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Segurança Pública e Direitos Fundamentais

RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO1


MAURA BASSO2

Resumo:
Tendo em vista o crescimento da criminalidade violenta na sociedade contemporânea e as discussões
a respeito do tema, o presente estudo propõe a análise da segurança pública à luz da Constituição
Federal. Enfoca duas relações possíveis entre direitos fundamentais e segurança pública: uma diz
respeito ao fato da segurança pessoal não integrar o catálogo do art. 5º da CF, o que não exclui a
possibilidade de sua inclusão como direito fundamental, via a cláusula de abertura do §2º do mesmo
dispositivo; a outra se refere ao fenômeno global da corrosão sofrida pelos direitos fundamentais
diante das políticas de segurança pública experimentadas no mundo ocidental nos últimos anos.

Palavras-chave:
direitos fundamentais, segurança pública, violência, prevenção, criminalidade organizada, criminali-
dade de massas.

Abstract:
Observing the growth of the violent criminality in the contemporary society and the discussions
regarding the theme, the present study proposes the analysis of the public safety to the light of the
Federal Constitution. It focuses two possible relationships between fundamental rights and public
safety: one concerns the personal safety’s fact not to integrate the catalog of the art. 5th of CF, what
doesn’t exclude the possibility of his/her inclusion as fundamental right, saw the clause of opening of
the §2nd of the same device; the other refers to the global phenomenon of the suffered corrosion for
the fundamental rights before public safety’s politics tried in the western world in the last years.

Word-keys:
Fundamental rights, dimensions of the fundamental rights, public safety, violence, prevention, organi-
zed criminality, criminality of masses.

1
Advogado, Doutor em Sociologia, professor dos Programas de Mestrado em Ciências Criminais e em Ciências Sociais da PUCRS.
2
Advogada, Especialista em Sociologia Jurídica e Direitos Humanos pela Unisinos, mestranda em Ciências Criminais pela PUCRS, assessora
na 6ª Câmara Criminal do TJ/RS.

Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 34, n. 2, p. 21-32, jul./dez. 2008


22 Azevedo, R. G.; Basso, M.

“Uma cultura jurídica se constrói na estabi- turante, é constitutivo e indicativo das idéias di-
lidade daqueles princípios que nós reputa- retivas básicas de toda a ordem constitucional. O
mos indiscutíveis e indisponíveis, como princípio de Estado de Direito sustenta a “pro-
patrimônio da civilização, também em mo- posição de uma ordem de paz” garantida pelo or-
mentos de crise.” denamento jurídico, o que cria a necessidade de
Winfried Hassemer tutelar bens assim reconhecidos pelo sistema ju-
rídico4 . Cenário no qual emerge o direito penal
A percepção generalizada de crescimento da contemporâneo como instrumento historicamente
criminalidade violenta na sociedade contempo- legitimado de persecução do fim de tutela de bens
rânea coloca o tema segurança pública no centro materialmente resguardados pelo Estado5 .
do debate político e jurídico. Com freqüência, fala- A discussão proposta está intimamente liga-
se em um direito à segurança pública por parte da ao tema dos direitos fundamentais, fazendo-
do indivíduo, o que torna forçosa a reflexão a res- se necessária, inicialmente, a delimitação concei-
peito de uma relação possível entre aquela e os tual desses direitos. Para SARLET, direitos fun-
direitos fundamentais. damentais “são os direitos do ser humano reco-
O estudo da segurança pública à luz da Cons- nhecidos e positivados na esfera do direito cons-
tituição Federal é de extrema relevância. Para Luiz titucional positivo de determinado Estado”6 .
Eduardo Soares: Ressalta o autor:
Com a promulgação da primeira Constituição de- Assim, com base no exposto, cumpre traçar uma
mocrática brasileira, em 1988, criaram-se condições distinção, ainda que de cunho predominantemen-
para uma ampla participação popular e removeram- te didático, entre expressões ‘direitos do homem’
se as barreiras tradicionais, que excluíam do direi- (no sentido de direitos naturais não, ou ainda não
to ao voto inúmeros segmentos da população. Dado positivados), ‘direitos humanos’(positivados na
o novo contexto político, as agendas públicas tor- esfera do direito internacional) e ‘direitos funda-
naram-se ainda mais sensíveis às demandas da so- mentais’ (direitos reconhecidos ou outorgados e
ciedade. Sendo a segurança um item eminentemente protegidos pelo direito constitucional interno de
popular – sem deixar de ser tema prioritário tam- cada Estado).7
bém para as elites e para as camadas médias –, im- Segundo lição de BONAVIDES8 , percebe-se
pôs-se com mais peso à consideração dos atores
um uso promíscuo dessas denominações na lite-
políticos. O crescimento da violência criminal, ao
longo da última década, reforçou essa tendência. ratura jurídica, ocorrendo emprego maior de di-
Hoje, a questão da segurança é parte não apenas reitos humanos e direitos do homem entre auto-
das preocupações estaduais, mas também dos mu- res anglo-americanos e latinos, enquanto o termo
nicípios e governo federal, tornando-se uma das
“direitos fundamentais” ficaria circunscrito às
principais problemáticas nacionais, seja nas elei-
ções, seja para além delas3 . preferências dos publicistas alemães. BONAVI-
A abordagem constitucional do tema, igual- DES define-os como sendo aqueles direitos que a
mente, encontra guarida no Princípio de Estado ordem jurídica vigente qualifica como tais. Escla-
de Direito. Como princípio constitucional estru- rece que Carl Schmitt estabeleceu dois critérios

3
in Novas Políticas de Segurança Pública. ESTUDOS AVANÇADOS 17 (47), 2003. Disponível na Internet em 02/3/2007.
4
D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e Crimes Omissivos Próprios (Contributo à Compreensão do Crime como Ofensa ao Bem Jurídico.
Stvdia Ivridica, Coimbra; Coimbra Ed., 2005.
5
Para D’AVILA, tais bens são inafastáveis e conformadores da própria feição desse Estado, impelindo o reconhecimento, na proteção de bens
jurídicos, de um princípio constitucional impositivo como princípio geral fundamental, densificador do princípio estruturante do Estado
de direito e, em conseqüência, estruturante de todo o ordenamento jurídico-penal. Em outras palavras, o princípio geral fundamental
de tutela de bens jurídicos é representativo do dever do Estado em proteger valores cuja densidade impõe uma ascensão na forma de bens
jurídicos.
6
SARLET, Ingo Wolfang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 36.
7
Ob. Cit., p. 36.
8
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 560.

