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Sumário das aulas de 09-03-2023

(diurno e pós-laboral)

Observação prévia

Como vimos na aula anterior, o Direito das Coisas estabelece uma relação entre
pessoas e coisas. E também sabemos que o Direito das Coisas, na sistematização
do Código Civil, vem regulado no Livro III. Terá algum interesse em esclarecer
como se chegou à esta inserção sistemática. O entendimento do direito das coisas
como uma matéria autónoma remonta ao livro de ensino do jurisconsulto romano
GAIUS (do séc. 2 pós Cristo). O sistema de GAIUS diferenciou entre (1) o direito
das pessoas e da família, (2) o direito das coisas e das sucessões e (3) o direito
das obrigações e as acções, ou seja, assentou na tríade clássica “personae, res,
actiones”. Este sistema, muitos séculos depois, foi modificado na Alemanha – que
tinha adoptado o direito romano como o direito comum que se sobrepunha aos
vários direitos territoriais – com a introdução de uma parte geral, a separação do
direito das pessoas do direito da família e a do direito das coisas do direito das
sucessões ao lado do direito das obrigações. Desta divisão acabou por surgir o
chamado sistema de HEISE que subjaz ao Código Civil alemão (o BGB) que, por
sua vez, serviu de modelo sistemático ao Código Civil português.


Esta observação prévia e a correspondente nota de pé de página têm apenas uma finalidade
informativa e não constituem matéria de exame.


Deste modo, a origem histórica da categoria dos direitos reais pode ser esboçada de forma
seguinte:

a) A sistematização legal da matéria encontra as suas raízes históricas num dos elementos – ou
seja, no sistema de GAIUS – das Institutiones contidos no Corpus Iuris Civilis (publicado entre
530-533/534) que é dividido em duas partes:

I. A Codificação [composto por (1.º) as Institutiones [(Institutas) = uma pequena introdução à


ordem jurídica, com força de lei, principalmente com base no sistema do jurisconsulto GAIUS (2.º
séc. p. Chr.): personae (situação pessoal e familiar) → res (direito das coisas e sucessões) →
actiones (direito das obrigações e acções)] divididas em 4 livros, ao todo com 56 páginas; (2.º)
o Digesta ou Pandectae [Digesto ou Pandectas = extractos de obras de juristas romanos
distribuídos por 50 livros com 926 páginas]; (3.º) o Codex Iustinianus [= as Constituições],
dividido em 12 livros com 488 páginas, que reúne uma compilação de leis do imperador. Estas
três obras constituem uma unidade legislativa.

II. As Novelas (Novellae), 803 páginas, não pertencem à própria codificação, respeitam a leis
imperiais publicadas depois (±535-575) e já são redigidas predominantemente em língua grega.

[Ver: Corpus Iuris Civilis, Editio stereotypa (KRUEGER-MOMMSEN), Berlin 1911 (I, 1.º e 2.º), 1915
(I, 3.º), 1912 (II) que foi utilizada para a elaboração desta nota.]

b) O sistema de GAIUS que inicialmente mal teve seguidores começou por impor-se muito mais
tarde (a partir de Bolonha), sendo então seguido pelas codificações modernas em França (1804)
e na Áustria (1809).
Sendo os direitos reais regulados essencialmente no Livro III do CCiv, que regula
os direitos reais de gozo, este não é, todavia, a sua única fonte. De acordo com
os vários tipos dos direitos reais estes encontram-se regulados ainda no Livro II
do CCiv, onde encontramos os direitos reais de garantia, enquanto os direitos
reais de aquisição são objectos de ambos os livros. Mas além disso existe também
legislação especial a respeito de direitos reais como, por exemplo, o importante
direito real de habitação periódica.

Quanto à designação da matéria e da disciplina, a doutrina tem hesitado entre


os conceitos “Direito das Coisas versus Direitos Reais”. Todavia, não se deve
atribuir grande relevância a esta questão. Os conceitos podem ser considerados
como sinónimos, sendo o último conceito mais usado.

