Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
n.º 08
GENEBRA
Protocolo de Istambul
MANUAL PARA A INVESTIGAÇÃO
E DOCUMENTAÇÃO EFICAZES DA TORTURA
E OUTRAS PENAS OU TRATAMENTOS CRUÉIS,
DESUMANOS OU DEGRADANTES
Procuradoria-Geral da República
Gabinete de Documentação
e Direito Comparado
Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos
n.o 08
GENEBRA
NAÇÕES UNIDAS
Nova Iorque e Genebra, 2001
not
a
*
Os conceitos utilizados e a apresentação do material constante da presente publi-
cação não implicam a manifestação de qualquer opinião, seja de que natureza for,
da parte do Secretariado das Nações Unidas, relativamente ao estatuto jurídico de
qualquer país, território, cidade ou região, ou das suas autoridades, ou em relação
à delimitação das suas fronteiras ou limites territoriais.
*
* *
O material constante da presente publicação pode ser livremente citado ou
reproduzido, desde que indicada a fonte e que um exemplar da publicação con-
tendo o material reproduzido seja enviado para o Alto Comissariado/Centro para
os Direitos Humanos, Nações Unidas, 1211 Genebra 10, Suíça.
HR/P/PT/8
ISSN 1020-1688
N.T.
As notas do tradutor (N.T.) constantes da presente publicação são da responsabilidade do Gabinete de Documentação
e Direito Comparado da Procuradoria-Geral da República e não responsabilizam a Organização das Nações Unidas.
Co-autores e outros participantes
Coordenadores do projecto
Comité de redacção
Relatores
III
Dr. Hernan Reyes, Center for the Study of Society and Medicine,
Universidade de Columbia, Nova Iorque
Ann Sommerville, British Medical Association, Londres
Dr. Numfondo Walaza, The Trauma Centre for Survivors of Violence
and Torture, Cidade do Cabo
IV
Dr. Emre Kapkin, Fundação de Direitos Humanos da Turquia,
Esmirna
Dr. Cem Kaptanolu, Departamento de Psiquiatria, Faculdade de
Medicina da Universidade Osmangazi, Eski˛ehir
Professora Ioanna Kuçuradi, Centro para a Pesquisa e Aplicação da
Filosofia e dos Direitos Humanos, Universidade de Hacettepe,
Ancara
Basem Lafi, Programa de Saúde Mental da Comunidade de Gaza, Gaza
Dr. Elizabeth Lira, Instituto Latinoamericano de Salud Mental,
Santiago
Dr. Veli Lök, Fundação de Direitos Humanos da Turquia, Esmirna
Dr. Michèle Lorand, Cook County Hospital, Chicago
Dr. Ruchama Marton, Physicians for Human Rights Israel, Tel Aviv
Elisa Massimino, Lawyers Committee for Human Rights, Nova Iorque
Carol Mottet, consultora juridica, Berna
Dr. Fikri Öztop, Departamento de Patologia, Faculdade de Medicina
da Universidade Ege, Esmirna
Alan Parra, Gabinete do Relator Especial sobre Tortura, Genebra
Dr. Beatrice Patsalides, Survivors International, São Francisco
Dr. Jean Pierre Restellini, Unidade para a Divulgação dos Direitos
Humanos, Direcção de Direitos Humanos, Conselho da Europa,
Estrasburgo
Nigel Rodley, Relator Especial sobre Tortura, Genebra
Dr. Füsun Sayek, Associação Médica Turca, Ancara
Dr. Françoise Sironi, Centre Georges Devereux, Universidade de
Paris VIII, Paris
Dr. Bent Sorensen, Conselho Internacional de Reabilitação para Víti-
mas de Tortura, Copenhaga, e Comité contra a Tortura, Genebra
Dr. Nezir Suyugül, Departamento de Medicina Legal, Istambul
Asmah Tareen, University of Minnesota Law School, Minneapolis
Dr. Henrik Klem Thomsen, Departamento de Patologia, Hospital
Bispebjerg, Copenhaga
Dr. Morris Tidball-Binz, Programa para a Prevenção da Tortura, Ins-
tituto Interamericano de Direitos Humanos, São José, Costa Rica
Dr. Nuray Türksoy, Fundação de Direitos Humanos da Turquia,
Istambul
Hülya Üçpinar, Gabinete de Direitos Humanos, Associação Izmir Bar,
Esmirna
Dr. Adriaan van Es, Fundação Johannes Wier, Amesterdão
Ralf Wiedemann, University of Minnesota Law School, Minneapolis
Dr. Mark Williams, The Center for Victims of Torture, Minneapolis
Participantes
V
Dr. Rosa Garcia-Peltoniemi, The Center for Victims of Torture,
Minneapolis
Dr. Ole Hartling, Associação Médica Dinamarquesa, Copenhaga
Dr. Hans Petter Hougen, Associação Médica Dinamarquesa, Cope-
nhaga
Dr. Delon Human, World Medical Association, Ferney-Voltaire
Dr. Dario Lagos, Equipo Argentino de Trabajo e Investigación Psi-
cosocial, Buenos Aires
Dr. Frank Ulrich Montgomery, Associação Médica Alemã, Berlim
Daniel Prémont, Fundo Voluntário das Nações Unidas para as Víti-
mas de Tortura, Genebra
Dr. Jagdish C. Sobti, Associação Médica Indiana, Nova Deli
Trevor Stevens, Comité Europeu para a Prevenção da Tortura, Estras-
burgo
Turgut Tarhanli, Departamento de Relações Internacionais e Direi-
tos Humanos, Universidade Boazici, Istambul
Wilder Taylor, Human Rights Watch, Nova Iorque
Dr. Joergen Thomsen, Conselho Internacional de Reabilitação para
Vítimas de Tortura, Copenhaga
VI
Introdução
Para os efeitos do presente manual, a tortura é damente a prática da tortura 3 Amnistia Internacional,
Relatório de 1999 da
definida nos termos constantes da Convenção das em quaisquer circunstâncias Amnistia Internacional
(Londres, AIP, 1999).
Nações Unidas contra a Tortura, de 1984: (vide capítulo I), a tortura e os 4
M. Ba_o_lu, “Prevention
maus tratos acontecem em of torture and care of sur-
vivors: an integrated
“Tortura significa qualquer acto .1 O Conselho de Adminis- mais de metade dos países approach” [em português:
tração do Fundo Voluntário Prevenção da tortura e tra-
por meio do qual uma dor ou das Nações Unidas para as do mundo.3, 4 A flagrante dispari- tamento dos sobreviven-
Vítimas de Tortura decidiu tes: uma abordagem
sofrimentos agudos, físicos ou recentemente utilizar no seu dade entre a proibição absoluta integrada], The Journal of
trabalho a Declaração sobre the American Medical
mentais, são intencionalmente a Protecção de Todas as da tortura e a sua subsistência no Association (JAMA), 270
Pessoas contra a Tortura e 1993: 606-611).
causados a uma pessoa com os Outras Penas ou Tratamen- mundo contemporâneo demons-
tos Cruéis, Desumanos ou
fins de, nomeadamente, obter Degradantes. tra a necessidade de que os Estados identifiquem
dela ou de uma terceira pessoa informações ou con- e ponham em prática medidas eficazes de protec-
fissões, a punir por um acto que ela ou uma ter- ção das pessoas contra a tortura e os maus tratos.
ceira pessoa cometeu ou se suspeita que tenha O presente manual foi elaborado com o objectivo
cometido, intimidar ou pressionar essa ou uma ter- de auxiliar os Estados a dar resposta a uma das exi-
ceira pessoa, ou por qualquer outro motivo gências mais fundamentais na protecção dos indi-
baseado numa forma de discriminação, desde que víduos contra a tortura: a documentação eficaz.
essa dor ou esses sofrimentos sejam infligidos Esta documentação permite recolher provas da
por um agente público ou qualquer outra pessoa prática da tortura e maus tratos, assim possibili-
agindo a título oficial, a sua instigação ou com o tando a responsabilização dos infractores pelos
seu consentimento expresso ou tácito. Este termo seus actos e servindo os interesses da justiça.
não compreende a dor ou os sofrimentos resultantes Os métodos de documentação indicados no pre-
unicamente de sanções legítimas, inerentes a sente manual são também aplicáveis a outros con-
essas sanções ou por elas ocasionados.”1 textos, nomeadamente actividades de investigação
e supervisão em matéria de direitos humanos,
A tortura é objecto de grande 2 Vide Iacopino, “Treat- avaliação de situações de asilo político, defesa de
ment of survivors of politi-
preocupação para a comunidade cal torture: commentary” indivíduos que “confessam” a prática de crimes sob
[em português: Trata-
internacional. Visa deliberada- mento dos sobreviventes tortura e avaliação das necessidades de tratamento
de tortura política: comen-
mente destruir, não apenas o tário], The Journal of das vítimas de tortura, entre outros.
Ambulatory Care Manage-
bem-estar físico e mental do indi- ment, 21 (2), 1998,
pp. 5 a 13.
víduo, mas também, em determi- Ao longo das últimas duas décadas, muito se
nados casos, a dignidade e vontade de comunidades aprendeu a respeito da tortura e suas consequên-
inteiras. Diz respeito a todos os membros da famí- cias, mas não existiam quaisquer directrizes inter-
lia humana, uma vez que põe em causa o próprio sig- nacionais para a sua documentação antes da
nificado da nossa existência e compromete as nossas elaboração do presente manual. O Manual sobre
esperanças num futuro melhor.2 a Investigação e Documentação Eficazes da Tortura
e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desuma-
Embora as normas internacionais de direitos nos ou Degradantes (Protocolo de Istambul)
humanos e direito humanitário proíbam reitera- pretende funcionar como um documento de refe-
VII
rência internacional para a ava- 5 Os Princípios sobre a Representam antes normas mínimas elaboradas
Investigação e Documenta-
liação da situação das pessoas ção Eficazes da Tortura e com base nos Princípios acima referidos e deverão
Outras Penas ou Tratamen-
alegadamente vítimas de tor- tos Cruéis, Desumanos ou ser utilizadas tendo em conta os recursos dispo-
Degradantes foram anexa-
tura e maus tratos, para a inves- dos à resolução 55/89 da níveis. O manual e os princípios são o resultado
Assembleia Geral (4 de
tigação dos presumíveis casos Dezembro de 2000) e à de três anos de análise, pesquisa e redacção, leva-
resolução 2000/43 da
de tortura e para a comunica- Comissão dos Direitos do das a cabo por mais de 75 peritos nas áreas do
Homem, ambas adoptadas
ção dos factos apurados ao por consenso. direito, medicina e direitos humanos em repre-
poder judicial ou outros órgãos sentação de 40 organizações ou instituições de 15
com competência no domínio da investigação. países. A concepção e preparação do presente
O manual inclui os Princípios para a investigação manual resultou de um esforço conjunto de espe-
e documentação eficazes da tortura e outras penas cialistas em medicina e medicina legal, psiquiatras,
ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes psicólogos, observadores de direitos humanos e
(vide anexo I). Estes Princípios consagram nor- juristas a trabalhar na África do Sul, Alemanha,
mas mínimas a aplicar pelos Estados a fim de Chile, Costa Rica, Dinamarca, Estados Unidos da
garantir uma documentação eficaz da tortura5. América, França, Holanda, Índia, Israel, Sri
As directrizes enunciadas no presente manual não Lanka, Suíça, Reino Unido, Turquia e territórios
devem ser vistas como um protocolo rígido. palestinianos ocupados.
VIII
Índice
Página
Co-autores e outros participantes III
Introdução VII
Parágrafos
Cap. 01 Normas jurídicas internacionais aplicáveis 1-46 1
IX
Parágrafos Página
d. Profissionais de saúde com dualidade de obrigações 65-72 19
1. PRINCÍPIOS ORIENTADORES DE TODOS OS MÉDICOS COM DUALIDADE
DE OBRIGAÇÕES 66 19
2. DILEMAS RESULTANTES DA DUALIDADE DE OBRIGAÇÕES 67-72 19
TESTEMUNHAS 87-100 26
3. RECOLHA E PRESERVAÇÃO DAS PROVAS MATERIAIS 101-102 31
4. PROVAS MÉDICAS 103-104 31
5. FOTOGRAFIAS 105 32
d. Comissões de inquérito 106-118 32
1. DEFINIÇÃO DO ÂMBITO DO INQUÉRITO 106 32
2. COMPETÊNCIAS DA COMISSÃO 107 33
3. CRITÉRIOS PARA A SELECÇÃO DOS MEMBROS
DA COMISSÃO 108-109 33
4. PESSOAL DA COMISSÃO 110 33
5. PROTECÇÃO DAS TESTEMUNHAS 111 34
6. PROCEDIMENTO 112 34
7. DIVULGAÇÃO DO INQUÉRITO 113 34
8. RECOLHA DE PROVAS 114 34
9. DIREITOS DAS PARTES 115 34
10. AVALIAÇÃO DAS PROVAS 116 35
11. RELATÓRIO DA COMISSÃO 117-118 35
X
Parágrafos Página
Cap. 05 Indícios físicos da tortura 160-232 49
ANEXOS
DESUMANOS OU DEGRADANTES 91
II. TESTES DE DIAGNÓSTICO 95
III. ESQUEMAS ANATÓMICOS PARA A DOCUMENTAÇÃO DA TORTURA
XI
cap
ítu
lo
*01
Normas jurídicas internacionais
aplicáveis
1. A proibição da tortura encontra-se firme- para a condução dos conflitos N.T.2 A 13 de Novembro de
2002, o número de Estados
mente consagrada no direito internacional. armados internacionais e, em Partes no Protocolo I ascen-
dia a 160.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, especial, para o tratamento de N.T.3
154 até 13 de Novembro
o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e pessoas que não tomam parte de 2002.
Políticos e a Convenção contra a Tortura e Outras nas hostilidades ou deixaram
Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou de o fazer, nomeadamente feridos, prisioneiros e
Degradantes proíbem expressamente a tortura. civis. Cada uma das quatro convenções proíbe a
De forma semelhante, diversos instrumentos prática da tortura e outras formas de maus tratos.
regionais estabelecem a mesma proibição. A Con- Os dois Protocolos de 1977 Adicionais às Con-
venção Americana sobre Direitos Humanos, a venções de Genebra alargam a protecção conferida
Carta Africana dos Direitos do Homem e dos por estas convenções e o respectivo âmbito de
Povos e a Convenção para a Protecção dos Direi- aplicação. O Protocolo I (ratificado até à data por
tos do Homem e das Liberdades Fundamentais 153 EstadosN.T.2) abrange os conflitos armados
do Conselho da Europa contêm disposições que internacionais e o Protocolo II (ratificado até ao
proíbem expressamente a prática da tortura. momento por 145 EstadosN.T.3) os conflitos arma-
dos não internacionais.
a. Direito internacional humanitário
3. O chamado “Artigo 3.o comum”, que se
2. Os tratados internacionais N.T.1 A 13 de Novembro de repete nas quatro convenções, assume particular
2002, o número de Estados
que regulamentam os conflitos Partes ascendia já a 190. importância neste domínio. O artigo 3.o comum
Portugal aprovou para rati-
armados estabelecem o direito ficação as quatro Conven- aplica-se aos conflitos armados “que não apre-
ções de Genebra pelo
internacional humanitário ou Decreto-Lei n.o 42 991, de sente[m] um carácter internacional”, não sendo
26 de Maio de 1960, tendo
direito da guerra. A proibição depositado os respectivos dada qualquer outra definição. Considera-se que
instrumentos de ratificação
da tortura ao abrigo do direito a 14 de Março de 1961. estabelece as obrigações fundamentais a respeitar
Estes tratados entraram em
internacional humanitário é vigor na ordem jurídica por- em todos os conflitos armados, e não apenas nas
tuguesa a 14 de Setembro
apenas uma parte, pequena de 1961. guerras internacionais entre países. Em geral,
mas importante, da ampla protecção que estes tra- entende-se que isto significa que, seja qual for a
tados conferem a todas as vítimas da guerra. As natureza da guerra ou do conflito, existem deter-
quatro Convenções de Genebra de 1949 foram minadas regras básicas que não podem ser afas-
ratificadas por 188 EstadosN.T.1. Estabelecem regras tadas. A proibição da tortura é uma delas e
2
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.o 08 [ACNUDH]
9. Outros organismos e meca- 12
Resolução 34/169 da uma pessoa para um outro parágrafos 3 a 11), no qual
o Relator Especial defendeu
Assembleia Geral, de 17 de
que a aplicação de penas
nismos de direitos humanos do Dezembro de 1979, anexo, Estado quando existam motivos tais como a morte por lapi-
artigo 5.o; vide General
dação, flagelação e ampu-
sistema das Nações Unidas têm Assembly Official Docu- sérios para crer que possa ser tação de membros não
ments, Thirty-Fourth Ses-
vindo a tomar iniciativas com o sion, Supplement No. 46
(A/34/46), p. 209.
submetida a tortura (artigo 3.o da pode ser considerada legí-
tima unicamente devido ao
facto de a pena ter sido
objectivo de desenvolver normas N.T.8
Texto em português dis-
Convenção contra a Tortura); autorizada na sequência de
um procedimento formal-
para a prevenção da tortura, bem ponível na webpage do
GDDC (www.gddc.pt). mente legítimo. A interpre-
tação avançada pelo
como normas que obriguem os 13
Resolução 37/194 da
c) A criminalização de todos Relator Especial, que coin-
cide as posições do Comité
Estados a investigar os alegados Assembleia Geral, de 18 de
Dezembro de 1982, anexo,
os actos de tortura, incluindo a dos Direitos do Homem e
outros mecanismos das
casos de tortura. De entre estes princípios 2 a 5; vide Gene-
ral Assembly Official
cumplicidade ou a participação Nações Unidas, foi endos-
sada pela resolução
organismos e mecanismos, des- Documents, Thirty-
Seventh Session, Supple-
nos mesmos (artigo 4.o da Con- 1998/38 da Comissão dos
ment No. 51 (A/37/51), Direitos do Homem, a qual
tacamos o Comité contra a Tor- p 262.
venção contra a Tortura, princí- “recorda aos Governos que
os castigos corporais podem
tura, o Comité dos Direitos do N.T.9
Veja o texto em portu-
pio 7 do Conjunto de Princípios resultar em tratamentos
cruéis, desumanos ou degra-
Homem, a Comissão dos Direitos guês na página do GDDC.
sobre Detenção, artigo 7.o da dantes ou mesmo em tor-
14 tura”.
