Você está na página 1de 6

Ideologia e prática em tema de saúde mental1

Franco Basaglia

Agradeço o convite que me foi feito para realizar minha conferência em uma sede tão
prestigiada como a Universidade de Roma, dado que trabalho no manicômio, lugar não muito
prestigiado.
Sei que foram convidados para estes seminários outros palestrantes que atuam no
âmbito da psiquiatria de modo tradicionalmente asséptico, onde domina o discurso técnico,
fora de qualquer problemática político-social. Hoje nos encontramos, de fato, perante, por um
lado, pessoas que se consideram “cientistas” e, por outro, técnicos que propõem uma série de
problemáticas que levam em conta as implicações políticas presentes em cada intervenção
técnica. A separação ainda é clara e, além disso, estes últimos são acusados de baixa
credibilidade científica. Contudo, seria importante compreender o que é a “ciência” que é tão
vigorosamente defendida pelos “cientistas”.
Começarei falando do ensino da psiquiatria. Essa disciplina é atualmente ensinada em
lugares como este, a Universidade. Mas aqui não se pode ensiná-la, aqui se ensinam palavras.
O estudante hoje não pode conhecer nada da psiquiatria, porque não conhece a prática
psiquiátrica. Ele aprende apenas as definições com as quais classifica a esquizofrenia, a psicose
maníaco-depressiva, a histeria e por aí vai. Quando se torna médico e na sua clínica
(ambulatório) recebe um “louco”, a única coisa que sabe fazer é manda-lo diretamente ao
manicômio, se for pobre, ou para uma clínica de recuperação, se puder pagá-la. A nossa
universidade é absolutamente incapaz de formar médicos que saibam identificar e responder
às necessidades do homem em sofrimento, porque ele não as conhece de forma alguma. É
preciso, então, sair da universidade e ir ao manicômio ou à rua para ver os doentes, conhecê-
los, entender seus problemas. O estudante também deve ser instruído sobre a prevenção da
doença, porque o que se faz – e mal – é curar a doença quando esta já eclodiu, mas não se sabe
o que significa preveni-la, criar as condições para preveni-la, nem se sabe nada sobre conservar
a saúde.
Darei um exemplo. Eu ensino Higiene Mental na Universidade de Parma (sou apenas
encarregado da disciplina e não faço parte do corpo acadêmico). Recentemente, me encontrei
examinando três alunos: dois de medicina e um de direito. Ao estudante de direito perguntei
se sabia da existência de uma norma inerente à gestão da doença mental e ele me respondeu
que ainda não havia chegado a este momento do curso, mas que, de todo modo, não sabia se
existia uma lei a esse respeito. Perguntei ao mesmo aluno o que ele faria se encontrasse uma
pessoa psiquicamente “perturbada” pela rua e ela o tivesse confrontado, insultado ou
espancado. Ele afirmou que deveria haver um conjunto de leis para resolver problemas deste

1
Conferência proferida por Basaglia na Universidade de Roma em 28 de fevereiro de 1975. Originalmente
reproduzido sob o título Ideologia e pratica in tema de salute mentale, em L’assistenza psichiatrica, Il
pensiero scientifico, Roma, 1975. Traduzido de Scritti (1953-1080), il Saggiatore, Milão, 2017.
gênero. A um dos estudantes de medicina fiz a mesma pergunta e ele me respondeu que teria
chamado a polícia. Ao segundo perguntei o que teria feito se tivesse que lidar com um paciente
grave e ele me respondeu que haveria administrado uma dose de clorpromazina.
É este o preparo que deve ter um estudante universitário de medicina ou de direito? Com
esta cultura o médico enfrenta os problemas do seu assistido? À luz desses fatos, devemos
realmente perguntar o que devemos ensinar, de qual modo devemos enfrentar a problemática
da doença mental, se se trata somente de um problema de ordem pública ou de um problema
sanitário ou ainda outro.
Não é possível ensinar a psiquiatria em uma sala como esta, ainda que se trate da sede
oficial da cultura. Em Roma, por exemplo, se ensina no Hospital Psiquiátrico Provincial de
Santa Maria da Piedade e então os próprios professores entram em crise diante do que é a
prática científica que ensinam. É necessário, portanto, enfrentar a problemática do doente
mental lá onde ele exprime o próprio sofrimento, lá onde é jogado para ser curado, onde se diz
que é internado para ser curado e onde de fato é simplesmente internado e destruído; é
necessário conhecer verdadeiramente o que é a prática psiquiátrica para entender em que
medida esta ciência é puramente ideológica.
