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Prezado Marvim,

Espero que você esteja bem. Já faz algum tempo desde a última vez em que
nos vimos, naquele congresso sobre docência no ensino superior. Posso te garantir
que nossas conversas, entretanto, permaneceram reverberando de forma latente em
minhas reflexões e debates movidos em minhas próprias aulas e grupos de estudos,
juntamente com alunos e outros pesquisadores. Caso não se lembre de qual linha
de reflexão me refiro, posso recordá-la: discutimos a respeito dos desafios e
dificuldades enfrentados por nós, professores universitários, com as mudanças no
perfil dos ingressantes no ensino superior. Você chegou a comentar sobre a
sensação de aumento de aulas lecionadas por você consideradas, na sua própria
avaliação, fracassadas nos objetivos estipulados em seu planejamento. Aulas essas
que sempre funcionaram muito bem com sucessivas gerações de estudantes que
adentravam a sua sala de aula. Ainda que toda aula seja única e sempre haja
adaptações necessárias, obviamente, ao grupo que se encontra ali presente,
algumas conformações de turma parecem exigir uma reorganização muito mais
profunda dos princípios norteadores do planejamento, das metodologias, dos
conteúdos e organização didática dos encontros. E eu acredito, cada vez mais, que
meu campo de pesquisa, o ensino-aprendizagem da linguagem artística teatral,
pode lançar luz sobre algumas pistas fundamentais neste debate.
Esse processo de mudança no perfil do corpo dicente das instituições ocorre,
como discutimos naquela ocasião, em decorrência natural do conjunto de políticas
públicas elaboradas e implementadas nos últimos 20 anos visando a expansão do
acesso educacional ao ensino superior. É sabido o papel valoroso desse processo
que possibilitou ao país não somente avançar na democratização do acesso ao
ensino superior por parcelas populacionais históricamente excluídas, mas também
modificar profundamente o perfil de pesquisadores e da própria produção
acadêmica. Ao abrirmos espaço em tal ambiente acadêmico para que corpos
atravessados por distintas e peculiares vivências sociais marginalizadas possam
habitar e se integrar à instituição universitária, é natural que as perspectivas
presentes na produção acadêmica também se alarguem e modifiquem.
O que não é obvio nesse processo de mudança são as modificações, ou
adaptações, necessárias que nós, professores universitários, devemos implementar
em nossos planos de aula, projetos político-pedagógicos e recursos didáticos em
sala de aula. Quais serão as saídas possíveis e viáveis para melhor responder a tais
questões? Andei refletindo sobre isso e acredito ter algumas pistas fecundas para
pensarmos, juntos, em modos de articular tais respostas.
Começo destacando que minha área de trabalho e pesquisa é justamente o ensino-
aprendizagem da linguagem teatral. Leciono as disciplinas de Metodologia do
Ensino da Artes Cênicas, Jogos Teatrais e Teatro-Educação. Tenho um franco
interesse também por tal abordagem artística na escola pública, propiciando tal
experiência ao educando inserido nas redes estaduais e municipais da cidade de
São Paulo.
Eleger o teatro-educação como modo de disputar simbolicamente o espaço da
escola decorre de atitude atenta a todo o percurso histórico pelo qual esse binômio
passou. Desde a implementação da última versão da LDB (lei 9394/96) que
promovia mudanças significativas ao retirar a disciplina “Educação Artística” e ao
inserir “ensino da arte” como conteúdo curricular obrigatório da educação básica, até
o presente, o teatro-educação sofreu diversas modificações das ideias que
fundamentam seu conceito. Nota-se que, anteriormente, o teatro-educação era
concebido a partir de uma perspectiva espontaneísta, onde o foco da exploração
artística em sala de aula estava em provocar a espontaneidade nas ações do
educando. Essa perspectiva, ocorrida em função do movimento da Escola Nova
(corrente de renovação do ensino que ganhou espaço no início do século XX),
representa o oposto do que se busca, atualmente, no campo do teatro-educação. A
produção contemporânea nessa área possui práticas pedagógicas consolidadas,
tais como o Jogo Teatral, teatro do oprimido e a peça didática. Todas essas práticas
possuem, em comum, o fato de se valerem do prazer do jogo para estruturar um
espaço de apropriação da linguagem teatral, instigando os educandos a produzirem
as próprias criações e reflexões críticas a partir dessa apropriação em cena. Um
