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Arte que o aluno traz consigo


Rosa Iavelberg
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo*

Introdução
Desde 2001, lecionamos no curso de licenciatura em pedagogia da
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Formar futuros
professores e gestores para que saibam dar aulas de artes visuais e
gerir escolas de educação básica, até 5º ano do ensino fundamental é,
entre outros, objetivo da disciplina Fundamentos teórico-
metodológicos do ensino da arte.
Na base dessa disciplina, estão as aulas que ministramos para crianças
e jovens dos 4 aos 17 anos, durante 23 anos, na Escola Criarte (1972-
1979) e na Escola da Vila (1980-1995). Outra origem está no trabalho
de formação de professores desenvolvido no Centro de Estudos da
Escola da Vila e em diferentes instituições públicas e privadas. Do
mesmo modo, incidem sobre nossas escolhas teóricas e práticas:
estudos e participações em eventos acadêmicos, as aprendizagens da
graduação na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
de São Paulo (1969-1973) e na Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, onde cursei especialização em
arte/educação I e II, respectivamente em (1986 e 1990) e, as
pesquisas para o mestrado (1990-1993) e para o doutorado (1993-
2000).
Na nossa proposta de trabalho, entendemos que a aprendizagem em
artes visuais na formação inicial possui natureza autoral e genuína, ou
seja, cada futuro educador tem participação singular nos atos de
aprendizagem. Alguns princípios, listados abaixo, são relevantes para
orientar tais aprendizagens junto aos licenciandos:

*
Rosa Iavelberg é professora associada da Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo do Departamento de Metodologia de Ensino e Educação Comparada.
Líder do Grupo de Pesquisa Formação Educadores em Arte (CNPq)
http://lattes.cnpq.br/3612410780790990. rosaiave@usp.br
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• Apoiar os avanços e as dificuldades no enfrentamento de


obstáculos;
• Trabalhar expectativas e representações favoráveis sobre os
trabalhos realizados em oficinas de criação;
• Validar a singularidade e a diversidade dos atos de criação;
• Garantir que a escolha poética do aluno não seja submissa às
poéticas de outros;
• Considerar a aprendizagem como ato de criação autoral. Seu
epicentro está nos alunos. São eles que relacionam com o
coletivo (o grupo da classe e a comunidade mais ampla);
• Considerar as artes e as culturas que os estudantes trazem
consigo e expandir seus universos poéticos por meio do diálogo.
Ainda na disciplina, paralelamente aos fundamentos da arte/educação
levados à sala de aula, os alunos ministram aulas sobre arte aos pares,
realizam oficinas de criação e estágios supervisionados em escolas
públicas da Educação Básica, escolhendo, desde os níveis iniciais até o
fim do Ensino Fundamental 1 – faixas nas quais os futuros pedagogos
poderão atuar, segundo a legislação. Além disso, os estágios podem
ser realizados em museus, instituições culturais ou organizações
sociais nas quais exista proposta educativa, dadas as diferentes
interlocuções que as escolas e os futuros professores poderão realizar.
Intencionamos, inicialmente, responder à indagação: quem define o
que é importante saber sobre artes visuais no currículo da licenciatura
em pedagogia?
Ao longo das 15 aulas da disciplina, que se desenvolvem em 60 horas,
acrescidas das 30 horas de estágio, são pesquisados, pelos estudantes,
recortes por eles eleitos da história da arte com a finalidade de planejar
aulas a serem ministradas por grupos, entre os colegas da sala.
Indicamos: produções cinematográficas (documentário ou ficção) que,
tematizadas, trazem conceitos relevantes à arte/educação.
Ministramos aulas sobre textos selecionados do campo da
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arte/educação. Orientamos oficinas de criação artística e


