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D I R E I T O C O N ST IT UC IO N AL

José Ricardo Alvarez Vianna

O JUDICIÁRIO E A EFETIVIDADE
DOS DIREITOS HUMANOS
61
THE JUDICIARY AND THE EFFECTIVENESS OF HUMAN RIGHTS
José Ricardo Alvarez Vianna

RESUMO ABSTRACT
Analisa a relação entre direitos humanos, Justiça e Judiciário, The author assesses the relationship among human rights,
destacando a estreita afinidade entre direitos humanos e digni- justice and the Judiciary, highlighting the close affinity
dade da pessoa humana. between human rights and human dignity.
Discorre sobre o acesso à Justiça, independência judicial e efeti- He discusses the access to justice, judicial independence
vidade da atuação jurisdicional, que constituem pressupostos à and effectiveness of the adjudication, which constitute some
consolidação dos direitos humanos no mundo dos fatos. prerequisites for the consolidation of human rights in the
world of facts.
PALAVRAS-CHAVE
Direito Constitucional; direitos humanos; efetividade; Poder Ju- KEYWORDS
diciário; dignidade; pessoa humana; Justiça – acesso. Constitutional Law; human rights; effectiveness; Judiciary
branch; dignity; human person; Justice – access to.

Revista CEJ, Brasília, Ano XXII, n. 74, p. 61-71, jan./abr. 2018


José Ricardo Alvarez Vianna

1 INTRODUÇÃO para os direitos à vida, à liberdade e à igualdade.


Direitos humanos é tema corrente na sociedade. A partir dos séculos XIX e XX, o foco passou a incluir os chama-
Diuturnamente, a mídia veicula notícias que denunciam inúme- dos “direitos sociais”, de que são exemplos a assistência à saúde,
ras formas de sua violação mundo afora. Se, por um lado, há o sistema previdenciário, o acesso à educação, o respeito ao tra-
quem fique impactado diante do que vê; por outro, há aqueles balhador, dentre outros. Visto desta forma, a Declaração Universal
que se manifestam até contrários aos direitos humanos, espe- dos Direitos Humanos de 1948, impulsionada pela hecatombe da
cialmente em assuntos afetos à segurança pública. II Guerra Mundial, consistiu, em verdade, no ponto culminante de
Isto põe em evidência ao menos dois aspectos. Primeiro, um anseio antigo e que tinha em mira a universalização de certos
os direitos humanos ainda têm um longo caminho a percor- direitos considerados elementares a todo ser humano.
rer para, de fato, saírem das declarações, tratados e convenções A premissa básica desses direitos consistiu em dois pontos basi-
internacionais e produzirem efeitos significativos no dia a dia. lares: a) proporcionar ao ser humano condições para o pleno exer-
Segundo, subsistem dúvidas, até no âmbito jurídico, a respeito cício de suas potencialidades; b) ser amparado em suas limitações.
do significado e alcance da expressão direitos humanos, o que Trata-se de um ideal ousado e, para alguns, até utópico. Isto
afeta sua efetividade. fica mais claro quando se analisa a história da humanidade, mar-
Fiado nisso, tem-se, como objetivo geral, esclarecer o que se cada por valores diversos, os quais culminaram em múltiplos con-
deve entender por direitos humanos, bem como apontar suas flitos, repletos de atos de barbárie perpetrados pelo ser humano
características principais. Este parece ser o primeiro passo para em detrimento de seus próprios semelhantes. Diante disso, para
sua adequada aplicação pelo Judiciário. se saber se os direitos humanos são, ou não, alcançáveis na vida
social, convém indagar: o mundo é justo? A vida é justa?
Sinteticamente, a ideia explícita nos direitos Conforme as respostas dadas a tais questões, será possível
humanos não ignora a natureza das coisas. aquilatar se o ideal proposto pelos direitos humanos é algo pal-
pável ou ilusório. Se vale mesmo a pena aspirar por um mundo
Apenas busca implementar o que de melhor
justo ou se a humanidade está inevitavelmente fadada ao cami-
existe na natureza do ser humano e, com isso, nho da força bruta em suas relações interpessoais.
proporcionar uma vida digna a todos. Pois bem. Acredita-se que essas respostas podem ser encon-
tradas em uma espécie de diálogo, mantido entre o casal Milton
Como objetivo específico pretende-se salientar os pressu- e Rose Friedman com John Rawls. Para os Friedman (1979, p.
62 postos necessários para o Judiciário desempenhar a contento 137), a vida é injusta. Segundo eles, não é justo, por exemplo,
suas atribuições, de modo a converter para a realidade da vida Muhammad Ali ter nascido com o talento para ser um excelente
os direitos humanos. boxeador e ganhar milhões de dólares em uma só noite de luta,
No âmbito da problematização podem ser formuladas as ao passo que um trabalhador não qualificado jamais ganhará
seguintes questões: qual a relação entre direitos humanos, equivalente soma ao longo de toda sua vida. Contudo, para os
Justiça e dignidade da pessoa humana? Quais os pressupostos Friedman seria mais injusto limitar os ganhos de pessoas talen-
à efetivação dos direitos humanos pelo Judiciário? Quais são os tosas, equiparando-os a pessoas menos qualificadas em nome
pontos positivos e negativos no cenário jurídico nacional à con- de uma pretensa igualdade, principalmente porque a própria
cretização dos direitos humanos no plano judicial? sociedade se beneficia dessa situação de injustiça ao contemplar
Para elaboração do artigo foi realizada pesquisa bibliográ- e valorizar esses talentos.
fica, nacional e estrangeira; foram consultados documentos in- Rawls (1999, p. 87) discorda dos Friedman. No seu dizer:
ternacionais, disposições constitucionais e infraconstitucionais, [...] nós podemos rejeitar o argumento de que as instituições
além de julgados afetos à matéria. Por fim, a articulação do ra- sejam sempre defeituosas porque a distribuição dos talentos
ciocínio pautou-se, basicamente, pelo método dedutivo. natos e as contingências das circunstâncias sociais são injustas,
e esta injustiça deve inevitavelmente ser transferida para as or-
2 DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA E JUDICIÁRIO ganizações humanas. Ocasionalmente, essa reflexão é ofereci-
Ao se fazer menção aos direitos humanos, invariavelmente da como desculpa para se ignorar a injustiça, como se a recusa
vem à mente a Declaração Universal, firmada em 10/12/1948, em concordar com a injustiça fosse o mesmo que a incapaci-
pela Organização das Nações Unidas (ONU). Todavia, a bus- dade de aceitar a morte. A distribuição natural não é nem justa
ca pelo reconhecimento e sistematização de direitos do ser hu- nem injusta; nem é injusto que as pessoas nasçam em alguma
mano é bem mais antiga, conforme se infere de uma série de posição particular na sociedade. Esses simplesmente são fatos
documentos editados ao longo da História. É o caso da Magna naturais. O que é justo e injusto é a maneira como as institui-
Charta Libertatum (1215), da Petition of Rights (1628) e do Bill ções lidam com esses fatos.
of Rights (1689), todos editados na Inglaterra. É o caso, também, Com efeito, é exatamente neste ponto que se inserem os
da Declaração de Virgínia e da Declaração de Independência direitos humanos. Tais direitos estão no plano das instituições e
nos Estados Unidos (1776), como da Declaração dos Direitos têm por objetivo o respeito e a primazia do ser humano. Com
do Homem e do Cidadão na França (1789). base nisso, manifestam-se sob o formato de uma cabeça de
Esses documentos, além de assinalarem forte oposição a re- Janus, voltada, a um só tempo, para a moral e para o direito
gimes absolutistas e à dominação da Coroa, foram consolidando (HABERMAS, 2011, p. 149), num entrelaçamento contínuo foca-
aos poucos os chamados “direitos individuais”, com destaque do na dignidade humana e na justiça. Isto se dá porque, como a