Eu creio que nenhum de nós, sabendo-se doente, desejaria parar no manicômio.
Qualquer um de nós, havendo a possibilidade, refutaria tal tipo de instituição. No hospital
psiquiátrico se entra, mas não se sabe se sai e quem está internado não pode expressar e viver
a própria doença. O médico deve conhecer o que é a doença mental para nossa cultura, entender
porque a única resposta a ela é a internação, que é em definitivo apenas um ato de violência
desumana; entender quem são os sujeitos que acabam nas malhas institucionais e porque outros
se afastam delas; entender porque a recuperação é possível e prevista para alguns e não para
outros e, portanto, entender como e com que finalidade esta intervenção técnica se traduz em
assassinato em massa legalizado.
Nos últimos anos o fator social tem se demonstrado de enorme importância em
psiquiatria, mas é também verdade que isso sempre esteve em primeiro plano, porque a
psiquiatria sempre foi “social”. O hospital psiquiátrico, com todas as suas regras, foi instituído
porque tinha, desde o início, uma explícita função social, a de marginalizar e controlar aquelas
situações e aquelas pessoas que perturbavam o equilíbrio e a ordem da sociedade. É
essencialmente por isso que o doente é marginalizado. Mas isso comporta também o fato que
o doente mental sofra uma dupla doença: o seu sofrimento psíquico e a marginalização social
da qual é objeto. A estas podemos adicionar uma terceira: aquela que a instituição manicomial
produz nele. Devemos estar cientes desses problemas, devemos tomar consciência dessas
contradições, de quais são as respostas que nossa organização social dá ao problema da doença.
A sociedade não aceita o doente mental, por isso cria uma doença suplementar: a
marginalização que o manicômio é delegado a gerir; mas esta doença suplementar é
prerrogativa da classe subalterna que, quando precisa de tratamento, adoece pela
marginalização e hospitalização.
A sociedade deve também se perguntar quanto é ela mesma responsável
sociogeneticamente por certos transtornos mentais e quanto ela mesma é quem os confirma
por meio das medidas adotadas para enfrenta-los.
É nesse ponto que fica evidente, na prática, como a ciência nunca está a serviço do
doente. A ciência utiliza seus recursos técnicos para eliminar o doente, excluí-lo, trancá-lo, ao
menos quando se trata de um doente que, por sua classe de origem, não possui poder
econômico nem cultural para poder se opor à intervenção. A prática confirmou que a medicina
em geral e a psiquiatria em particular não são ciências neutras que se dedicam à cura dos
doentes, porque se assim fosse os curariam e haveriam muitos doentes mentais recuperados e
reintegrados ao contexto social, como é habitual que aconteça para membros da classe
dominante.
Com relação ao manicômio, este nasceu da concepção iluminista que não mais
reconhecia um caráter “demoníaco” ao louco, mas reivindicava para ele uma nova dignidade
de “doente”. E todavia o manicômio não foi criado como o lugar no qual a medicina positiva
encontra seu objeto de pesquisa e de terapia, mas foi formado segundo as orientações de uma
ciência que determinava a doença à própria imagem. Para exemplificar este conceito, quando
Charcot produzia os sintomas psíquicos, o hospital no qual estes eram produzidos tornou-se
ele mesmo uma grande doença contagiosa, correspondente àquela que o médico desejava que
fosse. Em tempos posteriores a doença e seus sintomas foram sempre influenciados e
condicionados por novas orientações terapêuticas.
Não quero com isso dizer que a doença não existe, mas que nós produzimos uma
sintomatologia – o modo de expressar-se da doença – dependendo da forma como pensamos
em geri-la, porque a doença se constrói e se expressa sempre à imagem das medidas que se
adotam para enfrenta-la. O médico se torna gestor dos sintomas e cria uma ideologia sobre a
qual o manicômio se edifica e se sustenta. Só assim ele pode dominar e reprimir as contradições
que a doença exprime. Mas sua intervenção se limita a sancionar cientificamente uma violência
que serve apenas à defesa do técnico e da instituição, nunca à compreensão do sofrimento do
paciente. Uma vez estabelecido o diagnóstico, o homem em sofrimento torna-se apenas este
diagnóstico e não existe mais nenhuma relação entre o sintoma e a realidade da sua vida, assim
como ele perde aos olhos do médico a problematicidade que o defende, a partir da qual foram
precisamente instituídas as categorias, as subdivisões e todo o castelo ideológico da psiquiatria.