supervisionamos os estágios realizados em grupos.
Tal conjunção de propostas promove a construção de uma visão
histórica e atualizada do ensino e da aprendizagem em arte nas
escolas, assim como a compreensão de diferentes concepções,
procedimentos práticos e valores sociais dos diferentes territórios da
arte/educação.
Privilegiamos a atualização, a consciência social e a formação do
conhecimento histórico sobre arte/educação, por meio de exposição e
discussão de textos de autores que praticaram e/ou praticam aulas de
artes visuais junto às crianças e aos jovens. O dar a conhecer as
diferentes concepções e práticas, transforma a história em distintos
contextos; permite visualizar os trabalhos criados pelas crianças e
jovens e, atualiza a ideia de que a arte/educação tem histórias que
podem ser contextualizadas.
Estimamos que compreender as diferentes gêneses nas artes visuais
e, principalmente, como se dão suas transformações nas criações de
crianças e jovens promove o saber sobre a não universalidade da arte
infantil e juvenil e o conhecimento da diversidade dessas produções,
diante da contextualização temporal, espacial, artística e cultural dos
autores que ordenaram essas gêneses. Isso motiva ainda, a percepção
de que novos paradigmas da arte/educação contemporânea têm raízes
nas posições do passado, às quais é dada alguma continuidade, certas
rupturas, determinadas transformações e a emergência de novas
propostas. (IAVELBERG, 2017).
Nas escolhas das poéticas e dos temas das histórias da arte, eleitos
pelos pedagogos em formação para ministrar aulas entre os pares
destacam-se: culturas jovens, o combate ao racismo, a relevância do
papel da mulher nas artes, arte de rua, grafite, pichação e a arte dos
povos originários de nosso país.
Desse modo, uma visão crítica sobre currículos e planejamentos nas
escolas é edificada pelos futuros educadores no entrelaçamento das
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ações, estudos e reflexões realizadas no curso. Esperamos que isso


funcione como dardos oferecidos. E esses possam atingir os objetivos
da arte/educação; que possam rasgar, se necessário, desenhos
curriculares das escolas, para que esses dialoguem com a realidade
social, numa perspectiva sem exclusão e de despertar do espaço
escolar como lugar democrático, participativo, humanizado e
responsável, como nos disse Edgard Morin (2020) em palestra recente
sobre a democracia.
Ao pensarmos e nos perguntarmos sobre procedimentos da formação
inicial do pedagogo em artes visuais, afirmamos nossa intenção de
negar a escola transmissiva, a educação bancária pontuada por Paulo
Freire e o lugar autoritário de formadores que não compõem com seus
alunos um ecossistema participativo do ensino e da aprendizagem na
sala de aula e, como veremos adiante, é necessário que a formação
seja a mesma que pautará o trabalho dos pedagogos nas escolas. Não
se pode eleger uma epistemologia na formação e outra na sala de aula
das escolas, elas convergem e dialogam.
Encontramos nos textos de bell hooks fundamentos que validam
nossas escolhas. bell hooks, escritora norte-americana que faleceu em
2021, feminista, freiriana, pró-educação antirracista, fez opção pela
decolonização da educação, por meio do viés da atualização e
conscientização do professor. A autora era seguidora do monge budista
Tich Nhat Hanh, que – como Freire – une a consciência à prática.
Entre outros livros, foi em Ensinando a transgredir: a educação
como prática da liberdade (2017) que hooks escolheu o caminho da
deslegitimação de círculos acadêmicos que hierarquizam o
conhecimento teórico, excluindo formas de conhecimento que reiteram
o feminismo e as produções que não perpassam a cultura branca
hegemônica. Trata-se, para a autora, de um círculo de legitimação do
poder que exclui a experiência da maioria dos alunos das escolas
públicas americanas, e sabemos, há certa semelhança com aquilo que
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se passa no Brasil, onde são eclipsadas as culturas de origem de nosso


país, a arte das mulheres e a do cotidiano de nossos estudantes.
Isso significa, entre outros cuidados, que não podemos nos antecipar
nos desenhos das ementas de nossas disciplinas nas Universidades –
algo precisa ficar em aberto para ser construído e poetizado com a
participação de cada grupo específico de professores em formação para
que a cena didática seja um roteiro poético e não técnico.

