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História da Gastronomia

APRESENTAÇÃO

Os estudos sobre a alimentação nos trouxeram perspectivas distintas sobre como nossos ancestra
is se alimentavam. Destas múltiplas perspectivas, pode-se perceber que houve uma evolução gra
dativa na forma de se alimentar, desde os primórdios da raça humana, no paleolítico, até as mais
modernas técnicas da cozinha molecular. Tendo isso em mente, a história da gastronomia parte e
m uma análise detalhada de como ocorreram essas mudanças e quais impactos foram marcados
nas sociedades humanas, desde seu princípio até a atualidade.

Nesta Unidade de Aprendizagem, você poderá acompanhar as evoluções que a alimentação hum
ana sofreu desde o paleolítico, analisando tanto os hábitos alimentares mais primitivos quanto os
mais atuais, verificando quais os principais pontos de mudanças nesses períodos.

Bons estudos.

Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

• Identificar a formação da alimentação humana e seus significados.


• Analisar a evolução da alimentação humana e as suas mudanças significativas.
• Formular uma concepção de como a alimentação humana se apresenta hoje.

DESAFIO

A realeza europeia, detentora do poder durante a chamada Idade Moderna, possuía requintes e tr
ejeitos específicos ao se alimentar. Mais do que isso, ela possuía um apreço por uma comida de
boa qualidade, com apresentações grandiosas, dignas de sua presença real.

Vatel foi um dos poucos mestres de cerimônia que conseguiram encantar, com seu requinte e gr
andiosidade, o rei francês Luís XIV - o rei Sol. Mas, apesar de todo o encanto, e de um convite p
ara liderar a cozinha e os eventos do Palácio de Versalhes, um contratempo o fez tirar a própria
vida.

Desta forma, suponha que você faz parte da equipe de Vatel. Você, agora, foi incumbido de reso
lver o problema de desabastecimento de peixes para o banquete real. Em sua dispensa, encontra
m-se apenas ovos, azeite de oliva, legumes frescos, leguminosas, tubérculos, farinha de trigo, ca
stanhas, frutas diversas, algumas peças de carnes de porco salgadas, hortaliças, leite, açúcar e u
ma pequena quantidade de peixes e frutos do mar.

Elabore um cardápio para o banquete, que envolva os ingredientes à sua disposição, lembrando
que esse banquete deve possuir uma entrada, três opções de pratos principais e uma sobremesa.

INFOGRÁFICO

A alimentação sofreu muitas alterações ao logo do tempo. Desde que o ser humano surgiu na Te
rra, vem alterando drasticamente seus hábitos e maneiras de lidar com seu corpo, seus semelhant
es e também com sua alimentação. Se parássemos para analisar essas mudanças, uma a uma, de
moraríamos um número indeterminado de horas fazendo isso e não conseguiríamos ver um final
tão próximo.

Desse modo, a linha do tempo nos ajuda a entender essas mudanças de forma retilínea e organiz
ada, dando foco aos movimentos mais importantes da humanidade. Veja como ficou nossa linha
do tempo da alimentação.
Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino!

CONTEÚDO DO LIVRO

Dentro da história humana, muitos fatos se tornaram fontes de informação. Não seria diferente q
uando tratamos de alimentação, fator decisivo da sobrevivência humana, que pode nos mostrar c
omo determinado grupo viveu ou vive, ainda hoje, e quais impactos as transformações alimentar
es causaram na sociedade em que eles viveram e em que nós vivemos.

No capítulo História da gastronomia, da obra Habilidades Básicas em Cozinha, você poderá aco
mpanhar as transformações feitas pelos seres humanos, ao longo de sua história, precisando fato
s e situações que contribuíram direta ou indiretamente para o surgimento ou transformação dos h
ábitos alimentares humanos.
HABILIDADES
BÁSICAS EM
COZINHA

Henrique Ramansini Pinto


História da gastronomia
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Identificar a formação da alimentação humana e seus significados.


„„ Analisar a evolução da alimentação humana e suas mudanças
significativas.
„„ Formular uma concepção de como a alimentação humana se apre-
senta hoje.

