Você está na página 1de 8

Abraão

Por Maria Fernanda Vomero

O primeiro dos patriarcas bíblicos mudou para sempre o pensamento religioso da humanidade, ao
introduzir a crença em um Deus único e onipresente. Tornou-se modelo de fé incondicional e da
unidade entre os povos para seguidores do judaísmo, do cristianismo e do islamismo. Saiba o que a
ciência já descobriu a respeito do Abraão histórico

O mundo espera, ansioso, a gradual concretização do plano de paz entre o governo israelense e
organizações palestinas, que parece finalmente deixar o rol das boas intenções para se tornar
realidade. Tal plano, chamado de "mapa de estrada", pretende pôr fim a décadas de conflitos
sangrentos e atentados terroristas na região, apostando no cessar-fogo e na criação de um Estado
palestino até 2005. A almejada paz entre judeus e muçulmanos, israelenses e árabes, remete à
história de um homem que se tornou símbolo da fé desapegada e da unidade entre as nações e que,
hoje, anda um tanto esquecido sob a poeira dos combates e da discórdia na Terra Santa. Esse
homem é Abraão, o primeiro dos patriarcas bíblicos, considerado pai biológico, adotivo e ético de
todos os povos. Figura fundamental nas três grandes tradições monoteístas – judaísmo, cristianismo
e Islã –, carrega em si a idéia primordial da paz: se todas as nações são irmãs entre si, filhas de um
único pai, por que existe ainda tanta guerra?

Conta o Gênesis, o primeiro livro da Bíblia, que Deus chamou Abraão e lhe disse: "Sai da tua terra,
da tua parentela e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei. Eu farei de ti um grande
povo, eu te abençoarei, engrandecerei teu nome. Sê tu uma bênção". Naquela época, Abraão era
ainda Abrão, um homem de 75 anos de idade que vivia em Harã, importante centro comercial do
mundo antigo e cidade da atual Turquia. Mesmo sem garantias prévias da dupla promessa de terra e
descendência, Abraão acreditou em Javé, o Deus único, invisível e onipresente. Partiu sem saber
para onde ia. Não levava nas mãos qualquer contrato que garantisse a posse de um trecho de terra.
E, embora sua esposa Sara fosse estéril, não duvidou, em momento algum, que teria uma
posteridade mais numerosa que as estrelas do céu. Foi sua fé plena e irrestrita em Javé que deu
origem à tradição religiosa monoteísta, que prega a existência e a adoração de um só Deus, algo
inovador no mundo antigo.

Hoje é impossível conceber o mundo sem o monoteísmo (mesmo que você não partilhe dessa
concepção) – e sem Abraão.

A ciência ainda busca pistas sobre a existência desse personagem. Atualmente, historiadores,
arqueólogos e estudiosos dos textos bíblicos admitem que provavelmente um homem chamado
Abraão tenha vivido na chamada era dos patriarcas, período histórico que remete à Idade do
Bronze, entre 2000 a.C. e 1500 a.C. Tabuinhas de argila encontradas em cidades próximas ao rio
Eufrates, onde na Antiguidade se localizava a Mesopotâmia e hoje estão a Síria e o Iraque, indicam
que os eventos da vida de Abraão, presentes no relato bíblico, podem ter realmente acontecido, mas
não necessariamente protagonizados por um único homem.

O que hoje os especialistas afirmam é que um Abraão, chefe de um grupo seminômade, realmente
existiu – talvez menos heróico e formidável que o Abraão bíblico, porém não menos importante
para a história do seu povo. Assim como tantos outros chefes seminômades, o Abraão histórico
deve ter deixado um legado fundamental para o seu clã. Sua história, contada de pai para filho,
acabou prevalecendo sobre as demais e incorporando elementos, alheios à saga original, de outros
personagens também conhecidos pelos povos da época. Talvez historicamente não tenha existido
um só Abraão, mas vários, que ajudaram a compor o Abraão bíblico. Bem-vindo à história da bem-
sucedida jornada rumo à Terra Prometida e à descendência numerosa. Uma jornada que ainda não
acabou – nem para os fiéis, nem para a ciência.