Além disso, ciente (por experiência pessoal como aluna em


instituições predominantemente brancas) de o quanto é fácil
um aluno se sentir isolado ou posto de fora, me esforço
particularmente por criar um processo de aprendizado na sala
de aula que envolva a todos. (hooks, 2017, p.117)

O avesso dessa possibilidade seria o formador eleger, nos moldes de


uma “hierarquia coercitiva”, como concebe hooks (2017, p.32),
conteúdos da história da arte a serem pesquisados pelos futuros
professores no curso de pedagogia para darem aula aos colegas da
turma.
Com a “boa intenção” de recortar temas e poéticas, tendo como
proposta garantir formação cultural sólida aos futuros professores, o
formador poderia tomar decisões excludentes, que apenas revelam a
relação de poder sobre os alunos. Ser autoridade é diferente de ser
autoritário (ARENDT, 1997). Essa proposta poderia, aparentemente,
se configurar como intenção de repertoriar os alunos, considerando
que a formação em artes nas escolas da educação básica é relatada,
pela maioria dos futuros professores, como aquém do que seria
necessário.
Os relatos dessa formação emergem em aulas iniciais da disciplina da
pedagogia, quando os alunos respondem à questão de como a arte fez
e faz parte das suas vidas. Tal pergunta, a ser respondida pelos
estudantes em relatos escritos para serem lidos aos colegas da sala,
envolve-os, gera interesse, integra o grupo e valida suas experiências
tanto escolares, como extraescolares.
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Nesses relatos, a maioria dos alunos privilegia as experiências


extraescolares, entretanto, contraditoriamente, consideram que não
tiveram formação adequada porque separam a arte “consagrada”
daquela que vivem no cotidiano, imaginando que “arte de verdade” é
a que está nos museus e a que se aprende em “instituições oficiais.” A
ideia de que a arte pode ser pensada como uma experiência vivida e
assimilada no cotidiano das comunidades e em outros meios que
podem acessar, surpreende a muitos.
Desse modo, é importante que os conteúdos a serem pesquisados para
as aulas ministradas entre os colegas, sejam selecionados pelos
grupos, com temas e poéticas por eles eleitos. Como resultado dessas
práticas, os alunos ficam mobilizados para a ação, ou seja, a aula entre
os pares é realizada, na esteira das motivações indicadas por Isabel
Solé (1997), com mobilização intrínseca, ao invés de extrínseca, ou
seja, aquela que é externa ao sujeito da aprendizagem, realizada
apenas para cumprir o enunciado do professor.
Em síntese, quando o formador indica que os conteúdos das aulas a
serem ministradas pelos futuros pedagogos, como exercício para
aprender a dar aulas, sejam selecionados pelos próprios alunos, a
proposta gera entusiasmo, envolvimento, comunicação e troca de
repertório que interessa aos alunos. Contudo, isso não significa que o
formador se omitirá de aprofundar, expandir e estabelecer relações
com os diferentes conteúdos do universo da arte.
O que acabamos de discorrer não trata apenas de uma teoria sobre
ensino e aprendizagem em arte na licenciatura em pedagogia, mas de
uma proposta advinda de uma força motriz dos diferentes movimentos
sociais que emergiram dos grupos que foram, durante décadas e até
séculos, silenciados, explorados, condenados à invisibilidade e, que
hoje, devido às lutas sociais, sentem o justo direito à participação
social e à expressão de suas culturas, em detrimento do conformismo
e da submissão.
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Observamos ainda, que os alunos da pedagogia que contemplam suas


experiências artísticas a partir da formação, além de se envolverem,
conseguem expandir seu repertório artístico e cultural se reconhecendo
na diversidade das opções dos grupos. Cabe ao formador considerar a
equidade entre os diferentes interesses que emergem, assim, arte e
vida ficam amalgamadas.
A aprendizagem compartilhada, realizada para planejar e concretizar
as aulas entre os pares resulta num material que dá suporte a elas, ou
seja, numa apresentação, que é analisada e comentada na sala de
aula, é refeita e disponibilizada em um drive comum, assim todos
podem se apropriar das pesquisas estruturadas.