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experiência mostrou, sobretudo durante há como se falar em gozo de direitos so- Em consonância com referido dis-
a II Guerra Mundial, não basta a existên- ciais, econômicos e culturais se não hou- positivo, a Constituição Federal, em seu
cia de regras jurídicas frias e opacas, pois ver fruição de direitos civis e políticos.2 art. 1º, inc. III, ressalta que a República
estas podem assumir dimensões nefas- Assim situada a matéria, é legítimo Federativa do Brasil, além de se consti-
tas se não trouxerem, em seu âmago, va- concluir que a efetividade dos direitos tuir em Estado Democrático de Direito,
lores éticos universais. Sendo assim, so- humanos depende, e em grande me- tem como fundamentos, dentre outros,
mente com o amálgama entre direito e dida, da atuação do Poder Judiciário.3 a dignidade da pessoa humana.
moral é que se pode alcançar uma socie- Afinal, ao Judiciário compete converter Neste contexto, não há como negar o
dade genuinamente justa. em norma concreta o direito até então alto calibre jurídico do princípio da digni-
Sinteticamente, a ideia explícita nos em estado abstrato. Não bastasse isso, o dade humana na atual quadra da civiliza-
direitos humanos não ignora a natureza Judiciário contemporâneo assume papel ção. Nada obstante, isto não autoriza dizer
das coisas. Apenas busca implementar o proativo, não ativista. Atua como corres- que todos os problemas estão soluciona-
que de melhor existe na natureza do ser ponsável pelos assuntos relevantes da dos. Muito ao contrário. O conceito de dig-
humano e, com isso, proporcionar uma nação; preocupado com a vida social e nidade humana é aberto, dotado de certa
vida digna a todos. com a realização do bem comum, postu- porosidade e até ambiguidade (ROCHA,
Para que isso ocorra, porém, é neces- ra esta indispensável à corporificação do 1999, p. 25), além de suscetível a concep-
sário agir. Como diz Celso Lafer (1991, p. Estado Social e Democrático de Direito, ções polissêmicas que podem variar con-
22), apoiado em Hannah Arendt: a igual- na qual, inequivocamente, estão inseri- forme o referencial axiológico, ideológico
dade em dignidade e direitos dos seres dos os direitos humanos, os quais englo- ou cultural adotado, o que pode condu-
humanos não é um dado. É um cons- bam em si a ideia de Justiça. zir à insegurança jurídica e até dificultar a
truído da convivência coletiva. Nestes termos, não há como negar consumação dos direitos humanos.
Nessa mesma diretriz está o art. 1º, a inter-relação entre direitos humanos, Para confirmar o que se pretende
inc. I, da Constituição Federal, ao esta- Justiça e Poder Judiciário. Os três se col- dizer, pode ser lembrada decisão do
belecer que constituem objetivos fun- matam. Sem um Judiciário que, enquan- Supremo Tribunal Federal (STF), profe-
damentais da República Federativa do to instituição estatal, garanta e assegure rida em Habeas Corpus Cível, na qual
Brasil construir uma sociedade livre, jus- direitos, os direitos humanos perdem vi- se debateu sobre a constitucionalida-
ta e solidária. Uma sociedade livre, jus- gor e podem ser reduzidos a vãs promes- de de ordem judicial que determinara
ta e solidária, portanto, não é algo pron- sas, tornando o ideal neles cristalizados, condução coercitiva de suposto pai à 63
to e acabado. Deve ser construída dia a mesmo que previsto e reafirmado em realização de exame de DNA em ação
dia, quer pela sociedade civil organizada, documentos internacionais ou em leis in- de investigação de paternidade. Na
quer pelas instituições oficiais. ternas4, mera utopia. ocasião, alguns ministros concederam
Em sede de direitos humanos, esta
construção está fundada em dois pilares: [...] dignidade da pessoa humana não é um conceito
contratualismo e jusnaturalismo (TROPER, fechado. E nem deve ser. A ideia de dignidade deve
2017, p. 17). O primeiro parte do consen-
traduzir o anseio de cada sujeito por uma vida material,
so e adesão das mais diversas nações em
realizá-los. O segundo acena para a con- moral e intelectual consoante parâmetros civilizatórios
cepção universal, eterna e imutável da na- cunhados pelos direitos humanos [...]
tureza e condição humanas tendo como
meta a dignidade do ser humano. Em suma, a inter-relação entre a ordem por entenderem que a con-
Disso resultam duas características Justiça, direitos humanos e Judiciário dução do paciente feria sua dignida-
cruciais dos direitos humanos, e essen- é patente. A realizabilidade da Justiça de. Outros, em contrapartida, negaram
ciais à sua efetivação: universalidade e e dos direitos humanos depende, em a ordem por entenderem que a exis-
indivisibilidade (PIOVESAN, 2014, p. 103; larga escala, de uma atuação firme do tência de registro de nascimento, des-
RAMOS, 2016, p. 222-230). Poder Judiciário. provido do nome paterno, é que ofen-
A universalidade anuncia que qual- dia a dignidade humana (BRASIL, STF,
quer ser humano, independente da etnia, 3 DIREITOS HUMANOS E DIGNIDADE DA HC 71.373-4). Ou seja, a dignidade da
sexo, orientação sexual, idade, profissão, PESSOA HUMANA pessoa humana fora empregada como
origem social, religião, idioma ou país em Os direitos humanos guardam estrei- fundamento para soluções jurídicas
que estiver, será titular de direitos huma- ta afinidade com a dignidade humana. antagônicas num mesmo caso.
nos. Expressa, como se pode ver, um atri- Tanto é assim que o art. 1º da Declaração Infelizmente, a decisão do STF apon-
buto intrínseco a todo ser humano.1 Universal dos Direitos Humanos preconi- tada não é um caso isolado quando se
Já a indivisibilidade estabelece que za: Todos os seres humanos nascem li- fala em dignidade humana. Muitas ve-
não há hierarquia entre os direitos hu- vres e iguais em dignidade e em direi- zes, descriminalização do aborto, euta-
manos. Infringido um, infringidos esta- tos. Dotados de razão e de consciência, násia, ortotanásia e até criminalização da
rão todos. Isto significa que os direitos devem agir uns para com os outros em prostituição5 são defendidas ou negadas,
humanos estão interligados. Por isto, não espírito de fraternidade. com veemência, com base na dignidade

