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Cartola

Semente de amor sei que sou, desde nascença

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Pereira, Arley (1935 – 2007)


Cartola: semente de amor sei que sou, desde nascença / Arley
Pereira; prefácio de Elton Medeiros. – 2.ed. rev. – São Paulo : Edições
SESC SP, 2008.
120 p. : il.

ISBN: 978-85-98112-77-0

1. Biografia. 2. Música. 3. Brasil. I. Oliveira, Angenor de. II.


Cartola III. Medeiros, Elton. IV. Título

CDD 927

Crédito fotográfico

Arquivo pessoal de Arley Pereira: p. 21, 47, 80, 85, 90, 93, 98, 104
Arquivo pessoal de J.C. Botezelli, Pelão: p. 33, 40, 50, 58, 62, 72, 78, 83,
88, 104
Acervo Centro Cultural Cartola: p. 27
Almir Veiga/CPDoc JB: p. 84

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Arley Pereira

Cartola
Semente de amor sei que sou, desde nascença

Prefácio
Elton Medeiros

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SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC SP
Administração Regional no Estado de São Paulo

Presidente do Conselho Regional


Abram Szajman
Diretor do Departamento Regional
Danilo Santos de Miranda

Superintendentes
Técnico-social Joel Naimayer Padula / Comunicação Social Ivan Giannini

Gerentes
Estudos e Desenvolvimento Marta Colabone. Adjunto Andréa de Araújo Nogueira/
Artes Gráficas Hélcio Magalhães

Edições SESC SP
Gerente Marcos Lepiscopo. Adjunto Walter Macedo Filho Coordenação editorial
Clívia Ramiro Produção editorial Fabiana Cesquim Capa e projeto gráfico Thais
Helena Franco S. Leite. Preparação de texto Márcia Lígia Guidin

© Jornal do Brasil, crônica de Carlos Drummond de Andrade


© Edições SESC SP, 2008

2a edição revista, novembro de 2008


1a edição 1998

Todos os direitos desta obra reservados para

SESC São Paulo


Edições SESC SP
Av. Álvaro Ramos, 991
03331-000 – São Paulo – SP
Tel. (55 11) 2607-8000
E-mail: edicoes@sescsp.org.br
Portal: www.sescsp.org.br

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Em homenagem a Paulinho da Viola e
Elton Medeiros, os mais diretos herdeiros
do estilo e da genialidade do Mestre.

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Sumário

9 Apresentação
Danilo Santos de Miranda

11 Prefácio
Elton Medeiros

17 Grande amigo
23 Festa da Penha
31 Divina dama
39 A Vila emudeceu
49 Não quero mais amar a ninguém
57 Fiz por você o que pude
67 O sol nascerá
77 As rosas não falam
87 O mundo é um moinho
97 Tempos idos
105 Cartola, no moinho do mundo
Carlos Drummond de Andrade

110 Anexo I
114 Anexo II

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Apresentação

Apresentação

Com uma ação contínua em prol do estímulo e do res-


peito à diversidade cultural, o SESC São Paulo aprendeu
a não separar a cultura popular da cultura erudita e a
enxergar em distintas manifestações formas singulares e
sofisticadas de arte.

Nessa perspectiva, insere-se Cartola, cuja poesia, nas-


cida no morro, não só conquistou a cidade, mas espa-
lhou-se pelo país, trazendo reconhecimento a seu autor
e, sobretudo, brindando-nos com a beleza e a atempora-
lidade de seus versos.

Nascido há um século, no Rio de Janeiro, Cartola fun-


dou ao lado de outros sambistas a Estação Primeira de
Mangueira, marcando profundamente a cultura do car-
naval brasileiro que, ainda hoje, o reverencia.

A reedição da biografia de Cartola, escrita por Arley


Pereira, além de celebrar vida e obra do artista, ratifica
o papel do SESC como fomentador da cultura brasileira
em suas mais diversas frentes e contribui para o com-
partilhamento efetivo pelo público da história de um dos
maiores mestres do samba.

Danilo Santos de Miranda


Diretor Regional do SESC São Paulo

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Prefácio

Prefácio

L
á pelos anos 1930, naquela casa
de vila do bairro da Glória, cidade
do Rio de Janeiro, era freqüente a
visita do já conhecido compositor Heitor dos
Prazeres. Ali, ele passava para bater um pa-
pinho e, até mesmo com seu violão, apre-
sentar algumas de suas novidades musicais
ao casal de amigos, o senhor Luiz Antônio
de Medeiros, que entre outras qualidades
era emérito dançarino, e dona Carolina
Luiza S. de Medeiros, que costumava rea-
lizar domingueiras em casa, animadas por
uma moderna vitrola de manivela, para os
adolescentes, colegas de suas filhas. Filhas,
explica-se: o casal teve dez filhos, colocou
no mundo inicialmente seis do sexo femi-
nino e, entre os últimos quatro, mais uma
representante desse sexo.
Em uma das visitas, Heitor dos Prazeres,
depois de cantar algumas de suas compo-
sições, alegou estar com pressa, pois teria
de se encontrar com Cartola. O filho caçu-
la do casal achou estranho que seu Heitor
fosse ao encontro de “uma cartola”. Após
as explicações das irmãs mais velhas, pas-
sou a acompanhar, a seu jeito, não a car-
reira de uma cartola (impossível!), mas a
do Cartola, genial, primoroso, sofisticado e
tão necessário compositor de nossa música

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Elton Medeiros

popular. Autor de Divina dama, Que infeliz sorte, Tenho


um novo amor, músicas do seleto repertório das domin-
gueiras de dona Kalu, como era conhecida no bairro a
matriarca da família.
Durante os desaparecimentos de Cartola do cenário
musical, o caçula da família Medeiros parecia ficar na
expectativa da volta do ídolo. Isso, inconscientemente,
pois a cada retorno do compositor, por intermédio de
qualquer intérprete, ele era capaz de identificar a au-
toria de Cartola na nova canção executada, antes mes-
mo de que, ao final, fosse anunciada pelo locutor. Como
aconteceu, por exemplo, com o samba Sim, gravado por
Gilberto Alves.
Em meados da década de 1930, a família Medeiros foi
residir em Brás de Pina, subúrbio carioca da região da
Leopoldina. Com ela, naturalmente, foi o caçula, que por
influência do ambiente em que vivia, e em particular de
seu irmão Achilles, começou a fazer sambas. No início,
para um bloco infantil de rua, que ajudou a criar com
alguns meninos e meninas do bairro, liderado pelo irmão
já citado. Fundou blocos carnavalescos de maior porte na
adolescência; alas de blocos; tocou em gafieiras um dos
instrumentos que aprendera na banda de música do co-
légio em que estudou em Vila Isabel. Era de lá que avista-
va o morro da Mangueira enquanto imaginava os lugares
por onde deveria estar caminhando Cartola, seu ídolo.
Mais tarde, já compositor de escola de samba, fez coro
em emissoras de rádio, apresentou-se nos programas de
Carlos Frias e Sérgio Porto e gravou seus primeiros sam-
bas, porém, sem o mesmo sucesso dos terreiros das esco-
las. Foi quando conheceu Zé Keti, que o convidou para
participar de um conjunto constituído por compositores

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Prefácio

oriundos de escolas de samba e liderado por Cartola.


Claro que aceitou o convite. Sobretudo, porque ansiava
pelo momento que perseguira durante toda a vida: estar
diante de quem aprendera a admirar desde muito cedo.
Ali, naquele velho sobrado da rua dos Andradas, no
centro da cidade do Rio de Janeiro, estava ele, emocio-
nado, em uma tarde meio nublada diante do mestre. O
conjunto foi formado, recebeu o nome de A Voz do Morro
e desfez-se logo depois de uma bem-sucedida apresen-
tação em um programa de televisão. Os remanescentes
continuavam se encontrando no sobrado onde residia
Cartola, nos mesmos dias da semana em que costumavam
ensaiar anteriormente. Foi sempre muito assíduo nessas
rodas de samba, compondo o grupo com o dono da casa,
mais Zé Keti e Nelson Cavaquinho. Entravam pela madru-
gada cantando, tocando, comendo o salgadinho da Zica
e tomando “umas e outras” diante da platéia que foi au-
mentando assustadoramente: era a semente do Zicartola.
Um dia, no qual se antecipou a uma dessas reuniões,
iniciou uma conversa com Cartola que, de repente, pas-
sou a mão no violão e, quando percebeu, juntos estavam
lutando para reunir sons e palavras de um samba, mais
tarde gravado pela segunda formação do conjunto A Voz
do Morro. Era a glória para aquele fanático admirador:
ser parceiro do ídolo.
Foi, porém, a segunda composição da dupla que con-
duziu Cartola definitivamente ao ponto mais alto de sua
carreira e fez despontar o desconhecido parceiro: a mú-
sica O sol nascerá.
Daí em diante, o novo parceiro de Cartola participou
do processo de criação e atividade musical do Zicartola
e do conjunto A Voz do Morro, em sua segunda forma-

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Elton Medeiros

ção, liderada por Zé Keti. Compôs com outros parceiros,


gravou com artistas famosos, foi requisitado para muitos
shows e teve a honra de integrar o elenco do famoso
musical Rosa de Ouro, de grande sucesso em vários es-
tados do país.
Foi em passagem por São Paulo com o Rosa de Ouro,
numa temporada no Teatro Oficina, que o novo parceiro
de Cartola, depois da estréia, abriu um jornal de grande
circulação da cidade, certo de encontrar na crítica uma
verdadeira avalanche de elogios – o que era comum em
qualquer lugar por onde o Rosa passasse. Tudo ao con-
trário. O autor da matéria “desceu o sarrafo”, a ponto de
dizer que o quinteto de sambistas1 que apoiava o espetá-
culo podia ser nivelado a qualquer grupo de batuquei-
ros de botequim.
Como integrante do “esculhambado quinteto”, o novo
parceiro de Cartola ficou revoltado e até pensou em en-
viar uma carta respondendo ao tal crítico. À tarde, em
plena erupção vulcânica estabelecida nos bastidores do
teatro, o quinteto foi procurado por outro jornalista, dos
Diários Associados, que não só veio massagear o ego da
rapaziada com sua solidariedade e revolta, como jurou
que estava escrevendo matéria em resposta “àquele grin-
go preconceituoso que não entendia de samba”.

1
0 quinteto de sambistas ao qual o prefaciador se refere, integrante do musical Rosa
de Ouro, era composto por Elton Medeiros (pandeiro, atabaque, prato-e-faca, tam-
borim, caixa de fósforos e o “que mais viesse em assunto de ritmo”); Paulinho da
Viola (violão, atabaque e ritmo); Nelson Sargento (violão, o inenarrável violão verde);
Nescarzinho (tamborim) e Jair (do Cavaquinho). Mais que dignos representantes das
escolas Aprendizes de Lucas, Mangueira, Salgueiro e Portela.