Entrada em vigor na
do Homem, o Relator Especial ordem jurídica internacional
Declaração sobre a Protecção
a 26 de Junho de 1987; vide
sobre Tortura, a Relatora Especial resolução 39/46 da Assem- contra a Tortura e parágrafos 31 a 33 das Regras
bleia Geral, de 10 de
sobre Violência contra Mulheres Dezembro de 1984, anexo, Mínimas para o Tratamento dos Reclusos);
artigo 2.o, General
e os Relatores Especiais nomeados Assembly Official Docu-
ments, Thirty-Ninth Ses-
pela Comissão dos Direitos do sion, Supplement No. 51 d) A adopção das medidas necessárias para que
(A/39/51), p. 206.
Homem para acompanhar a a tortura constitua um crime passível de extradi-
N.T.10
Aprovada para ratifi-
situação de direitos humanos de cação pela resolução da ção e a colaboração com os outros Estados Partes
Assembleia da República
determinados países. n.o 11/88, de 21 de Maio, no âmbito dos processos criminais instaurados
publicada no Diário da
República, I Série, relativamente a casos de tortura (artigos 8.o e 9.o
n.o 118/88 e ratificada pelo
1. OBRIGAÇÕES JURÍDICAS NO decreto do Presidente da da Convenção contra a Tortura);
República n.o 57/88, de 20
DOMÍNIO DA PREVENÇÃO DA de Julho, publicado no Diá-
rio da República, I Série,
TORTURA n.o 166/88. O instrumento e) Limitação do recurso à detenção em regime
de ratificação foi depositado
junto do Secretário-Geral de incomunicabilidade; garantia de que os detidos
das Nações Unidas a 9 de
10. Os instrumentos jurídicos Fevereiro de 1989, tendo são mantidos em locais oficialmente reconhecidos
esta convenção entrado em
supra citados estabelecem deter- vigor na ordem jurídica por- como locais de detenção; garantia de que os
tuguesa a 11 de Março de
minadas obrigações que os Esta- 1989. O seu texto oficial em nomes das pessoas responsáveis pela detenção
português pode ser encon-
dos devem cumprir a fim de trado na webpage do são inscritos em registos facilmente disponíveis
GDDC.
assegurar protecção contra a tor- 15
e acessíveis a todos os interessados, incluindo
Resolução 43/173 da
tura. Eis algumas: Assembleia Geral, de 9 de família e amigos; registo do local, hora e data de
Dezembro de 1998, anexo,
princípio 6; vide General todos os interrogatórios, juntamente com os
Assembly Official
a) A adopção das medidas Documents, Fourty-Third nomes de todas as pessoas presentes; e garantia
Session, Supplement
legislativas, administrativas, No. 49 (A/43/49), p. 311. de acesso aos detidos por parte de médicos, advo-
judiciais ou quaisquer outras N.T.11
Também este gados e familiares (artigo 11.o da Convenção con-
documento está disponível,
que se afigurem eficazes para em português, no endereço tra a Tortura; princípios 11 a 13, 15 a 19 e 23 do
www.gddc.pt.
impedir a ocorrência de actos 16
Conjunto de Princípios sobre Detenção; parágra-
Resolução 45/111 da
de tortura. Nenhuma circuns- Assembleia Geral, de 14 de fos 7, 22 e 37 das Regras Mínimas para o Trata-
Dezembro de 1990, anexo,
tância excepcional, incluindo a princípio 1; vide General mento dos Reclusos);
Assembly Official Docu-
guerra, poderá ser invocada ments, Fourty-Fifth Ses-
sion, Supplement No. 49
para justificar a tortura (artigo 2.o (A/45/49), p. 216. f ) Garantia de que a educação e informação
N.T.12
da Convenção contra a Tortura e Texto em português
disponível na webpage do
relativas à proibição da tortura constituam parte
artigo 3.o da Declaração sobre a GDDC. integrante da formação do pessoal (civil ou mili-
17
Protecção contra a Tortura); Para uma interpretação
acerca do que se conside-
tar) encarregado da aplicação da lei, do pessoal
ram “sanções legítimas”,
vide o relatório apresentado
médico, dos agentes da função pública e de quais-
b) A proibição de expulsar, pelo Relator Especial sobre
Tortura à Comissão dos
quer outras pessoas interessadas (artigo 10.o da Con-
entregar (refouler) ou extraditar Direitos do Homem na sua
53.a sessão (E/CN.4/1997/7,
venção contra a Tortura; artigo 5.o da Declaração
4
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.o 08 [ACNUDH]
13. Em conformidade com o N.T.14 A 30 de Maio de 2002, 16. De cinco em cinco anos, os 21 Documento das Nações
já 51 Estados haviam reco- Unidas com a cota A/37/40
artigo 22.o da Convenção contra nhecido a competência do Estados Partes no Pacto deverão (1982).
Comité ao abrigo do artigo
a Tortura, um Estado Parte pode, 22.o, entre os quais Portu- apresentar relatórios nos quais indicam as medi-
gal, que apresentou declara-
a todo o momento, reconhecer a ção nesse sentido no
momento do depósito do
das por si adoptadas para tornar efectivos os
competência do Comité para instrumento de ratificação
da Convenção (9 de Feve-
direitos reconhecidos no Pacto e os progressos
receber e analisar comunicações reiro de 1999, com efeitos a
partir de 11 de Março do
alcançados no gozo destes mesmos direitos.
apresentadas por ou em nome mesmo ano) – juntamente
com declaração reconhe-
O Comité dos Direitos do Homem examina os
de particulares sujeitos à sua Comité aocompetência
cendo a do
abrigo do artigo
relatórios em diálogo com representantes do
o
jurisdição e que afirmem terem 21. (para o exame de
comunicações apresentadas
Estado Parte em causa, após o que adopta obser-
sido vítimas de violação, por um por outros Estados Partes). vações finais que resumem as suas principais
Estado Parte, das disposições da Convenção contra preocupações e contêm as sugestões e recomen-
a Tortura. O Comité considera então estas comuni- dações que considere pertinente dirigir ao Estado
cações em sessões à porta fechada e comunica as suas Parte. O Comité elabora também comentários
conclusões ao Estado Parte interessado e ao parti- gerais interpretativos de determinados artigos do
cular. Apenas 39 dos 112 Estados Partes na Convenção Pacto em particular, a fim de orientar os Estados
reconheceram já a aplicabilidade do artigo 22.oN.T.14. Partes no processo de elaboração dos relatórios, bem
como nos seus esforços para aplicar as disposições
14. Nos seus relatórios anuais 19 Vide Comunicação do PIDCP. Num desses comentários gerais, o
8/1991, parágrafo 185, rela-
apresentados à Assembleia tada no relatório do Comité Comité propôs-se clarificar o sentido do artigo 7.o
contra a Tortura à Assem-
Geral, o Comité insiste regular- bleia Geral (A/49/44) de 12 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Polí-
de Junho de 1994.
mente na necessidade de cum- 20 ticos, que declara que ninguém será submetido a
Vide Comunicação
primento, pelos Estados Partes, 6/1990, parágrafo 10.4, tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desu-
relatada no relatório do
das obrigações impostas pelos Comité contra a Tortura à manos ou degradantes. Nos seus comentários
Assembleia Geral (A/50/44)
artigos 12.o e 13.o da Convenção, de 26 de Julho de 1995. gerais ao citado artigo 7.o que constam do relató-
garantindo que todas as alega- rio do Comité, este observou especificamente que
ções de tortura são imediatamente objecto de um a proibição da tortura ou a sua criminalização não
inquérito rigoroso. Por exemplo, o Comité decla- são suficientes para garantir a plena aplicação do
rou considerar que um atraso de 15 meses na artigo 7.o21. O Comité declarou o seguinte: “[...] os
investigação de um alegado caso de tortura é Estados deverão garantir uma protecção efectiva
excessivamente longo e viola o disposto no artigo através de um qualquer mecanismo de controlo. As
12.o da Convenção19. O Comité sublinhou também denúncias de maus tratos deverão ser investigadas
que o artigo 13.o não exige a apresentação formal de forma eficaz pelas autoridades competentes.”
de uma queixa de tortura, “bastando que uma pes-
soa alegue ter sido submetida a tortura para que 17. A 10 de Abril de 1992, o NT15 Portugal aprovou este
primeiro Protocolo para
[o Estado Parte] esteja obrigado a proceder de ime- Comité adoptou um novo adesão através da Lei
n.o 13/82, de 15 de Junho,
diato ao exame rigoroso do caso”20. comentário geral ao artigo publicada no Diário da
República, I Série A,
7.o do Pacto, desenvolvendo as n.o 135/82, tendo o instru-
mento de adesão sido depo-
(b) Comité dos Direitos do Homem suas anteriores observações. sitado junto do
Secretário-Geral das Nações
O Comité reforçou a sua leitura Unidas a 3 de Maio de
1983. Este Protocolo entrou
15. O Comité dos Direitos do Homem foi insti- do artigo 7.o considerando que em vigor na ordem jurídica
portuguesa a 3 de Agosto de
tuído ao abrigo do artigo 28.o do Pacto Internacional “as denúncias deverão ser 1983.
sobre os Direitos Civis e Políticos, com a função imediatamente investigadas de
de controlar a aplicação, pelos Estados Partes, das forma imparcial pelas autoridades competentes
disposições deste instrumento. O Comité é com- de forma a garantir a eficácia do mecanismo de
posto por 18 peritos independentes que deverão ser recurso”. Caso o Estado Parte haja ratificado o pri-
pessoas de alta autoridade moral e possuidoras de meiro Protocolo Facultativo referente ao Pacto
reconhecida competência no domínio dos direitos Internacional sobre os Direitos Civis e Políti-
humanos. cosN.T.15, o particular pode apresentar uma comu-
6
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.o 08 [ACNUDH]
imediatamente e deverão ser inves- 23
Documento das Nações Especial insta as autoridades nacionais compe-
Unidas com a cota
tigadas por uma autoridade inde- E/CN.4/1995/34. tentes, não apenas a fornecer informação com-
pendente sem qualquer relação com a que procede ao pleta sobre o caso, mas também a levar a cabo um
inquérito ou instrução do caso contra a presumível inquérito independente e imparcial sobre o
vítima23. mesmo e a tomar medidas imediatas com vista a
assegurar que não voltem a suceder violações dos
21. O Relator Especial desta- 24 Documento das Nações direitos humanos das mulheres.
Unidas com a cota
cou esta recomendação no seu E/CN.4/1996/35.
relatório de 9 de Janeiro de 23. A Relatora Especial apresenta relatórios
199624. Referindo a sua preocupação pelas práti- anuais à Comissão dos Direitos do Homem, nos
cas de tortura, o Relator Especial lembrou no pará- quais dá conta das comunicações transmitidas aos
grafo 136 que “tanto nos termos do direito Governos e respostas recebidas. Com base na infor-
internacional geral como nos da Convenção con- mação recebida dos Governos e outras fontes fide-
tra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos dignas, a Relatora Especial formula recomendações
Cruéis, Desumanos ou Degradantes, os Estados têm dirigidas aos Estados em causa com o objectivo de
a obrigação de investigar as denúncias de tortura”. encontrar soluções duradouras para a erradicação
da violência contra mulheres em qualquer país. Caso
(e) Relatora Especial sobre Violência não receba qualquer resposta ou esta seja insufi-
contra Mulheres ciente, a Relatora Especial pode enviar nova comu-
nicação ao Governo em causa. Se, em determinado
22. O mandato de Relatora N.T.17 O cargo de Relator país, se continuar a verificar uma situação concreta
Especial é ocupado, desde a
Especial sobre Violência contra criação do mandato, pela de violência contra mulheres e a informação recebida
senhora Radhika Coomaras-
Mulheres foi criado em 1994 wamy, do Sri Lanka. Por pela Relatora Especial indicar que nenhumas medi-
este motivo, optou-se por
pela resolução 1994/45 da referir a designação do
mandato no feminino na
das foram ou estão a ser tomadas pelo Governo para
Comissão dos Direitos do língua portuguesa. Na reso-
lução 2000/45, a CDH
assegurar a protecção dos direitos humanos das
Homem e renovado pela reso- renovou este mandato por
mais três anos. No final de
mulheres, a Relatora Especial pode considerar a pos-
lução 1997/44 N.T.17
. A Relatora Coomaraswamy
Julho de 2002, Radhika
mantinha
sibilidade de pedir autorização ao Governo em causa
Especial instituiu procedimentos a titularidade do cargo. para visitar o país a fim de levar a cabo uma missão
para solicitar aos Governos, num espírito huma- de inquérito no terreno.
nitário, informações e esclarecimentos sobre casos
concretos de alegada violência, a fim de identifi- c. Organizações regionais
car e investigar situações e denúncias concretas de
violência contra mulheres em qualquer país. Estas 24. Os organismos regionais contribuem tam-
comunicações podem dizer respeito a um ou mais bém para o desenvolvimento de normas destina-
indivíduos identificados pelo nome ou a informa- das a prevenir a tortura. É o caso, entre outros, da
ção de natureza mais geral relativa a situações em Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
que a violência contra mulheres continua a ser do Tribunal Interamericano de Direitos Huma-
perpetrada ou tolerada. A Relatora Especial recorre nos, do Tribunal Europeu dos Direitos do
à definição de violência contra mulheres com base Homem, do Comité Europeu para a Prevenção da
no género, constante da Declaração das Nações Tortura e da Comissão Africana dos Direitos do
Unidas sobre a Eliminação da Violência contra Homem e dos Povos.