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da pessoa humana. À vista disso, se a meta é concretizar direitos ver em plenitude e sob a égide da paz.
humanos, é indispensável delimitar os contornos substanciais Como decorrência disso, a ideia inserta no conceito de dig-
que caracterizam o conceito de dignidade humana. A ideia que nidade humana acaba por exercer importante papel de vetor
a constitui deve ser clara em toda sua extensão e conteúdo. Do interpretativo a informar e viabilizar os direitos humanos, além
contrário, poderá continuar a acomodar soluções jurídicas dís- de obstar sua violação.6 Até porque – reitere-se – não há direitos
pares, tornando-se fonte de instabilidade jurídica. humanos se não houver dignidade humana.
Nestas condições e imbuído de um propósito esclarece- Em arremate, a efetivação dos direitos humanos está con-
dor, averbe-se que a dignidade humana pode ser concebida dicionada à dignidade do ser humano, quer em sua dimensão
sob duas dimensões: ontológica e comunitária (SARLET, 2007, ontológica, quer comunitária.
p. 366). A dimensão ontológica (intrínseca ao ser) encontra raí-
zes na formulação de Immanuel Kant, na obra Fundamentação 4 PROTEÇÃO JUDICIAL DOS DIREITOS HUMANOS
Metafísica dos Costumes (1785). Segundo o filósofo de Em 1966, a Assembleia-Geral das Nações Unidas edi-
Königsberg (2004, p. 77): No reino dos fins, tudo tem ou um tou dois pactos internacionais: o Pacto Internacional so-
preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, bre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre
pode-se por em vez dela qualquer outra como equivalente; Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. A intenção era pro-
mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto mover o respeito universal e efetivo dos direitos e das liber-
não permite equivalente, então tem ela dignidade. dades da pessoa. A expressão “Pacto” denota o intento de
Para Kant, o ser humano jamais pode ser considerado ins- estabelecer conteúdo vinculativo às nações quanto a seu
trumento, objeto ou coisa para atingimento de um fim que o conteúdo, e não meramente facultativo, como sugeria a ex-
distancie de si próprio. Isto é assim porque o ser humano é pressão “Declaração”, empregada em 1948.
um fim em si mesmo. É único, insubstituível, dotado de racio- No Brasil, tais pactos foram ratificados pelo Decreto Legislativo
nalidade e senciência. É um ser que pensa e sente. Um ser que n. 226, de 12 de dezembro de 1991, e promulgados pelo Decreto
tem anseios, desejos, esperanças e sonhos; frustrações e do- Legislativo n. 592, de 6 de dezembro de 1992, de tal sorte que
res, físicas e emocionais; medos, reais ou fictícios. E mais: tem sua observância passou a ser imperativa em território nacional.
consciência de tudo isso, de maneira que não pode ser tratado A existência de dois Pactos se deu porque, na época, a
como uma res; não pode ser reificado; aviltado em sua dignida- Guerra Fria estava em seu auge. O bloco ocidental defen-
de (SANDEL, 2009, p. 107). dia a edição somente das liberdades individuais, enquan-
64 to o bloco socialista, acompanhado dos países africanos,
A conciliação consiste em meio alternativo defendia a implementação conjunta de direitos sociais e
de solução de conflitos e pode ter enorme econômicos. Como solução conciliatória foram editados
dois pactos (COMPARATO, 2015, p. 293). Isso, entretanto,
impacto na prestação jurisdicional, seja pela não afasta a indivisibilidade dos direitos humanos, a qual
celeridade processual que proporciona na restou reafirmada pela Declaração e Programa de Ação de
eliminação da lide em que é alcançada, seja Viena sobre Direitos Humanos de 1993, que, em seu art.
5º, previu: Todos os Direitos Humanos são universais, indi-
pela redução global do número de visíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comuni-
processos que pode acarretar [...] dade internacional deve considerar os Direitos Humanos,
globalmente, de forma justa e equitativa, no mesmo pé e
A dimensão comunitária, por sua vez, enfatiza o aspecto in- com igual ênfase.
tersubjetivo do ser humano, tomando como suporte os valores A par dessas observações, cabe destacar que, da leitura con-
vigentes na comunidade internacional. Sob tal perspectiva, há junta dos Pactos de 1966, estão inseridos três eixos que guardam
de prevalecer o recíproco respeito entre os indivíduos em suas relação direta com a efetividade dos direitos humanos no âmbito
relações. Deve haver o reconhecimento e a proteção da ordem do Poder Judiciário. São eles: a) acesso à Justiça; b) independência
jurídica não só na esfera individual (ontológica), mas também judicial; c) prestação jurisdicional efetiva (PIOVESAN, 2014, p. 104).
social (relacional), impedindo abusos e desvios éticos (SARLET, A seguir, serão examinados cada um desses eixos, seja para
2007, p. 369). Em uma palavra: colima-se a humanização das proporcionar uma visão acurada sobre o tema, seja para contex-
relações sociais; a promoção do bem-estar individual e coletivo. tualizá-los com a realidade brasileira.7
Como se percebe, dignidade da pessoa humana não é um
conceito fechado. E nem deve ser. A ideia de dignidade deve 4.1 ACESSO À JUSTIÇA
traduzir o anseio de cada sujeito por uma vida material, mo- O acesso à Justiça é pressuposto à efetivação dos direitos
ral e intelectual consoante parâmetros civilizatórios cunhados humanos. Sem instrumentos que assegurem ao sujeito ultraja-
pelos direitos humanos, caso das liberdades (de consciência, do em seus direitos a possibilidade de vê-los respeitados, estes
de expressão, de locomoção) e da igualdade, notadamente em serão reduzidos a mero juízo de conveniência e oportunidade
sua vertente substancial; da vedação a qualquer forma de dis- do agente infrator. É o acesso à Justiça que confere vez e voz ao
criminação, de tratamento degradante, de trabalho de escravo, titular desses direitos para exigir seu cumprimento.
de tortura ou prisão injusta. Deve proporcionar um lugar seguro Não por acaso, o art. 14 do Pacto Internacional dos Direitos
para que o indivíduo possa nascer, crescer, viver e se desenvol- Civis e Políticos (1966) firmou: Toda pessoa terá o direito de ser