Da formação do pedagogo à da criança


Na trilha do pensamento que rege a formação do futuro professor
reside a necessidade de compreender e considerar a diversidade das
infâncias nas escolas, ou seja, as culturas que as crianças trazem
consigo. Isso é favorecido quando as marcas identitárias dos
pedagogos foram salvaguardadas, como vimos, na formação inicial.
Infelizmente, ainda presenciamos a falta de consideração pelas
infâncias na sociedade contemporânea, mesmo depois dos
movimentos ocorridos nos séculos XIX e XX que advogaram a
educação centrada no aluno. Então, falhamos? Não, aprendemos que,
devido a fatores variados, é mais difícil criar um mundo apenas por
meio da educação pela arte, como foi suposto na modernidade da
arte/educação. (EFLAND, FREEDMANN e STHUR, 2003).
Entre outras possibilidades, a diversidade das infâncias pode ser
trabalhada por meio do cinema. O cinema nacional, que bem
conhecemos, é uma fonte de formação sobre as infâncias presentes
nas distintas realidades do povo brasileiro, instigando a necessidade
de associar educação a cuidados, podemos citar: Vidas secas, de
Nelson Pereira dos Santos (1963), Pixote: a lei do mais fraco, de Héctor
Babenco (1981) e O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho (2012),
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entre tantos outros que apontam a necessidade de decolonização da


sociedade e da educação do país.
Mas, não devemos desconsiderar produções cinematográficas
estrangeiras que, igualmente, denunciam a existência de infâncias
roubadas, pois o problema do descaso com as infâncias é mundial.
Filmes, tais como: Adeus meninos, de Louis Malle (1987), que discorre
sobre a discriminação e o sofrimento sentidos por crianças judias
durante o nazismo; A maçã, de Samira Makhmalbaf (1913), filme
iraniano que nos conta a história de duas meninas de 11 anos que
foram privadas de liberdade, educação e interação social pela própria
família e, o impressionante documentário A vida em mim, dirigido por
Kristine Samuelson e John Haptas (2019), no qual inúmeras crianças
refugiadas na Suécia desenvolvem uma doença que tem por nome
síndrome de resignação, que as remetem praticamente ao estado de
coma, pois ficam adormecidas por longos meses.

As formas das infâncias nos campos de concentração não


estavam previstas ou foram escolhidas pelos prisioneiros, do
mesmo modo, nas aldeias dos povos indígenas brasileiros,
cujas terras estão, hoje, sendo invadidas por garimpeiros
disseminando doenças e a destruição do meio ambiente em
nome do capital.

A violência política, social, a falta de ética e respeito à vida,


muitas vezes deterioram as condições favoráveis ao
desenvolvimento das infâncias projetadas ou sonhadas pelas
diferentes comunidades. Contudo, o desrespeito às vidas
infantis e à singularidade de suas criações também pode
acontecer em espaços institucionais e familiares por
desconhecimento dos adultos dos direitos à qualidade e ao
projeto de vida, às possibilidades existentes em relação aos
cuidados e à formação educacional e cultural das crianças.
(IAVELBERG, 2020).

Situamos aqui outra indagação: a arte que a criança traz consigo


merece ser respeitada e considerada nas escolas?
Quando pedimos a uma criança para falar sobre seu trabalho de artes
visuais, sem nos anteciparmos atribuindo significados ao que vemos,
surge sua concepção de arte infantil. Analogamente, quando
perguntamos ao pedagogo em formação inicial que arte ele quer
estudar para ensinar aos colegas, ele se percebe como alguém que
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possui uma concepção de arte a partir da sua vida, quebrando