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Na Alemanha, com o direito das pandectas – sob a influência do direito natural racionalista e o
domínio da “escola histórica do direito” – o sistema de GAIUS foi precedido por uma parte geral,
o direito das pessoas e da família foi dividido e o direito das coisas foi autonomizado e separado
do direito das sucessões (assim o sistema esboçado por G. A. HEISE, Grundriss eines Systems des
gemeinen Civilrechts, 3.ª edição, Heidelberg 1819 [216 páginas]) ficando o direito patrimonial
dividido entre o direito das obrigações e o direito das coisas.
O sistema de HEISE (Introdução e 5 Livros → Regras gerais, direitos reais, das obrigações, direitos
reais-pessoais, direito sucessório e ainda um 6.º livro sobre restituições) veio a ser seguido
primeiro pelo Código Civil da Saxónia (1863 → disposições gerais, direito das coisas, direito dos
créditos, direito da família e tutela, direito sucessório) e depois pelo BGB (1900) em que, porém,
o direito das obrigações antecede o direito das coisas, pelo Código Civil Suíço (1907), embora
com fortes modificações, e ainda pelo Código Civil Português, de 1966, que manteve a ordem
dos cinco livros adoptada pelo BGB, sendo os conteúdos dos livros apenas parcialmente
coincidentes (por exemplo, os direitos reais de garantia, regulados no BGB no livro III, constam
no CCiv do livro II, das obrigações em geral, e o conteúdo do Livro I do CCiv não coincide com o
do Livro I, a parte geral, do BGB).

[F. REGELSBERGER, Pandekten, Erster Band, Leipzig 1893, organizou a matéria da parte geral da
seguinte maneira: as leis, sua vigência e aplicação, o direito internacional privado  a relação
jurídica com os seus elementos externos. Quer dizer, encontramos aqui uma sistematização quase
idêntica à do Livro I do Código Civil de 1966 (e totalmente ao contrário da Parte geral do BGB,
que tem como figura central o negócio jurídico). REGELSBERGER distingue entre os objectos de
direito em geral e, entre os objectos, autonomiza as coisas cuja característica essencial é serem
corpóreas. Também para o BGB coisas são apenas objectos corpóreos.
O Código Civil português de 1867, pelo contrário, não seguiu o exemplo romano (o sistema de
GAIUS) e adoptou uma sistematização perfeitamente autónoma, antropocêntrica, e seu modelo
do homo iuridicus foi o proprietário na sua luta pela aquisição, fruição e defesa dos seus bens.]

c) Em termos processuais, ou seja, para fazer valer direitos, vigorava o sistema da tipicidade da
tutela judicial. Quer dizer, para invocar um determinado direito era necessário que existisse uma
respectiva acção-tipo. Entre estas acções distinguia-se entre acções contra pessoas dirigidas ao
cumprimento de uma obrigação (actiones in personam) e acções destinadas ao poder jurídico
sobre coisas (actiones in rem) [Anspruch gegen eine Person ↔ Anspruch auf eine Sache] e é
também a partir deste sistema de acções que se acabaram por autonomizar os direitos reais. É
fundamental neste contexto a obra de Bernhard WINDSCHEID, Die Actio des römischen Zivilrechts,
Düsseldorf 1856.
As concepções do direito real.

A este respeito há na doutrina vários entendimentos e vamos referir algumas das


concepções defendidas:

• A noção clássica ou tradicional do direito real; a concepção realista: o exercício


