do Hospital Colônia de Barbacena, carrega consigo dor,
sofrimento, tortura e choro. Essa não é, definitivamente, uma história para os fracos.
A história começa em 1903, com a criação do sanatório para o tratamento de pacientes com tuberculose,
sanatório esse, que a partir de 1930 se tornaria o Hospital Colônia de Barbacena e, hoje, é conhecido como
Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena. No início do século XX o Rio de Janeiro era a capital do Brasil,
uma cidade relativamente insalubre, a qual não tinha sequer a capacidade para acomodar a chegada da família
real no ano de 1808. Portanto, o Rio de Janeiro era o ambiente propício para a proliferação de doenças, visto
que até mesmo o esgoto da cidade corria a céu aberto. Em contraste com esse cenário, tinha-se a pacata cidade
de Barbacena, interior de Minas Gerais, cidade arborizada e de bons costumes, um local ideal para os doentes
se tratarem. Foi com essa ideia que então criou-se, na pacata cidade, um sanatório destinado o tratamento de
membros da elite que sofriam da grande enfermidade da tuberculose, doença que até então não tinha cura e
acabara de assolar a Europa de forma devastadora. O sanatório, por ser destinado à elite, era um local de luxo,
o qual chegou a ter talheres em pura prata.
No entanto, o cenário mudaria radicalmente em 1930, quando Getúlio Vargas implementa no Brasil o Estado
Novo. Sendo assim, o espaço do antigo sanatório foi comprado pelo estado de Minas Gerais que dali em diante
transformou o local em um “hospital psiquiátrico”, destinados ao tratamento de pacientes acometidos com
algum tipo de doença metal. Entretanto, o cenário mostrava-se bem distante do que se conhece como
“tratamento”, na verdade pelo maior período de funcionamento do hospital o objetivo era tirar os “pacientes”
da rua e colocá-los em algum local em que pudessem morrer. Com isso, é possível fazer uma analogia direta
com o que se viveu no decorrer dos anos de 1939 a 1945, a segunda guerra mundial trouxe consigo sobretudo
regimes totalitários, como o nazismo. E esses regimes implementaram aquilo concebido atualmente como a
prova da pior barbárie da humanidade, o chamado Holocausto. Nessa perspectiva, da mesma forma com que
os judeus na Europa eram perseguidos e mandados para os campos de concentração, no Brasil se tinha o
campo de concentração travestido de hospital. O conhecido popularmente como Hospital Colônia de
Barbacena, possuía os mesmos princípios dos campos de concentração, ou seja, precisava-se de um local para
aglomerar os que eram tidos como “escória” da sociedade, nisso incluíam-se mulheres grávidas fora do
casamento, mendigos e negros, todos esses eram taxados como “loucos” e eram mandados para o Hospital
Colônia, mesmo que isso significasse uma morte lenta e torturante.
A estação ferroviária Oeste de Minas ficava próxima ao Hospital Colônia, por isso era conveniente utilizá-la
para que os “loucos” pudessem ser trazidos para Barbacena. Todas as terças e quintas chegavam um novo
carregamento de pacientes. Os que seriam pacientes do Colônia eram transportados em vagões separados, os
chamados “vagões de loucos”, nesses vagões eram amontoados dezenas de pessoas, as quais viajavam em
condições totalmente degradantes. O vagão superlotado possuía fezes e urina espalhadas por todo lado, e como
se já não bastasse, o pouco alimento que os pacientes recebiam deveria ser comido com as mãos, ou colocando
o rosto dentro da bacia, ou seja, os pacientes comiam como os porcos e outros animais comiam. Esses
pacientes, em sua maioria, eram pegos pela polícia da capital mineira, a qual os maltratava terrivelmente, antes
de os enviarem para o Hospital Colônia, mesmo que não fossem acometidos por qualquer disfunção cerebral,
eram pegos e enviados pelo simples fato de “a escória” e estarem perambulando por Belo Horizonte. Há relatos
do maquinista responsável por trazer os pacientes, que ele mesmo conversava com muitos, e vários “loucos”
conversavam normalmente, e alguns até cantavam, apesar de todo o sofrimento da viagem.