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ouvida publicamente e com as devidas No que tange à informatização, em cessos do Judiciário em 2016. Além disso,
garantias por um Tribunal competente. 2016, 29,9% dos processos foram iniciados o primeiro grau tem o maior quantitativo
Acentue-se que a expressão “acesso no formato físico, o que demonstra que o de novos casos, de carga de trabalho e de
à Justiça” tem sentido amplo, não se res- processo eletrônico não é uma realidade produtividade por magistrado e servidor da
tringindo ao ingresso em juízo. Abrange homogênea no Brasil (CNJ, 2017, p. 76). área judiciária, justificando por isso maior
não só o direito de afirmar uma lesão ou Este último dado ganha vulto quando atenção e investimentos em nome do aces-
ameaça a direito perante os órgãos judi- se tem presente que o processo eletrô- so à Justiça (CNJ, 2017, p. 88).
ciais, como o de produzir provas que re- nico abrevia o tempo de tramitação dos Por derradeiro, é imperioso maior
pute adequadas, de deduzir teses e ar- processos em geral. Basta lembrar que, foco em relação aos meios alternativos
gumentos que deverão ser levados em no sistema digital, as intimações de des- de resolução de conflitos – conciliação e
conta na decisão judicial e de obter pro- pachos e decisões são imediatas, o que, mediação – por parte de toda a socieda-
vimento jurisdicional em tempo razoável além de acelerar consideravelmente o trâ- de, diante dos efeitos diretos e indiretos
e dotado de efetividade quanto à pre- mite processual, ainda dispensam a pre- que desencadeiam em toda a prestação
tensão formulada em juízo (MARINONI, paração e o envio de listas a serem pu- jurisdicional e, reflexamente, no acesso
2010, p. 225). blicadas em Diários da Justiça, reduzindo à Justiça. Não basta tão só inserir na lei
Após a Constituição de 1988 hou- atendimentos em balcões de secretarias a previsão de audiências de conciliação.
ve crescimento expressivo do número de judiciais, fatores que, no mínimo, per- Urge a mudança de paradigmas. A cul-
demandas judiciais. Segundo dados do mitem a reorganização e otimização dos tura da litigiosidade deve ser suplantada
Justiça em Números 2017, ano-base 2016, serviços judiciários em benefício do juris- em nome do aprimoramento do sistema
organizado pelo Conselho Nacional de dicionado. O investimento na informatiza- judiciário, dado seu impacto direto na
Justiça (CNJ)8, tramitam no Judiciário brasi- ção a cargo dos tribunais é inadiável. efetividade dos direitos humanos.
leiro em torno de 79,7 milhões de proces-
sos judiciais, lembrando que, só em 2016, [...] sem independência, o Judiciário tende a se tornar figura
ingressaram 29,4 milhões de novos pro- decorativa de somenos importância num Estado que afirma
cessos. Isso demonstra que, a cada grupo
a prevalência dos direitos humanos, mas que, na prática,
de 100.000 habitantes, 12.907 ingressaram
em juízo em 2016, o que é sintomático oculta um distanciamento abissal entre os valores
(CNJ, 2017, p. 65-69). salvaguardados por tais direitos e o quotidiano social. 65
Embora os números impressionem,
não se pode olvidar que muito ain- Outro dado que comporta registro O acesso à Justiça é o canal que liga
da há de ser feito para que o acesso à diz respeito ao baixo nível de concilia- os membros da sociedade à consecução
Justiça seja uma realidade em seu sen- ção, mesmo após a vigência do Código dos direitos humanos, razão pela qual
tido substancial. Diz-se isso porque as de Processo Civil de 2015. No primeiro deve estar em contínuo aprimoramen-
taxas de congestionamento9, o Índice de grau, o índice foi de 13,6% dos proces- to; deve ser ininterruptamente pensado
Atendimento à Demanda (IAD)10 e o ní- sos em andamento. No segundo grau, a e repensado; construído e reconstruído,
vel de informatização11 do Judiciário na- conciliação é quase inexistente; apenas a fim de que a efetividade de tais direitos
cional estão aquém do esperado. 0,4% (CNJ, 2017, p. 124). seja transportada do anseio à realidade.
Em 2016, a taxa de congestiona- A conciliação consiste em meio alter-
mento do Poder Judiciário manteve-se nativo de solução de conflitos e pode ter 4.2 INDEPENDÊNCIA JUDICIAL
em níveis elevados, ou seja, superior enorme impacto na prestação jurisdicio- É conhecida a frase ainda há juízes
a 70%. O mesmo se deu com o IAD. nal, seja pela celeridade processual que em Berlim.12 O enunciado sintetiza a
Mesmo com a alta produtividade ju- proporciona na eliminação da lide em confiança que a sociedade deve ter no
dicial (100,3%), o estoque global de que é alcançada, seja pela redução glo- Judiciário. Confiança no sentido de que,
processos cresceu em 2,7 milhões. Isso bal do número de processos que pode se necessário, terá suas causas processa-
ocorreu porque nem todos os proces- acarretar, desobstruindo a prestação ju- das e julgadas de maneira sensata, com
sos julgados recebem baixa definitiva risdicional dos demais casos que perma- segurança, destemor, presteza e justiça,
nos assentos estatais, ante os múltiplos necem em andamento. independentemente de quem esteja no
desdobramentos que cada caso pode Ancorado nessa radiografia do Judiciário outro lado da relação jurídica processual.13
assumir. Assim, apesar de julgados, vá- nacional, o que se verifica é um demasiado É nesta métrica que a independên-
rios processos permanecem tramitan- empenho dos magistrados e servidores em cia do Judiciário tem sido objeto de
do dadas certas peculiaridades (CNJ, suas atribuições funcionais, dada a alta pro- atenção das Nações Unidas. Antes mes-
2017, p. 65-76), o que indica a neces- dutividade detectada (100,3%). Contudo, mo de constar do art. 14 do Pacto de
sidade de reformas processuais pontu- ainda é visível a falta de investimentos es- Direitos Civis e Políticos (1966), já ha-
ais para evitar que isto continue ocor- truturais no Judiciário, especialmente no pri- via sido prevista expressamente no art.
rendo. De nada adianta empenho ou meiro grau. Saliente-se que só o primeiro 10 da Declaração Universal dos Direitos
força de trabalho se a legislação não grau foi responsável por 86% dos processos Humanos, com a seguinte redação: Toda
colabora para a solução final dos casos. ingressados e por 94% do acervo de pro- pessoa tem direito, em plena igualdade,

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a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal in- dade dos direitos humanos parece ser a pedra de toque dos
dependente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres Pactos Internacionais de 1966.
ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. Neste particular, cabe destacar que, logo no preâmbulo de
Disposições equivalentes constam do art. 6º, n. 1, da ambos os Pactos, adotou-se idêntico enunciado voltado à efe-
Convenção Europeia de Direitos Humanos e Liberdades tividade de tais direitos, observe-se: Considerando que a Carta
Fundamentais; do art. 8º, n. 1, da Convenção Interamericana de das Nações Unidas impõe aos Estados a obrigação de promo-
Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), e do art. ver o respeito universal e efetivo dos direitos e das liberdades
26º da Carta Africana sobre os Direitos Humanos e dos Povos da pessoa humana (grifo nosso).
(Carta de Banjul), o que reafirma a relevância de um Poder Ao longo dos dispositivos dos Pactos, tanto o art. 2º, § 1º,
Judiciário independente. do Pacto de Direitos Civis e Políticos, como o art. 2º, § 2º, do
Imparcialidade e independência, conquanto não se con- Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais também tri-
fundam, complementam-se na atuação judicial. A imparciali- lharam por comandos praticamente idênticos, afirmando que
dade visa à isenção de ânimos e neutralidade de interesses do os Estados-partes que figuram nesses Pactos comprometiam-se
juiz para com o objeto da lide. Justifica a exigência do juiz na- a garantir a todos os direitos neles reconhecidos, sem discri-
tural (CF, art. 5º, incs. XXXVII e LIII), impedindo a instalação de minação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, origem
tribunais de exceção ou a designação de magistrados post fac- nacional ou social, situação econômica, opinião política ou de
tum e ad hoc. Justifica, além do mais, hipóteses legais de im- qualquer outra natureza.
pedimentos e suspeições, previstas nos Códigos de Processo Em que pese a preocupação em tornar efetivo e garantir
Civil e Penal, relativas ao magistrado. direitos humanos, antes de avançar, é de bom alvitre tecer con-
Já a independência tem conotação institucional. Outorga siderações acerca da função jurisdicional contemporânea, a fim
ao magistrado uma espécie de blindagem legítima e necessária de que a efetividade almejada não seja frustrada por via oblí-
para não se ver suscetível a desafrontas. Objetiva impedir que o qua. O propósito é evidenciar como se dá o exercício da função
juiz seja alvo de retaliações ou perseguições em decorrência de jurisdicional no Estado Democrático de Direito, uma vez que
sua atuação jurisdicional. isto repercutirá na efetivação dos direitos humanos.
A independência do juiz não se limita aos sujeitos do pro- Num sentido tradicional, costuma-se dizer que ao juiz com-
cesso. Projeta-se, igualmente, em relação aos demais poderes pete julgar as causas que lhe são apresentadas. Isto é, decidir,
do Estado, ao poder econômico, à mídia e até perante even- dizer o direito (juris dicere), de modo a eliminar o conflito pre-
66 tuais clamores da opinião pública, que, sob brados de Justiça, sente no processo judicial que lhe foi submetido à análise. Ao
podem albergar sentimentos velados de vindicta em rota de juiz cumpre elucidar quem tem e quem não tem razão na lide.
colisão com os direitos humanos. Quem tem e quem não tem direito.
Essa visão, de certo modo, remonta ao pensamento de
[...] porque não faz sentido o Brasil agir de um Montesquieu, segundo o qual o juiz, representando um po-
modo no plano internacional e, de outro, no der nulo e invisível, não passava de mera boca da lei (la bou-
che de la loi) e sua atividade se resumia à aplicação literal de
nacional. De nada adianta ratificar tratados dispositivos legais. Por este prisma, a atividade judicial é técni-
internacionais, figurando como defensor dos ca e autômata, sem compromisso com a Justiça. Justiça, para
direitos humanos perante outras nações, Montesquieu, seria alcançada no simples aplicar a lei.15
Todavia, atualmente, a função judicial não se circunscreve a
e não tomar medidas compatíveis com esta essa postura apática. A própria interpretação jurídica está condi-
imagem em nível domiciliar. cionada a uma conduta ativa do magistrado, uma vez que este
não extrai da lei seu exato alcance e real significado, e sim atribui-
Ademais, convém enfatizar que os direitos humanos, em -se significado aos textos normativos, mediante a conjugação de
muitos casos, apresentam-se com uma essência contramajo- métodos hermenêuticos situados no contexto fático subjacente.
ritária (RAMOS, 2016, p. 182), sobretudo, quando tutelam gru- No que concerne aos direitos humanos esta concepção assu-
pos sociais em situação de inferioridade numérica na sociedade. me outras proporções. O juiz tem o dever não só de garantir e
Consequentemente, sem um Judiciário independente, minorias assegurar tais direitos, como de implementá-los. Ao juiz compete
étnicas, religiosas, culturais ou de gênero não terão forças diante determinar o cumprimento das diretrizes constitucionais, e não re-
de grupos majoritários.14 duzi-las a letra morta ou deixá-las na seara de promessas vazias.16
Em arremate, sem independência, o Judiciário tende a se Isto não quer dizer que o juiz seja um justiceiro, movido por
tornar figura decorativa de somenos importância num Estado seus valores pessoais de Justiça. O juiz não está autorizado a in-
que afirma a prevalência dos direitos humanos, mas que, na ventar o Direito, tampouco representa o voluntas da lei. O juiz,
prática, oculta um distanciamento abissal entre os valores salva- como o próprio nome expressa, deve atuar como juiz. Ou seja,
guardados por tais direitos e o quotidiano social. agente do Estado a quem compete ser não apenas a boca da
lei, e sim um órgão corporificador de direitos, notadamente de
4.3 PRESTAÇÃO JURISDICIONAL EFETIVA direitos fundamentais e dos preceitos éticos contidos nos direi-
Sem embargo do que foi afirmado quanto ao acesso à tos humanos. Ao magistrado incumbe comutar normas gerais e
Justiça e independência judicial, a preocupação com a efetivi- abstratas em normas individuais e concretas. Plasmar na realida-