Introdução
Sabemos que a alimentação é um fator importante de sobrevivência e que
precisamos nos preocupar com o que preparamos e ingerimos, mantendo
uma boa saúde e qualidade de vida; entretanto, essa preocupação não
advém de ideias modernas. Podemos encontrar as civilizações antigas
interagindo com os alimentos e os consumindo da forma que achavam
mais correta. Porém, alimentar-se nunca foi somente um aspecto de
sobrevivência, mas também a perspectiva de se divertir e de ostentar
sua posição social, bem como riqueza e requinte.
O ato de comer, de cozinhar e de encantar com o que se come se
transformou ao longo do tempo, mudando, principalmente, a forma
como o alimento é percebido e qual a sua importância para determi-
nado grupo social. Sendo assim, podemos perceber que as relações
encontradas entre os povos antigos e os alimentos, ou com o momento
de consumi-los, tinha significados importantes, e estes podem nos fazer
compreender melhor aquela sociedade.
Neste capítulo, você terá um panorama geral de como aqueles in-
divíduos agiam, interagiam e se portavam, não só perante a mesa e o
alimento, mas também diante de um grupo social, amigo ou inimigo.
Você também poderá compreender a alimentação, que nos permite
entender o indivíduo e a sociedade em que ele vive, e como nossa so-
ciedade chegou até esse patamar, percebendo as pequenas e intrínsecas
relações entre elas.
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A formação da alimentação humana


O preceito básico da gastronomia moderna é cozinhar o alimento, conferindo-
-lhe sabor e textura, o que não ocorria há aproximadamente 500 mil anos.
Sabe-se, no entanto, que os proto-homens provavelmente associaram o calor
decorrente de fontes termais ao de seu próprio corpo, ou da presa recém-
-abatida, percebendo uma diferença muito grande entre o consumo da caça
fria e aquecida, o que nos dá uma ideia de que, mesmo sem conhecer o fogo,
os hominídeos mais antigos já haviam começado a cozer seus alimentos
(FRANCO, 2010).

Segundo Geertz (1980), os proto-homens (Figura 1) eram hominídeos dotados de um


cérebro pequeno, dependendo, portanto, das mãos para as atividades diárias, visto
que nossos antepassados mais longínquos precisavam das mãos e pernas para total
locomoção, percebendo-se, então, que os proto-homens poderiam andar semieretos.

Figura 1. Proto-homem.
Fonte: Neveshkin Nikolay/Shutterstock.com.
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Independente da forma como eram consumidos a carne e outros alimentos,


o fato é que os primeiros hominídeos aprenderam, ao longo do tempo, a caçar
sua comida, normalmente observando outros animais a fazê-lo, entendendo as
estratégias utilizadas por eles e adaptando o que a natureza lhes oferecia, como
ferramentas, em sua empreitada. A caça foi o principal meio de sobrevivência
desses grupos pré-históricos, que passaram a não mais depender da coleta de
alimentos vegetais, consumindo, dessa forma, a carne, que, além de ser fonte
de ácidos graxos, é muito importante para o desenvolvimento humano. Com
as caçadas, não foi apenas a alimentação que sofreu mudanças, os restos da
caçada se tornaram objetos extremamente úteis na vida paleolítica, como
vestimentas para proteger do frio, além de armas e ferramentas.
Nessa empreitada, o fogo se tornaria uma arma mortal, distinguindo o
caçador da caça. Conhecer o fogo tornou mais viável a produção dos alimentos,
fazendo com que essas sociedades pré-históricas desenvolvessem técnicas e
ferramentas, principalmente de pedra e barro, para melhorar a utilização do
fogo. Todavia, o fogo não serviu apenas para aprimorar os processos de caça,
ele também servira como deidade máxima, sendo cultuado e adorado, o que
deu a ele, mais tarde, um caráter sagrado (FRANCO, 2010).
De qualquer forma, Freixa e Chaves (2017) destacam que a descoberta de
como produzir fogo não apenas acabou favorecendo a produção alimentícia,
mas também serviu como uma forma de reunir o grupo social, pois ali, naquele
momento, ao redor da fogueira, compartilhando o alimento e transmitindo os
conhecimentos adquiridos, a vivência em um conjunto social era de extrema
importância para a sobrevivência do indivíduo. Esse processo pode ter dado
início aos nossos momentos de reunião, nos quais a comida se destaca como
motivo máximo da interação humana contemporânea.
Devemos, no entanto, lembrar-nos que, nesse momento, os hominídeos
ainda eram seres nômades, vivendo da extração momentânea daquilo que a
região poderia lhe oferecer, portanto, assim que os recursos se esgotavam,
eles partiam em busca de uma nova região, recomeçando um ciclo.
De fato, a necessidade era a grande responsável por muitas das adaptações
feitas pelos hominídeos paleolíticos, sendo assim, o uso do fogo na cocção
da carne advém da necessidade, pois, apesar dela se tornar mais saborosa, a
conservação desse alimento era a maior necessidade, tanto que naquele mo-
mento, utilizava-se a secagem ao sol, pois percebiam que o alimento durava
mais tempo dessa forma. A utilização de sal e temperos, segundo Freixa e
Chaves (2017), era desconhecida, por essa razão, tal método não poderia ser
utilizado. Entretanto, foi visto, por meio de estudos, que os hominídeos não
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se alimentavam apenas pela necessidade de sobreviver, mas, sim, que existia