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Prefácio

A solidariedade foi bem recebida, mas os ânimos não


arrefeceram e ninguém acreditou na matéria prometida
– pura cascata!
Para surpresa dos sambistas do Rosa de Ouro, no dia
seguinte, lá estava no Diário da Noite uma veemente e
bem argumentada réplica, conforme havia prometido o
estranho beletrista. E a assinatura: Arley Pereira.
Por isso, Arley ficou amigo de todo o elenco, uma es-
pécie de irmão adotivo do quinteto e filho adotivo das
duas veteranas estrelas2. Por extensão, amigo dos amigos
desses novos amigos. Cartola, de quem fala aqui com
grande propriedade, serve de exemplo dessa amizade.
Hoje, passados trinta e poucos anos, Arley Pereira,
leão já sem dentes, não é mais aquele briguento de ou-
trora (como diria um bom samba da antiga). Confessa
ter inutilizado uma das páginas que acabara de escrever
para este livro, quando, após tê-la lido, tomado de extre-
ma saudade pelo mestre Cartola, a umedeceu com suas
lágrimas de menino idoso.
Aqui fica um dos irmãos adotivos de Arley Pereira, o
ex-novo parceiro de Cartola e eterno caçula da família
Medeiros.

Elton Medeiros

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As “veteranas estrelas” eram as imensuráveis Aracy Cortes, vida e alma do teatro de
revista brasileiro, e Clementina de Jesus, que dava ao autor deste livro a honra maior
de chamá-lo de filho e ao qual jamais negou sua bênção. (N. do A.)

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CartolaSemente de amor se que sou, desde nascença
CartolaSemente de amor se que sou, desde nascença
CartolaSemente de amor se que sou, desde nascença
CartolaSemente de amor se que sou, desde nascença
CartolaSemente de amor se que sou, desde nascença
CartolaSemente de amor se que sou, desde nascença
CartolaSemente de amor se que sou, desde nascença
CartolaSemente de amor se que sou, desde nascença
CartolaSemente de amor se que sou, desde nascença
CartolaSemente de amor se que sou, desde nascença
CartolaSemente de amor se que sou, desde nascença
CartolaSemente de amor se que sou, desde nascença
CartolaSemente de amor se que sou, desde nascença
CartolaSemente de amor se que sou, desde nascença
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Grande amigo
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Arley Pereira

T
er convivido com Cartola foi um
presente dos deuses. Quis o des-
tino que tal prazer me fosse con-
cedido quando eu já tinha discernimento
para desfrutar de seu convívio. Os longos
silêncios do Divino eram eloqüentes, pois
aconteciam nos momentos certos, como
que pontuando ou pautando seus saberes...
ditos ou por dizer.
Como todo gênio, reservava o melhor de
si para aqueles de quem realmente gosta-
va. Elegante, mas formal e até seco quando
a conversa era obrigatória, ou o interlocutor
(muitas vezes um repórter mal preparado
para a entrevista) não tinha a sensibilidade
necessária para entendê-lo.
Conversar com ele, ouvi-lo com sua voz
mansa e segura, nas longas tardes quen-
tes da Mangueira, às vezes em sua casa,
muitas outras nesta ou naquela tendinha,
enfrentando cervejinhas geladas, valeram
por um curso completo na universidade
da vida. Como sempre, sentado com uma
das pernas flexionadas, o queixo apoiado
no joelho, coçava eterna e carinhosamente
o dedão do pé e transmitia a imagem que
dele ficou por muitos anos: a do carioca
descansado, avesso ao trabalho, que prefe-
ria ver a vidinha escorrer mansa, vivida da
maneira que fosse possível, entre as primas
e os bordões de seu violão, as rimas muitas
vezes camonianas de seus versos.

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Grande amigo

Assim foi durante muito tempo até o ou-


tono de sua existência, quando a oportuni-
dade surgiu. A chance de assentar a vida,
ganhar algum dinheiro, ter casa própria,
decente e montada, como dona Zica sem-
pre sonhara. Aí apareceu o outro Cartola.
Sarabanda de shows, de programas em
televisões e rádios, madrugadas varadas
em estúdios de gravadoras, excursões pelo
Brasil. Fazia o pé-de-meia, sem tempo para
o passatempo. Sem tempo para o outro pé,
que pedia o costumeiro carinho.
Quando podia – e sempre queria –,
abria espaço para os amigos. Certa noite,
terminado um espetáculo em São Paulo,
cercado por microfones e gravadores, as
mesmas perguntas de sempre, o cansaço
nos olhos, achou tempo para o cochicho no
ouvido: “Descobri um botequim da melhor
qualidade, na segunda esquina. Foge pra
lá e pede meu conhaque que já chego”.
Não demora, sentado no tamborete ao lado,
sorvendo sua dose, o papo já era ameno,
como se os aplausos da platéia, o tumulto
da fama que já o cercava, o aborrecimento
das mesmas respostas não tivessem existido
pouquíssimo tempo antes. O Fluminense, a
Mangueira, as histórias do Nelson Sargen-
to, a última reunião dos velhos composito-
res contemporâneos, Padeirinho, Carlos
Cachaça, o mesmo Nelson, histórias do
parceiro Aluísio Dias e seu violão gostoso,

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Arley Pereira

tudo ao redor do feijão orquestrado pela


Zica e cambonado2 por sua irmã Menina,
mulher de Carlos Cachaça.
Nelson Sargento apresentava-se com um
inenarrável violão verde, com uma bandeira
brasileira decalcada no tampo, um instru-
mento folclórico na MPB. Quando percebi
que o tal violão ia acabar se perdendo em
uma madrugada qualquer das mais bor-
rascosas, propus um instrumento novo e o
Nelson topou. Na hora de escolher o violão
para a troca, apanhei mais um e presenteei
Cartola. Foi nele, até morrer, que o Divino
compôs algumas de suas maravilhas. Ga-
nhou outros, inclusive um caríssimo Ramí-
rez, vindo da Espanha. Mas seu xodó era
o “violão do Arley”, instrumento que, para
felicidade nacional, casou-se perfeitamen-
te com seu peito, e pelo qual recusou pro-
postas de trocas e vendas as mais variadas.
Chamado que fui a escrever coisas so-
bre Cartola, de quem tanto ou talvez tudo
já tenha sido dito (um passeio pela internet
comprova isso em vários idiomas), só me
restou tirar o coração do peito, transformá-

2
Na umbanda, cambono é o auxiliar do pai ou da mãe-de-
santo para diversas finalidades rituais do terreiro. Aqui, o
autor se apropria do termo corrente no meio em que viviam
Cartola e Zica para designar o papel de co-anfitriã desem-
penhado por Menina, quando todos se reuniam na residên-
cia do casal. (N. do E.)

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Cartola, Arley Pereira e Nelson Cavaquinho.

lo em memória e transcrever, da melhor maneira possível,


as histórias que o próprio Divino me contou.
Fazê-lo foi um exercício de sofrimento e prazer, um du-
ríssimo teste para as cinco safenas metidas dentro do meu
peito. A cada pesquisa, a cada lembrança, a cada foto,
a cada fita que reproduzia nossas conversinhas, a cada
CD que enchia o espaço com ternura, beleza e melodia,
a voz do velho, clara, bonita, com a dicção inconfundí-
vel, resultava inevitavelmente em lágrimas. Como em seu
samba, eu também “sei chorar”. Um choro bom, nascido
de saudade, que tem como consolo poder dormir com
a certeza de ser um dos raros que podem dizer para si
mesmo, sem alardear para não provocar invejas: Tive um
grande amigo e ele se chamava Cartola.

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Festa da Penha
Uma camisa e um terno usado
Alguém me empresta
Hoje é domingo
E eu preciso ir à festa

Cartola e Asobert

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Arley Pereira

S
empre esperado com ansiedade
pela cidade de São Sebastião do
Rio de Janeiro, o outubro tinha
chegado. Com ele, a mais popular festa
carioca, a colina do subúrbio enfeitada de
bandeirolas, perfumada pelos quitutes que
saíam das frigideiras nas barracas das tias
baianas, e animada pelo samba que corria
solto ao redor. Enquanto os fiéis pagavam
promessas, subindo a longa escadaria ajo-
elhados e entoando cânticos a Nossa Se-
nhora da Penha, entre um samba e outro,
atabaques rufavam em louvor de lemanjá e
outros orixás, alimentando o sincretismo.
Os bambas reuniam-se nas barracas
mais animadas e mais festeiras, esperando
os compositores que certamente aparece-
riam para lançar suas novidades, já com
os olhos no carnaval do próximo mês de
fevereiro. Os batuqueiros enfrentavam-se
no samba-duro, uma roda de batucada na
qual aquele que estava no meio convida-
va um dos circunstantes para enfrentá-lo,
e a pernada comia. O grande mérito era
jogar de terno branco, de linho S20, e sair
da roda impecável: só não se sujava quem
não era derrubado.
A Festa da Penha era a mais animada ma-
nifestação de caráter religioso-musical da

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Festa da Penha

festeira cidade, já desde o século XIX, quan-


do implantada por imigrantes portugueses
– e não seria diferente naquele 1908.
Sebastião Joaquim de Oliveira e sua mu-
lher, Aída Gomes de Oliveira, não eram de
freqüentar a Festa da Penha e, mesmo que
fossem, naquele domingo, 11 de outubro,
seria impossível. Estava nascendo o terceiro
filho do casal, o primeiro homem, Agenor
(que o tabelião Darcy Hauschildt registrou
como Angenor, presenteando-o com um
“n” extra pelo resto da vida), este sim, fu-
turo freqüentador da Penha, que viria a ser
até mesmo tema de samba dele, quando já
famoso como Cartola.
Mas antes disso, antes de ser sambista,
de ser Cartola e ir à Penha, morava menino
no Catete, cercado de carinho pelo avô e
pela mãe, que não escondia ser ele o fa-
vorito dos dez filhos que teve. Mudando-se
para o bairro carioca de Laranjeiras, ele
conheceu o primeiro amor ao acompanhar
a construção do estádio do Fluminense,
tornando-se tricolor para sempre. A músi-
ca aparece trazida pelos ranchos e lá vai o
moleque desfilar nos Arrepiados, da Fábri-
ca de Tecidos Aliança, vestido com as cores
verde e rosa, que mais tarde ele escolheria
para sua Mangueira, ao fundá-la. Seu pai

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Arley Pereira

tocava cavaquinho, e foi nas quatro cordas


pequenas que o garoto iniciou furtivamente
seu aprendizado.
Aos 11 anos, perde o avô Antônio e as
coisas pioram financeiramente para seu
pai, o operário Sebastião. A solução foi a
família mudar para o morro da Manguei-
ra, onde começava a se formar uma favela.
Cartola, ainda bem-vestido, de gravata e
chapéu, como o avô gostava de vê-lo em
Laranjeiras, demorou um pouco a se am-
bientar: “Quando chegamos, não tinha
mais de cinqüenta barracos”.
Embora Carlos Cachaça fosse seis anos
mais velho (tinha 17 quando Cartola apor-
tou em Mangueira), fizeram amizade com
facilidade, sem imaginar que acabariam
parceiros e parentes (tornaram-se concu-
nhados) até o fim da vida. Foi Carlos, para
desespero do velho Sebastião, quem ini-
ciou Cartola, ainda Agenor (só foi desco-
brir que era Angenor quando se documen-
tou para casar com Zica, em 23 de outubro
de 1964), nos meandros da malandragem
do samba.
Bem que o pai tentava fazer com que
ele estudasse. Seu Sebastião, que se alfa-
betizou só depois de casado, aprendeu a
gostar dos estudos. Cartola contava que o
pai era carpinteiro mas falava até francês.
O pai cursava uma escola noturna onde

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Cartola em sua mocidade.