preconceitos que dividem saberes eruditos e populares, ou seja, as
experiências da comunidade e as dos museus, a arte de rua e a dos
espaços expositivos, as festas populares de apresentações em teatros
e espetáculos, os fanzines e os livros etc.
No caminho simbólico da compreensão dos conceitos atuais da
arte/educação, é fundante saber sobre a diversidade das infâncias, a
partir de diferentes pontos de vista, tais como, o científico, social,
artístico, cultural e geográfico – todos pelo viés humanizado, que visa
à equidade e à justiça social para as crianças de nosso país e do mundo.
A experiência cotidiana e contemporânea junto às crianças nos mostra
o caminho de uma arte que a tem como epicentro de criações
contextualizadas, ou seja, permeadas por tudo que alimenta o que a
criança cria, aí reside a importância do conceito de infâncias, que nos
traz a diversidade, sem universalizar uma infância intangível para
muitos ou coincidente para todos.
A diferença é notória quando, diante de um desenho infantil, se
compara o que adulto interpreta diante do que vê, com aquilo que a
criança diz dele. As duas narrativas não mudam a materialidade do
desenho, entretanto, como o trabalho existe na leitura, a poética da
criança emerge quando associamos um desenho à sua narrativa que
expande suas intenções simbólicas. Não estamos propondo que
sempre se peça à criança para falar sobre seu desenho, mas, quando
o fizermos, devemos ter o cuidado de não conduzir as respostas com
perguntas descabidas: “me conta”, por exemplo, garante a narrativa
genuína, já “o que é isto” induz respostas que podem estar distantes
das intenções poéticas do criador.
O mesmo ocorre quando pedimos aos pedagogos em formação para
nos falarem de suas escolhas diante de poéticas do mundo. A aula
muda de ecossistema, é considerada um ato de criação autoral, o aluno
é parte propositiva do planejamento da disciplina e as culturas que ele
destaca serão trabalhadas na sala de aula.
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Queremos reiterar a ideia de aula da formação inicial do pedagogo


como espaço de criação de base identitária e a arte da criança, do
mesmo modo, como fruto de um sujeito criador abraçado às próprias
experiências e à arte que traz consigo.
Quando demos aulas para crianças e jovens, entre 1972 e 1995, até o
final dos anos de 1980, tivemos a oportunidade de estudar e praticar
propostas da arte/educação da escola renovada, que se desenvolvia
no Brasil e em outros países. A escola renovada advogava em favor da
mudança da percepção da sociedade sobre a educação da infância
(ainda no singular), lutava por justiça para que a criança ocupasse seu
lugar de direito, com autenticidade, até então negado. Mas, ainda o
fizemos, apesar de muita consideração pelas crianças, por intermédio
do discurso e do olhar do adulto. Já no final dos anos de 1980, o ensino
e a aprendizagem em arte, tendo como um dos objetos de
conhecimento a própria arte, começa a ser praticado e pensado no
Brasil e no exterior. Como se sabe, em nosso país, a Abordagem
Triangular, criada por Ana Mae Barbosa, adentrou escolas, instituições
culturais, organizações não governamentais, museus e universidades
e tal abordagem segue, até os dias atuais, guardando diversidade nas
leituras e o estado de transformação permanente em sincronia com
tempos e contextos.
Por intenção dos pensadores da Escola Nova, a infância ganhou
desenvolvimento próprio, porém, em sua maioria, a perspectiva de
adultos educadores universalizou a infância, sem considerar as
especificidades de cada contexto de desenvolvimento das distintas
infâncias e suas culturas. A concepção de infâncias nos chega,
principalmente, por meio da sociologia da infância e das propostas
decolonias, por diferentes autores, entre os quais, aqui destacamos:
Delgado e Muller:

Acreditando na urgência de inserir a decolonialidade na


educação para a infância, é de igual importância que as
culturas infantis sejam consideradas.
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Mas o que isso tem a ver com as pesquisas que tratam das
crianças e suas culturas? Segundo Giménez e Traverso
(1999), o discurso moderno caracteriza-se pela universalidade
e generalização, ou seja, nossos referenciais de análise
contemplam uma voz racional, branca, masculina, ocidental,
heterossexual, civilizada, “normal e adulta” nas análises
“sobre” e não “com” as crianças. Os autores convidam-nos a
desconfiar desses discursos que pretendem construir verdades
absolutas sobre as infâncias e reivindicam a alteridade, que
significa ouvir e respeitar as outras vozes, entre elas, as vozes
das crianças. (DELGADO e MULLER apud BRANDÃO, 2021, p.
42, grifo nosso).