A ordem e a contraditoriedade do manicômio se fundam realmente na aniquilação e na
destruição do internado.
Quando se ensina psiquiatria na universidade se fala, portanto, somente de ideologia,
como expressão do encobrimento das contradições que o doente representa. Estas
contradições, o seu sofrimento, não se sabe nem mesmo o que são, nem se tenta indagá-las. A
realidade é que o doente de todo modo perturba, não segue as regras, ele as coloca – embora
confusamente – em discussão, então deve ser encontrada uma maneira de fazer com que a
responsabilidade por esse questionamento recaia apenas sobre o indivíduo, e uma maneira de
fazer isso é descobrir que ele precisa ser curado e se cura pela internação.
Mas também o operário perturba. Por exemplo, se em uma fábrica um operário
incomoda, é preguiçoso ou tem problemas que o fazem parecer sê-lo, o resultado é que irá ao
médico que resolverá o problema encobrindo a contradição que este homem expressa ao cria-
lo como "doente"; praticamente o adoece ao definir seu desconforto, que também pode ser de
outra natureza, em termos de doença; ou portando a doença, que pode ser o produto da
nocividade da fábrica, apenas no plano do indivíduo doente. Não há diferença alguma entre a
psiquiatria e o resto da medicina.
Não porque não haja doença mental ou câncer. Câncer e doença mental existem como
fatos concretos, mas transcende-se esse fato concreto e dele faz-se uma ideologia, pois o que
importa é que a doença seja administrada e controlada de modo que não exprima algo que vá
além do simples fato bruto do sintoma.
Para dar um exemplo, como médicos somos incumbidos de organizar o terreno social
no qual trabalhamos. Eu dirijo um hospital psiquiátrico e tenho um mandato para organizar a
província para responder às necessidades dos enfermos. Bem, eu divido a cidade em cinco
zonas e crio uma rede de estruturas, pois penso que só assim seja possível resolver esta tarefa.
Mas se a finalidade desta intervenção é a tutela da ordem pública e não a resposta às
necessidades expressas da doença, seria mais fácil, útil e funcional que tudo isso fosse confiado
ao delegado e não ao psiquiatra, porque o delegado é capaz, com a sua lógica e com os seus
meios de controle, de organizar a cidade no sentido da ordem e manter, então, também a ordem
da doença. No momento em que organizo os serviços de uma determinada província ou de um
determinado setor público, como posso responder às necessidades daqueles que sofrem se sou
forçado – pela lógica na qual nos movemos – a criar uma organização que responde às próprias
necessidades e nunca às do assistido?
Um bom ordenamento social deveria ser de tal modo que o doente viva a própria
experiência da doença como uma experiência de vida, e o médico não deveria ser um simples
controlador da doença, pois em tal caso acreditaríamos novamente em uma “psiquiatria social”,
no sentido que esta responderia ainda às necessidades da sociedade e não às necessidades de
todos. Creio que seja esta a razão pela qual na Itália a psiquiatria e a medicina em geral foram
altamente politizadas: porque servem aos interesses de poucos ou adoecem as pessoas. Mas
pode existir um hospital diferente?
No hospital que trabalho me encontro na situação (me acontece sempre dirigir um
hospital e esse é o terceiro que dirijo) na qual assim que afloram as primeiras contradições,
imediatamente se manifestam a repressão política, judiciária, etc, que impedem de prosseguir
o trabalho proposto. Tudo isso é muito estranho. Quando uma organização começa a funcionar,
no momento em que se chega a dar uma resposta às necessidades do doente, que começam a
aflorar e a exprimir-se, quando a relação entre instituição e internado não é mais apenas aquela
da violência e do domínio, imediatamente advém um momento repressivo.