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Arley Pereira

matriculou também o filho. Ficou uma fera


quando descobriu, no final do ano, que
Cartola o esperava entrar na sala de aula e
simplesmente fugia, reaparecendo na hora
da saída. Não assistiu a nenhuma aula, e
foi, obviamente, reprovado.
Tendo nascido para boêmio, o menino
não parava em emprego. Era aprendiz de
tipógrafo, mas detestava entregar o salário
ao pai no final do mês e, quando obrigado,
abandonava o trabalho. As brigas com seu
Sebastião eram amenizadas por dona Aída,
que continuava a ter no moleque o filho
favorito. Mas a vida ficava cada dia mais
dura. O feijão rareando na mesa e Cartola
não se fixando em tipografia nenhuma. “Eu
tinha inveja mesmo era dos pedreiros. Cada
vez que passava em uma obra, via aquele
pessoal trabalhando ao ar livre, assobiando
para as garotas e, de vez em quando, ga-
nhando uma delas. Eu queria aquilo para
mim”. Cartola ria quando contava como se
tornou servente de pedreiro: “Consegui o
emprego, mas no fim do dia a cabeça esta-
va sempre cheia de cimento que caía lá de
cima. Arranjei uma cartola e passei a ir tra-
balhar com ela. Todas as manhãs escovava,
deixava limpinha e desfilava. Foi quando
nasceu o apelido”.

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Festa da Penha

Quando tinha 15 anos, Cartola perdeu a


mãe. Dona Aída morreu em conseqüência
de parto, em 1926. Deu à luz ao amanhe-
cer e, antes do almoço, faleceu por falta de
assistência, já que o médico chamado só
chegou depois da garantia de pagamento,
quando não era mais necessária sua pre-
sença. Escapou por pouco de linchamento.
Sem a proteção materna, desfilando or-
gulhosamente com o chapéu-coco que ele
chamava de cartola, não querendo nada
com o trabalho, brigando diariamente no
lar, o menino entrou em conflito definitivo
com o pai, que o expulsou de casa. Peram-
bulando pela noite, namorando com o vigor
de sua mocidade, bebendo nas tendinhas
que já apareciam na favela e dormindo
de dia nos trens de subúrbio que iam e vi-
nham, Cartola acabou sabendo que fora
abandonado quando recebeu recado do
pai: “Vou-me embora deste morro, mas dei-
xo aqui um Oliveira para fazer vergonha”.
Sem família, sem ninguém para aconse-
lhá-lo, solto por completo na vida, caiu no
mundo. Não demorou e estava praticamen-
te morando na zona do meretrício, onde
contraiu todas as doenças venéreas possí-
veis. Antes de chegar aos 20 anos, já tinha
experiência que muito homem de 50 não
podia exibir.

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Divina dama

Tudo acabado
O baile encerrado
Eu dancei com você
Divina dama
Com o coração
Queimando em chama

Cartola

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Arley Pereira

N
o barraco que arranjara para
dormir, Cartola só aparecia de
vez em quando. Até que foi sen-
do derrubado pelas doenças, a tal ponto
que o corpo magro e mal-alimentado per-
manecia a maior parte do tempo jogado
na cama, fazendo dó aos vizinhos. Seu so-
frimento aumentava e não passou desper-
cebido a Deolinda, uma negra volumosa,
casada com Astolfo, mãe de uma filha e
conhecida no morro por sua bondade. Não
negava abrigo a quem precisasse, e a situ-
ação daquele menino ao lado de seu bar-
raco deixou-a condoída.
Começou a cuidar dele, como já fizera
com tantos necessitados. Da mesma manei-
ra que fazia a limpeza em seu barraco, fazia
no dele e ainda fornecia a comida, preen-
chendo o lugar da mãe, de quem ele sentia
tanta falta. Ao menos assim o vizinho a en-
carava; mas a proximidade, os cuidados e
talvez a fama de mulherengo mexeram com
a cabeça de Deolinda, que, calada, passou
a olhar Cartola com outros olhos, mesmo
com ele ainda no fundo da cama.
Astolfo percebeu, chamou a mulher à
fala, foi tomar satisfações com o doente,
que só então notou as intenções da vizinha.
Sem poder erguer uma palha em sua defe-
sa, mesmo porque era inocente, ouviu tudo
calado e viu o marido destratar a esposa e
abandonar a casa.

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Arley Pereira

O destino faria com que voltasse anos


depois, doente e alquebrado, por sua vez
pedindo abrigo. Cartola, que então vivia na
mesma casa com Deolinda e o pai dela, o
ex-escravo Pau do Mato, e Ruth, sua filha,
abrigou Astolfo e cuidou dele com carinho
até sua morte.
Assim como Deolinda, foi sempre muito
hospitaleiro, jamais negou abrigo a quem
necessitasse, e logo o casal dividia a habi-
tação com mais gente. Uma tia de Deolin-
da, um irmão e um primo de Cartola, um
amigo e uma jovem que apareceu sem ter
onde morar. De solitário habitante de um
barraco, Cartola passou a chefe de uma
tribo de nove pessoas, cujo sustento na ver-
dade vinha do trabalho da dona da casa,
que lavava e cozinhava para fora, já que
o pedreiro, embora competente, não tinha
lá muita vontade de exercer a profissão,
coisa que fazia esporadicamente. Preferia
assumir, com muito mais engenho e arte, o
ofício (ainda longe de ser profissional) de
compositor e violonista nos bares e tendi-
nhas do morro.
Sempre esguio, magricela, mas valente
e brigão quando jovem, Cartola fazia parte
da turma mais barra-pesada do morro da
Mangueira. Tanto que resolveram fundar
um bloco para brincar o carnaval, esco-
lhendo o nome mais apropriado possível,
o Bloco dos Arengueiros. Para brigar, apa-

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Divina dama

nhar, bater, ser preso, topar qualquer para-


da, a turma saía disposta. Além de Cartola,
outros “arengueiros” acabaram famosos no
meio do samba: Arturzinho, Carlos Cacha-
ça, Zé Espinguela, Saturnino, Homem Bom,
Chico Porrão, Gradim e o irmão Antoni-
co, todos formadores do núcleo inicial, do
qual nasceu o Grêmio Recreativo Escola de
Samba Estação Primeira de Mangueira.
Os Arengueiros ganharam fama. Eram
temidos na vizinhança do morro, de onde
saíam ao amanhecer e só voltavam quan-
do não agüentavam mais brincar, brigar e
fazer samba. Cartola, naturalmente o mais
musical de todos, percebeu isso. Além de
bons nas pernadas, nas pauladas, na troca
de socos e bofetadas, os Arengueiros eram
ótimos de samba. De um samba-sugestão
de Cartola, surgiu a semente da Mangueira.
Chega de demanda convocava:

Chega de demanda,
Chega!
Com este time temos que ganhar
Somos da Estação Primeira
Salve o morro da Mangueira!

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Arley Pereira

No dia 28 de abril de 1928, reunidos na


casa de seu Euclides, Saturnino Gonçalves,
Cartola, Zé Espinguela, Massu, Abelardo da
Bolinha, Pedro Caim e muitos outros funda-
ram a Mangueira. Cartola escolheu o nome
e as cores: o verde e o rosa, lembrando o
rancho dos Arrepiados de sua infância. Es-
tação Primeira de Mangueira, ele gostava
de contar por quê: “Tive a idéia de chamar
de Estação Primeira porque, contando a
partir da Central do Brasil, era a primeira
estação de trem onde tinha samba”.
Carlos Cachaça já era o grande parcei-
ro. Poeta de muita inspiração, encontrava
na melodia de Cartola o casamento ideal
para suas rimas, e vice-versa. Muitas ve-
zes compunham juntos, criando jóias que
críticos classificavam como camonianas,
shakespearianas e que tais.

Semente de amor sei que sou, desde nascença


Mas sem ter brilho e fulgor
Eis minha sentença

[...] Foi beijo que nasceu e morreu


Sem se chegar a dar.

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Divina dama

São de se destacar, ainda, Quem me vê sorrindo, de


1940, e Alvorada, a primeira parte, também da década
de 1940, com Cartola, e a segunda com Hermínio Bello
de Carvalho, 20 anos mais tarde.
Carlos Cachaça não participou da reunião de funda-
ção da Mangueira, mas é a última testemunha viva do
nascimento da Escola. Acompanhou Cartola em todos os
momentos e, por coincidência, acabou vendo seu par-
ceiro encontrar em sua cunhada Zica – irmã de Menina,
sua mulher – a companheira definitiva, o porto seguro
em que finalmente jogou âncora e fixou amarras, já no
outono da vida.
Sempre foram paralelos, até nas casas onde moravam,
na subida do morro, a poucos passos da quadra man-
gueirense, que depois se transformou no Palácio do Sam-
ba. Ao lado de Nelson Sargento, Carlos foi quem melhor
conheceu o Divino e sua obra. Aliás, Nelson sabe tanto
e tem tão boa memória que, certo dia, em uma roda de
samba na casa de Cartola, ainda empunhando seu famo-
so violão verde, cantou um samba lindo, sob elogios do
dono da casa que quis saber quem era o autor.
Rindo, com seus poucos dentes, Nelson fulminou:
“Este samba é teu, Cartola, e como esse tenho mais uns
dez que tu não te lembras”. E para provocar o velho, lar-
gou a piada: “Se me der parceria, canto todos eles já”.
Era tanta a facilidade de Cartola para compor, meto-
dista inspiradíssimo, que criar hoje e esquecer amanhã
não surpreende quem o conhecia. Muita obra-prima fi-
cou para a história, mas outro tanto se perdeu na memó-
ria das noitadas.

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A Vila emudeceu
Era o rei da filosofia
Fez da musa o que queria
Zombou da inspiração
Os seus versos ritmados
Por ele mesmo cantados
Tinham bela entoação

Cartola

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Cartola e os parceiros
Carlos Cachaça (em pé)
e Aluísio Dias.