No período da livre-expressão, as criações infantis foram lidas e


classificadas pelos adultos, com menos escuta aos sentidos que a
própria criança a elas atribuía, do que hoje se propõe realizar. Pouco
se sabia sobre arte das infâncias, tendo as crianças como os narradores
centrais, que denotam as artes e as culturas que trazem consigo.
Para melhor explicitar a proposição do valor das narrativas das crianças
sobre seus trabalhos, citamos uma pesquisa que desenvolvemos com
Leandro de Oliva Costa. (IAVELBERG e COSTA, 2021). Trabalhamos
com crianças das favelas do bairro do Jaguaré, da periferia da cidade
de São Paulo, no momento que atravessávamos a pandemia.

Quando se pensa em criação artística e em direitos das


infâncias, em nossa pesquisa, não se considera a criança,
como classe de sujeitos; cada criança guarda suas
singularidades. Nesses termos, consideram-se as narrativas
infantis expressões de ideias que estão ao lado das criações
visuais, ambas singulares. Entendemos que não somos nós
pesquisadores que damos voz às crianças. Elas são as
emissoras e as narradoras de seus mundos e de suas ações
no mundo, desse modo, a investigação torna possível o espaço
de seus sonhos, temores, alegrias, enfim, tudo que é parte de
seu universo e do contexto de criação. (IAVELBERG e COSTA,
2021).

Trata-se de saber que as crianças, assim como os pedagogos em


formação têm voz e não nos cabe dar-lhes voz. Do mesmo modo, a
pesquisa desenvolvida nas favelas do Jaguaré, durante a pandemia, foi
importante para verificarmos que o desenho cultivado, como o
compreendemos (IAVELBERG, 2021), se manifesta nas criações
infantis, quando neles emergem imagens, simultaneamente, genuínas
e influenciadas pelas culturas que atravessam as infâncias.
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Isso não significa que o professor, nas salas de aula, será passivo, se
omitindo de instigar, aprofundar, expandir e estabelecer relações entre
a arte das crianças e a do mundo em sua diversidade, numa
perspectiva não excludente.

Os adultos e os desenhos das crianças


Numa rede social, postamos e pedimos aos “amigos do feed” que
falassem o que estavam vendo no desenho de uma criança de 3 anos,
que segue.

Muitas leituras emergiram dos adultos: macarrão com pimenta; linhas


vermelhas com pontos; emaranhado de cores, entre outras. Findas tais
respostas, postamos: “Martim disse que é uma melancia”. E obtivemos
343 curtidas e 90 comentários, em nenhum desses houve contestação
da fala do Martim. Seguem alguns exemplos:

Demais esta melancia!!; Beleza de melancia; Lindo! Encantou;


Tem até as sementes! É isso aí!; Que linda melancia, está
certinha!; Porque não né?; Amo!!; Mas é claro; Genial!;
Melancia minimalista rabiscante by Cy Twombly (1928-2011);
Perfect!; Se ele disse, então é; É melancia!; E bem docinha...;
Linda melancia; Artista promissor.