de poder (o domínio) imediato sobre uma coisa determinada (à semelhança do
meum esse do direito romano), é dirigido à coisa; temos um direito de domínio
e uma relação ou um vínculo entre pessoa e coisa. Em sentido contrário, o direito
obrigacional visa a realização de uma prestação e dirige-se contra a pessoa do
devedor e seu património; temos um vínculo, uma relação interpessoal, relativa
entre determinadas pessoas.
• A concepção personalista não assenta no critério de domínio, mas igualmente
numa relação interpessoal, mas agora entre o titular do direito e quaisquer outros
(à semelhança do vínculo relativo dos direitos obrigacionais). Enquanto uma
oponibilidade limitada inter partes caracteriza os direitos obrigacionais, temos
uma oponibilidade ampla erga omnes dos direitos reais em relação a todos os
outros de que resulta uma obrigação passiva universal destes outros de respeitar
o direito real do titular.
• As concepções eclécticas do direito real conciliam o poder de domínio (sendo
este o seu lado interno existente entre pessoa e coisa) com a oponibilidade erga
omnes (o seu lado externo entre o titular do direito e as restantes pessoas). As
concepções eclécticas reúnem o maior consenso na doutrina.
• Uma concepção personalista, individualista (representada, por exemplo, por
Goethe) valoriza o vínculo emocional ou afectivo entre pessoa e coisa, cada uma
delas com a sua dignidade própria, bem como a projecção da personalidade sobre
a coisa. Temos aqui nomeadamente bens pessoais como, por exemplo, colecções
ou animais de companhia e estimação ou instrumentos de trabalho fabricados
cuidadosamente e “individualizados” com vista a quem os possa usar ou objectos
feitos para uma pessoa com a qual se está emocionalmente ligada, de modo que
a relação entre as pessoas se estende aos objectos; nestas circunstâncias as
coisas passam a ser “animadas” (cf. também G. RADBRUCH, Rechtsphilosophie, §
18 Das Eigentum). Esta concepção, apesar do seu relevante significado em
constelações concretas, apenas pode ter um âmbito de aplicação mais reduzido.
Na verdade, as coisas podem ter para o seu proprietário um valor afectivo de
grande significado, sendo certo, todavia, que em caso de destruição ou perda da
coisa o valor afectivo, não constituindo um valor mercantil, não é susceptível de
indemnização. Contudo, a situação é diferente no caso dos animais onde o
vínculo afectivo e sentimental pode assumir uma grande relevância para o seu
dono. Deste modo, no caso específico da lesão ou da morte de um animal de
companhia já pode ser devida ao seu proprietário uma indemnização por danos
morais pelo seu desgosto ou sofrimento moral que o atingiu (cf. os artigos 493.º-
A e 496.º, n.º 4, CCiv).
• M. Henrique MESQUITA retoma a noção clássica dos direitos reais (que permite
incluir a concepção personalista individualista). Esta concepção do direito real
como relação jurídica de soberania entre uma pessoa (o titular do direito) e uma
coisa (o objecto do direito), o já referido lien de appartenance, parece ser a mais
adequada. Obviamente, esta relação não pode ser comparada com uma relação
intersubjectiva cuja natureza é diferente. Por outro lado, é claro que os direitos
reais como direitos absolutos (ou direitos de exclusão) têm efeitos erga omnes.
• Ainda há teorias que negam uma distinção entre direitos reais e obrigacionais
e fazem prevalecer só elemento obrigacional (Demogue): existe unicamente uma
diferença de grau quantitativa na vinculação em relação aos outros, erga omnes
(direitos reais)  vinculação inter partes (direitos obrigacionais) tendo o direito
do credor efeitos erga omnes. Mas para esta teoria não há qualquer fundamento
legal.

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O âmbito de aplicação da disciplina dos direitos reais

A disciplina restringe-se a matéria dos direitos sobre coisas, mais precisamente


coisas corpóreas (ver artigo 1302.º CCiv), que se encontram dentro do comércio
jurídico privado (a exemplo do antigo direito romano) incluindo o direito da
propriedade sobre animais.

