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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ - UECE

FACULDADE DE FILOSOFIA DOM AURELIANO MATOS - FAFIDAM


CURSO DE GRADUAÇÃO EM LICENCIATURA PLENA EM GEOGRAFIA

JOSÉ NATANAEL NUNES PEREIRA DE LIMA

HABITAÇÃO E CIDADE: O PROGRAMA “MINHA CASA MINHA VIDA” EM


RUSSAS – CEARÁ

LIMOEIRO DO NORTE – CEARÁ


2015
JOSÉ NATANAEL NUNES PEREIRA DE LIMA

HABITAÇÃO E CIDADE: O PROGRAMA “MINHA CASA, MINHA VIDA” EM


RUSSAS – CEARÁ

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Licenciatura
Plena em Geografia da Faculdade de
Filosofia Dom Aureliano Matos da
Universidade Estadual do Ceará, como
requisito parcial para à obtenção do grau
de Licenciado em Geografia.

Orientador: Me. João César Abreu de


Oliveira Filho.

LIMOEIRO DO NORTE – CEARÁ


2015
AGRADECIMENTOS

Essa conquista só foi possível, primeiramente, graças a todo o zelo e


carinho que a minha família sempre teve e tem por mim. Em casa eu aprendi e
aprendo a educação que todo mundo cobra e que poucos nos ensinam. Agradeço
especialmente à minha Mãe, Mundinha, por todo o afeto, carinho e os esforços
realizados para superar as limitações que a vida nos deu e por me oportunizar
conhecer e alcançar os benefícios da educação. À minha Irmã, Natália, pelo carinho,
companheirismo, amizade e compreensão desde o início e para sempre. Ao meu
Pai, Zé, pelas contribuições à minha formação. Ao Padrinho Ricardo, pelas ajudas e
por sempre me dizer: “um dia dá certo”. Às minhas tias, tios, avós e primos que a
sua maneira me ajudaram a chegar até aqui.
À Geografia, que mudou a minha vida. Neste curso adquiri saberes,
conheci muitos lugares e pessoas e fiz grandes amizades. Amigos de aventuras,
eventos, aulas de campo, de GeoCafofo e LAGEO. Amigos de muitas e agradáveis
madrugadas, companheiros de estudos, risos e lágrimas... Nunca esquecerei o
quanto aprendi, vivi e cresci junto de vocês!
Especialmente grato à Anjerlany Oliveira, pelo carinho, parcerias,
conselhos e broncas, você foi/é uma grande irmã! À Andreza Nara, pelos abraços,
mimos e consideração. À Adriana Moreira e Milena Holanda pela companhia, troca
de saberes, histórias, angustias e muitos risos. À Diene Karine, pelo carinho,
companheirismo e conversas que muito me ensinaram sobre Geografia, Ensino e
tantas outras coisas. À Maria Valéria, pelos risos bobos, abraços apertados e
cafunés afetuosos. À Jéssica Liana, pelas ajudas, otimismo e encorajamentos.
À Cirlane Andréia, pelos sorrisos apaziguadores e abraços confortantes.
À Micarla Araújo, pelo carinho e por ter estado sempre disponível a me ajudar. À
Raianny Sara, pela confiança e momentos memoráveis. À Aline Maia, Silvania Maia
e Simone Lemos, pelo companheirismo e serenidade. À Monikarla Bezerra e Greyce
Kelly, pelo afeto. Ao João Joab e ao Railson Carlos pela camaradagem. Ao Janiel
Moreira e ao Jorley Márcio pelas parcerias em tantos trabalhos. E à Janne Kleia,
pela força e autoestima de suas palavras e presença.
À Adriana Lima, Edilmar Paz, Nádia Freires, Lais Paula, Alison Cleudo,
Herillane Oliveira, Erica Sena, Olivia Maísa, Luana Carla, Melícia Almeida, Lucas
Moura, Layanne Cavalcante, Ana Paula, Emanuelle Cunha, Jocieldo Johnatan,
Edimara Silva, Evilene Oliveira, Raquel Tereza, Zilviely Diógenes, Gildete Granja,
Alexandre Sena, Ricardo Casundé, Maximiliano Guimarães e tantos outros que de
alguma maneira contribuíram para que o percurso fosse de crescimento.
Aos Professores do curso de Geografia da FAFIDAM, especialmente ao
Gedeon Carneiro, que muito me ajudou e ensinou sobre (e na) Geografia e por ter
me dado as primeiras oportunidades de deslumbramento e crescimento acadêmico.
À Anezilany Gomes (a Lana), por todos os ensinamentos nas disciplinas, no PIBID e
nas primeiras orientações de TCC. À Andrea Cavalcante, Érika Brito e Leonor de
Maria, por aulas de Geografia Física tão instigantes, prazerosas e empolgantes. Aos
Professores Raimundo Jucier, Luziany Rocha, Bernadete Freitas, Cleuton Almeida,
Sergiano Araújo, Vitor Bento e Clebio Lopes, efetivos nos saberes e ensinamentos
oportunizados. E ao João Cesar, pelas indicações, compreensão, confiança e
companheirismo na elaboração deste trabalho.
Aos companheiros do PIBID Geografia FAFIDAM. Especialmente à
Professora Rosa Ely, que muito contribuiu para minha formação como futuro
Professor, e à toda comunidade da Escola Lauro Rebouças de Oliveira. À
Professora Daniely Guerra e ao Professor Erison Pereira por todos os debates e
parcerias. E à todos bolsistas, citados anteriormente. Aprendi muito com vocês.
Aos companheiros de outras instituições e cursos. Especialmente aos
colegas do CO-EEEGE 2012: Eduana, Patrícia Amorim, Ohana Alencar, Vanessa
Almeida e Nathanael Ferreira. Ao João Vitor pela troca de ideias e percepções
durante a escrita de sua dissertação. Ao Yanchê, pela amizade e abstract! À Jéssica
Coelho e Luciano Thiago pela amizade e ajuda na superação da timidez.
À todos que contribuíram na construção deste trabalho. Principalmente as
pessoas que gentilmente me receberam em suas casas e aos corretores imobiliários
que me forneceram dados e informações sobre o PMCMV em Russas. E à você que
me ajudou nessa caminhada e que agora lê isso tudo e não encontra seu nome
aqui.
Aos Professores Gedeon Carneiro e Heronilson Freire, por gentilmente
aceitarem avaliar esse trabalho e ofertar considerações e indicações para seu
aprimoramento.
E à Deus, por me oportunizar conviver com pessoas tão especiais como
as listadas acima.
RESUMO

O processo de urbanização brasileiro ocorreu e ocorre, em suma,


desarticulado de uma política urbana que oriente e regularize a reprodução do
espaço urbano, ampliando uma série de problemáticas sócio-espaciais já
decorrentes da diferenciação socioeconômica. A carência de moradias é um desses
problemas e vem recebendo ao longo dos anos diferentes ações, mediadas por
interesses e parcerias do Estado e do capital privado. Dentre essas alternativas
destaca-se atualmente o “Programa Minha Casa Minha Vida”, instituído pelo
Governo Federal em 2009 com o objetivo de construir moradias para famílias com
renda mensal de até 10 salários mínimos. O Programa vem apresentando grandes
resultados quantitativos, no entanto, tem sido alvo de inúmeras críticas, sendo a
maioria referente à hegemonia do setor privado e a reprodução da segregação. Essa
pesquisa busca entender o papel e os efeitos do Programa Minha Casa Minha Vida
na (re)produção do espaço urbano da cidade de Russas, Ceará. Buscamos
evidenciar os processos sócio-espaciais que podem estar sendo gerados ou
influenciados pelo Programa na cidade, mostrando suas influências no dinamismo
do mercado imobiliário, identificando os agentes diretamente relacionados à sua
execução e representando cartograficamente a distribuição dos empreendimentos
comercializados em seu âmbito. Apresentamos também um breve histórico da
formação do espaço urbano de Russas e das políticas habitacionais brasileiras. A
pesquisa está pautada em uma metodologia qualitativa composta por coleta e
análise de dados e documentos, revisão bibliográfica, aulas de campo e diálogos
com populares, usuários dos empreendimentos e agentes imobiliários. Constata-se
a predominância de contratos na Faixa 2 do PMCMV e que este tem estimulado
significativamente o setor imobiliário em Russas, impulsionando a produção
empresarial da habitação na cidade, originando novos agentes produtores do
espaço urbano, padrões arquitetônicos e empresas do ramo da construção civil.
Pode-se afirmar que o PMCMV e a (re)produção do espaço urbano em Russas vem
mantendo e reforçando a segregação socioespacial, um precário acesso à habitação
e à cidade, o espraiamento urbano e a outras problemáticas urbanas.

Palavras-Chave: Habitação. Programa Minha Casa, Minha Vida. Russas - Ceará.


ABSTRACT

The Brazilian urbanization process occurred and it occures, in short,


disjointed of an urban policy to guide and to regulate the reproduction of urban
space, expanding a series of socio-spatial problems already arising from the socio-
economic differentiation. The lack of housing is one of those problems and it has
received over the years different actions, mediated by interests and partnership of
state and private capital. Among these alternatives currently stands out the “Minha
Casa Minha Vida” program, established by the Federal Government in 2009 in order
to build houses for families with monthly income of up to 10 minimum wages. The
program has shown great quantitative results, however, it has been the target of
considerable criticism, mostly related to the hegemony of the private sector and the
reproduction of segregation. This research seeks to understand the role and the
effects of Minha Casa Minha Vida in the (re)production of urban space in town of
Russas, Ceará. We seek to highlight the socio-spatial processes that may have been
generated or influenced by the Program in town, showing its influence on the
dynamics of the housing market, identifying the agents directly related to its
implementation and cartographically representing the distribution of the enterprises
sold in its scope. It is also presented a brief history of the formation of urban space
from Russas and about the Brazilian housing policies. The research is guided by a
qualitative methodology compound of collecting and analyzing data and documents,
literature review, field classes and dialogues with popular, users of enterprises and
real estate agents. It is noted the predominance of contracts in MCMVP Track 2, and
this has significantly stimulated the real estate industry in Russas, boosting the
business production of housing in town, creating new producing agents of the urban
space, architectural standards and companies in the construction industry. It can be
said that the MCMVP and the (re)production of urban space in Russas has been
maintaining and enhancing the socio-spatial segregation, the precarious access to
housing and the town, the sprawl of the town and to other urban problems.

Key words: Housing. Minha Casa Minha Vida Program. Russas - Ceará.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figuras:

Figura 01 - Localização da cidade de Russas - CE................................................... 15


Figura 02 - Evolução da ocupação urbana do município de Russas......................... 37
Figura 03 - Anuncio de empreendimento imobiliário localizado próximo a UFC em
Russas ................................................................................................... 43
Figura 04 - Divulgação de empreendimento imobiliário localizado próximo a UFC
em Russas ............................................................................................. 43
Figura 05 - Exemplo de imóvel vendido através do PMCMV com valor acima do
teto máximo ............................................................................................ 66
Figura 06 - Primeiros empreendimentos comercializados através do PMCMV em
Russas ................................................................................................... 71
Figura 07 - Exemplo de conjunto de casas no bairro Vila Ramalho .......................... 72
Figura 08 - Imagem ilustrativa do Condomínio Residencial Santiago I e II ............... 74
Figura 09 - Imagem ilustrativa do Condomínio Paraiso de Russas ........................... 75
Figura 10 - Residencial Village Catumbela I.............................................................. 76
Figura 11 - Espacialização de empreendimentos comercializados através do
PMCMV em Russas, por Faixas e Bairros ............................................. 78
Figura 12 - Conjunto de casas localizadas no bairro Tabuleiro do Catavento .......... 80
Figura 13 - Conjunto de casas no bairro Nossa Senhora de Fátima ......................... 81
Figura 14 - Anuncio de empreendimento localizado no bairro Planalto da
Catumbela .............................................................................................. 81
Figura 15 - Perspectiva de inserção urbana dos empreendimentos do PMCMV em
Russas por faixa e bairros ...................................................................... 83

Gráficos:

Gráfico 01 - Evolução da população total, urbana e rural do município de Russas .. 38


Gráfico 02 - Total de UHs contratadas através do PMCMV em Russas por ano ...... 65
Tabelas:

Tabela 01 - Valores das Faixas de renda por fase do PMCMV................................. 59


Tabela 02 - Esquematização das informações contidas no site do Ministério das
Cidades .................................................................................................. 60
Tabela 03 - Valores máximos das UHs da Faixa 1 por características dos
municípios cearenses ............................................................................. 61
Tabela 04 - Valores máximos das UHs das Faixas 2 e 3 para municípios com
população entre 50 e 250 mil habitantes ................................................ 62
Tabela 05 - Soma dos valores dos contratos realizados entre 2009 e 2014 ............. 65
Tabela 06 - Distribuição dos Empreendimentos pelas Faixas do PMCMV ............... 68
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CEF: Caixa Econômica Federal.


BB: Banco do Brasil.
BNH: Banco Nacional da Habitação.
COHAB: Companhia de Habitação Popular.
FAFIDAM: Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos.
FCP: Fundação da Casa Popular.
IAPs: Institutos de Aposentadorias e Pensões.
IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
IPECE: Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará
PDDU: Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano.
PDP: Plano Diretor Participativo.
PNAD: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.
PMCMV: Programa Minha Casa, Minha Vida.
PROURB: Projeto de Desenvolvimento Urbano e Gestão de Recursos Hídricos.
SANBRA: Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro S/A.
RICASA: Russas Indústria Comércio e Agricultura S/A.
RICOL: Russas Indústria e Comércio de Óleos Ltda.
UECE: Universidade Estadual do Ceará.
UFC: Universidade Estadual do Ceará.
UHs: Unidades Habitacionais.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 13

2 A CIDADE E O URBANO NO BRASIL.................................................................. 23


2.1 A PRODUÇÃO DA CIDADE E DO ESPAÇO URBANO EM RUSSAS ............ 29

3 ESTADO, CAPITAL E O “PROBLEMA” DA HABITAÇÃO NO BRASIL.............. 46


3.1 A HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL NO BRASIL: BREVE HISTÓRICO
DAS POLÍTICAS HABITACIONAIS ................................................................ 52
3.2 CONHECENDO O PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA........................ 58

4 O PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA NA CIDADE DE RUSSAS ............. 64


4.1 AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DOS EMPREENDIMENTOS ............. 70
4.2 MINHA CASA E A CIDADE: A DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DO PMCMV EM
RUSSAS ......................................................................................................... 77
4.3 NOVAS DINÂMICAS E AGENTES NA PRODUÇÃO DA HABITAÇÃO E DO
ESPAÇO ......................................................................................................... 86

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 89

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 93
13

1 INTRODUÇÃO

As cidades são repletas de singularidades que se distinguem de uma para


outra. O seu tamanho, o número de habitantes, o desenho das ruas, o
desenvolvimento do comércio e as taxas de urbanização são alguns dos elementos
que as caracterizam e as distinguem quantitativa e qualitativamente.
Essas características refletem e constituem o espaço urbano que é
material e ideologicamente construído por sujeitos concretos que o (re)produz,
regulamenta e o (re)organiza segundo seus interesses e práticas, são os chamados
agentes produtores do espaço urbano (CORRÊA, 2011).
Dessa maneira, podemos observar as cidades como grandes cenários
histórica e continuamente construídos pela sociedade por meio do trabalho e onde o
seu cotidiano e as suas paisagens refletem as inúmeras problemáticas decorrentes
da diferenciação da apropriação e do uso dos bens, coletivos e individuais, naturais
e/ou artificiais, pelos sujeitos que as constroem.
A demanda por moradias é uma dessas problemáticas existentes, ou,
melhor dizendo, produzidas no espaço urbano. Isso porque, acompanhando a lógica
econômica do sistema capitalista e seguindo as determinações dos agentes
controladores das propriedades urbanas e do mercado imobiliário, a terra urbana
(geralmente parcelada em lotes) e a habitação, possuem valores e taxas de
crescimento que fogem do esperado e do possível de pagar, sobretudo pelos grupos
de cidadãos com menor poder aquisitivo, impulsionando a desigualdade no acesso à
terra e, consequentemente, à moradia.
Essa disparidade do acesso à terra, vai causar diferenciações quanto aos
padrões de ocupação e estruturação do espaço urbano, gerando a segregação e a
fragmentação sócio-espacial 1 . Nas palavras de Carlos (1999, p. 23) “o uso
diferenciado da cidade demonstra que esse espaço se constrói e se reproduz de
forma desigual e contraditória. A desigualdade espacial é produto da desigualdade
social.”.

1
Neste trabalho os termos sócio-espacial e socioespacial são considerados de acordo com as
proposições de Souza (2013). Para esse autor, em socioespacial (sem hífen) “o ‘social’ meramente
qualifica o espacial.” Não fazendo “referência direta às relações sociais.”. Já em sócio-espacial “o
‘sócio’, longe de apenas qualificar o ‘espacial’, é, para além de uma redução do adjetivo ‘social’, um
indicativo de que se está falando, direta e plenamente, também das relações sociais.”. (p. 15/16).
14

Além disso, decorre da incapacidade e da omissão do setor privado em


produzir e vender o quantitativo de habitações demandadas pela população por
preços acessíveis, a necessária atuação do Estado como agente responsável pela
remediação da falta de moradias. Nascem dessa “responsabilidade” do Estado as
políticas habitacionais, das quais se destacam no Brasil, remotamente o Banco
Nacional da Habitação (BNH) e recentemente o Programa Minha, Casa Minha Vida
(PMCMV), ambos promovidos e gerenciados pelo Estado em parceria com o setor
privado.
Para orientar essas políticas públicas que visam mitigar os transtornos
sociais e espaciais do “problema da habitação” e auxiliar os seus estudos, foi criado
o conceito de déficit habitacional, um indicador quantitativo da demanda por
moradias. No Brasil, esse indicador é elaborado utilizando dados provenientes dos
Censos Demográficos e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e
é coordenado pela Fundação João Pinheiro em parceria com o Ministério das
Cidades.
No entanto, os diferentes programas criados para incentivar a produção
de habitações por meio da parceria entre Estado e setor privado vêm recebendo
inúmeras críticas ao longo do tempo, sobretudo quanto à destinação de grande parte
dos recursos para as camadas sociais que não configuram a maior porcentagem do
déficit habitacional, bem como quanto à localização dos empreendimentos e a
carência de serviços públicos nos seus arredores. Esses problemas derivam
principalmente da autonomia e da liberdade que o setor privado possui quanto à
escolha locacional dos empreendimentos e da incapacidade e falta de
comprometimento do Estado para com a oferta de bens e serviços nas suas
adjacências.
Esses fatos não são excludentes, pois entre os principais motivos que o
capital imobiliário utiliza para a escolha da localização dos empreendimentos está o
preço da terra urbana, que no modo de produção capitalista tem seu valor
determinado principalmente pela sua localização em relação aos principais
equipamentos e a oferta de serviços públicos, bem como pela busca da valorização
do seu entorno, uma vez que a futura oferta dos serviços públicos nesses espaços
tende a valorizar suas adjacências.
15

A maioria dos processos e relações apresentados anteriormente


encontram-se em vigorosa expansão na cidade de Russas (Figura 01), localizada na
Região do Baixo Jaguaribe, à 150 km de distância da capital cearense, Fortaleza.

Figura 01 - Localização da cidade de Russas - CE

Fonte: Base cartográfica IBGE (2010). Elaborado pelo autor.