A religião de Abraão

São 14 capítulos do Gênesis dedicados a Abraão. Ao contrário de outros profetas e personagens do


Antigo Testamento, cuja saga começa a ser narrada a partir do nascimento, Abraão estréia já adulto.
No início do relato, ele vive com seu pai, Terá, seus irmãos e sua esposa, Sara, em Ur, uma das
cidades mais importantes do mundo antigo, localizada ao sul do rio Eufrates (veja mapa na página
44). Não tem filhos, porque Sara era estéril. Certo dia, Terá reúne Abraão, Sara e Ló, sobrinho do
patriarca, e resolve seguir com a família para as terras de Canaã, que se estendiam do sudoeste da
Síria até o Egito. Ao chegarem à cidade de Harã, depois de uma viagem longa e exaustiva, decidem
ficar por lá mesmo. Terá morre. Abraão ouve pela primeira vez o chamado de Deus, que lhe
promete terra e descendência. Sem pestanejar, ele deixa Harã e parte rumo à terra dos cananeus.

O relato bíblico narra o episódio como se Abraão fosse monoteísta desde sempre, segundo a
concepção que temos hoje. No entanto, o Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, evoca passagens
da vida do patriarca que não constam da Bíblia e que explicitam como se deu a adesão ao Deus
único e o rompimento com a crença dos antepassados. Abraão (ou Ibrahim, como é chamado no
Islã), ainda jovem, inicia seu itinerário religioso recusando a adoração dos astros. Nega os deuses
petrificados como estátuas e parte para uma verdadeira batalha de fé contra a idolatria dos seus
antepassados, destruindo os ídolos locais e pregando a existência de um único Deus – como fez o
profeta Maomé mais de 20 séculos depois, quando o Estado Árabe estava se constituindo. O povo
condenou Abraão à fogueira e, milagrosamente, ele se salvou. "Por revelação divina, Abraão sabia
que deveria divulgar o Deus único, o monoteísmo", diz o xeque Ali Abdune, da Associação
Mundial da Juventude Islâmica, em São Paulo.

"A aceitação dele ao chamado de Deus significou submissão total e voluntária à vontade divina.
Abraão deixou tudo – por isso, se tornou o patriarca, o amigo de Deus."

Narrativas semelhantes são encontradas em textos apócrifos, como o Apocalipse de Abraão, e em


histórias da tradição oral judaica, compiladas no Talmude. Uma das passagens relata que tanto o
nascimento do patriarca quanto sua luta pessoal contra os ídolos foram previstos por astrólogos, que
logo avisaram o rei Nimrod. Este decidiu matar o menino assim que ele nascesse, mas Terá, o pai, o
escondeu numa caverna. Abraão ficou no esconderijo durante alguns anos. Ao sair, quando viu o
Sol pela primeira vez, pensou consigo mesmo: "Deve ser este o Deus que criou o céu, a terra e a
mim". E rezou o dia inteiro ao sol. À tarde, ao ver o astro desaparecer, pensou: "Não é um Deus".
Avistou a Lua, à noite, e cogitou que talvez fosse ela a senhora do mundo. Durante a noite inteira,
fez orações à Lua. Pela manhã, observou que ela havia sumido. Levantou as mãos ao céu e disse:
"Não, não são esses os criadores do mundo. Só um Deus existe no céu, que reina sobre todos os
outros.

A Ele orarei e perante Ele me curvarei". Surgia, aos olhos da fé judaica, a concepção monoteísta.

Mas não para a ciência. Achados arqueológicos mostram que os povos da região do Crescente Fértil
– como ficaram conhecidas as terras produtivas que se estendiam da antiga Mesopotâmia ao Egito –
não acreditavam em um Deus único e soberano. No período patriarcal, que vai de 2000 a.C. a 1500
a.C., vigorava o politeísmo. Os seminômades, porém, eram henoteístas, ou seja, adoravam apenas
uma divindade, mas admitiam a existência de outras. "Cada clã cultuava o seu próprio deus", diz o
pastor luterano Milton Schwantes, cientista da religião da Universidade Metodista de São Paulo. "A
cultura seminômade não permitia uma diversidade grande de concepções de mundo."