Mulheres, adoptada pela Assembleia Geral na sua
resolução 48/104, de 20 de Dezembro de 1993. 1. COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS
A Relatora Especial pode transmitir apelos urgen- HUMANOS E TRIBUNAL INTERAMERICANO DE
tes nos casos de violência contra mulheres com base DIREITOS HUMANOS
no género que suponham ou possam supor uma
ameaça iminente ou receio de ameaça ao direito à 25. A 22 de Novembro de 1969, a Organização de
vida ou à integridade física da pessoa. A Relatora Estados Americanos (OEA) adoptou a Convenção
8
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.o 08 [ACNUDH]
31. O artigo 5.o da Convenção consagra a proi- ausência da qual uma questão se 33
Vide Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem,
bição da tortura. Embora o caso diga directa- coloca claramente nos termos do Recueil des arrêts et déci-
sions, 1996-VI, parágrafo
mente respeito à questão dos desaparecimentos, artigo 3.o33. 61.
10
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.o 08 [ACNUDH]
vastos: podem visitar livremente qualquer local 42. Para além disso, o Comité lembra repetida-
onde se encontrem pessoas privadas de liberdade; mente que um dos meios mais eficazes para pre-
fazer visitas sem aviso prévio a qualquer destes venir os maus tratos de detidos por parte de
locais; voltar a visitar os mesmos; falar em pri- funcionários responsáveis pela aplicação da lei
vado com as pessoas privadas de liberdade; visitar consiste no exame cuidadoso, pelas autoridades
quaisquer pessoas que se encontrem nesses locais competentes, de todas as queixas de tais abusos de
ou todas elas; e observar todas as instalações (e não que tenham conhecimento e, se for caso disso, na
apenas as celas de detenção), sem restrições. imposição da sanção adequada. Isto tem um forte
A delegação pode aceder a todos os documentos e efeito dissuasor.
ficheiros relativos às pessoas visitadas. Todo o tra-
balho do Comité se baseia nos princípios da con-
fidencialidade e da cooperação. 4. COMISSÃO AFRICANA DOS DIREITOS DO
HOMEM E DOS POVOS E TRIBUNAL AFRICANO DOS
40. Após a visita, o Comité elabora um relatório. DIREITOS DO HOMEM E DOS POVOS
Com base nos factos observados durante a visita,
o relatório comenta as condições detectadas, for- 43. Ao contrário dos sistemas 44 Documento da OUA com
a cota CAB/LEG/67/3, rev.5
mula recomendações concretas e coloca quaisquer Europeu e Interamericano, (21 I.L.M.58 (1982)).
questões que necessitem de ser esclarecidas. África não dispõe de uma con- N.T.22 Para a versão em por-
tuguês, consulte a webpage
O Estado Parte responde por escrito ao relatório, venção relativa à tortura e à sua do GDDC.
assim se estabelecendo um diálogo com o Comité prevenção. A questão da tortura
que se mantém até à visita seguinte. Os relatórios é posta no mesmo plano das restantes violações
do Comité e as respostas do Estado Parte são de direitos humanos. A tortura é abordada, em pri-
documentos confidenciais, mas o Estado Parte (e meiro lugar, na Carta Africana dos Direitos do
não o Comité) pode decidir tornar público qualquer Homem e dos Povos, adoptada pela Organização
deles. Até à data, quase todos os Estados Partes têm de Unidade Africana (OUA) a 27 de Junho de
divulgado tanto os relatórios como as respectivas 1981 e entrada em vigor a 21 de Outubro de
respostas. 198644, N.T.22. O artigo 5.o da Carta Africana dispõe
o seguinte:
41. No desenrolar das suas actividades ao
longo dos últimos dez anos, o Comité desen- Todo o indivíduo tem direito ao respeito da dignidade
volveu gradualmente um conjunto de critérios inerente à pessoa humana e ao reconhecimento da sua
para o tratamento das pessoas privadas de liber- personalidade jurídica. Todas as formas de exploração
dade que constituem normas gerais. Estas nor- e de aviltamento do homem, nomeadamente a escra-
mas dizem respeito, não apenas às condições vatura, o tráfico de pessoas, a tortura física ou moral e
materiais de detenção, mas também às garantias as penas ou os tratamentos cruéis, desumanos ou
processuais. Por exemplo, o Comité defende o degradantes são interditas.
reconhecimento, às pessoas privadas de liberdade
à ordem de autoridades policiais, dos seguintes 44. A Comissão Africana dos Direitos do
direitos: Homem e dos Povos foi estabelecida em Junho
de 1987, em conformidade com o artigo 30. o da
a) O direito de informar imediatamente uma ter- Carta Africana, com a missão de “promover os
ceira parte (membro da família) da detenção, se a direitos do homem e dos povos e de assegurar a
pessoa detida assim o desejar; respectiva protecção em África”. Nas suas sessões
b) O direito da pessoa privada de liberdade de ter regulares, a Comissão tem vindo a adoptar diver-
imediatamente acesso a um advogado; sas resoluções sobre matérias relativas à situa-
c) O direito da pessoa privada de liberdade de ter ção de direitos humanos em África, algumas das
acesso a um médico, incluindo, se assim o dese- quais abordam a questão da tortura, entre outras
jar, a médico da sua escolha. violações. Em algumas das suas resoluções
12
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.o 08 [ACNUDH]
cap
ítu
lo
*02
Códigos éticos aplicáveis
47. Todas as profissões utilizam como referência cia da MagistraturaN.T.24 estabe- N.T.24 Consulte o texto inte-
gral em português na
códigos de ética profissional, que enunciam valo- lece que “os magistrados têm o página do GDDC na
INTERNET.
res comuns e reconhecem os deveres dos profis- direito e o dever de garantir que 45
Adoptados pelo Sétimo
sionais, ao mesmo tempo que definem os padrões os procedimentos judiciais são Congresso das Nações Uni-
das para a Prevenção do
morais a que estes devem obedecer. As normas éti- conduzidos em conformidade Delinquentes, realizadodosem
Crime e o Tratamento
cas são definidas sobretudo de duas maneiras: com a lei e que os direitos das par- Milão de 26 de Agosto a 6
de Setembro de 1985, e
através de instrumentos internacionais elabora- tes são respeitados”45. De forma endossados pela Assembleia
Geral das Nações Unidas
dos por órgãos como as Nações Unidas, e através semelhante, os magistrados do nas suas resoluções 40/32,
de 29 de Novembro de 1985
de códigos de princípios elaborados pelos próprios Ministério Público têm o dever bro de 1985.de 13 de Dezem-
e 40/146,
profissionais, através das associações que os repre- ético de investigar e instaurar N.T.25 Consulte o texto inte-
sentam, a nível nacional ou internacional. Os prin- acção penal relativamente a cri- gral em português na
página do GDDC na
cípios fundamentais são sempre os mesmos e mes de tortura cometidos por INTERNET.
46
Adoptados pelo Oitavo
centram-se nas obrigações dos profissionais funcionários públicos. O artigo Congresso das Nações Uni-
perante os seus clientes ou pacientes individual- 15.o dos Princípios Orientadores das para a Prevenção do
Crime e o Tratamento dos
mente considerados, perante a sociedade em geral Relativos à Função dos Magis- Delinquentes, realizado em
Havana, Cuba, de 27 de
e perante os colegas, tendo por objectivo a defesa trados do Ministério PúblicoN.T.25 Agosto
1990.
a 7 de Setembro de
14
* n.o 08 [ACNUDH]
Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º
seguimento de instruções dos 52 Os profissionais de saúde mesmo ponto na sua Declara- 55 Adoptada em 1981 (1401
devem, contudo, ter em no Calendário Islâmico).
presumíveis responsáveis; trans- conta o seu dever de sigilo ção do Koweit, que proíbe que 56
perante os pacientes e a Adoptada pelo Conselho
mitir conhecimentos profis- obrigação de obter consenti- os médicos permitam que os Internacional de Enferma-
mento esclarecido para a gem em 1975.
sionais ou os dados clínicos da divulgação de informação a
eles relativa, em particular
seus conhecimentos especiais
pessoa aos torcionários; ignorar quando tal divulgação
possa comportar riscos para
sejam utilizados para “lesionar, destruir ou cau-
deliberadamente as provas de aII.C.3).
pessoa (vide capítulo sar danos ao corpo, à mente ou a espírito, qual-
tortura e falsificar relatórios, quer que seja a razão política ou militar” 55.
como relatórios de autópsia ou certidões de A directiva sobre o Papel do Pessoal de Enfer-
óbito52. Os princípios das Nações Unidas incor- magem no Tratamento dos Detidos e Presos56
poram também uma das regras fundamentais de consagra disposições semelhantes em relação
deontologia médica ao sublinhar que a única rela- aos enfermeiros.
ção conforme à ética entre o recluso e o profissional
de saúde é a que se destina a avaliar, proteger e 54. Os profissionais de saúde 57 Adoptada pela Associação
Médica Mundial em 1990.
melhorar a saúde do primeiro. Assim, a avaliação têm também o dever de apoiar 58
Adoptada pela Associa-
do estado de saúde do detido com o objectivo de os colegas que se opõem às vio- ção Médica Mundial em
1997.
facilitar a sua punição ou tortura é claramente lações de direitos humanos.
contrária às normas éticas. A quebra deste dever pode implicar, não só a vio-
lação dos direitos do paciente e das Declarações
2. DECLARAÇÕES DOS ORGANISMOS acima enunciadas, mas também o descrédito da
PROFISSIONAIS INTERNACIONAIS classe médica no seu conjunto. Os atentados à
dignidade da profissão são considerados graves
53
53. Muitas declarações emana- MédicaAdoptada pela Associação
Mundial em 1975.
infracções deontológicas. A resolução da Associa-
das dos organismos profissio- 54 Adoptada em 1977. ção Médica Mundial relativa aos direitos humanos
nais internacionais articulam-se apela a todas as associações médicas nacionais
em torno de princípios relevantes no domínio da para que avaliem a situação de direitos humanos
protecção dos direitos humanos e traduzem um nos respectivos países e se assegurem de que os
claro consenso da comunidade médica interna- médicos não ocultam provas, mesmo temendo
cional sobre estas questões. As declarações da represálias57. Exige que os organismos nacionais
Associação Médica Mundial definem aspectos formulem directrizes claras, destinadas em espe-
internacionalmente acordados dos deveres cial aos médicos que trabalham no âmbito do sis-
deontológicos a que todos os médicos estão tema prisional, para a denúncia de alegadas
subordinados. A Declaração de Tóquio da As- violações de direitos humanos, e que instituam
sociação Médica Mundial reitera a proibição de mecanismos eficazes para a investigação de todas
qualquer forma de participação dos médicos em as actividades contrárias à deontologia médica
actos de tortura ou a sua assistência aos mes- com influência no domínio dos direitos huma-
mos53. Esta disposição é reforçada pelos princí- nos. Exige-lhes ainda que apoiem os médicos que
pios das Nações Unidas que se referem chamam a atenção para a ocorrência de violações
explicitamente à Declaração de Tóquio. Os médi- de direitos humanos. A posterior Declaração de
cos estão claramente proibidos de fornecer Hamburgo da Associação Médica Mundial rea-
informação ou qualquer instrumento ou subs- firma a responsabilidade individual e colectiva de
tância médica susceptível de facilitar os maus tra- todos os médicos do mundo de encorajarem os
tos. A mesma regra se aplica expressamente à seus colegas a resistir à tortura ou a qualquer
psiquiatria de acordo com a Declaração do pressão para agir contrariamente aos princípios
Hawai da Associação Psiquiátrica Mundial, que deontológicos58. Apela também a todos os médi-
proíbe a utilização indevida dos conhecimentos cos para que se manifestem contra os maus tra-
psiquiátricos para violar os direitos humanos de tos e insta as organizações médicas nacionais e
qualquer indivíduo ou grupo 54. A Conferência internacionais a apoiar os médicos que resistem
Internacional de Medicina Islâmica insistiu no às ditas pressões.
56. O princípio da independência profissional 59. Os valores médicos oci- 60 Adoptada pela Associa-
ção Médica Mundial em
exige que os técnicos de saúde se concentrem dentais são fortemente influen- 1948.
sempre no objectivo fundamental da medicina, ciados pelo Juramento de
que consiste em aliviar o sofrimento e a angústia Hipócrates e outras profissões de fé semelhantes,
e evitar causar dano ao paciente, independente- como a Oração de Maimónides. O Juramento de
mente de quaisquer pressões. Vários outros prin- Hipócrates representa uma promessa solene de
cípios éticos, dada a sua importância fundamental, solidariedade para com os colegas e um com-
constam invariavelmente de quaisquer códigos e promisso de fazer o bem e assistir os pacientes,
declarações deontológicas. Os principais são as poupar-lhes o sofrimento e respeitar o sigilo pro-
obrigações de prestar assistência a quem dela fissional. Estes quatro conceitos encontram-se
necessite, de não prejudicar o paciente e de respeitar reflectidos, de diversas formas, em todos os códi-
os seus direitos. Estes são os deveres fundamen- gos de ética médica contemporâneos. A Declara-
tais de todos os profissionais de saúde. ção de Genebra da Associação Médica Mundial
representa uma reafirmação moderna dos valores
1. O DEVER DE ASSISTÊNCIA hipocráticos60. Consiste numa promessa segundo
a qual os médicos se comprometem a fazer da
57. O dever de assistência encontra-se consa- saúde dos seus pacientes a sua principal preocu-
grado de diversas formas nas declarações e códi- pação e a dedicar-se ao serviço da Humanidade com
gos adoptados a nível nacional e internacional. consciência e dignidade.
16
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
60. Diversos aspectos do dever 61 Adoptada pela Associa- pacientes deve ser garantida autonomia e justiça
ção Médica Mundial em
de assistência estão inscritos 1986. e tanto os médicos como os prestadores de cuida-
em muitas das declarações da Associação Médica dos de saúde devem defender os direitos do
Mundial, que indicam claramente que os médicos paciente. “Sempre que a legislação, a acção do
devem fazer sempre o que for melhor para os seus governo ou de qualquer outra administração ou ins-
pacientes, incluindo detidos e presumíveis crimi- tituição negue aos pacientes tais direitos, os médi-
nosos. Este dever é muitas vezes expresso através cos devem procurar formas adequadas para os
da noção de independência profissional, que exige garantir ou restabelecer”. Os indivíduos têm
que os médicos façam sempre uso das melhores direito a cuidados de saúde adequados, indepen-
práticas clínicas, independentemente de quais- dentemente de factores como a respectiva origem
quer pressões a que possam estar sujeitos. étnica, opiniões políticas, nacionalidade, sexo, reli-
O Código Internacional de Ética Médica da As- gião ou mérito pessoal. As pessoas acusadas ou con-
sociação Médica Mundial sublinha o dever do denadas pela prática de crimes têm igual direito a
médico de ministrar tratamento “em plena inde- beneficiar de cuidados médicos ou de enfermagem
pendência técnica e moral, com compaixão e res- adequados. A Declaração de Lisboa da Associação
peito pela dignidade humana”. Salienta também o Médica Mundial sublinha que o único critério de
dever de agir apenas no interesse do paciente e discriminação aceitável reside na urgência rela-
declara que os médicos devem lealdade total aos tiva das necessidades clínicas dos pacientes.
seus pacientes. A Declaração de Tóquio e a Decla-
ração sobre a Independência e Liberdade Profis- 2. CONSENTIMENTO ESCLARECIDO
sional dos Médicos, ambas adoptadas pela
63
Associação Médica Mundial, afirmam inequivo- 62. Embora todas as declara- Adoptada em 1983.
camente que os médicos devem reivindicar a liber- ções que consagram o dever de
dade de agir no melhor interesse dos seus assistência salientem a obrigação de agir no
doentes, independentemente de quaisquer outras melhor interesse do indivíduo examinado ou tra-
considerações, nomeadamente instruções de enti- tado, tal pressupõe que os profissionais de saúde
dades empregadoras, autoridades prisionais ou saibam qual é o melhor interesse do paciente. Um
forças de segurança61. A última das declarações dos preceitos absolutamente fundamentais da
exige que os médicos se assegurem de que “dis- moderna ética médica é o que considera serem os
põem da independência profissional para repre- próprios pacientes os melhores juízes dos seus
sentar e defender as necessidades de saúde dos interesses pessoais. Isto exige que os profis-
pacientes contra todos quantos pretendam negar sionais de saúde dêem normalmente prioridade aos
ou restringir os cuidados necessários aos doentes desejos de um paciente adulto e capaz, sobre as opi-
ou feridos”. Relativamente aos enfermeiros, niões de qualquer outra pessoa, por mais compe-
encontram-se consagrados princípios semelhantes tente que esta seja para se pronunciar acerca do
no Código do Conselho Internacional de Enfer- melhor interesse do paciente em causa. Caso o
magem. paciente esteja inconsciente ou por qualquer outro
motivo incapaz de prestar consentimento válido,
61. A Associação Médica Mun- 62 Adoptada pela Associa- os profissionais de saúde deverão avaliar qual a
ção Médica Mundial em
dial exprime ainda o dever 1981; alterada pela Assem- melhor forma de proteger e promover os melho-
bleia Geral da Associação
de assistência através do reco- na sua quadragésima res interesses dessa pessoa. Os médicos e enfer-
sétima sessão, em Setembro
nhecimento dos direitos do de 1995. meiros deverão actuar em defesa dos seus
paciente. Na sua Declaração de pacientes, conforme claramente indicado em
Lisboa sobre os Direitos dos Pacientes, reconhece documentos como a Declaração de Lisboa da As-
que todas as pessoas têm direito, sem discrimi- sociação Médica Mundial e a declaração sobre o
nação, a cuidados de saúde adequados e reitera que Papel dos Enfermeiros na Salvaguarda dos Direi-
o médico deve agir sempre no melhor interesse do tos Humanos, do Conselho Internacional de
paciente62. De acordo com esta declaração, aos Enfermagem63.