16

A efervescência desses processos em Russas poderia ser tomada e


justificada pelo contínuo crescimento que a cidade vem apresentando nos últimos
anos, incentivando a abertura de novos loteamentos e o desenvolvimento do
mercado imobiliário. No entanto, parece-nos, que o incentivo proporcionado pelo
financiamento habitacional para construção e aquisição de moradias, ofertado pelo
Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) é o principal motivador da atual
expansão do mercado imobiliário e da construção civil nesta cidade.
Dentro desta perspectiva, este trabalho nasceu da seguinte inquietação:
quais são os processos decorrentes do crescimento da comercialização de moradias
por meio de financiamentos e subsídios oriundos do Programa Minha Casa Minha
Vida na cidade de Russas?
Deste modo, iniciamos esta pesquisa com a hipótese de que, assim como
em outros centros urbanos, entre os efeitos espaciais do Programa estariam os de
(re)produção da periferia, da segregação residencial e da expansão urbana.
Diante dessas hipóteses e da efervescência com que esses processos se
demonstram na paisagem da cidade, fechamos o objetivo principal desta pesquisa
como sendo o de entender o processo de (re)produção do espaço urbano a partir do
Programa Minha Casa Minha Vida na cidade de Russas.
A partir deste objetivo geral elaboramos quatro objetivos específicos, os
quais se propõem:
 Mostrar o papel do Estado, por meio do Programa “Minha Casa, Minha
Vida” no dinamismo do mercado de produção e aquisição de moradias.
 Identificar os agentes produtores do espaço urbano relacionados à
produção da habitação na cidade.
 Representar cartograficamente a localização e distribuição dos
empreendimentos.
 Evidenciar os processos e práticas sócio-espaciais decorrentes do
PMCMV.
Através desses objetivos é possível perceber que o recorte espacial
utilizado nessa pesquisa refere-se ao espaço urbano da cidade de Russas. No
entanto, essa delimitação não repreende a escala de atuação do mercado imobiliário
com utilização dos subsídios e financiamentos do PMCMV e muito menos dos
processos sócio-espaciais deles decorrentes. Por isso, como será visto no decorrer
do trabalho, consideramos também espaços que ainda se encontram fora do atual
17

limite da zona urbana do município, pois esses são essenciais para o alcance dos
objetivos traçados e para pensarmos a cidade e o urbano em continua produção e
expansão.
Já o recorte temporal da pesquisa tem o foco na delimitação entre o início
da utilização do financiamento habitacional do PMCMV em Russas, qual seja o ano
de 2009, e os dias atuais, o ano de 2015. No entanto, ressalva-se que os dados
disponibilizados pelo Ministério das Cidades quanto aos contratos realizados pelo
PMCMV na cidade de Russas referem-se ao período entre 2009 e 2014. Assim, as
formulações sobre o ano de 2015 têm como base os trabalhos de campo e as
entrevistas e conversas que realizamos com alguns sujeitos diretamente envolvidos
com o mercado imobiliário e com o PMCMV na cidade de Russas, especificamente
com promotores imobiliários e moradores de residências adquiridas através do
Programa.
Quanto a escolha da metodologia utilizada para alcançarmos os objetivos
definidos, tivemos como base as reflexões teóricas oportunizadas ao longo da nossa
formação acadêmica e mais precisamente nos estudos realizados para a elaboração
deste trabalho. Assim, se faz necessário apresentarmos algumas ponderações sobre
os pressupostos metodológicos que tomamos como norteadores da pesquisa.
Inicialmente é preciso expor que a nossa filiação metodológica faz juízo
da diferenciação entre o método (ou método de interpretação, método de
abordagem, método filosófico) e os procedimentos metodológicos (ou método de
pesquisa, métodos de procedimentos). O método se referiria as questões político-
filosóficas que norteiam os posicionamentos do pesquisador. Já os procedimentos
metodológicos dizem respeito ao conjunto de técnicas, elementos e dados utilizados
para se construir a pesquisa. Nas palavras de Morais e Costa (1987):

[...] O primeiro [o método de interpretação] diz respeito à concepção de


mundo do pesquisador, sua visão da realidade, da ciência, do movimento
etc. É a sistematização das formas de ver o real, a representação lógica e
racional do entendimento que se tem do mundo e da vida. O método de
interpretação refere-se, assim, a posturas filosóficas, ao posicionamento
quanto as questões da lógica e, por que não dizer, à ideologia e à posição
política do cientista. O método é, nesse sentido, o elemento de relação
entre os vários campos da ciência e de cada um com a Filosofia. [...].
[...] Já o método de pesquisa refere-se ao conjunto de técnicas utilizadas em
determinado estudo. Relaciona-se, assim, mais aos problemas operacionais
da pesquisa que a seus fundamentos filosóficos. [...]. (p. 27).
18

Dada essa formulação de método e observado nossa afinidade com


abordagens que interpretam a realidade por meio das contradições das relações
econômicas e sociais, das suas implicâncias espaciais e do continuo movimento de
suas reproduções dentro do modo de produção capitalista, definimos que o
materialismo histórico e dialético é o método que melhor se adequa ao nosso objeto
de estudo.
Esse método desenvolveu-se a partir das formulações elaboradas por
Karl Marx e Friedrich Engels e já passou por diversas análises, críticas,
reformulações e reafirmações como método adequado para as investigações das
ciências sociais. Esse movimento é fundamental para garantir o avanço do debate
metodológico e assim a busca por uma teoria e ciência que consiga cada vez mais
dar conta da realidade de forma totalitária.
No materialismo histórico e dialético a realidade não depende dos sujeitos
para existir, no entanto, cabe aos homens a contínua busca pelo desvendamento e
compreensão dos processos e das contradições que constitui o real. Essa
perspectiva é uma síntese da diferença entre a dialética pensada por Marx e Engels
e a criada por Hegel, que priorizava os sujeitos como criadores da realidade. Tal
explicação foi feita por Marx da seguinte forma “Para Hegel o processo do
pensamento [...] é o criador do real, e o real é apenas sua manifestação externa.
Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material transposto para a
cabeça do ser humano e por ele interpretado.” (MARX, 1968 apud PAULO NETTO
2011, p. 21).
Nesse sentido,

Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias e


assim por diante, mas os homens reais ativos, tal como são condicionados
por um terminado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo
intercâmbio que a ele corresponde [...]. A consciência não pode ser jamais
outra coisa do que o ser consciente e o ser dos homens é o seu processo
de vida real. [...] Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que
determina a consciência. (MARX-ENGELS, 2007 apud PAULO NETTO,
2011).

Dessa maneira, a realidade possui uma vertente material e histórica, que


é construída pelos sujeitos, por meio da sua existência e das suas relações entre si,
como sociedade, e com a natureza, compreendida como espaço, através do
trabalho.
19

Assim, a compreensão da realidade se forma por meio da consciência


analítica que os sujeitos devem ter do espaço em que estão inseridos e que
contínua e dialeticamente constroem.
Comentando a contribuição das formulações de Marx e Engels para os
estudos sobre a cidade, Carlos (2007) sucinta que “é, antes de mais nada, um
método de análise da prática social que toma a realidade como movimento cujas
crises, inerentes ao processo de reprodução, podem ser um elemento elucidativo
dos seus conteúdos.” (p. 20).
Essas perspectivas quebram com as tendências do positivismo e
reafirmam que a consciência humana, como a criadora da interpretação da
realidade, reflete nessa interpretação seus anseios sociais e filiações políticas
metodológicas e assim seria inegável a participação das ideologias nas
problematizações científicas. Nas palavras de Paulo Netto (2011):

Isto significa que a relação sujeito/objeto no processo do conhecimento


teórico não é uma relação de externalidade, tal como se dá, por exemplo,
na citologia ou na física; antes, é uma relação em que o sujeito está
implicado no objeto. Por isso mesmo, a pesquisa - e a teoria que dela
resulta - da sociedade exclui qualquer pretensão de "neutralidade",
geralmente identificada com "objetividade".
Entretanto, essa característica não exclui a objetividade do conhecimento
teórico: a teoria tem uma instância de verificação de sua verdade, instância
que é a prática social e histórica. (p. 23, grifos originais.).

Segundo esse mesmo autor a verificação da objetividade científica se dar


no próprio movimento da sociedade e da ciência. Ou seja, quando alcançada a
objetividade uma teoria permaneceria sendo utilizada como pressuposto verídico
para o estudo da realidade ao longo da história. Para exemplificar, o autor utiliza as
concepções de Marx sobre a acumulação capitalista, que permanece em uso e
dando resultados coerentes.
Assim, os estudos sobre a cidade, o espaço urbano e a sociedade que os
constrói, perpassam diversas abordagens e percepções sobre as problemáticas e
complexidades que os centros urbanos abrigam. Essa diferença nasce
fundamentalmente dos posicionamentos metodológicos que os autores se filiam e
que refletem na maneira com que buscam pensar e elucidar as complexidades da
cidade e do espaço urbano.
Nesse sentido, buscamos desenvolver essa pesquisa com base
principalmente em estudos que utilizam as premissas do materialismo histórico e
20

dialético nas suas análises, mesmo quando essa não é claramente dita ou
defendida. Tem-se então a preferência pelas teorias que conferem o sujeito
pesquisador como membro vivo e construtor da realidade que estuda, podendo a
partir de sua vivência e experiência, conferir sentidos e justificativas aos processos
econômicos, sociais e espaciais, sobretudo por meio da correlação entre estes como
manifesto e concretização da realidade.
Completando a metodologia traçada para alcançarmos os objetivos da
pesquisa, utilizamos dos seguintes procedimentos metodológicos: levantamento
bibliográfico; pesquisas e interpretação de dados e documentos; e trabalhos de
campo. Esses procedimentos serão detalhados a seguir.
Levantamento bibliográfico: foi realizado por meio de pesquisas utilizando
variados materiais (livros, teses, dissertações, monografias, artigos científicos,
jornais e revistas). Após a catalogação desses escritos, os dividimos em 05 grupos
definidos pelos temas centrais para a realização da pesquisa (1: (re)produção do
espaço urbano e da cidade; 2: Baixo Jaguaribe e Russas; 3: especulação e
mercado imobiliário; 4: segregação sócio-espacial; 5: políticas habitacionais e o
“Programa Minha Casa, Minha Vida”.). Essa organização dos referenciais
bibliográficos facilitou a nossa compreensão sobre os processos estudados e a
escrita do trabalho com a devida correlação entre a teoria e a realidade.
Pesquisas e interpretação de dados e documentos: se deram por meio do
levantamento de dados oficiais extraídos nos sites de órgãos como Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Caixa Econômica Federal (CEF),
através de documentos da Prefeitura Municipal de Russas e de contratos de compra
e venda de casas por meio do PMCMV. O levantamento desses dados nos
possibilitou relacionar o processo de (re)produção do espaço com as características
socioeconômicas da cidade e traçar as temporalidades das mudanças ocorridas no
mercado imobiliário a partir do PMCMV, como o total de unidades construídas
anualmente, a localização e o aumento dos preços dos empreendimentos.
Trabalhos de campo: Realizados em períodos distintos e desde o início do
nosso interesse pelo objeto de estudo, os trabalhos de campo tiveram como principal
objetivo oportunizar um contato direto com o objeto e a área de estudo, gerando
uma melhor compreensão dos processos em andamento e das mudanças ocorridas
na cidade ao longo do tempo. Com as anotações do caderno de campo e com os
registros imagéticos produzidos e coletados nos trabalhos de campo e em pesquisas
21

em diferentes meios (Internet, folders e jornais) construímos um acervo de dados,


informações, ideias, análises e deduções que foram fundamentais para a construção
desse trabalho.
Vale ressaltar que a pesquisa esteve muitas vezes diante de obstáculos à
sua concretização, como a dificuldade na obtenção dados junto aos órgãos públicos
(CEF e Prefeitura Municipal, principalmente) e a indisponibilidade de corretores
imobiliários, construtores e residentes/contratantes dos empreendimentos para
entrevistas esquematizadas que melhor explicassem o funcionamento do Programa
na cidade.
As possíveis lacunas que esses empecilhos deixariam ao trabalho nos
motivaram a buscar alternativas à obtenção das informações necessárias à
pesquisa. Assim, além dos resultados concebidos por meio dos procedimentos
metodológicos citados anteriormente, algumas das informações apresentadas neste
trabalho foram conseguidas através de trocas de e-mails, acessos a sites dos órgãos
públicos e de diversas conversas/entrevistas realizadas com sujeitos direta e
indiretamente envolvidos com o PMCMV em Russas.
Destaca-se que o contato com alguns proprietários de residências
adquiridas por meio do Programa, com corretores imobiliários e com moradores das
proximidades dos empreendimentos foi fundamental para entendermos como ocorre
o processo de comercialização (construção, venda e compra) da habitação por meio
do PMCMV na cidade.
Os resultados decorrentes das nossas reflexões fundadas nesses
pressupostos metodológicos foram organizados em cinco capítulos, distribuídos
numa sequência que visa oferecer uma melhor compreensão dos processos tratados
em escala teórica/conceitual e local/empírica.
O primeiro capítulo, qual seja essa introdução, versa sobre a problemática
geral dessa monografia, a apresentação da área de estudo, do método científico e
da metodologia utilizada na construção da pesquisa, a fim de oferecer ao leitor uma
visão geral do trabalho.
No segundo capítulo discutimos sobre o processo de (re)produção da
cidade e do espaço urbano, seus agentes produtores e o processo de valorização
imobiliária. Além disso, esboçamos um breve histórico da formação da cidade de
Russas, buscando mostrar os principais processos e contradições sócio-espaciais
que impactam na estruturação do seu espaço urbano.
22

O “problema da habitação” e a atuação do Estado e do capital privado no


provimento de ações e políticas públicas que objetivam resolvê-lo são tratados no
capítulo três, onde apresentamos também uma breve retrospectiva das políticas
habitacionais brasileiras, destacando o Programa Minha Casa Minha Vida.
O quarto capítulo, por sua vez, busca apresentar nosso objeto de
investigação de forma mais esmiuçada. Mostraremos a pesquisa na sua essência,
enquanto investigação concreta no/do espaço, dos sujeitos que o (re)produz e dos
processos e conflitos decorrentes do seu uso e especulação. Desta forma, é onde
apresentamos e discutimos os dados, valores, imagens, localização, estrutura e as
dinâmicas sócio-espaciais decorrentes do PMCMV em Russas.
Por ultimo, na conclusão deste trabalho, apresentamos uma síntese da
pesquisa, focando nos seus resultados e apontando algumas considerações sobre
outras possibilidades de investigação da Geografia Urbana em Russas.
23

2 A CIDADE E O URBANO NO BRASIL

Ao longo do tempo a sociedade modificou suas maneiras de atuar no


espaço dando-lhe novas formas, conteúdos e usos, e empregando-lhe grandes
transformações, deixando mais evidente o papel do homem como agente produtor
do espaço, ou de uma segunda natureza. Nas palavras de Carlos (1999, p. 31) “a
sociedade produz o espaço no momento em que produz sua própria existência.”.
Assim, se tomarmos as cidades e o espaço urbano desde sua gênese até
as atuais variedades de formas, tamanhos e papeis em que se materializam,
podemos compreendê-los como o melhor exemplo da atuação da sociedade no
espaço, e caracteriza-los como as maiores construções da humanidade, ou melhor
dizendo, como os maiores aglomerados de construções humanas.
A ideia de aglomerado, inclusive, é primazia para a definição e
entendimento do que é a cidade, pois o surgimento dessas está relacionado à
possibilidade de fixação dos homens em um dado espaço por longos períodos de
tempo, o que suscitaria na formação de aglomerações humanas que passaram a ser
cada vez mais duradouras e organizadas, avançando desde as remotas aldeias até
a variedade de cidades como conhecemos atualmente.
Conforme Sposito (2000) e Carlos (1999) os primeiros passos para o
surgimento das cidades foram dados ainda no período paleolítico, que, muito
embora seja marcado pelo nomadismo dos homens, as manifestações de fixação e
relação desses com o espaço já existiam e podem ser observadas por dois
acontecimentos.
O primeiro é o fato de o homem paleolítico enterrar os mortos, como que
lhes garantindo uma “morada”. Daí a famosa frase “a cidade dos mortos antecede a
cidade dos vivos” de Mumford. O segundo fato seria a relação desses homens com
as cavernas, que “embora não se constituísse uma moradia fixa para ele, era um
abrigo e tinha um significado muito grande.” (SPOSITO, p. 12).
Apresentando algumas considerações sobre os conceitos de cidade e de
urbano, Lencioni (2008) nos propõe que além do aglomerado, são também
elementos essenciais para a conceituação de cidade a existência do sedentarismo,
do mercado e da administração pública. Sendo que, conforme a autora, as ideias
referentes ao tamanho da população e as de população não agrícola, não seriam
determinantes para a conceituação de cidade.
24

A exclusão desses dois elementos se dá por dois motivos. Primeiro por


que existem cidades, como é o caso de Borá, em São Paulo, que possuem uma
população menor do que a de um bairro da periferia de Russas, como o bairro
Várzea Alegre, por exemplo, a saber, 835 e 4.784 habitantes, respectivamente.
Segundo por que existem cidades em que a maioria da população e sua economia
estão ligadas as atividades do campo, como as conhecidas cidades do agronegócio.
Milton Santos (1993, p. 33) explica essa relação cidade-campo atentando
que uma população agrícola pode não ser uma população rural, pois “uma parte da
população agrícola formada por trabalhadores do campo estacionais (os boias-frias)
é urbana por sua residência. Um complicador a mais para nossos velhos esquemas
cidade-campo.”.
Na conceituação de urbano, Lencioni (2008) utiliza a sociedade capitalista
industrial como pressuposto para pensar o urbano no Brasil 2 . Nessa perspectiva
industrialização e urbanização seriam processos paralelos. A autora explica que
caminhando por esse raciocínio é possível situar o urbano no Brasil em períodos
distintos, tomados de acordo com a compreensão de quando surge a sociedade
capitalista industrial brasileira e apresenta duas proposições diferentes.
A primeira refere-se às formulações de autores como Tavares (1972) e
Melo (1984), que consideram que “a sociedade capitalista industrial no Brasil emerge
no momento em que a reprodução ampliada do capital passa a ser comandada pela
atividade industrial.”. Para esses autores “só a partir desse momento é que podemos
falar em industrialização, muito embora a atividade industrial já existisse.”. A
segunda proposição refere-se às análises de autores como Martins (1979). Segundo
esse autor “a gênese da industrialização brasileira está relacionada à dinâmica do
complexo cafeeiro que faz com que a industrialização se desenvolva nos interstícios
da cafeicultura, ideia mais ampla do que a de oscilação da economia cafeeira.”.
(idem, p. 118-119).
Assim, conforme a autora:

De forma sintética podemos dizer que as posições de Maria Conceição


Tavares (1972) e João Manoel Cardoso de Melo (1979), de um lado, e, de
outros, de José de Souza Martins (1979) nos inspiram a conceituar o urbano
no Brasil de forma diferente. Tendo como referência os primeiros, o urbano

2
A perspectiva de “sociedade capitalista industrial” seguida por Lencioni (2008) refere-se às
formulações de Lefebvre e Castells.
25

se constitui no Brasil a partir dos anos 1930, enquanto que a interpretação


de Martins nos conduz a situá-lo a partir de 1870. (idem, p. 120).

Entendemos, pois, que, como um processo global, o urbano existiu – e


existe – em diferentes níveis de concretudes espaciais, sociais e ideológicas,
variando suas formas e elementos constitutivos de acordo com os períodos
históricos e o que se poderia, dentro das possibilidades técnicas e sociais da época
e do espaço, se realizar como tal.
Nessa perspectiva, Carlos (2008, p. 85) nos fala que “o urbano, como
produto da produção e reprodução dos seres humanos, é produto histórico, ao
mesmo tempo que é realidade presente e imediata.” Essa autora também adverte
que:

O urbano é um produto do processo de produção num determinado


momento histórico, não só no que se refere à determinação econômica do
processo (produção, distribuição, circulação e troca) mas também as
sociais, políticas, ideológicas, jurídicas que se articulam na totalidade da
formação econômica e social. Desta forma, o urbano é mais que um modo
de produzir, é também um modo de consumir, pensar, sentir enfim, é um
modo de vida. (p. 84)

Por isso acreditamos que o urbano deve ser pensado com base nas
relações sociais e nos elementos espaciais e culturais que o caracteriza,
entendendo-o como processo historicamente indissociável da cidade, no entanto
atentando para o fato de que cada vez mais, como enfatizou Milton Santos (2009, p.
13), “o urbano tanto pode ser mais, como pode ser menos que a cidade.”.
Dentro desse ponto de vista nos identificamos com proposições como as
de Santos (1993, p. 19) que, discorrendo sobre a “urbanização pretérita” do Brasil,
afirma que “[...] é a partir do século XVIII que a urbanização se desenvolve [...]. Mas
foi necessário ainda mais um século para que a urbanização atingisse sua
maturidade, no século XIX, e ainda mais um século para adquirir as características
com as quais a conhecemos hoje.”.
Ermínia Maricato (1997, p. 8) parece concordar com essa perspectiva,
pois mesmo reafirmando que “o processo de urbanização brasileiro se inicia mais
decisivamente apenas no século XX”, compreende como sendo “incorreto desprezar
a importância dos centros urbanos durante os períodos colonial e imperial, quando o
Brasil teve cidades de grande porte.”. Em publicação mais recente a autora reafirma
esse ponto de vista afirmando que,
26

Considerando o universo das Américas, o Brasil já apresentava cidades de


grande porte dede o período colonial, mas é somente a partir da virada do
século XIX e das primeiras décadas do século XX que o processo de
urbanização da sociedade brasileira começa a realmente se consolidar,
impulsionado pela emergência do trabalho livre, a Proclamação da
República e uma indústria ainda incipiente que se desenrola na esteira das
atividades ligadas à cafeicultura e às necessidades básicas do mercado
interno. (MARICATO, 2013, p. 16)

É interessante considerar que esses autores falam de uma “urbanização


pretérita”, ou seja, do início de um processo que só vai se desenvolver de forma
mais concreta a partir do século XX. Tendo isso em vista, o urbano no Brasil anterior
a esse período era fundamentalmente a cidade, com elementos diferentes dos que
compõe os espaços urbanos contemporâneos, mas com uma organização espacial,
política e social bem definida. Por isso, a urbanização nesse período tratava-se
basicamente da geração de cidades. (SANTOS, 1993).
Muito embora tenham significados diferentes, cidade e urbano aparecem
atualmente como sinônimos. Isso se dá por que existe uma relação dialética entre a
urbanização, entendida como um processo, e a cidade, percebida como a forma
concreta desse processo (SPOSITO, 2000). Deste modo, como afirma Carlos (1999,
p. 70), “pensar a cidade significa refletir o espaço urbano” e vice-e-versa,
acrescentaríamos.
Além disso, como dito no primeiro paragrafo desse capítulo, a produção
do espaço é reflexo da própria existência do homem. Para Corrêa (1997, p. 121)
sendo uma “expressão de processos sociais, a cidade reflete as características da
sociedade.”.
Nesse sentido, na esteira do modo de produção capitalista, onde as
desigualdades socioeconômicas são gritantes, as práticas sociais se materializam
transformando a cidade num verdadeiro “mosaico” formado pelos diferentes tipos de
acesso, uso e ocupação da terra. Esse “mosaico” é o que chamamos de espaço
urbano. Nas palavras de Corrêa (2000):

O espaço de uma grande [e agora, e cada vez mais, também de uma


pequena] cidade capitalista constitui-se [...] no conjunto de diferentes usos
da terra justapostos entre si. [...]. Esse complexo conjunto de usos da terra
é, em realidade, a organização espacial da cidade ou, simplesmente, o
espaço urbano, que aparece assim como espaço fragmentado. (p. 07).
27