Neste contexto podemos distinguir o conceito de coisa em sentido amplo definido


pelo artigo 202.º, n.º 1 (diz-se coisa tudo que pode ser objecto de relações
jurídicas, isto é, objecto de direitos subjectivos [Rechtsgegenstand]) e o conceito
de coisa em sentido restrito.
Coisas em sentido restrito são coisas corpóreas e incorpóreas. Coisas corpóreas
pertencem ao mundo físico e revelam-se aos sentidos; coisas incorpóreas são as
obras literárias, científicas ou artísticas ou criações industriais (como patentes de
invenção, modelos de utilidade ou desenhos) e sinais distintivos (especialmente
firmas, marcas, logótipos, denominações de origem e indicações geográficas).
Objectos do direito da propriedade são as coisas corpóreas [Sachen] como resulta
do artigo 1302.º, n.º 1. As coisas incorpóreas estão sujeitas a legislação especial
e subsidiariamente às disposições do Código Civil. Como objectos de direitos
subjectivos as coisas são objecto mediato da relação jurídica, uma matéria que
pertence à Teoria Geral do Direito Civil. De qualquer modo, para serem objectos
de direitos reais de natureza privada é necessário que as coisas, entendidas no
seu sentido amplo e restrito, se encontrem dentro do comércio jurídico privado
como resulta do artigo 202.º, n.º 2.
Perdem a sua qualidade de coisa os objectos implantados no corpo humano com
finalidades clínicas e que dele fazem parte (por exemplo, articulações, pace-
makers e outros implantes que, de resto, devido à medicina moderna ganham
uma relevância cada vez maior); adquirem a qualidade de coisa partes separadas
do corpo humano (como, por exemplo, o cabelo, o sangue doado, ou órgãos
destinados a transplante ou o sémen crioconservado para efeitos da inseminação
post mortem) ou ainda o cadáver o que não significa, porém, que sejam também
coisas dentro do comércio. A qualificação depende das situações concretas.
Em sentido amplo, o conceito abrange ainda os direitos sobre direitos como nos
casos do penhor de direitos, da hipoteca de direitos e do usufruto de direitos e
ainda direitos sobre obrigações. Ou, mais recentemente, conteúdos digitais ou
serviços digitais.
Aos objectos do direito da propriedade (artigo 1302.º, n.º 2) pertencem também
os animais. Não obstante a inserção sistemática, altamente questionável (para
apenas dizer isto) do novo subtítulo I-A (Dos animais) logo a seguir ao subtítulo
A (As pessoas) no título II da Parte geral do CCiv (que integra os artigos 201.º-
B a 201.º-D), operada pela Lei n.º 8/2017, que consagra o estatuto jurídico dos
animais, estes como objectos do direito da propriedade (os artigos 1302.º, n.º 2,
e 1305.º-A falam da “propriedade de animais”) constituem um objecto da relação
jurídica (e não são porventura um tertium genus entre pessoa e coisa), sendo,
todavia, um objecto sui generis. Sustentar que constituem um tertium genus
carece de fundamento legal.
Teria sido sistematicamente mais correcto mudar a designação do subtítulo II do
título II da Parte geral “Das coisas” para “Dos animais e das coisas”, sendo ele
subdividido em dois capítulos, o Capítulo I “Dos animais” e o Capítulo II “Das
coisas”. O Capítulo I incluiria os artigos 201.º-B a 201.º-D, como foram redigidos
pela lei n.º 8/2017, enquanto o Capítulo II manteria os artigos 202.º a 216.º na
sua redacção actual. Com esta sistematização seria salvaguardado o estatuto
específico dos animais com a sua dignidade própria, distinto das simples coisas
corpóreas, e teria sido evitada a desfiguração do Código Civil.

*******

Como características dos direitos reais são apontados os seguintes:

• o poder de domínio (já referido na concepção clássica ou realista);


• a eficácia erga omnes (como efeito da concepção personalista);
• a sequela (reivindicação; ou o direito de perseguição);
• os efeitos absolutos, ou seja, a exclusão de todos os outros da titularidade do
direito;
• e ainda a prevalência (??).
Contudo, há direitos reais que – por não serem direitos reais de gozo – não
possuem todas estas características. É isto que sucede com os direitos reais de
garantia e os direitos reais de aquisição. Deste modo, todos os direitos reais de
gozo são direitos de domínio, mas nem todos os direitos reais são direitos de
domínio.

*****

Quanto aos princípios estruturantes dos direitos reais que os autonomizam (não
há unanimidade da doutrina a este respeito [por exemplo, José Alberto VIEIRA,
Direitos Reais, 3.ª edição, Coimbra 2022, nem refere o princípio da prevalência])
podem ser referidos os seguintes:

• O princípio da tipicidade taxativa (= numerus clausus [Typenzwang]) que vem


consagrado no artigo 1306.º, n.º 1: “Não é permitido a constituição, com carácter
real, de restrições ao direito da propriedade ou de figuras parcelares desta senão
nos casos previstos na lei (…)”. Estas figuras parcelares são os direitos reais
limitados, designadamente os direitos reais limitados de gozo.
Além do numerus clausus os direitos reais têm regularmente ainda um conteúdo
determinado ou fechado (Typenfixierung). Deste modo, o artigo 1305.º define o
conteúdo do direito da propriedade e todos os regimes dos direitos reais limitados
começam por fornecer-nos uma “noção” que define o seu respectivo conteúdo
(ver, por exemplo, o artigo 1439.º que define o usufruto).
O princípio da tipicidade taxativa, reforçado pela fixação do conteúdo dos direitos
reais, é exigido pela segurança do tráfico jurídico; está em causa a atribuição ou
a pertença de bens, e não uma simples obrigação no sentido de os transferir ou
de efectuar uma prestação que, por si só, ainda não afecta a titularidade de um
direito.
Os mesmos requisitos de segurança do tráfico jurídico existem também a respeito
da definição dos sujeitos de direito (ao lado das pessoas singulares e seu estado
civil, inscrito no registo civil, só há os tipos de pessoas colectivas, inscritas no
registo comercial e outros, que a lei reconhece como tais) bem como no que
respeita ao conteúdo ou aos efeitos dos direitos familiares pessoais (por exemplo:
artigos 1618.º, 1671.º e seguintes, artigos 1877.º e 1878.º).
É precisamente esta lógica da necessidade de segurança no tráfico jurídico que,
nas relações negociais e transacções comerciais, subjaz à estandardização muitas
vezes pormenorizada de pesos, medidas e qualidades ou à fixação de normas
industriais ou padrões. À semelhança do sucede com a tipicidade dos direitos
reais e com o seu conteúdo fechado está em causa a confiança e a credibilidade
do tráfico comercial.
• O princípio da elasticidade ou consolidação: temos, por um lado, o direito de
propriedade que, sendo o direito pleno, incide sobre uma coisa própria (o artigo
1305.º refere as coisas que pertencem ao seu proprietário), e, por outro lado, os
vários direitos reais limitados (ou menores) que, sendo figuras parcelares da
propriedade (assim o artigo 1306.º, n.º 1) incidem, como direitos autónomos (!),
sobre uma coisa alheia pertencente ao proprietário: quer dizer, os direitos reais
limitados restringem de acordo e na medida do seu conteúdo o conteúdo do
direito da propriedade que pertence a outrem como vemos com facilidade com
as servidões prediais ou com o usufruto que restringem o gozo pleno da
propriedade. Desde que tenham conteúdos diferentes estes direitos reais
limitados podem coexistir perfeitamente entre si e com a propriedade cujo
conteúdo limitam (e temos uma “coexistência de direitos” entre a propriedade e
os direitos reais limitados). Todavia, na medida em que os direitos reais limitados
– como figuras parcelares da propriedade que são – se extinguem a propriedade,
devida à sua elasticidade, recupera o seu conteúdo anterior.
• O princípio da especialidade ou da individualização: o direito incide sobre uma
coisa concreta, existente e especificada e não sobre uma coisa genérica como,
por exemplo, o património. Esta incidência inclui uma ligação directa ou imediata
do direito ao seu titular (que pode ser incindível [sendo o direito real estritamente
pessoal, como sucede com o usufruto] ou cindível, e neste caso o direito é
transmissível); devido a esta ligação imediata entre o direito e a coisa nada se
interpõe entre o titular e o direito; por isso, só pode haver direitos reais sobre
coisas presentes. Do princípio da individualização – e da transparência que ele
garante – resulta e assenta outro princípio, o do “nemo plus iuris … “.
• O princípio da transmissibilidade: em regra os direitos reais estão ligados ao
seu titular de um modo cindível e por isso são transmissíveis por negócios entre
vivos ou também mortis causa, quer dizer, são alienáveis e hereditáveis. Mas não
sempre é assim. Por exemplo, o usufruto não é hereditável porque está limitado
à vida do usufrutuário (artigo 1443.º) e os direitos de uso e habitação não são
transmissíveis nem por negócios entre vivos nem mortis causa (artigos 1488.º,
1485.º e 1443.º). Também em relação às servidões (artigo 1543.º) existe uma
limitação a transmissões (artigo 1445.º) apenas permitida nos termos dos artigos
1567.º, n.º 2, última parte, e 1568.º, n.º 1.
• O princípio da compatibilidade ou exclusão: como vimos por ocasião do princípio
da elasticidade, podem coexistir direitos reais com conteúdos diferentes sobre o
mesmo objecto ou a mesma coisa, mas já não podem existir dois direitos reais
com o mesmo conteúdo sobre o mesmo objecto. Estas situações são legalmente
impossíveis e a constituição posterior de um direito real com conteúdo idêntico é
nula. Este princípio encontra a sua consagração nos artigos 892.º, 939.º e 956.º,
n.º 1.
• O princípio da prevalência (regra: prior tempore potior iure) não se encontra
positivado, nem implicitamente, no direito das coisas (Livro III CCiv) que ignora
a figura. Todavia, a doutrina maioritária sustenta, de modo algo esquemático,
que a prevalência ou preferência é a “circunstância de os direitos reais
constituídos sobre uma coisa prevalecerem, quer sobre os direitos de crédito
relativos a esta coisa, quer sobre os direitos reais posteriormente constituídos
sobre a mesma coisa e que se revelam total ou parcialmente incompatíveis com
o anterior. Este é um princípio que vale para todos os direitos reais.”
a) Efectivamente, o CCiv lei regula a prevalência, mas no contexto sistemático
do direito das obrigações em geral, precisamente no artigo 407.º que estabelece
uma regra de prevalência limitada a direitos pessoais de gozo.
Ao contrário dos direitos reais de gozo que – como figuras parcelares do direito
da propriedade – são direitos autónomos e por isso possuem as características
próprias dos direitos reais, os direitos pessoais de gozo têm características
diferentes porque são direitos obrigacionais, direitos relativos. Por isso são
regulados no direito das obrigações. Como tais conferem o uso temporário ou a
utilização temporária de uma coisa, isto é, a sua detenção (a sua posse precária),
e vinculam exclusivamente as partes do respectivo contrato nos termos e de
acordo com o conteúdo do contrato, por exemplo, as relações contratuais entre
locador (senhorio) e locatário (inquilino). Assim, os direitos pessoais de gozo têm
efeitos inter partes enquanto os direitos reais de gozo têm efeitos erga omnes.
Trata-se de direitos diferentes com regimes diferentes.
O artigo 407.º (incompatibilidade entre direitos pessoais de gozo) determina:
“Quando, por contratos sucessivos, se constituírem, a favor de pessoas
diferentes, mas sobre a mesma coisa, direitos pessoais de gozo incompatíveis
entre si, prevalece o direito mais antigo em data, sem prejuízo das regras do
registo.” Quer dizer, há direitos constituídos em conflito e a lei resolve o conflito
pela prevalência do direito mais antigo.