T
anto era natural para Cartola criar
samba que recebeu com surpre-
sa a visita de um amigo, o guar-
da municipal Cláudio, alvoroçado, barraco
adentro. A voz pausada de Cartola contava:
“O Cláudio estava todo afobado. Um car-
ro último tipo estava encostado no pé do
morro e o dono procurava por mim. Dizen-
do que era meu primo, Cláudio quis saber
do que se tratava, e o elegante motorista
não escondeu. Era o cantor Mário Reis e
queria comprar um samba meu. Achei pura
maluquice. Então samba se vendia? Pensei
ganhar uns dez mil-réis, mas o Cláudio

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A Vila emudeceu

mandou pedir logo quinhentos. Conversei


com o Mário e, envergonhado, pedi trezen-
tos mil-réis por Infeliz sorte, e ele pagou na
hora, sem titubear. Não gravou, mas repas-
sou o samba para Francisco Alves, que aca-
bou se tornando meu maior freguês”.
Quando se pensa que um terno de fino
feitio custava na época não mais de trinta
mil-réis, e que Cartola primava pela elegân-
cia e vaidade no trajar, imagina-se como
ele passou a se apresentar depois disso. A
abertura do novo comércio aumentou em
muito a fama do compositor entre os sam-
bistas e o “asfalto”, dando a ele a tranqüili-
dade de que tanto gostava – dormir depois
do almoço, conversar fiado no fim da tarde
nas tendinhas e compor nas madrugadas,
abraçado ao violão.
Seu parceiro Aluísio Dias, que batalhava
nos pontos dos cantores para “colocar” este
ou aquele samba, não conseguia conven-

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Arley Pereira

cê-lo a descer para a cidade, mostrar seu


trabalho. Cartola, que em qualquer situa-
ção mantinha a altivez e a dignidade, di-
zia que não iria implorar nada a ninguém.
Quem quisesse samba seu que tratasse de
sujar a barra da calça na lama das ladeiras
de Mangueira e fosse buscá-lo no morro.
Ele não iria à cidade.
Por fim, a cidade foi a ele. E da manei-
ra mais gloriosa. Com a popularização do
chamado samba-de-morro, Noel Rosa per-
cebeu de imediato a qualidade musical dos
compositores daquela área e interessou-se
pela técnica instintiva de criação, pela en-
genhosidade nata, pelo talento natural dos
brilhantes criadores de origem humilde.
Acabou por aproximar-se deles e o que
aconteceu foi uma proveitosa troca de ex-
periências: o poeta culto da cidade ensi-
nando o que sabia de seu lado da moeda e
aprendendo a outra face com os composi-
tores de inspiração popular.
Atravessando noites nas tendinhas do
morro da Mangueira, era natural que Noel
se aproximasse de Cartola. Em pouco tem-
po, a amizade consolidou-se e a parceria
transbordou, líquida e sonora. Os porres
que a dupla tomava eram monumentais,
e os sambas que faziam, lindos. Neuma,
a primeira dama da Mangueira – filha de
Saturnino, primeiro presidente da Escola,
amigo quase-irmão de Cartola (morreu em

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A Vila emudeceu

seus braços), que conhecera ainda meni-


na o casal Cartola/Deolinda –, conta que
a sina de benfeitora de Deolinda muitas
vezes alcançou Noel. Em diversas ocasiões,
foi buscar o marido e o franzino compositor
de Vila Isabel, completamente alcoolizados,
em um botequim qualquer e os carregou
para o barraco.
A seguir, mulher forte que era, não tinha
dificuldades em despi-los, dar um banho de
tina em cada um, espalhar polvilho “nas par-
tes”, metê-los em pijamas e jogá-los em uma
cama, onde ficavam até o porre ser curado,
enquanto ela mesma dormia no chão.
Antes de Cartola, o samba-de-morro ti-
nha somente a primeira parte, a segunda
era sempre improvisada. Mesmo como au-
todidata, estudando o braço do instrumen-
to, Cartola desenvolveu a segunda parte
do samba trocando experiências com Noel,
compondo com ele, firmando a amizade,
muitas vezes interferindo um na obra do
outro, sem que isso aparecesse na parce-
ria. É conhecida – Cartola contava sempre
uma história da dupla que, completamente
sem dinheiro, estava em um bar no bairro
do Maracanã quando apareceu o cantor
Francisco Alves. Apesar da fama de sovina
de Chico, tomaram coragem e foram pe-
dir “algum” ao conhecido comprador de
sambas. Depois de muito relutar, Francisco
Alves fez o desafio. Dava cem mil-réis (era

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Arley Pereira

muito dinheiro) a cada um, mas queria um


samba composto na hora, um de Noel, ou-
tro de Cartola. “Tinha um chafariz na frente
do botequim. Fomos para lá e em uma hora
os dois sambas estavam prontos”, contava
Cartola, vitorioso.
Por volta de 1932, o compositor da Man-
gueira tinha pronta a primeira parte de um
samba, Qual foi o mal que eu te fiz. Noel
gostou da idéia e fez a segunda parte, mas
quando Francisco Alves comprou a compo-
sição, na hora de acertarem as contas, Noel
não quis receber nada, dizendo que o sam-
ba era só de Cartola e que a colaboração
dele fora mínima. A amizade cresceu muito
e, quando Noel morreu, aos 26 anos, em
maio de 1937, Cartola ficou abaladíssimo.
Para o amigo, compôs um réquiem em for-
ma de samba, chamado A Vila emudeceu:

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A Vila emudeceu

A Vila emudeceu,
Dolorosamente chora
O que perdeu.
Ninguém é imortal,
Morrer é natural,

Ó Deus perdoa
Se é que estou pecando.
Que mal te fez a Vila,
Que lhe estás torturando?

Era o rei da filosofia,


Fez da musa o que queria,
Zombou da inspiração.
Os seus versos ritmados
Por ele mesmo cantados
Tinham bela entoação.

Na Vila
Onde ele morava
Todos os seres cantavam
As glórias do seu poeta.
Hoje a Vila é triste e muda
Ao bater a Ave-Maria
Quando a aurora desperta.

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Arley Pereira

Dois episódios dessa fase da vida de


Cartola são ressaltados por seus biógrafos
e têm importância porque ele mesmo sem-
pre os citava em conversas informais. Lem-
brava o convite que recebera do maestro
Heitor Villa-Lobos para formar um grupo
de sambistas da Mangueira e subir a bor-
do do navio Uruguai, atracado no Rio de
Janeiro, para mostrar a outro maestro, o fa-
moso Leopold Stockowski, uma amostra da
música popular representativa do Brasil.
Stockowski percorria a América Latina com
sua orquestra e um estúdio montado no na-
vio, recolhendo músicas nativas em nome
da política de boa vizinhança do governo
norte-americano.
O outro foi o bom dinheirinho que ga-
nhou com o samba Ai que saudades da
Amélia, de Mário Lago e Ataulfo Alves. Ex-
plicava: “Ataulfo gravou meu samba Tive que
contar a minha vida no lado B do disco que
tinha Amélia. Assim, quanto mais ele vendia
a ‘mulher de verdade’, mais eu faturava...”

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Não quero mais
amar a ninguém
Não quero mais amar a ninguém
Não fui feliz, o destino não quis
O meu primeiro amor
Morreu como a flor, ainda em botão
Deixando espinhos em meu coração

Cartola, Carlos Cachaça e Zé da Zilda

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Não quero mais amar a ninguém

O
s primeiros anos da década de 1940 foram
bastante felizes para Cartola. Foi escolhido
Cidadão Samba, título cobiçado por todos
os sambistas, e desfilou em carro aberto, com batedores
da polícia abrindo caminho para ele, transformado em
grande personalidade. A convite de seu amigo, o maestro
Heitor Villa-Lobos, fez parte de um grupo carnavalesco
intitulado Sodade do Cordão, levando com ele os man-
gueirenses Carlos Cachaça, Zé Espinguela e o novo par-
ceiro, Aluísio Dias.
Tornou-se amigo também de Paulo da Portela, funda-
dor da arquiinimiga de Madureira, mas recebido fidalga-
mente em Mangueira; tanto que, quando Paulo rompeu
com sua Escola e andou visitando Cartola, este fez em sua
homenagem o samba Sala de visitas. Com Paulo da Por-
tela formou dupla para um programa na Rádio Cruzeiro
do Sul e chegou a excursionar algumas vezes, tendo am-
bos se apresentado em São Paulo, com a participação de
Heitor dos Prazeres. Essa aproximação com Heitor, que
não era bem recebido na Portela, ocasionou a saída de
Paulo da Escola que fundara.
Enquanto levava sua vidinha com Deolinda, que supor-
tava suas farras e bebedeiras, Cartola ia crescendo em
fama nos meios do samba, embora jamais abandonasse a
Mangueira, onde sempre morou. Teve uma única grande
briga com a mulher, que, ao vê-lo se preparar para uma
memorável noitada, daquela vez se revoltou, pegou o ter-
no novo – um reluzente linho branco S120 – e o jogou na
lama. Cartola ficou furioso e agrediu Deolinda, que rolou

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Arley Pereira

morro abaixo. Com medo de tê-la matado,


escondeu-se na casa de uma tia. À noite,
Deolinda, toda machucada, foi buscá-lo; fi-
zeram as pazes e nunca mais brigaram.
Até seu fim, Deolinda cuidou de Cartola
como uma grande mãe. Ela já sofria do co-
ração quando ele teve meningite e, se não
fossem as atenções com que ela o tratou,
talvez não tivesse resistido. Enquanto Carto-
la se recuperava, a Portela enfileirava títulos
sobre títulos de campeã, de 1941 a 1947,
com a Mangueira sempre se contentando
com o lugar de vice. Quase recuperado e
pronto para fazer sua Escola voltar à lide-
rança, Cartola perde Deolinda, que morre
de um ataque cardíaco. Na ocasião, ele es-
tava em um cinema sozinho, já que ela não
quisera acompanhá-lo. Da tristeza, surgiu
um grande samba, o antológico Sim:

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Não quero mais amar a ninguém

Sim
Deve haver o perdão
Para mim
Senão nem sei qual será
O meu fim
Para ter uma companheira
Até promessas fiz
Consegui um grande amor
Mas eu não fui feliz
E com raiva para os céus
Os braços levantei
Blasfemei
Hoje todos são contra mim
Todos erram neste mundo
Não há exceção
Quando voltam à realidade
Conseguem perdão

Por que é que eu, Senhor


Que errei pela vez primeira
Passo tantos dissabores
E luto contra a humanidade inteira?

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Arley Pereira

Chegou o Carnaval de 1948 e, para a


Mangueira desfilar, Cartola uniu-se ao par-
ceiro de sempre, Carlos Cachaça, com
quem criou o samba-enredo Vale do São
Francisco, citado até hoje entre os maiores
do gênero, um exemplo do verdadeiro sam-
ba-enredo, na linha dos grandes mestres.
A Mangueira desceu linda, como sempre
inovando. Pela primeira vez uma escola de
samba desfila utilizando sistema de som,
levando as vozes de seus integrantes e do
puxador do samba, límpidas, até o públi-
co, provocando harmonia entre os com-
ponentes e a participação total da torcida.
Surpreendentemente, a Império Serrano,
que desfilava pela primeira vez, apresen-
tou enredo em homenagem a Castro Alves
e ganhou o carnaval. À Mangueira coube o
quarto lugar, e foi a última vez que Cartola
saiu em sua Escola puxando um samba de
sua autoria.
No ano seguinte, ele e Carlos concorre-
ram de novo, mas a Mangueira estava com
a direção voltada para um certo modernis-
mo, e o presidente Hermes Rodrigues tor-
nou-se inimigo de Cartola. O compositor
combatia qualquer espécie de política no
seio da Escola, e o presidente queria usá-
la politicamente. Hermes fez de tudo para
afastar o desafeto e uma de suas jogadas

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Não quero mais amar a ninguém

foi armar, para a escolha do samba-enredo de 1949, um


júri que desqualificasse Cartola. Por incrível que possa
parecer, foi aí, no seio da Mangueira, ainda hoje a mais
tradicional das escolas de samba, que começou, naque-
le momento, a modificação da orientação, dos usos e
costumes, da apropriação cultural. Contaminando todas
as escolas de samba, essa orientação levou ao que agora
se assiste no Sambódromo, um magnífico show visual se-
movente – talvez o mais luxuoso e caro do mundo –, mas
que nada tem que ver com o que realmente seja uma
escola de samba.
Cartola atravessava, então, um período difícil de sua
vida. Acostumado às atenções de Deolinda, que cuidava
de tudo para ele em casa, e ao respeito de que desfruta-
va na Escola de Samba, como seu fundador e figura de
proa, sentiu-se inteiramente desnorteado ao perder suas
duas principais referências.
É quando resolve afastar-se do morro da Mangueira,
que sempre fora seu porto seguro, abandonar sua Esco-
la, seus amigos, desaparecer no mundo, embrenhando-
se em um período de sua vida bastante nebuloso. Ape-
nas amigos mais chegados levantaram algumas pontas
da cortina que encobre essa fase, e a conclusão a que se
chega é que, procurando uma substituta para Deolinda,
Cartola sofreu uma tremenda desilusão amorosa e não
quis dividi-la com ninguém. Para não ter testemunhas de
seu sofrimento, da maneira como se entregou desenfre-
adamente à bebida, sumiu da Mangueira e foi se escon-
der na favela da Manilha, no bairro do Caju.