No entanto, é preciso frisar que o espaço urbano pode ser apreendido por
pelo menos seis características. Além de ser fragmentado ele é simultaneamente
articulado, reflexo e condicionante social, espaço simbólico e um campo de lutas.
(CORRÊA, 1997; 2000)
Outra ressalva importante é a de que o espaço urbano é “consequência
da ação de agentes sociais concretos, históricos, dotados de interesses, estratégias
e práticas próprias, portadores de contradições e geradores de conflitos entre eles
mesmos e com outros segmentos da sociedade.”. (CORRÊA, 2011, p. 43). Esses
agentes sociais são também conhecidos como os agentes produtores do espaço e
são os seguintes: proprietários de meios de produção, proprietários fundiários,
promotores imobiliários, o Estado e os grupos sociais excluídos. (CORRÊA, 2000;
2011).
Entre esses agentes produtores do espaço urbano, o Estado tem papel
fundamental, pois além de atuar diretamente na produção do espaço, aparece como
mediador dos conflitos que surgem entre os demais agentes, incluindo os que
envolvem ele próprio. O Estado também parece atuar em conjunto com os demais
atores, oferecendo-lhes condições favoráveis para as suas ações. Seria assim um
ator, mediador e influenciador das ações e conflitos produtores e produzidos no
espaço urbano.
Como são as ações concretas dos agentes sociais que determinam a
organização do espaço urbano, essa organização apresenta uma sequência de
processos espaciais que, segundo Corrêa (1997, p. 122) “constituem-se em um
conjunto de forças que atuam ao longo do tempo e que permitem localizações,
relocalizações e permanência de atividades e população sobre o espaço urbano.”.
Na definição deste autor, esses processos espaciais são os seguintes: centralização,
descentralização, coesão, segregação, invasão-sucessão e inércia.
Dois desses seis processos acontecem de forma bem evidente na cidade
de Russas, quais sejam os de centralização e segregação. Neste trabalho o
processo de segregação social/residencial será percebido.
O processo de segregação é um reflexo das contradições sociais e
econômicas da sociedade capitalista, especificamente uma externalização da
propriedade privada e da comercialização da terra, o que destaca o papel dos
proprietários fundiários, dos promotores imobiliários e do Estado na sobreposição da
terra como valor de troca pela terra como valor de uso.
28

Nesse sentido, a primeira contradição existente sobre o “direito à moradia”


e também do “direito à cidade” é o fato de ser necessário pagar pela terra, que tem
seu preço variando de acordo com as determinações do mercado imobiliário. Essa
variação pode se dar justificada pela localização da terra a ser comercializada em
relação aos equipamentos e infraestruturas que, dependendo dos quais se tratam, a
valoriza ou desvaloriza.
No entanto, como explica Paul Singer (1982), a primazia da renda da
terra, ou seja, do capital imobiliário, está no próprio monopólio da terra, da sua
propriedade privada, ao contrário do que acontece com o capital que tem o lucro
gerado no excedente produzido com a utilização dos meios de produção e do
emprego da força de trabalho. Nas apalavras de Singer:

[O capital] é constituído pela propriedade privada dos meios de produção,


os quais, quando movimentados pelo trabalho humano, produzem o seu
valor, o valor da força de trabalho gasta e mais o valor excedente, que
aparece nas mãos do capitalista sob a forma de lucro. [...] Mas o “capital”
imobiliário não entra neste processo, na medida em que o espaço é apenas
uma condição necessária à realização de qualquer atividade, por tanto
também da produção, mas não constitui em si meio de produção, entendido
como emanação do trabalho humano que o potencia. A posse de meios de
produção é condição necessária e suficiente para a exploração do trabalho
produtivo, ao passo que a ocupação do solo é apenas uma contingência
que o seu estatuto de propriedade privada torna fonte de renda para quem o
detém. (SINGER, 1982, p. 21).

Desta forma, presume-se que a produção do espaço, com a manifestação


desses processos espaciais e todas as suas demais características, é reflexo da
atuação conjunta e conflituosa dos agentes sociais e por isso se materializa
revelando as contradições da divisão social e espacial do trabalho e dos diferentes
interesses, estratégias e lutas das classes sociais, sendo todos esses inseparáveis
do modo de produção capitalista.
Assim, dentro das perspectivas mostradas anteriormente e percebendo
que as cidades podem ser analisadas por meio do processo de reprodução da vida
humana, é possível compreender que cada cidade possui uma história própria.
É dentro dessa perspectiva que buscaremos traçar um breve histórico da
formação da cidade de Russas, buscando focar em processos e momentos
reveladores das contradições sócio-espaciais decorrentes de ciclos econômicos, das
diferenças na apropriação e estruturação do espaço urbano e dos seus principais
agentes produtores.
29

2.1 A PRODUÇÃO DA CIDADE E DO ESPAÇO URBANO EM RUSSAS

Esboçar a “trajetória” da cidade mergulhando mesmo que rasamente na


sua história e memória é um caminho necessário para a compreensão do que ela é,
ou melhor dizendo, do que ela está sendo. Concordando com a perspectiva histórica
da cidade e com as postulações realizadas na abertura deste capítulo, esse tópico
tenta recordar alguns momentos marcantes do “caminho que a cidade de Russas
percorreu” até os dias atuais.
Em verdade seria pretencioso falar em “reconstruir a história da cidade”
neste momento. O que há é um breve resumo de pesquisas e trabalhos realizados
anteriormente por autores como Rocha (1976), Ferreira Neto (2003), Silva (2006) e
Chaves (2010) a fim de fornecer subsídios para uma melhor compreensão dos
processos que abordaremos neste trabalho.
De acordo com os levantamentos realizados por alguns autores, como os
citados acima, o processo de povoamento do Baixo Jaguaribe e das terras que hoje
configuram o município de Russas teve sua gênese no final do século XVII, com a
distribuição das Sesmarias e a chegada dos primeiros visitantes “civilizatórios”,
sobretudo vaqueiros, enviados para ocupar e vigiar a ribeira do Rio Jaguaribe.
No entanto, esses objetivos atribuídos aos vaqueiros esbarraram na
bravura dos índios que já habitavam essas terras e que passaram a resistir à
apropriação do território pelo “homem branco”, deflagrando uma série de conflitos
duradouros e sangrentos. Por ocasião da resistência e da bravura dos nativos,
empecilho à ocupação da região, e influenciado pela ameaça da Guerra dos
3
Bárbaros nas terras potiguares, foi construído no ano de 1696 um Forte
denominado Fortaleza Real de São Francisco Xavier da Ribeira do Jaguaribe 4. No
entanto, mesmo com a construção desse forte os conflitos entre os novos habitantes
e os indígenas continuaram5.

3
Série de conflitos entre colonizadores e povos indígenas que se deu no interior do nordeste.
4
Segundo Rocha (1976, p. 39) “O Forte do Jaguaribe chamou-se também ‘Presídio do Jaguaribe’,
‘Presídio de São Francisco Xavier’ e ‘Sítio Igreja’, sendo esse último uma referencia ao povoado que
se formara em sua adjacência.”. Acreditamos que esta ultima nomenclatura tenha maior relação com
a capela construída pós a demolição do forte e não a ele.
5
“Esse forte foi duas vezes tomado pelos índios rebelados, e em 1705, incendiado. Reconstruído,
teve, porém curta duração, quando em 20 de dezembro de 1705, o Governador de Pernambuco,
Francisco de Castro Morais, propôs à metrópole, a sua extinção, considerando o estado de paz,
existente na região. Assim o Forte perdia a sua finalidade que era de defender os moradores e
pacificar os índios.” (Idem: 38).
30

Foi com a chegada de outros soldados para prestar reforços à segurança,


com o crescimento da população e principalmente com o auxílio da igreja, que
catequisava e “domesticava” os indígenas, que a região passou a ter maior
tranquilidade.
O novo contingente populacional constituído por soldados, fazendeiros,
famílias vindas de outras regiões, índios e escravos, principiou o desenvolvimento de
um arraial nas mediações do Forte. Com a efetivação do controle da região, via o
massacre, domínio e afastamento dos indígenas, esse Forte não mais tinha
utilização e acabou por ser demolido no ano de 1707, dando lugar a uma edificação
utilizada para prática de atos religiosos. Ainda nesse mesmo ano essa edificação
perdeu a sua finalidade por conta da construção da Capela de Nossa Senhora do
Rosário de Russas. (ROCHA, 1976, p. 39).
A necessidade de uma consolidação da instância religiosa, que motivava
o crescimento do povoado, levou à criação do Curato de Russas6 no ano de 1712, e
posteriormente à construção da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, que
teve suas obras iniciadas em 1735 e concluídas em 1749.
A presença efetiva da igreja e a localização do povoado às margens do
Riacho Araibú, transformando-o em estratégico ponto de parada para as boiadas
que seguiam pela Estrada Geral do Jaguaribe7, atraindo a instalação de fazendas e
de oficinas de carne de charque, impulsionaram o crescimento do povoado que
tornou-se freguesia em 1735, ao desmembrar-se de Aquiraz. O contínuo
crescimento e a organização do espaço contribuíram fortemente para a elevação à
vila em 18018.
Lencioni (2008) afirma seguramente que grande parte das cidades
brasileiras se originaram a partir de povoados. Segundo a autora, “as condições de

6
“A criação de um curato consistia, em direito eclesiástico, na preparação de uma comunidade para
uma futura paróquia ou freguesia, na acepção antiga, com pároco ou vigário estável.” (ARAÚJO,
1986, p. 37).
7
“A Estrada Geral do Jaguaribe partia de Aracati, principal porto da Capitania, descia o rio Jaguaribe,
passava em Russas e Icó e seguindo o rio Salgado ultrapassava a chapada do Araripe para alcançar
os sertões do Pernambuco em direção à Bahia. Foi a mais importante via de circulação do Ceará no
século XVIII, por onde eram levadas as mercadorias para o sertão, vindas de Aracati, provenientes
das demais capitanias. Por ela também eram carregados os produtos das salinas cearenses para as
regiões do rio São Francisco. Em direção ao Aracati seguia toda a produção do vale do Jaguaribe.”
(JUCÁ NETO, 2009).
8
A ordem para a elevação à vila ocorreu em 1799, quando o governador da Capitania de
Pernambuco atendeu a solicitação feita pelo Padre José Bernardo da Fonseca Galvão,
representando os moradores da freguesia em 1798, sendo a Vila de São Bernardo do Governador
inaugurada em 06 de agosto de 1801. (ROCHA, 1976, p. 84).
31

aglomeração sedentária, acrescida da função de troca e da de administração pública


é que fizeram com que alguns povoados se desenvolvessem como cidade.”. (idem,
p. 117).
Seguramente também podemos afirmar que Russas é um desses casos.
No entanto, no caso específico desta cidade, é possível observar a grande influência
da Igreja na ascensão do povoado à condição de freguesia e posteriormente à
categoria de vila. Dentre os elementos tidos como essenciais para a definição da
cidade (como vistos no inicio deste capítulo: aglomerado, sedentarismo, mercado e
administração) é possível observar que em Russas o papel administrativo foi em
muito realizado pela atuação da Igreja católica.
Em pesquisa sobre os primórdios da organização do espaço e das vilas
cearenses9, Jucá Neto (2012, p. 140) enfatiza que “em sua grande maioria, as vilas
foram fundadas onde já existiam paróquias, o que confirma a procedência da
organização religiosa quanto à organização político-administrativa.”. Essa influência
e procedência administrativa da Igreja se dava pelo fato de que, além de impulsionar
a fixação de pessoas nas suas adjacências, a Igreja coordenava e mantinha a
organização do espaço e de seus habitantes, o que era tido como necessário e
estratégico pela Coroa Portuguesa.
Como constata Maricato (1997, p. 10) “Uma estreita relação entre Estado
e Igreja garantia a ele legitimação do domínio sobre as terras descobertas e a ela a
exclusividade sobre a vida espiritual (frequentemente não tão espiritual) desses
territórios.”.
Essa mesma autora faz uma breve descrição sobre a criação dos núcleos
urbanos no Brasil Colonial que, embora estejam em períodos diferentes, muito se
aproxima da história de fundação da cidade de Russas:

A criação dos núcleos urbanos vinha sempre acompanhada da construção


da capela, que ocupava lugar de destaque. O pequeno núcleo de casas ao
redor da capela (também chamado de patrimônio) poderia evoluir para a
situação de paróquia ou freguesia, para depois se tornar uma vila (e mais
raramente cidade), que deveria apresentar uma matriz ou capela ampliada,
além de Casa da Câmara e Cadeia. Essa mudança de status envolvia
características jurídico-institucionais em que o papel da Igreja e do Estado
se confundiam. (idem.).

9
Cf. Os primórdios da organização do espaço territorial e da vila cearense - algumas notas. Anais do
Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.20. n.1. p. 133-163. jan.-jun.: 2012.
32
10
Logo após sua criação, a vila de São Bernardo do Governador
destacava-se na região por apresentar uma organização político-administrativa
regida pelo Código de Obras e Posturas, que garantia a regulamentação da
ocupação e uso do solo, a cobrança de tributos e a organização das ruas e das
casas. A aplicação das normas previstas pelo Código de Obras e Posturas era
garantida pelos Inspetores de Quarteirões. (ROCHA, 1976; SILVA, 2006; CHAVES,
2010).
Até o século XVIII a pecuária se constituiu como a atividade econômica
mais vigorosa da região e entrou em declínio nas primeiras décadas do século XIX
dando maior espaço à produção agrícola do algodão, o que viera a configurar o
binômio gado-algodão, que se estendeu até o início do século XX, e, como aponta
Chaves (2010), contribui fortemente para a criação da cidade de São Bernardo das
Russas, aos 09 de agosto de 1859:

Apesar da importância da pecuária para a ocupação inicial do baixo


Jaguaribe, o algodão foi o produto que melhor atribuiu forma e conteúdo ao
seu território, criando uma dinâmica socioeconômica e política que levaram
suas vilas a se transformarem em cidades. O algodão veio diversificar as
atividades urbanas e as relações sociais das vilas de São Bernardo do
Governador, Limoeiro e Caatinga do Góes, criando as condições para que
essas vilas se transformassem em cidades, criadas nos respectivos anos de
1859, 1897, 1890. (p. 196).

Além de ser um centro religioso e político-administrativo, a cidade passa a


ser nesse período o lócus das atividades comerciais e local da segunda residência
dos grandes proprietários de terras, que passam a dedicar suas propriedades rurais
exclusivamente à produção algodoeira e posteriormente ao extrativismo vegetal (pó
da carnaúba).
Como aponta Bastide (1978 apud SANTOS, 1993, p. 19) a urbanização
se expande no Brasil quando “a casa da cidade torna-se a residência mais
importante do fazendeiro ou do senhor do engenho [...]”. Porém, como dito
anteriormente, Santos (idem, p. 19/20) adverte que “tratava-se muito mais da
geração de cidades, que mesmo de um processo de urbanização.”. É o que
consideramos sobre Russas, pois, como veremos adiante, a população urbana ainda
era bastante inferior a rural, e que somente no início nas primeiras décadas do

10
Com a acessão à categoria de cidade, o nome mudou para São Bernardo das Russas. Já a
mudança do nome para somente Russas ocorreu em 1938.
33

século XX as atividades caracteristicamente urbanas começaram a surgir nesta


cidade.
Na segunda metade do século XIX, juntou-se ao binômio gado-algodão a
valorização da cera da carnaúba. Essa nova atividade, aquecida pela demanda do
mercado internacional, vai impulsionar as transformações sócio-espaciais da região,
principalmente nas cidades de Limoeiro do Norte e Russas (SOARES, 2000).
É preciso ter em mente que essas atividades (a pecuária, o algodão e a
cera da carnaúba) que simbolizam os ciclos econômicos da região até o final do
século XX, não se excluem e não se desenvolveram de forma isolada temporal,
econômica e espacialmente. Justamente ao contrário. Elas se entrelaçaram,
mantendo uma relação de complemento econômico, sendo que vagarosamente uma
foi se sobrepondo à outra, segundo as capacidades e potencialidades locais de
atender as necessidades e determinações do mercado.
Foi então a partir da segunda metade do século XIX que se instalaram na
cidade os primeiros pontos comerciais, que vendiam principalmente ferragens,
tecidos, cereais, cera de carnaúba e produtos confeccionados com couro e com
palha. No entanto, foi a partir da primeira metade do século XX que a cidade passou
a expressar maior dinamismo econômico, social e cultural com o desenvolvimento
do comercio e a instalação de atividades e elementos tipicamente urbanos11.
Data também da primeira metade do século XX a instalação das duas
primeiras indústrias da cidade: a Indústria Costa e Lima, em 1922, e o Grupo
SANBRA (Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro S/A), em 1936. Ambas eram
usinas especializadas no beneficiamento do algodão, o que significa a permanência
da atividade algodoeira junto com o crescente desenvolvimento do extrativismo da
cera da carnaúba.
No entanto, a maior valorização da cera e a irregularidade pluviométrica,
da qual dependia a produção do algodão, levaram os produtores da região a se
dedicarem a extração da cera da carnaúba, o que culminaria no fechamento da
SANBRA em 1939, ano em que a produção da cera da carnaúba superou com
grande margem a cultura do algodão. (ROCHA, 1976).
11
Destacam-se as várias casas comerciais, a construção do Mercado Público (1904), a circulação de
jornais, os novos tipos de transportes, um cine-teatro (1916), a agência dos Correios e Telégrafos
(1932), a construção da Praça Monsenhor João Luiz (1933), a instalação da iluminação e da
eletricidade pública, o Quartel de Polícia Militar (1937), o sistema de rádio (1938), um cinema na
década de 1940, um Posto de Saúde (1940), além de escolas, hotéis, os festejos religiosos e
encontros sociais.
34

Apesar de a produção do algodão da região ter tido grande importância


para o dinamismo econômico da região, principalmente por meio de sua integração
com mercados regionais e nacionais, foi com a cera da carnaúba que a região
jaguaribana e principalmente as cidades de Limoeiro do Norte e Russas,
definitivamente inseriram-se no mercado capitalista mundial (SOARES, 2000).
O período áureo da cera da carnaúba, entre as décadas de 1940 e 1950,
diversificou não somente o espaço urbano da cidade, mas gerou também mudanças
significativas no campo. Os grandes proprietários de terra, que outrora destinavam
suas propriedades para a produção algodoeira e que para isso desmataram grandes
carnaubais, com a valorização da cera passaram a arrendar pequenas e médias
propriedades e até mesmo a plantar carnaúbas, a fim de produzir a cera em
quantidades cada vez maiores, aproveitando a demanda internacional e
aumentando acumulação de capital.
A crescente foi tanta que na década de 1950 o município de Russas era o
maior produtor de cera de carnaúba do estado, representando 11% da produção
nacional e 31% na estadual. (FERREIRA NETO, 2003, p. 452).
Muitos dos espaços não mais utilizados pela atividade algodoeira e sem
carnaubais passaram a ser utilizados para o cultivo de frutas. Iniciados como
atividade de subsistência dos sítios (pequenas propriedades cultivadas pela família
proprietária) os pomares logo se mostraram como mais uma alternativa de gerar
riquezas. O surgimento do cata-vento e posteriormente do gasogênio melhorou a
forma de irrigação e impulsionou a atividade. A laranja foi a principal fruta cultivada
em Russas.
Chaves (2010) comentando sobre a centralidade exercida pelas cidades
de Russas e Limoeiro do Norte na região do Baixo Jaguaribe, afirma que essa se
deu na primeira metade do século XX, sendo que entre as décadas de 1940 e 1960
foram as atividades comerciais e educativas que garantiram, respectivamente, a
essas cidades papeis urbanos na centralidade regional. Segundo a autora, nesse
período, Russas era a cidade da região que apresentava a maior diversidade em
atividades urbanas e ganhava projeção comercial e industrial.
Diante dessas mudanças econômicas, sociais e culturais ocorridas na
primeira metade do século XX, a organização da cidade passou por algumas
transformações. A atração de pessoas vindas do campo para a cidade ocasionou
seu crescimento envolta do núcleo inicial. O comercio, que anteriormente se
35

organizava no Mercado Público, na feira que se formava no seu entorno e nas


poucas casas comerciais existentes na chamada “Rua do Comercio” 12 se expandiu
atingindo áreas antes exclusivamente residenciais.
Nas proximidades entre o núcleo urbano e as vias que ligavam a cidade
às comunidades do município e as outras cidades da região foram se formando
corredores constituídos de casas simples, habitadas principalmente por pessoas
vindas do campo. Assim a expansão da cidade se deu radialmente, seguindo os
contornos do seu núcleo inicial e as vias de penetração.
Conforme o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Russas - PDDU
(1998) e o Plano Diretor Participativo – PDP (2008), a antiga passagem da BR-116
pela a Avenida Dom Lino teve grande importância na morfologia urbana da cidade,
uma vez que estimulou a ocupação das ruas paralelas à referida Avenida.

A passagem da rodovia federal BR-13 (hoje BR-116) pela principal artéria


da cidade, a Avenida Dom Lino, influenciou bastante na morfologia urbana,
consolidando o principal eixo viário, ao longo do qual foi estimulado o
adensamento. A implantação nas últimas três décadas de diversos
loteamentos em várias áreas da cidade e o crescimento ao longo dos eixos
de penetração estão quebrando a tendência anterior à linearidade Leste-
Oeste, com a expansão também nos demais sentidos, consolidando o
desenho radial original, sem ainda terem definidas vias de contorno que as
interliguem. (PDDU, 1998, p. 11)

[...] foi a passagem da rodovia federal BR-13 (hoje BR-116) pela [...]
Avenida Dom Lino, que mais influência teve na sua ocupação, funcionando
como fator de maior força em sua expansão, adensando áreas ao longo
dela e de vias paralelas, que se interligaram, nos trechos mais centrais, por
uma sequência de pequenas e estreitas travessas. (PDP, 2008, p. 24).

