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CDD 927
Crédito fotográfico
Arquivo pessoal de Arley Pereira: p. 21, 47, 80, 85, 90, 93, 98, 104
Arquivo pessoal de J.C. Botezelli, Pelão: p. 33, 40, 50, 58, 62, 72, 78, 83,
88, 104
Acervo Centro Cultural Cartola: p. 27
Almir Veiga/CPDoc JB: p. 84
Cartola
Semente de amor sei que sou, desde nascença
Prefácio
Elton Medeiros
Superintendentes
Técnico-social Joel Naimayer Padula / Comunicação Social Ivan Giannini
Gerentes
Estudos e Desenvolvimento Marta Colabone. Adjunto Andréa de Araújo Nogueira/
Artes Gráficas Hélcio Magalhães
Edições SESC SP
Gerente Marcos Lepiscopo. Adjunto Walter Macedo Filho Coordenação editorial
Clívia Ramiro Produção editorial Fabiana Cesquim Capa e projeto gráfico Thais
Helena Franco S. Leite. Preparação de texto Márcia Lígia Guidin
9 Apresentação
Danilo Santos de Miranda
11 Prefácio
Elton Medeiros
17 Grande amigo
23 Festa da Penha
31 Divina dama
39 A Vila emudeceu
49 Não quero mais amar a ninguém
57 Fiz por você o que pude
67 O sol nascerá
77 As rosas não falam
87 O mundo é um moinho
97 Tempos idos
105 Cartola, no moinho do mundo
Carlos Drummond de Andrade
110 Anexo I
114 Anexo II
Apresentação
Prefácio
L
á pelos anos 1930, naquela casa
de vila do bairro da Glória, cidade
do Rio de Janeiro, era freqüente a
visita do já conhecido compositor Heitor dos
Prazeres. Ali, ele passava para bater um pa-
pinho e, até mesmo com seu violão, apre-
sentar algumas de suas novidades musicais
ao casal de amigos, o senhor Luiz Antônio
de Medeiros, que entre outras qualidades
era emérito dançarino, e dona Carolina
Luiza S. de Medeiros, que costumava rea-
lizar domingueiras em casa, animadas por
uma moderna vitrola de manivela, para os
adolescentes, colegas de suas filhas. Filhas,
explica-se: o casal teve dez filhos, colocou
no mundo inicialmente seis do sexo femi-
nino e, entre os últimos quatro, mais uma
representante desse sexo.
Em uma das visitas, Heitor dos Prazeres,
depois de cantar algumas de suas compo-
sições, alegou estar com pressa, pois teria
de se encontrar com Cartola. O filho caçu-
la do casal achou estranho que seu Heitor
fosse ao encontro de “uma cartola”. Após
as explicações das irmãs mais velhas, pas-
sou a acompanhar, a seu jeito, não a car-
reira de uma cartola (impossível!), mas a
do Cartola, genial, primoroso, sofisticado e
tão necessário compositor de nossa música
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0 quinteto de sambistas ao qual o prefaciador se refere, integrante do musical Rosa
de Ouro, era composto por Elton Medeiros (pandeiro, atabaque, prato-e-faca, tam-
borim, caixa de fósforos e o “que mais viesse em assunto de ritmo”); Paulinho da
Viola (violão, atabaque e ritmo); Nelson Sargento (violão, o inenarrável violão verde);
Nescarzinho (tamborim) e Jair (do Cavaquinho). Mais que dignos representantes das
escolas Aprendizes de Lucas, Mangueira, Salgueiro e Portela.
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Elton Medeiros
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As “veteranas estrelas” eram as imensuráveis Aracy Cortes, vida e alma do teatro de
revista brasileiro, e Clementina de Jesus, que dava ao autor deste livro a honra maior
de chamá-lo de filho e ao qual jamais negou sua bênção. (N. do A.)
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Grande amigo
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Arley Pereira
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er convivido com Cartola foi um
presente dos deuses. Quis o des-
tino que tal prazer me fosse con-
cedido quando eu já tinha discernimento
para desfrutar de seu convívio. Os longos
silêncios do Divino eram eloqüentes, pois
aconteciam nos momentos certos, como
que pontuando ou pautando seus saberes...
ditos ou por dizer.