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Segurança pública e direitos fundamentais 23

formais de caracterização. Por um lado, são direi- princípio ilimitada diante de um poder estatal
tos fundamentais todos aqueles (direitos ou ga- de intervenção, em princípio limitado, mensurá-
rantias) nomeados e especificados na Constitui- vel e controlável. São direitos absolutos excepci-
ção. Por outro, são aqueles direitos que recebe- onalmente relativizados pela lei e dentro de de-
ram da Constituição um grau mais elevado de terminados critérios legais. As limitações são
garantia ou de segurança, sendo imutáveis ou de exceções.
mudança dificultada, somente alteráveis median- Denominam-se os direitos da primeira gera-
te lei de emenda à Constituição9 . ção os da liberdade. Foram os primeiros a consta-
A imutabilidade também é ressaltada por rem nas Constituições (direitos civis e políticos),
SARLET: correspondendo ao próprio constitucionalismo do
Talvez a inovação mais significativa tenha sido a do Ocidente. Têm por titular o indivíduo e são opo-
art. 5º, §1º, da CF, de acordo com o qual as normas
níveis ao Estado, traduzindo-se como faculdades
definidoras dos direitos e garantias fundamentais
possuem aplicabilidade imediata, excluindo, em ou atributos da pessoa. A subjetividade é seu tra-
princípio, o cunho programático destes preceitos, ço12 . Os mais característicos são os direitos de re-
conquanto não existia consenso a respeito do al- sistência ou de oposição perante o Estado.
cance deste dispositivo. De qualquer modo, ficou
No tocante aos direitos da segunda geração,
consagrado o status jurídico diferenciado e reforça-
do dos direitos fundamentais na Constituição vi- é importante ressaltar que emergiram no século
gente. Esta maior proteção outorgada aos direitos XX, no contexto de lutas e movimentos sociais
fundamentais manifesta-se, ainda, mediante a in- pela sua efetivação, tratando-se dos direitos so-
clusão destes no rol das ‘cláusulas pétreas’ (ou ‘ga-
ciais, culturais e econômicos, bem como dos di-
rantias de eternidade’) do art. 60, §4º, da CF, impe-
dindo a supressão e erosão dos preceitos relativos reitos coletivos ou de coletividades. Estão inse-
aos direitos fundamentais pela ação do poder Cons- ridos no constitucionalismo nas distintas formas
tituinte derivado10 . de Estado social que germinaram por obra da re-
A conhecida característica da universalida- flexão e das lutas sociais em prol da igualdade e
de desses direitos surge de sua vinculação essen- da politização das relações econômicas.
cial com a liberdade e com a dignidade humana Assim como os de primeira geração, foram
enquanto valores históricos e filosóficos11 . inicialmente objeto de uma formulação especu-
BONAVIDES classifica os direitos funda- lativa em esferas filosóficas e políticas de acen-
mentais numa perspectiva geracional, entenden- tuado cunho ideológico, pois proclamados por
do-os vinculados a uma concepção do Estado. Constituições derivadas de revoluções de cunho
Tendo em vista até mesmo a seqüência histórica socialista e também de regimes vinculados à So-
de sua gradativa institucionalização: liberdade, cial Democracia (Constituições do segundo pós-
igualdade e fraternidade. guerra).
Os direitos fundamentais propriamente di- Em virtude de sua natureza, que exige do
tos seriam na essência os direitos do homem li- Estado determinadas prestações materiais, pas-
vre e isolado, em face do Estado. Na acepção es- saram primeiro por um ciclo de baixa normativi-
trita são unicamente os direitos da liberdade, da dade ou tiveram eficácia duvidosa. De juridici-
pessoa particular, e correspondem ao conceito do dade questionada no início, foram eles remeti-
Estado Liberal. Trata-se de uma liberdade em dos à esfera programática13 .

9
Ob. Cit., p. 561.
10
Ob. Cit., p. 79.
11
BONAVIDES, Ob.Cit, p. 562.
12
BONAVIDES, Ob. Cit.
13
BONAVIDES, Ob. Cit.

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Os direitos fundamentais da segunda gera- SARLET refere-se a quatro dimensões dos