Segundo Milton, o politeísmo surge porque vários subgrupos, dentro de uma grande população,
requisitam funções diferentes da divindade – deus da guerra, deus da colheita, deus do poço... Como
a população do clã é pequena e homogênea, uma diferenciação como essa poderia pôr em risco o
grupo social. "Daí a tendência a um só caminho religioso", afirma Milton. "Mas isso não significa
que exista um pensamento teórico monoteísta no mundo antigo. Existe, sim, um monoteísmo de
adesão, em que cada grupo adere a um único deus."

Abraão interpretado

Segundo o narrador do Gênesis, o Deus de Abraão é Javé (Iahweh, em hebraico). No entanto, os


exegetas, como são chamados os estudiosos dos textos sagrados, reconhecem que se trata de um
anacronismo, um acréscimo posterior feito ao relato. No período patriarcal, a denominação mais
comum de Deus seria El, como comprovam achados arqueológicos da época. Para entender por que
El (o Deus da vida) se tornou Javé (o Deus libertador), você precisa voltar no tempo e mais
precisamente ao início da formação do povo de Israel, entre 1250 a.C. e 1000 a.C., quando os
primeiros cinco livros da Bíblia, que também formam a Torá judaica, começaram a ser redigidos.

Até aquela época, as narrativas eram basicamente orais. Circulavam várias histórias sobre Abraão e
os demais patriarcas. Aos poucos, esses relatos começaram a ser escritos, obviamente sofrendo
influências literárias e ideológicas de acordo com o momento histórico que o povo vivia. A versão
final do Gênesis e dos demais livros data de 400 a.C., mais de mil anos depois da época em que
Abraão teria vivido. "Nesse período, houve um grande movimento para considerar o povo de Israel
uma raça única e Javé, o Deus único. Era preciso consolidar a teocracia, e esse tipo de instituição
exigia a existência de um Deus absoluto para justificar o poder do rei", afirma o padre Shige
Nakanose, biblista do Centro Bíblico Verbo, em São Paulo.

Até então, havia vários nomes para Deus e Javé era um deles. Referia-se a uma divindade masculina
cultuada ao lado da deusa Aserá em um período posterior ao patriarcal. Javé era o Deus adorado
pelos grupos que escaparam da escravidão e do exílio e que se juntaram ao incipiente povo de
Israel. Assim, quando as últimas versões do Gênesis foram escritas, os redatores tentaram substituir
referências às divindades da região de Canaã – como o nome El – por invocações a Iahweh.

Interferências como essa também moldaram a figura do Abraão bíblico. "Originalmente, existiam
diversas tradições orais sobre os patriarcas. Eram narrativas curtas e independentes, que falavam do
sacrifício de Isaac, da visita dos três estrangeiros à tenda de Abraão, da destruição de Sodoma e
Gomorra e assim por diante", diz o padre Shige. Essas narrativas tinham, inclusive, uma função
pedagógica para o grupo e traziam mensagens intimamente relacionadas com o contexto da época.
Pouco a pouco, tais memórias foram sendo reunidas e adaptadas conforme a intenção do redator.
"Vários clãs contavam as histórias dos seus pais e fundadores. A história de Abraão foi a que
prevaleceu e acabou absorvendo as demais", afirma o biblista.

Por isso, ao longo do relato do Gênesis sobre o patriarca, existem versões de uma mesma história e
vários anacronismos, como as passagens que citam o uso de camelos (esses animais só foram
domesticados em torno de 1100 a.C.) ou mesmo as promessas divinas de terra e de descendência
numerosa. "São promessas recentes no contexto bíblico, porque pressupõem um Estado. Para o
chefe de um clã, a promessa de muita gente é um problema, já que ele pode alimentar uma
quantidade restrita de bocas. E a necessidade de terra é muito mais agrícola que seminômade", diz
Milton Schwantes. "A promessa de um descendente faz parte da história de Abraão. Mas as outras,
de posteridade e de terra, referem-se a um povo. Um país, para dar certo, precisa de terra e gente."