Segundo Silva (2006, p. 35), foi a partir da década de 1940 que áreas
como as das ruas Dr. José Ramalho, Benjamim Constant e Coronel Araújo Lima se
integraram ao centro da cidade. Conforme o mesmo autor essas ruas eram
predominantemente residenciais e habitadas “por pessoas que enriqueceram com o
dinheiro oriundo do comércio do pó cerífero, do algodão e do seu beneficiamento.”.
Ainda de acordo com Silva (2006, p. 35), nesse período a periferia de
Russas “não se constituía geograficamente num espaço distante do centro da

12
Quando na sua criação essa rua fora nomeada como “Rua de Traz”, em um referencia a sua
localização a traz de uma das ruas principais dá época, a Rua do Poente (hoje Avenida Dom Lino) e
passou a ser denominada “Rua do Comercio” a partir de 1904, quando foi construído o Mercado
Público. (LIMA, 2006, p. 33). Hoje, esse logradouro recebe o nome de “Rua Padre Raul Vieira”, mas
ainda permanece sendo popularmente conhecida e chamada de “Rua do Comercio”. Isso mostra que,
embora tenha crescido e se expandido para outras ruas, o comercio permanece concentrado na área
central da cidade e principalmente na mesma rua onde outrora se dava sua expansão.
36

cidade, mas numa área que se formava no seu entorno” e a sua formação se deu
“principalmente com o surgimento de residências nas margens do Riacho Araibu”.
Posteriormente essa região passaria a constituir os atuais bairros Vila Gonçalves e
Nossa Senhora de Fátima.
A Figura 02 mostra uma representação da provável periodização da
expansão urbana de Russas. É possível observar que até a década de 1960 o
adensamento populacional se deu quase totalmente no entorno do núcleo primitivo
da cidade. Foi a partir dessa mesma década que a cidade apresentou uma
expansão mais significativa, inclusive atingindo áreas distantes do centro urbano,
como as que configuram hoje os bairros Tabuleiro do Catavento, Tabuleiro da
Vaquejada e mais intensamente no bairro Planalto da Bela Vista.
37

Figura 02 - Evolução da ocupação urbana do município de Russas

Fonte: Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano – Russas (1998).

É interessante explicar que o bairro Planalto da Bela Vista teve sua


ocupação estimulada nos períodos de cheias, quando, por ser uma área de maior
altitude, recebia famílias que fugiam dos alagamentos e muitas outras que haviam
sido atingidas por tais. Provavelmente por esse motivo, embora tenha uma distância
considerável do centro da cidade, esse bairro teve um rápido crescimento já nesse
período.
Por volta dos anos de 1980 a expansão da cidade rompeu definitivamente
com a tendência de contorno da área central e a periferia se ampliou, ocupando
38

áreas mais distantes do centro e que ainda possuíam características rurais, como
criação de animais e a falta de estruturas e serviços públicos como pavimentação,
abastecimento d’água, rede de esgoto e coleta de lixo.
Como se pode observar no gráfico a seguir, foi justamente a partir da
década de 1980 que a população urbana desse município superou sua população
rural. A migração campo-cidade nesse período foi estimulada pela decadência das
atividades no campo (algodão e cera da carnaúba) e a crescente oferta de trabalho
na cidade.

Gráfico 01 - Evolução da população total, urbana e rural do município de Russas


80.000
Número de habitantes

70.000
60.000
50.000
40.000
30.000
20.000
10.000
0
1970 1980 1991 2000 2010 2014*
Total 34.239 38.513 46.566 57.320 69.833 74.243
Urbana 11.374 18.558 27.055 35.323 44.952
Rural 22.865 19.955 19.511 21.997 24.881
*Estimativa populacional (IBGE, 2014) não conta com valores para população urbana e rural.
Fonte: Adaptado do Censo Demográfico – IBGE. Organizado pelo Autor.

É importante ressaltar que a partir da década de 1990 a população rural


também apresentou crescimento, muito embora este seja bastante inferior se
comparado com o crescimento da população urbana. Esse aumento na população
rural é reflexo das políticas de modernização das atividades agrícolas presentes na
Região do Baixo do Jaguaribe e que em Russas se materializam por meio do Projeto
Irrigado Tabuleiro de Russas.
Podemos dizer que o crescimento da população é um reflexo e um
condicionante do processo de urbanização e em Russas tem se desenvolvido
recentemente por meio a influência do comercio, dos serviços e das atividades
industriais.
39

Como se sabe, indústria e urbanização formam um par indissociável.


Essa relação é bastante perceptível ao longo da história do município de Russas. As
primeiras fábricas instaladas neste munícipio se localizavam no centro da cidade e
foram determinantes para a instalação de alguns serviços, como é o caso da energia
elétrica e da iluminação pública. Além disso, por demandar força de trabalho, a
industrialização impulsiona a atração de pessoas para as cidades.
Na segunda metade do século XX duas novas indústrias se instalaram na
cidade: a RICASA (Russas Indústria Comércio e Agricultura S/A), em 1966,
localizada na Avenida Dom Lino, principal via da cidade; e a RICOL (Russas
Indústria e Comércio de Óleos Ltda), em 1973, que teve sua planta instalada na Rua
João Marcial Pereira, atual Bairro Nossa Senhora de Fátima.
A localização da RICOL nas margens do Riacho Araibu, que como dito
anteriormente constituía a pretérita periferia da cidade, intensificou a ocupação
dessa área com o surgimento nos seus arredores de uma vila de trabalhadores.
(SILVA, 2006, p. 28). Além da instalação da RICOL, a construção da Igreja Nossa
Senhora de Fátima, da Residência dos Padres Jesuítas e de uma ponte sobre o
Riacho Araibu, facilitando o tráfego de pessoas entre essa região e o centro da
cidade, ajudaram a estimular a ocupação dessa área, formando o bairro Nossa
Senhora de Fátima.
A construção de vilas formadas por casas simples, de estruturas precárias
e habitadas por trabalhadores também se deu em outros pontos da cidade, como é o
caso da Vila Scipião13 e da Vila São José, ambas habitadas por trabalhadores de
cerâmicas, a nova atividade econômica da cidade.
Embora a atividade ceramista se desenvolvesse nas comunidades do
interior deste município desde muitos anos, se dando de forma artesanal nas
simples e familiares olarias, a modernização da atividade só veio ocorrer a partir da
década de 1970 com a criação das primeiras cerâmicas e a nova forma mecânica de
se produzir telhas e tijolos.
Essa modernização foi realizada por alguns empresários agrícolas que
com o declínio nos rendimentos das atividades extrativistas precisaram investir numa

13
O nome da vila é uma referência ao senhor Scipião Maia Scipião. Pioneiro da atividade ceramista
na cidade, esse senhor doava pequenos lotes de terras próximos a sua cerâmica para alguns dos
seus funcionários e pessoas necessitadas, para que construíssem suas residências, logo formando a
tal vila.
40

nova atividade que mantivesse seus lucros. A grande disponibilidade de argila no


município, matéria prima para a indústria ceramista, impulsionou a atividade.
As duas primeiras cerâmicas que se instalaram na sede do município
deram formação as vilas citadas anteriormente, e assim iniciaram a ocupação de
uma nova área que logo seria adicionada ao perímetro urbano e se tornaria parte da
periferia da cidade.
A Vila Scipião, principalmente, cresceu para além de uma “simples vila de
casas” e se transformou no bairro Várzea Alegre. Esse bairro foi durante muitos
anos o principal ponto de convergência das famílias mais carentes que chegavam à
cidade de Russas, vindas da zona rural ou de outros municípios e estados. Os
menores preços dos terrenos e das casas, dada pela distância do centro e a falta de
infraestruturas públicas, impulsionou a ocupação dessa região.
A atividade ceramista também estimulou a ocupação de outras áreas da
periferia urbana de Russas, mesmo nas que não surgiram nos entornos das fabricas,
como é caso dos bairros Alto do Velame, Vila Matoso e Vila Ramalho. Todos esses
bairros foram criados a partir da década de 1970, quando o processo de migração
campo-cidade se tornou mais expressivo em Russas, impulsionada pelas indústrias
cerâmicas e pelo crescimento das atividades comerciais e dos serviços urbanos.
Outro componente que impulsionou a periferização na cidade de Russas
foi a construção de dois conjuntos habitacionais na década de 1980 e de mais outro
no ano de 2002. Esses conjuntos habitacionais foram construídos com recursos
oriundos da COHAB (Companhia de Habitação Popular) e por meio do PROURB
(Projeto de Desenvolvimento Urbano e Gestão de Recursos Hídricos) em terrenos
escolhidos e doados pela Prefeitura Municipal de Russas.
Essas foram as primeiras intervenções do Estado diretamente na questão
da habitação social na cidade e podem ser facilmente percebidas como
impulsionadoras do processo de segregação residencial, pois, destinados à famílias
de baixa renda e desprovidas de residências próprias, ambos os conjuntos foram
construídos em áreas distantes do centro da cidade.
O Conjunto Habitacional Gerardo Matoso foi construído no bairro Planalto
da Bela Vista. A construção desse conjunto habitacional se deu numa área afastada
da principal via de interligação do bairro com o centro da cidade, a Avenida
Governador Raul Barbosa, o que estimulou a utilização de uma estrada que interliga
o Conjunto ao centro da cidade. Até hoje, essa via, conhecida como “Estrada Nova”,
41

não recebeu nenhum serviço público como pavimentação e iluminação, sendo


realizado apenas o patrolamento após os períodos chuvosos quando a mesma fica
praticamente intransitável. Em agosto de 2015 a Prefeitura Municipal de Russas
inaugurou a reforma/construção da Praça Gerardo Matos, única reforma ocorrida
nos espaços deste Conjunto Habitacional desde sua criação.
Ainda mais distante do centro, os Conjuntos Habitacionais Padre Abdon
Valério e Dr. José Martins de Santiago, estão localizados no bairro Tabuleiro do
Catavento. É interessante salientar que esses dois conjuntos foram construídos em
regime de mutirão e por isso são popularmente conhecidos na cidade como Mutirão
Velho e Mutirão Novo, respectivamente.
O bairro Tabuleiro do Catavento também foi escolhido pela Prefeitura
Municipal como lugar para a instalação da fabrica de calçados Dakota Nordeste S/A.
Essa fábrica chegou à Russas no ano de 1998 e se instalou num galpão localizado
no bairro Alto São João14, dois anos depois se mudou para a sua atual localização,
na Avenida Coronel Antônio Cordeiro, as margens da BR 116, no bairro Tabuleiro do
Catavento.
Não por acaso, o terreno cedido pela Prefeitura Municipal para a
relocação da Dakota-Russas é conexo aos terrenos doados para a construção dos
Conjuntos Habitacionais Padre Abdon Valério e Dr. José Martins Santiago. Sendo
que esse segundo foi construído no ano de 2002, ou seja, logo após a instalação da
fábrica de calçados no seu novo endereço.
Conforme Silva (2006) quando a Dakota iniciou suas atividades em
Russas contava apenas com 80 funcionários, no entanto, bastaram alguns meses
para que esse número crescesse e a fabrica passasse a ter aproximadamente 300
colaboradores. Recentemente, segundo Alencar (2014) a Dakota-Russas chega a
gerar aproximadamente 4.000 empregos, se mostrando como um grande atrativo de
mão-de-obra e estimuladora de uma série de transformações econômicas e sócio-
espaciais na cidade de Russas15.
Além das atividades comerciais e industriais, a presença de unidades e
sedes de órgãos Federais e Estaduais como Secretaria da Fazenda (SEFAZ),
Receita Federal (RF), Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes

14
Atualmente funciona neste mesmo galpão a Indústria Santa Rita de Urnas.
15
Cf. ALENCAR, João Vitor Oliveira de. A indústria e o urbano: o papel da Dakota Nordeste S/A em
Russas no Ceará. 2014. 237 p. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Geografia) – Programa de Pós-
Graduação em Geografia, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2014.
42

(DNIT), Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), Companhia Hidroelétrica do São


Francisco (CHESF), Departamento Estadual de Transito (DETRAN), Coordenadoria
Regional de Desenvolvimento da Educação (CREDE 10), Batalhão de Polícia Militar
(1º BPM), Caixa Econômica Federal (CEF), Banco do Nordeste (BNB), o Campus
Avançado da Universidade Federal do Ceará (UFC) dentre outros, também
contribuem no processo de urbanização de Russas.
Esses equipamentos conferem novas nuanças ao processo de
urbanização, principalmente pelo crescimento da demanda de trabalho intelectual,
do consumo de bens e serviços e dos fluxos intermunicipais. Esses elementos estão
associados ao surgimento do meio técnico-científico-informacional, caraterizado pela
crescente presença da ciência, da técnica e da informação na estruturação e
especialização do território (SANTOS, 1993).
A instalação do Campus Avançado da Universidade Federal do Ceará em
Russas é o mais recente exemplo de como essas instituições públicas impactam na
rotina das cidades, na ação dos agentes produtores do espaço e na reorganização
do espaço urbano.
Embora as atividades desse campus universitário só tenham iniciado no
ano de 2014, desde quando a sua instalação foi confirmada passou-se a noticiar
grandes expectativas quanto a uma nova dinâmica que ele provocaria na cidade. O
setor imobiliário foi o que apresentou maior alarde quanto à instalação desse
campus, tomando-a como símbolo de futuro promissor da cidade e a utilizando como
marketing em seus negócios, além de gerar um crescimento significativo nos preços
dos terrenos e dos alugueis na cidade, principalmente nas proximidades do campus.
Dessa maneira é possível perceber uma íntima relação entre as ações do
Estado e as estratégias do setor imobiliário, principalmente para fins de especulação
imobiliária. Como sintetiza Singer (1982, p. 34) “as transformações no preço do solo
acarretadas pela ação do Estado são aproveitadas pelos especuladores, quando
estes têm a possibilidade de antecipar os lugares em que as diversas redes de
serviços urbanos serão expandidas.”.
O caso mais representativo do alarde imobiliário sob a instalação do
Campus Universitário na cidade de Russas é o Condomínio Residencial Santiago I e
II que, além de em seus anúncios fazer sempre referência a sua proximidade ao
campus, renomeou a região como “Cidade Universitária” e a aponta como sendo a
de maior crescimento e valorização da cidade. (Figuras 03 e 04).
43

Figura 03 - Anuncio de empreendimento imobiliário localizado próximo a UFC em Russas

Fonte: http://www.arimarimoveis.com.br/ - Acesso em 20/09/15.

Figura 04 - Divulgação de empreendimento imobiliário localizado próximo a UFC em Russas

Fonte: Panfleto de Divulgação. Acervo próprio.


44

De acordo com Silva (2006) e Alencar (2014), a atuação dos proprietários


fundiários e dos promotores imobiliários em Russas passou a ocorrer de forma
expressiva a partir da década de 1990. Nesse período diversos terrenos localizados
no entorno do centro da cidade e que antes eram utilizados para atividades agrícolas
e até mesmo áreas de alagadiços e sem usos específicos, passaram a ser loteados
e comercializados como parte integrante do espaço urbano.
Nesse período o mercado imobiliário e os proprietários fundiários atuavam
de forma livre, sem a intervenção do poder público municipal por meio de uma
política urbana reguladora. O resultado, visível na paisagem urbana da cidade, é o
de uma segregação socioespacial caracterizada pelo adensamento de algumas
áreas periféricas em paralelo aos vazios urbanos, que variam de pequenos terrenos
até grandes propriedades localizadas em todo o perímetro urbano, principalmente
nas áreas centrais da cidade, reservados à especulação imobiliária e que não
realizam a sua função social.
A especulação acarreta num aprofundamento dos problemas urbanos
uma vez que produz a expansão da cidade, gerando grandes custos sociais, seja
pela necessidade de maiores investimentos do setor público em serviços para
atender as novas áreas habitadas, ou pelos custos que a população moradora das
áreas segregadas terá que arcar cotidianamente pela falta de equipamentos
urbanos. Como sintetiza Santos (1993):

Havendo especulação, há criação mercantil da escassez e o problema de


acesso à terra e à habitação se acentua. Mas o déficit de residências
também leva à especulação e os dois juntos conduzem à periferização da
população mais pobre e, de novo, ao aumento do tamanho urbano.
(SANTOS, 1993, p. 96).

A partir dos últimos 10 anos o setor imobiliário se expandiu de maneira


mais significativa em Russas, inicialmente por meio do lançando de loteamentos
regularizados e pelo crescimento do mercado de venda e locação de prédios
comerciais e residenciais, principalmente no centro da cidade.
No entanto, parece-nos que há pelo menos cinco anos esse setor passa
por uma reestruturação mais significativa e dinâmica que a demonstrada
anteriormente. A nosso ver, esse novo “período” do mercado imobiliário em Russas
pode ser caracterizado pelos seguintes elementos: 1) pelos lançamentos de
loteamentos planejados e fechados, dotados de infraestruturas como pavimentação,
45

água e luz; 2) pela abertura de novos escritórios imobiliários; 3) pelo surgimento de


empresas especializadas na construção civil; 4) pelo crescimento da
comercialização de novas residências e apartamentos; e 5) pela construção de
condomínios verticais e horizontais fechados. Sendo que os três últimos elementos
nos parecem ser dinamizados pelo crescimento ao acesso aos financiamentos e
subsídios habitacionais oportunizados pelo Programa Minha Casa, Minha Vida16.
Como se pôde observar, a expansão urbana e a formação da periferia da
cidade de Russas são processos decorrentes do continuo crescimento populacional,
da modernização das indústrias ceramistas, das ações do Estado, por meio de obras
de infraestrutura, construção de Conjuntos Habitacionais e instalação de órgãos
públicos, e mais recentemente da chegada da indústria calçadista e da atuação dos
proprietários fundiários e dos promotores imobiliários.
Os diferentes interesses e influências desses agentes e dessas
instituições refletem na organização da cidade gerando conflitos, disputas e
disparidades quanto as formas, intensidade e valorização do uso do espaço urbano
que se expande antecipadamente para áreas não urbanizadas e deixa vazios, para
fins especulativos, muitos espaços melhores localizados e já dotados de
infraestruturas públicas.
Essas características são comuns à grande maioria das cidades
brasileiras onde o crescimento populacional esteve desde sempre casado com a
falta de planejamento e de políticas públicas adequadas às novas demandas sociais,
com a insuficiente oferta de empregos e com os baixos salários pagos à nova e
crescente população urbana, o que gerou uma série de problemas.
A demanda por habitações é uma dessas problemáticas e vem se
arrastando ao longo dos séculos, recebendo algumas atenções e intervenções
especiais em alguns períodos e, no entanto, permanecendo sem solução. A seguir,
abordaremos o histórico da evolução do problema da habitação no Brasil e das
intervenções realizadas pelas esferas públicas e privadas nesse setor.

16
Essa interpretação será melhor apresentada no capítulo 4.
46

3 ESTADO, CAPITAL E O “PROBLEMA” DA HABITAÇÃO NO BRASIL

Muito embora as condições de moradia da população oprimida fossem de


extremas precariedades no período colonial (os escravos nas senzalas e os homens
livres e pobres em débeis e coletivos casebres), é com o surgimento da propriedade
privada da terra, através da Lei de Terras de 1850, e do “homem livre”, por meio da
Lei Áurea de 1888, ambas instauras já no período monárquico, que a questão da
moradia da população pobre e desapossada passa a ser percebida como um
problema no Brasil.
Isso se dá pelo fato de que antes da promulgação dessas leis a terra e a
habitação não eram adotadas como mercadorias e nem como direitos essenciais à
todas as pessoas, logo, as condições de moradia da população subalterna não era
uma preocupação social e muito menos uma atividade econômica.
Com a abolição da escravatura e o surgimento do homem livre inicia-se
uma ampla transformação na estrutura social e espacial do país, estimulada e
caracterizada por um grande fluxo de pessoas em direção as cidades, que passam a
ser vistas como o lugar da liberdade e das oportunidades para a construção de um
futuro promissor.
Essa migração acaba conduzindo à gênese do crescimento descontrolado
da população nos principais centros urbanos da época que, pelo desenvolvimento
das atividades urbano-industriais, pareciam ofertar melhores condições de vida e/ou
uma demanda por mão-de-obra suficiente para garantir o trabalho e a sobrevivência
de todo o novo contingente de homens e mulheres “livres”.
No entanto, o crescimento da população urbana acaba por ocasionar uma
série de problemas, dentre esses o crescimento da demanda por novas moradias e
consequentemente o surgimento de precárias formas de habitação. Nesse sentido,
como aponta Villaça (1986),

O problema da habitação popular urbana começa a se constituir no Brasil na


segunda metade do século XIX com a penetração do capitalismo, da
mesma forma como se constituíra na Inglaterra cem anos antes. Naquela
época começou a surgir aqui, como anteriormente havia surgido lá, o
“homem livre”. Este é antes de mais nada um despejado. Despejado de sua
terra, de sua oficina, de seus meios de trabalho, de seus meios de vida.
Começam então a afluir às nossas cidades milhares desses despossuídos,
tanto brasileiros como estrangeiros. Eram os despejados das decadentes
fazendas, como as de café no Vale do Paraíba, eram os despejados da
Itália, eram os despejados das senzalas. Com o enorme crescimento das
47

cidades através dessa população, surge o problema de seu alojamento, ou


seja, surge o problema da habitação enquanto questão social. (p. 14).

Dado a indiferença que o Estado mantém para com as novas demandas


sociais, principalmente para com o acesso a terra, a expansão de infraestruturas e
de serviços públicos e para com o provimento de novas moradias, a situação de
alojamento da população via o fornecimento e a comercialização da habitação passa
a ser “uma atividade exercida pela iniciativa privada, objetivando basicamente a
obtenção de rendimentos pelo investimento na construção ou aquisição de casas de
aluguel.” (BONDUKI, 1982 apud BONDUKI, 1994, p. 712).

