Você está na página 1de 4

O Carandiru como um reflexo do “projeto

necropolítico” do Estado brasileiro.


Aline dos Santos Maciel, Julia Zanotto Cozer,
Letícia Ducatti Ferreira e Lucas Bonatto Rodrigues

“E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo / Diante da


chacina / 111 presos indefesos, mas presos são quase todos
pretos / Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão
pobres / E pobres são quase como podres e todos sabem como se
tratam os pretos”5

O longa-metragem Carandiru – lançado em 2003 e baseado no livro Estação


Carandiru de Drauzio Varella6 – relata as condições da Casa de Detenção de São Paulo
e sobretudo o massacre de 2 de outubro de 1992. O filme narra histórias e experiências
de vida dos encarcerados pela perspectiva do médico, que frequentava o complexo
penitenciário a fim de realizar um trabalho voluntário de prevenção a AIDS. Varella
aproximou-se da população carcerária durante os anos de trabalho, fazendo amizades e
ouvindo histórias – “Na convivência penetrei alguns mistérios da vida no cárcere,
inacessíveis se eu não fosse médico” 7 – e após o massacre recebeu os corpos dos
detentos.
“No dia 2 de outubro de 1992, morreram 111 homens na Casa de
Detenção de São Paulo. Não houve morte entre os policiais militares.

Só podem contar o que aconteceu Deus, a polícia e os presos. Eu ouvi


apenas os presos”8

Ao longo do filme acompanhamos a jornada do oncologista na Casa de


Detenção, bem como as vivências dos residentes do pavilhão 9. Este que era o espaço
habitado por cerca de 2 mil presos – superlotação que refletia o estado de toda a
penitenciaria, que apesar de ser projetada para 3.250 presos, era ocupada por 7.257 em
1992 – majoritariamente composto por aqueles aguardando julgamento ou presos de
réu-primário.
O longa-metragem retrata a situação habitacional do Carandiru, que era, para se
dizer o mínimo, extremamente precária. Como, por exemplo, quando a personagem
Deusdete chega no presídio e se depara com a falta de leitos nas celas. Nesta cena, o
espectador compreende as negociações socioeconômicas realizadas entre os detentos,
que se organizavam socialmente em função de sobrevivência e revogavam a tutela
estatal – que os tratavam como animais.
Ademais, podemos observar ao decorrer do filme as diversas epidemias que
ocorriam simultaneamente na Casa de Detenção, justamente devido as condições

5
Haiti, música do álbum Tropicália 2 de Caetano e Gil, lançada em 1993.
6
Médico cancerologista formado pela USP. Nasceu em São Paulo, em 1943.
7
Estação Carandiru – página 10.
8
Dizer de Drauzio Varella apresentado ao final do filme Carandiru.

1
anteriormente citadas. Tal como nas cenas ambientadas na enfermaria improvisada e
nos atendimentos de Drauzio Varella, evidenciando a pluralidade de doenças do
presídio – a AIDS, o vício em drogas, sarna, tuberculose, entre outras. Para além da
“enfermaria”, a precariedade pode ser vista no pavilhão 5 (Amarelo), onde ficavam
aqueles que até a população carceraria condenava (estupradores e justiceiros).
“O Cinco é o pavilhão dos sem-família, dos sem-teto e dos
‘humildes’. Embora homens respeitados cumpram pena nas
dependências, no conceito da malandragem é o pavilhão da ralé. Vi
ladrão barbado chorar feito criança ao ser transferido para lá” (Varella,
1999, p. 29)

O clímax do longa-metragem acontece com o massacre dos supostos 111 presos


do pavilhão 9. A brutalidade apresentada na cena é um reflexo do “projeto necropolítico
vigente nesse país”9, que reprime e assassina camadas mais marginalizadas. Podemos
assim retomar Darcy Ribeiro em seu texto Sobre o Óbvio, no qual o autor disserta sobre
um projeto de Brasil em que o Estado usa da violência para manter a população sob
controle. Logo, o massacre é um resultado eminente e não isolado, visto a implantação
da política de violência pelo Estado de São Paulo.
“Um estado que, há décadas, não só tem tolerado essa violência, mas,
em grande parte dos casos, incentivando os crimes cometidos por
policiais, posteriormente apagando seus rastros e reforçando ainda
mais o esquecimento” (Rodrigues, 2021, p. 50 – grifo nosso)

Visto as condições do complexo penitenciário e o incentivo da violência como


meio de controle, o resultado não poderia ser diferente. A violência ultrajante por parte
dos policiais militares não refletia a vontade de justiça: “Uma bala bastava. O resto era
vontade de matar”, como relata Clarice Lispector em seu conto Mineirinho. No caso do
massacre, foram disparadas 515 balas, uma média de 4,6 balas por pessoa.
“Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro
com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto
desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e
o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no
décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto
o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo
terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero
ser o outro.” (Lispector, 1979)

A execução violenta foi - no contexto do massacre Carandiru - e continua sendo


direcionada as mesmas classes sociais, essencialmente o “extermínio dos grupos que
não tem lugar algum no sistema”10. Sistema esse que trabalha na construção de uma
“memória nacional”11 - ou apagamento da verdade – como instrumento de controle
dessas massas marginalizadas.
“Esse é o trabalho ideológico que a prisão realiza – ela nos livra da
responsabilidade de nos envolver seriamente com os problemas da

9
Carandiru: formas de lembrar, maneiras de esquecer – páginas 69 e 70.
10
Encarceramento em Massa - página 24.
11
Carandiru: formas de lembrar, maneiras de esquecer – página 43.