Como todo gênio, reservava o melhor de
si para aqueles de quem realmente gosta-
va. Elegante, mas formal e até seco quando
a conversa era obrigatória, ou o interlocutor
(muitas vezes um repórter mal preparado
para a entrevista) não tinha a sensibilidade
necessária para entendê-lo.
Conversar com ele, ouvi-lo com sua voz
mansa e segura, nas longas tardes quen-
tes da Mangueira, às vezes em sua casa,
muitas outras nesta ou naquela tendinha,
enfrentando cervejinhas geladas, valeram
por um curso completo na universidade
da vida. Como sempre, sentado com uma
das pernas flexionadas, o queixo apoiado
no joelho, coçava eterna e carinhosamente
o dedão do pé e transmitia a imagem que
dele ficou por muitos anos: a do carioca
descansado, avesso ao trabalho, que prefe-
ria ver a vidinha escorrer mansa, vivida da
maneira que fosse possível, entre as primas
e os bordões de seu violão, as rimas muitas
vezes camonianas de seus versos.
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Na umbanda, cambono é o auxiliar do pai ou da mãe-de-
santo para diversas finalidades rituais do terreiro. Aqui, o
autor se apropria do termo corrente no meio em que viviam
Cartola e Zica para designar o papel de co-anfitriã desem-
penhado por Menina, quando todos se reuniam na residên-
cia do casal. (N. do E.)
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Cartola e Asobert
S
empre esperado com ansiedade
pela cidade de São Sebastião do
Rio de Janeiro, o outubro tinha
chegado. Com ele, a mais popular festa
carioca, a colina do subúrbio enfeitada de
bandeirolas, perfumada pelos quitutes que
saíam das frigideiras nas barracas das tias
baianas, e animada pelo samba que corria
solto ao redor. Enquanto os fiéis pagavam
promessas, subindo a longa escadaria ajo-
elhados e entoando cânticos a Nossa Se-
nhora da Penha, entre um samba e outro,
atabaques rufavam em louvor de lemanjá e
outros orixás, alimentando o sincretismo.
Os bambas reuniam-se nas barracas
mais animadas e mais festeiras, esperando
os compositores que certamente aparece-
riam para lançar suas novidades, já com
os olhos no carnaval do próximo mês de
fevereiro. Os batuqueiros enfrentavam-se
no samba-duro, uma roda de batucada na
qual aquele que estava no meio convida-
va um dos circunstantes para enfrentá-lo,
e a pernada comia. O grande mérito era
jogar de terno branco, de linho S20, e sair
da roda impecável: só não se sujava quem
não era derrubado.
A Festa da Penha era a mais animada ma-
nifestação de caráter religioso-musical da
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Tudo acabado
O baile encerrado
Eu dancei com você
Divina dama
Com o coração
Queimando em chama
Cartola
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o barraco que arranjara para
dormir, Cartola só aparecia de
vez em quando. Até que foi sen-
do derrubado pelas doenças, a tal ponto
que o corpo magro e mal-alimentado per-
manecia a maior parte do tempo jogado
na cama, fazendo dó aos vizinhos. Seu so-
frimento aumentava e não passou desper-
cebido a Deolinda, uma negra volumosa,
casada com Astolfo, mãe de uma filha e
conhecida no morro por sua bondade. Não
negava abrigo a quem precisasse, e a situ-
ação daquele menino ao lado de seu bar-
raco deixou-a condoída.
Começou a cuidar dele, como já fizera
com tantos necessitados. Da mesma manei-
ra que fazia a limpeza em seu barraco, fazia
no dele e ainda fornecia a comida, preen-
chendo o lugar da mãe, de quem ele sentia
tanta falta. Ao menos assim o vizinho a en-
carava; mas a proximidade, os cuidados e
talvez a fama de mulherengo mexeram com
a cabeça de Deolinda, que, calada, passou
a olhar Cartola com outros olhos, mesmo
com ele ainda no fundo da cama.
Astolfo percebeu, chamou a mulher à
fala, foi tomar satisfações com o doente,
que só então notou as intenções da vizinha.
Sem poder erguer uma palha em sua defe-
sa, mesmo porque era inocente, ouviu tudo
calado e viu o marido destratar a esposa e
abandonar a casa.
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Chega de demanda,
Chega!
Com este time temos que ganhar
Somos da Estação Primeira
Salve o morro da Mangueira!