signos em suas refeições e que eles poderiam escolher o que queriam comer.
Durante o período neolítico, os hominídeos passaram por uma revolução,
sendo diferenciado quem sobreviveria de quem deixaria de existir. A agricul-
tura, nesse momento, surgiu como um fator decisivo de existência. Contudo,
ela não apareceu inesperadamente, pois adveio a partir de um processo lento de
análise e adaptação dos produtos cultivados e dos próprios seres humanos. Além
disso, passou-se a criar animais, a partir dos selvagens criados em cativeiros.
Com isso, esses povos deixaram de ser nômades e passaram a se fixar
próximos a plantações e criações de animais, formando aldeias onde, de acordo
com Franco (2010), passaram a gerar excedentes, os quais possibilitaram a
execução de outras atividades que também geraram excedentes, o que fez a
vida humana prosperar.

As civilizações hídricas e o mundo greco-romano


Temos como panorama geral uma sociedade se estruturando e convivendo com
múltiplos enfrentamentos diários, o que proporciona um avanço tecnológico
eminente. A idade dos metais chegou e com ela as ferramentas evoluíram
e se tornaram propícias para o uso nas plantações e na pecuária (FREIXA;
CHAVES, 2017).
Do que se sabe, as primeiras civilizações surgiram no crescente fértil,
onde os povos, por meio de escambos simples, trocavam seus excedentes e
interagiam. Todavia, com o aumento significativo desses excedentes, cidades
surgiram, tornando-se centros gerenciais de estoques de excedentes proporcio-
nados pelo bom clima da região, pela capacidade inventiva dos seres humanos
e pelas suas interações com os demais à sua volta (FRANCO, 2010).

Crescente fértil é a região, também conhecida como Mesopotâmia (entre rios), onde
hoje podemos encontrar países como Irã, Iraque, Turquia, Síria, Líbano, Israel e Jordânia.
Nessa região, foram encontradas espécies de vegetais e animais que posteriormente
foram domesticadas, como o trigo e a cevada e a cabra e o porco, por exemplo
(FRANCO, 2010).
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A partir dessa maneira peculiar de vida, que proporcionou uma vida cita-
dina, encontramos traços de diversas atividades, tendo como mais interessante
uma forma organizada de hierarquia da alimentação, sendo na Mesopotâmia,
por exemplo, encontrado o primeiro registro escrito da profissão de cozinheiro
e as primeiras receitas (FREIXA; CHAVES, 2017).
Esses registros indicavam o que se consumia na Mesopotâmia e quais
eram as formas mais corretas de prepará-los, algo muito semelhante aos
receituários modernos. Sabe-se também que já eram feitos grandes banquetes
nesse período, os quais eram seletos aos mais abastados. Normalmente, esses
banquetes eram realizados juntos a celebrações religiosas nos templos locais
ou nas casas reais (FREIXA; CHAVES, 2017).
Sabe-se também que os mesopotâmicos aprimoraram as técnicas de con-
servação dos alimentos, utilizando meios, como a defumação, a salga ou a
imersão em óleo de oliva. Produtos como o mel e o óleo de oliva eram guar-
dados em grandes jarros. Além disso, os mesopotâmicos foram os primeiros
a fabricarem a cerveja e o vinho (FREIXA; CHAVES, 2017).
Já os egípcios tinham um caráter mais religioso à mesa. Devido à sua