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Fiz por você
o que pude
Todo tempo em que eu viver
Só me fascina você
Mangueira
Guerreei na juventude
Fiz por você o que pude
Mangueira

Cartola

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H
omem de muitos amores desde a adolescência,
Cartola escondia seu lado conquistador atrás
do jeito manso e tranqüilo. Aliás, segundo ele
mesmo, essa aparência ajudava muito a impressionar as
mulheres, acostumadas a conviver com o gênero valen-
tão de quase todos os homens das favelas. Com a voz
macia, o violão, a fama de seus sambas, Cartola, como
quem não quer nada, ia “beliscando aqui e ali, não se
pode dispensar nenhuma chance”.
Uma de suas histórias favoritas, contada sempre dis-
cretamente em rodas de amigos, e até mesmo em algu-
mas entrevistas, quando se sentia à vontade com o entre-
vistador, era sua estréia “oficial” como malandro:
“Eu era um garoto, menino mesmo, a barba mal apon-

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Fiz por você o que pude

tando na cara, mas já gostava de perseguir


as cabrochas no morro da Mangueira. To-
cava meu violão, cantava meus sambas e
convivia com os malandros mais velhos,
que o Carlos [Cachaça] me apresentou.
Tinha uma namorada aqui, outra ali, nada
fixo. Quem gostou do meu jeito e me tomou
como protegido foi o Marcelino. Bravo,
bom de briga, temido e respeitado, sempre
armado e dono de muitas mulheres. Pois o
Marcelino resolveu me ensinar malandra-
gem. Dizia pra todo mundo que eu era seu
protegido, seu aluno, e que estava me en-
sinando tudo direitinho. Pois não é que a
mulher de fé do Marcelino, a favorita dele,
resolveu bulir comigo? Aquele namoro de
longe, olha daqui, um sorrisinho de lá, até
que surgiu o convite para eu dar uma pas-
sadinha na casa dela, quando seu homem
não estivesse. Fiquei meio apavorado, mas a
nega valia o perigo. No dia combinado, no
botequim, pra me prevenir, perguntei para
o Marcelino se ele me emprestava a arma,
já que eu ia ‘visitar a mulher de um valente’
e não queria ir ‘descoberto’. Ele deu uma
gargalhada e me mandou ir tranqüilo, que
valente lá era ele, que todo mundo sabia
que eu era seu protegido e não ia aconte-
cer nada. O que eu não esperava é que,
curioso por saber quem era a tal dama que
me convidara, ele me seguisse e me apa-
nhasse no seu barraco. Ficou furioso. Me fez

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Arley Pereira

descer o morro debaixo de tapas na orelha,


xingando minha mãe e o resto da família de
tudo quanto é nome. No botequim não se
conteve e contou para a turma o moleque
que eu era. Me enfiar no barraco dele, com
sua mulher. Foi só gargalhada. O dono do
botequim disse que ele era um ótimo pro-
fessor, me ensinara malandragem, só falta-
va agora dar o diploma. Marcelino foi meu
amigo pela vida inteira”.
Cartola não sabia ficar sem mulher.
Com a morte de Deolinda, mais sua briga
na Mangueira, ele desapareceu. Chegou
a ser dado como morto. Até sambas foram
compostos e cantados, em sua memória.
Herivelto Martins garantia cantando, “Sou
do tempo do Cartola, o que é que há?”.
“Em Onde estão os tamborins?”, Pedro
Caetano lamentava:

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Fiz por você o que pude

Mangueira,
Onde é que estão os tamborins,
ó nega?
Viver somente de cartaz não chega,
Põe as pastoras na avenida,
Mangueira querida!
Antigamente havia

Grande escola
Grandes sambas do Cartola
Um sucesso de Mangueira.
Mas hoje,
O silêncio é profundo
E por nada neste mundo
Eu consigo ouvir
Mangueira.

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Zica e Cartola.

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Fiz por você o que pude

Ninguém sabia onde Cartola andava. Ele


mesmo, passada a fase ruim, não tocava no
assunto. Limitava-se a dizer que, depois da
morte de Deolinda, metera-se em confusão
que não valia a pena lembrar. Nada que o
desabonasse, apenas uma trapalhada que
pode acontecer a qualquer um.
Zica é quem tinha alguma informação,
ela é que acabou sabendo: Cartola esta-
va morando na favela da Manilha, no Caju.
Quando saiu da Mangueira, o poeta passou
a viver com uma mulher chamada Donária,
com tipo físico semelhante ao de Deolinda.
Carlos Cachaça garante que Cartola sem-
pre foi chegado a mulher grande e gorda,
embora Zica seja baixinha. Acontece que
a tal Donária, uma autêntica “chave-de-
cadeia”, aprontou demais durante sua vida
com o compositor, que fora morar com ela
em Nilópolis, no início do romance.
Ao ser encontrado por Zica, Cartola es-
tava em sua pior fase. Entregue completa-
mente à bebida, sobrevivendo de biscates,
sem dentes e com o problema que surgiu
em seu nariz e o tornou enorme (posterior-
mente foi operado e voltou ao tamanho nor-
mal). Mesmo assim, Eusébia Silva, a Zica,
que desde menina admirava o compositor
famoso, apaixonou-se por ele.
E iniciou a batalha da recuperação. Du-
rante cerca de dois meses, tentou morar na
Manilha, dar um jeito na vida de ambos por

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Arley Pereira

lá mesmo. Mas seu amor por Cartola era


tão grande quanto o amor pela Mangueira,
e a melhor solução foi juntar os dois. Um
dia, encheu-se de brios e de coragem e
peitou o homem:
“O Brasil inteiro sabe que você é o Carto-
la da Mangueira. Ninguém nunca ouviu falar
de Cartola do Caju.Vamos tratar de ir embora
para o nosso lugar, que é em Mangueira”.
Instalados ao lado da casa de Carlos
Cachaça, começa para Cartola a fase mais
importante de sua vida, como homem e
como compositor.
Tempos depois, em 1968, eu integrava
a produção da I Bienal do Samba, da TV
Record, em São Paulo e estava no Rio de
Janeiro para convidar alguns compositores
para participar do evento.
Evidentemente fui até Cartola, em mais
um encontro naquelas tardes quentes da
Mangueira, ideais para uma cervejinha
gelada no Buraco Quente. Entre um gole
e outro, o Divino cantou seus três últimos
sambas, todos inéditos, e jogou em meu
colo: “Escolhe. O que você preferir eu man-
do para a Bienal”.
Como escolher um samba entre outros
de Cartola? Minha sorte foi que entre eles
estava a homenagem que ele fazia a Zica,
colocando com toda a honestidade o mo-

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Fiz por você o que pude

mento em que ela entrara em sua vida, fa-


lando do amor anterior, mas declarando ser
impossível qualquer comparação. Escolhi o
samba, claro. Ciro Monteiro defendeu Tive,
sim – e o quinto lugar conseguido deu a
Cartola o maior dinheiro que ganhara até
então com música, o prêmio de dois mi-
lhões de cruzeiros.

Tive, sim
Outro grande amor, antes do teu
Tive, sim
O que ela sonhava
Eram os meus sonhos
E assim
íamos vivendo em paz.
Em nosso lar sempre houve alegria
Eu vivia tão contente
Como contente ao teu lado estou
Tive, sim
Mas compará-lo ao teu amor
Seria o fim
E vou calar
Pois não pretendo, amor, te magoar.

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O sol nascerá
A sorrir
Eu pretendo
Levar a vida
Pois chorando
Eu vi
A mocidade perdida

Cartola e Elton Medeiros

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Arley Pereira

L
an Franco Vaselli, cidadão italiano
nascido em Florença, com passa-
gem pela Argentina e pelo Uruguai
– e mestrado nas tendinhas do Salgueiro,
da Mangueira e no botequim do Nozinho,
na Portela – destacou-se internacionalmen-
te como Lan, um dos mais respeitados car-
tunistas desta e de todas as praças, além de
conhecedor de samba e sambistas como
poucos brasileiros.
Pois foi exatamente Lan que Zica procu-
rou inicialmente, em sua campanha para
recuperar Cartola. Queria divulgar para
os meios de comunicação que o talento do
compositor estava intacto e que sua carrei-
ra poderia e deveria ser reassumida. Mas,
mesmo em Mangueira, Cartola continuava
a beber muito. Levado até o morro, Lan fi-
cou impressionado com a situação que viu
e prometeu tentar ajudar o casal. Aconse-
lhada por ele, Zica levou Cartola ao Café

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O sol nascerá

Pardellas, ponto de encontro de cantores e


compositores, e aí o reencontro foi penoso.
A aparência do autor de Divina dama era a
pior possível, tanto que Ary Barroso tentou
encaminhá-lo a um médico, sem sucesso.
Cartola voltou no mesmo dia para os bo-
tequins, desinteressou-se de tudo, e Lan se
afastou. Mas a vida continuava e a comida
tinha de ser providenciada. A tentativa de
voltar a ser pedreiro resultou em vão, já que
a imensa fraqueza impedia o trabalho mais
pesado. Foi quando apareceu o emprego
de lavador de carros durante a madrugada,
na Garagem Oceânica, na rua Visconde de
Pirajá, em Copacabana, que marcaria a re-
viravolta nas vidas de Zica e seu marido.
Cartola tinha que lavar onze carros por
noite. No meio da madrugada, já estava ob-
viamente encharcado e saía em busca de
um conhaque “para esquentar os ossos”.
Em uma dessas saídas, o destino resolveu

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Arley Pereira

trabalhar. Tomando seu conhaque, notou o homem alto


e bem-vestido que o olhava com insistência, enquanto
bebia o café, do outro lado do balcão do bar. Antes que
se retirasse, foi abordado: “Desculpe, o senhor não é o
Cartola, da Mangueira?” Quando concordou, foi sur-
preendido pelo abraço forte. O homenzarrão simpático
identificou-se como o jornalista Sérgio Porto, sobrinho do
crítico musical Lúcio Rangel, um dos maiores admirado-
res de Cartola e responsável pelo apelido de Divino, que
o identificou até a morte.
Expert em música popular brasileira, Sérgio Porto,
que assinava coluna nos jornais com o pseudônimo de
Stanislaw Ponte Preta, conhecia em detalhes a carreira
de Cartola e sabia de seu desaparecimento dos meios
de comunicação.
Tomado de entusiasmo, resolveu promover o retorno
que parecia impossível. Passou a publicar notas nos jor-
nais contando que redescobrira o Divino, arranjou-lhe um
trabalho na Rádio Mayrink Veiga, onde mantinha um pro-
grama, convocou amigos, conseguiu entrevistas em jor-
nais, e o Brasil ficou sabendo que Cartola não morrera.
O problema é que os tempos eram de vacas magras
para o samba. A primeira música do compositor man-
gueirense, em sua nova fase, foi exatamente uma satis-
fação a sua Escola, uma espécie de balanço de sua vida
como sambista e mangueirense que se tornou clássica.
Embora tenha sido gravada somente a primeira parte por
Clementina de Jesus, no LP A Enluarada Elizeth, em 1966
e pelo próprio Cartola em 1974, Fiz por você o que pude
é citação obrigatória no acervo do compositor:

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O sol nascerá

Todo tempo em que eu viver


Só me fascina você,
Mangueira,
Guerreei na juventude,

Fiz por você o que pude,


Mangueira.
Continuam nossas lutas,
Podam-se os galhos,
Colhem-se as frutas,
E outra vez se semeia
E no fim desse labor
Surge outro compositor
Com o mesmo sangue na veia.