O Abraão bíblico crê em Javé e mantém-se fiel a Ele, mas não consegue imaginar a concretização
das promessas. Ele não tem filhos e sua esposa é estéril – como, então, sua descendência será tão
numerosa quanto as estrelas do céu? Diversos povos já habitavam a Terra Prometida – como ele
poderia possuí-la? Deus, então, sela duas alianças com o patriarca. A primeira, pela terra, envolve o
sacrifício de animais. Abraão toma uma novilha, uma cabra e um carneiro e divide-os ao meio,
colocando as metades umas diante das outras. Oferece também dois pássaros, sem dividi-los. "Eu
dou esta terra aos teus descendentes, desde a torrente do Egito até o grande rio Eufrates", diz o
Senhor.

Mais tarde, Deus firma a segunda aliança, dessa vez pela descendência. E propõe a circuncisão de
todos os homens do clã e de todos os meninos no oitavo dia a partir do nascimento. Até aquele
momento, o nome do patriarca era Abrão, que significa "pai elevado" ou "pai erguido". A partir daí,
Deus o chama de Abraão, "pai de uma multidão". Para simbolizar a dimensão do acordo entre
ambos, Deus também muda o nome de Sarai para Sara. "Eu a abençoarei e dela te darei um filho.
Eu a abençoarei e ela será a mãe de nações e dela sairão reis." A promessa se realizou e Sara gerou
Isaac.

A Era Patriarca

A dimensão religiosa das figuras de Abraão e de Sara é enorme – mas o que a ciência tem a dizer
sobre "o pai de uma multidão" e "a mãe das nações"? "Existem achados arqueológicos que
comprovam que existiu, sim, um período patriarcal no qual podem ter ocorrido todos os eventos que
são descritos no Gênesis", afirma a historiadora Ruth Leftel, da Universidade de São Paulo.
"Nomes, costumes e normas de comportamento dos patriarcas do relato bíblico eram realmente
aqueles. O que não foi comprovado é a existência física de Abraão, Isaac e Jacó, esposas e filhos
como figuras históricas."

Hoje se sabe que os patriarcas habitaram o lado ocidental da Mesopotâmia, a oeste do rio Eufrates,
e partilharam o mundo material, cultural e ritual dos povos conhecidos como semitas ocidentais. As
tabuinhas de argila encontradas em escavações na região referem-se a eles como amuru, que
significa: "homens" (am) e "ocidente" (uru).

As descobertas esclarecem certos procedimentos presentes na história de Abraão. Na primeira


aliança firmada com Deus, por exemplo, o patriarca matou alguns mamíferos e os cortou ao meio,
colocando as metades uma na frente da outra. "Como na época não havia tabelião para reconhecer
firma ou legitimar contratos, uma aliança entre dois chefes de tribo ou dois governantes de cidades
precisava ser feita entre as metades de um burro para ter validade", afirma Ruth. Os animais do
relato bíblico são outros, porque na época da redação já existiam certas prescrições quanto aos
animais, mas o costume é rigorosamente igual. Outro exemplo é a atitude de Sara. Como ela era
estéril, cedeu uma de suas servas, chamada Agar, a Abraão para que ele garantisse a descendência.
Nas tabuinhas de argila, a lei é bem clara: a mulher permanente ou temporariamente estéril era
obrigada a escolher uma filha ou uma escrava para dormir com o marido e assim gerar
descendentes.

Também os nomes que constam do Gênesis são idênticos àqueles atribuídos aos amuru, formados
por um verbo e uma denominação de Deus, em geral El. "Os nomes dos patriarcas têm relação com
a história e os atos da vida deles. Foram colocados posteriormente", diz Ruth. Um exemplo é o
nome do filho de Abraão com a escrava Agar, o primogênito Ismael. Vem de Ishma-El e significa
"Deus ouve", em referência à passagem em que Agar está no deserto, grávida, e Deus aparece e a
ampara. Já o filho nascido da promessa divina é Ytzhak-El, na forma abreviada Isaac, que quer
dizer "Deus ri". Tanto Abraão quanto Sara riram, quando Deus lhes prometeu uma posteridade
numerosa, porque ambos eram idosos e não imaginavam como poderiam gerar um filho.