crença em vida após a morte, os principais registros foram encontrados nos
sarcófagos e nas tumbas, que apresentavam os aspectos de vida do indivíduo
ali sepultado. Dessa forma, tudo o que era compreendido como um ato da vida
era representado nas iconografias mortuárias. Entretanto, as observações de
Tallet (2005 apud FREIXA; CHAVES, 2017) são passíveis de análise. Estas
falam sobre os egípcios terem conhecimento nutricional dos alimentos, o que
fez com que eles se alimentassem de forma bastante saudável.
Outro fato importante é como a divisão social no mundo egípcio se acen-
tuava em relação aos mesopotâmicos. Os mais pobres, no Egito antigo, consu-
miam o que estava mais à mão, produzindo muitos dos produtos, como cereais
e leguminosas, frutas e a carne de animais — principalmente caprinos e ovinos.
Além disso, estes tinham vários tipos de temperos e utilizavam muito o peixe,
que era encontrado em grande quantidade no Rio Nilo. Os mais abastados,
por outro lado, conviviam com banquetes, nos quais as iguarias dominavam
o cardápio. As aves eram amplamente consumidas, assim como os produtos
feitos à base de farinhas diversas (FREIXA; CHAVES, 2017).
Os egípcios, ao contrário do que se poderia pensar, já utilizavam utensílios,
como panelas e frigideiras feitas em barro ou metal, além de alguns talheres.
Eles também utilizavam os fornos de barro, o que conferiu a capacidade
de produzir pães no formato convencionado atualmente. A conservação do
alimento também foi aprimorada por esse povo, que salgava, secava ao sol, ou
então guardava na própria gordura do animal, assim como o confit é feito hoje.
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Não seria estranho que outros grupos sociais, além dos contemporâneos,
mesopotâmicos e egípcios, também utilizassem a religião como base de seus
hábitos alimentares. Sendo assim, tanto no oriente próximo, com os hebreus,
quanto no oriente distante, com chineses, as crenças dominaram o mundo
gastronômico. Os hebreus ditavam sua alimentação a partir dos conceitos
estipulados pelo seu livro sagrado (Torá), enquanto os chineses seguiam uma
filosofia milenar que prega a essência dos opostos (Yin e Yang), como o frio
e o quente e o equilíbrio entre eles.
Já no Ocidente, o mediterrâneo se caracterizou por um complexo emara-
nhado de pessoas, distintas entre si, mas que acabaram se conectando devido
aos elementos alimentares que eram inseridos nas sociedades ali presentes e
pelas trocas culturais estabelecidas entre eles. Os gregos, por exemplo, tinham
hábitos alimentares muito semelhantes aos nossos, os quais foram transmitidos
para os romanos, formulando as bases da cozinha ocidental, sendo assim, os
gregos acabaram tendo hábitos alimentares adquiridos a partir dessas trocas
mediterrâneas.
Os romanos, por sua vez, adquiriram seus hábitos a partir de interações
realizadas com os gregos durante a dominação do Sul da Itália. Dessa domi-
nação, os romanos aperfeiçoaram sua rudimentar cozinha, como acreditavam
os gregos. Nesses movimentos internos, entre romanos e gregos, a função de
cozinheiro foi de fato consumada, gerando o que podemos chamar de origem
da cozinha ocidental. A partir desse momento, a cozinha começou a sofrer
mutações, não só no ocidente, mas por todos os grupos humanos espalhados
pelo mundo.