Sonhava desde menino,


Tinha o desejo felino
De contar toda a tua história.
Este sonho realizei,
Um dia a lira empunhei
E cantei todas tuas glórias.

Perdoa-me a comparação,
Mas fiz uma transfusão
E eis que Jesus me premeia
Surge outro compositor,
Jovem de grande valor,
Com o mesmo sangue na veia.

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Cartola e Zica.

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O sol nascerá

Nos últimos anos de vida, cansado de


ouvir palpites de puristas sobre o “premeia”
que inventara para rimar com “veia”, Car-
tola cedeu e já cantava com o verbo con-
jugado certo, mas inteiramente fora do
conceito, do clima e da rima, fugindo à au-
tenticidade da cultura popular do momento
da criação.
Um emprego de contínuo no Diário Ca-
rioca começou a colocar as finanças em
ordem. Em seguida, no período eleitoral
de 1950, um candidato à procura de apoio
no morro, sabendo da liderança de Carto-
la, criou uma barraca da Cofap e nomeou
Cartola seu chefe. Com o fim da Cofap,
passou para o Ministério da Indústria e
Comércio, trabalhando como contínuo do
ministro. Andou fazendo pontas em filmes
brasileiros – Descobrimento do Brasil, Or-
feu do Carnaval, Ganga Zumba, e Os mar-
ginais –, voltou a compor com assiduidade,
e a vida com Zica engrenou.

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Arley Pereira

Novamente a simpatia e a competência


da esposa influíram no destino da dupla.
Como se tornaram hábito reuniões de sam-
ba na casa de Cartola, onde se saboreavam
os famosos quitutes da Zica, ela esperou a
oportunidade e, no momento certo, abor-
dou o diretor de Turismo, Mário Saladini,
que se lambuzava com um vatapá orques-
trado por ela em um fogão de quatro bocas:
“Dr. Mário, não dá pra arrumar uma casa
pra nós, lá no centro? Eu tenho vontade de
servir pensão”.
Não demorou e Cartola era o zelador da
antiga Associação das Escolas de Samba,
um velho casarão na rua dos Andradas,
morando no segundo andar. Zica servia
uma sopa que ficou famosa, e os sambis-
tas começaram a aparecer, mesmo quando
não havia reuniões formais.
Aí virou a pensão sonhada, com refei-
ções para motoristas de praça e até para o
pessoal das filas de ônibus, marmitas entre-
gues nas imediações. E o samba comendo
solto, a platéia aumentando. Quem vinha
comer ficava para a roda de samba.

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O sol nascerá

Alguns compositores e amantes do samba


compareciam quase todo dia. Elton Medei-
ros, Zé Keti, Nuno Veloso (que praticamente
morava com o casal, tornou-se competen-
te parceiro de Cartola e terminou se man-
dando para a Alemanha, transformado em
assistente de Herbert Marcuse), Eugênio,
Renato e Fábio Agostini acabaram, cada
um a sua maneira, viabilizando um sobra-
do na rua da Carioca, que se transformaria
em um divisor de águas na música popular
brasileira: o restaurante Zicartola.
Aí se misturavam sambistas da Zona Nor-
te, bossa-novistas da Zona Sul, poetas como
Hermínio Bello de Carvalho, jornalistas
como Sérgio Cabral e gênios como Paulinho
da Viola. Todos em começo de carreira.
Zica encarregava-se dos guisados na co-
zinha e Cartola do cadinho musical no sa-
lão. Tal era o sucesso que o Divino tomou co-
ragem e pediu a mão da moça. Ela aceitou
e casaram, quase ao som do samba O sol
nascerá, de Cartola e Elton, criado naquela
fase e o maior sucesso popular do Divino.

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As rosas não falam
Bate outra vez
Com esperanças, o meu coração
Pois já vai terminando o verão,
Enfim.
Volto ao jardim
Com a certeza que devo chorar
Pois bem sei que não queres voltar
Para mim
Queixo-me às rosas
Mas, que bobagem, as rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti

Cartola

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As rosas que Zica plantou em seu jardim
inspiraram o grande sucesso de Cartola.

O
tradicional espírito carioca
transformou o Zicartola em
moda. Lotado todas as noites.
Ouvir o violão personalíssimo de Nelson
Cavaquinho, os novos sambas de Zé Keti,
o ritmo infernal de Elton Medeiros, a voz
afinadíssima daquele menino Paulinho da
Viola, tudo sob as bênçãos de Cartola, o
mestre maior, era ritual que a cidade não
podia perder. Ainda mais com o tempero
da Zica! Casa cheia todas as noites, festa
madrugada adentro. Ou afora. A juventu-
de dourada e queimada do sol da Zona Sul
descobria os sambistas morenos e talento-

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As rosas não falam

sos dos subúrbios da Zona Norte. Informações culturais,


musicais e etílicas cruzavam-se no sobradão da rua da
Carioca: Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso, Nara Leão,
Silvinha Telles, cantores e cantoras cantando por prazer
no pequeno palco. Mesas transbordando, balcão cheio
de gente bebendo, em pé. A certeza era de que daquela
vez Cartola ficaria rico.
Certeza apenas para os que não conheciam a falta de
tino comercial do compositor, cuja extensão só era com-
parável a seu talento musical. Sem conhecer adminis-
tração, não sabia como dirigir comercialmente a casa;
sofria “penduras”. Não cobrava contas de amigos, muita
gente ia embora sem pagar, tinha problemas com capi-
tal de giro. Não demorou, com sucesso e tudo, lá se foi
o Zicartola. Tinha entrado para a história da música po-
pular brasileira como uma marca, abertura de um novo
gênero de casa noturna, uma inveja eterna no peito dos
que não puderam ao menos conhecê-lo, quanto mais
freqüentá-lo. De saldo para Zica e Cartola, deixou dívi-
das e, segundo ela, “uma porção de novos amigos”.
O Zicartola já não existia mais quando Cartola concor-
reu com o samba Tive, sim, na I Bienal do Samba da TV
Record, em São Paulo. O prêmio em dinheiro, dois mi-
lhões de cruzeiros para o quinto lugar, foi de grande va-
lia, já que só restara ao compositor o magro rendimento
de pequeno funcionário público. Mas ficou a mágoa da
grande vaia com que o samba foi recebido, ao ser canta-
do por Ciro Monteiro, na noite da final. Paulinho da Viola,
que foi o sexto colocado com Coisas do mundo, minha
nega, conta emocionado que, ao chegar ao hotel onde
estavam hospedados os artistas, o dia já tinha amanhe-
cido, mas encontrou Ciro Monteiro ainda bebendo no

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Cartola e a cantora Beth Carvalho no desfile da Mangueira
no carnaval de 1978.

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As rosas não falam

bar, em companhia de Lu, sua mulher. Ao


ver Paulinho, Ciro abraçou-o em prantos
e soluçava, dizendo nunca ter sido vaiado
na vida, quanto mais cantando um samba
de Cartola.
Na premiação, Cartola esteve em São
Paulo e, depois da cerimônia, aceitou um
convite nosso para, na companhia de Pau-
linho da Viola, Paulo Marquez, Mauro Du-
arte, Jair do Cavaquinho, Nescarzinho do
Salgueiro e Nelson Sargento, participar de
um churrasco no bairro de Santana, que
virou roda de samba no jardim da casa. O
prédio vizinho, de uns quinze andares, não
dormiu, os moradores debruçados nas ja-
nelas, curtindo aquele presente, um show
maravilhoso em que se destacava a voz
do Divino cantando seus sambas. Naquela
noite começaram a surgir os projetos de um
disco gravado por ele.
Depois do tombo com o Zicartola, quan-
do foi obrigado a morar com o pai, o velho
Sebastião, em Bento Ribeiro, Cartola con-
seguiu voltar para a Mangueira, erguen-
do ele mesmo –- afinal, não era pedreiro?
– sua casa em terreno doado por interfe-
rência do Ministro da Indústria e Comércio.
Caprichou no jardim, plantou roseiras e
convenceu-se de que deveria viver daquilo

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Arley Pereira

que sabia fazer como ninguém: samba.


A aproximação com a juventude estu-
dantil, no restaurante da rua da Carioca,
rendeu dividendos. Em 1970, Cartola foi
convidado para estar à frente de uma série
de apresentações de música popular bra-
sileira que aconteciam na UNE, a União
Nacional dos Estudantes, na praia do Fla-
mengo – em shows que se chamavam Car-
tola Convida.
Lá ele recebia grandes nomes do sam-
ba, a maioria deles seus companheiros do
Zicartola, com enorme curiosidade da nova
geração em torno de sambistas que conhe-
cia apenas por citação e que Cartola lhe
apresentava ao vivo.
O poeta e compositor Hermínio Bello de
Carvalho tornara-se amigo e depois par-
ceiro do Divino desde a época do sobrado
da rua dos Andradas, e se constituíra em
um dos fatores de sucesso do Zicartola, ao
montar sua programação – além de ser um
dos padrinhos de casamento do casal. Ao
produzir os LPs Fala, Mangueira e A enluara-
da Elizeth, Hermínio convidou Cartola para
participações especiais como intérprete, re-
gistrando a personalíssima forma de dizer
samba peculiar ao fundador da Mangueira.
Mas coube ao produtor paulista J.C.
Botezelli, o Pelão, tornar realidade o que
muitos de nós tentamos, inclusive Hermí-
nio Bello de Carvalho e Sérgio Porto, sem

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As rosas não falam

J.C. Botezelli, o Pelão, produtor do


primeiro LP do Cartola, o abraça.

sucesso: convencer uma gravadora a fazer


um disco solo com o maior melodista da
história da música popular brasileira. Em
todas as gravadoras, esbarrava-se na anti-
ga desculpa de que velhos sambistas não
vendiam discos, até que, mesmo enfrentan-
do a má vontade inicial de Marcus Pereira,
que mantinha uma gravadora voltada para
a MPB, mas desconhecia o trabalho de
Cartola, o produtor conseguiu uma peque-
na verba para a gravação.
Pequena, mas que garantia presenças
de músicos antológicos como os violonistas
Dino e Meira, o cavaquinho de Canhoto,

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Cartola e Nelson Cavaquinho no desfile da
escola de samba Mangueira em 1977.

o trombone de Raul de Barros, a flauta de


Copinha e a alucinante “cozinha” de ritmos,
a mais competente de todos os tempos, for-
mada por Marçal, Luna, Jorginho, Gilberto
D’Ávila e Wilson Canegal.
O temido J. Ramos Tinhorão, na época
do lançamento, não economizou elogios:
“Pouco mais de seis meses após produzir
para a Odeon o melhor LP de Nelson Ca-
vaquinho, o paulista J. C. Botezelli, o Pe-
lão, acaba de confirmar sua condição de
boa fada dos melhores compositores po-
pulares brasileiros com o lançamento de
um novo trabalho de sua responsabilida-

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Cartola na comissão de frente da
Mangueira no carnaval de 1978.

de: o LP Cartola (Discos Marcus Pereira


4003.5007). Por incrível que pareça, esse
disco – do qual só a perspectiva histórica
permitirá compreender a verdadeira im-
portância – é o primeiro long-play de um
dos poucos verdadeiros gênios da música
popular brasileira, o compositor Angenor
de Oliveira, chamado Cartola [...]”.
Pelão resgatava uma dívida brasileira
para com nosso maior compositor. O disco
foi considerado o melhor de 1974, recebeu
uma avalanche de prêmios, e Cartola final-
mente conheceu o doce sabor da glória, já
entrando no outono da vida.