Hoje se sabe que os patriarcas, assim como os amuru, viviam de fato em clãs seminômades e
mantinham elos econômicos com as cidades – troca de produtos dos rebanhos pelos manufaturados.
Apesar da relação comercial, as tabuinhas mostram que os amuru não podiam participar da vida das
cidades nem ser considerados cidadãos de Canaã. Eles não tinham direitos e não podiam fixar-se
numa cidade, a não ser que o governante fosse benevolente e permitisse que levantassem tenda por
um tempo determinado. As leis eram claras: um cidadão livre, para ter direitos, precisa ser dono de
terras e ser sedentário há gerações. "Isso explica por que os patriarcas não podiam se fixar e
ficavam circulando durante todo o tempo", diz Ruth Leftel.

Se as tabuinhas não podem garantir se algum Abraão se destacou entre os amuru, outros registros
arqueológicos comprovam que a história do patriarca alcançou outros povos da Antiguidade. "A
dúvida sobre a existência de Abraão é nossa, mas não dos antigos", afirma o historiador André
Chevitarese, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. "Eles se relacionam com o passado de
modo bastante diferente. A fé justifica tudo. Acreditam que Deus – ou os deuses – intervém em
torno de determinadas figuras, transformando-as em heróis fundadores."

Amuletos de uso mágico de origem desconhecida encontrados em escavações piratas estampam a


figura de um jovem carregando um cutelo. Há uma criança e um altar. Uma mão sai do céu e aponta
para um arbusto, onde está preso um cordeiro. Não há dúvidas: trata-se da passagem do sacrifício de
Isaac, uma das mais marcantes do Gênesis, em que Deus põe Abraão à prova, pedindo que ele
sacrifique o filho tão amado. Abraão obedece. No momento em que ergue o cutelo, Deus o
interrompe e salva Isaac. Um carneiro, então, é oferecido em holocausto. Nas costas dos amuletos,
um alfabeto semítico, provavelmente com palavras em hebraico e samaritano, sem significado
aparente. "Se não há significado, são palavras mágicas. Só quem usava o amuleto as conhecia", diz
André.

Para ele, a existência desse tipo de material e a invocação do nome de Abraão em fórmulas mágicas
são provas de que ele existiu. Além disso, o fato de estarem em hebraico demonstra que o uso é
próprio de quem está inserido na narrativa e acredita nela. "Quem fez e quem usou o amuleto muito
provavelmente é um judeu", afirma ele. Referências a Abraão também aparecem em textos de
magia escritos em papiros e usados para submeter demônios, unir namorados etc. Chamar pelo
"Deus de Abraão, Isaac e Jacó" era uma prática bastante freqüente, o que revela a influência
cotidiana dessas histórias.

O legado de Abraão

De acordo com a Bíblia, Abraão morreu aos 175 anos de idade e foi enterrado por seus filhos
Ismael e Isaac onde estava o túmulo de Sara, nos arredores da cidade de Hebron. Seu legado
espiritual independe da existência histórica. Para milhões de fiéis no mundo todo, basta o exemplo
de fé e obediência do patriarca. "Abraão introduziu o revolucionário conceito de monoteísmo
ético", diz o rabino Henry Sobel, da Congregação Israelita Paulista. "Ético porque acreditar em um
único Deus exige assumir a igualdade entre todos os filhos dele. Todos os povos, portanto, são
iguais. E, embora tenhamos um único Deus, Deus tem mais do que um único povo."
Para o psicólogo Henry Abramovitch, da Universidade Tel Aviv, em Israel, a saga de Abraão foi
uma verdadeira viagem em busca do autoconhecimento – que ainda se mantém como fonte de
inspiração para muita gente. Abramovitch, cujo nome em russo significa "filho de Abraão",
escreveu o livro The First Father ("O primeiro pai", ainda sem tradução em português), no qual
traça um estudo psicológico sobre o patriarca. "Ele tinha tudo e deixou esse tudo a fim de buscar um
novo destino. As palavras do chamado divino, em hebreu Lech Lekha, podem ser lidas literalmente
como ‘Vá para si mesmo’", afirma o psicólogo. "Assim, ele se torna o protótipo da jornada ao
conhecimento de si mesmo e da individualização." Abraão não é um homem que simplesmente
segue ordens. Pelo contrário, ele ensina como estar em contato com o self, o âmago de si mesmo.