A Idade Média dos mosteiros e


a Idade Moderna das especiarias
As movimentações populacionais no mediterrâneo culminaram na queda
do Império Romano. Dessa forma, as práticas alimentares romanas foram
adaptadas às necessidades dos povos que os dominaram, principalmente em
se tratando de insumos, os quais muitas vezes foram obtidos a partir de trocas
comerciais que se cessaram nesse período. De qualquer forma, as características
romanas ainda foram mantidas, deixando os alimentos muito similares aos
encontrados no Império.
Durante esse período de transição, a Igreja Católica começou a influenciar
o povo europeu, principalmente no que diz respeito à vida privada. O Clero
foi o grande responsável pelas mudanças significativas nos hábitos populares,
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começando, nesse momento, a se reunir em grupos religiosos e a constituir


monastérios para viver enclausurado. Essa vida monástica, no entanto, reque-
ria que esses homens compusessem as tarefas diárias, inclusive de cultivo e
colheita. Dessa produção, parte iria servir para a sobrevivência dos monges,
enquanto outra parte seria revertida para a comunidade local.
Franco (2010) diz que, por necessidade ou por inteira vontade de autossufi-
ciência, alguns monastérios começam a produzir alimentos específicos, como
pães, bolos, vinho e cerveja, os quais seriam vendidos, muitas vezes lucrando
mais do que o esperado. Apesar de ser uma estratégia vantajosa, nem sempre
era possível manter o comércio, havendo diversos fatores contribuindo para
o seu desmantelamento. Todavia, os comércios que deram certo acabavam
fomentando a região à sua volta, melhorando a vida das pessoas que ali viviam.
A alimentação cotidiana, no entanto, não tinha qualquer característica
relevante, sendo composta, principalmente, por pão, guisados ou ensopados,
legumes e verduras, além de umas poucas vezes em que as carnes apareciam
no cardápio, sendo elas, na maioria das vezes, de porco ou peixes de água
doce ou salgada e raramente de caça.
Os métodos de cocção eram tão poucos quanto os produtos consumidos
nesse período. Segundo Freixa e Chaves (2017), a grande diferença entre a
cozinha greco-romana e a medieval era os poucos métodos de cocção que
essa última tinha, limitando-se, principalmente, aos assados em braseiros de
lareiras ou cozidos em grandes caldeirões. Fornos e fogareiros eram raros e,
por conseguinte, as preparações feitas nesses locais também. Foi apenas entre
os séculos XI e XIII que o fogão voltou a ser utilizado na Europa, sendo muito
semelhante aos conhecidos fogões à lenha atuais.
Foi durante esse período em que os cozinheiros voltaram a existir no
velho continente que os equipamentos utilizados por eles também voltaram
à cena, fazendo da cozinha um espaço requintado, no qual diversos preparos
eram feitos, de fato, sem muitos critérios, conforme Freixa e Chaves (2017)
comentam. Entretanto, como as elites não tinham paladar aguçado, pouca
importância se dava às combinações de sabores, aromas e texturas.
Essa cozinha elitista acabou tendo características exóticas, visto que o
contato entre o mundo cristão e o mundo islâmico aumentou. Franco (2010)
cita que era extremamente importante o contato com as diversas cozinhas,
deixando-se utilizar o que elas de melhor ofereciam, fazendo disso um ato
transformador nos hábitos alimentares, mas não só deles, afinal, esses contatos
acabaram reaquecendo o comércio entre a Europa e o Oriente Médio, fazendo
com que o próprio comércio europeu voltasse a funcionar, alterando também
a vida daquele povo.
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Desses contatos, técnicas também acabaram assimiladas, como a destila-


ção, as quais, segundo Franco (2010), foram utilizadas para fazer aguardente
e vinhos fortes. Alguns insumos diferentes dos usuais foram inseridos na
Europa, principalmente durante a dominação Moura da Península Ibérica.
Desse plantel, podemos relacionar como mais importantes a cana-de-açúcar,
a laranja e o café, amplamente consumidos no mundo contemporâneo.
Todas essas situações culminaram em um crescente aumento dos núcleos
urbanos, os quais passaram a ser mais atrativos do que o próprio campo.
Não se tinha uma vida fácil nas cidades, haja vista que se consumia o estava
à mão naquele momento, devido ao fato de depender do campo e do que se
produzia lá. Entretanto, com as novas relações comerciais e com as cidades
se tornando centros de recebimento e venda de mercadorias, passou-se a
investir mais nelas. Nesse cenário, grupos de profissionais do mesmo setor
se uniram, formando guildas com um interesse em comum: prosperar. Foi
nesse momento que surgiram as especializações dentro da alimentação, como
padeiros, cozinheiros, confeiteiros, açougueiros e tantos outros, os quais
viveriam da venda dos produtos que sabiam fazer, fomentando, dessa forma,
o comércio alimentício.
As especiarias chegaram ao seu apogeu e com isso a demanda aumentou
drasticamente, fazendo com que novas formas de obter tais produtos, em
quantidades maiores, fossem pensadas. Apesar de diversas tentativas, parecia
evidente que a única solução fosse alcançar tais produtos a partir de uma rota
marítima segura, visto que a utilizada — seguindo pelo mar mediterrâneo até
a Ásia — até aquele momento passou a estar sob controle árabe.
De fato, as chamadas grandes navegações se tornaram importantes, prin-
cipalmente no tocante ao aperfeiçoamento de escoamento das especiarias pela
Europa, mas estas também se tornaram importantes, pois um novo continente
foi localizado. Com isso, a América passou a fazer parte do mundo e seus
hábitos gastronômicos revolucionaram a Europa, com sabores, texturas e
cores jamais imaginadas.
Nessas terras, foram descobertos itens que posteriormente se difundiram
pelo mundo todo, como o milho e o chocolate, por exemplo. Além disso,
também foi possível perceber um grupo social muito conciso, com hábitos
alimentares bem definidos, principalmente no que diz respeito ao cultivo a
terra e ao aproveitamento máximo dela.
As sociedades pré-colombianas praticavam a pecuária, bem como a caça
e a pesca, além de cultivar diversos gêneros alimentícios, desde leguminosas,
até tubérculos, frutas e vegetais, os quais eram amplamente consumidos por
essa sociedade (FREIXA; CHAVES, 2017).
História da gastronomia 9