Aos 5 anos, Martim fez uma girafa. Postei, novamente, para os “amigos
do feed” afirmando: “Martim disse que é girafa”. (5 anos)
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Dessa vez, não tivemos leitura afastada da narrativa da criança sobre


seu desenho, pois ela foi mencionada. Seguem alguns comentários:

Sem dúvida; Se ele disse, tá falado!; Adorei a girafa!;


Kkkkkkkkk é pq é alto!; Espetacular; Claro que é!; Que linda
girafa!!; Amei; Divina!; E é girafa!; Eu concordo; Delícia de
criação!!!; Uma bela girafa!; Delícia de desenho!; Certeza que
é; Muito bom; Se disse tá dito!; Claro que é; Lindeza; A mais
bela girafa. Miro não seria capaz; E uma girafa linda! Perfeita!
Bem cumpridona! Uau...; Estou até vendo as manchas.
Lindeza!; Pode enquadrar! Já deixou Nuno Ramos no chinelo..
rsrs; E é mesmo!; Concordo!!!!; Que lindooooo.

Como vimos, não se trata de dar voz ao Martim, isso foi algo
importante no começo do século XX, na escola renovada, pois na
cultura da escola tradicional a criança apenas escutava, repetia,
treinava habilidades e copiava o que era proposto por adultos.
O livro Desarollo de la Capacidad Creadora (1961), de Viktor
Lowenfeld – autor do modernismo da arte/educação – aborda a fala da
criança e nos mostra que o título de seu trabalho é seguido da
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interpretação do autor, à luz da psicologia, pontuando os motores da


referida criação.

Vejamos a fala da criança: “Eu e minha irmã na neve (6 anos)”. Agora,


a escrita de Lowenfeld (1961, p. 130, tradução nossa): “As relações
espaciais com a irmã são percebidas de acordo com seu significado
emocional. Ele a está guiando na tormenta, daí as pernas da menina
carecem de importância, por isso foram omitidas. [...]”.
Por que os arte/educadores, vinculados à livre expressão, precisavam
explicar? Para advogar a causa da arte infantil, reiterar que a criança
possui mundos intrínsecos que movem suas criações e que eles
precisam ser considerados, para que a ela não seja proposto que copie
modelos estranhos aos seus desígnios ou use livros para colorir que
geram estereótipos.
Lowenfeld foi um bravo do seu tempo, defensor, entre outras causas,
da natureza genuína da criança, preocupado em criar condições
concretas para que elas pudessem se expressar artisticamente,
construindo seu mundo simbólico e seu estar no mundo equilibrando,
segundo o autor, por meio da arte, o pensar o sentir e o perceber.

Teorias e práticas da arte/educação


As teorias e práticas da arte/educação se transformam no tempo, mas
novas orientações, como sempre, enfrentam resistências e podem ser
trabalhadas com velhas roupagens. A luta pela difusão e adequação
dos novos paradigmas deve ser permanente, especialmente, na
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formação inicial e naquela que alcança o trabalho desenvolvido nas


escolas.
Não se trata apenas de incluir a diversidade das culturas no desenho
curricular, isso porque formas de dominação colonizadoras podem
seguir presentes nas salas de aula. Os conteúdos podem variar, mas o
modo de tratá-los didaticamente pode maquiar o sentido dos termos
desenho curricular não excludente das artes e das culturas que os
alunos trazem consigo.

[...] Quando tentamos transformar a cultura num espaço


imperturbado de harmonia e concordância, onde as relações
sociais existem dentro da forma cultural de um acordo
ininterrupto, endossamos um tipo de amnésia social onde
esquecemos que todo conhecimento é forjado em histórias
que se desenrolam no campo dos antagonismos sociais.
(MacLaren apud hooks, 2017, p.47).

Assim, reiteramos, não se trata apenas de incluir a diversidade das


culturas e das artes no desenho curricular, mas de considerar os
antagonismos e os conflitos imanentes às diferenças nesses campos e
as lutas necessárias na ocupação de espaços nos currículos da
formação inicial e nas escolas de educação básica para abrir veredas
em caminhos obstruídos.