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Cartola
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anto era natural para Cartola criar
samba que recebeu com surpre-
sa a visita de um amigo, o guar-
da municipal Cláudio, alvoroçado, barraco
adentro. A voz pausada de Cartola contava:
“O Cláudio estava todo afobado. Um car-
ro último tipo estava encostado no pé do
morro e o dono procurava por mim. Dizen-
do que era meu primo, Cláudio quis saber
do que se tratava, e o elegante motorista
não escondeu. Era o cantor Mário Reis e
queria comprar um samba meu. Achei pura
maluquice. Então samba se vendia? Pensei
ganhar uns dez mil-réis, mas o Cláudio
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A Vila emudeceu,
Dolorosamente chora
O que perdeu.
Ninguém é imortal,
Morrer é natural,
Ó Deus perdoa
Se é que estou pecando.
Que mal te fez a Vila,
Que lhe estás torturando?
Na Vila
Onde ele morava
Todos os seres cantavam
As glórias do seu poeta.
Hoje a Vila é triste e muda
Ao bater a Ave-Maria
Quando a aurora desperta.
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O
s primeiros anos da década de 1940 foram
bastante felizes para Cartola. Foi escolhido
Cidadão Samba, título cobiçado por todos
os sambistas, e desfilou em carro aberto, com batedores
da polícia abrindo caminho para ele, transformado em
grande personalidade. A convite de seu amigo, o maestro
Heitor Villa-Lobos, fez parte de um grupo carnavalesco
intitulado Sodade do Cordão, levando com ele os man-
gueirenses Carlos Cachaça, Zé Espinguela e o novo par-
ceiro, Aluísio Dias.
Tornou-se amigo também de Paulo da Portela, funda-
dor da arquiinimiga de Madureira, mas recebido fidalga-
mente em Mangueira; tanto que, quando Paulo rompeu
com sua Escola e andou visitando Cartola, este fez em sua
homenagem o samba Sala de visitas. Com Paulo da Por-
tela formou dupla para um programa na Rádio Cruzeiro
do Sul e chegou a excursionar algumas vezes, tendo am-
bos se apresentado em São Paulo, com a participação de
Heitor dos Prazeres. Essa aproximação com Heitor, que
não era bem recebido na Portela, ocasionou a saída de
Paulo da Escola que fundara.
Enquanto levava sua vidinha com Deolinda, que supor-
tava suas farras e bebedeiras, Cartola ia crescendo em
fama nos meios do samba, embora jamais abandonasse a
Mangueira, onde sempre morou. Teve uma única grande
briga com a mulher, que, ao vê-lo se preparar para uma
memorável noitada, daquela vez se revoltou, pegou o ter-
no novo – um reluzente linho branco S120 – e o jogou na
lama. Cartola ficou furioso e agrediu Deolinda, que rolou
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Sim
Deve haver o perdão
Para mim
Senão nem sei qual será
O meu fim
Para ter uma companheira
Até promessas fiz
Consegui um grande amor
Mas eu não fui feliz
E com raiva para os céus
Os braços levantei
Blasfemei
Hoje todos são contra mim
Todos erram neste mundo
Não há exceção
Quando voltam à realidade
Conseguem perdão
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Cartola
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Mangueira,
Onde é que estão os tamborins,
ó nega?
Viver somente de cartaz não chega,
Põe as pastoras na avenida,
Mangueira querida!
Antigamente havia
Grande escola
Grandes sambas do Cartola
Um sucesso de Mangueira.
Mas hoje,
O silêncio é profundo
E por nada neste mundo
Eu consigo ouvir
Mangueira.
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Tive, sim
Outro grande amor, antes do teu
Tive, sim
O que ela sonhava
Eram os meus sonhos
E assim
íamos vivendo em paz.
Em nosso lar sempre houve alegria
Eu vivia tão contente
Como contente ao teu lado estou
Tive, sim
Mas compará-lo ao teu amor
Seria o fim
E vou calar
Pois não pretendo, amor, te magoar.
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L
an Franco Vaselli, cidadão italiano
nascido em Florença, com passa-
gem pela Argentina e pelo Uruguai
– e mestrado nas tendinhas do Salgueiro,
da Mangueira e no botequim do Nozinho,
na Portela – destacou-se internacionalmen-
te como Lan, um dos mais respeitados car-
tunistas desta e de todas as praças, além de
conhecedor de samba e sambistas como
poucos brasileiros.