Enquanto isso, na Europa, a alimentação passava por transformações em


seus significados, passando a representar um grau social, não sendo mais
uma necessidade vital, e diferenciando, portanto, a nobreza do restante da
população. Nesse momento, os chefs (carreira que já tinha um renomado
status) passaram a ser amplamente estimados, estando presentes nas cortes.
A realeza francesa, no entanto, é a que de fato oficializou o uso do chef de
cozinha, tendo, no reinado de Henrique IV e Maria de Médicis, seu estopim.
Entretanto, foi durante o reinado de Luís XIV — Rei Sol — que as mudanças
da cozinha francesa ganharam destaque. Entre as mudanças mais significativas
encontradas na era moderna, percebemos que as preparações passaram a ser
mais leves, com sabores menos acentuados e mais concentrados em ervas
frescas. Novas técnicas de cocção também foram criadas, além de novos
molhos, como o bechamel (FRANCO, 2010).
O nome de Vatel surgiu no cenário francês como sendo sinônimo de requinte
e bom gosto. François Vatel era cozinheiro e mestre de cerimônias do príncipe
de Condé, que residia na região de Chantilly. Em uma ocasião, o nobre recebeu
a visita de Luís XIV, sendo Vatel o encarregado de preparar os banquetes para
a corte real, o que fazia com maestria. No entanto, os peixes que ele deveria
preparar junto à sua equipe para esse banquete ainda não haviam chegado, o
que fez com que ele se suicidasse devido ao desespero. Apesar desse fato, as
inovações concebidas por Vatel, que muitas vezes eram feitas sob a pressão
da cozinha, como a criação do creme chantilly, repercutiriam pelo mundo por
meio de livros (FREIXA; CHAVES, 2017).
Outras grandes novidades foram concebidas nas cortes europeias, visando
sempre à aprovação dos soberanos, mas, principalmente, à diferenciação da
cozinha nobre das cozinhas populares, que continuariam sendo simplistas e
sem refinamentos, com consumo de pães, gordura animal, carne de porco e
verduras e legumes, sendo consideradas, pelos abastados, como uma cozinha
vulgar (FREIXA; CHAVES, 2017).
Deve-se destacar também que, a partir das mudanças gastronômicas e da
fama de muitos chefes, uma nova modalidade de serviço surgiu nas cidades:
os restaurantes. Estes foram criados, primeiramente, com o intuito de atender
os viajantes desgastados da viagem. Todavia, a ideia seria melhor adequada
e reinventada, surgindo então o restaurante como conhecemos atualmente.
É preciso destacar a grande guinada social que os burgueses obtiveram ao
conseguir consumir os produtos da chamada boa cozinha, visto que, aquilo
que antes era destinado aos reis e à corte, agora estava acessível a todos. Para
isso, precisavam ser reinventados os signos da alimentação, mas não apenas
os modos à mesa, como também a forma de preparar o alimento. Dessa forma,
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a França ganhou com seus cozinheiros, os quais deram vida à chamada Idade
de Ouro da cozinha francesa (FREIXA; CHAVES, 2017).

A gastronomia contemporânea e
uma nova alimentação
A era moderna foi um período de grande debate dentro da sociedade. A
burguesia em ascensão cuidadosamente articulou um esquema político que
derrubou a monarquia francesa e preocupou as demais monarquias europeias,
que começaram a se comprometer com as classes mais baixas ou menos
importantes, como a burguesia.
Na França, a revolução contribuiu para uma transformação alimentar e
de hábitos alimentares, principalmente por permitir que grandes cozinheiros
pudessem criar seus espaços. Com a queda da nobreza, muitos cozinheiros
perderam seus empregos e precisaram abrir o seu restaurante ou trabalhar nos
que já existiam. Isso proporcionou uma nova concepção de como a cozinha
deveria funcionar, servir e encantar. A burguesia abastada também contribuiu
para a modernização dos restaurantes, os quais se tornaram mais exigentes
e refinados.
As mudanças sociais forçaram o ramo da alimentação a se reinventar.
Com essas mudanças, grandes nomes passaram a ditar as normas e a criar as
técnicas, que mais tarde seriam essenciais para a gastronomia. Carême, que já
era renomado antes da revolução, manteve-se importante, fundando um novo
momento da cozinha francesa, que acabaria por guiar a gastronomia mundial.
Parte desses elementos foi confirmada e escrita por aqueles que se tornaram
os primeiros críticos gastronômicos da história, responsáveis também por
representar as sensações, os sabores, as técnicas e o requinte que essa nova
gastronomia passou a ter. Isso também incentivou a melhoria dos restaurantes,
que passaram a buscar o padrão e a qualidade descritos pelos grandes críticos
da época.
Outros fatores contribuíram para que se criasse a gastronomia que conhe-
cemos hoje, mas o principal foi a associação do restaurante ao hotel, momento
em que a pessoa poderia agregar não só o descanso, mas também a alimentação
de boa qualidade, o requinte e a praticidade. Quem mais se destacou nesse
ramo foi Escoffier, que gerenciou a cozinha de um dos hotéis mais elegantes
do mundo, além de ser patrono do sistema de brigadas de cozinha, na qual
delimitava a função de cada membro da produção, permitindo a melhor ad-
ministração do chefe de cozinha.
História da gastronomia 11