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O mundo
é um moinho
Ainda é cedo, amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo
O rumo que irás tomar
Presta atenção, querida,
Embora eu saiba que estás resolvida,
Em cada esquina
Cai um pouco tua vida
E em pouco tempo
Não serás mais o que és
Ouça-me bem, amor
Presta atenção:
O mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó.

Cartola

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Cartola com o maestro Radamés
Gnatalli, que criou o arranjo para a
gravação de Autonomia.

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O mundo é um moinho

V
encida a batalha inicial, a trilha
aberta a duras penas por Pelão
foi seguida por outros produto-
res também de talento e prestígio. Carto-
la provara o que sempre dizia de sua voz,
pequena, porém afinada e competente, de
quem tinha ritmo e sabia cantar. O segun-
do disco, ainda na gravadora de Marcus
Pereira, foi produzido por Juarez Barroso,
um dos mais fanáticos torcedores do time
do fundador da Mangueira. Conhecedor
profundo de Cartola e sua obra, manteve
a estrutura criada por Pelão para o primei-
ro LP, introduzindo o trombone de Nelsinho
no lugar do de Raul de Barros, a flauta de
Altamiro Carrilho para substituir Copinha e
acrescentando Abel Ferreira ao saxofone,
o que preservou a qualidade do acompa-
nhamento. As novidades foram a inclusão
de um fagote na faixa Preciso me encon-
trar, samba de Candeia, e a voz de Creu-
za, filha de Cartola. Lançado em abril de
1976, o sucesso do disco não pôde ser des-
frutado pelo produtor, pois Juarez morreria
um mês antes.
Incluída em telenovela da Rede Globo
de televisão, a música As rosas não falam
foi o maior êxito do segundo LP, promoven-
do um surto de shows, entrevistas e apre-

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Cartola, pouco antes
de desfilar em 1978.

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O mundo é um moinho

sentações do compositor pelo Brasil inteiro.


Cartola estava de bem com a vida. Em
1977, para deixar pública sua simpatia por
Bira, presidente da Mangueira eleito com
seu apoio, voltou a desfilar por sua Escola
depois de 28 anos. Forçado por amigos, já
o fizera uma vez em meados dos anos 1960;
mas, de livre e espontânea vontade, voltava
em 1977, e em 1978, mesmo tendo de en-
frentar a estranha fantasia da Comissão de
Frente, cujo chapéu era gaiatamente cha-
mado por ele e seus veteranos companhei-
ros de ala de “abóbora verde-e-rosa”.
Em seu momento alto, o Projeto Pixin-
guinha semeava pelo país inteiro o melhor
da música popular, apresentada sempre
por dois grandes nomes em um único es-
petáculo. Nessa fórmula vitoriosa criada na
Funarte por Hermínio Bello de Carvalho,
Cartola foi unido a João Nogueira, saindo
em excursão.
Quando estavam em Curitiba, em 6 de
outubro, chegou a notícia do falecimento
de seu Sebastião, pai de Cartola, que ha-
via voltado a morar com ele em Manguei-
ra. Mesmo assim, o show foi realizado e,
depois de assistir ao enterro, o compositor
voltou para o palco, agora em Porto Alegre.
Ele conta:
“Era dia do meu aniversário, e embora
eu tivesse minhas divergências com meu
pai, estava triste com sua morte. Mesmo as-

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Arley Pereira

sim, tocamos a excursão para frente e naquela noite, 11


de outubro, o teatro estava lotado. Quando cantava As ro-
sas não falam e cheguei aos versos ‘que bobagem, as ro-
sas não falam’, o público começou a jogar rosas no palco.
Centenas de rosas. Me pegaram de surpresa. A emoção
subiu e eu desabafei, desatei o coração chorando, os so-
luços e a emoção impedindo que continuasse a cantar”.
Percebendo agora que Cartola era um bom negócio,
a gravadora RCA-Victor o procurou para fazer seu ter-
ceiro disco. Para produzi-lo, chamou o jornalista Sérgio
Cabral, outro especialista em Cartola e seu amigo desde
as noitadas do restaurante da rua da Carioca. Mais uma
vez, o violonista Horondino Silva, o Dino, e seu violão de
sete cordas foram convocados para os arranjos e a ma-
nutenção do clima, aos quais Cartola já se acostumara
nas gravações anteriores, perfeitos para seus sambas. A
modificação desta vez ficou por conta do próprio compo-
sitor que, sempre procurando o refinamento, sofisticou a
faixa Autonomia, pedindo arranjo ao maestro Radamés
Gnatalli, de quem admirava o trabalho.
A admiração era recíproca e Radamés fez questão de
estar ao piano durante a gravação.
A casa de Cartola, na Mangueira, vivia cheia de gente.
Amigos, parceiros, jornalistas, até pessoas que ele jamais
havia visto apareciam, e a todos ele recebia com aten-
ção. Certa vez, pretendendo criar um musical chamado
Lá vem Mangueira, Hermínio Bello de Carvalho pensou
em recolher em gravação o maior número possível de
sambas mangueirenses. Armamos uma reunião na casa
de Cartola e num sábado, por volta do meio-dia, lá de-
sembarcamos, equipamento de gravação e vontade de
trabalhar. Zica e sua irmã Menina preparavam uma feijo-

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Na sua casa em Jacarepaguá, fumando
apesar da proibição médica.

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Arley Pereira

ada na cozinha, Cartola e Carlos Cachaça


eram os anfitriões e Nelson Sargento chama-
va os compositores. Cada um deveria che-
gar, gravar e ceder o lugar. E vieram Padeiri-
nho, Preto Rico, Darcy, Pelado, Hélio Turco,
o próprio Nelson, a turma toda, que, presa
pelo perfume vindo do fogão e pela cacha-
cinha renovada nos copos, foi ficando.
A cada samba, o coro aumentava. Zica e
Menina faziam o contracanto, vozes afina-
das de pastoras, crestadas em mil ensaios
e desfiles. O trabalho invadiu a manhã de
domingo. Quando fui conferir a fita, estava
nítido o progresso da bebedeira geral, os
vários momentos em que alguém sentava
no gravador e o som desaparecia. O mi-
crofone perdeu-se, entupido de manteiga.
Em tal clima habitual, mais o barulho do
trânsito na frente de sua casa ao pé do mor-
ro, ficava impossível o sossego para Cartola
compor. Já havia um dinheirinho separa-
do e a casa no subúrbio de Jacarepaguá
foi comprada. Mas só depois de prometer
à mulher que estariam semanalmente na
Mangueira, visitando os filhos que ficaram

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O mundo é um moinho

na casa antiga, visto que a vida de Zica se-


ria sempre sinônimo do morro. Casa nova,
móveis e utensílios “zero-quilômetro”, a
praça com o nome de As rosas não falam
em frente a sua porta, o compositor encon-
trava sossego e segurança, preparando-se
para chegar com tranqüilidade à meta que
se propusera, 80 anos de vida.
Mas o corpo magro começou a dar si-
nais de que não chegaria a tanto. Procu-
rava não tomar conhecimento, mantendo o
hábito das cervejinhas geladas e o conha-
que costumeiro. Continuava a gostar de um
bom papo, coçando o dedão do pé, vendo
o tempo e a vida escorrerem de mãos da-
das. Pouco antes de fazer 71 anos, a coisa
piorou e “baixou” hospital.
Operado, recuperou-se como pôde e
voltou para casa. Na festa de seu aniversá-
rio – uma reunião oferecida por Hermínio
Bello de Carvalho em seu apartamento –,
na hora de cortar o bolo, Cartola diz com
serenidade e resignação, quase no ouvido
de Hermínio: – “Pois é, padrinho. Esta é mi-
nha última festa de aniversário”.

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Tempos idos
Os tempos idos nunca esquecidos
Trazem saudades ao recordar
É com tristezas que relembro
Coisas remotas que não vêm mais
Uma escola na praça onze
Testemunha ocular
E perto dela uma balança
Onde os malandros iam sambar

Cartola

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Tempos idos

O
conhecido descuido de Cartola
consigo foi o que apressou seu
fim. Pouco antes de completar
70 anos, surgiu um inchaço em seu pesco-
ço, uma espécie de cisto, que foi examina-
do por um médico durante uma pequena
temporada em Belo Horizonte. Medicado,
foi aconselhado a fazer um exame cuidado-
so, coisa que nem ele nem Zica providen-
ciaram. Depois da morte de seu Sebastião,
o problema agravou-se e não houve outra
solução que a intervenção cirúrgica. Ope-
rado no Hospital de Oncologia, no Rio de
Janeiro, ficou claro que sofria de câncer.
Recebeu alta, com a recomendação de
um tratamento minucioso, à base de aplica-
ções de cobalto. Evidentemente, não deu a
menor atenção à prescrição, estava na fase
de mudança para Jacarepaguá e com a
agenda cheia de compromissos musicais.