18
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
d. Profissionais de saúde com dualidade de detenção têm acesso a qualquer exame ou trata-
obrigações mento médico de que necessitem. Sempre que o
detido seja menor de idade ou um adulto vulnerável,
65. Os profissionais de saúde têm uma dupla os médicos têm obrigações acrescidas para as-
obrigação: por um lado, a obrigação primordial de segurar a sua protecção. Mantém-se o dever geral
servir da melhor forma os interesses do seu de sigilo, não devendo qualquer informação relativa
paciente; por outro, o dever geral perante a socie- ao paciente ser divulgado sem o conhecimento do
dade de garantir que se faça justiça e se impeçam mesmo. Os médicos devem zelar pela confiden-
as violações de direitos humanos. Os dilemas cialidade dos ficheiros clínicos. Sempre que, no
resultantes desta dualidade de obrigações colo- âmbito das suas funções, observem acções ou
cam-se com particular acuidade nos casos dos pro- comportamentos contrários à ética, abusivos, ina-
fissionais de saúde que trabalham para a polícia, dequados ou que coloquem em risco a saúde dos
forças armadas ou outros serviços de segurança, ou pacientes, deverão denunciá-los e tomar todas as
no âmbito do sistema prisional. Os interesses da medidas necessárias, o mais rapidamente possível,
sua entidade empregadora e dos seus colegas não uma vez que qualquer atraso poderá tornar mais
médicos podem estar em conflito com os melho- difícil o protesto. Deverão comunicar o caso às
res interesses dos detidos seus pacientes. Qualquer autoridades competentes ou a instâncias interna-
que seja a sua situação laboral, todos os profissionais cionais capazes de investigar a situação, mas sem
de saúde têm, antes de mais nada, o dever pri- expor os pacientes, as suas famílias ou a si próprios
mordial de zelar pelo bem-estar das pessoas que a qualquer risco grave e previsível. Os médicos e
são chamados a examinar ou a tratar. Não podem respectivas associações profissionais deverão
ser obrigados, por contrato ou em obediência a qual- apoiar os colegas que assim procedam com base
quer outra consideração, a comprometer a sua em provas razoáveis.
independência profissional. Deverão proceder a
uma avaliação imparcial dos interesses médicos dos 2. DILEMAS RESULTANTES DA DUALIDADE DE
seus pacientes e agir em conformidade. OBRIGAÇÕES
1. PRINCÍPIOS ORIENTADORES DE TODOS OS 67. Os dilemas podem surgir caso as normas éti-
MÉDICOS COM DUALIDADE DE OBRIGAÇÕES cas e jurídicas estejam em contradição. Pode dar-
-se o caso, por exemplo, de as regras deontológicos
66. Sempre que os médicos 66 Estes princípios são obrigarem os profissionais de saúde a desobede-
extraídos da obra Doctors
estejam ao serviço de um terceiro, with Dual Obligations [em cer a determinada disposição legal, como a obri-
português: “Médicos com
têm a obrigação de assegurar Dualidade de Obrigações”], gação legal de divulgar informação médica
publicada pela Associação
que o paciente compreende Médica Britânica em 1995. confidencial relativa aos seus pacientes. As decla-
esse facto66. Os médicos devem rações nacionais e internacionais de ética médica
identificar-se perante o paciente e explicar o objec- convergem na ideia de que nenhum imperativo,
tivo de qualquer exame ou tratamento. Mesmo incluindo os imperativos legais, pode obrigar os pro-
que sejam nomeados ou pagos por uma terceira fissionais de saúde a agir em violação das normas
parte, continuam claramente vinculados pelo de deontologia médica e contra a sua consciência.
dever de assistir qualquer paciente que lhes caiba Em tais circunstâncias, os profissionais de saúde
examinar ou tratar. Têm a obrigação de se recusar devem recusar-se a cumprir a lei ou o regula-
a fazer qualquer intervenção que cause dano ao mento em causa, em lugar de comprometer deter-
paciente ou o torne física ou psicologicamente minados preceitos éticos fundamentais ou expor
vulnerável a qualquer lesão. Os médicos devem os seus pacientes a grave perigo.
assegurar-se de que o seu contrato de trabalho
não prejudica a sua independência profissional 68. Em determinados casos, duas obrigações éti-
para formular juízos clínicos. Devem também cas podem colidir entre si. Os códigos e princípios
assegurar-se de que todas as pessoas sujeitas a éticos internacionais exigem a comunicação aos
contra si ou contra a sua família. Nestas situa- car a sua função ao paciente e deixar claro que o
ções, os profissionais de saúde têm dois tipos de sigilo médico não faz habitualmente parte das
responsabilidades: perante o paciente e perante a suas funções, como faria num contexto terapêutico.
sociedade no seu conjunto a qual tem interesse em Determinados regulamentos podem não permitir
assegurar a realização da justiça e que os autores que o paciente se recuse a ser examinado, mas
de actos de tortura seja levados a julgamento. pode optar por não divulgar a causa das lesões. Os
O princípio fundamental de evitar o dano deve ser médicos legistas não devem falsificar os seus rela-
a consideração primordial na solução destes dile- tórios mas antes incluir provas imparciais, dando
mas. Os profissionais de saúde devem procurar conta claramente da existência de quaisquer indí-
soluções que promovam a justiça sem violar o cios de maus tratos, se for caso disso67.
direito do paciente à confidencialidade dos seus
dados médicos. Deverão aconselhar-se junto orga- 71. Os médicos dos estabelecimentos prisionais
nismos fidedignos – por exemplo, a associação têm como principal função a prestação de cuida-
médica nacional ou organizações não governa- dos terapêuticos aos detidos, mas cabe-lhes tam-
mentais. É também possível que, com apoio e bém examinar os reclusos que dão entrada no
encorajamento, alguns pacientes receosos acabem estabelecimento prisional após passagem pelas
por concordar na divulgação da informação, dentro mãos da polícia. No desempenho destas funções,
de determinados limites previamente acordados. podem detectar sinais evidentes de violência ina-
ceitável que os próprios reclusos não estão realis-
69. As obrigações éticas de um médico podem ticamente em posição de denunciar. Em tais
variar de acordo com o contexto em que se esta- situações, os médicos devem tomar em conside-
belece a sua relação com o paciente e a possibili- ração o melhor interesse do paciente e o seu dever
dade de este ter ou não liberdade de escolha de sigilo perante este, mas existem também fortes
quanto à divulgação da informação. Por exemplo, argumentos morais para que o médico denuncie
quando médico e doente se encontram numa indícios manifestos de maus tratos, uma vez que
situação claramente terapêutica, como aquando o recluso não está muitas vezes em condições efec-
da prestação de cuidados médicos num hospital, tivas de o fazer. Se o recluso concorda na divulga-
sobre o médico recai um forte imperativo moral de ção, não existe qualquer conflito e cria-se uma
respeitar as habituais regras de sigilo que em geral clara obrigação moral. Contudo, se o recluso não
prevalecem nas relações terapêuticas. A revelação consente que a informação seja divulgada, o
de provas de tortura obtidas nesse contexto é, con- médico deverá avaliar os riscos reais e potenciais
tudo, inteiramente adequada desde que o paciente em que o paciente incorre, em comparação com os
o não proíba. Os médicos devem revelar essas pro- benefícios que daí advêm para a população prisional
vas caso os pacientes o solicitem ou dêem o seu con- em geral e para o interesse da sociedade em pre-
sentimento esclarecido para tal. O médico deverá venir a repetição de tais abusos.
apoiar o paciente na decisão que este tome.
72. Os profissionais de saúde devem também ter
70. Os médicos legistas têm uma relação dife- presente que a comunicação da ocorrência de abu-
rente com os indivíduos que examinam e sobre eles sos às autoridades sob cuja jurisdição se presume
impende em geral a obrigação de relatar factual- que os factos tenham tido lugar pode implicar ris-
20
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
cos para o paciente ou para terceiros, incluindo o por esta última solução, o profissional de saúde deve
próprio denunciante. Os médicos não devem, de ter em conta que será provavelmente sujeito a
forma consciente, colocar os pacientes em risco de pressões para que divulgue dados identificáveis
represálias. Não se devendo abster de tomar medi- ou que poderá ver os seus ficheiros clínicos
das, devem agir com discrição e considerar a pos- apreendidos. Embora não existam soluções fáceis,
sibilidade de comunicar o caso a uma autoridade os profissionais de saúde devem orientar-se pela
fora da jurisdição imediata da estrutura directa- premissa básica de evitar o dano, sobre quaisquer
mente em causa ou, se isto não comportar previ- outras considerações, devendo procurar aconse-
síveis riscos para o médico ou paciente, apresentar lhamento, sempre que possível, junto de organis-
uma denúncia anónima. É evidente que, se optar mos médicos nacionais ou internacionais.
*03
Inquéritos legais sobre a prática
da tortura
73. O direito internacional impõe aos Estados a tência e independência pessoal. Deverão, em par-
obrigação jurídica de investigar imediatamente e ticular, ser independentes de quaisquer suspeitos
de forma imparcial todos os alegados casos de tor- e das instituições ou agências a que estes per-
tura que ocorram em territórios sob a sua jurisdi- tençam.
ção. Sempre que os elementos de prova o
justifiquem, o Estado em cujo território se encon- 75. A secção A do presente capítulo descreve os
tra uma pessoa suspeita da prática da tortura ou objectivos gerais de um inquérito de tortura.
de participação num acto deste tipo deverá extra- A secção B enuncia os princípios fundamentais
ditar o presumível autor para outro Estado com de uma investigação e documentação eficazes da
competência para julgar o caso ou submeter o tortura e outras penas ou tratamentos cruéis,
caso às suas próprias autoridades competentes desumanos ou degradantes. A secção C sugere
para exercício da acção penal em conformidade com procedimentos para a realização dos inquéritos
o direito criminal nacional ou local. Competência, sobre alegados casos de tortura, em primeiro lugar
imparcialidade, independência, prontidão e rigor relativamente à determinação da autoridade res-
são os princípios fundamentais de qualquer ponsável pela condução do inquérito, depois
inquérito eficaz sobre incidentes de tortura. Estes quanto à recolha de testemunhos orais da presu-
elementos podem adaptar-se a qualquer sistema mível vítima e testemunhas, bem como à recolha
jurídico e deverão orientar todas as investigações de provas materiais. A secção D fornece directri-
relativas a alegados casos de tortura. zes para o estabelecimento de uma comissão de
inquérito independente. Estas directrizes foram
74. Caso os procedimentos de inquérito se reve- formuladas com base na experiência de diversos
lem inadequados devido a escassez de recursos países que procederam à criação de comissões
ou falta de capacidade técnica, possível falta de independentes para investigar alegadas violações
imparcialidade, indícios da existência de abusos sis- de direitos humanos, nomeadamente execuções
temáticos ou outros motivos relevantes, os Estados extrajudiciais, tortura e desaparecimentos forçados.
deverão garantir que as investigações sejam leva-
das a cabo por uma comissão de inquérito inde- a. Objectivos de um inquérito de tortura
pendente ou mecanismo análogo. Os membros
desta comissão deverão ser seleccionados com 76. O objectivo geral de um inquérito consiste em
base na sua reconhecida imparcialidade, compe- apurar os factos relativos a alegados casos de tor-
24
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
80. As alegadas vítimas de tortura ou maus tra- particular, obter o consentimento esclarecido da pes-
tos e seus representantes legais deverão ser infor- soa em causa antes da realização de qualquer
mados da realização de qualquer audiência e ter exame. Os exames devem ser efectuados em con-
acesso a ela, bem como a toda a informação rela- formidade com as regras estabelecidas de prática
tiva ao inquérito, e dispor do direito de apresentar médica. Em particular, os exames deverão ser efec-
outras provas. tuados em privado, sob o controlo do perito
médico e nunca na presença de agentes de segu-
81. Nos casos em que os pro- 69 Vide nota 68. rança ou outros funcionários governamentais.
cedimentos de inquérito se O perito médico deverá elaborar imediatamente
revelem inadequados por falta de capacidade téc- um relatório escrito rigoroso. Este relatório deverá
nica, possível falta de imparcialidade, indícios da incluir, no mínimo, os seguintes elementos:
existência de abusos sistemáticos ou outros moti-
vos relevantes, os Estados deverão garantir que as a) As circunstâncias em que decorre o exame -
investigações sejam levadas a cabo por uma - nome da pessoa examinada e nome e função de
comissão de inquérito independente ou meca- todos quantos estejam presentes no exame; hora
nismo análogo. Os membros desta comissão e data exactas do exame; localização, natureza e
deverão ser seleccionados com base na sua reco- morada (incluindo, se necessário, a sala) da insti-
nhecida imparcialidade, competência e inde- tuição onde se realiza o exame (por exemplo, esta-
pendência pessoal. Deverão, em particular, ser belecimento prisional, clínica, casa particular);
independentes de quaisquer suspeitos e das insti- condições em que se encontra a pessoa no
tuições ou agências a que estes pertençam. A comis- momento do exame (por exemplo, natureza de
são deverá ser dotada de competência para obter quaisquer restrições que lhe tenham sido impos-
toda a informação necessária e deverá conduzir o tas aquando da chegada ao local do exame ou no
inquérito em conformidade com os Princípios decurso do mesmo, presença de forças de segurança
sobre a Investigação e Documentação Eficazes da durante o exame, comportamento das pessoas que
Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, acompanham o detido, ameaças proferidas contra
Desumanos ou Degradantes69. Num prazo razoá- a pessoa que efectua o exame) e quaisquer outros
vel, deverá ser elaborado um relatório escrito do qual factores relevantes;
conste o âmbito do inquérito instaurado, os pro- b) Historial – registo detalhado dos factos rela-
cedimentos e métodos utilizados na apreciação tados pela pessoa em causa no decurso do exame,
das provas, bem como as conclusões e recomen- incluindo os alegados métodos de tortura ou maus
dações elaboradas com base nos factos apurados tratos, momento em que se alega ter ocorrido a tor-
e no direito aplicável. Este relatório deverá ser tor- tura ou os maus tratos e todos os sintomas físicos
nado público logo que se encontre concluído. O rela- ou psicológicos que a pessoa afirme sofrer;
tório deverá também descrever em detalhe os c) Observações físicas e psicológicas – registo de
factos específicos que se provou terem acontecido todos os resultados obtidos na sequência do
e as provas com base nas quais foram apurados, exame, a nível físico e psicológico, incluindo os tes-
bem como indicar os nomes das testemunhas que tes de diagnóstico apropriados e, sempre que pos-
prestaram declarações, à excepção daquelas cuja sível, fotografias a cores de todas as lesões;
identidade não tenha sido divulgada para sua pró- d) Parecer – interpretação quanto à relação pro-
pria protecção. O Estado deverá dar resposta ao rela- vável entre os resultados do exame físico e psico-
tório num prazo razoável e, se necessário, indicar lógico e a eventual ocorrência de tortura ou maus
as medidas a adoptar na sequência do mesmo. tratos. Deverá ser formulada uma recomendação
quanto à necessidade de qualquer tratamento
82. Os peritos médicos envolvidos na investiga- médico ou psicológico ou exame ulterior;
ção da tortura ou maus tratos deverão pautar a e) Autoria – o relatório deverá identificar clara-
sua conduta, em todos os momentos, de acordo com mente as pessoas que procederam ao exame e
os princípios éticos mais rigorosos, devendo, em deverá ser assinado.