jogo teatral de improviso, a elaboração de uma cena, o simples “debate-análise” de
um espetáculo assistido pelo educando inserido nessa experiência, apenas pode se
dar quando o mesmo se vale de seu próprio repertório de vida, de suas
experiências, conhecimento, opiniões, para elaborar uma resposta frente a todos os
demais participantes. A autonomia, a reflexão crítica e a construção coletiva dos
debates e da cena teatral dentro desse espaço de experimentação são pontos
fundamentais dessas metodologias.
Pontuo, com a exposição acima, a afirmação de que a experimentação teatral
(e mesmo a artística, de um modo geral) necessariamente se adequa às distintas
conformações de grupo com as quais nos deparamos em sala de aula. É somente
se adequando às especificidades de cada grupo que é possível ter coerência na
elaboração de uma aula de teatro e, por exemplo, na construção de uma
dramaturgia a partir das cenas levantas por alunos em improviso. O foco no
alargamento do potencial do sujeito que se permite experimentar essa linguagem
torna o ensino-aprendizagem do teatro valoroso para toda e qualquer pessoa. O
envolvimento com essa arte pode ampliar o espectro da percepção que crianças,
jovens e adultos têm de si e do mundo (seu mundo, seu contexto de vida) e isso só
ocorrerá se tais contextos de vida dos alunos puderem emergir em cena a partir de
um ponto de vista crítico levado por eles. Ou seja, estou destacando o caráter
intrinsecamente pedagógico do teatro em sala de aula.
Observar tal aspecto pedagógico me insita, deste modo, a sugerir que
pensemos na pertinência em pensar nossa aula enquanto um processo artístico-
pedagógico. Assim como olhar os alunos enquanto estudantes-artistas que
necessitam, obviamente, de uma direção e condução cuidadosa na exploração de
habilidades e conteúdos necessários para sua formação, mas que demandam, por
outro, lado, de um espaço onde possam elaborar sua própria resposta a partir de
tais explorações e apropriações. Para que fique evidente o que tento sugerir, reforço
que não estou propondo que todas as aulas ensinem o teatro ou ocorram numa sala
de ensaio, mas sim que todo processo de ensino-aprendizagem (seja lá de qual
conteúdo) se valha de uma característica própria do processo artístico que é a
autonomia na apropriação daquele conteúdo, uma elaboração que estudante faz e
que o permite lançar um olhar próprio sobre tal assunto, assim como um espectador
faz ao assistir a um espetáculo teatral. Talvez seja propício você incluir em seu
programa para o semestre, planejamento de aula e avaliação, o espaço de
intervenção do aluno, espaço onde os participantes desse processo possam trocar
perspectivas sobre o conteúdo, possam elaborar cada qual a sua maneira uma
resposta às questões levantadas, fazendo relações com seus próprios contextos de
vida.
Todo processo artístico finaliza com uma criação (um “produto final”) que
concretiza todo o percurso percorrido, suas contradições, minúcias, e elaborado por
todo o grupo. Uma elaboração coletiva e, ao mesmo tempo, tecida individualmente.
Como seria transpor esse pensamento para uma aula de cálculo, que é a disciplina
que você leciona? Quais elaborações seriam possíveis pelos estudantes a partir de
tantos contextos de vida distintos? Será que todos eles encaram os conteúdos
matemáticos de cálculo da mesma maneira? Será que todos utilizam a linguagem
matemática para compreender aspectos semelhantes de suas respectivas vidas?
Como esse conteúdo modifica o modo como conduzem ações cotidianas em seus
contextos? Convidá-los a expor tais peculiaridades pode fazer com que sua aula
seja preenchida por possibilidades muitos heterogêneas e complemetares de
observar o conteúdo. Por que não concretizar esse processo numa espécie de
dossiê matemático, reflexivo e elaborado coletivamente? Ou ainda um documentário
entrevistando a cada um dos alunos e convidados que expusessem debates
pertinentes a esse grupo?
Em suma, convido você a refletir sobre a potencialidade de se pensar o
espaço pedagógico em sala de aula a partir de perspectivas oferecidas pelo ensino-
aprendizagem da educação artística e, mais específicamente, do teatro. Gostaria
também de frizar o absoluto interesse e desejo em continuar este debate contigo,
assim como o anseio em receber sua resposta em carta para que tais assuntos
possam ser tensionados a partir de sua própria perspectiva sobre eles. Desde já,
agradeço o debate e expresso minhas saudades.

Abraços,

Danilo Arrabal da Silva

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