Uma das passagens mais célebres da história do patriarca, o sacrifício de Isaac, inspirou o filósofo
dinamarquês Sören Kierkegaard a refletir, na obra Temor e Tremor, sobre o que é a fé. O livro
lançou as bases para uma nova teologia no século 20, voltada ao mesmo tempo para a
transcendência e a ação no mundo. "Abraão acredita que deve obedecer a ordem divina e sacrificar
seu filho, mas tem a certeza de que Deus não vai abandoná-lo", diz o filósofo e cientista da religião
Ricardo Quadros Gouvêa, da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo. Situação a
princípio absurda, Kierkegaard parte daí para concluir que a fé vai além da capacidade da razão, não
se resume à ética e aos valores universais e, especialmente, exige um engajamento no momento
presente. "Abraão sabia que teria Isaac de volta. Demonstrou, ao mesmo tempo, desprendimento e
compromisso", afirma Ricardo.

Na mística islâmica, o patriarca representa um símbolo da busca pelo centro de si mesmo. Ele é o
amigo íntimo de Deus, o jovem herói que destrói os ídolos internos e instaura a unidade de cada
indivíduo. "A característica essencial de cada ser humano é a ligação com o sagrado. Você é um
jeito de Deus aparecer – isso é monoteísmo, o um que está presente em cada pessoa", diz a
psicóloga Beatriz Machado, da USP, que pesquisa as obras do mestre sufi Ibn ‘Arabî. Para os
estudiosos da Cabala, a mística judaica, Abraão também apresenta aspectos simbólicos. "Ele está
relacionado à expansão de fronteiras, à superação das próprias limitações e ao princípio de que tudo
está relacionado com tudo", afirma Roberto Natan, professor de meditação cabalística na Academia
de Cabala Rav Meir, no Rio de Janeiro.

A unidade é um tema recorrente quando o assunto é Abraão. Primeiro, porque ele é considerado pai
espiritual das três grandes tradições monoteístas. Depois, por deter, de acordo com o relato bíblico,
a paternidade biológica de judeus, por meio do filho Isaac, e de árabes, pela linhagem do
primogênito Ismael. A ciência vem agora corroborar essa tese. Uma pesquisa, realizada em
conjunto por cientistas de cinco países, entre eles Estados Unidos e Israel, mostrou que palestinos,
sírios, libaneses e judeus têm forte parentesco genético entre si. O estudo, que comparou o DNA de
1 300 homens árabes e judeus de 30 países, revelou também que esses povos possuem um ancestral
comum, possivelmente os semitas ocidentais, que teriam habitado o Oriente Médio há pelo menos 4
mil anos. Seriam todos eles descendentes do mesmo patriarca?

Enquanto os cientistas ainda não têm a resposta para tal pergunta, judeus, cristãos e muçulmanos
continuam a buscar cada qual o "seu" próprio Abraão. Em cada crença, um aspecto do patriarca é
ressaltado. "Abraão pode ser comparado a um moderno meio de comunicação que apresenta
diferentes mensagens, de acordo com os paradigmas de cada religião e cultura", afirma Reuven
Firestone, especialista em judaísmo e Islã do Hebrew Union College, nos Estados Unidos. "Mas ele
pode ser também a ponte entre as três tradições. Afinal, Abraão é um legado de todos." Firestone
lembra o capítulo 18 do Gênesis. O patriarca está diante de sua tenda, descansando, quando percebe
a chegada de três homens. Hospitaleiro, recebe-os com distinção. Não pergunta quem são nem se
têm dinheiro. Simplesmente lhes oferece pão, leite, manteiga e um novilho preparado na hora. "Eis
uma herança de Abraão: o exemplo de acolhida e hospitalidade", diz Firestone. Que todos os filhos
sejam bem-vindos na grande tenda do patriarca.
 