26
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
inquérito. Os investigadores deverão alertar as tes- ponsável pelo interrogatório da alegada vítima de
temunhas para as consequências do seu envolvi- tortura, dever-se-á prestar particular atenção às
mento no inquérito e informá-las de quaisquer preferências manifestadas por esta quanto a um
desenvolvimentos subsequentes no caso que as interlocutor do mesmo sexo, com as mesmas ori-
possam afectar. gens culturais ou com a capacidade de comunicar
na sua língua materna. O investigador em causa
(a) Consentimento esclarecido e outras deverá ter formação ou experiência prévia na
salvaguardas da presumível vítima documentação da tortura e no trabalho com víti-
mas de traumas, nomeadamente de tortura. Caso
88. Desde o início, a alegada vítima deverá ser não seja possível designar um investigador com
informada, sempre que possível, da natureza do pro- formação ou experiência nestas áreas, a pessoa
cedimento, das razões pelas quais é solicitado o seu escolhida deverá fazer tudo quanto esteja ao seu
depoimento e da utilização que poderá eventual- alcance para se informar a respeito da tortura e res-
mente ser dada às provas apresentadas. Os inves- pectivas consequências físicas e mentais, antes de
tigadores deverão explicar à pessoa quais os proceder ao interrogatório da presumível vítima.
elementos do inquérito que serão tornados públi- Para isso, poderá recorrer a inúmeras fontes,
cos e quais permanecerão em sigilo. A vítima tem nomeadamente o presente manual, diversas obras
o direito de se recusar a cooperar na totalidade ou de formação profissional, cursos de formação e
em parte da investigação. Deverão ser feitos todos conferências profissionais. O investigador deverá
os esforços para ir ao encontro da sua disponibi- também ter acesso ao aconselhamento e à assis-
lidade e dos seus desejos. A alegada vítima de tor- tência de peritos internacionais, ao longo de todo
tura deverá ser regularmente informada acerca o inquérito.
dos progressos da investigação, devendo também
ser notificada das principais audiências que se (c) Contex to da investigação
realizem no âmbito do inquérito ou julgamento do
caso. Os investigadores deverão informar a ale- 90. Os investigadores deverão analisar cuidado-
gada vítima da detenção do presumível autor do samente o contexto em que se desenvolve o seu tra-
crime. Às alegadas vítimas deverão também ser balho, tomar as necessárias precauções e garantir
fornecidos os contactos de grupos de apoio e tra- o respeito das salvaguardas que se impõem. Ao
tamento que lhes possam ser úteis. Os investiga- interrogar pessoas que se encontram ainda detidas
dores deverão colaborar com as associações e ou em situações análogas que as tornam vulnerá-
grupos envolvidos na luta contra a tortura a nível veis a represálias, o investigador deverá ter o cui-
nacional e local, a fim de assegurar o intercâmbio dado de não as colocar em perigo. Nos casos em
recíproco de informação e experiência neste domí- que o simples facto de falar com o investigador seja
nio. susceptível colocar alguém em risco, poderá ser pre-
ferível optar por uma “entrevista de grupo” em
(b) Selecção do investigador vez de uma conversa individual. Sempre que a
entrevista se realize em privado, o investigador
89. As autoridades responsáveis pela condução do deverá escolher um local onde a pessoa se sinta à
processo de inquérito deverão designar uma pes- vontade para falar livremente.
soa como principal responsável pelo interrogató-
rio da presumível vítima. Embora esta última 91. Os inquéritos podem decorrer em contextos
possa ter necessidade de discutir o seu caso com políticos muito díspares, o que implica importan-
profissionais das áreas do Direito e da saúde, a tes diferenças na forma como as investigações
equipa de investigação deverá envidar todos os devem ser conduzidas. As normas jurídicas que
esforços para evitar que a pessoa se veja obrigada enquadram o processo de inquérito também
a repetir desnecessariamente a sua história. Ao variam em função do contexto. Por exemplo, uma
seleccionar um investigador como principal res- investigação que culmine no julgamento do alegado
28
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
95. Um dos métodos que se podem utilizar para através de dispositivos de distorção da imagem ou
garantir alguma segurança às pessoas entrevista- da voz ou em circuito fechado de televisão. Estas
das, incluindo pessoas detidas em países em situa- medidas deverão ser compatíveis com os direitos
ção de conflito, consiste em registar de forma do arguido.
segura as identidades das pessoas contactadas, de
forma a que os investigadores se possam certificar (e) Utilização de intérpretes
da respectiva segurança em ulteriores visitas. Os
investigadores devem ter a possibilidade de falar 97. Trabalhar com intérpretes no âmbito de pro-
com qualquer pessoa, livremente e em privado, e cessos de investigação da tortura não é fácil,
devem poder voltar a visitar as mesmas pessoas (daí mesmo tratando-se de profissionais. Nem sempre
a necessidade de registar as respectivas identida- é possível dispor de intérpretes para todas as dife-
des) sempre que necessário. Nem todos os Estados rentes línguas e dialectos, podendo por vezes ser
aceitam estas condições e os investigadores necessário recorrer à interpretação de pessoas da
podem encontrar dificuldades para fazer valer mesma família ou grupo cultural da pessoa em
estas garantias. Caso pareça provável que a pres- causa. Esta não é a melhor solução, uma vez que
tação de depoimento coloque em perigo as teste- a pessoa pode não se sentir à-vontade para falar
munhas, o investigador deverá tentar obter meios acerca da sua experiência de tortura através de
de prova alternativos. alguém que conheça. O melhor seria que o intér-
prete pertencesse sempre à equipa de investiga-
96. Os reclusos estão potencialmente expostos a ção e estivesse familiarizado com as questões
maiores perigos do que as pessoas em liberdade relativas à tortura (vide capítulos IV, secção I, e VI,
e a sua reacção pode variar segundo as circuns- secção C.2).
tâncias. Nalguns casos, os reclusos podem colocar-
-se em perigo inadvertidamente, ao falar com (f ) Informação a obter da presumível vítima
excessiva veemência, pensando que estão protegidos
pela mera presença de um investigador “externo”, 98. O investigador deverá tentar obter, através do
o que pode não ser o caso. Noutras situações, os depoimento da presumível vítima, o máximo de ele-
investigadores podem deparar-se com um “muro mentos possível quanto aos aspectos que a seguir
de silêncio”, uma vez que o recluso está demasiado se indicam (vide capítulo IV, secção E):
assustado para confiar em qualquer pessoa,
mesmo depois de lhe terem sido dadas garantias i) Circunstâncias conducentes à tortura,
de confidencialidade. Neste último caso, pode ser nomeadamente a captura ou o rapto e a detenção;
preciso começar com “entrevistas de grupo”, para ii) Data e hora aproximada da ocorrência dos
explicar claramente o âmbito e objectivos da inves- actos de tortura, incluindo o mais recente. Pode não
tigação, oferecendo depois a oportunidade de uma ser fácil estabelecer com precisão estes elementos,
conversa em privado com as pessoas que desejem uma vez que a tortura pode ter sido perpetrada em
falar. Se o medo de represálias, justificado ou não, diversos locais e por diferentes pessoas (ou grupos
for demasiado grande, pode ser necessário entre- de pessoas). Por vezes será necessário recolher
vistar todos os reclusos de um determinado esta- depoimentos separados sobre cada um dos locais.
belecimento, para não chamar a atenção para É natural que as sequências cronológicas sejam
nenhum deles em particular. Sempre que o inqué- pouco exactas e por vezes mesmo confusas: sob tor-
rito conduzir à instauração de processo criminal tura, dificilmente se conserva a noção do tempo.
ou outra forma de divulgação pública dos factos, A recolha de depoimentos separados relativa-
o investigador deverá recomendar medidas para mente a cada um dos locais pode ajudar a obter uma
garantir a segurança da presumível vítima, por imagem global da situação. Muitas vezes, os
exemplo suprimindo o seu nome e outros ele- sobreviventes de tortura não sabem para onde
mentos de identificação pessoal dos registos públi- foram levados, pois estavam de olhos vendados
cos e dando à pessoa a oportunidade de depor ou semi-inconscientes. Reunindo depoimentos
30
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
3. RECOLHA E PRESERVAÇÃO DAS PROVAS que sejam encontrados, caso a alegada situação
MATERIAIS de tortura seja suficientemente recente para que
tais elementos de prova possam ser relevantes.
101. O investigador deverá recolher tantos ele- Quaisquer dispositivos que possam ter sido utili-
mentos de prova material quantos possível para zados para infligir a tortura, quer especificamente
documentar um caso ou padrão sistemático de concebidos para esse fim quer usados circuns-
tortura. Um dos aspectos mais importantes de tancialmente, deverão também ser recolhidos e
uma investigação rigorosa e imparcial é a recolha preservados. Dever-se-ão ainda recolher e preser-
e análise de provas materiais. Os investigadores var quaisquer impressões digitais encontradas no
deverão documentar todas as diligências efectua- local, caso o alegado acto de tortura seja suficien-
das na recolha e preservação das provas materiais temente recente para que as mesmas possam ser
a fim de poderem utilizar as mesmas em proces- relevantes. Deverá ser elaborada uma planta à
sos judiciais subsequentes, nomeadamente de escala das instalações ou locais onde se supõe que
índole penal. A maior parte dos casos de tortura os actos de tortura tenham ocorrido, na qual
ocorre em locais onde as pessoas se encontram devem ser assinalados todos os detalhes perti-
sujeitas a qualquer forma de detenção. É muitas nentes, tais como a localização de cada um dos
vezes difícil, senão impossível, ter inicialmente andares do edifício, salas, entradas, janelas, mobí-
acesso irrestrito a esses locais e aí proceder à reco- lia e terreno circundante. Dever-se-ão tirar foto-
lha de provas. Os investigadores deverão ser auto- grafias a cores de cada um destes elementos.
rizados pelo Estado a ter livre acesso a quaisquer Deverá ser registada a identidade de todas as pes-
locais ou instalações e a observar o local onde se soas presentes no alegado cenário de tortura,
suspeita que a tortura tenha acontecido. Todas as incluindo os seus nomes completos, moradas,
pessoas e autoridades com competência para números de telefone e outros contactos. Se pos-
investigar o caso deverão coordenar os seus esfor- sível e desde que os factos alegados sejam suficien-
ços para realizar uma inspecção cuidadosa do ale- temente recentes para o justificar, as roupas
gado local de tortura. Os investigadores deverão ter usadas pela presumível vítima aquando do acto de
livre acesso a todos os presumíveis cenários de tortura deverão ser inventariadas e testadas em
tortura. Nomeadamente, dever-lhes-á ser garan- laboratório, a fim de detectar eventuais vestígios
tido o acesso a todas as áreas abertas ou fechadas, de fluidos corporais e outras provas materiais.
por exemplo edifícios, veículos, gabinetes, celas de Dever-se-ão interrogar todas as pessoas presentes
prisão ou outras instalações onde se suspeita que nas instalações ou áreas sob investigação, a fim de
a tortura tenha tido lugar. determinar se presenciaram ou não os alegados
actos de tortura. Quaisquer papéis, registos ou
102. Qualquer área ou edifício sob investigação documentos relevantes deverão ser guardados
deverá ser encerrado a fim de evitar a destruição para utilização como prova e sujeição a análise
ou o desaparecimento de quaisquer provas mate- grafológica.
riais. Apenas os investigadores e seus auxiliares
deverão ter acesso às áreas designadas como locais 4. PROVAS MÉDICAS
sob investigação, que deverão ser cuidadosamente
examinadas a fim de recolher todas as provas 103. O investigador deverá providenciar para que
materiais existentes. Todos os elementos de prova a alegada vítima seja sujeita a exame médico. É de
deverão ser devidamente recolhidos, manuseados, particular importância que este exame se realize
embalados, etiquetados e armazenados em local atempadamente. O exame médico deverá ter sem-
seguro para evitar qualquer eventual contamina- pre lugar, independentemente do lapso de tempo
ção, alteração ou extravio. Deverão também ser decorrido desde o acto de tortura mas, se este tiver
colhidas, etiquetadas e devidamente acondiciona- supostamente ocorrido nas seis semanas anterio-
das quaisquer amostras de fluidos corporais (por res, dever-se-á proceder ao exame com a máxima
exemplo, sangue ou sémen), cabelos, fibras e fios urgência a fim de evitar o desaparecimento de
32
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
à comissão alterar o seu próprio mandato con- excluir liminarmente da composição da comissão,
forme necessário. É, contudo, importante que a por exemplo, membros de grandes organizações a
comissão mantenha o público informado a res- que a vítima também pertença ou pessoas as-
peito de quaisquer alterações introduzidas no seu sociadas a organizações que se dedicam ao trata-
mandato. mento e reabilitação das vítimas de tortura;
b) Competência – os membros da comissão
2. COMPETÊNCIAS DA COMISSÃO deverão ser capazes de avaliar e ponderar os ele-
mentos de prova e de formular juízos fundamen-
107. Os Princípios sobre a Investigação e Documen- tados a respeito dos mesmos. Se possível, as
tação Eficazes da Tortura e Outras Penas ou Tra- comissões de inquérito deverão incluir na sua
tamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes composição pessoas com conhecimentos especia-
enunciam, em linhas gerais, as competências que lizados nos domínios do Direito, medicina e outras
devem ser atribuídas às comissões de inquérito. áreas relevantes;
Concretamente, estas necessitam de dispor de c) Independência – os membros da comissão
autoridade para: deverão ser reconhecidos no seio da comunidade
a que pertençam como pessoas honestas e justas.
a) Obter toda a informação necessária à inves-
tigação, incluindo autoridade para obter o depoi- 109. A objectividade da investigação e as conclu-
mento de testemunhas sob cominação legal, sões da comissão de inquérito podem depender,
ordenar a produção de prova documental, entre outros aspectos, do número de membros
incluindo dossiers oficiais e registos médicos, e pro- que compõem esta última. De forma geral, é pre-
teger testemunhas, familiares das vítimas e outras ferível que a comissão seja composta por três ou
fontes de informação; mais membros e não por apenas um ou dois. Por
b) Tornar públicas as suas conclusões; princípio, um inquérito relativo a um caso de tor-
c) Realizar todas as visitas necessárias à inves- tura não deverá ser realizado por um único inves-
tigação, incluindo aos locais onde se suspeita que tigador isolado, que não estará geralmente em
a tortura tenha ocorrido; condições de investigar o caso em profundidade.
d) Recolher provas apresentadas por testemu- Para além disso, ser-lhe-á difícil tomar decisões con-
nhas ou organizações que se encontrem fora do troversas e importantes sem qualquer tipo de
país. debate e estará particularmente vulnerável a pres-
sões exteriores, nomeadamente do Estado.