ção são tão justificáveis quanto os da primeira, direitos fundamentais, afirmando que esses,
sendo incabível recusar-lhes eficácia a partir da tendo tido sua trajetória existencial inaugurada com
o reconhecimento formal nas primeiras Constitui-
fácil argumentação embasada no caráter progra-
ções escritas dos clássicos direitos de matriz libe-
mático da norma. Em quase todos os sistemas ral-burguesa, se encontram em constante processo
jurídicos, prevalecia a noção de que apenas os de transformação, culminando com a recepção, nos
direitos de liberdade eram de aplicabilidade ime- catálogos constitucionais e na seara do Direito In-
ternacional, de múltiplas e diferenciadas posições
diata, ao passo que os direitos sociais tinham
jurídicas, cujo conteúdo é tão variável quanto as
aplicabilidade mediata. transformações ocorridas na realidade social, polí-
Os direitos sociais fizeram nascer a consci- tica, cultural e econômica ao longo dos tempos.
ência de que, tão importante quanto salvaguar- Assim sendo, a teoria dimensional dos direitos fun-
damentais não aponta, tão-somente, para o caráter
dar o indivíduo, era proteger certas instituições,
cumulativo do processo evolutivo e para a nature-
descobrindo-se um novo conteúdo dos direitos za complementar de todos os direitos fundamen-
fundamentais: as garantias institucionais. Em tais, mas afirma, para além disso, sua unidade e
função disso, determinadas instituições recebem indivisibilidade no contexto do direito constituci-
onal interno e, de modo especial, na esfera do mo-
uma proteção especial, sendo de sua essência a
derno “Direito Internacional dos Direitos Huma-
limitação e a destinação a determinados fins e nos”.14
tarefas. São garantias institucionais: as que cir- A critica à concepção tradicional das “gera-
cundam o funcionalismo público, o magistério, a ções” de direitos humanos, tem em vista o fato
autonomia municipal, as confissões religiosas, a de que as classificações tradicionais — baseadas
independência dos juízes, a exclusão de tribunais no critério da evolução histórica —, além de ge-
de exceção, etc. rarem confusões de cunho conceitual, pecam por
Os direitos de terceira geração, dotados de não zelar pela correspondência entre as assim
grande conteúdo humanista e universalidade, designadas gerações de direitos humanos e o pro-
cristalizaram-se no fim do século XX como di- cesso histórico de nascimento e desenvolvimen-
reitos que não se destinam especificamente à pro- to destes direitos. Poder-se-ia falar, então de di-
teção dos interesses de um indivíduo, de um gru- reitos liberais (civis e políticos) e direitos soci-
po ou do Estado, tendo como primeiro destinatá- ais, econômicos e culturais, adotando-se a termi-
rio o gênero humano. BONAVIDES aponta que nologia “direitos globais” para os de terceira ge-
Karel Vasak e outros já identificaram cinco direi- ração.
tos da fraternidade, ou seja, da terceira geração: o As diversas dimensões dos direitos funda-
direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o di- mentais revelam
reito ao meio ambiente, o direito de propriedade que o seu processo de reconhecimento é de cunho
sobre o patrimônio comum da humanidade e o essencialmente dinâmico e dialético, marcado por
avanços, retrocessos e contradições, ressaltando,
direito de comunicação.
dentre outros aspectos, a dimensão histórica e rela-
E há, ainda, os direitos fundamentais de tiva dos direitos fundamentais, que se desprende-
quarta geração, diretamente ligados à globaliza- ram — no mínimo, em grande parte — de sua con-
ção política, contrapostos à ideologia neoliberal cepção inicial de inspiração jusnaturalista. Além
disso, constata-se a pertinência da lição de Norber-
e que, verdadeiramente, interessam às sociedade
to Bobbio, ao sustentar, justamente com base nas
periféricas. São direitos da quarta geração: o di- transformações ocorridas na seara dos direitos fun-
reito à democracia, o direito à informação e o di- damentais e reveladas plasticamente pela teoria das
reito ao pluralismo. “gerações” de direitos, a ausência de um funda-

14
Ob. Cit., p. 55.

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Segurança pública e direitos fundamentais 25

mento absoluto dos direitos fundamentais. A refu- mentos reivindicatórios e o reconhecimento pro-
tação (no nosso sentir correta) de um fundamento gressivo de direitos, atribuindo ao Estado compor-
absoluto dos direitos fundamentais, não significa, tamento ativo na realização da justiça social 16 .
à evidência, nem a ausência de uma fundamenta- Tais direitos distinguem-se por sua dimen-
ção histórica, filosófica, sociologia, política, jurídi-
são positiva. Trata-se de propiciar um “direito de
co-positiva e até mesmo econômica dos direitos
fundamentais (assim como dos direitos humanos) participar do bem-estar social”.. Caracterizam-se
sem falar na relevância desta fundamentação para por outorgarem, ao indivíduo, direitos a presta-
efeitos da legitimação dos direitos fundamentais e ções sociais estatais, como assistência social, saú-
para a sua implementação concreta pelo Estado e
de, educação, trabalho. Demonstram uma transi-
pela sociedade, temática que, todavia, desborda dos
limites desta obra. Importante é, neste particular e ção das liberdades formais abstratas para as li-
neste contexto, a constatação de que os direitos fun- berdades materiais concretas.
damentais são, acima de tudo, fruto de reivindica- Foi no século XX, nas Constituições do se-
ções concretas, geradas por situações de injustiça
gundo pós-guerra, que estes direitos fundamen-
e/ou de agressão a bens fundamentais e elementa-
res do ser humano15. tais acabaram sendo consagrados em um número
Os direitos fundamentais, diz SARLET, sur- significativo de Constituições, sendo objeto de
gem em um Estado liberal-burguês do século diversos pactos internacionais.
XVIII, de marcado cunho individualista, afirman- Ressalta o constitucionalista que os direitos
do-se como direitos do indivíduo frente ao Esta- de segunda dimensão não englobam apenas di-
do, como direitos de defesa, demarcando uma zona reitos de cunho positivo, mas também as deno-
de não-intervenção e uma esfera de autonomia minadas “liberdades sociais”, como a liberdade
individual em face do poder daquele. São apre- de sindicalização, o direito de greve, o reconhe-
sentados como direitos de cunho “negativo”, pois cimento de direitos fundamentais aos trabalha-
dirigidos a uma abstenção e não a uma conduta dores17. Abrangem, assim, bem mais do que os
positiva por parte dos poderes públicos. São di- direitos de cunho prestacional, mesmo que o cu-
reitos de resistência ou de oposição perante o nho “positivo” possa ser o marco distintivo des-
Estado. É notória a inspiração jusnaturalista, par- ta nova fase na evolução dos direitos fundamen-
ticipando de seu catálogo os direitos à vida, à li- tais.
berdade, à propriedade e à igualdade perante a Os direitos de solidariedade e fraternidade,
lei. São, posteriormente, complementados por um ou seja, os da terceira dimensão apresentam, como
leque de liberdades (liberdade de expressão, im- nota distintiva, o fato de se desprenderem, em
prensa, manifestação, reunião, associação, etc.) e princípio, da figura do homem-indivíduo como
pelos direitos de participação política (voto e ca- seu titular. Diz que esses se destinam à proteção
pacidade eleitoral passiva). de grupos humanos (família, povo, nação) e ca-
Quanto aos direitos econômicos, sociais e racterizam-se como direitos de titularidade cole-
culturais da segunda dimensão, ressalta tiva ou difusa. “Têm por destinatário precípuo ‘o
que o impacto da industrialização e os graves pro- gênero humano mesmo, num momento expressi-
blemas sociais e econômicos que a acompanharam, vo de sua afirmação como valor supremo em ter-
as doutrinas socialistas e a constatação de que a
mos de existencialidade concreta.’”18 . Os mais
consagração formal de liberdade e igualdade não
gerava a garantia do seu efetivo gozo acabaram, já citados são o direito à paz, à autodeterminação
no decorrer do século XIX, gerando amplos movi- dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambi-