Ao chegarem no hospital, os pacientes eram divididos nos diversos pavilhões existentes na imensa construção
do Hospital Colônia de Barbacena. Os espaços eram totalmente degradantes e insalubres, onde até mesmo o
esgoto corria a céu aberto, em outras palavras, o hospital tinha tudo para deixar os pacientes mais doentes
ainda. Os tratamentos iam de medicamentos, como ansiolíticos, até o uso de choque que era utilizado conforme
a prescrição de médicos. Diversos médicos deixavam especificados até a voltagem que deveria ser
administrada nos pacientes, os quais eram colocados na posição deitada e enfileirados com outros 5 pacientes,
logo após serem posicionados, recebiam uma solução de água e sal na região do crânio, para que a corrente
elétrica pudesse passar de forma mais intensa pelo corpo do paciente. O choque tinha sua finalidade terapêutica
desviada muitas vezes, sendo utilizado também como castigo para os desobedientes. E as funcionárias do
hospital recebiam a orientação de administrar o ansiolítico para todos aqueles que estivessem cantando ou
conversando demais, em outras palavras, todos aqueles que estivessem tendo o mínimo de sociabilidade
humana. Com esse cenário caótico, cerca de cinco mil pessoas viviam no Colônia, diversos pacientes morriam,
uma funcionária relata que em um plantão de 24 horas, um total de 5 pessoas morreram.
Tudo pioraria em 1970 quando o Hospital de Neuropsiquiatria Infantil de Oliveira, também em Minas Gerais,
fechou suas portas, e dessa forma, precisava de algum local para mandar as crianças que lá estavam internadas.
O local escolhido foi o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena que recebeu cerca de 140 crianças de uma
só vez, mesmo não tendo a menor condição de abrigar essas pessoas na fase mais crucial de seu
desenvolvimento. As crianças mandadas para o Hospital Colônia eram taxadas como “vergonha” para as
famílias, por alguns apresentarem quadros de paralisia cerebral ou só porque faziam coisas de crianças. Uma
prova disso, é o relato de um sobrevivente que foi enviado para o Colônia junto com as crianças de Barbacena
pelo simples motivo de ser “arteiro e bagunceiro”. Junto com os outros pacientes, as crianças integravam a
grande massa de indigentes asiladas no Colônia, pessoas sem CPF, sem nome, sem direitos, as quais eram
submetidas a condições torturantes e nada podiam fazer. Há sobreviventes do Hospital Colônia que não se
lembram sequer da própria idade, já que eram só mais um em meio a uma massa de milhares.
Como se toda essa barbárie já não fosse suficiente, os pacientes ainda eram submetidos a dezenas de “vacinas”
que mais atuavam de forma maléfica do que de forma benéfica. A começar pelas seringas e agulhas que eram
reutilizadas em praticamente em todos os pacientes, aliado a isso a injeção era dada com tamanha brutalidade
que os pacientes ficavam diversos dias sem conseguir mexer o braço. Além disso, não se tinha roupa para
todos os pacientes, logo a grande maioria ficava completamente despido em meio a tantas pessoas,
aumentando ainda mais a proliferação de doenças. E para agravar ainda mais a situação, os internos do Colônia
eram colocados em cômodos dos pavilhões que mais funcionavam como jaulas, as quais o único conforto
eram colchões feitos de capim colhido pelos próprios pacientes nas matas que ficavam próximas do Hospital,
durante a noite era comum que os insetos contidos no capim picassem os internos que sobre eles se deitavam.
Centenas de pessoas morriam todos os anos no Colônia, e o destino dos mortos era tão indigno quanto as
condições de sobrevivência dos vivos. Os mortos e outros internos vivos eram colocados em carroças de ferro,
e levados para o sepultamento. O enterro de cadáveres era feito no cemitério do cascalho, conhecido
atualmente, como cemitério da paz. O cemitério da paz surgiu da necessidade de encontrar um local onde os
mortos do Hospital Colônia pudessem ser enterrados, entretanto teria que ser um local separado, já que
suicidas, negros e loucos não poderiam ser colocados em cemitérios comuns. O enterro era simples, abria-se
uma cova rasa no chão e jogava-se o corpo, sem caixão, sem nada. Cerca de sessenta mil corpos foram
enterrados no cemitério do cascalho. A atividade perdurou por muitos anos, até que moradores do entorno do
cemitério começaram a reclamar do mal cheiro gerado pela decomposição dos cadáveres, visto que o espaço
de terra era muito pequeno para a quantidade de pessoas enterradas ali.
A época em que mais pessoas morriam era no período do inverno, havia nos em que 60 pessoas morriam entre
os meses de março e agosto. Os pacientes sofriam de hipotermia já que não possuíam roupas e cobertores, e o
jeito encontrado para amenizar o sofrimento era se amontoarem um em cima dos outros. No entanto, os
pacientes que ficavam por baixo dessa pilha de gente acabavam morrendo asfixiados. A situação era tão caótica
que funcionários do Hospital Colônia criaram uma espécie de “enfermaria de emergência” nos cômodos
desocupados aos fundos dos pavilhões. Entretanto, essas enfermarias de nada adiantavam, pois antes mesmo
de chegarem nelas, todos já estavam mortos, dessa forma as enfermarias acabaram sendo apelidadas de
“câmaras da morte”.