Surgem, assim, inúmeras soluções habitacionais, a maior parte das quais


buscando economizar terrenos e materiais através da geminação e da
inexistência de recuos frontais e laterais, cada qual destinado a uma
capacidade de pagamento do aluguel: do cortiço, moradia operária por
excelência, sequência de pequenas moradias ou cômodos insalubres ao
longo de um corredor, sem instalações hidráulicas, aos palacetes
padronizados produzidos em série para uma classe média que se
enriquecia, passando por soluções pobres mas descentes de casas
geminadas em vilas ou ruas particulares que perfuravam quarteirões para
aumentar o aproveitamento de um solo caro e disputado pela intensa
especulação imobiliária. (BONDUKI, 1994, p. 713).

Essas estratégias da iniciativa privada, por não prezarem pelas condições


de habitabilidade oferecidas, acabaram por adensar uma grande quantidade de
pessoas em moradias insalubres e coabitadas, principalmente nos cortiços, que
viraram foco de epidemias e assim passaram a ser vistos como o maior inimigo da
saúde pública e por esse motivo deveriam ser abolidos.
Nas palavras de Villaça (1986),

Ameaçada pelo cortiço (foco de epidemias) mas ao mesmo tempo


necessitando dele, a burguesia deu início a uma série de medidas
ambíguas destinadas a regular sua convivência com ele. De um lado, a
classe dominante precisava de um discurso que Ihe permitisse demolir os
cortiços quando isso fosse necessário, e de outro, precisava mantê-los e
tolera-los pois necessitava deles para abrigar a população trabalhadora.
Essa população, convém lembrar, crescia vertiginosamente não só em São
Paulo e Rio mas em todas as atuais metrópoles do país. (idem, p. 14).

Tratando das condições de vida da população carioca no final do século


XIX, Maricato (1997, p. 27) aponta que ano de 1888 aproximadamente 46.680
pessoas moravam em cortiços localizados nas áreas centrais e que os documentos
48

oficiais da época, que representam julgamentos burgueses e políticos, mencionavam


esse tipo de moradia como “degradantes e imorais, e ameaças à ordem pública.”.
Foi buscando atender os anseios de embelezamento urbano requerido
pela elite carioca, apagando os resquícios espaciais da sociedade escravocrata e
eliminando o caos constituído pelos pobres que habitavam os cortiços no centro da
cidade, que se realizaram no início do século XX as grandes obras da reforma
urbanística do Rio de Janeiro, com a construção de prédios, alargamentos de vias e
instalação de sistemas de saneamento, e que ficaram popularmente conhecidas
como Reforma Passos17.
Embora o exemplo seja o do Rio de Janeiro, obras com esse cunho foram
realizadas em várias outras cidades brasileiras, e seguem o exemplo da famosa
reforma de Paris, planejada pelo Barão de Haussmann. Essas reformas tinham
caráter estritamente estético e higienista, ocorriam apenas nas áreas centrais das
cidades e para sua realização era necessário a demolição dos cortiços e casebres
existentes nessas regiões, expulsando a população pobre que neles residiam.
Maricato (1997, p. 30) ressalta que as motivações dessas mudanças não
estavam restritas “aos aspectos ideológicos, formais, culturais.”. Segundo essa
autora, “na base de toda a transformação estava o processo que torna as
edificações uma mercadoria capitalista, apropriada de forma distinta pelas classes
ou grupos sociais.”.
Ainda que esse processo já tivesse sido promulgado a partir da Lei de
Terras e da institucionalização da Propriedade Privada, era necessário criar outros
mecanismos que garantissem sua instauração de forma mais precisa a fim de
potencializar a atuação dos proprietários fundiários e do então nascente capital
imobiliário.
Nessa conjuntura, segundo Maricato (1997),

Uma complexa legislação que estabelece normas para a construção de


edifícios começa a ser construída. Os códigos de posturas municipais, que
regulamentam a construção e reforma de edifícios, com exigências de
plantas, responsável pela obra, posse legal do terreno etc., terão um papel
fundamental na estruturação do mercado imobiliário. Dessa forma estavam
excluídos os que não reuniam condições para construir (o que exigia posse
legal da terra, capital financeiro, conhecimento técnico, tec.) nem recursos
para comprar uma mercadoria assim definida legalmente. [...]. (p. 30).

17
Em alusão ao então Prefeito da cidade, o Engenheiro Francisco Franco Pereira Passos.
49

Foi nesse contexto de conflitos e reestruturação segregadora do espaço


urbano que ocorreram as primeiras intervenções do Estado no mercado imobiliário e
na produção de moradias. Bonduki (1994) destaca a construção de 120 unidades
habitacionais na Avenida Salvador Sá, no Rio de Janeiro, em 1906, por intermédio
da prefeitura do Distrito Federal, e a construção de 40 unidades em Recife, no ano
de 1926, por meio da Fundação A Casa Operaria. Provavelmente esses foram,
respectivamente, o “primeiro grupo de moradias construídas pelo poder público no
Brasil” e a “primeira instituição pública do país a ser criada especificamente para
produzir habitação com caráter social.” (BONDUKI, 1994, p. 714/715).
Entre os anos de 1921 e 1927, diante da exagerada elevação dos valores
dos alugueis, o Estado criou a Lei do Inquilinato. Essa lei congelou os preços das
locações e visava amortecer os conflitos entre locadores e inquilinos, bem como
diminuir o ônus do aluguel no valor da força do trabalho. No entanto sua
repercussão não foi favorável, uma vez que ela não proibia que os locadores
despejassem seus inquilinos e disponibilizassem o mesmo imóvel novamente para
ser alugado por um valor maior. Nos anos de 1940 essa Lei foi novamente posta em
prática, congelando novamente os preços dos alugueis e gerando grandes
repercussões, entre elas grande quantidade de despejos e a redução da construção
de casas para alugar, uma vez que a venda dos terrenos e das casas passaram a
ser mais rentáveis que o aluguel. (BONDUKI, 1994).
Essas ações do Estado na regulamentação dos alugueis e na produção
de moradias ocorreram sem a formulação de uma política habitacional, foram
pontuais e geraram poucos resultados diante das calamitosas condições de moradia
de grande parte da população. A síntese da visão do Estado nesse período é a de
que o Governo não deve atuar na produção de moradias, mas sim estimular a sua
produção pelo setor privado. Disso surge, entre o fim do século XIX e início do
século XX, o incentivo a criação das Vilas Operárias.
As Vilas Operárias eram formadas por conjuntos de casas construídas
principalmente por industriais nos arredores das suas fábricas para serem alugadas
a preços baixos ou mesmo fornecidas gratuitamente aos seus funcionários. Segundo
autores como Villaça (1986), Bonduki (1994) e Rodrigues (1997) essas Vilas, além
de serem adotadas como uma forma eficiente para amenizar o problema da
habitação, pois garantiam uma higienização e organização do espaço bem diferente
do gerado pelos cortiços, também significavam a fixação e o controle dos operários,
50

seja no sentido trabalhista ou mesmo em relação as determinações impostas aos


moradores sobre a manutenção e uso dos imóveis. Nas palavras de Villaça (1986)
algumas dessas vilas “pelo controle que exerciam sobre a vida comunitária e privada
de seus moradores, se assemelhavam mais a penitenciárias do que a conjuntos
habitacionais modernos.” (p. 17).
Nesse sentido, pode-se observar que o “problema da habitação enquanto
questão social” não surge no Brasil como uma preocupação política intrinsecamente
ligada às condições de moradia da nova população urbana. Ao contrário, ela surge
como uma forma de ampliação dos investimentos e lucros da iniciativa privada, do
incômodo que a elite passa a sentir ao ser cada vez mais “condenada” a viver
cercada pelas precárias e insalubres formas de moradia compostas e
autoconstruídas pelos novos moradores das cidades e do jogo entre o Estado e o
capital privado sobre as responsabilidades e capacidades de resolver tal problema.
Sobre essa última consideração, Villaça (1986) explica que diante da
incapacidade do sistema econômico privado de oferecer habitação para quem não
tem condições de pagar por uma, essa incumbência foi paulatinamente repassada
para o Estado que, mesmo a reconhecendo como sendo de sua obrigação, se
mostrou incapaz de satisfazê-la.
Essa tomada de responsabilidade do Estado sobre o problema
habitacional vai ocorrer com a emergência do governo populista na década de 1930,
momento a partir do qual a classe dirigente passa a disseminar o “conceito
ideológico do ‘problema habitacional’ e da ideia [...] de que esse problema ‘sempre
existiu e sempre existirá’.” (idem, p. 4).
Sobre o papel das ideologias na formulação de projetos políticos, Gabriel
Bolaffi (1982, p. 40) afirma que os problemas da população brasileira “têm sido
formulados falsamente; formulados não a partir das características intrínsecas ao
problema, mas a partir das necessidades da estratégia do poder e das ideologias
[...]". Apesar disso, esses “falsos problemas” não são elaborados desconectados da
realidade.

Os governos e os grupos no poder enfrentam problemas reais, particulares


e determinados, de cuja solução depende a sua possibilidade de manter-se
no poder. Porém, o caráter particular, e não universal, desses problemas
reais exige que a sua verdadeira natureza seja transfigurada para que
possam assumir um significado compatível com a vontade popular. Em
síntese, é esse o processo pelo qual a ideologia mascara os problemas do
51

real e os substitui pelos falsos problemas. Isto é, formulam-se problemas


que não se pretende, não se espera e nem seria possível resolver, para
legitimar o poder e para justificar medidas destinas a satisfazer outros
propósitos. (BOLAFFI, 1982, p. 39/40).

A tomada da habitação como um problema social no período Vargas


(1930-1954) (e nos seus sucessores, como veremos mais adiante), é um bom
exemplo das considerações apresentadas anteriormente. Diante das rupturas
políticas e ideológicas introduzidas pela Revolução de 30, quando as atividades
urbano-industriais são adotadas como centrais para o desenvolvimento da economia
do país, o Estado necessitava de uma estratégia política que garantisse sua
legitimidade e popularidade, o que só seria possível com a criação de um projeto
político que fosse favorável a todos os setores econômicos e grupos sociais, mas
principalmente que agradasse a crescente e carente massa trabalhadora urbana que
passava cada vez mais a direcionar suas reivindicações e insatisfações ao novo
Estado. Nenhum outro setor oferecia tais possibilidades quanto o da habitação.
(FARAH, 1985).
É dentro deste contexto que o Estado passa a agir de forma direta no
setor da habitação. Nesse sentido, afirma Bonduki (1994, p. 717), “a intervenção do
Estado na questão habitacional teve o duplo sentido de ampliar a legitimidade do
regime e viabilizar uma maior acumulação de capital no setor urbano através da
redução do custo de reprodução da força de trabalho.”.
Diante desse jogo de interesses e ações limitadas entre Estado e capital
privado, a problemática condição de vida e de habitação da população carente não
só se manteve como também se ampliou. Tendo sido expulsos do centro das
cidades, dos cortiços e das casas de alugueis e sendo desassistidos do Estado,
mesmo quando se prometia o fazê-lo, esses despossuídos, agora também
desalojados, passaram a autoconstruir suas moradias nas terras livres localizadas
nos arredores das cidades. A maioria desses terrenos eram locais inadequados para
edificação de imóveis, como as encostas de morros e as margens de rios e lagos, e
que ainda não eram atendidos por serviços básicos, como a oferta de água e luz.
Iniciava-se com isso a formação de favelas e a ampliação da segregação
sócio-espacial e das demais problemáticas urbanas, fazendo com que as precárias
condições de vida da massa operária e principalmente dos que não conseguiam
52

empregos formais só viessem a piorar nas décadas seguintes e atingissem a


complexidade com que as conhecemos contemporaneamente.
Isso expõe que, como veremos no tópico a seguir, embora o Estado
brasileiro tenha articulado e realizado uma série de ações que, pelo menos no
âmbito do marketing governamental, objetivassem resolver as problemáticas
habitacionais, o êxito não foi grande e tais problemas acabaram persistindo.

3.1 A HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL NO BRASIL: BREVE HISTÓRICO DAS


POLÍTICAS HABITACIONAIS

Como vimos anteriormente, o Estado brasileiro passou a agir de forma


direta no “problema da habitação” a partir da Revolução de 30, que gerou
significativas mudanças nos direcionamentos políticos e econômicos do país. Os
principais marcos dessa intervenção estatal no âmbito da habitação social é a
criação das Carteiras Prediais dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs),
em 1937, e da Fundação da Casa Popular, no ano de 1946.
Segundo Farah (1985), embora tenha sido através dos IAPs que o Estado
passou a construir conjuntos habitacionais e a financiar moradias isoladas,
sinalizando um novo padrão de ação social, a atuação no setor da habitação não
era, inicialmente, o foco desses Institutos. Tais ações “constituíam, num primeiro
momento, uma das modalidades de aplicação de recursos acumulados pelo sistema
previdenciário, tendo apenas secundariamente o objetivo de atendimento de
necessidade de moradia dos associados dos Institutos.”. (p. 75).
No entanto a partir da década de 1940, com o agravamento das
condições habitacionais, impulsionado com a instituição da Lei do Inquilinato em
1942, que ao congelar os valores dos alugueis, dentre os outros impactos
mencionados anteriormente, gerou o desinteresse na construção de casas para
locação e, por seguinte, novas pressões populares, a atuação dos IAPs no
provimento de moradias foi reforçada pelo Estado. (FARAH, 1985; BONDUKI, 1994).
Infelizmente diante dos escassos recursos, das limitações ao seu acesso
(disponíveis apenas para associados e privilegiando a população de renda média),
dos períodos de congelamento nos valores dos alugueis e do clientelismo na
distribuição das unidades, a atuação dos IAPs não foi muito expressiva para os seus
27 anos de duração. Conforme Farah (1985),
53

Entre 1937, ano em que os programas habitacionais dos Institutos tiveram


início, e 1964, quando se encerraram as atividades da Previdência Social no
setor, foram construídos 279 conjuntos habitacionais no país, num total de
47.789 moradias. No mesmo período, foram financiadas 76.236 habitações,
construídas ou adquiridas por associados da Previdência. (idem, p. 74).

Embora o quantitativo de habitações construídas e financiadas por esses


Institutos não seja tão significativo diante da demanda habitacional da época, é
necessário destacar o pioneirismo e a importância dos investimentos dos IAPs no
setor habitacional, principalmente para a continuidade da atuação estatal.
De acordo com Azevedo e Andrade (2011), casos bem sucedidos da
atuação destes Institutos teriam servidos de inspiração para a criação de uma
entidade de nível nacional destinada a construção de habitações populares. A
conjuntura política da época, que mostrava o crescimento da simpatia popular pela
oposição e principalmente pelo Partido Comunista, teria sido de grande influência
para a materialização dessa ideia, uma vez que ela agiria diretamente numa questão
sensível para as massas urbanas e possivelmente reataria sua confiança política no
Governo.
Foi nesse contexto que o Presidente Dutra criou, no dia 1º de maio de
1946, a Fundação da Casa Popular (FCP), a primeira instituição brasileira voltada
exclusivamente para o fornecimento de residências para a população de baixo poder
aquisitivo. A criação da instituição no dia do trabalho revela que mais uma vez as
ideologias e interesses dos grupos políticos motivaram as ações do Estado, ficando
a busca pela solução do problema habitacional em segundo plano.
Conforme Azevedo e Andrade (2011, p. 2), essa Fundação se propôs
atuar em diversas áreas complementares à habitação, como no financiamento de
obras de infraestrutura e saneamento, o “que fariam dela um verdadeiro órgão de
política urbana lato sensu.”. No entanto, se os variados objetivos atribuídos ao órgão
representavam mudanças na busca pela solução dos problemas habitacionais, “a
tarefa era desproporcional à força, aos recursos e à maturidade institucional da
Fundação da Casa Popular.” (idem, p. 3).
A política distributiva da FCP não exigia níveis mínimos de renda, o que
garantia que a população de baixo poder aquisitivo pleiteasse as casas populares,
no entanto, para conseguir a tão sonhada casa própria, a população precisava
superar a pouca divulgação dos editais, o curto período de inscrição e
54

principalmente o clientelismo na seleção dos candidatos. Além disso, pós a


conquista da habitação, os usuários tinham que passar por uma série de vistorias
realizadas por técnicos da FCP que, de acordo com as avaliações sobre o
comportamento social e individual dos moradores, poderiam recomendar à rescisão
contratual. Essa ação se dava com a justificativa de que as classes populares não
estavam preparadas para a nova vida em comunidade, sendo necessário o
acompanhamento dos usuários para evitar que o caos e a favelização se
alastrassem nos novos empreendimentos. (AZEVEDO; ANDRADE, 2011).
O modelo de atuação da FCP, que praticamente subsidiava quase
totalmente as habitações, e sua dependência aos recursos do Orçamento Federal
acarretou uma crise no sistema e as alternativas propostas para superar as
limitações da Fundação e garantir sua permanência e reestruturação fracassaram.
Logo depois do Golpe de 64, com a queda do Governo de João Goulart e o fim do
populismo, a FCP foi extinta, deixando o pequeno legado 143 conjuntos
habitacionais e 16.964 habitações construídas.
Cinco meses após a extinção da FCP, com um novo regime, mas com as
mesmas pretensões, o problema habitacional voltaria e ser foco da política nacional
com a criação do Banco Nacional da Habitação (BNH) que, conforme Azevedo
(1988), em seus 22 anos de existência iria financiar quase 4,5 milhões de moradias
(especificamente 4.467,329), um numero que, como veremos mais a frente, é
bastante relevante para o contexto político e econômico da época.
Mais uma vez foi diante da necessidade de conquistar a simpatia e o
apoio das massas urbanas, que havia se constituído como o principal apoio dos
governos populistas, que o novo governo ditatorial, institui em 21 de agosto de 1964
o Plano Nacional de Habitação e criou o Banco Nacional da Habitação e o Serviço
Federal de Habitação e Urbanismo. Para garantir os recursos que seriam utilizados
pelo Banco foi criado o Sistema Financeiro de Habitação (SFH).

O Plano Nacional de Habitação – e com este o BNH – surge, assim, num


momento em que é crucial para o novo regime dar provas de que é capaz
de atacar problemas sociais. A percepção é que há “uma vacância de
lideranças”, que “as massas estão órfãs” e “socialmente ressentidas”, e que
é preciso mostrar que o novo governo é receptivo a suas necessidades: que
pode, sem a demagogia da esquerda, agir pronta e seguramente em
benefício delas. (AZEVEDO; ANDRADE, 2011, p. 40).
55

Segundo Azevedo e Andrade (2011) em três aspectos os BNH


representava uma inovação na política habitacional: 1) tratava-se de um banco; 2) os
financiamentos concedidos previam um mecanismo de compensação inflacionária; e
3) buscava articular o setor público com o setor privado. Além disso, o BNH criou
agentes específicos para cada um dos seguimentos do mercado:

Para o mercado popular, que inicialmente pretendia atingir as famílias com


renda mensal de um a três salários mínimos, limite posteriormente ampliado
para cinco, os agentes são as Companhias Habitacionais (Cohabs), que
podem ser estaduais ou municipais. Os do chamado mercado econômico,
encarregados, a princípio, da construção de moradias para mutuários com
renda familiar entre três e seis salários mínimos, limite mais tarde estendido,
têm nas cooperativas habitacionais, formadas basicamente de categorias
profissionais, os interlocutores principais junto ao BNH. Essas associações
não possuem fins lucrativos e formam uma espécie de condomínio,
dissolvendo-se normalmente após a concretização das obras. O mercado
médio compõe-se das famílias de renda mensal mínima de seis salários. É
nele que atuam principalmente os agentes privados, Sociedade de Crédito
Imobiliário (SCIs), Associações de Poupança e Empréstimos (APEs), além
das Caixas Econômicas. Essas instituições, voltadas para a classe média,
formam o Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE).
(AZEVEDO; ANDRADE, 2011, p. 47).