15
SARLET, Ob. Cit., p. 62.
16
Ob. Cit., p. 56.
17
São exemplos: o direito a férias e ao repouso semanal remunerado, a garantia de um salário mínimo, a limitação da jornada de trabalho, etc.
18
Ob. Cit., p. 58.

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ente e qualidade de vida, bem como o direito à Acerca dos direitos fundamentais da quarta
conservação e utilização do patrimônio histórico dimensão, diz haver uma tendência em reconhe-
e cultural e o direito de comunicação. Distin- cê-los. Ainda se aguarda, no entanto, sua consa-
guem-se, basicamente, por sua titularidade cole- gração na esfera do direito internacional e das
tiva, muitas vezes indefinida e indeterminável, ordens constitucionais internas. Ao menos par-
como é o caso do direito ao meio ambiente e qua- cial e embrionariamente, alguns destes direitos,
lidade de vida, o qual, mesmo tendo uma dimen- como os direitos à democracia, ao pluralismo e à
são individual, reclama novas técnicas de garan- informação, encontram-se consagrados na Cons-
tia e proteção. tituição Federal, de modo especial no preâmbulo
Existem dúvidas no tocante à atribuição da e no Título dos Princípios Fundamentais.
titularidade de direitos fundamentais ao próprio O aprofundamento do estudo faz surgir duas
Estado e à Nação (direito à autodeterminação, à inquietações distintas: (1) a não inclusão do termo
paz e ao desenvolvimento), especialmente quan- segurança pública, ou no mínimo “segurança pes-
to ao fato de serem essas reivindicadas como au- soal”, no catálogo de direitos fundamentais do art.
tênticos direitos fundamentais. Devem ser com- 5º da Constituição Federal e (2) o fenômeno, obser-
preendidos como tais, todavia, tendo em vista que vado em diversos países, de significativas restri-
os direitos da terceira dimensão são direitos de ções aos direitos fundamentais, propiciadas por
solidariedade ou fraternidade, de implicação uni- agentes do Estado em nome da segurança pública.
versal ou transindividual, existindo esforços e
responsabilidades em escala até mesmo mundial SEGURANÇA PÚBLICA COMO DIREITO FUN-
para sua efetivação19. DAMENTAL
No que tange à sua positivação, é preciso re- No tocante à primeira, salienta-se que a Con-
conhecer que, ressalvadas algumas exceções, a venção Americana de Direitos Humanos (PAC-
maior parte destes direitos fundamentais ainda TO DE SAN JOSÉ DE COSTA RICA) prevê em
não encontrou seu reconhecimento na seara do seu art. 7º o termo segurança pessoal:
direito constitucional, estando, por outro lado, Art. 7o - Direito à liberdade pessoal
1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à seguran-
em fase de consagração no âmbito do direito in-
ça pessoais. (...)
ternacional, destacando-se um grande número de
A Constituição Federal do Brasil dispõe acer-
tratados e outros documentos transnacionais re-
ca de segurança pública no Título V – DA DEFE-
lativos à matéria.
SA DO ESTADO E DAS INSTITUIÇÕES DEMO-
Segundo SARLET, costumam ser feitas refe-
CRÁTICAS. Dispõe o caput do artigo 144 da CF:
rências às garantias contra manipulações genéti- Art. 144. A segurança pública, dever do Estado,
cas, ao direito de morrer com dignidade, ao di- direito e responsabilidade de todos, é exercida para
reito à mudança de sexo, considerados por parte a preservação da ordem pública e da incolumidade
da doutrina também como direitos da terceira das pessoas e do patrimônio.
dimensão. Para alguns, contudo, já se cuida de A abordagem proposta sobre direitos funda-
direitos de uma quarta dimensão. Esses direitos, mentais acaba por remeter ao estudo acerca da
“em franco processo de reivindicação e desenvol- cláusula de abertura propiciada pelo §2º do art.
vimento”, correspondem, na verdade, a facetas 5º da CF, que permite afirmar que, mesmo sem
novas surgidas do princípio da dignidade da pes- estar expressamente prevista, a segurança públi-
soa humana. No mais das vezes, cuida-se da rei- ca ou pessoal pode ser considerada direito fun-
vindicação de novas liberdades fundamentais. damental.