Contudo, a situação nem sempre foi devastadora desse modo. Um exemplo disso, era que até os anos de 1930
os pacientes recebiam tratamento adequado com técnicas da medicina francesa. Essa situação perdurou até
que o sanatório fosse adquirido pelo Estado, e assim tornou-se um depósito de rejeitados e aos internados só
cabia uma única coisa, esperar a morte sorrateira e dolorosa, já que se matava o paciente aos poucos. A morte
no Centro Hospitalar Psiquiátricos era uma realidade que sempre ficava a espreita de todos os que lá
definhavam sob condições degradantes. E a esses mortos, não tinham sequer o direito a um enterro digno já
que muitas famílias acabavam mudando de endereço ou dando endereços falsos quando iam preencher a ficha
de internação. E os corpos, que na grande maioria não eram reclamados pela família, acabavam sendo
vendidos, estima-se que cerca de 1.800 corpos foram vendidos entre os anos de 1969 e 1980 para de faculdades
de medicina. O departamento de Relações Públicas do Hospital Colônia foi criado com a iniciativa de
intermediar o contato dos pacientes com a família, mas como esses contatos praticamente não aconteciam, o
departamento passou a atender às faculdades de medicina que expressavam interesse na aquisição de corpos
e peças anatômicas.
Além de tudo isso, alguns pacientes eram submetidos a trabalhos manuais e não recebiam absolutamente nada
em troca. Os pacientes que eram considerados mais “lúcidos” seriam recrutados para trabalhos desde
construção civil até limpeza urbana, como capinar as calçadas de Barbacena, e o pagamento era na grande
maioria maços de cigarro. Essa situação piorou com a chegada das irmãs de caridade vicentinas na
administração do Colônia. As irmãs exploravam os pacientes com serviços braçais, e se não obedecessem às
suas ordens eram submetidos a castigos físicos, que incluíam choques elétricos. As freiras desempenhavam
uma função ainda mais horrenda, a qual consistia em separar as mães de seus filhos. Era comum que mulheres
fossem internadas grávidas, como também era comum que pacientes tivessem relações entre si e esses
envolvimentos culminasse em gestações. As irmãs vicentinas aguardavam até que a mãe desse a luz e em
seguida se apropriavam das crianças para mandá-las para outros locais, dezenas delas foram parar na Fundação
Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), local destinado para a internação de menores infratores.
Tudo mudaria a partir de 1980, quando o psiquiatra francês Franco Basaglia visitou o Centro Hospitalar de
Barbacena e definiu que de todos os piores psiquiátricos que visitou, o Hospital Colônia era sem dúvidas o
pior de todos. Se tratava de um campo de concentração com o objetivo de alojar a “escória social” e esperar a
morte. Depois da visita de Basaglia, a política antimanicomial começou a ganhar força, e o tratamento para
doentes mentais passou a ser mais humanizado. O local foi revitalizado e em 1996 inaugurou-se o museu da
loucura, marco turístico a todos que desejam conhecer a triste realidade vivenciada pelos pacientes do Hospital
Colônia.
Tendo tudo isso em vista, os pacientes do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena sofreram terrivelmente.
Essas pessoas são a marca do Holocausto que aconteceu no Brasil, exatamente nos mesmos moldes do
Holocausto sofrido pelos judeus durante a segunda guerra mundial. A morte chega aos poucos, os pacientes
definhavam sob condições inumanas até seus últimos minutos, homens, mulheres e crianças, não importava
quem fosse, a partir do momento que cruzasse com a porta de algum dos pavilhões deixavam de ser seres
humanos, e passavam a receber o tratamento de animais indigentes. As vítimas do Hospital Colônia sofreram
terrivelmente por mais de cinco décadas com o higienismo social, doutrina na qual consiste em se livrar de
todos aqueles que são “feios” para o bem-estar social, e isso inclui mendigos, andarilhos, moradores de rua,
dependentes, químicos ciganos, negros e todos aqueles que são segregados por sua condição social diversa.
O solo de Barbacena está manchado com o sangue de 60 mil inocentes, seres humanos como qualquer outro
que padeceram até a morte. Hoje muito se questiona quem deve carregar a culpa por esse genocídio, e a
resposta é que todos possuem parcela significativa de culpa, tanto a população que aceitava essa condição e
nada faziam para despertar o sentimento empático em seus semelhantes, tanto quanto do Estado que falhou
em garantir às vítimas do Hospital Colônia de Barbacena a dignidade da pessoa humana, que se trata do
princípio fundamental que atua como pedra angular para que todos os direitos básicos do cidadão sejam
firmados. O que aconteceu em Barbacena deve der tomado como exemplo de o quão longe a falta de empatia
pode chegar, e com isso apontar o rumo do futuro do qual não se deva seguir.
Bruno Manoel Silva

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