Apesar de toda a organização interna, que garantia o barateamento das


construções, durante seus dois primeiros anos o BNH sofreria com a escassez dos
recursos, o que seria parcialmente resolvido com a criação do Fundo de Garantia
por Tempo de Serviços (FGTS) e do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimos
(SBPE), em 1966, e a designação do próprio BNH como seu gestor. A utilização dos
recursos do FGTS e as estratégias de barateamento das habitações populares
deram folego ao BNH. No entanto, o contexto político e a instabilidade econômica do
país na década de 1970, com arroxo salarial e uma menor arrecadação do FGTS,
acarretou o agravamento no nível de inadimplência, levando a alterações na
estratégia de atuação das COHABs, que passaram a priorizar o setor médio.
(AZEVEDO, 1988; AZEVEDO; ANDRADE, 2011; CARDOSO; ARAGÃO, 2013).
Segundo Azevedo (1988, p. 116) “a partir de 1975 o BNH iniciou uma
série de projetos alternativos baseados na autoconstrução e destinados aos
segmentos mais carentes.”. Era uma tentativa de ampliação do atendimento às
camadas populares para assim amenizar a crise financeira e as críticas à atuação do
Estado no déficit habitacional.
Com a instalação da Nova República, buscou-se inicialmente a
reformulação do SFH e do BNH. No entanto, a “saída” tomada pelo novo Governo
56

diante das críticas e poucos resultados apresentados pelo Banco, foi a de extingui-lo
em 1986, passando suas atribuições e a inadimplência de Cz$ 4,5 bilhões para a
Caixa Econômica Federal. É válido destacar que a maior parte dessa dívida advinha
de planos de desenvolvimento urbano e não diretamente da produção de habitação.
(RODRIGUES, 1997).
Pós o fim do BNH houve uma grande sucessão de órgãos responsáveis
pela gestão da política habitacional do Governo Federal18. Esse período é marcado
pela descentralização da atuação pública no campo da habitação social, uma vez
que, diante da inoperância do Governo Federal, muitos Estados e Municípios
produziram suas próprias iniciativas nesse setor. Apenas no governo FHC se
apresentariam algumas inovações como a criação das Cartas de Crédito, do
Programa de Arrendamento Residencial (PAR) e do Sistema de Financiamento
Imobiliário (SFI). Com o PAR os valores dos financiamentos eram reduzidos por
meio da oferta de subsídios extraídos do FGTS e sua atuação destinava-se à faixa
de renda 3 a 6 salários mínimos. (CARDOSO; ARAGÃO, 2013).
Segundo Cardoso e Aragão (2013, p. 28), “com a eleição de Luiz Inácio
Lula da Silva para Presidência da República, em 2002, abrem-se novas expectativas
para a institucionalização da política habitacional.”. Tal expectativa se fez por conta
da relação que Lula mantinha com os movimentos populares e mais precisamente
de seu envolvimento com o Projeto Moradia19. A criação do Ministério das Cidades e
suas secretarias 20 , em 2003, logo após a eleição de Lula, sinalizava novas e
melhores mudanças na condução da política habitacional, principalmente no que diz
respeito ao atendimento as camadas populares e à participação dos Estados e dos
Municípios na política habitacional, o que se confirmaria nos anos seguintes.
A primeira alternativa para o atendimento da demanda popular foi lançada
em 2004, com a criação do Programa Crédito Solidário, que fornecia financiamentos
à população de baixa renda e para cooperativas e/ou associações. Em 2005 criou-

18
Conforme Cardoso e Aragão (2013, p. 17) “Após a extinção do BNH a política habitacional foi
subordinada à diversos órgãos: Ministério da Habitação, Urbanismo e Meio Ambiente – MHU (1987),
Ministério de Habitação e do Bem-Estar Social – MBES (1988), Secretaria Especial de Habitação e
Ação Comunitária – SEAC (1989), Ministério da Ação Social – MAS (1990), Ministério do Bem-Estar
Social – MBES (1992), Secretaria de Política Urbana – SEPURB (1995) e Secretaria de
Desenvolvimento Urbano – SEDUR/PR (1999-2003).”
19
O Projeto Moradia foi elaborado pelo Instituto Cidadania, do qual Lula era Coordenador, e foi
lançado em 2009. (BONDUKI, 2009).
20
O Ministério se organiza em quatro secretarias: Acessibilidade e Programas Urbanos, Habitação,
Saneamento e Transporte e Mobilidade.
57

se o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e posteriormente o


Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), que, na opinião de
Cardoso e Aragão (2013), “marca um momento inovador na política habitacional, em
que se manifesta um claro compromisso do governo federal em subsidiar a produção
de moradias pra as camadas de mais baixa renda.” (p. 31).
Diante do montante de investimentos e incentivos direcionados ao setor
habitacional, diversas empresas especializadas na construção de imóveis de alto
padrão passam a atender também outros públicos, como a classe média baixa. A
partir de 2005 essa nova dinâmica acarretou um significativo crescimento da
produção e dos preços dos empreendimentos, atingindo elevados índices entre os
anos de 2007 e 2008, caracterizando esse período como o de um boom imobiliário.
Em 2007 o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi criado com o objetivo
de impulsionar o crescimento econômico do país por meio de investimentos em
infraestrutura, destinando parte dos recursos para o setor da habitação, por meio do
Programa de Urbanização de Assentamentos Precários. (BONDUKI, 2009;
CARDOSO; ARAGÃO, 2013).
Em 2008 a crise econômica mundial, iniciada no setor imobiliário norte-
americano, ameaçou a política de expansão econômica do Governo brasileiro, que
como estratégia para superá-la manteve os investimentos previstos pelo PAC e
ampliou o crédito e a atuação dos bancos públicos, principalmente do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). (BONDUKI, 2009;
CARDOSO; ARAGÃO, 2013).
No ano seguinte, 2009, foi lançado o Programa Minha Casa Minha Vida
(PMCMV) com o objetivo de estimular o mercado imobiliário e ampliar o atendimento
às famílias com renda mensal de até 10 salários mínimos. Diante do cenário
econômico em que foi lançado, pode-se dizer que o Programa também se
estabelece como parte das medidas de enfrentamento da crise econômica mundial.
Além disso, Cardoso e Aragão (2013), citando Andrade (2011)21, apontam
que o lançamento do Programa também possuía intencionalidades políticas. A
delegação da então Ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, que posteriormente seria
a indicada de Lula e do Partido dos Trabalhadores (PT) como candidata à

21
Cf. ANDRADE, Eliana Santos Junqueira de. Política habitacional no Brasil (1964 a 2011): do sonho
da casa própria à minha casa, minha vida. Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação
em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2011.
58

Presidência da República, como condutora da apresentação do Programa dá conta


da sua utilização como “marketing político”.
Conforme Santo Amore (2015), os resultados quantitativos do Programa
logo aumentaram sua relevância social e político-partidária, tanto que durante a
disputa eleitoral de 2014 o PMCMV “teve sua continuidade garantida nos discursos e
plataformas de todos os candidatos à Presidência da República, sendo que a
presidenta reeleita já tinha se adiantado no compromisso com uma nova fase a partir
de 2015.” (p. 18).

3.2 CONHECENDO O PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA

Lançado aos 25 de março de 2009 como Medida Provisória (MP nº 459),


posteriormente transformada na Lei nº 11.977, de 07 de julho de 2009, e no Decreto
nº 6962, de 17 de setembro do mesmo ano, o Programa Minha Casa Minha Vida
trazia como meta a construção de 1 milhão de casas à serem destinadas à famílias
com renda mensal de até 10 salários mínimos. Para alcançar tal objetivo foram
investidos 34 bilhões de reais, oriundos do OGU (R$ 25,5 bilhões), do FGTS (R$ 7,5
bilhões) e do BNDES (R$ 1 bilhão), sendo esse último valor destinado para obras de
infraestruturas urbanas. (CARDOSO; ARAGÃO, 2013; SANTO AMORE, 2015).
Em junho de 2011, dois anos após o lançamento do PMCMV, quando a
meta de 1 milhão de unidades contratadas já havia sido atingida, o Governo lançou
a segunda fase do Programa (PMCMV 2), agora com objetivo de atingir o montante
de 2 milhões de unidades habitacionais (UHs). O PMCMV 2 trouxe mudanças nos
valores das faixas de acesso, ampliou os preços máximos das unidades e definiu
novas exigências na estrutura dos empreendimentos. Algumas dessas mudanças
serão informadas ao longo das explicações gerais sobre o PMCMV.
A distribuição territorial das unidades habitacionais ocorre de maneira
proporcional ao déficit habitacional, segundo o qual foram traçados valores máximos
de recursos a serem acessados por cada estado. Essa forma de repartição dos
recursos não agradou a todos os estados, uma vez que alguns desses logo
atingiram os limites para eles definidos, necessitando requerer sua ampliação,
enquanto outros apresentam uma demanda bem abaixo do limite deliberado.
(CARDOSO; ARAGÃO, 2013).
59

No âmbito social, a distribuição dos recursos se deu por meio de três


grupos organizados por faixas de renda: a Faixa 1 inclui famílias com renda entre 0 e
3 salários mínimos, a Faixa 2 destina-se à famílias com renda entre 3 e 6 salários
mínimos e a Faixa 3 às famílias com renda de até 10 salários mínimos.
Seguindo a política de aumento anual do valor do salário mínimo que o
Governo vem aplicando, os valores máximos de cada uma das Faixas foram
ampliados na segunda fase do Programa, conforme se mostra na tabela a seguir.

Tabela 01 - Valores das Faixas de renda por fase do PMCMV


Faixas Fase 1 Fase 2
Faixa 1 Até 1.395,00 reais Até 1.600,00 reais
Faixa 2 De 1.395,01 a 2.790,00 reais De 1.600,01 a 3.100,00 reais
Faixa 3 De 2.790,01 a 4.650,00 reais De 3.100,01 a 5.000,00 reais
Fonte: Adaptado de Santo Amore (2015). Elaborado pelo Autor.

A divisão total das UHs entre essas Faixas se daria da seguinte maneira:
400 mil para a Faixa 1, 400 mil para Faixa 2 e 200 mil unidades para a Faixa 3. Essa
divisão foi foco de criticas pois, a estimativa do déficit habitacional, utilizada como
norteadora no Programa, indica uma maior concentração da carência habitacional
no grupo referente a Faixa 1 do Programa, que no entanto, recebe a mesma
quantidade de unidades que a Faixa 2, onde o déficit é mais ameno.
No site do Ministério das Cidades, uma publicação atualizada em 28 de
julho de 2014 mostra uma nova divisão para as Faixas do Programa e os valores
máximos a elas referentes. Conforme a notícia: “A segunda faixa, que ia de R$
1.600,01 a R$ 2,325 mil passa para R$ 2,455; a terceira faixa de ganhos - até R$ 3,1
mil - sobe para R$ 3,275 mil; e o teto da quarta faixa continua em R$ 5 mil.”22.
Esquematizamos essa informação na tabela seguinte:

22
As referidas informações estão disponíveis no endereço eletrônico: <
http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2012/10/valores-de-imoveis-adquiridos-por-programa-
de-habitacao-sao-reajustados >. Acesso realizado em 15 de outubro de 2015.
60

Tabela 02 - Esquematização das informações contidas no site do Ministério das Cidades


Faixas Fase 2 Fase 2 atualizada
Faixa 1 Até 1.600,00 reais Até 1.600,00 reais
Faixa 2 De 1.600,01 a 2.325,00 reais De 1.600,01 a 2.455,00 reais
Faixa 3 De 2.455,01 a 3.100,01 reais De 2.455,01 a 3.275,00 reais
Faixa 4 De 3.100,01 a 5.000,00 reais De 3.275,01 a 5.000,00 reais
Fonte: Ministério das Cidades. Organizado pelo autor.

Ou seja, conforme a publicação, a Faixa 2 teria seus valores ampliados e


divididos em duas faixas, criando uma espécie de “Faixa Intermediária” entre a Faixa
2 e a Faixa 4 (ou Faixa 3, na divisão com três Faixas). Embora não tenhamos tido
acesso as definições dos valores, essa divisão certamente permite o abatimento nas
taxas de juros, maiores descontos pelo FGTS e acesso à uma maior variedade de
preços de imóveis as famílias com renda entre R$ 1.600,01 e R$ 3.275,0023.
As formas de acesso ao programa ocorrem de maneira diferenciada para
cada uma dessas Faixas. No caso da Faixa 1 o acesso ocorre por meio de seleção
organizada pelos estados, municípios e/ou entidades e associações, que leva em
consideração uma série de fatores sociais, e é supervisionada pela CEF ou pelo
Banco do Brasil (BB), que passou a atuar junto do Programa a partir de 2012. Os
municípios também participam do processo por meio principalmente da doação dos
terrenos e oferta de infraestruturas.
A construção fica a cargo do setor privado, que escolhe a localização e
demais características dos empreendimentos. Pós a conclusão da obra a CEF ou o
BB compram o empreendimento e inicia o processo de comercialização e entrega
aos candidatos selecionados.
Os subsídios ofertados para essa faixa é praticamente integral, podendo
chegar a até 90% do valor total, sendo o restante financiado em parcelas com valor
máximo 10% da renda familiar. Na segunda fase do Programa o valor mínimo das
prestações passou a ser R$ 25,00, anteriormente era de R$ 50,00. Os recursos para
o atendimento dessa Faixa são provenientes do OGU, por meio do Fundo de
Desenvolvimento Social (FDS), e a deliberação é realizada por diferentes
Subprogramas e modalidades como: FAR, PMCMV Entidades, Programa Nacional

23
Diante da não comprovação institucional dessa nova divisão e tendo em conta que as referências
por nós utilizadas trabalham com a divisão em apenas três faixas, essa será mantida neste trabalho,
como exposto na Tabela 01.
61

de Habitação Rural (PNHR) e PMCMV para municípios com menos de 50.000


habitantes.
Para as Faixas 2 e 3 não são realizadas chamadas de seleção dos
futuros usuários. A CEF ou BB realizam averiguação dos projetos apresentados
pelas construtoras e após aprova-los os libera para comercialização. Todo o
processo de comercialização é realizado pelas próprias construtoras, por imobiliárias
e/ou pela CEF durante os “Feirões Caixa da Casa da Própria”. Os valores dos
subsídios variam de acordo com a renda familiar e o financiamento é fomentado com
recursos oriundos do FGTS.
O PMCMV estabelece ainda valores máximos para as UHs. Esses valores
variam de acordo com o tipo de habitação (casa ou apartamento) e tipologia dos
municípios (capitais, regiões metropolitanas, Distrito Federal e municípios com
população igual ou superior a 50 mil habitantes). Na segunda fase do Programa
houve a atualização desses valores e a inclusão dos municípios com população
entre 20 e 50 mil habitantes, desde que esses atendam aos requisitos estabelecidos,
como o de ter pelo menos 70% da população urbana.
A Tabela 03 trás a evolução dos valores máximos das UHs para a Faixa 1
do PMCMV para os municípios cearenses e a Tabela 04 mostra a evolução dos
valores para as Faixas 2 e 3 do Programa para os municípios com população entre
50 e 250 mil habitantes, tipologia em que Russas está inserida.

Tabela 03 - Valores máximos das UHs da Faixa 1 por características dos municípios cearenses
Valores máximos para Faixa 1
UF Localidade Fase 1 Fase 2
Apartamento Casa Apartamento Casa
Capital e reg.
R$ 45.000,00 R$ 41.000,00 R$ 56.000,00 R$ 54.000,00
metropolitana
Demais
R$ 41.000,00 R$ 37.000,00 R$ 49.000,00 R$ 49.000,00
CE Municípios
Municípios
entre 20 e 50 Não se aplica Não se aplica Não se aplica R$ 45.000,00
mil habitantes
Fonte: Elaborado pelo autor com base em Cardoso e Aragão (2013) e na Portaria Nº 325, de 7 de
julho de 2011.
62

Tabela 04 - Valores máximos das UHs das Faixas 2 e 3 para municípios com população entre
50 e 250 mil habitantes
Valores máximos para as Faixas 2 e 3
Localidade
Fase 1 (2009) Fase 2 (2012)
Municípios entre 50 e 250
R$ 80.000,00 R$ 115.000,00
mil habitantes
Fonte: Elaborado pelo autor com base em Santo Amore (2015).

Como se pôde observar nos parágrafos anteriores, embora o Estado


participe das transações e seleções realizadas no âmbito do Programa e busque
supervisionar os empreendimentos criando exigências mínimas, o setor privado tem
grande autonomia dentro do PMCMV, podendo escolher a localização e as demais
características dos empreendimentos, bem como, atribuir a eles valores distintos,
desde que estejam dentro da margem máxima permitida.
Esse privilégio concedido ao setor privado está entre as principais críticas
que são feitas ao Programa e pode ser viabilizador de outras. Cardoso e Aragão
(2013, P. 44) sintetizam as críticas feitas ao PMCMV em 8 pontos:

(i) a falta de articulação do programa com a política urbana; (ii) a ausência


de instrumentos para enfrentar a questão fundiária; (iii) os problemas de
localização dos novos empreendimentos; (iv) excessivo privilégio concedido
aos setor privado; (v) a grande escala dos empreendimentos (vi) a baixa
qualidade arquitetônica e construtiva dos empreendimentos; (vii) a
descontinuidade do programa em relação ao SNHIS e a perda do controle
social sobre a sua implementação. A esses pontos, já destacados por várias
análises, acrescentamos ainda (viii) as desigualdades na distribuição dos
recursos como fruto do modelo institucional adotado. Esses pontos serão
abordados a seguir.

É possível constatar que a maioria das críticas apontadas pelos autores


são decorrentes da hegemonia concedida ao setor privado em relação a construção
dos empreendimentos e da deficiente atuação do Estado como agente regulador em
todas as instâncias e principalmente da disposição espacial nas múltiplas escalas de
atuação do Programa.
Analisando a inserção e o crescimento da participação do setor privado
no campo da habitação popular, Shimbo (2010) mostra o quão atrativo esse ramo
tem se tornado, destacando a autonomia das empresas, o acesso aos recursos
públicos e as estratégias utilizadas para o barateamento dos gastos de construção.
63

O importante aqui é destacar que a habitação social transformou-se, de fato,


num mercado. Ou, em outras palavras, o mercado imobiliário descobriu e
constituiu um nicho bastante lucrativo: a incorporação e a construção de
unidades habitacionais com valores até duzentos mil reais, destinadas para
famílias que podem acessar os subsídios públicos ou não – mas que
necessariamente acessam o crédito imobiliário. (SHIMBO, 2010, p. 342).

Shimbo (2010) destaca três elementos que justificam a expansão da


atuação do setor imobiliário no campo da produção da habitação social de
mercado 24 : 1) o acesso aos recursos públicos, que garantem a lucratividade da
atividade; 2) o discurso que legitima a atuação do setor privado independente da
faixa e modo de atuação; e 3) as dimensões da política e da produção habitacional
em si.
Além disso, conforme a mesma autora, tanto as empresas como o Estado
buscam resultados rápidos, um no campo dos negócios (lucro) e outro no campo
político (marketing governamental e partidário), respectivamente, e um programa
como o PMCMV, com a meta de construir dois milhões de unidades habitacionais
proporciona alcançar ambos os interesses. (SHIMBO, 2010, p. 342).
Concordando com esses pressupostos, Pequeno e Rosa (2015) afirmam
que “as prefeituras municipais pouco têm influído nos processos decisórios,
porquanto o PMCMV teve como objetivo maior a dinamização da economia
mediante a produção habitacional.”. (p. 144).
Cardoso e Aragão (2013) também enfatizam que, dentro desse contexto
de privilégio concedido ao setor privado em detrimento da participação do poder
público, sobretudo do municipal, como agente controlador dos empreendimentos, se
confirmou a tendência de o Programa repetir a produção de grandes conjuntos de
moradias localizados em áreas periféricas e a de reforçar o crescimento do preço da
terra.
Será atentando para elementos como os descritos anteriormente que
buscaremos mostrar no próximo capítulo os principais resultados e características
decorrentes do Programa Minha Casa Minha Vida na cidade de Russas, destacando
a quantidade, tipologias, valores e localização dos empreendimentos.

24
Shimbo (2010) utiliza o termo “produção da habitação social de mercado” para se referir as novas
configurações e estratégias do setor imobiliário na produção de habitação para o segmento
econômico.
64

4 O PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA NA CIDADE DE RUSSAS

A expansão do espaço urbano de Russas ocorreu através da ocupação


de loteamentos irregulares e de terrenos ociosos, sobretudo dos localizados nos
bairros periféricos da cidade, onde o mercado de terras se dava de maneira informal
e oferecia lotes com preços bem menores que os terrenos localizados nas áreas
centrais, uma vez que essas primeiras não eram espaços de interesses e atuação
do setor imobiliário.
Embora os valores cobrados pela terra urbana nas áreas centrais e nas
periféricas ainda apresentem uma grande diferença, a realidade que o setor
imobiliário do município vivencia atualmente é um pouco diferente da anterior. O
crescimento econômico e populacional que a cidade vem apresentando nos últimos
anos proporcionou um maior crescimento do setor, que se reestruturou e ampliou
suas áreas de interesses e modos de atuação.
No entanto, a nosso ver, como dito no capítulo 2, os incentivos oriundos
do Programa Minha Casa Minha Vida para a comercialização de moradias tem
oportunizado uma nova e maior expansão do setor imobiliário em Russas, incluindo
a construção civil, pois vem possibilitando um crescimento no mercado habitacional
de uma forma nunca antes vista na história da cidade.
Até dezembro de 201425, conforme dados disponibilizados pelo Ministério
das Cidades, 438 unidades habitacionais (UHs) haviam sido contratadas na cidade
de Russas através do PMCMV. Os primeiros contratos foram realizados ainda em
2009, mesmo ano de criação desse Programa, e desde então o total de UHs
contratadas através do PMCMV cresceu consideravelmente, passando de 09, em
2009, para 173, em 2014.
Através do Gráfico 02 podemos analisar a distribuição desses contratos
por cada ano. Observa-se que durante os três primeiros anos de atuação do
Programa o total de unidades contratadas teve um aumento contínuo, apresentando
uma queda em 2012, retomando o crescimento no ano seguinte e dando um

25
Como explicado na introdução deste trabalho, os dados conseguidos junto ao Ministério das
Cidades referem-se ao período de 2009 a 2014. Assim, as formulações sobre o ano de 2015 têm
como base os trabalhos de campo e as conversas que realizamos com alguns sujeitos diretamente
envolvidos com o mercado imobiliário e com o PMCMV na cidade de Russas, especificamente com
promotores imobiliários e moradores das UHs financiadas e subsidiadas pelo Programa.
65

verdadeiro salto em 2014, quando apresenta um crescimento de 102 unidades em


relação a 2013.

Gráfico 02 - Total de UHs contratadas através do PMCMV em Russas por ano

173

UHs Contradas
72 71
54 59

2009 2010 2011 2012 2013 2014


Fonte: Ministério das Cidades (dados não publicados). Organizado pelo Autor.

Para o ano de 2015, embora não tenhamos conseguido dados oficiais,


através das observações registradas durante nossos trabalhos de campo e perante
a construção e divulgação de novos empreendimentos, consideramos que muito
provavelmente esse ritmo de crescimento esteja sendo mantido.
Esse crescimento no total de UHs contratadas também implica em um
crescimento nos valores direcionados ao setor imobiliário da cidade. Como se pode
observar na Tabela 05, a soma total dos valores dos contratos realizados entre 2009
e 2014 equivale a R$ 37.300.582,00.