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de da vida disposições e diretivas jurídi- firmou a prevalência dos direitos huma- vistos na Constituição, como têm aplica-
cas, dentre as quais aquelas que versam nos, como considerou esta como um ção imediata.
sobre direitos humanos. princípio, o que resulta em uma série de Mais: ampliado o campo de visão de
Nesse compasso, qualquer forma de consequências. Uma delas está na rela- aludidos dispositivos até o art. 4º, inc. II,
transgressão ou negligência aos direitos tivização espontânea da soberania por da CF, chega-se à conclusão de que os
humanos deve ser veementemente repe- parte Estado brasileiro no tocante aos di- direitos humanos devem ser interpreta-
lida pelo Poder Judiciário. É o que susten- reitos humanos (PIOVESAN, 2010, p. 40). dos com prevalência, o que, indubitavel-
tam Víctor Abramovich e Christian Courtis Por conseguinte, o Brasil não está autori- mente, concorre para sua concreção.
(2004, p. 251): Quando as normas cons- zado a contrariar a política internacional Em adição ao que foi dito, recorde-
titucionais ou legais fixarem pautas para sobre direitos humanos, devendo agir -se que, no âmbito constitucional, impe-
o desenho das políticas públicas e os para seu pleno cumprimento.17 Não é só. ram princípios próprios de interpretação,
poderes respectivos não tenham adota- A leitura ciosa do dispositivo consti- caso dos princípios da unidade, da con-
do nenhuma medida, caberá ao Poder tucional mencionado projeta, igualmen- cordância prática, da força normativa da
Judiciário afastar esta omissão determi- te, efeitos no plano interno, e não só nas constituição, da eficácia integradora e da
nando que se tomem as medidas cabí- relações internacionais como, a princípio, máxima efetividade (BARROSO, 2010, p.
veis. Esta dimensão da atuação judicial poderia sugerir. Sim, porque não faz sen- 300-306; COELHO, 2003, p. 130-141), o
pode ser conceituada como a participa- tido o Brasil agir de um modo no plano que reforça a tônica de consolidação dos
ção em um “diálogo” entre os diferentes internacional e, de outro, no nacional. De direitos humanos.
poderes do Estado para a concretização nada adianta ratificar tratados internacio- Isso posto, pode-se afirmar que a
do programa jurídico-político estabeleci- nais, figurando como defensor dos di- Constituição Federal fornece matéria-pri-
do pela Constituição ou pelos pactos de reitos humanos perante outras nações, ma suficiente para que direitos humanos
Direitos Humanos. e não tomar medidas compatíveis com tenham trânsito nas relações diuturnas,
Em síntese, o juiz deve atuar como esta imagem em nível domiciliar. A ideia não se justificando a subutilização des-
agente concretizador de direitos. Esta de prevalência dos direitos humanos, em se aparato jurídico por parte de todos os
empreitada há de ser exercida em con- nome da coerência do Estado, deve ocor- profissionais do Direito no exercício de
sonância com as pautas éticas delimita- rer tanto externa, como internamente. suas atribuições.
das nos direitos humanos. O órgão judi- Daí advém outro efeito: se existe o
cial deve, então, orientar sua atuação em primado dos direitos humanos externa 6 PONTOS NEGATIVOS À EFETIVIDADE 67
sintonia com declarações, tratados, con- e internamente, a interpretação judicial DOS DIREITOS HUMANOS
venções ou pactos que alojam, direta ou destinada à solução dos conflitos que lhe Se, de certo modo, existe tanto no
indiretamente, direitos humanos, o que são submetidos deve estar focada no res- cenário internacional, como nacional,
encontra respaldo na Constituição, como peito e na concretização dos direitos hu- elevada gama de disposições que reco-
será visto adiante. manos. A não ser assim, pode até haver nhecem e apregoam efusivamente os di-
Entretanto, para que essa atuação ju- responsabilização internacional do país, reitos humanos; na prática, sua aplicação
risdicional possa ocorrer sem entraves é caso fique apurada a violação de tais di- muitas vezes tem se situado no abstrato
preciso escrutinar os pontos que podem reitos na prestação jurisdicional (RAMOS, terreno das aspirações.
ser considerados positivos, assim como 2016, p. 267, 338). O desrespeito aos direitos humanos
os negativos a respeito. A ideia desse es- Outros dispositivos que contribuem torna-se evidente quando se percebe, até
crutínio visa potencializar os fatores po- para a efetividade dos direitos huma- hoje, a existência de tráfico internacional
sitivos e corrigir os negativos, inclusive nos são os §§ 1º e 2º do art. 5º da CF. de pessoas, de trabalho escravo, de tra-
desfazendo equívocos que têm sido pro- Para isto ficar mais claro, inverte-se aqui balho infantil, de pedofilia ou de tortu-
nunciados nessa esfera. a ordem dos parágrafos. Veja, então, o ra. Ou quando se depara com episódios
É o que será feito a seguir. que diz o § 2º do art. 5º: os direitos e de violência doméstica e/ou de discrimi-
garantias expressos nesta Constituição nações motivadas por orientação sexual,
5 PONTOS POSITIVOS À EFETIVIDADE DOS não excluem outros decorrentes do re- gênero, etnia, idade ou crença religiosa.
DIREITOS HUMANOS gime e dos princípios por ela adotados, Esse quadro remete ao alerta proferido
Dentre os pontos positivos à efeti- ou dos tratados internacionais em que a por Norberto Bobbio (1992, p. 25) ainda
vidade dos direitos humanos, em solo República Federativa do Brasil seja par- nos anos 1990, a saber: [...] o problema
brasileiro, pode ser sublinhado o trata- te. Veja, agora, o teor do § 1º do mesmo que temos diante de nós não é filosófico,
mento reservado à temática pela própria artigo: as normas definidoras dos direi- mas jurídico e, num sentido mais amplo,
Constituição Federal (CF). Inicialmente, tos e garantias fundamentais têm apli- político. Não se trata de saber quais e
está seu art. 4º, inc. II, que tem a seguinte cação imediata. quantos são esses direitos, qual é sua
dicção: A República Federativa do Brasil Em conformidade com os métodos natureza e seu fundamento, se são direi-
rege-se nas suas relações internacionais sistemático e finalístico de interpretação tos naturais ou históricos, absolutos ou
pelos seguintes princípios: [...] II – preva- jurídica, os direitos humanos não só de- relativos, mas sim qual é o modo mais
lência dos direitos humanos. vem receber status jurídico equivalente seguro para garanti-los, para impedir
Note-se que a Carta Magna não só aos direitos e garantias individuais pre- que, apesar das solenes declarações,