Vocês acompanharam os trabalhos do grupo que operou em Gorizia onde, precisamente,
quando a quase totalidade dos pacientes fora declarada curada os médicos tiveram que sair,
porque não podiam mais trabalhar: o tipo de soluções que eles pediam aos internados não tinha
mais nada a ver com psiquiatria, se tratava de intervenções econômico-sociais que,
obviamente, os administradores não queriam aplicar, escorando-se no fato de que os técnicos
são técnicos e não têm que fazer política. Mas dado que a instituição manicomial tem uma
função político-social bem explícita no controle da marginalidade dos pertencentes à classe
subalterna (os únicos que preenchem os nossos manicômios), os técnicos tradicionalmente
cumprem uma função política. O que estão impedidos é de mudar de ideia quanto a esta
intervenção política, isto é, atuar tecnicamente na defesa e proteção da classe que são obrigados
a oprimir. É neste caso que intervém a repressão.
Por que, por exemplo, em Trieste, em um hospital psiquiátrico que avança rumo à
liberação de 1200 pacientes que hoje vão para a cidade sem criar maiores problemas, a
consequência imediata é a repressão judiciária que impede o operador de levar adiante seu
trabalho?
O problema está na relação entre técnica e política. O médico que estuda, que pratica,
pede uma nova técnica para enfrentar a problemática sanitária de modo diferente. Se dá conta
que, por exemplo, a esquizofrenia não é aquela que vem descrita nos manuais. Aquela que se
encontra nos manicômios é um sofrimento mesclado com outros infinitos fatores. A técnica
que lhe é ensinada acaba inútil diante do sofrimento de um indivíduo se primeiramente não se
estabelece o que fazer com ele, se quer reabilitá-lo, se há lugar para ele na sociedade, isto é, se
todas as condições psicológicas e materiais que permitem sua recuperação existem e são
possíveis de atingir.
No estado atual das coisas, o processo objetivante da técnica deve também ser quebrado
pela introdução do elemento subjetivo na dinâmica da doença. No momento em que o médico
se aproxima do doente, não é a técnica neutra, asséptica, não é a “pílula” que pode resolver a
problemática de um novo homem que é um homem individual e social, mas sim a identificação
de todas as suas necessidades, que só pode advir através de um momento de cumplicidade em
que se cria uma união com o outro, compreendendo também que o sofrimento é o sofrimento
de ambos. As vítimas e os algozes são fechados no mesmo cerco institucional, um objeto da
violência, outro objeto da incumbência de exercer a violência. O problema deve ser enfrentado
juntamente, para que se possam encontrar soluções válidas para todos. Nesse sentido o técnico
deve sair do isolamento no qual a “ciência” sempre o manteve, pois este isolamento não era a
garantia à seriedade do seu trabalho, mas a garantia de que tudo que há relação direta com o
mundo social seja automaticamente transferido no indivíduo como sua doença, sua culpa. Isso
significa que o nosso ser médico deve nos levar a encontrar o paciente no mesmo nível que
nós, para não mais entendermos quem somos e o que é o outro quando não usamos uma técnica
para nos defendermos, porque só neste momento começamos a trazer à tona os problemas reais,
antes sufocados pela dominação e pela violência.
É então a realidade na qual vivemos que nos impede de enfrentar qualquer problemática
real. Nós estamos habituados a separar a saúde da doença, o bem do mal sem nos perguntarmos
o que é um ou outro. O que somos habituados a fazer é localizar imediatamente a diversidade
do outro, pois somente se o outro for diferente nós acreditamos que podemos agir sobre ele,
mas isso significa que é apenas a confirmação dessa diferença que nos permite agir sem sermos
tocados pelo problema que estamos diante. Não podemos viver sem dar um nome ao agressor,
mas para nós o agressor é o doente e o diagnóstico e a cura se tornam um instrumento de defesa
para nós.
Vivemos uma realidade que se funda sobre a divisão, em uma organização social que
nos mata e que se encarrega de matar outros para sobreviver. É esta realidade que deve ser
diferente e devemos lutar para transforma-la para poder encontrar respostas reais às
necessidades sociais do outro: em uma sociedade onde o sistema social não seja determinado
por quem o gerencia e o administra, mas na qual sejam as necessidades de todos a determinar
a qualidade e a modalidade da resposta.

Tradução livre por Iago Martins Chaves, psicólogo, militante do Coletivo Uai Basaglia e do
Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Você também pode gostar