Nesse momento, também houve a inserção da gastronomia mundial nos


cardápios locais. Segundo Freixa e Chaves (2017), as grades redes de hotéis
espalhadas pelo mundo se preocupavam em atender aos gostos de seus clien-
tes, incorporando preparações locais para aprimorar seus cardápios. Com o
advento do turismo, isso se espalhou e se tornou sinônimo de luxo e requinte.
Entretanto, todas essas mudanças afetaram apenas uma parcela dominante
e abastada. O povo e as classes intermediárias não foram influenciados por
essas mudanças radicais da gastronomia, mantendo-se na cozinha simples e
familiar. Evidentemente existiam estabelecimentos que corresponderam aos
anseios populares, servindo refeições em valores acessíveis e quantidades
mais adequadas. Para esses grupos, os cafés e os bistrôs se tornaram o ponto
convergente entre a indústria alimentícia — restaurantes — e as refeições
familiares.
O brilhantismo da gastronomia atual não é apenas o resultado dos esforços
feitos por grandes chefes ou entendedores do assunto, mas, sim, de um con-
junto de práticas mútuas realizadas por diversas áreas do conhecimento. Da
relação entre a gastronomia e o ramo automobilístico surgiram guias, como o
Michelin, que incorporou a propaganda, tornando-se a alma do negócio, e que,
segundo Franco (2010), permitiu desvendar as cozinhas regionais e proporcionar
acesso a uma gama de insumos e preparações. A ciência também teve sua
importância, principalmente com relação à preservação dos alimentos, o que
permitiu expandir os negócios e ter ainda mais qualidade nas preparações.
Hoje, no entanto, busca-se, principalmente, a praticidade na alimentação,
esquecendo os conceitos mais básicos, trazidos pelos egípcios e gregos antigos,
como a nutrição elementar e o ato de comer, não apenas para nutrir o corpo,
mas também a alma. A alimentação atual se pautou nas técnicas de fast food,
as quais permitem que a população se encha, rapidamente, e volte às atividades
diárias, sem qualquer zelo pela qualidade.
O termo slow food surgiu como uma tentativa de reavivar os momentos de
ouro da gastronomia, a qual, apesar de mais requintada e exigente, está muito
mais acessível, haja vista que grande parte das classes sociais pode desfrutá-la.
O fato é que a vida moderna nos favoreceu, em grande parte, permitindo-nos
ter o que jamais teríamos há 100 anos, no entanto, a alimentação moderna vive
uma crise, criada, em partes, pela ausência de tempo e significados.
12 História da gastronomia

FRANCO, A. De caçador a gourmet: uma história da gastronomia. 5. ed. São Paulo:


Senac, 2010.
FREIXA, D.; CHAVES, G. Gastronomia no Brasil e no mundo. São Paulo: Senac, 2017.
GEERTZ, C, O papel da cultura nas ciências sociais. Porto Alegre: Villa Martha, 1980.

Leituras recomendadas
ABREU, E. S. et al. Alimentação mundial: uma reflexão sobre a história. Saúde e Sociedade,
São Paulo, v. 10, n. 2, p. 3-14, ago./dez. 2001.
FLANDRIN, J. L.; MONTANARI, M. História da alimentação. 7. ed. São Paulo: Estação
Liberdade, 1998.
Conteúdo:
DICA DO PROFESSOR

A gastronomia se abrilhantou durante a era moderna, onde reis, rainhas e grandes magnatas busc
avam salientar suas diferenças sociais, apresentando uma alimentação refinada e exótica, diferen
te dos demais.

Muitos contribuíram para esse feito, mas um, em especial, tornou a gastronomia um símbolo, jus
tamente como ela é hoje. Conheça, na Dica do Professor, a história de Antoine Carême: o mais f
amoso cozinheiro.

Aponte a câmera para o código e acesse o link do vídeo ou clique no código para acessar.

EXERCÍCIOS

1) O chefe de cozinha Auguste Escoffier se tornou extremamente famoso, e uma das pes
soas mais importantes do ramo gastronômico na idade contemporânea. Dentre seus f
eitos mais importantes, a união entre restaurantes e hotéis de luxo com certeza impac
tou o mundo da alimentação. Sobre seus feitos, responda: Qual foi a sua invenção mai
s famosa?