3. CRITÉRIOS PARA A SELECÇÃO DOS MEMBROS
DA COMISSÃO 4. PESSOAL DA COMISSÃO
108. Os membros da comissão deverão ser selec- 110. As comissões de inquérito deverão poder
cionados em função da sua reconhecida impar- contar com serviços de aconselhamento impar-
cialidade, competência e independência pessoal. ciais e especializados. Caso a investigação incida
Estes critérios definem-se da seguinte forma: sobre factos que impliquem a responsabilização do
Estado, poderá ser aconselhável fazer apelo a
a) Imparcialidade – os membros da comissão assessores independentes da estrutura do Minis-
não devem ter relações próximas com qualquer tério da Justiça. O principal responsável pela asses-
indivíduo, entidade pública, partido político ou soria da comissão deverá estar à margem de
outra organização potencialmente implicados na qualquer influência política, por ter vínculo sólido
prática da tortura. Não deverão também ser dema- à função pública ou ser um jurista totalmente
siado próximos de qualquer organização ou grupo independente. A investigação requer muitas vezes
de que a vítima seja membro, uma vez que isto a assessoria de peritos especializados. A comissão
poderá pôr em causa a credibilidade da comissão. deverá ter acesso aos serviços de peritos em áreas
Tal não deverá, contudo, servir de pretexto para como a patologia, medicina legal, psiquiatria, psi-
34
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
podem ser obrigadas a testemunhar contra si pró- seja unânime nas suas conclusões, os membros em
prias. A comissão deverá ter a oportunidade de minoria deverão fazer constar a sua opinião diver-
interrogar eficazmente todos os depoentes. As par- gente. O relatório da comissão de inquérito deverá
tes no inquérito deverão estar autorizadas a submeter conter, no mínimo, a seguinte informação:
perguntas escritas à comissão.
a) Âmbito do inquérito e mandato da comissão;
10. AVALIAÇÃO DAS PROVAS b) Procedimentos e métodos utilizados na apre-
ciação das provas;
116. A comissão deverá apreciar todas as infor- c) Lista de todas as pessoas que prestaram
mações e elementos de prova recebidos a fim de declarações, com indicação da respectiva idade e
determinar a sua fiabilidade e probidade. Na ava- sexo, à excepção daquelas cuja identidade não
liação dos testemunhos orais, a comissão deverá ter tenha sido divulgada por razões de segurança ou
em conta a atitude e credibilidade geral do que tenham prestado depoimento à porta fechada,
depoente, devendo ser sensível às questões sociais, e elementos de prova recolhidos;
culturais e de género que afectam o seu comporta- d) Momento e lugar de cada sessão (estes ele-
mento. Um elemento de prova corroborado por mentos pode constar de anexo ao relatório);
diversas fontes terá um valor probatório mais ele- e) Contexto em que se desenrola o inquérito,
vado e dará credibilidade a eventuais depoimentos nomeadamente condições sociais, políticas e eco-
indirectos. A comissão deverá avaliar cuidadosa- nómicas relevantes;
mente a fiabilidade dos depoimentos indirectos f) Factos concretos ocorridos e provas com base
antes de os aceitar como prova. Dever-se-á também nas quais foram apurados;
ter cuidado com os testemunhos não sujeitos a con- g) Legislação em que se baseia o trabalho da
tra-interrogatório. Muitas vezes, os depoimentos comissão;
feitos à porta fechada e preservados em registo h) Conclusões tiradas pela comissão com base
fechado, ou pura e simplesmente não registados, não nos factos apurados e no direito aplicável;
são sujeitos a contra-interrogatório, podendo por i) Recomendações formuladas com base nas
isso ter um valor probatório mais reduzido. conclusões da comissão.
*04
Considerações gerais para as entrevistas
119. Ao entrevistar uma pessoa que alega ter sido identificar as necessidades terapêuticas dos sobre-
vítima de tortura, é necessário ter em consideração viventes e documentar investigações em matéria
uma série de questões e factores práticos. Estas con- de direitos humanos.
siderações são válidas para todas as pessoas que
contactam com a vítima, sejam advogados, médicos, 121. O objectivo do depoimento escrito ou oral do
psicólogos, psiquiatras, defensores de direitos médico consiste em proporcionar um parecer
humanos ou quaisquer outros profissionais. A sec- especializado sobre até que ponto as conclusões
ção seguinte passa em revista este “terreno comum” médicas corroboram ou não as alegações de maus
e tenta situá-lo nos diversos contextos que podem tratos do paciente e transmitir eficazmente as con-
ser encontrados no âmbito da investigação da tor- clusões e interpretações do perito médico ao poder
tura e entrevista das presumíveis vítimas. judicial ou outras autoridades competentes. Para
além disso, o depoimento do médico serve muitas
a. Objectivos do inquérito, exames vezes para informar as autoridades judiciais,
e documentação outros funcionários públicos e as comunidades
local e internacional a respeito das sequelas físicas
120. O objectivo geral do inquérito consiste em e psicológicas da tortura. O médico que procede ao
apurar os factos relativos ao alegado incidente de exame deverá estar apto a fazer o seguinte:
tortura (vide capítulo III, secção D). Os exames
médicos podem fornecer importantes elementos a) Avaliar eventuais lesões e outros sintomas de
de prova utilizáveis no âmbito de processos legais, maus tratos, mesmo na ausência de denúncias
nomeadamente: concretas apresentadas por particulares ou pelas
autoridades policiais ou judiciais;
a) Identificação dos responsáveis pelo acto de tor- b) Documentar os indícios físicos e psicológicos
tura e sua apresentação à justiça; das lesões e outros sintomas de maus tratos;
b) Fundamentação de pedidos de asilo político; c) Avaliar a possível correlação entre as obser-
c) Apuramento das condições sob as quais os vações médicas e os maus tratos de que o paciente
funcionários públicos possam ter obtido falsas alega ter sido vítima;
confissões; d) Avaliar a possível correlação entre as con-
d) Averiguação de práticas de tortura regionais. clusões do exame efectuado ao paciente e as infor-
Os exames médicos podem também servir para mações disponíveis quanto aos métodos de tortura
38
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
tou, em geral um agente do 70 Vide Regras Mínimas um estabelecimento prisional ou esquadra de polí-
para o Tratamento dos
Ministério Público. Sempre que Reclusos (capítulo I.B). cia sem saberem exactamente o que estão a fazer.
o relatório seja solicitado pelo 71 Anónimo, “Health care Arriscam-se a obter uma imagem falsa ou incom-
for prisoners: implications of
detido ou seu advogado, dever- Kalk’s refusal” [em portu-
guês: Cuidados de saúde
pleta da realidade. Arriscam-se a colocar em
-lhe-á ser fornecido. O médico dos reclusos: as implicações
da recusa de Kalk], 1991,
perigo reclusos que podem nunca mais vir a visi-
que procede ao exame deverá 337, pp.647 e 648. tar. Arriscam-se ainda a fornecer um álibi aos
guardar cópias de todos os rela- autores de tortura, que podem utilizar o argu-
tórios. As associações médicas nacionais ou mento de que pessoas do exterior visitaram a sua
comissões de inquérito podem decidir inspec- prisão e nada detectaram.
cionar os relatórios médicos a fim de verificar se os
médicos, em particular aqueles que são funcio- 127. As visitas devem ser deixadas para investi-
nários públicos, respeitam as garantias proces- gadores que as possam levar a cabo, e efectuar o
suais aplicáveis e normas relativas à recolha de respectivo seguimento, de forma profissional e
prova. Os relatórios devem ser enviados à organi- que tenham reunido algumas garantias proces-
zação em causa, desde que oferecidas as necessá- suais para o seu trabalho. A ideia de que algumas
rias garantias de independência e sigilo. Nenhuma provas são melhores do que provas nenhumas não
cópia do relatório deverá, em caso algum, ser é válida no trabalho com reclusos que podem ser
enviada a funcionários responsáveis pela aplicação colocados em risco por prestar depoimento. As
da lei. É obrigatório que o detido seja sujeito a visitas efectuadas a instalações de detenção por
exame médico no momento da detenção, bem pessoas bem intencionadas em representação de
como a novo exame e avaliação no momento em instituições públicas e não governamentais podem
que é libertado70. Deverá também ter acesso a um ser difíceis e, pior ainda, podem ser contraprodu-
advogado no momento do exame médico. Na centes. Relativamente à questão que nos interessa,
maioria das situações de detenção em estabeleci- há que distinguir entre uma visita realizada de
mento prisional, não é admitida qualquer pre- boa fé e necessária ao inquérito, que não está em
sença exterior durante o exame. Nestes casos, deve causa, e uma visita não essencial que vá além
ficar estabelecido que o médico da prisão respeita disso e que, se efectuada por não especialistas,
rigorosamente a deontologia profissional, devendo pode ter mais desvantagens do que vantagens
ser capaz de desempenhar os seus deveres pro- num país que pratica a tortura. Às comissões inde-
fissionais com independência face a quaisquer pendentes constituídas por juristas e médicos
influências de terceiros. Caso o exame médico- deverá ser garantido acesso periódico às prisões e
-legal corrobore a alegação de tortura, o detido não outros locais de detenção, para que possam efec-
deverá regressar ao local de detenção, devendo tuar visitas a tais locais.
antes comparecer perante o Ministério Público ou
o juiz para determinação da sua situação jurídica71. 128. As entrevistas com pessoas que estão ainda
detidas, e possivelmente mesmo nas mãos daque-
c. Visitas oficiais a centros de detenção les que as torturaram, são evidentemente muito
diferentes das entrevistas realizadas na privaci-
126. As visitas aos reclusos não devem efectuar- dade e segurança de um estabelecimento de saúde
-se de ânimo leve. Em determinados casos, pode externo e seguro. Nunca é demais salientar a
ser muitíssimo difícil realizá-las de forma objec- importância de ganhar a confiança da pessoa em
tiva e profissional, particularmente em países tais situações. Contudo, é ainda mais importante
onde ainda se pratica a tortura. Uma única visita, nunca trair essa confiança, mesmo involuntaria-
sem seguimento que garanta a ulterior segurança mente. Devem ser tomadas todas as precauções para
das pessoas contactadas, pode ser perigosa. Por que os detidos se não coloquem a si próprios em
vezes, uma visita não seguida pode ser mesmo perigo. Em particular, deve perguntar-se aos deti-
pior do que nenhuma visita. Investigadores bem dos vítimas de tortura se a informação obtida pode
intencionados podem cair na armadilha de visitar ser utilizada e de que maneira. Os detidos podem
40
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
133. Uma pessoa entrevistada N.T.29 Espancamento da gos e familiares, trabalho ou estudos, profissão, inte-
planta dos pés, vide infra.
às oito horas da tarde merece resses, planos futuros e utilização de álcool ou
tanta atenção como uma pessoa vista às oito horas drogas. Deverá também ser obtida informação que
da manhã. Os investigadores deverão assegurar-se permita estabelecer o perfil psicossocial da pessoa
de que dispõem de tempo suficiente e não se posterior à detenção. Caso a pessoa se encontre
sobrecarregam a si próprios com trabalho. É ainda detida, será suficiente fazer um historial
injusto que a entrevista à pessoa das oito da noite mais resumido do seu percurso pessoal, incidente
(que além do mais aguardou durante todo o dia para sobre a profissão e habilitações literárias. Inter-
poder contar a sua história) seja encurtada por rogue também acerca de quaisquer medicamentos
motivos de tempo. Da mesma forma, o décimo que o detido tome por receita médica; esta infor-
nono relato de falangaN.T.29 merece tanta atenção mação é particularmente importante porque o
como o primeiro. Os reclusos que raramente con- detido pode ser privado dessa medicação, com
tactam pessoas do exterior podem nunca ter tido consequências graves para a sua saúde. É impor-
a oportunidade de contar a alguém o seu caso. tante obter dados acerca das actividades políticas,
É uma ideia errada pensar que os reclusos falam convicções e opiniões da pessoa na medida em
constantemente uns com os outros acerca das que essa informação pode ajudar a explicar as cau-
suas experiências de tortura. Os reclusos que não sas da detenção ou tortura, mas será preferível
fornecem qualquer elemento novo à investigação formular questões indirectas, perguntando à pes-
merecem tanto tempo como os restantes. soa do que foi acusada ou porque pensa ter sido
detida ou torturada.
d. Técnicas de interrogatório
2. RESUMO DA DETENÇÃO E DOS MAUS TRATOS
134. Existem algumas regras básicas que deverão
ser respeitadas (vide capítulo III, secção C.2, g)). 136. Antes de entrar nos detalhes do caso, o
A obtenção de informação é certamente impor- investigador deverá procurar obter um resumo do
tante, mas a pessoa entrevistada é-o ainda mais e mesmo, incluindo datas, locais e duração da
ouvir é mais importante do que fazer perguntas. detenção, frequência e duração das sessões de
Se o entrevistador se limita a formular perguntas, tortura. Este resumo permitirá utilizar o tempo
apenas obterá respostas. Para o recluso, pode ser da forma mais eficaz. Em determinados casos
mais importante falar acerca da família do que da em que as vítimas são torturadas em diversas
tortura. Há que ter em conta este aspecto, pelo que ocasiões, podem lembrar-se do que se passou
deverá ser disponibilizado algum tempo para a mas não se conseguem recordar do local e
discussão de questões pessoais. A tortura, parti- momento exacto de cada uma das sessões de tor-
cularmente de natureza sexual, é um assunto tura. Nestas circunstâncias, pode ser aconselhá-
muito íntimo e poderá não ser abordado antes da vel solicitar uma descrição dos factos por
segunda visita ou mesmo mais tarde. Os indivíduos métodos de tortura e não a sequência de aconte-
não devem ser forçados a falar sobre qualquer cimentos durante cada um dos incidentes de
forma de tortura se não se sentirem à-vontade detenção. Da mesma forma, ao ouvir um relato
para o fazer. convém muitas vezes determinar, tanto quanto
possível, “o que aconteceu onde”. Os locais de
e. Documentação dos antecedentes detenção são administrados por diferentes forças
de segurança, corpos policiais ou forças armadas,
1. PERFIL PSICOSSOCIAL E SITUAÇÃO ANTERIOR e os acontecimentos ocorridos em cada local
À DETENÇÃO podem dar uma ideia global do sistema de tortura.
A determinação dos locais onde a tortura acon-
135. Caso a alegada vítima de tortura já não se teceu pode ajudar a reconstruir as histórias de
encontre detida, o examinador deverá interrogá-la várias pessoas diferentes, o que poderá facilitar
acerca da sua vida quotidiana, relações com ami- consideravelmente todo o inquérito.
42
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
depois da suspensão). O examinador deverá ter 142. As incongruências no relato da pessoa
presente que tudo quanto a vítima diga acerca da podem dever-se a qualquer destes factores ou a
duração da sessão de tortura é subjectivo e pode não todos eles. Se possível, o investigador deve pedir
estar correcto, uma vez que a sujeição a tortura faz novos esclarecimentos. Se isto não for possível,
geralmente perder a noção do tempo e do espaço. deverá procurar outras provas que confirmem ou
Foi a pessoa sexualmente molestada de qualquer infirmem a história. Um conjunto de elementos
forma? Tente saber o que foi dito no decorrer da coerentes em apoio das alegações da pessoa pode
sessão de tortura. Por exemplo, ao torturar a corroborar e esclarecer a história. Embora o indi-
vítima com choques eléctricos nos órgãos genitais, víduo possa não estar em condições de fornecer
os autores do acto dizem muitas vezes à vítima que todos os pormenores pretendidos pelo investiga-
ela nunca mais vai poder ter relações sexuais nor- dor, como a data, hora e frequência dos actos de
mais ou algo semelhante. Para mais pormenores tortura, e a exacta identidade dos seus autores, ao
quanto às avaliações de casos de alegada tortura longo do tempo do seu testemunho acabarão por
sexual, incluindo a violação, vide capítulo V, sec- emergir e articular-se os elementos essenciais do
ção D.8. caso.