Pois foi exatamente Lan que Zica procu-
rou inicialmente, em sua campanha para
recuperar Cartola. Queria divulgar para
os meios de comunicação que o talento do
compositor estava intacto e que sua carrei-
ra poderia e deveria ser reassumida. Mas,
mesmo em Mangueira, Cartola continuava
a beber muito. Levado até o morro, Lan fi-
cou impressionado com a situação que viu
e prometeu tentar ajudar o casal. Aconse-
lhada por ele, Zica levou Cartola ao Café
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Perdoa-me a comparação,
Mas fiz uma transfusão
E eis que Jesus me premeia
Surge outro compositor,
Jovem de grande valor,
Com o mesmo sangue na veia.
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Cartola
O
tradicional espírito carioca
transformou o Zicartola em
moda. Lotado todas as noites.
Ouvir o violão personalíssimo de Nelson
Cavaquinho, os novos sambas de Zé Keti,
o ritmo infernal de Elton Medeiros, a voz
afinadíssima daquele menino Paulinho da
Viola, tudo sob as bênçãos de Cartola, o
mestre maior, era ritual que a cidade não
podia perder. Ainda mais com o tempero
da Zica! Casa cheia todas as noites, festa
madrugada adentro. Ou afora. A juventu-
de dourada e queimada do sol da Zona Sul
descobria os sambistas morenos e talento-
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Cartola
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V
encida a batalha inicial, a trilha
aberta a duras penas por Pelão
foi seguida por outros produto-
res também de talento e prestígio. Carto-
la provara o que sempre dizia de sua voz,
pequena, porém afinada e competente, de
quem tinha ritmo e sabia cantar. O segun-
do disco, ainda na gravadora de Marcus
Pereira, foi produzido por Juarez Barroso,
um dos mais fanáticos torcedores do time
do fundador da Mangueira. Conhecedor
profundo de Cartola e sua obra, manteve
a estrutura criada por Pelão para o primei-
ro LP, introduzindo o trombone de Nelsinho
no lugar do de Raul de Barros, a flauta de
Altamiro Carrilho para substituir Copinha e
acrescentando Abel Ferreira ao saxofone,
o que preservou a qualidade do acompa-
nhamento. As novidades foram a inclusão
de um fagote na faixa Preciso me encon-
trar, samba de Candeia, e a voz de Creu-
za, filha de Cartola. Lançado em abril de
1976, o sucesso do disco não pôde ser des-
frutado pelo produtor, pois Juarez morreria
um mês antes.
Incluída em telenovela da Rede Globo
de televisão, a música As rosas não falam
foi o maior êxito do segundo LP, promoven-
do um surto de shows, entrevistas e apre-
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Cartola
O
conhecido descuido de Cartola
consigo foi o que apressou seu
fim. Pouco antes de completar
70 anos, surgiu um inchaço em seu pesco-
ço, uma espécie de cisto, que foi examina-
do por um médico durante uma pequena
temporada em Belo Horizonte. Medicado,
foi aconselhado a fazer um exame cuidado-
so, coisa que nem ele nem Zica providen-
ciaram. Depois da morte de seu Sebastião,
o problema agravou-se e não houve outra
solução que a intervenção cirúrgica. Ope-
rado no Hospital de Oncologia, no Rio de
Janeiro, ficou claro que sofria de câncer.
Recebeu alta, com a recomendação de
um tratamento minucioso, à base de aplica-
ções de cobalto. Evidentemente, não deu a
menor atenção à prescrição, estava na fase
de mudança para Jacarepaguá e com a
agenda cheia de compromissos musicais.
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Cartola, no moinho
do mundo
V
ocê vai pela rua, distraído ou
preocupado, não importa. Vai
a determinado lugar para fazer
qualquer coisa que está escrita na sua
agenda. Nem é preciso que tenha agenda.
Você tem um destino qualquer, e a rua é só
a passagem entre sua casa e a pessoa que
vai procurar. De repente estaca. Estaca e
fica ouvindo.
Eu fiz o ninho,
Te ensinei o bom caminho,
Mas quando a mulher
não tem brio,
É malhar em ferro frio.
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Poeta da mais límpida inspiração, Cartola não passou das primeiras letras
nos bancos escolares. Falava e criava suas letras e poesias em português
quase perfeito, mas tropeçava ao escrever.
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Cartola (1974).
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Cartola (1976).
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