Os sistemas anti-incêndio.
A)
O sistema de cumins.
B)
O sistema de brigadas.
C)
O sistema de cocção.
D)
O sistema de água e esgoto.
E)

2) Os homens pré-históricos dependiam do alimento que a terra ofertava a eles, visto qu


e seus principais consumos eram de frutas, tubérculos e leguminosas coletados por on
de se passava. No entanto, a caça surgiu como um importante aliado na sobrevivência
humana. Sobre a caça feita no período pré-histórico, assinale a alternativa CORRET
A:

Os homens pré-históricos não sabiam caçar, e aprenderam a partir de pinturas feitas por ou
A)
tros seres nas cavernas.

Os homens pré-históricos não sabiam caçar, e aprenderam a partir da observação dos anim
B)
ais maiores carnívoros.

Os homens pré-históricos sabiam caçar, e ensinaram outros hominídeos a partir de pinturas


C)
feitas nas cavernas.

Os homens pré-históricos não sabiam caçar, e também preferiram não aprender, vivendo a
D)
penas de restos.

Os homens pré-históricos sabiam caçar, mas aprenderam técnicas novas com outros homin
E)
ídeos.

3) Atualmente, a gastronomia passa por uma crise, que se alastra cada dia mais devido,
principalmente, à falta de tempo e à correria do dia a dia. Sobre essa crise, assinale a
alternativa CORRETA:

Essa crise se dá pela ascensão das cozinhas regionais.


A)
Essa crise se dá pela ascensão das cozinhas metropolitanas.
B)
Essa crise se dá pela ascensão das cozinhas chinesas.
C)
Essa crise se dá pela ascensão das cozinhas informais.
D)
Essa crise se dá pela ascensão das cozinhas de fast food.
E)

4) O período moderno foi de grandes transformações dentro da alimentação humana. N


esse período, grandes conquistas, como a descoberta da América, fizeram com que a
alimentação se adaptasse a novos sabores e cores. Sobre a alimentação no período mo
derno, assinale a alternativa CORRETA:
Foi o apogeu das especiarias e dos produtos trazidos do oriente, vindos nesse momento, atr
A)
avés das grandes navegações.

Priorizou os produtos da América, deixando de lado a importação das especiarias, que caír
B)
am em desuso.

Constatou-se, nesse período, as dificuldades de importação de especiarias, e, preferiu-se di


C)
minuir o consumo dessas mercadorias.

Elevou o comércio de especiarias, mesmo existindo poucos consumidores para os esses pr


D)
odutos.

Priorizou a centralização europeia, não permitindo a importação de produtos diferentes do


E)
obtidos no continente europeu.

5) Os egípcios foram um dos precursores da utilização da terra e do seu cultivo junto ao


s mesopotâmicos. Esses grupos viveram em regiões banhadas por rios como o Nilo, no
Egito. Para essa região, onde esses povos se encontravam e começaram a cultivar a te
rra, dá-se o nome de?

Terras Alagadas.
A)
Terra Crescente.
B)
Crescente Fértil.
C)
Crescente Alagado.
D)
Alagados Férteis.
E)

NA PRÁTICA

Escoffier foi um famoso cozinheiro da idade contemporânea, que viveu entre o final do século X
IX e começo do século XX. Durante a sua célebre carreira, o comando do restaurante dentro do
hotel de luxo Ritz foi o que mais marcou sua carreira.

Esse mestre, dentre tantas técnicas inventadas, adaptadas ou corrigidas para sua realidade, criou
um sistema que funcionou tão bem, que até hoje continua sendo utilizado e melhorado cada vez
mais.

Veja, Na Prática, como funcionava o sistema de brigadas de Escoffier.


SAIBA +

Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professo
r:

A comida como lugar de história: as dimensões do gosto

A alimentação não serve apenas para nutrir o corpo, como diziam os gregos, dever-se-ia, també
m, comer para nutrir a alma. Estudar a alimentação nos permite entender o que ela implicou nas
mudanças dos seres humanos ao longo do tempo, e como ela serviu de base para a construção de
uma memória, que pode ser tanto individual quanto coletiva. Acompanhe um estudo sobre alime
ntação e memória.

Aponte a câmera para o código e acesse o link do vídeo ou clique no código para acessar.

Homem pré-histórico - caçar ou ser caçado

A vida na pré-história foi a mais dificultosa, quando nos deparamos com o desenvolvimento hu
mano. Muitos hábitos e muitas técnicas foram desenvolvidos a partir de experiências vivenciada
s por esses proto-humanos. Veja, neste episódio de um documentário, como foi a vida dos prime
iros hominídeos no passado.

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