2
nossa sociedade, especialmente com aqueles produzidos pelo racismo
e, cada vez mais, pelo capitalismo global.” (Davis, 2021, p. 17)

“A memória do Carandiru é um imenso campo de batalha” 12 visto o constante


esforço estatal em apagar a história do massacre. Esforço este que se apresenta em
múltiplas esferas: na proposta do projeto arquitetônico do Parque da Juventude –
construído onde era a Casa de Detenção; na tentativa legal de mudança do nome da
estação Carandiru; no uso da palavra “motim” para se referir ao massacre no Museu
Penitenciário Paulista; e na inauguração do monumento localizado no antigo Nove que
presta homenagem a obliteração do passado – parabenizamos aqui a coragem do Estado
de São Paulo.
31 anos depois ninguém foi criminalmente responsabilizado pelo genocídio. Se o
Governo do Estado de São Paulo depositasse os mesmos esforços e recursos em trazer à
justiça os assassinos, que deliberadamente gastou para apagar da memória coletiva e
social o massacre, os culpados já teriam sido condenados, e as famílias das vítimas
poderiam finalmente respirar aliviadas.
Apesar de, no longa-metragem, nós espectadores sermos convidados a
experenciar a realidade dos detentos e, até certo ponto, fazer parte de suas histórias, o
tempo todo quem conduz a narrativa é o médico, que dá voz a realidade vivida, mas
partindo de um ponto de vista externo. Em Dialética da Marginalidade, João Cezar de
Castro Rocha propõe que a exposição dos fatos seja feita por aqueles que sofrem
repressão do Estado e estão à margem da sociedade.
“A dialética da marginalidade é então o oposto da infantilização do
problema da violência porque permite ao marginal projetar a sua
voz, a fim de articular uma crítica inovadora das raízes da
desigualdade social.” (Rocha, 2004, p. 172 – grifo nosso)

A partir da análise do filme, podemos concluir que o “projeto de Brasil” 13 se


opõe a mudanças, se o sistema preservasse a memória do Carandiru haveria menos
espaço para a proliferação da violência. Além disso, a reinserção de detentos à
sociedade ocorrerá apenas depois de mudanças estruturais, tanto no âmbito legal quanto
no imaginário social. Se o objetivo do encarceramento em massa fosse a diminuição da
criminalidade, tal fim já teria sido alcançado. Fica em evidência que o desejo do Estado
nunca foi esse – o que a elite capitalista brasileira busca é a manutenção da segregação
social, dessa forma, o projeto necropolítico brasileiro visa a obliteração do marginal.

“Violência é a gente receber tapa na cara e na bunda quando socam a


gente naquela cela imunda cheia de gente e mais gente e mais gente e
mais gente pensando como seria bom ter um carrão do ano e aquele
relógio rolex mas isso fica para depois uma outra hora.

Esquece.” (Freire, 2005, p. 32)

12
Carandiru: formas de lembrar, maneiras de esquecer – página 78.
13
Darcy Ribeiro, Sobre o Óbvio.

3
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Borges, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Pólen, Sueli Carneiro, 2019.
Davis, Angela. Estarão as prisões obsoletas? (Are Prisons Obsolete?). Tradução de
Marina Vargas. Rio de Janeiro: Difel, 2021.
Freire, Marcelino. Esquece. In: Contos Negreiros. Rio de Janeiro: Record, 2005.
Lispector, Clarice. Mineirinho. In: Para não esquecer. São Paulo: Ática, 1979.
Ribeiro, Darcy. Sobre o Óbvio. Ed. Guanabara, 1986.
Rocha, João César de Castro. A guerra de relatos no brasil contemporâneo. Ou: "a
dialética da marginalidade". Letras, [S. l.], n. 32, p. 23–70, 2006. DOI:
10.5902/2176148511909. Disponível em:
https://periodicos.ufsm.br/letras/article/view/11909. Acesso em: 27 out. 2023.
Rodrigues, Adriana Mariana de Araujo. Carandiru: formas de lembrar, maneiras de
esquecer. Informação, memória e esquecimento. Dissertação (Mestrado) - Programa
de Pós-graduação em Ciência da Informação - Escola de Comunicações e Artes,
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2021.
Varella, Drauzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
Veloso, Caetano e Gil, Gilberto. Haiti. Tropicália 2. Polygram/Philips: 1993.

Você também pode gostar