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Arley Pereira

O físico envelhecido baqueou mais uma


vez. Desta feita, não resistiu à maratona de
trabalho, ao estresse, à pressão emocional
a que era submetido a cada show, tempo-
rada ou apresentação. Um derrame cere-
bral levou-o de volta, por dez dias, a um
hospital no Andaraí, de onde saiu com o
habitual otimismo, achando que tudo esta-
va resolvido.
Mas o câncer estava se alastrando, e
desta vez ele foi obrigado a tentar a terapia
com o cobalto. Já era tarde e foi inútil. Uma
hemorragia digestiva carregou-o de volta
a um hospital para cuidados paliativos, de
onde saiu combalido. Chegou a tentar tra-
tamentos alternativos, até macumba, mas
seu destino estava selado, como previra na
festa oferecida por Hermínio.
Mesmo com muitas dores no estômago,
ainda conseguiu entrar em um estúdio e
gravar pela última vez: em dupla com Al-

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Tempos idos

cione, registrou na gravadora Philips o


samba Eu sei, naturalmente de sua autoria.
No início de novembro, ajudando Zica, El-
ton Medeiros consegue internar novamente
o velho parceiro, desta vez no Hospital do
INPS, na Lagoa. Cartola passava muito mal
e foi transferido para a Casa de Saúde São
Carlos, especializada em sua doença.
Não demorou a voltar para o Hospital da
Lagoa, onde apresentou uma falsa melhora.
Nesse momento, Paulinho da Viola foi visitar
o Mestre e saiu com duas impressões. A pri-
meira, de que ele estava se recuperando e
escaparia daquela (os médicos diriam de-
pois que aquela melhora era inexplicável),
e a segunda, a maneira filosófica como
Cartola resumiu tudo em uma frase. Depois
de falarem muito de música, de samba,
de amigos, do Fluminense, ainda grande
amor do compositor, estabeleceu-se aque-
le silêncio incômodo que acontece em tais

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Arley Pereira

ocasiões. Por alguns minutos,Cartola fitou


o vazio, depois, virando-se devagar para
Paulinho, a quem ele sempre chamou ce-
rimoniosamente de seu Paulo, suspirou e,
como que se despedindo, falou baixinho:
- “É, seu Paulo. A vida é isso aí!”
Paulinho confessa que, somente anos mais
tarde, já com muita vivência, pôde enten-
der a profundidade, a singeleza e o poder
de síntese de tão poucas palavras. Naquela
frase estava todo o sofrimento, o talento, o
fulgor, enfim, a vida, do Divino Mestre. Em
sua simplicidade, ela resumia o surgimento
espontâneo dos gênios da humanidade.
Quem ensinou Michelangelo a esculpir,
Da Vinci a pintar? De onde vêm a criativi-
dade do inventor, o carisma do condutor de
massas? Quem fez de Cartola o precioso
ourives da melodia? O romântico poeta ins-
tintivo? Quem, senão a vida?
Foi a última vez que Paulinho da Viola
viu o homem que lhe apontou os rumos
da vida artística. Cartola nunca escondeu
que o compositor da Portela foi quem mais
e melhor assimilou seu estilo e forma, e o
considerava um filho musical, seu legítimo
herdeiro e sucessor. Com Elton Medeiros,
não por acaso o mais assíduo parceiro de

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Tempos idos

Paulinho – em cujas melodias se podem reco-


nhecer, facilmente, a influência e a escola de
Cartola –, dividia a tarefa de manter a chama
melódica acesa um dia por seu Angenor nas
ladeiras da Mangueira.
O Jornal do Brasil de 27 de novembro de
1980 publicou uma crônica de Carlos Drum-
mond de Andrade, que dizia da admiração do
poeta erudito pelo poeta popular. Hermínio
recortou a página, fez Cartola ler e pregou-a
na parede de seu quarto, no hospital, ainda
durante a falsa melhora.
Foi, talvez, a última alegria de Angenor de
Oliveira. Enquanto esteve lúcido, namorou
aquele pedaço de papel ao alcance de seus
olhos. Quando começou a perder o conheci-
mento das coisas, só lhe vinham à boca os no-
mes dos mais chegados, familiares e amigos.
Foi assim até a noite de 30 de novembro,
às 20h45, quando a roda do moinho parou.
Sem conseguir triturar os sonhos do mais ge-
nial compositor popular deste século no Bra-
sil, sonhos que ele semeou e que germinaram,
transformando-se em tantos outros composito-
res “com o mesmo sangue na veia”.
Trinta de novembro de 1980. Domingo.
Onze de outubro de 1908. Fechava-se o ciclo.

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Crônica de Carlos Drummond de Andrade publicada no
Jornal do Brasil, em 27 de novembro de 1980.

Cartola, no moinho
do mundo

V
ocê vai pela rua, distraído ou
preocupado, não importa. Vai
a determinado lugar para fazer
qualquer coisa que está escrita na sua
agenda. Nem é preciso que tenha agenda.
Você tem um destino qualquer, e a rua é só
a passagem entre sua casa e a pessoa que
vai procurar. De repente estaca. Estaca e
fica ouvindo.

Eu fiz o ninho,
Te ensinei o bom caminho,
Mas quando a mulher
não tem brio,
É malhar em ferro frio.

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Carlos Drummond de Andrade

Aí você fica parado, escutando até o fim


o som que vem da loja de discos, onde al-
guém se lembrou de reviver o velho samba
de Cartola: Na floresta (música de Sílvio
Caldas).
Esse Cartola! Desta vez, está desiludido e
zangado, mas em geral a atitude dele é de
franco romantismo, e tudo se resume num
título: Sei sentir. Cartola sabe sentir com a
suavidade dos que amam pela vocação de
amar, e se renovam amando. Assim, quan-
do ele nos anuncia: “Tenho um novo amor”,
é como se desse a senha para a renovação
geral da vida, a germinação de outras flo-
res no eterno jardim. O sol nascerá, com
garantia de Cartola. E com o sol, a inces-
sante primavera.
A delicadeza visceral de Angenor de
Oliveira (e não Agenor, como dizem os
descuidados) é patente quer na compo-
sição, quer na execução. Como bem me
observou Jota Efegê, seu padrinho de ca-
samento, trata-se de um distinto senhor
emoldurado pelo Morro da Mangueira. A
imagem do malandro não coincide com
a sua. A dura experiência de viver como
pedreiro, tipógrafo e lavador de carros,

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Cartola, no moinho do mundo

desconhecido e trazendo consigo o dom


musical, a centelha, não o afetou, não fez
dele um homem ácido e revoltado. A fama
chegou até sua porta sem ser procurada.
O discreto Cartola recebeu-a com cortesia.
Os dois convivem civilizadamente. Ele tem
a elegância moral de Pixinguinha, outro a
quem a natureza privilegiou com a sensi-
bilidade criativa, e que também soube ser
mestre de delicadeza.
Em tempos idos, o divino Cartola, como o
qualificou Lúcio Rangel, faz o histórico poé-
tico da evolução do samba, que se proces-
sou, aliás, com a sua participação eficiente:

Com a mesma roupagem


Que saiu daqui,
Exibiu-se para a duquesa de Kent
No Itamaraty.

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Carlos Drummond de Andrade

Pode-se dizer que esta foi também a ca-


minhada de Cartola. Nascido no Catete,
sua grande experiência humana se desen-
volveu no Morro da Mangueira, mas hoje
ele é aceito como valor cultural brasileiro,
representativo do que há de melhor e mais
autêntico na música popular. Ao gravar seu
samba Quem me vê sorrir (com Carlos Ca-
chaça), o maestro Leopold Stockowski não
lhe fez nenhum favor: reconheceu, apenas,
o que há de inventividade musical nas ca-
madas mais humildes de nossa população.
Coisa que contagiou a ilustre duquesa.
Mas então eu fiquei parado, ouvindo a
filosofia cética do Mestre Cartola, na voz
de Sílvio Caldas. Já não me lembrava do
compromisso que tinha de cumprir, que
compromisso? Na floresta, o homem fizera
um ninho de amor, e a mulher não soubera
corresponder à sua dedicação. Inutilmente
ele a amara e orientara, mulher sem brio
não tem jeito não. Cartola devia estar muito
ferido para dizer coisas tão amargas. Hoje

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Cartola, no moinho do mundo

não está. Forma um par feliz com Zica, e às


vezes a televisão vai até a casa deles, mos-
tra o casal tranqüilo, Cartola discorrendo
com modéstia e sabedoria sobre coisas da
vida. “O mundo é um moinho...” O moleiro
não é ele, Angenor, nem eu, nem qualquer
um de nós, igualmente moídos no eterno
girar da roda, trigo ou milho que se deixa
pulverizar. Alguns, como Cartola, são trigo
de qualidade especial. Servem de alimento
constante. A gente fica sentindo e pensa-
menteando sempre o gosto dessa comida.
O nobre, o simples, não direi o divino, mas
o humano Cartola, que se apaixonou pelo
samba e fez do samba o mensageiro de sua
alma delicada. O som calou-se e “fui à vida”,
como ele gosta de dizer, isto é, à obrigação
daquele dia. Mas levava uma companhia,
uma amizade de espírito, o jeito de Cartola
botar em lirismo a sua vida, os seus amores,
o seu sentimento do mundo, esse moinho, e
da poesia, essa iluminação.

Carlos Drummond de Andrade

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Anexo I

Quando funcionário do Ministério da Indústria e Comércio, Cartola aprovei-


tava momentos de folga e compunha, escrevendo as letras em papel timbra-
do. Nesta letra de Amar, Amar, Amar, menciona o parceiro Maciste.

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fac-símiles de letras

Primeira versão do samba composto em homenagem a Noel Rosa, também


iniciado no Ministério, quando da morte do compositor de Vila Isabel.

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Anexo I

Poeta da mais límpida inspiração, Cartola não passou das primeiras letras
nos bancos escolares. Falava e criava suas letras e poesias em português
quase perfeito, mas tropeçava ao escrever.

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fac-símiles de letras

Mais um “monstro”, rascunho de letra no jargão usado pelos compositores.


Cartola deixou algumas letras de seus sambas ainda por acabar, como este
Quando a Mangueira Chegar, disputada por pesquisadores e colecionadores.

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Anexo II

Cartola (1974).

Cartola demorou a gravar, mas na estréia tinha como respaldo uma


seleção de craques irretocável. Com produção de Pelão, texto da
contracapa assinado pelo crítico Sérgio Cabral e instrumentação e
percussão de alto nível, o disco foi escolhido sem nenhum favor o
melhor disco do ano.

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discografia em vida

Cartola (1976).

Coube a Juarez Barroso produzir o segundo disco de Cartola, com o


capricho e o amor de quem sabia tudo sobre o compositor da Man-
gueira, seu amigo e chefe da “torcida desuniformizada”.

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Anexo II

Verde que te quero rosa (1977).

Entre os grandes críticos que saudaram Cartola nas contracapas de


seus LPs, coube a Lúcio Rangel ocupar o espaço do terceiro. Autor
do apelido Divino, Lúcio acompanhou a carreira de Cartola desde o
início dos anos 30.

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discografia em vida

Cartola 70 anos (1979).

É de Sérgio Cabral a produção do quarto LP da tardia carreira de


Cartola. Para comemorar os 70 anos de seu Angenor, um time se-
lecionadíssimo foi levado ao estúdio, com destaques para a bateria
de Wilson das Neves, os arranjos de Nelsinho, o clarinete de Abel
Ferreira e a “cozinha” de Marçal, Luna, Eliseu, Gilberto e Cuzcuz.
Contracapa de Jota Efegê.

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Anexo II

Cartola ao vivo (1978), lançado em 1982.

Pelão, o J. C. Botezelli, iniciou e encerrou a carreira discográfica de


Cartola em vida. Seu último LP foi gravado ao vivo em 1978 no espe-
táculo realizado no Ópera Cabaré, em São Paulo. A última contraca-
pa foi assinada por Arley Pereira.

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Este livro foi composto em Stymie BT, corpo 12, e
impresso em papel Starmax matte pela Opção Gráfica e
Editora Ltda. para as Edições SESC SP, em novembro de
2008, com tiragem de 3.000 exemplares.

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