19
SARLET, Ob.Cit.

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Segurança pública e direitos fundamentais 27

Dispõe o art. §2º do art. 5º da CF, da da expressão literal da norma e da sua locali-
§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Cons- zação no texto. Quanto aos direitos coletivos, tam-
tituição não excluem outros decorrentes do regime
bém são atingidos pela cláusula de abertura, pois
e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do há a menção genérica aos “direitos e garantias
Brasil seja parte. expressos nesta Constituição”.
É SARLET20 quem discorre sobre o signifi- Por outro lado, os direitos sociais foram aco-
cado e o alcance da cláusula de abertura e a con- lhidos expressamente como direitos fundamen-
cepção materialmente aberta dos direitos funda- tais na Constituição Federal de 88, mesmo que
mentais. Salienta que o rol do art. 5º é analítico, dispostos em outro capítulo. Na doutrina inter-
mas não tem cunho taxativo. Quanto à distinção nacional está pacificada a noção de que ambos os
entre direitos fundamentais em sentido formal e direitos estão revestidos pela fundamentalidade.
material, utiliza-se de H Hesse, que define os pri- Além disso, os direitos sociais previstos no art.
meiros “como aquelas posições jurídicas da pes- 6º da CF e os direitos sociais dos trabalhadores
soa - na sua dimensão individual coletiva ou so- (art. 7º da CF) são, também, apenas exemplifica-
cial – que por decisão expressa do Legislador– tivos23.
Constituinte foram consagradas no catálogo dos Constata-se que tanto segurança pessoal
direitos fundamentais” e os segundos como quanto segurança pública não fazem parte do ca-
“aqueles que, apesar de se encontrarem fora do tálogo do art. 5º da CF. Não é difícil, contudo, si-
catálogo, por seu conteúdo e por sua importân- tuar a segurança pessoal, elencada no Pacto de
cia, podem ser equiparados aos direitos formal- São José da Costa Rica, como direito individual
mente (e materialmente) fundamentais”21. Há, ou de primeira dimensão, recepcionado pela
então, segundo o autor, uma dupla nota de fun- Constituição brasileira por meio da cláusula de
damentalidade inerente aos direitos fundamen- abertura.
tais. Destaca que existe quem advogue pela con- A dificuldade diz respeito à segurança pú-
ceituação de uma terceira categoria – a dos direi- blica. Questiona-se se aquilo que se concebe como
tos apenas formalmente fundamentais. segurança pública enquadra-se como direito fun-
O constitucionalista afirma ser crucial a damental e, se positiva a resposta, em qual de suas
questão referente à dificuldade em identificar, no dimensões. Perquire-se se a hipótese seria de uma
texto constitucional ou fora dele, quais os direi- espécie de direito coletivo.
tos “que efetivamente reúnem as condições para Na verdade, quando se fala em segurança
poder ser considerados materialmente fundamen- pública e por ela se clama, se está a falar em polí-
tais”. tica de segurança pública, ou seja, de uma ação
As fontes dos direitos fundamentais, fora do por parte do Estado que garanta segurança pesso-
catálogo, podem estar em outras partes do texto al do indivíduo e que possa frear a violência des-
constitucional ou residir em outros textos legais mesurada.
nacionais ou internacionais22 . Para SOARES,
Não resta dúvida de que a abertura material Hoje, o medo da sociedade não é ilusório nem fru-
to de manipulação midiática. O quadro nacional de
abrange os direitos individuais, aqueles de cu-
insegurança é extraordinariamente grave, por dife-
nho negativo, dirigidos à proteção do indivíduo rentes razões, entre as quais devem ser sublinha-
contra intervenções de Estado, conclusão oriun- das as seguintes: (a) a magnitude das taxas de cri-