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eles sejam continuamente violados. ça heterovinculativa própria de Declaração Universal sobre a


Neste contexto, não faz sentido a existência formal de direi- Constituição, gozando aquela, por isso, de uma valor jurídico
tos humanos se os genuínos destinatários desses direitos não o supraconstitucional.
usufruem como deveriam. Nestas condições, e reiterando que Por este enfoque, os direitos humanos, entendidos como
os direitos humanos não são um dado, mas um construído standards das nações contemporâneas, devem ser considera-
(LAFER, 1991), é forçoso pensar estrategicamente para reverter dos como fonte, como ponto de partida de qualquer ordem
a abulia contemporânea e eliminar barreiras que têm impedido jurídica nacional, na medida em que expressam a consciência
a materialização desses direitos. Para tanto – insista-se –, é es- ética universal que orienta a marcha da civilização. Esta é a úni-
sencial identificar esses supostos obstáculos e, simultaneamen- ca forma de atender ao imperativo constitucional, conferindo
te, buscar possíveis soluções. às normas relativas aos direitos humanos o grau de prevalência
Assim, a exemplo do que foi feito com os pontos positivos, que devem ostentar perante as demais normas internas, inclusi-
passa-se ao exame de certos aspectos que têm prejudicado a ve em relação às normas constitucionais.
efetividade dos direitos humanos. São eles: b) Necessidade de formação humanística consistente en-
a) Postura apática dos tribunais em relação ao princípio da tre os profissionais do Direito. Com efeito, o Direito tem por
prevalência dos direitos humanos. No julgamento do Recurso objetivo proporcionar a vida social harmônica. Desta forma, não
Extraordinário n. 466.343, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao se deve esquecer que atrás da frieza dos autos dos processos
decidir sobre a prisão do depositário infiel à luz do Pacto San judiciais existem pessoas clamando pelo respeito a seus direi-
José da Costa Rica, concluiu pela supralegalidade dos tratados tos e sedentas de Justiça, de maneira que o exercício das pro-
internacionais.18 fissões jurídicas exige mais do que mera técnica. O profissional
Não obstante o julgamento do STF seja aplaudido por re- do Direito deve conhecer a natureza humana, até para saber
nomados juristas, caso de Flávia Piovesan (2014, p. 110), crê-se quais são as fronteiras e os limites do próprio Direito. Deve po-
que se trata de uma interpretação ainda bastante tímida na área. der diferenciar o que é factível daquilo que não é. Foi com base
Conforme ressaltado, a Constituição Federal previu a prevalên- nisto que Miguel Reale (2016, p. 61) anotou: devemos conhe-
cia dos direitos humanos (CF, art. 4º, II), o que produz reflexos cer perfeitamente o homem, a natureza humana para, depois,
nos planos internacional e nacional, bem como na intepretação conhecer o Direito.
e aplicação do Direito a cargo do Judiciário. Em consequência, Uma genuína formação humanística, longe de ser fonte de
o mais adequado seria reconhecer, como está escrito no tex- regozijo pessoal e desfile de erudição frívola, tem o condão de
68 to constitucional, a prevalência dos direitos humanos. Isto é, ampliar as visões de mundo do sujeito e, com isso, conhecer
seu caráter supraconstitucional. É o que defende Fábio Konder melhor o modo de ser das pessoas, seus conflitos existenciais,
Comparato (2015, p. 74): Assinale-se, aliás, a tendência cres- a maneira como agem em sociedade, suas contradições, imper-
cente na atualidade no sentido de se considerar que as normas feições, assim como suas habilidades e inventividades.
internacionais de direitos humanos, pelo fato de exprimirem de Não há como dizer que a técnica não seja importante para
certa forma a consciência ética universal, estão acima do orde- o Direito. Porém, é insuficiente. A técnica, por si só, não per-
namento jurídico de cada Estado. mite ler aquilo que está escrito nas entrelinhas do ser humano
e que, em geral, é fundamental para restabelecer o equilíbrio
O profissional do Direito deve conhecer a abalado em determinada relação jurídico-social. A este respeito,
natureza humana, até para saber quais são vale transcrever as palavras de Albert Einstein (1981, p. 16): Não
basta ensinar ao homem uma especialidade. Porque se torna-
as fronteiras e os limites do próprio Direito.
rá assim uma máquina utilizável, mas não uma personalida-
Deve poder diferenciar o que é de. É necessário que adquira um sentimento, um senso prático
factível daquilo que não é. daquilo que vale a pena ser empreendido, daquilo que é belo,
do que é moralmente correto. A não ser assim, ele se asseme-
Em países da Europa, há equivalente interpretação como lhará, com seus conhecimentos profissionais, mais a um cão
deixa claro o constitucionalista português Paulo Otero (2010, ensinado do que a uma criatura harmoniosamente desenvolvi-
p. 125-126): As soluções internas em matéria de direitos hu- da. Deve aprender a compreender as motivações dos homens,
manos não podem contrariar os parâmetros de garantia dos suas quimeras e suas angústias para determinar com exatidão
direitos humanos fixados pelo Direito internacional geral ou seu lugar exato em relação a seus próximos e à comunidade.
comum: a Declaração Universal dos Direitos do Homem, as- Por conta disso, além da formação técnica dos profissionais
sumindo a natureza de um repositório de normas ius cogens, jurídicos, é imprescindível uma formação humanística que fo-
goza de uma imperatividade própria e autônoma que vincu- mente a empatia; que lhe propicie reconhecer no próximo um
la todos os Estados, independentemente de sua vontade ou semelhante; que faça ver no outro, violentado em seus direitos
contra sua vontade. [...] Ora, isso mesmo resulta inequívoco elementares de ser humano, um espelho, o qual apenas, cir-
do artigo 16º, n. 2, da Constituição portuguesa que, determi- cunstancial e contingencialmente, ocupa em certo momento o
nando dever fazer-se a interpretação e a integração das nor- outro lado da relação jurídica processual.
mas constitucionais (e legais) sobre direitos fundamentais e Em suma, é preciso a existência de uma formação que esti-
em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do mule a compaixão tal como aventada por Schopenhauer19. Isso,
Homem, revela o mero reconhecimento constitucional da for- por certo, terá impacto na consolidação dos direitos humanos,