Tabela 05 - Soma dos valores dos contratos realizados entre 2009 e 2014
Ano UHs contratadas Soma dos valores dos contratos
2009 9 R$ 682.826,00
2010 54 R$ 2.805.779,00
2011 72 R$ 5.871.027,00
2012 59 R$ 4.979.537,00
2013 71 R$ 6.993.759,00
2014 173 R$ 15.967.654,00
Totais: 438 R$ 37.300.582,00
Fonte: Ministério das Cidades (dados não publicados). Organizado pelo Autor.
66

Ao realizarmos a divisão desse valor pelo número de UHs contratadas


nesse período temos uma média de aproximadamente R$ 85.161,15. No entanto,
essa média não é real, uma vez que despreza a variação dos valores dos imóveis,
seja por meio das diferentes faixas do Programa, pelas características de cada
unidade, como número de cômodos e localização, por exemplo, ou mesmo pelo
aumento nos valores que o mercado imobiliário vem aplicando aos imóveis,
seguindo as atualizações dos valores máximos dos imóveis, como mostrado no
capítulo anterior.
Conforme os contratos que tivemos acesso, os valores das unidades
variam entre R$ 80.000,00 e R$ 112.000,00, quando adquiridas junto aos bancos.
No entanto, esse valor pode passar de R$ 130.000,00 quando adquiridas através
das imobiliárias e construtoras, como mostra o anuncio representado na Figura 05.

Figura 05 – Exemplo de imóvel vendido através do PMCMV com valor acima do teto máximo

Fonte: Site de uma Corretora Imobiliária da cidade. Acesso em dezembro de 2014.


67

Aparentemente, embora as unidades sejam avaliadas pela CEF ou pelo


BB, o mercado tem utilizado de manobras que lhe possibilita vender as unidades por
um preço maior que o limite indicado para o grupo de cidades no qual Russas se
enquadra.
Embora não tenhamos recebido nenhuma confirmação dos corretores
imobiliários sobre essa forma de atuação, acreditamos que nestes casos, para que o
empreendimento seja contemplado com os benefícios do PMCMV, seja necessário
que o comprador realize o pagamento de uma “entrada” que implicará na indicação,
no contrato de compra e venda do imóvel pelo PMCMV, de um valor menor que o
mercado cobra pela unidade.
Seguindo esse raciocínio, no caso especificado na Figura 05 o cliente
teria de realizar uma entrada de pelo menos R$ 20.000,00. Esse valor seria
repassado à imobiliária ou à construtora, que geralmente atuam em parceria,
acarretando uma “queda” no valor do imóvel a ser indicado à CEF ou ao BB e
posteriormente no contrato de compra e venda. No caso exemplificado o valor
passaria de R$ 133.000,00 para R$ 113.000,00, incluindo a unidade nos limites
definidos pelo PMCMV em Russas, qual seja o de R$ 115.000,00.
O que certamente corre nesses casos é que como o mercado imobiliário
apresenta grandes taxas de valorização, os valores de comercialização dos imóveis
acabam por logo ficarem maiores que os tetos máximos definidos pelo Programa, já
que esses só têm tido sua atualização anunciada junto com o lançamento de uma
nova fase do Programa.
A própria estimativa de preço indicada pelos avalistas dos bancos podem
ser maiores que o teto definido pelo PMCMV, impossibilitando que a unidade seja
comercializada através do Programa. Em qualquer um dos casos observa-se que
ônus é repassado para o cliente que terá de alguma forma que arcar com o valor
extrapolado.
Se por um lado, considerando a média geral e os preços indicados nos
contratos, os valores da habitação seriam “relativamente aceitáveis” para uma
cidade com um mercado imobiliário em expansão e que vem comercializando lotes
com valores que chegam a R$ 60.000,00, por outro ele é preocupante.
Esses preços indicam que, embora essas UHs estejam sendo
comercializadas com o apoio de um Programa que visa combater o déficit
68

habitacional, seus preços de mercado tendem a excluir a população de menor poder


aquisitivo, justamente a que configura maior parte do déficit.
Tal contradição já era prevista desde o lançamento do Programa, uma vez
que a divisão do total das unidades habitacionais para a faixa de menor poder
aquisitivo, onde se concentra o déficit habitacional, era igual a disponibilizada à
população com faixa de renda entre 3 e 6 salários mínimos. (SANTO AMORE,
2015).
Além disso, o mercado imobiliário, visando a ampliação máxima dos
lucros, tende a preferir comercializar empreendimentos que possam ser vendidos
por maiores valores, escolhendo assim as Faixas 2 e 3 como o seu “público alvo”.
Essa escolha também se faz sob influência da demanda que cada cidade pode
apresentar, que por sua vez não deixa de ser influenciada pelo padrão estético e
locacional que os empreendimentos dessas faixas apresentam em relação a
primeira.
De acordo com os dados disponibilizados pelo Ministério das Cidades, a
preferência pelas Faixas 2 e 3 também tem sido a realidade e a tendência da
produção imobiliária comercializada por meio do PMCMV na cidade de Russas.
Conforme se pode observar na Tabela 06, entre 2009 e 2014 nenhuma habitação foi
construída com o objetivo de atender a Faixa 1 do Programa.

Tabela 06 - Distribuição dos Empreendimentos pelas Faixas do PMCMV


Ano Faixa 1 Faixa 2 Faixa 3 Total
2009 0 9 0 9
2010 0 53 1 54
2011 0 68 4 72
2012 0 59 0 59
2013 0 66 5 71
2014 0 168 5 173
Total: 0 423 15 438
Fonte: Ministério das Cidades (dados não publicados). Organizado pelo Autor.
69

De acordo com a Lei Municipal nº 1276, de 10 de maio de 2010 26 , a


Prefeitura Municipal de Russas, objetivando a construção de casas para famílias
com renda mensal de até 3 salários mínimos, no âmbito do PMCMV, doou ao
FAR/CEF um terreno de 75.178,50 m², dividido em 500 lotes distribuídos em 11
quadras, localizado na “Lagoa dos Enforcados” e avaliado em R$ 900.000,00.
No entanto, foi apenas em maio de 2013 que a Prefeitura Municipal de
Russas anunciou a construção de 500 casas populares27 por meio do PMCMV, onde
todas as unidades seriam destinadas exclusivamente para famílias com renda de até
3 salários mínimos, ou seja, para Faixa 1 do Programa.
Os recursos destinados à construção do empreendimento e a sua
comercialização ficaram a cargo do Banco do Brasil. Já a construção das unidades
habitacionais seria realizada pela construtora CRD Engenharia28.
Em julho de 2013 a Prefeitura realizou o cadastramento das famílias
interessadas em concorrer às unidades, que deveriam ter suas obras iniciadas em
setembro daquele mesmo ano e entregues 12 meses depois. No entanto, até o
presente momento nenhuma obra foi iniciada no terreno destinado ao
empreendimento. Segundo membros da Prefeitura Municipal de Russas as obras
dessas casas ainda não foram iniciadas por conta do atraso na liberação dos
recursos junto ao Governo.
O que mais chama a atenção neste caso é o “clima” de aceitação e a falta
de cobrança por parte da sociedade, principalmente das que realizaram seu
cadastro para concorrer a uma das unidades, bem como dos políticos locais, que
parecem terem “esquecido” o processo e, mais que isso, não se importarem com as
demandas da população.
Acreditamos que a ausência de movimentos sociais na cidade e a não
articulação dos solicitantes acaba deixando a realização das obras públicas
entregues as decisões e “boas” vontades do Estado. Este, principalmente na figura
dos agentes que melhor podem se beneficiar em escala local, sabem que a
construção de 497 casas populares, ou simplesmente a renovação dessa promessa,
tende a lhes render maior prestigio e reconhecimento, transfigurando o Projeto em

26
Disponível em: < http://www.camararussas.ce.gov.br/painel/uploads/946976f354f6fa53e4b1.pdf >.
Acesso em: 09 de outubro de 2015.
27
Posteriormente esse número foi corrigido para 497.
28
Informações extraídas de notícias disponibilizadas no site da Prefeitura Municipal de Russas
(russas.ce.gov.br/) e no site RussasNews.com (russasnews.com.br/).
70

uma “carta-coringa” que, com a ajuda de um bom marketing político, se transformará


em apoio e votos nos períodos eleitorais.
Voltando aos dados apresentados na Tabela 06, podemos observar
também que entre 2009 e 2014 a grande maioria dos contratos realizados em
Russas se deu através da Faixa 2, totalizando, durante esses seis anos, 423
unidades comercializadas apenas nessa Faixa. Já a Faixa 3 teve um total de apenas
15 unidades contratadas no mesmo período. Se comparado com a Faixa 2 esse
número é bastante reduzido e foi requerido de forma esporádica ao longo dos anos.
Em 2015, conforme informações recolhidas durante nossos trabalhos de
campo e com os corretores imobiliários, a Faixa 2 continua sendo a que apresenta
maior quantidade de empreendimentos comercializados. Já a Faixa 3, além de
também apresentar novas aquisições, será futuramente atendida por
empreendimentos com unidades de preços equivalentes apenas ao seu teto máximo
(R$ 115.000,00).

4.1 AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DOS EMPREENDIMENTOS

Os empreendimentos comercializados pelo PMCMV podem ser casas ou


apartamentos e estarem inseridos ou não em condomínios e residenciais ou
organizados em agrupamentos de casas. Para cada um desses existem requisitos
mínimos que devem ser cumpridos para que o projeto seja aprovado pela CEF para
então poder ser comercializado através do Programa.
Em Russas ocorre a comercialização de todos esses tipos de
empreendimentos, no entanto há a predominância dos conjuntos de casas
construídas de forma geminadas e de arquitetura semelhante, formando pequenos
conjuntos que estão padronizando a paisagem de alguns trechos da cidade. Essa
forma de construção é uma estratégia utilizada pelas empresas a fim de economizar
espaço, materiais, tempo de construção e trabalho, garantindo uma maior taxa de
lucro.
Como dito no início deste capítulo os primeiros contratos realizados pelo
PMCMV em Russas foram efetivados ainda em 2009. Tratava-se de apartamentos
localizados no Bairro Tabuleiro do Catavento, mas que, segundo as definições do
IBGE, a localização desse empreendimento se encontra fora dos limites desse bairro
e até mesmo do espaço urbano da cidade.
71

Esses apartamentos são organizados por blocos, sendo que cada bloco é
composto por oito apartamentos, todos compostos por dois quartos, um banheiro,
sala e cozinha americana, e que são distribuídos em quatro tipos plantas com área
total variando entre 47,69 m² e 49,73 m². Conforme os dados que constam nos
contratos de compra e venda, os apartamentos de planta Tipo B, com 49,73 m²,
eram vendidos pelo valor de R$ 42.000,00. (Ver Figura 06).

Figura 06 - Primeiros empreendimentos comercializados através do PMCMV em Russas

Fonte: Alencar e Sousa (2014).

A partir de 2010 iniciou-se a construção de residências agrupadas,


formando os primeiros conjuntos de casas construídas na cidade através do PMCMV
e se localizaram inicialmente nos bairros Tabuleiro do Catavento, Vila Ramalho e
Vila Matoso.
Foi a partir desse momento que começaram a surgir as empresas de
construção civil cujo seus proprietários são da cidade. Essas empresas se firmaram
no mercado local e atualmente podem ser vistas como “especializadas” na
construção de casas para serem vendidas através do PMCMV.
A maioria dessas casas possuem dois ou três quartos, sala de estar e
jantar, cozinha americana e com um ou dois banheiros (no caso de unidades com
suíte). Todas possuem frente murada, espaço para garagem, portão de alumínio e a
72

grande maioria possui equipamentos de segurança como cercas elétricas, interfones


e alarmes no portão, e algumas possuem também circuitos de câmeras. (Figura 07).

Figura 07 - Exemplo de conjunto de casas no bairro Vila Ramalho

Fonte: Lima (2014).

Em alguns casos específicos esses equipamentos de segurança estão


incluídos nos valores das UHs. No entanto, na grande maioria dos empreendimentos
esse “investimento” fica a cargo do contratante, que para adquirir esses
equipamentos poderá compra-los nas empresas especializadas em vendas e
instalação de aparelhos de segurança residencial, e que são prontamente indicadas
pelos construtores ou corretores imobiliários. Os kits contendo cercas elétricas,
alarmes e instalação podem ser encontrados na cidade por aproximadamente R$
1.300,00.
Assim, não é exagero afirmar que as casas aparentam serem feitas para
abrigar o “receio” natural que muitas vezes os novos moradores possuem por
estarem habitando espaços diferentes dos quais sempre tiveram costume de morar.
E quando o novo endereço se localiza em um bairro periférico, caracterizado por
moradias precárias, falta de iluminação nas vias e frequentemente abordado como
área “perigosa”, esse receio tende a se transformar propriamente em “medo”.
A própria organização desses conjuntos reforça esse “medo”, uma vez
que criam ruas formadas por casas muradas, fechadas, sem espaços de convivência
em seu entorno e onde haverá sempre poucas pessoas circulando. Junta-se a isso o
73

fato de muitas pessoas trabalharem o dia todo e por isso passarem pouco tempo em
casa, aumentando a “necessidade” de ter um equipamento que tende a aumentar a
segurança da residência.
Além disso, como veremos em outras imagens mais adiante, esses
elementos indicam que arquitetura do padrão de habitação disseminado pelas
construtoras compreende a habitação apenas como local de moradia, negando sua
relação com o seu entorno imediato e com a cidade.
Quanto aos valores das UHs, esses variam de acordo com a área (total e
construída), os tipos e padrões das unidades (podendo ser duplex ou térreo e ter
acabamento “diferenciado”), a faixa a que se destinam e a localização. Com base
nos valores dos contratos que tivemos acesso os valores da UHs vêm apresentando
um aumento considerável ao longo dos anos.
Para termos de exemplificação da variação e elevação dos preços dos
empreendimentos, comparamos 29 os valores que constam nos contratos de duas
30
unidades com características semelhantes , porém localizadas em bairros
diferentes, uma no bairro Tabuleiro do Catavento e outra no bairro Planalto da
Catumbela, e adquiridas também em anos diferentes, 2014 e 2015, respectivamente.
A casa localizada no bairro Tabuleiro do Catavento e adquirida no ano de 2014 foi
comercializada pelo valor de R$ 83.000,00. Já a unidade localizada no bairro
Planalto da Catumbela foi comercializada por R$ 112.000,00. Uma diferença de R$
29.000,00.
Muito embora estejam em áreas diferentes, no entanto ambas com
grande valorização atualmente, esse acréscimo de aproximadamente 30 mil reais no
valor de imóveis com características semelhantes no intervalo de um ano mostra o
quanto o mercado de habitação está aquecido na cidade de Russas. Informações
repassadas por famílias que adquiriram suas casas recentemente dão conta da
existência inclusive de uma “lista de espera” que, dependendo da localização, valor
e características da unidade, pode levar meses para ser atendida. O que aponta a
ausência de um “estoque” de habitação no mercado, revelando que a procura e o
acesso à moradia continua crescendo.

29
A comparação foi realizada utilizando os valores de compra e venda dos imóveis especificados nos
contratos fornecidos pelos compradores das unidades.
30
A única diferença entre as unidades decorre de que a adquirida em 2015 possui dois banheiros, no
mais, ambas possuem os mesmos cômodos.
74

Em 2013 os promotores imobiliários lançaram dois empreendimentos com


estrutura inédita na cidade e na Região do Baixo Jaguaribe: o Condomínio
Residencial Santiago I e II (Figura 08) e o Condomínio Residencial Paraiso de
Russas (Figura 09). Ambos os condomínios também têm suas unidades
comercializadas através do PMCMV, sendo que o Condomínio Santiago também
comercializa suas unidades por meio do financiamento próprio e o Condomínio
Paraiso de Russas apresenta, pelas estratégias dos corretores responsáveis pela
venda das suas unidades, grande flexibilidade de negociação.

Figura 08 - Imagem ilustrativa do Condomínio Residencial Santiago I e II

Fonte: Página da Construtora CS Construções no Facebook. (2015).


75

Figura 09 - Imagem ilustrativa do Condomínio Paraiso de Russas

Fonte: Página no Facebook da Corretora de Imóveis Nataliana Gonçalves (2015).

O Condomínio Santiago I e II é um condomínio vertical localizado no


bairro Vila Matoso, nas proximidades do Campus da Universidade Federal do Ceará,
área estratégica para o mercado Imobiliário31. Formado por 166 apartamentos, que
são distribuídos em duas torres de seis andares, sendo cada uma dessas equipadas
com um elevador, o condomínio conta também com espaço de recreação, salão de
festas, guarita de vigilância 24 horas e estacionamento.
Os valores das unidades variam de acordo com os tamanhos das plantas,
sendo que a de menor valor custa R$ 90.000,00 32 . Todas as unidades desse
empreendimento que são comercializadas através do PMCMV são incluídas na
Faixa 3 do Programa.
Já o Condomínio Residencial Paraiso de Russas é um empreendimento
horizontal, localizado no Bairro Tabuleiro do Catavento e planejado para ser
composto por 60 residências e oferecer aos seus moradores guarita de entrada,
piscina e churrasqueira coletivas. A comercialização das unidades que o compõe se
dá em sua grande maioria pelo PMCMV, e podem ser adquiridas pelas faixas 2 ou 3
do Programa.

31
Uma discussão sobre a relação entre o lançamento e a localização desse empreendimento e sua
proximidade com o Campus da UFC-Russas foi realizada no segundo capítulo.
32
Valor em 2014.
76

Além das casas já construídas, os corretores imobiliários vêm


comercializando também lotes localizados no interior desse condomínio para que o
cliente possa construir sua casa de acordo com os seus anseios pessoais.
Em 2015 foram iniciadas as vendas de mais um condomínio fechado na
cidade, o Residencial Village Catumbela I (Figura 10). Localizado no Bairro Planalto
da Catumbela, esse empreendimento é formado por 60 apartamentos de 60 m² que
possuem dois quartos, dois banheiro, sala, cozinha americana, área de serviço e
varanda, além de guarita de segurança, estacionamento e área de lazer comum
composta por parquinho infantil, piscina e deck com churrasqueira.

Figura 10 - Residencial Village Catumbela I

Fonte: Grupos de Vendas no Facebook por Jonas Lima. (2015).

Em entrevista para um site local33, na ocasião do lançamento das vendas


do empreendimento, um sócio-proprietário enfatiza que os construtores tiveram a
preocupação de “enquadrá-lo” na faixa máxima do Programa Minha Casa, Minha
Vida a fim de atender ao público de renda média. Essa declaração deixa clara a

33
Disponível em: http://tvrussas.com.br/noticia/9312/ms-construcoes-lanca-em-russas-o-condominio-
village-catumbela/ .
77

influência que o Programa tem desempenhado no mercado imobiliário da cidade de


Russas.
Diferente dos dois primeiros condomínios as vendas das unidades do
Residencial Village Catumbela I só foram iniciadas quando as obras estavam
finalizadas. No caso do Condomínio Residencial Santiago I e II as primeiras vendas
foram realizadas na planta, ou seja, antes mesmo do início das obras. Já no
Condomínio Residencial Paraíso de Russas as unidades comercializadas ao passo
que são construídas, fazendo com que o condomínio tenha uma aparência mais
próxima a de loteamento fechado.
Comparando as primeiras unidades construídas no âmbito do PMCMV
com os lançamentos mais recentes, observamos que houve uma mudança
significativa na estrutura, tamanho, aparência, localização e nos valores dos
empreendimentos. Esses pontos são de grande relevância e merecem reflexões
mais profundadas.
Apesar dessa mudança, alguns elementos vêm se mantendo ao longo
dos anos e são comuns a outras cidades e regiões, é o caso, por exemplo, de os
empreendimentos serem construídos em áreas periféricas não dotadas de
infraestruturas e serviços públicos. Essas áreas são escolhidas pelos construtores
por terem um menor preço no mercado imobiliário, logo, potencializam as
possibilidades de um lucro maior.

4.2 MINHA CASA E A CIDADE: A DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DO PMCMV EM


RUSSAS

Considerando que a distribuição dos elementos estudados pelo espaço é


um componente de grande relevância para a análise dos processos sócio-espaciais
que deles podem ser decorrentes, buscamos esboçar, a espacialização dos
empreendimentos comercializados através do PMCMV na cidade de Russas, por
bairros e por faixas (Figura 11). No entanto, nos deparamos com informações e fatos
que dificultam a realização de um mapeamento mais exato dos empreendimentos.
78

Figura 11 - Espacialização de empreendimentos comercializados através do PMCMV em


Russas, por Faixas e Bairros

Fonte: Base Cartográfica IBGE (2010). Elaborado pelo Autor.


79

Ao buscarmos elaborar a espacialização desses empreendimentos


constatamos que unidades de faixas e valores diferentes são construídas nos
mesmos empreendimentos ou nos mesmos terrenos (loteamentos). Nesse último
caso ocorre ainda o fato de empresas diferentes construírem suas unidades com
grande proximidade com as de outra empresa. Por isso, não conseguimos elaborar
uma espacialização dos empreendimentos por construtoras. Já para realizarmos a
indicação das Faixas dos empreendimentos tivemos como base as informações
repassadas por corretores imobiliários e as adquiridas nos trabalhos de campo.
É necessário salientarmos também que consideramos a localização de
empreendimentos já comercializados (habitados) e também dos que estão em obras
ou vendas iniciadas, como os condomínios Santiago I e II e Village Catumbela I, bem
como os conjuntos de casas contiguas, que são comercializadas individualmente, e
a localização do terreno doado para construção das unidades da Faixa 1. Foi
utilizando essas constatações que consideramos 20 empreendimentos diferentes e
elaboramos a espacialização indicada na figura anterior.
De acordo com a espacialização indicada, é possível observar que os 20
empreendimentos considerados estão distribuídos entre sete dos 13 bairros que
compõe o espaço urbano de Russas e um localizado fora dos limites do espaço
urbano34, qual seja o primeiro construído através do PMCMV na cidade, ainda em
2009.
A maior concentração desses empreendimentos ocorre no bairro
Tabuleiro do Catavento, onde há a predominância de conjuntos formados por
dezenas de casas e que vem modificando a paisagem desse bairro (Figura 12). Um
dos empreendimentos indicados nos limites desse bairro foi recentemente
implantado e é um dos três condomínios lançados na cidade, o Condomínio
Residencial Paraíso de Russas, e que é constituído por unidades das faixas 2 e 3,
como explicado anteriormente.