20
Ob. Cit., p.p. 92-98.
21
Ob. Cit., p. 95.
22
Ob. Cit., p. 96.
23
Ob. Cit., p.p.96-97.

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minalidade e a intensidade da violência envolvida; seu art. 144, e por constar, sob outra dimensão,
(b) a exclusão de setores significativos da socieda-
como segurança pessoal, no art. 7º da Convenção
de brasileira, que permanecem sem acesso aos be-
nefícios mais elementares proporcionados pelo Es- Americana de Direitos Humanos.
tado Democrático de Direito, como liberdade de
expressão e organização, e o direito trivial de ir e A CORROSÃO DOS DIREITOS FUNDAMEN-
vir. (c) a degradação institucional a que se tem vin-
TAIS EM NOME DA SEGURANÇA PÚBLICA
culado o crescimento da criminalidade: o crime se
organiza, isto é, penetra cada vez mais nas institui- No tocante ao outro aspecto, ou seja, à corro-
ções públicas, corrompendo-as, e as práticas poli- são crescente sofrida pelos direitos fundamen-
ciais continuam marcadas pelos estigmas de clas- tais em razão das políticas de segurança pública
se, cor e sexo.24
hodiernamente adotadas, baseadas no controle
O Estado tem o dever de propiciar seguran- punitivo, percebe-se que segurança pública, ao
ça aos cidadãos, contendo a violência e garantin- contrário do que se pensa, é tema muito mais li-
do a paz pública. Por essa razão, a segurança pú- gado às políticas públicas do que ao Direito, po-
blica, na atualidade, converteu-se em argumento dendo efetivar-se, tão-somente, por meio daque-
político e constitucional para a legitimação da las. Do mesmo modo que, dependendo da opção
força estatal25 . Para tanto, fortaleceu-se o aparato feita em termos de política pública, os direitos
penal com o objetivo de se obter o controle da fundamentais sofrerão maior ou menor golpe.
criminalidade. Essas questões são abordadas de modo es-
Avançando-se nos conceitos de Estado libe- clarecedor por Winfried Hassemer, no artigo “Se-
ral e Estado social, discute-se o de Estado-pre- gurança pública no estado de direito”, publicado
venção, no qual à sociedade geradora de riscos no Brasil em 199427 .
corresponde o Estado orientado à prevenção de Segundo o autor, tratar o tema segurança
tais riscos. Cabe-lhe, então, propiciar segurança pública por meio de uma política não-conserva-
ao futuro, identificar situações de risco, prever dora tem trazido muitos problemas. Um tratamen-
ameaças26 . to simplificado, do mesmo modo, tem apresenta-
Por tudo o que foi visto, tem-se que o direito do um cenário perigoso. A tendência é a aceita-
fundamental à segurança pessoal faz parte da pri- ção de posturas que defendem a exacerbação e a
meira dimensão dos direitos fundamentais, vin- ampliação dos meios de combate ao crime e re-
culado que está à integridade física, à liberdade duzem o complexo “violência e criminalidade” a
pessoal, etc. A segurança pública, por sua vez, duas questões: a possibilidade de investigação por
pode ser concebida como a dimensão pública da meio da “grande escuta” e a autorização legal para
segurança pessoal e, assim como a habitação, saú- que agentes policiais possam cometer crimes no
de, etc., necessita de um agir Estatal, estando si- meio onde tentam infiltrar-se. Temas, aliás, bas-
tuada, por isso, na segunda dimensão dos direi- tante atuais no Brasil (Lei do Agente Infiltrado –
tos fundamentais. Leis 9.034/95 e 10.217/01).
Por duas vias, o direito à segurança encon- Fala-se em criminalidade organizada de for-
traria guarida como direito fundamental, por es- ma incessante, entrando em cena um fenômeno
tar no corpo da Constituição, pois previsto em encoberto e ameaçador, pois não se sabe o que é e

24
Ob. Cit.
25
NETO, Theodomiro Dias. Segurança Urbana - O Modelo da Nova Prevenção. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p. 74.
26
“O Estado-prevenção é “a maneira como a estrutura política de adequa às características da sociedade que, de forma cada vez mais acelerada,
conduz a situações de risco: é a forma política que assume a sociedade de risco” (BARATTA, 1991a:45). Os procedimentos de decisão
política e legislativa tendem a se “reorganizar permanentemente como resposta a uma situação de emergência estrutural” (Ib.)”, NETO,
Ob. Cit., p. 31.
27
HASSEMER. Winfried. Segurança pública no estado de direito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 2, n. 5, 1994.

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Segurança pública e direitos fundamentais 29

quem o produz. Sabe-se, apenas, que “é altamen- Outro problema é o da criminalidade de


te explosivo, pensa-se até que pode devorar-nos massas, em relação a qual o Estado mostra-se
todos”28 . Em nome do combate a essa criminali- quase sempre incapaz de oferecer resultados efeti-
dade são feitas profundas incisões nas garantias vos por meio da repressão policial e da ameação
tradicionais do cidadão frete ao poder de polícia de punição. Ilícitos penais como arrombamentos,
e no âmbito do processo penal. assaltos nas ruas, furtos e roubos de automóveis,
Não se conseguiu ainda, no plano normati- não parecem ter o seu crescimento afetado pelas
vo, chegar a um consenso acerca do que ela con- políticas tradicionais de segurança pública.
siste. Sabe-se que possui como características: Nesse contexto, os problemas de segurança
ser um fenômeno cambiante (segue mais ou me- apresentados são reduzidos aos desejos de exacer-
nos as tendências dos mercados nacionais e in- bação e ampliação dos meios de combate ao crime.
ternacionais), apresentando dificuldade de ser Equivocadamente a repressão torna-se a única sa-
isolada; compreende uma gama de infrações pe- ída vislumbrada pelo coro da opinião pública, pro-
nais sem vítimas imediatas ou com vítimas di- duzida e amplificada pela mídia de massas. Cri-
fusas (tráfico de drogas, corrupção, etc.), não minalidade e combate ao crime são tradicionalmen-
sendo levada ao conhecimento da autoridade te temas políticos conservadores e se adequam
pelo particular; quando existem vítimas, essas privilegiadamente a estratégias populistas.
são intimidadas a não levar o fato ao conheci- O tema da criminalidade e seu combate cons-
mento da autoridade e a não prestar declarações; tituem um sutil regulador de sentimentos de
possui tradicionais solos férteis em bases naci- ameaça na população, sentimentos poderosos e
onais, não tendo êxito em outros locais (máfia); enraizados, que podem ser prontamente ativados,
dispõe de múltiplos meios de disfarce e de si- sobretudo, quando dois fatores convergem na
mulação29 . percepção pública: a ameaça é difusa e intensa; e
A participação de bandos bem organizados a impotência do Estado em controlar a criminali-
ou a atividade criminosa em base habitual e pro- dade é notória.
fissional não parecem critérios suficientemente C.O. (criminalidade organizada) é um produtor de
medo de alta efetividade, os índices de criminali-
claros, pois tais características são conhecidas
dade aumentam e os de sua elucidação caem. A
desde que se passou a conviver com a criminali- invocação de Direitos e Liberdades fundamentais
dade moderna. O certo é que, no mínimo, os mei- no combate ao crime afigura-se nesse contexto ana-
os cogitados para o seu controle são de altíssimo crônico, ingênuo e teimoso, ao passo que o voca-
bulário conservador adaptou-se prazerosamente à
calibre e subvertem as estruturas fundamentais
discussão pública em tais circunstâncias. 31
do poder de polícia.
No tocante à origem, potencial de ameaça e
Faz-se necessário um conceito útil de crimi-
possibilidades de combate, Hassemer coloca que,
nalidade organizada, no qual seja isolado um po-
na verdade, a população encontra-se amedronta-
tencial de ameaça qualitativamente novo, bem
da e agredida por uma forma de criminalidade
como seja encontrado um núcleo objetivo e pal-
que nada tem a ver com a criminalidade organi-
pável. Uma conceituação que permita uma abor-
zada, mas com a criminalidade de massas. “Quem
dagem conseqüente e eficaz nos planos crimino-
mistura ambas dificulta uma Política criminal
lógico e da política de segurança pública30 .
racional”32 .