141. Os sobreviventes de actos de tortura podem 143. Depois de ouvido o relato detalhado dos
ter dificuldade em contar os detalhes específicos acontecimentos, é aconselhável passar em revista
do seu caso por diversos motivos importantes, outros métodos de tortura a que a pessoa possa ter
nomeadamente os seguintes: sido sujeita. É fundamental conhecer os métodos
de tortura utilizados na região em causa e, em
a) Factores que operaram durante o próprio função deles, adaptar as directivas locais. O inter-
acto de tortura, tais como o facto de a vítima ter tido rogatório a respeito de determinadas formas espe-
os olhos vendados, estar drogada ou ter sofrido per- cíficas de tortura pode ser útil caso:
das de consciência;
b) Receio de se colocar a si própria ou a outros a) Os sintomas psicológicos toldem a memória;
em perigo; b) Exista uma diminuição das capacidades sen-
c) Falta de confiança no clínico que procede ao soriais associada ao trauma;
exame ou no intérprete; c) Possam ter ocorrido lesões cerebrais orgâni-
d) Impacto psicológico da tortura e trauma – por cas;
exemplo, crises de hiperemotividade e perdas de d) O testemunho esteja limitado por factores
memória provocadas por perturbações mentais educacionais ou culturais.
relacionadas com o trauma, como a depressão ou
perturbação de stress pós-traumático; 144. A distinção entre tortura física e psicológica
e) Perdas de memória de origem neuropsi- é artificial. Por exemplo, a tortura sexual causa
quiátrica provocadas por pancadas na cabeça, sufo- geralmente sintomas físicos e psicológicos,
cação, situações de quase afogamento ou privação mesmo que não tenha havido agressão física. A lista
de alimentos; de métodos de tortura que se segue foi elaborada
f) Mecanismos de defesa psicológica, como a a fim de exemplificar alguns tipos possíveis de
negação dos acontecimentos ou 72 R.F. Mollica e Y. Caspi- maus tratos. Não deverá ser utilizada pelos inves-
-Yavin, “Overview: the
o evitar falar deles; assessment and diagnosis of tigadores como lista de controlo ou formulário
torture events and
g) Sanções impostas por tra- symptoms” [Em português: para a listagem de métodos de tortura num rela-
Visão geral. a avaliação e o
dições culturais que só permitem diagnóstico de incidentes e tório. O método de fazer listas pode ser contra-
sintomas de tortura], Tor-
que as situações traumáticas ture and Its Consequen- producente, uma vez que o quadro clínico global
ces, Current Treatment
sejam reveladas em ambientes Approaches, M. Basog lu, |
v
resultante da tortura é muito mais complexo do que
Cambridge, Cambridge Uni-
de absoluta confidencialidade72. versity Press, 1992, pp. 38 a 55. a mera soma de lesões produzidas pelos métodos
44
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
146. A presença de sequelas psicológicas nos insultuoso. Caso a tortura sexual seja um dos abu-
sobreviventes de tortura, em particular diversas sos sofridos, a vítima pode sentir-se irremedia-
manifestações de stress pós-traumático, pode levar velmente estigmatizada e manchada na sua
a que a vítima receie reviver a sua experiência de integridade moral, religiosa, social ou psicológica.
tortura durante a entrevista, exame médico ou tes- A manifestação de um conhecimento respeitoso
tes laboratoriais. É importante explicar à pessoa destes condicionalismos, bem como o esclareci-
antecipadamente o que se vai fazer e o que espe- mento quanto às garantias de confidencialidade e
rar do exame. As pessoas que sobrevivem à tortura seus limites é, assim, de importância fundamen-
e permanecem no seu país podem ser muito des- tal para que a entrevista seja bem conduzida.
confiadas e ter grande receio de voltar a ser cap- O entrevistador deverá avaliar até que ponto será
turadas, sendo muitas vezes forçadas a passar à necessário continuar a insistir no fornecimento de
clandestinidade para evitar nova detenção. Aque- mais pormenores sobre o caso para que o relató-
les que se exilam ou refugiam noutro país podem rio seja eficaz em tribunal, sobretudo quando a
deixar para trás todas as suas raízes: língua vítima mostra sinais evidentes de tensão durante
materna, cultura, família, amigos, trabalho e tudo a entrevista.
o que lhes é familiar.
i. Utilização de intérpretes
147. As reacções pessoais da vítima ao entrevis-
tador (e ao intérprete, caso seja utilizado) podem 149. Em muitos casos, é necessário recorrer a um
influenciar o interrogatório e, consequentemente, intérprete para que o entrevistador possa com-
os resultados do inquérito. Da mesma forma, as preender as declarações da testemunha. Ainda que
reacções pessoais do entrevistador perante a entrevistador e entrevistado possam entender-se,
vítima podem influenciar o interrogatório e os com limitações, numa língua comum, a informa-
resultados do inquérito. É importante analisar as ção procurada é frequentemente demasiado
barreiras que estas reacções pessoais colocam a uma importante para que se possa arriscar incorrer nos
comunicação eficaz e à compreensão dos factos no erros inerentes a uma compreensão incompleta do
âmbito do inquérito. O investigador deve manter que é dito por qualquer um deles. Os intérpretes
os processos de entrevista e investigação sob aná- devem ser alertados de que tudo quanto oiçam e
lise permanente, em consulta e discussão com a cuja interpretação procedam nas entrevistas é
colegas possuidores de experiência sólida nas estritamente confidencial. São os intérpretes que
áreas da avaliação psicológica e do tratamento de obtêm toda a informação em primeira mão, sem
vítimas de tortura. Este tipo de supervisão pelos qualquer censura. Por isso, devem ser dadas
pares pode ser eficaz para evitar a interferência de garantias aos depoentes de que nem o investiga-
preconceitos e barreiras à comunicação nos pro- dor nem o intérprete utilizarão a informação
cessos de entrevista e investigação, bem como obtida de forma indevida, de qualquer forma (vide
para garantir a obtenção de informação precisa capítulo VI, secção C.2).
(vide capítulo VI, secção C.2).
150. Quando os intérpretes não são profissionais,
148. Apesar de todas as precauções, os exames existe sempre o risco de que o investigador perca
físicos e psicológicos, pela sua própria natureza, o controlo do interrogatório. Os indivíduos podem
podem provocar novos traumas na vítima, cau- embrenhar-se numa conversa com alguém que
sando ou exacerbando sintomas de stress pós-trau- fala a sua língua, e a entrevista afastar-se do seu
mático ao evocar sensações e memórias dolorosas objecto principal. Há também o perigo de um
(vide capítulo VI, secção B.2). As perguntas rela- intérprete tendencioso poder influenciar as res-
tivas a distúrbios psíquicos e, especialmente, ques- postas da pessoa ou distorcer as mesmas. A utili-
tões sexuais, são consideradas tabus na maioria das zação de intérpretes implica inevitavelmente a
sociedades tradicionais, sendo o interrogatório perda de alguma informação, por vezes impor-
sobre tais matérias considerado desrespeitoso ou tante, outras não. Em casos extremos, pode
46
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
também ele, terá sido abusado maioritária ou prisão podem provocar síndromes de carência
exclusivamente por homens. Assim, alguns vitamínica.
homens preferirão relatar as suas experiências a
mulheres devido ao temor que têm de outros 157. Certas formas de tortura estão fortemente
homens, ao passo que outros não quererão discu- associadas a determinadas sequelas em particular.
tir questões tão pessoais à frente de uma mulher. Por exemplo, as pancadas na cabeça com perda de
conhecimento são extremamente importantes
k. Encaminhamento para outros serviços para o diagnóstico clínico de disfunções cerebrais
orgânicas. As sevícias sexuais estão frequente-
155. Sempre que possível, os exames médico- mente associadas a disfunções sexuais.
-legais com vista à documentação da tortura deve-
rão ser acompanhados pela avaliação de outras 158. É importante não esquecer que os torcioná-
necessidades que a pessoa possa sentir, daí a con- rios podem tentar esconder os seus actos. Para
veniência de a encaminhar para outros serviços, evitar as marcas físicas dos espancamentos, a tor-
nomeadamente de medicina especializada, psico- tura é muitas vezes praticada com objectos largos
logia, fisioterapia ou aconselhamento e apoio e contundentes, sendo as vítimas cobertas com
social. Os investigadores devem conhecer os ser- tapetes ou calçadas, no caso da falanga, para dis-
viços de reabilitação e apoio existentes a nível tribuir a força dos golpes. A tortura por estira-
local. O médico não deve hesitar em insistir na rea- mento, pressão ou asfixia tem também por
lização de qualquer consulta ou exame que consi- objectivo causar a máxima dor e sofrimento com
dere necessário no âmbito da avaliação clínica. Na o mínimo de vestígios. Pela mesma razão, por
recolha de provas médicas de tortura e maus tra- vezes utilizam-se toalhas molhadas na tortura por
tos, os médicos continuam vinculados às suas choques eléctricos.
obrigações éticas e deontológicas. As pessoas que
pareçam necessitadas de cuidados médicos ou psi- 159. Do relatório deverão constar as qualificações
cológicos adicionais devem ser encaminhadas e a experiência do investigador. Sempre que pos-
para os serviços competentes. sível, deverá ser indicado o nome da testemunha
ou paciente. Se isto implicar um risco significativo
l. Interpretação dos factos e conclusões para a pessoa em causa, deverá ser usado um sis-
tema de identificação que permita à equipa de
156. Os sintomas físicos da tortura podem variar investigação, e só a ela, relacionar a pessoa com os
em função da intensidade, frequência e duração dos factos enunciados. O relatório deverá também
maus tratos, capacidade da vítima para se proteger identificar quaisquer pessoas presentes na sala
a si própria e condições físicas da pessoa antes do durante toda a entrevista ou parte dela. Deverá
caso. Algumas formas de tortura não deixam ves- descrever em detalhe toda a história, evitando os
tígios físicos, mas podem dar origem a sintomas depoimentos indirectos e incluir, se necessário,
associados a outros processos. Por exemplo, as as conclusões da equipa de investigação. O relatório
pancadas na cabeça que provoquem perda de deverá impreterivelmente ser assinado e datado,
conhecimento podem causar epilepsia pós-trau- nele devendo também ser incluída qualquer decla-
mática ou disfunções cerebrais orgânicas. Condi- ração exigida pela jurisdição a que é destinado
ções deficientes de alimentação e higiene na (vide anexo IV).
*05
Indícios físicos da tortura
163. A confiança é fundamental para se conse- 165. Os pacientes podem temer que a informação
guir obter um relato fidedigno de uma experiên- revelada no âmbito de um exame médico não
cia de tortura. Para ganhar a confiança de alguém possa ser mantida fora do alcance das autoridades
que foi vítima de tortura ou outras formas de que os perseguem. A desconfiança e o medo
maus tratos, há que saber escutar de forma activa podem ser particularmente agudos nos casos em
e demonstrar rigor na comunicação e cortesia, que médicos ou outros profissionais de saúde
bem como uma empatia e honestidade genuínas. tenham participado nos actos de tortura. Em mui-
Os médicos deverão ser capazes de criar um clima tas circunstâncias, o médico que procede ao exame
de confiança que permita a revelação de factos será membro da etnia ou cultura maioritária, ao
cruciais, se bem que por vezes muito dolorosos e passo que o paciente, na situação e local da entre-
humilhantes. É importante ter consciência de que vista, pertencerá provavelmente a um grupo ou
estes factos constituem por vezes segredos íntimos cultura minoritária. Esta dinâmica de desigual-
que a pessoa pode estar a revelar naquele dade pode reforçar a sensação, real ou imaginária,
momento pela primeira vez. Para além de provi- de desequilíbrio de poder e acentuar a eventual sen-
denciar por um ambiente confortável, tempo sufi- sação de medo, desconfiança e submissão forçada
ciente para a consulta, bebidas refrescantes e do paciente.
acesso a instalações sanitárias, os médicos devem
explicar aos pacientes aquilo que estes devem 166. A empatia e o contacto humano podem ser
esperar da avaliação. O clínico deve ter cuidado com aquilo que de mais importante o recluso recebe do
o tom, formulação e sequência das questões (as per- investigador. A investigação em si mesma pode não
guntas sobre temas sensíveis apenas devem ser trazer qualquer benefício específico para a pessoa
colocadas depois de estabelecido um certo grau de entrevistada, uma vez que, na maior parte dos
confiança) e devem reconhecer ao paciente o casos, a tortura terá já terminado. A parca conso-
direito de fazer uma pausa se assim o desejar ou lação de saber que a informação pode servir para
de se recusar a responder a qualquer questão. evitar casos futuros poderá, contudo, ser grande-
mente reforçada caso o investigador estabeleça
164. Os médicos e intérpretes têm a obrigação de uma sincera empatia com a vítima. Embora este
guardar sigilo quanto à informação recolhida e de aspecto pareça óbvio, muitas vezes os investigadores
a revelar apenas com o consentimento do paciente no terreno, ao visitar estabelecimentos prisionais,
(vide capítulo III, secção C). Cada pessoa deve ser estão tão preocupados em obter informação que se
examinada individualmente e em privado. Deve ser esquecem de estabelecer empatia com as pessoas
informada de quaisquer limites à confidenciali- entrevistadas.
dade do exame eventualmente impostos pelas
autoridades administrativas ou judiciais. O objec- b. Historial médico
tivo da entrevista deve ser claramente explicado à
pessoa. Os médicos devem assegurar-se de que o 167. Obtenha um historial médico completo,
consentimento se baseia numa informação cor- incluindo informação sobre quaisquer problemas
recta e na clara compreensão das potenciais con- médicos, cirúrgicos e psiquiátricos anteriores.
sequências positivas e negativas da avaliação Certifique-se de que regista todas as lesões sofri-
médica, e é prestado voluntariamente, sem qual- das pela pessoa antes da detenção e suas possíveis
quer coacção de terceiros, em particular autorida- sequelas. Evite perguntas tendenciosas. Estruture
des policiais ou judiciais. A pessoa tem o direito as perguntas de forma a conseguir obter um relato
de recusar a avaliação. Neste caso, o clínico deverá aberto e cronológico das experiências vividas
apurar o motivo de tal recusa. Para além disso, se durante o período de detenção.
50
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
168. Para estabelecer uma correlação entre as prá- sidade, frequência e duração de cada sintoma.
ticas regionais de tortura e as alegações concretas Deverá ser descrito o desenvolvimento de quaisquer
de maus tratos, pode ser útil obter dados históri- lesões cutâneas subsequentes, e indicado o facto de
cos específicos. Por exemplo, convém conhecer terem ou não deixado cicatrizes. Pergunte qual o
descrições de instrumentos de tortura, posições estado de saúde do paciente no momento da liber-
corporais, métodos de imobilização e lesões ou tação: podia andar ou estava acamado? Se estava aca-
incapacidades agudas ou crónicas, bem como mado, por quanto tempo? Quanto tempo levaram
qualquer informação susceptível de identificar os as feridas a cicatrizar? Estavam infectadas? Que
autores dos actos e os locais de detenção. Embora tratamento recebeu? Foi receitado por um médico
seja essencial obter informação precisa acerca das ou curandeiro tradicional? Lembre-se de que a pró-
experiências vividas pelo sobrevivente de tortura, pria capacidade da pessoa para responder a estas per-
este deve exprimir-se livremente, usando as suas guntas pode ter sido comprometida pelo acto de
próprias palavras e evocando os acontecimentos à tortura ou suas sequelas, devendo registar-se este
sua maneira. Uma pessoa que sobreviva a uma facto.
experiência de tortura pode ter dificuldades em
exprimir por palavras as suas próprias experiências 2. SINTOMAS CRÓNICOS
e sintomas. Em certos casos, pode ser conveniente
recorrer a listagens ou questionários enunciati- 170. Peça informação sobre eventuais distúrbios
vos de acontecimentos traumáticos e sintomas. físicos que o indivíduo acredite estarem associados
Se o investigador considerar necessário recorrer a à tortura ou aos maus tratos. Tome nota da gravi-
estas listagens ou questionários enunciativos de dade, frequência e duração de cada sintoma e de
acontecimentos traumáticos e sintomas, existem qualquer tipo de incapacidade que lhe possa estar
diversos modelos disponíveis, embora nenhum associada, bem como da necessidade de tratamento
especificamente destinado a vítimas de tortura. médico ou psicológico. Mesmo que, decorridos
Todas as queixas de um sobrevivente de tortura são meses ou anos, já não se observem sintomas das
significativas e devem ser incluídas no relatório, lesões agudas, podem subsistir algumas sequelas
mesmo que não revelem qualquer ligação com os físicas, como cicatrizes resultantes de queimaduras
indícios físicos observados. As incapacidades e eléctricas ou térmicas, deformidades ósseas, cica-
sintomas crónicos e agudos associados a formas trização incorrecta de fracturas, lesões dentárias,
específicas de maus tratos, e subsequentes pro- perda de cabelo e miofibroses. Entre as queixas
cessos de cura, devem ser documentados. somáticas mais frequentes contam-se as dores de
cabeça, dores nas costas, problemas gastrointesti-
1. SINTOMAS AGUDOS nais, disfunções sexuais e dores musculares. São sin-
tomas psicológicos comuns, por exemplo, os
169. Deve ser pedido ao indivíduo que descreva estados depressivos, ansiedade, insónias, pesadelos,
quaisquer lesões que possam ter resultado dos ataques de pânico e dificuldades de memória (vide
métodos específicos utilizados para infligir os ale- capítulo VI, secção B.2).
gados maus tratos. Por exemplo, hemorragias,
escoriações, tumefacções, feridas abertas, lacerações, 3. RESUMO DA ENTREVISTA
fracturas, deslocações de membros, distensões
musculares, hemoptises, pneumotórax, perfura- 171. As vítimas de tortura podem apresentar
ções do tímpano, lesões do sistema genito-urinário, lesões substancialmente diferentes das resultantes
queimaduras (cor, bolhas e necroses conforme o de outros tipos de trauma. Embora algumas lesões
grau da queimadura), lesões causadas por choques agudas possam ser típicas de certos tipos de tor-
eléctricos (tamanho e número de lesões, respectiva tura, a maioria delas cicatriza num período de seis
cor e características superficiais), lesões químicas semanas após o acto, não deixando quaisquer mar-
(cor, sinais de necrose), dor, entorpecimento, obs- cas ou, no máximo, deixando marcas atípicas. Isto
tipação e vómitos. Deverá tomar-se nota da inten- acontece frequentemente quando são utilizadas
52
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
ção, tumefacção ou dor. Deverão ser examinadas fim de conseguir detectar rupturas do tímpano
as componentes motora e sensorial, incluindo com menos de dois milímetros de diâmetro, que
olfacto e gosto, de todos os nervos cranianos. A podem sarar no prazo de dez dias. Podem even-
tomografia computorizada (TC) – e não a simples tualmente observar-se secreções no ouvido médio
radiografia – constitui o melhor meio para diag- ou externo. Caso a otorreia seja confirmada por aná-
nosticar e caracterizar as fracturas faciais, deter- lises laboratoriais, o paciente deverá ser submetido
minar o alinhamento ósseo e diagnosticar lesões a ressonância magnética ou tomografia computo-
e complicações associadas nos tecidos moles. rizada a fim de determinar a localização da fractura.