Desta forma, a aplicação do artigo 407.º pressupõe cumulativamente:


(1) a celebração de contratos sucessivos válidos de que resultam
(2) direitos obrigacionais válidos que permitem o gozo, isto é, a utilização de uma
coisa,
(3) com conteúdos incompatíveis entre si e
(4) determina a prevalência do direito mais antigo constituído em primeiro lugar
(prior tempore potior iure).
Quer dizer, é a obrigação mais antiga em data que prevalece e que deve ser
cumprida.

Mas ficam ressalvadas as regras próprias do registo. E, na verdade, as regras do


registo estabelecem prioridades diferentes na medida em que prevalece não o
direito mais antigo em data, mas o direito que for inscrito em primeiro lugar no
registo, isto é, no registo predial (ver artigo 6.º, n.º 1, CRegPred) e este direito
pode não ser o mais antigo em data.
Ver: L. M. Menezes Leitão, pp. 19-28 (Princípios gerais dos Direitos Reais), 29-
44 (Conceito e estrutura do direito real), 45-54 (Características dos direitos reais),
54-57 (Objecto dos direitos reais); Rui Pinto Duarte, pp. 33-46 (restrição da
disciplina aos direitos sobre coisas corpóreas; características comuns e princípios
orientadores dos direitos reais); José Luís Bonifácio Ramos, pp. 73-82 (Os
animais; os cadáveres).

As indicações das páginas respeitam à última edição referida (e sumariada) na


aula de apresentação. Contudo, também se indicam as matérias tratadas o que
permite ao aluno utilizar edições anteriores.

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