28
Ob. Cit, p. 56.
29
Ob. Cit, p. 59-60.
30
Para Hassemer, “somente quando seja possível influenciar criminosamente a definição, a elucidação ou o julgamento de violações penais
é que a estrutura criminosa ter-se-á estabilizado.” Ob. Cit., p.59.
31
Ob. Cit, p. 56.
32
Ob. Cit, p. 57.

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30 Azevedo, R. G.; Basso, M.

Importante salientar que essa não é uma po- a expectativa de neutralização de superpoderes
sição unânime entre os pesquisadores, e varia sociais em questões centrais da vida cotidiana com
também de acordo com o contexto social. A an- os instrumentos do Direito, pois é eliminada a
tropóloga Alba Zaluar, por exemplo, coloca a cri- chance de que os mais fracos, os seguidores da lei,
minalidade organizada em um lugar bem mais possam afirmar-se com o auxílio deste.
central para a compreensão do crescimento da As iniciativas policiais, todavia, não atingem
insegurança, especificamente no contexto do Rio a criminalidade de rua. Os remédios deveriam
de Janeiro, por ela investigado33 : ser de outra natureza: prevenção técnica, policia-
O argumento que desenvolvi ao longo de 15 anos mento ostensivo, chances de sobrevivência aos
de pesquisas coloca a existência do crime organiza- jovens, inovações na política de drogas, etc. É
do relacionado ao tráfico de drogas no centro desse
incabível compensar a falta de resultados com o
furacão. Furtos e roubos são hoje internacionalmente
vinculados à necessidade de pagar ao traficante, no aumento da intensidade da ameaça e, em situa-
caso de usuários, ou de adquirir o capital para ções particularmente ameaçadoras, desferir-se
manter o negócio das drogas, no caso de trafican- golpes a esmo.
tes, que usam o poder militar para controlar seu
Quando se aborda o fenômeno da criminali-
exército de colaboradores e clientes. Ora, mesmo
que os crimes registrados não estejam diretamente dade de massas em sede de política criminal, a
relacionados à droga, isto não quer dizer que a pre- importância da criminalidade organizada é rela-
sença desse novo poder nos países capitalistas não tivizada e o debate se aproxima das necessidades
esteja se exercendo até no plano do imaginário,
cotidianas dos seres humanos de liberdade e se-
como um modelo, um mapa simbólico. No plano
mundial, o crime organizado, que tem estruturas gurança. O atual debate sobre política criminal,
complexas e movimenta um grande volume de di- contudo, dá a impressão de que a solução do pro-
nheiro, não pode mais ser desconsiderado como blema está em transferir para as autoridades de
uma força importante, ao lado dos Estados nacio-
segurança pública todos os meios que sempre
nais, igrejas, partidos políticos, empresas multina-
cionais etc. Em certos países, como a Itália, o crime reivindicaram, para que possam tomar conta da
organizado chegou mesmo a ser mais importante criminalidade organizada.
que o Estado nacional, a Igreja e os partidos. No Isso é falso e enganoso, pois nos últimos anos
Brasil, com o Sistema de Justiça ainda voltado para
essas mesmas autoridades têm sido equipadas,
os crimes individuais e desaparelhado para inves-
tigar os meandros e grupos mais importantes do em diversos países, com uma gama de poderosos
crime organizado, não temos idéia do impacto que instrumentos legais coercitivos, envolvendo a
ele hoje tem nas instituições e na sociedade.34 utilização de agentes infiltrados, delação premi-
Para Hassemer, é a crimnalidade de massas, ada, observação policial prolongada, escuta tele-
cuja real persecução tende a zero, da qual a popu- fônica ampliada, proteção de testemunhas, cap-
lação é vítima real ou possível, que tem efeitos fí- tação e armazenamento de dados pessoais em lar-
sicos, econômicos, mas, sobretudo, emocionais e ga escala, etc.35
atinge o senso normativo. É daí que vem a sensa- O rumo da discussão deveria ser dirigido no
ção de desproteção e debilidade diante das amea- sentido de exigir das autoridades públicas escla-
ças e perigos desconhecidos que nos leva a duvi- recimento sobre o êxito obtido com os instrumen-
dar do Direito. É instaurada uma dúvida que abala tos legais de que dispõem, e com base nesses da-

33
Segundo Renato Sérgio de Lima, por exemplo, que estudou os homicídios cometidos no Município de São Paulo no ano de 1998, a maioria
dos delitos, diferentemente do Rio de Janeiro, resultou de conflitos interpessoais e não tinha relação com o tráfico de drogas e a
criminalidade organizada. LIMA, Renato Sérgio de. Conflitos Sociais e Criminalidade Urbana: Uma análise dos Homicídios Cometidos no
Município de São Paulo. São Paulo: Sicurezza, 2002.
34
ZALUAR, Alba. Exclusão e políticas públicas: dilemas teóricos e alternativas políticas. São Paulo: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.12
n.35, fev. 1997.
35
Muitos desses métodos de investigação estendem-se a terceiros não-partícipes, Ob. Cit., p. 61.