Considerações finais
A arte/educação da escola renovada, principalmente a da Europa e a
dos Estados Unidos, que nasceu no final do século XIX e perdurou até
o final dos anos de 1980 do século XX, em nosso país, influenciou
práticas da livre-expressão, mas não teve o alcance necessário em
grande parte da educação básica. Porém, teve o mérito de visar a
mudanças na percepção da escola e da sociedade sobre a infância (no
singular), acreditando numa educação através da arte, por um futuro
melhor ao formar pessoas sensíveis aos problemas dos demais e ao
meio.
Entretanto, pesquisas contemporâneas nos apontam que contextos
culturais e modos de vida distintos geram assuntos e formas
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específicas de construção e expressão nas imagens das crianças,


citamos aqui a pesquisa de Laven (2020), Cross-Cultural Narrative
Through Graphic Stories in Polisario Refugee Camps.
Considerando tais avanços nas teorias e nas práticas da arte/educação,
a partir dos anos de 2000, no Brasil e no mundo passa-se a considerar,
com mais ênfase, o valor e a especificidade dos contextos culturais na
geração do currículo, entendendo que a eleição do que deve ser
ensinado não cabe simplesmente aos que projetam os documentos
nacionais e os currículos locais e, sim às vozes das comunidades que
consolidam e representam todos aqueles que frequentam os espaços
formativos, definindo um giro enorme no que se fez até então, em
termos do que vai ser ensinado e aprendido.
Emerge uma dinâmica de transformação lenta, como costumam ser as
mudanças curriculares, mas constante, na qual segmentos da
sociedade que foram invisibilizados, apartados, oprimidos e silenciados
reivindicam novas epistêmes curriculares, porque as epistemologias
anteriores sobre o aprender e o ensinar ainda apresentavam uma face
colonizadora, orientando uma educação dita “para todos”, na prática
elitista e segregacionista.
Desse modo, reconhecendo a diversidade das formas didáticas e dos
conteúdos das aulas planejados em contextos escolares e de formação
inicial específicos, entendemos que as propostas da arte/educação não
podem ser únicas, mesmo que haja abertura em modelos indicados.
Somos convidados a salvaguardar as novas orientações para não
serem cooptadas pelo status quo dos que desenham currículos,
tornando velhas as novas formas, para que tenham alcance em larga
escala sem determinações de fora para dentro ou de cima para baixo
nas práticas formativas e espaços escolares. Para os professores, a
participação das artes e das culturas que eles e seus alunos trazem
torna-se fundamental no assentamento das ideias e práticas que
instigam as mudanças.
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John Matthews (2004), que deu aulas de arte em Singapura para


crianças, em sua maioria chinesas, mas também malaias e indianas,
nos alerta que a arte das crianças é influenciada pela interação sutil
com os adultos. Elas constroem significados na interação com outros e
com o contexto. O mesmo processo se passa com os alunos da
pedagogia, ou seja, os significados não emergem sem influências.
Como dar aulas é um processo de criação autoral, o professor de arte
constrói, descontrói e reconstrói sua poiésis na interlocução de suas
ideias e práticas com os pares das equipes escolares, da comunidade
mais ampla e da produção de conhecimento no campo, a partir de
perspectivas políticas, históricas e sociais. Não se trata de riscar
conteúdos e autores do desenho curricular da formação dos pedagogos
e das escolas, mas de estudá-los em equidade com as produções
artísticas dos grupos que foram alijados de participação social, para
que suas representações identitárias ocupem seu lugar de direito e
sejam salvaguardadas, desde os anos iniciais da educação básica.
Nesse sentido, Morin (2022) situa bem a questão da democracia na
contemporaneidade, podemos emprestar suas ideias para a
democratização do saber no âmbito da participação social nos
desenhos curriculares, como chave da transformação e do cuidado
permanente que deve ser garantido aos direitos humanos.

Referências
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 2. ed. São Paulo:
Perspectiva, 1972.

BRANDÃO, Ana Carolina. A roda e a valorização das culturas


infantis na creche em bases da pedagogia decolonial. São
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O som ao redor (2012), de Kleber Mendonça Filho. Disponível em:


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Pixote: a lei do mais fraco (1981), de Héctor Babenco. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=trPFseUISzM

Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos

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