O que seria de Abraão se não fossem Sara, a esposa, e Agar, a escrava? Figuras fundamentais na
saga do patriarca, elas protagonizam alguns dos mais importantes capítulos do Gênesis. "O que
movimenta o texto bíblico e as promessas são os filhos", diz a pastora metodista Nancy Cardoso
Pereira, teóloga especialista em Bíblia Hebraica. As memórias femininas, no entanto, são contidas
pela tradição patriarcal. Abraão mente a respeito de Sara, dizendo que ela é sua irmã, em duas
versões da mesma história. Quer salvar a própria pele. Muito bonita, Sara chama a atenção do faraó
e, em outra ocasião, do rei Abimelec, que a tomam como concubina. Deus, porém, os castiga. Eles
descobrem a farsa e repreendem Abraão. Sara não diz uma palavra – não argumenta nem lamenta.

As duas mulheres se confrontam quando o assunto é o primogênito de Abraão. Seguindo um


costume comum no período patriarcal, a estéril Sara cede uma das servas ao marido para que a
descendência se garanta. Agar engravida e, segundo o relato bíblico, passa a esnobar a sua senhora.
Por causa disso, Sara se ressente e castiga a escrava, expulsando-a do clã. Agar foge, então, para o
deserto. Num dos mais belos trechos do Gênesis, Deus surge a Agar próximo a um poço, no meio
do deserto, e pede que ela volte para casa. (O "Deus do poço" é uma imagem bastante recorrente na
religiosidade do período patriarcal.) Também a ela Deus promete: "Multiplicarei tua descendência
de tal forma e será tão numerosa que não se poderá contar". Isso acontecerá por meio de Ismael,
filho que ela carrega no ventre. Agradecida, Agar nomeia o Deus que conversou com ela de El-roí,
o "Deus que me vê".

"É possível que a esterilidade de Sara e de outras mulheres do período esteja relacionada a uma
tradição mesopotâmica das sacerdotisas, que não engravidavam para se dedicar ao culto da
divindade", diz Nancy. "Para contar essa história, não mais no contexto da autonomia religiosa
daquelas mulheres, o registro narrativo as apresenta como estéreis."

Segundo o Gênesis, Ismael, o filho de Agar e Abraão, deu origem aos povos árabes. O profeta
Mohammad, ou Maomé, teria vindo dessa linhagem. Para os muçulmanos, o itinerário de Abraão
vai além das terras de Canaã e do Egito. "Abraão passou pela Palestina, pela Arábia Saudita e por
Meca, onde teve de deixar sua segunda esposa, Agar, e Ismael", afirma o xeque Ali Abdune.
"Segundo as escrituras sagradas, separar-se do filho primogênito foi um teste que Abraão teve de
passar."

Agar foi expulsa duas vezes por Sara – a segunda vez por um motivo que o texto bíblico não
esclarece direito. Diz o Gênesis que Ismael brincava com o irmão Isaac. Sara, ao ver a cena, temeu
pela herança do seu próprio filho e pediu a Abraão que expulsasse a escrava e Ismael (que aparece
no texto ora como um adolescente, ora como uma criança). Ambos foram parar no deserto. A água
acabou e Agar, desesperada, começou a chorar. Deus, então, apareceu e disse: "Não temas, pois
Deus ouviu os gritos do menino do lugar onde ele está. Ergue-te! Levanta a criança, segura-a
firmemente porque eu farei dela uma grande nação".

Para o mundo judaico-cristão, o filho da promessa de descendência numerosa é Isaac. Foi ele que
Abraão quase sacrificou na colina de Moriá, local que a tradição encarregou-se de associar ao
monte em que se edificou o Templo de Jerusalém. De Isaac, o segundo patriarca, se originou o povo
de Israel. Para o Islã, porém, Deus testa de maneira semelhante a fé de Abraão, mas o nome do filho
e o lugar não são mencionados. Numa passagem do Alcorão, o patriarca diz: "Ó filho meu, sonhei
que te oferecia em sacrifício". Quando Abraão demonstra que vai se submeter à ordem divina, outro
filho lhe é prometido, Isaac. Por isso, a maioria dos muçulmanos acredita que Ismael foi o menino
quase oferecido em holocausto.
 

Você também pode gostar