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Segurança pública e direitos fundamentais 31

dos e experiências concretas monitoradas e ava- todo caso, ser guarnecidas com instrumentos que
liadas poder-se-ia discutir mais racionalmente permitam seu controle”. 37
sobre a aptidão desses instrumentos. Do ponto de vista normativo, deve ser resga-
Esse acompanhamento faz-se absolutamen- tado o valor dos Direitos Humanos, que surgi-
te necessário. na medida em que o direito pro- ram no campo da segurança pública como resis-
cessual penal não é outra coisa que não direito tência aos abusos do Estado e não como barreiras
constitucional aplicado, e as faculdades coerciti- a um sensato trabalho policial. O núcleo dos di-
vas mencionadas só podem ser distribuídas se reitos fundamentais, assim, deve voltar a ser con-
esclarecido para que servem e qual o seu alcance. siderado indisponível.
Do contrário, alguns princípios fundamentais do Para assegurar os direitos fundamentais sem
Estado de Direito são sacrificados, com grandes inviabilizar a atividade investigatória, HASSE-
conseqüências para o cidadão, e resultados in- MER aponta possibilidades já conhecidas, agru-
significantes para a redução da criminalidade. padas segundo duas metas: a da concentração e
Segundo o penalista alemão, mesmo os setores do controle.
mais liberais e progressistas da opinião pública Conforme o princípio da concentração da
têm tomado esses meios coercitivos como irre- intervenção, quanto mais precisa a coerção em
cusáveis para o combate à criminalidade organi- relação ao seu alvo, mais ela se torna tolerável, já
zada, sendo esse mais um sintoma da fragilidade que produz menos estragos normativos. Caracte-
argumentativa de uma política de segurança não rizam esse princípio a vinculação da medida co-
atentatória aos direitos fundamentais. ercitiva à presença de indícios e, no campo da
Quando uma ameaça parece muito intensa, proteção de dados, a vinculação ao fim para o qual
nada mais se mantém imune e intocável. No en- os dados foram coletados38 .
tanto, “Uma cultura jurídica se constrói na esta- O controle diz respeito, por exemplo, à com-
bilidade daqueles princípios que nós reputamos petência jurisdicional para autorizar certas ações
indiscutíveis e indisponíveis, como patrimônio ou na tutela jurisdicional contra sua efetivação.
da civilização, também em momentos de crise”36 . A regra seria: quanto menos uma restrição aos
A população, atenta e de boa-fé, tem a expec- direitos fundamentais for controlável pelo atin-
tativa de que a farta distribuição dos poderes in- gido e pela coletividade, mais inaceitável ela será
vestigatórios resolverá os problemas da crimina- do ponto de vista normativo.
lidade e da violência. Trata-se de uma fraude. Por fim, é infundada a suposição de que os
Política de segurança pública não equivale a po- meios de coerção ampliados irão atingir apenas o
lítica policial, mas compreende também política criminoso, como se houvesse uma linha demarca-
criminal, na qual estão inseridas as garantias pe- tória que separasse os bons cidadãos dos “outros”.
nais e constitucionais. Se acaso existisse o essa figura mitológica e onto-
No curto prazo, “devemos aceitar que a polí- lógica do “criminoso, ladrão, bandido, traficante”
tica de segurança pública compreende não ape- (qualquer um desses estigmas), a investigação não
nas a eficácia como também a justiça e proteção seria necessária. Quando se investiga se está a li-
dos Direitos Humanos. Restrições aos Direitos dar, quando muito, com um suspeito39 .
fundamentais devem ser pesadas cautelosamen- As considerações e inquietações comparti-
te, devem ser aplicadas concentradamente e, em lhadas neste trabalho, que de forma alguma pre-

36
Ob. Cit., p. 63.
37
Ob. Cit., p. 68.
38
Princípio da Vinculação ao Fim.
39
“...porque na Europa princípio da inocência continua valendo”. Ob. Cit, p. 68.

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32 Azevedo, R. G.; Basso, M.

tendem, e não poderiam, esgotar a matéria ou for- outro lado, alertam para a crescente flexibiliza-
necer respostas conclusivas acerca do tema, apon- ção dos direitos fundamentais em razão de polí-
tam ser possível conceber a segurança pública ticas de segurança pública, o que acaba por colo-
como um direito fundamental de segunda dimen- car em risco o próprio Estado Democrático de
são, assim entendido como a dimensão pública Direito em nome do qual elas são implementa-
da segurança pessoal, ambas internalizadas via a das.
cláusula de abertura do §2º do art. 5º da CF. Por

BIBLIOGRAFIA
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. NETO, Theodomiro Dias. Segurança Urbana - O Mode-
São Paulo: Malheiros Editores, 2005, lo da Nova Prevenção. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005,
D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e Crimes Omis- p. 74.
sivos Próprios (Contributo à Compreensão do Crime SARLET, Ingo Wolfang. A eficácia dos direitos funda-
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bra; Coimbra Ed., 2005. SOARES. Luiz Eduardo. Novas Políticas de Segurança
HASSEMER, Winfried. Segurança Pública no Estado Pública. ESTUDOS AVANÇADOS 17 (47), 2003. Dis-
de Direito. São Paulo: Revista Brasileira de Ciências Cri- ponível na Internet em 02/3/2007.
minais, Vol. 2, n° 5, 1994. ZALUAR, Alba. Exclusão e políticas públicas: dilemas
LIMA, Renato Sérgio de. Conflitos Sociais e Criminali- teóricos e alternativas políticas. São Paulo: Revista Bra-
dade Urbana: Uma análise dos Homicídios Cometidos sileira de Ciências Sociais, v.12, n.35, fev. 1997.
no Município de São Paulo. São Paulo: Sicurezza, 2002.

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