34
Os limites são os estabelecidos na Base Cartográfica e Setores Censitários do IBGE (2010).
80

Figura 12 - Conjunto de casas localizadas no bairro Tabuleiro do Catavento

Fonte: Lima (2015).

O bairro Vila Matoso tem unidades na Faixa 2 comercializadas desde


2010 e as unidades da Faixa 3 são os apartamentos do Condomínio Residencial
Santiago I e II, que ainda está em faze de conclusão. Esse bairro tem recebido
grande valorização imobiliária desde a divulgação da instalação do Campus da UFC-
Russas em seus limites.
Os bairros Nossa Senhora de Fátima e Planalto da Catumbela também
apresentam uma grande quantidade de empreendimentos, no entanto existem
grandes diferenças entre eles. Embora a Figura 05 mostre uma quantidade de
empreendimentos menor, o bairro Nossa Senhora de Fátima, que desde 2010 vem
recebendo a construção dessas unidades, apresenta uma quantidade de UHs bem
superior ao bairro Planalto da Catumbela, onde a construção dessas unidades é
bem mais recente.
As unidades da Faixa 3 localizadas no bairro Nossa Senhora de Fátima
são casas de estrutura, área e acabamento superior as comercializadas na Faixa 2 e
a grade maioria possui cercas elétricas e detalhes em seus acabamentos. (Figura
13).
Já os empreendimentos construídos no bairro Planalto da Catumbela são
todos recentes, tendo sido as obras da maioria desses concluídas já em 2015. Além
dos conjuntos de casas geminadas, destaca-se o Condomínio Village Catumbela I,
81

que tem suas unidades vendidas por meio da Faixa 3 do PMCMV, e alguns
apartamentos duplex, que são vendidos na Faixa 2. (Figura 14).

Figura 13 - Conjunto de casas no bairro Nossa Senhora de Fátima

Fonte: Lima (2015).

Figura 14 - Anuncio de empreendimento localizado no bairro Planalto da Catumbela

Fonte: Facebook da Imobiliária Arimar Imóveis (2015).


82

Os demais bairros apresentam características comuns aos descritos


anteriormente. O bairro Vila Ramalho possuí apenas os conjuntos de casas
geminadas, assim como os bairros Ipiranga e Tabuleiro da Vaquejada. No entanto
as unidades dos dois primeiros são comercializadas através da Faixa 2, e as do
último estão na Faixa 3 e ficam localizadas em um loteamento planejado.
De maneira geral pode-se observar que a maioria dos empreendimentos
está localizada em áreas e bairros periféricos e que nenhuma unidade foi construída
no bairro Centro, mesmo este tendo terrenos ociosos. A partir da Figura 15 podemos
melhor observar que os empreendimentos estão, em grande maioria, localizados em
áreas adjacentes ao centro da cidade, intermediadas por grandes vazios, e de
menor ocupação.
83

Figura 15 - Perspectiva de inserção urbana dos empreendimentos do PMCMV em Russas por


faixa e bairros

Fonte: Base Cartográfica IBGE (2010); Google Earth. Elaborado pelo Autor.
84

Essa distribuição locacional é uma típica estratégia do mercado imobiliário


para garantir maior rentabilidade dos seus negócios, menosprezando a possibilidade
de uma inserção urbana qualitativamente positiva para seus clientes, uma
característica das cidades corporativas, como definiu Santos (1993).
Utilizando a localização dos conjuntos construídos pelo BNH que, em
grande maioria, foram construídos em áreas periféricas, Santos (1993) mostra como
o atrelamento entre os setores públicos e privados contribuem para a construção das
cidades corporativas:

Os conjuntos residenciais levantados com o dinheiro público – mas por


firmas privadas – para as classes médias e baixas e os pobres se situam
quase invariavelmente nas periferias urbanas, a pretexto dos preços mais
acessíveis dos terrenos, levando, quando havia pressões, a extensões de
serviços públicos como luz, água, as vezes esgotos, pavimentação e
transportes, custeados, também, com os mesmos recursos. É desse modo
que o BNH contribui para agravar a tendência ao espraiamento das cidades
e para estimular a especulação imobiliária. (SANTOS, 1993, p. 112).

Mais recentemente e já com o PMCMV como instrumento de análise,


Cardoso e Aragão (2013) explicam essa estratégia afirmando que os lucros
adquiridos pelas construtoras não se limitam aos conseguidos através do processo
de construção, mas inclui também o lucro que pode ser retirado no processo de
mercantilização das unidades.
Essa estratégia de “maximização de lucros” está integralmente ligada à
transformação do solo, uma vez que os preços são definidos pelas características
definidas pelo setor imobiliário como atributos de valorização, que variam da
localização dos empreendimentos até a estrutura oferecida em seu entorno. Nesse
sentido os autores explicam que

Dentro dessa lógica de busca de maximização da valorização do


investimento, as construtoras irão buscar os terrenos mais baratos, portanto
com maiores problemas de acessibilidade e de infraestrutura, que permitirão
incluir uma margem de lucro, considerados os valores tetos do programa.
Todavia, o fato de trabalhar com as terra[s] mais baratas não reverterá
necessariamente no custo final para os adquirentes, já que os agentes
tendem a trabalhar sempre com os tetos de financiamento como valores
finais, ou seja, a utilização dos terrenos mais baratos reverterá como
ampliação das margens de lucro e não como redução do preço final. Mas
essa estratégia de valorização do capital tem como consequência um
aumento do “custo” social final do empreendimento, já que os adquirentes
terão que arcar com maiores despesas de transportes e com problemas de
infraestrutura no entorno, “pagando” então pelo lucro das construtoras e
reafirmando o modelo da espoliação urbana que caracteriza o processo de
urbanização brasileiro historicamente. (CARDOSO; ARAGÃO. 2013, p. 54).
85

Como se pode observar na Figura 15, essas estratégias são praticadas


pelo setor imobiliário em Russas, pois os empreendimentos do PMCMV estão
localizados em áreas periféricas e com distancia considerável do centro da cidade,
onde se concentra a grande maioria dos serviços públicos e privados (como
hospitais, escolas, lojas).
O bairro Tabuleiro do Catavento é o maior expoente dessa estratégia.
Este bairro tem sido historicamente um dos vetores de direcionamento das famílias
de baixo poder aquisitivo, inclusive por meio da construção de dois conjuntos
habitacionais, e sempre apresentou uma carência de infraestruturas e serviços
urbanos, o que acarreta numa desvalorização dos terrenos localizados em seus
limites.
Conforme caracterização apresentada no PDP de Russas (2008, p. 25), a
ocupação desse bairro se dá “preponderantemente por pessoas de baixa renda,
instaladas em habitações precárias, muitas das quais foram substituídas por
residências construídas em regime de mutirão, através do PROURB.”. No PDDU
elaborado em 1998 o bairro recebia caracterização parecida, no entanto havia a
ressalva de que este “reúne as melhores condições para adensamento residencial,
devendo ser incentivada a implantação de infraestrutura sanitária, de serviços e de
circulação de modo a viabilizar um vetor concreto de expansão urbana e alto-
sustentável.” (PDDU, 1998, p. 48).
A pesar de não ter sido contemplado por projetos de infraestruturas que
atenda a demanda e que melhor estimule sua ocupação, este bairro tem recebido a
construção de empreendimentos financiados pelo PMCMV desde 2010 e hoje é o
que abraça a maior quantidade de unidades comercializadas através do Programa
em Russas, entre esses o Condomínio Residencial Paraiso de Russas.
É também neste bairro que se encontra o terreno destinado a construção
de 497 casas populares pela Faixa 1 do Programa, ou seja, destinadas à famílias
com renda de até 3 salários mínimos, e que, como se pode observar na Figura 14,
localiza-se em uma região totalmente desligada das áreas já ocupadas no bairro,
inclusive das recentemente ocupadas pelas unidades do PMCMV, caracterizando e
reforçando a segregação sócio espacial que o bairro historicamente possui.
No bairro Nossa Senhora de Fátima também tem sido construídas muitas
unidades através do PMCMV, que se localizam em terrenos não loteados, adquiridos
86

exclusivamente para a construção dos empreendimentos e que também não


oferecem pavimentação.
As unidades construídas nos bairros Tabuleiro da Vaquejada, Vila
Ramalho e Vila Matoso foram construídas em áreas de loteamentos. No primeiro
caso em um loteamento planejado, recentemente lançado e servido de
infraestrutura, inclusive asfaltamento. Nos outros dois bairros os loteamentos são
mais antigos e não possuem pavimentação.
Já os empreendimentos localizados no bairro Planalto da Catumbela
encontram-se próximos de áreas já consolidadas, bastante habitadas e dotadas de
infraestruturas como pavimentação e saneamento básico. A maioria das unidades
construídas no bairro Ipiranga também possuem vias pavimentadas.
Além dessas considerações, a oferta de outros serviços públicos como
saneamento básico, iluminação pública e coleta de lixo nessas unidades, bem como,
a localização dos empreendimentos em relação aos espaços de lazer,
entretenimento, alimentação e comercio, por exemplo, também precisam ser
analisadas para termos uma melhor leitura sobre as condições de inserção urbana
desses empreendimentos.

4.3 NOVAS DINÂMICAS E AGENTES NA PRODUÇÃO DA HABITAÇÃO E DO


ESPAÇO

As mudanças na variedade, padrão e qualidade dos empreendimentos


lançados recentemente em Russas são produtos da modernização e especialização
do setor imobiliário na cidade e que, a nosso ver, sofre grande influência dos
incentivos oportunizados pelo PMCMV. Criamos esta hipótese com base nas
mudanças que ocorreram neste setor a partir da intervenção gerada pelo programa,
principalmente a partir de 2010, e que são perceptíveis na paisagem da cidade.
Além disso, é possível dizer que foi a partir dos incentivos do PMCMV que
a construção empresarial de moradias começou a ocorrer de forma expressiva na
cidade. Anterior a esse momento apenas poucos projetos particulares eram
executados por empresas especializadas em construção, ficando grande parte do
mercado da construção civil a cargo da atuação de pedreiros, por meio de
empelheitas ou através do pagamento de diárias.
87

Essa relação deve ser melhor averiguada, inclusive para constatar o


surgimento ou crescimento de um mercado formal nesse setor, a continuidade do
mercado informal no atendimento as demandas das famílias que continuam
comprando lotes e construindo suas casas de acordo com as condições, bem como
a manutenção das formas de autoconstrução ou construção familiar e os efeitos que
esses modos de atendimento à demanda habitacional geram na cidade.
O primeiro empreendimento construído na cidade através do PMCMV,
ainda em 2009, foi construído pela empresa ESBRA Construção Civil LTDA, que
possui sede em Fortaleza. A partir de 2010 começaram a surgir as primeiras
empresas locais do ramo da construção civil e que se tornaram, podemos dizer,
“especializadas” na construção de empreendimentos com as características
determinadas pelo PMCMV. Entre essas se destacam a MS Empreendimentos
Imobiliários e Construções LTDA e a S. Gurgel Empreendimentos Imobiliários LTDA.
Atualmente essas duas empresas praticamente dominam o mercado de
construção desses empreendimentos e administram também as vendas desses
imóveis. Além delas atuam também na cidade as empresas KL Engenharia, R.
Furlani Engenharia, Tec Urbanismo, URKIFFE Construções e Empreendimentos,
Neutel e o empresário Ricardo Mascarenhas.
Quanto aos agentes imobiliários ligados à venda dessas unidades é
possível destacar a atuação da Imobiliária Arimar e da Corretora de Imóveis
Nataliana Gonçalves. No entanto, a maioria das empresas realizam também as
vendas dos imóveis que constroem articulando diretamente com o comprador e a
CEF. Vale destacar que em 2015 foi realizado na cidade um curso de formação de
corretores, uma ação simbólica para o momento atual do mercado imobiliário da
cidade.
Pela espacialização dos empreendimentos mostrada anteriormente,
podemos observar que bairros periféricos, antes habitados apenas por famílias de
baixa renda estão recebendo empreendimentos do PMCMV. Como vimos, essa
localização faz parte da estratégia de maximização dos lucros das empresas
construtoras, no entanto, há também que se indicar que esses empreendimentos
tendem a gerar mudanças nas dinâmicas sócio-espaciais desses bairros.
As novas famílias que passam a residir nesses bairros geram de imediato
um novo fluxo de pessoas e veículos por suas vias e tendem com passar dos anos
atrair a instalação de novos comércios e serviços, como mercadinhos e lanchonetes.
88

A crescente atuação do mercado imobiliário e o crescimento da ocupação


dessas áreas devem aumentar a pressão para que o Governo Municipal realize
obras de infraestruturas nesses bairros, principalmente ou ao menos, nas suas
principais vias e naquelas que os interliga ao centro da cidade, o que é aguardado
pelo setor imobiliário, uma vez que com a oferta dos serviços públicos essas áreas
serão mais valorizadas. Como explica Santos (1993):

A construção de um conjunto residencial e a consecutiva dotação de infra-


estruturas valoriza os terrenos em derredor, estimulando os proprietários a
uma espera especulativa. Produzem-se novos vazios urbanos, ao passo
que a população necessitada de habitação, mas sem poder pagar pelo seu
preço nas áreas mais equipadas, deve deslocar-se para mais longe,
ampliando o processo de periferização. (SANTOS, 1993, p. 112).

Aparentemente essa influência já pode ser percebida. Recentemente a


Prefeitura Municipal realizou obras de pavimentação em diversos lugares da cidade,
entre elas algumas vias dos bairros Tabuleiro do Catavento e Planalto da
Catumbela, em ambos as obras estão próximas aos empreendimentos. No caso do
bairro Tabuleiro do Catavento nas mediações dos empreendimentos foi iniciada a
construção de uma escola e uma praça e ao seu lado foi recentemente ativado um
Centro de Artes e Esportes Unificados (CEU das Artes).
Neste sentido, podemos observar que o PMCMV tem influenciado o
surgimento e a atuação de novas empresas no ramo da construção civil em Russas
e essas, por meio da compra de terras menos valorizadas, tem gerado a ocupação e
diversificação da habitação de áreas periféricas da cidade, principalmente nos
bairros Tabuleiro do Catavento e Nossa Senhora de Fátima.
89

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O crescimento descontrolado das cidades brasileiras, atrelado a falta de


planejamento e oportunidades de ascensão social da população, trouxe um série de
problemas que vêm se propagando ao longo dos anos sem uma atuação que
objetive sua solução com vistas em suas raízes. Assim, criam-se políticas de
intervenção que não tendem a solucionar os problemas, uma vez que não atuam no
combate ao monopólio da terra urbana, a especulação imobiliária, a propriedade
privada e nas demais contradições decorrentes da reprodução do capital e do
espaço nos moldes da sociedade capitalista.
Como vimos, no Brasil o setor da habitação tem sido “privilegiado” por
políticas públicas que “buscam” combater a carência de tal bem. No entanto essas
políticas têm reforçado a exclusão e a segregação socioespacial, principalmente da
população de menor poder aquisitivo por elas beneficiadas.
Isso se dá principalmente porque, desde as primeiras intervenções
realizadas no final do século XIX, passando pelo BNH entre as décadas de 1960 e
80, e atualmente por meio do Programa Minha Casa Minha Vida, a autonomia
conferida ao setor privado em detrimento da atuação reguladora e consciente dos
agentes públicos, tem menosprezado a contribuição dessas políticas como uma
possibilidade para a construção de uma nova inserção sócio-espacial nas cidades
brasileiras, que leve em consideração o bem estar da população e não as
estratégias do mercado imobiliário.
Durante está pesquisa pudemos analisar como essas políticas se
formaram e se materializaram no Brasil ao longo dos anos e, utilizando a atuação do
PMCMV na cidade de Russas como objeto de investigação, apontar alguns dos
processos sócio-espaciais decorrentes desse Programa e suas implicâncias na
(re)produção do espaço urbano.
Os números da produção habitacional por meio do PMCMV em Russas
apresentados nesta pesquisa são bastante significativos, principalmente por essa se
tratar de uma pequena cidade que não tinha um histórico de construção de moradias
na forma empresarial. Esse, certamente, é o ponto de partida para encontrarmos os
efeitos do Programa em Russas.
Primeiramente, compreendendo que a atuação empresarial no ramo da
construção civil em Russas se desenvolve a partir do crescimento do acesso ao
90

crédito imobiliário oferecido pelo PMCMV, estamos afirmando que a atuação do


Estado por meio deste Programa tem fomentado o desenvolvimento do setor
imobiliário. Essa afirmativa é óbvia, porém necessária de ser refeita com mais
cuidado, pois, mais que um agente estimulador do crescimento do setor imobiliário, o
Estado se torna também um agente financiador das disparidades sócio-espaciais.
Ao garantir a hegemonia do setor privado nas escolhas locativas e
estruturais dos empreendimentos, o Estado relega as novas e futuras instalações
das famílias requerentes do Programa nas mãos desse setor que, por meio de
estratégias de barateamento da construção e elevação de lucros, tende a deixar
questões essenciais para o bem estar social em últimos planos.
Como se pôde observar por meio da espacialização e das demais
características dos empreendimentos comercializados em Russas, o setor
empresarial tem optado por construir a maioria desses empreendimentos em áreas
mais distantes do centro da cidade, onde as terras são mais baratas e garantem
uma renda maior no final do processo construtivo, quando o trabalho realizado
empregará novos valores a esse espaço. Dentro desta estratégia podemos destacar
principalmente os Bairros Tabuleiro do Catavento e Nossa Senhora de Fátima.
Devemos considerar também as novas estratégias construtivas que, por
seu padrão, localização e serviços oferecidos cobram um valor maior pela habitação,
mesmo esta estando fora das áreas de maior especulação. Destacadamente
encontramos neste caso a construção dos condomínios verticais e horizontais
fechados que empregam novas formas de moradia e relacionamentos de vizinhança
para a cidade.
O lançamento recente de três condomínios fechados em Russas é uma
marca da atual fase que a cidade e seu mercado imobiliário vêm passando. Essa
forma de habitação em uma cidade com uma quantidade considerável de vazios
urbanos, como é Russas, necessita de análises mais criteriosas que melhor
evidenciem os processos que dela podem ser decorrentes. A ampliação da
segregação e o surgimento da fragmentação sócio-espacial, bem como, um possível
incentivo ao “auto-enclausuramento”, seja como busca por “status” ou como uma
resposta ao crescente sentimento de medo que vem predominando as cidades
brasileiras, são alguns dos elementos que circulam a análise dessa nova forma de
habitação.
91

Além disso, a demanda por moradia e a crescente procura pelas


facilidades oferecidas pelo PMCMV (subsídios e financiamentos com baixos juros)
tem gerado o surgimento de empresas especializadas na construção civil,
especificamente para os fins de financiamento através do Programa. Em Russas,
apesar te haver a atuação de empresas de outras cidades, como Fortaleza, Aracati e
Mossoró, a predominância no setor é de empresas locais, algumas dessas fundadas
a pelo menos seis anos.
Surgem novos agentes entre os produtores do espaço urbano. Novos
construtores, novos corretores, novas terras a serem comercializadas, algumas
agora valorizadas pela ótica imobiliária apenas pela sua aproximação com os
empreendimentos do PMCMV, e com elas surgem também novos proprietários
fundiários do espaço urbano.
Assim, o espraiamento da cidade vai ocorrendo de forma acelerada e em
descompasso com a oferta de infraestruturas públicas. A expansão urbana, que gera
novos aditivos ao mercado imobiliário, trás também a desarticulação urbana e com
ela o futuro aumento dos investimentos públicos em infraestruturas, enquanto terras
localizadas em áreas já equipadas ficam ociosas, graças a especulação imobiliária e
a falta da ação do poder público na regulamentação do uso do solo urbano.
Essa pesquisa aponta também que a localização dos empreendimentos
construídos podem trazer ônus aos seus compradores por meio de uma precária ou
mesmo ausente inserção urbana e do distanciamento das áreas centrais.
A predominância dos empreendimentos para a Faixa 2 e 3 do Programa
reafirma o caráter econômico e empresarial que a política pública de provisão de
moradias para famílias de baixo poder aquisitivo se tornou. Os valores das unidades,
por vezes até mesmo maiores que os tetos definidos pelo Programa, reproduzem a
negação a capacidade de conquista desse bem por famílias de menor renda. Até
mesmo a possibilidade de se conquistar esse bem pela Faixa 1 até agora tem sido
renegado, muito embora tenha sido anunciado.
Faz-se necessário pensar o quanto a ausência de movimentos sociais ou
mesmo de uma articulação da sociedade ou de associações que lutem por esse
direito na cidade, tem relegado a possibilidade da habitação social e da conquista
desse direito ao livre interesse e motivação do Estado e do governo municipal.
Dado o exposto, podemos por hora dizer que o PMCMV tem gerado o
surgimento de novas dinâmicas no setor imobiliário de Russas, com novos agentes,
92

meios de construção e áreas de atuação, e com ela a (re)produção do espaço


urbano tem adquirido novas formas, por vezes saindo do modelo centro-periferia e
por outras o reforçando, mas em ambas mantendo a segregação ao acesso à
habitação e à cidade.
93

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