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haja vista que, na compaixão, reside a es- cional, a impossibilidade de antever, no peito à dignidade humana de que todo
sência desses direitos. tempo e no espaço, todos os possíveis ser humano é titular.
c) Baixa densidade normativa dos di- conflitos advindos de divergências axioló- Dignidade humana e direitos huma-
reitos humanos. Tem-se afirmado que os gicas, aliado às inevitáveis mutações so- nos são duas faces da mesma moeda.
direitos humanos são constituídos de vo- ciais, impõe a existência de enunciados Completam-se e expressam o sentimen-
cábulos genéricos e imprecisos, fator que abertos, os quais têm o propósito de re- to de Justiça, tomando por referenciais
compromete a sua efetividade. fletir, com letras maiúsculas, valores uni- preceitos éticos universais consagra-
A crítica não procede. O que existe é versais predominantes no cenário mun- dos ao longo do tempo na comunidade
um equívoco sobre o tema e justamen- dial e franquear, na medida do possível, internacional.
te neste equívoco está o ponto negativo soluções jurídicas que conjuguem tais va- A efetividade dos direitos humanos
à sua efetividade. Com o devido respeito, lores sem romper com a estrutura consti- e, por consequência, da dignidade hu-
quem vislumbra essa suposta baixa densi- tutiva desses elementos. mana e da Justiça, é tarefa de toda a so-
dade normativa não compreendeu a siste- Essa abertura semântica, portanto, ciedade civil organizada, mas, principal-
mática própria da matéria. Os direitos hu- não inviabiliza a atuação jurisdicional em mente, das instituições públicas, dentre
manos não devem ser assimilados como relação à efetividade dos direitos huma- as quais se sobressai o Judiciário. O juiz
um direito legislado. Os direitos humanos nos. Pelo contrário. Ao juiz, no exercício atual não é mais a boca da lei de outro-
expressam pautas éticas, tábuas axiológi- de seu mister constitucional, cumpre ra, e sim a boca do Direito e da Justiça.
cas, pretensões de cunho moral a servir apreender a essência desses imperativos O Judiciário desempenha o papel social
de inspiração às nações contemporâne- éticos universais e convertê-los em rea- de agente mantenedor, vigia e concreti-
as a materialização de um cenário que lidade no caso em pauta, mediante as zador do Estado Democrático de Direito,
agregue Justiça e dignidade humana. São conjugações que se fizerem inevitáveis, fundado na prevalência dos direitos hu-
convocações aos países que compõem as sem para isto ter de recorrer a um mo- manos (CF, art. 4º, inc. II) e na dignidade
nações unidas a empregarem políticas pú- delo rígido, o qual pode conduzir exata- da pessoa humana (CF, art. 1º, inc. III).
blicas, editarem leis, reformularem grades mente à negação desses imperativos. Por Nesta senda, para dar cabo de
curriculares educacionais, solucionarem isso o juiz trabalha com diretivas, as quais seu mister constitucional, cumpre ao
seus conflitos judiciais apoiados em deter- abrigam tais imperativos, de modo que, Judiciário atentar para os pontos positi-
minados padrões considerados universais. dadas as peculiaridades do caso, possa vos à efetividade dos direitos humanos
Sob esta configuração, os direitos o órgão judicial descortinar a solução ju- presentes na Constituição Federal, (arts. 69
humanos não têm o conteúdo vinculan- rídica que materialize esses imperativos 4º, inc. II, e 5º, §§ 1º e 2º), bem como
te de uma lei nacional, inclusive perante na espécie. corrigir seus pontos de obstrução, caso
a autoridade judiciária. A despeito disso, Trata-se de uma maleabilidade es- da tímida interpretação dos tribunais no
têm sua importância e um conteúdo co- sencial à funcionalidade sistêmica. O que alude ao princípio da prevalência
gente, razão pela qual não podem ser ig- que não quer dizer que possa ser obje- dos direitos humanos e da necessidade
norados. Seu valor – insista-se – está em to de desvios, hospedando soluções ad de uma formação humanística sólida em
servir de guia, de mapa, de sinalizador hoc, fundadas em preferências pessoais seus quadros. Cumpre-lhe, por fim, não
coeso a indicar o caminho para alcançar do magistrado. Para que isto não ocor- incorrer em equívocos como o que afir-
soluções ético-jurídicas quando estive- ra lembre-se, por relevante, que se um ma a baixa densidade normativa dos di-
rem em debate assuntos que lhe são cor- preceito ético desta envergadura sinaliza reitos humanos, com reflexos negativos à
relatos (SEN, 2011, p. 401). Nisto habita para um, dentre quatro caminhos possí- sua efetividade.
sua força jurídica. veis, três destes caminhos estarão neces- O equívoco dessa asserção advém
E nem poderia ser diferente. Dada a sariamente excluídos como solução deci- do fato de não se atentar ao fato de que
finalidade abrangente dos direitos huma- sória. É neste ponto que está o conteúdo os direitos humanos não se apresentam
nos, não haveria como se adotar a téc- vinculante e limitador desses preceitos como direito legislado interno, cujas nor-
nica imputacional, restritiva e casuística, éticos, sem incorrer em miopia ou auto- mas seriam reguladas no estilo antece-
própria das regras jurídicas, sintetizada maticidade em sua aplicação. dente-consequente. São preceitos éticos
na fórmula: P → Q (dado P deve ser Q), Visto sob este ângulo, o ponto nega- universais, atuando como bússolas para
segundo a qual: ocorrido o antecedente tivo para alguns é, a bem ver, a solução o magistrado inscrever, no mundo dos
deve ser o consequente. para difusão, conciliação e concretização fatos, o arrojado ideal de uma vida digna,
Aliás, em questões similares, dos valores universais formatados nos di- justa e solidária, fundado na dignidade
Aristóteles (1973, p. 250) já advertia: reitos humanos, do qual o juiz não pode da pessoa humana.
Nossa clareza será adequada se tiver se apartar.
tanta clareza quanto comporta o assun-
to, pois não se deve exigir a precisão em 7 CONCLUSÃO NOTAS
todos os raciocínios por igual. A efetividade dos direitos humanos é 1 Nessa linha, Fábio Konder Comparato (2015,
p. 13): ... todos os seres humanos, apesar das
Em sede de direitos humanos, a uma luta. No entanto, mais do que uma inúmeras diferenças biológicas e culturais que
advertência se encaixa com perfeição. luta por direitos, é uma luta por respeito. os distinguem entre si, merecem igual respei-
O multiculturalismo no cenário interna- Respeito à condição de ser humano; res- to, como únicos entes no mundo capazes de

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amar, descobrir a verdade e criar a beleza. É dar vazão ao volume de casos que ingressam o exercício do poder não pode se limitar à
o reconhecimento universal de que, em razão em juízo. perspectiva dos governantes, mas deve incor-
dessa radical igualdade, ninguém – nenhum 11 O nível de informatização é calculado a partir porar a perspectiva da cidadania.
indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo do número de novos casos que ingressam em 18 O julgamento ensejou a edição da Súmula
religioso ou nação – pode afirmar-se superior juízo pelo sistema de processo eletrônico. Vinculante 25 do STF, que tem o seguinte
aos demais. 12 A frase consta do conto O Moleiro de Sans- teor: É ilícita a prisão civil do depositário infiel,
2 É o que consta do item 13 da Proclamação Souci, de François Guillaume Jean Stanislaus qualquer que seja a modalidade de depósito.
de Teerã (1968): Como os direitos humanos e Andrieux (1759-1833), e se refere à passagem 19 Consoante Schopenhauer (2001, p. 135-136):
as liberdades fundamentais são indivisíveis, a em que um aldeão, após o falecimento de seu ... minha ação só deve acontecer por cau-
realização dos direitos civis e políticos sem o pai, opõe-se a Frederico II, O Grande, rei da sa de outro, então o seu bem-estar e o seu
gozo dos direitos econômicos, sociais e cultu- Prússia, quando este pretendia tomar-lhe a mal-estar têm de ser imediatamente o meu
rais resulta impossível. propriedade. Em rigor, a frase original é um motivo, do mesmo modo que em todas as
3 Consigne-se que efetividade não se confun- pouco diferente. No conto, o homem que en- outras ações o meu motivo é o meu bem-es-
de com eficácia. Eficácia consiste na aptidão frentou o rei teria dito: como se não houvesse tar e o meu mal-estar. [...] Isto, porém, pres-
de a norma jurídica produzir efeitos. Guarda juízes em Berlim. supõe necessariamente que eu sofra com o
relação com sua exigibilidade, executorieda- 13 Mesmo no Brasil, não é de hoje que a inde- seu mal-estar, sinta seu mal como se fora o
de, aplicabilidade. Efetividade, por seu turno, pendência da magistratura tem sido objeto de meu e, por isso, queira seu bem como se fora
designa sua realização, a concretização da nor- preocupação. José Antônio Pimenta Bueno, em o meu próprio. Isto exige porém que eu me
ma no mundo real. Implica o cumprimento da 1857 (p. 332), alertava: A independência do identifique com ele, quer dizer, que aquela
norma (BARROSO, 2003, p. 80-87). magistrado deve ser uma verdade, não só de diferença total entre mim e o outro, sobre o
4 A propósito, veja o que dispõem os arts. 6º e direito como de facto; é a mais firme liberdade qual repousa meu egoísmo, seja suprimida
8º do Código de Processo Civil de 2015. dos direitos e liberdades, tanto civis como po- pelo menos em certo grau. [...] O processo
Art. 6º – Todos os sujeitos do processo devem líticos do cidadão; é o princípio tutellar que es- aqui analisado não é sonhado ou apanhado
cooperar entre si para que se obtenha, em tem- tabelece e anima a consciência dos povos na no ar, mas algo bem real e de nenhum modo
po razoável, decisão de mérito justa e efetiva. recta administração da justiça. É preciso que raro: é o fenômeno diário da compaixão,
Art. 8º – Ao aplicar o ordenamento jurídico, o o povo veja e creia que ella realmente existe. quer dizer, a participação totalmente imedia-
juiz atenderá aos fins sociais e às exigências Tirai a independência do Poder Judiciário, e ta, independente de qualquer outra conside-
do bem comum, resguardando e promoven- vós lhe tirareis sua grandeza, sua força moral, ração, no sofrimento de outro.
do a dignidade da pessoa humana e obser- sua dignidade, não tereis mais magistrados,
vando a proporcionalidade, a razoabilidade, sim commissaris, instrumentos ou escravos de
a legalidade, a publicidade e a eficiência. um outro poder (sic.).
5 Na África do Sul, por exemplo, a Corte 14 A preocupação com as minorias é destaca- REFERÊNCIAS
Constitucional reconheceu a constitucionalida- da expressamente pelo art. 27 do Pacto de ABRAMOVICH, Víctor; COURTIS, Christian. Los de-
de de uma lei que criminalizou a prostituição, Direitos Civis e Políticos (1966), nos seguintes rechos sociales como derechos exigibles. Madrid:
cuja conduta consistia em manter conjunção termos: Nos Estados em que haja minorias Trotta, 2004.
carnal mediante pagamento. Na Colômbia, étnicas, religiosas ou linguísticas, as pessoas ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de
70 por outro lado, a Corte Constitucional enten- pertencentes a essas minorias não poderão Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão in-
deu que prostituição não configura crime. Na ser privadas do direito de ter, conjuntamente glesa de W.D. Rosá. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
mesma decisão ainda ficou assentado que, se com outros membros de seu grupo, sua pró- (Coleção “Os Pensadores”).
a prostituição for exercida em estabelecimentos pria vida cultural, de professar e praticar sua BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e
comerciais, está sujeita às leis trabalhistas. O própria religião e usar sua própria língua. a efetividade de suas normas: limites e possibilida-
curioso é que em ambos julgamentos a digni- 15 Nas palavras de Montesquieu (2002, p. 238- de da constituição brasileira. 7. ed. Rio de Janeiro:
dade da pessoa humana figurou como funda- 239): O poder de julgar, tão terrível entre os Renovar, 2003.
mento decisório (BARROSO, 2012, p. 92-93). homens, não estando ligado nem a uma cer- ______. Curso de direito constitucional contem-
6 Neste particular, mister transcrever as palavras ta situação nem a uma certa profissão, torna- porâneo: os conceitos fundamentais e a construção
do Ministro Celso de Mello: O postulado da -se, por assim dizer, invisível e nulo. E comple- do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
dignidade da pessoa humana, que repre- menta: Poderia acontecer que a lei, que é ao ______. A dignidade da pessoa humana no direi-
senta – considerada a centralidade desse mesmo tempo clarividente e cega, fosse em to constitucional contemporâneo: a construção de
princípio essencial (CF (LGL\1988\3), art. 1º, certos casos muito rigorosa. Porém, os juízes um conceito jurídico à luz da jurisprudência mun-
III) – significativo vetor interpretativo, verda- de uma nação não são, como dissemos, mais dial. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
deiro valor-fonte que conforma e inspira todo que a boca que pronuncia as sentenças da BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de
o ordenamento constitucional vigente em lei, seres inanimados que não podem mode- Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
nosso País, traduz, de modo expressivo, um rar nem sua força nem seu rigor. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus
dos fundamentos em que se assenta, entre 16 Nesta mesma direção, Flávia Piovesan (2014, n. 71.373-4. Impetrante: José Antônio Gomes
nós, a ordem republicana e democrática con- p. 107) consigna: [...] o Poder Judiciário não Pinheiro Machado. Coator: Tribunal de Justiça do
sagrada pelo sistema de direito constitucional tem apenas por vocação proteger direitos, Rio Grande do Sul. Relator: Min. Francisco Rezek.
positivo (BRASIL, STF, Agravo Regimental no mas também expandi-los e ampliá-los, vivifi- Brasília, 10 nov. 1994.
Recurso Extraordinário n. 477.554/MG). cando os direitos fundamentais consagrados ______. ______. Agravo Regimental no Recurso
7 Embora tenha sido adotada aqui a classifica- na Constituição Federal e não fossilizando-os. Extraordinário n. 477.554/MG. Agravante: Carmem
ção de Flávia Piovesan (2014, p. 104), fez-se 17 Para Celso Lafer (2005, p. 13-14): O art. 4º Mello de Aquino Netta representada por Elizabeth
uma abordagem autônoma e independente da Constituição de 1988 é representativo Alves Cabral. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília,
em relação a cada item. da abertura ao mundo, inerente a um regi- 16 ago. 2011.
8 O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) edita me democrático. No seu dizer: O art. 4º da BUENO, José Antônio Pimenta. Direito público brazilei-
anualmente o Justiça em Números, que tem Constituição é indicativo desta abertura, pois ro e anályse da constituição do Império. Rio de Janeiro:
por objetivo realizar um mapeamento estatís- os princípios nele positivados estão próximos Typographia Imp. e Const. de J. Villeneuve, 1857.
tico detalhado dos serviços judiciários em suas dos que basicamente regem, de acordo com COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucio-
mais diversas dimensões, a fim de subsidiar o Direito Internacional Público, ex vi do art. 2º nal. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2003.
ações e políticas públicas com o objetivo de da Carta da ONU, a comunidade internacio- COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos
contribuir para o acesso à Justiça. nal. Mais adiante, arremata: no art. 4º, a clara direitos humanos. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
9 A taxa de congestionamento mede o percen- nota identificadora da passagem do regime CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Justiça
tual dos casos que ficaram sem solução, com- autoritário para o Estado Democrático de em números: 2017, ano-base 2016. Brasília: CNJ, 2017.
parativamente ao total tramitado no período Direito é o princípio que assevera a preva- EINSTEIN, Albert. Como vejo o mundo. Tradução
de um ano. Refere-se ao estoque de proces- lência dos direitos humanos (art. 4º, II). Este de H. P. de Andrade. 11. ed. Rio de Janeiro: Nova
sos pendentes de finalização. princípio afirma uma visão de mundo – que Fronteira, 1981.
10 O IAD apura a capacidade dos tribunais em permeia a Constituição de 1988 –, na qual FRIEDMAN, Milton; FRIEDMAN, Rose. Free to choo-

Revista CEJ, Brasília, Ano XXII, n. 74, p. 61-71, jan./abr. 2018


José Ricardo Alvarez Vianna

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Artigo recebido em 4/12/2017.


Artigo aprovado em 23/3/2018.

José Ricardo Alvarez Vianna é diretor e


professor da Escola da Magistratura do
Paraná (EMAP) e Juiz de Direito.

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