Lesões intracranianas e da coluna cervical apare- Deverá verificar-se se a pessoa sofre de perda de
cem muitas vezes associadas aos traumatismos audição, utilizando métodos simples de avaliação.
faciais. Se necessário, deverão realizar-se testes audio-
métricos sob a direcção de um técnico de audio-
(a) Olhos metria qualificado. A melhor forma de proceder ao
exame radiográfico de fracturas do osso temporal
177. Existem muitas formas diferentes de trau- ou rupturas da cadeia ossicular consiste em
matismos oculares, incluindo hemorragias da submeter o paciente, de preferência, a uma tomo-
membrana conjuntiva, deslocação do cristalino, grafia computorizada, depois a tomografia hipo-
hemorragias subhialóides, retro-oculares e reti- ciclóidal e, por último, a tomografia linear.
nianas e perda de campo visual. Dadas as graves
consequências da falta de tratamento ou trata- (c) Nariz
mento inadequado, deverá providenciar-se pela
realização de uma consulta oftalmológica sempre 179. No exame do nariz, deverá ter-se em atenção
que existam quaisquer suspeitas de traumatismo o respectivo alinhamento, crepitação e desvio do
ou doença ocular. A tomografia computorizada é septo nasal. No caso de fracturas nasais simples,
o melhor meio de diagnóstico de fracturas orbitais as radiografias nasais normais deverão ser sufi-
e lesões dos tecidos moles com implicações ao cientes. Para fracturas nasais complexas e sempre
nível do globo ocular e tecidos retro-oculares. A ima- que o septo cartilagíneo esteja deslocado, deverá rea-
gem obtida por ressonância magnética nuclear lizar-se uma tomografia computorizada. Caso o
(RMN) pode ser um complemento importante paciente apresente sintomas de rinorreia, reco-
para identificar lesões nos tecidos moles. Os ultra- menda-se a realização de uma tomografia com-
sons de alta resolução constituem um método putorizada ou ressonância magnética.
alternativo para a avaliação de traumatismos do
globo ocular. (d) Queixo, orofaringe e pescoço
54
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
para esse fim em concreto e, se necessário, deverá deverá indicar, relativamente a cada lesão e a todo
ser adiado para uma sessão posterior. Caso médico o conjunto de lesões, o grau de correspondência
e paciente pertençam a sexos diferentes, uma pes- entre a mesma e a causa indicada pelo paciente.
soa do mesmo sexo do último deverá estar presente. Em geral, utiliza-se a seguinte terminologia:
Para mais informação, vide o capítulo IV, secção J.
Vide a secção D.8 para mais informação relativa ao a) Não correspondente: a lesão não pode ter
exame das vítimas de agressão sexual. Para a sido causada pelo traumatismo descrito;
detecção de traumatismos genito-urinários, pode b) Correspondente: a lesão pode ter sido cau-
recorrer-se à ultra-sonografia ou cintigrafia dinâ- sada pelo traumatismo descrito mas, sendo uma
mica. lesão atípica, existem outras causas possíveis;
c) Correspondência altamente provável: a lesão
6. SISTEMAS NERVOSOS CENTRAL E PERIFÉRICO pode ter sido causada pelo traumatismo descrito
e existem poucas causas possíveis alternativas;
185. O exame neurológico deverá avaliar os d) Correspondência típica: o sintoma aparece
nervos craneanos, órgãos sensoriais e sistema ner- geralmente associado ao tipo de traumatismo des-
voso periférico, procurando indícios de neuropa- crito, mas existem outras causas possíveis;
tias motoras e sensoriais associadas ao possível e) Diagnóstico de: o sintoma não pode ter sido
traumatismo, carências vitamínicas ou doenças. causado de qualquer outra forma senão a descrita.
Dever-se-á também avaliar a capacidade cognitiva
e o estado mental da pessoa (vide capítulo VI, sec- 187. Em última análise, o que importa fazer para
ção C). No caso de pacientes que alegam terem sido confirmar a veracidade de um relato de tortura é
sujeitos a tortura por suspensão, há que prestar a avaliação geral de todas as lesões, e não a cor-
especial atenção aos sintomas de lesão do plexo bra- respondência de cada lesão com determinada
quial (assimetria na força manual, paralisia da forma de tortura em particular (vide capítulo IV,
mão, fraqueza nos braços acompanhada de varia- secção G para uma listagem dos métodos de tor-
ções nos reflexos sensoriais e tendinosos). Os trau- tura).
matismos associados à tortura podem provocar
radiculopatias e outras neuropatias, deficiências nos 1. ESPANCAMENTOS E OUTRAS CONTUSÕES
nervos cranianos, hiperalgesia, parestesia, hipe-
restesia e alterações da postura, sensibilidade ao (a) Lesões cutâneas
calor, função motora, marcha e coordenação. Os
pacientes com sintomas de vertigens e vómitos 188. Lesões agudas são frequentemente caracte-
deverão ser sujeitos a exame vestibular a fim de rísticas da tortura, porque se apresentam sob for-
detectar indícios de nistagmo. A avaliação radio- mas particulares que as distinguem das lesões
lógica deverá incluir a realização de ressonância acidentais, por exemplo devido à sua forma, repe-
magnética ou tomografia computorizada. A res- tição e distribuição ao longo do corpo. Uma vez que
sonância magnética é preferível à tomografia com- a maioria das lesões sara num período de seis
putorizada para fins de avaliação radiológica do semanas, não deixando quaisquer marcas ou dei-
cérebro e fossas posteriores. xando apenas marcas não específicas, um relato
típico de lesões agudas e sua evolução até à cura
d. Exame e avaliação subsequentes total poderá ser o único elemento confirmativo de
a formas específicas de tortura uma alegação de tortura. As alterações perma-
nentes na pele provocadas por contusões são
186. As considerações que se seguem não pre- pouco frequentes, atípicas e geralmente sem sig-
tendem analisar exaustivamente todas as formas nificado para fins de diagnóstico. Uma zona linear
de tortura, destinando-se antes a descrever em que se estende em círculos em torno dos braços ou
mais pormenor os aspectos médicos de muitas das pernas, em geral nos pulsos ou tornozelos, é
das formas de tortura mais comuns. O médico geralmente uma sequela de violência contundente
56
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
pele. Por vezes, tais marcas têm 81 Vide nota 80. das, incisões ou cortes, bem 82 D. Forrest, “Examination
for the late physical after
valor de diagnóstico. As quei- como lesões perfurantes. Em effects of torture” [Em por-
tuguês: “Exame para detec-
maduras de cigarro deixam muitas vezes cicatrizes geral, a sua aparência no estado ção das sequelas físicas
tardias da tortura”], Journal
maculares com 5 a 10 milímetros de diâmetro, agudo distingue-se facilmente of Clinical Forensic Medi-
cine, 6, 1999, pp. 4 a 13
circulares ou ovais, caracterizadas por um centro do aspecto rasgado e irregular de (vide nota 76).
hiper ou hipo-pigmentado e periferia hiper-pig- lacerações e cicatrizes encon-
mentada e relativamente indistinta. Surgem tam- tradas mais tarde e que podem ser distintas. Caso
bém denúncias de tentativas de apagar tatuagens surjam padrões regulares de pequenas cicatrizes
com cigarros em cenários de tortura. A forma de incisão, estas podem ter sido provocadas por
característica da cicatriz daí resultante, bem como curandeiros tradicionais82. Se, em feridas abertas,
quaisquer vestígios da tatuagem que permane- forem aplicadas substâncias nocivas, como a
çam, auxiliarão no diagnóstico81. As queimaduras pimenta, as cicatrizes podem tornar-se hiper-tró-
com objectos quentes provocam cicatrizes marca- ficas. Um conjunto de cicatrizes assimétricas e de
damente atróficas que reflectem a forma do ins- diferentes tamanhos constitui um indício provável
trumento utilizado e se apresentam claramente de tortura.
demarcadas por zonas marginais estreitas hiper-
-tróficas ou hiper-pigmentadas que correspondem (b) Fracturas
a uma zona de inflamação inicial. Estes sintomas
podem, por exemplo, ser observados depois de 196. As fracturas provocam uma perda da inte-
queimaduras infligidas com uma barra de metal gridade óssea devido à acção de força mecânica con-
electricamente aquecida ou isqueiro a gás. A pre- tundente sobre diversos planos vectoriais. As
sença de um grande número de cicatrizes deste tipo fracturas directas produzem-se no local do
tende a confirmar o diagnóstico de tortura. Os impacto ou no local onde a força é aplicada. A
processos inflamatórios espontâneos não apre- localização, contorno e outras características da
sentam a zona marginal característica e raramente fractura reflectem a natureza e direcção da força
ocasionam uma perda significativa de tecido. As aplicada. Por vezes, é possível distinguir a fractura
queimaduras podem dar origem a cicatrizes hiper- acidental da provocada pela sua imagem radioló-
-tróficas ou quelóides, nomeadamente se infligidas gica. Para determinar a antiguidade de uma frac-
com borracha a ferver. tura relativamente recente, dever-se-á recorrer a um
radiologista especializado em traumatologia.
194. Quando a matriz da unha é queimada, a Deverão evitar-se os juízos especulativos na ava-
unha que depois cresce vem estriada, fina e defor- liação da natureza e antiguidade das lesões trau-
mada, por vezes partida em segmentos longitudi- máticas, uma vez que estas podem variar em
nais. Caso a unha tenha sido arrancada, pode função da idade, sexo, características dos tecidos,
acontecer um crescimento excessivo dos tecidos em situação e estado de saúde da pessoa, bem como
redor que dá origem à formação de um pterígio. da gravidade do traumatismo. Por exemplo, as
As alterações da unha causadas por lichen planus pessoas jovens, bem constituídas e de musculatura
constituem o único diagnóstico alternativo, mas sur- robusta são mais resistentes aos golpes do que os
gem geralmente acompanhadas de lesões cutâ- indivíduos mais velhos e frágeis.
neas generalizadas. Por outro lado, as infecções por
fungos caracterizam-se por unhas mais grossas, (c) Traumatismos cranianos
amareladas e quebradiças, diferentes das alterações
acima referidas. 197. Os traumatismos cranianos constituem uma
das mais comuns formas de tortura. Em caso de
195. As lesões traumáticas penetrantes aconte- traumatismos cranianos recorrentes, mesmo que
cem quando a pele é cortada com um objecto nem todos sejam de grande intensidade, é de
afiado, por exemplo uma faca, baioneta ou vidro esperar que se produza atrofia cortical e lesões
partido, e incluem lesões resultantes de punhala- axonais difusas. Nos casos de traumatismos pro-
58
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
tecem, assim como as fracturas 83 G. Sklyv, “Physical seque- dedos. É geralmente diagnosticado através da
lae of torture” [em portu-
do tarso, metatarso e falanges. guês: Sequelas físicas da medição das pressões no compartimento;
tortura], Torture and its
Uma vez que, em geral, as consequences, current b) Esmagamento do calcanhar e almofadas
treatment approaches, M.
lesões atingem apenas os tecidos Ba_o_lu, ed., Cambridge,
Cambridge University Press,
anteriores: as almofadas elásticas sob o calcâneo
moles, a tomografia computo- 1992, pp. 38 a 55. e falanges proximais são esmagadas durante a
84
rizada ou ressonância magné- forD.theForrest, “Examination
late physical after
falanga, quer directamente quer em resultado de
tica são as melhores técnicas de effects of torture” [Em por-
tuguês: “Exame para detec-
edema associado ao traumatismo. Para além
exame radiológico, mas deve tardias dasequelas
ção das físicas
tortura”], Journal
disso, dá-se uma ruptura das faixas de tecido con-
salientar-se que, durante a fase of Clinical Forensic Medi-
cine, 6, 1999, pp. 4 a 13
juntivo que se estendem pelo tecido adiposo e
aguda da doença, o exame físico (vide nota 76). ligam o osso à pele. O tecido adiposo vê-se privado
85
deverá permitir um diagnóstico ten,K.Physiotherapy
Prip, L. Tived, N. Hol-
for Tor-
de irrigação sanguínea e atrofia. Perde-se o efeito
ture Survivors: A Basic
claro. A falanga pode originar Introduction [em portu- de almofada e os pés deixam de conseguir absor-
incapacidade crónica. Pode tor- guês: “Fisioterapia para
Sobreviventes de Tortura:
ver os choques provocados pela marcha;
nar a marcha dolorosa e difícil. Introdução Básica”], Cope-
nhaga, IRCT, 1995.
c) Cicatrizes rígidas e irregulares na pele e teci-
Os ossos do tarso podem ficar 86 F. Bojsen-Moller e K.E. dos subcutâneos do pé depois da aplicação da
fixos (espásticos) ou exagerada- Flagstad, “Plantar aponeu-
rosis and plantar architec- falanga: num pé normal, os tecidos dérmicos e
mente móveis. A pressão sobre ture of the ball of the foot”
[em português: Aponevrose subdérmicos encontram-se ligados à aponevrose
a planta (sola) do pé e a flexão plantar e arquitectura plan-
tar da bola do pé], Journal plantar através de bandas apertadas de tecido con-
Anatomy, 121, 1996,
dorsal do dedo grande do pé of pp. 599 a 611. juntivo. Estas bandas podem, contudo, ser parcial
podem causar dor. À palpação, a ou completamente destruídas devido a edema que
aponevrose plantar pode revelar-se anormalmente as rompe após exposição à falanga;
mole e haver ruptura dos ligamentos distais da d) Ruptura da aponevrose plantar e tendões do
aponevrose, parcialmente na base das falanges pé: um edema que se produza no período poste-
proximais e parcialmente na pele. Nesta situação, rior à falanga pode provocar rupturas nestas estru-
a aponevrose perde a sua flexibilidade normal, tor- turas. Quando desaparece a função de suporte
nando o andar difícil e podendo originar fadiga necessária à manutenção do arco do pé, o andar
muscular. A extensão passiva do dedo grande do torna-se muito difícil e os músculos do pé, em
pé pode revelar se houve ou não ruptura da apo- especial o quadratus plantaris longus, são exces-
nevrose. Se estiver intacta, sentir-se-á o início da sivamente forçados;
tensão na aponevrose mediante palpação com o e) Fasciite plantar: pode 87 V. Lök, M. Tunca, K.
Kumanlioglu e outros,
dedo grande em flexão dorsal a 20 graus; a ocorrer como complicação adi- “Bone scintigraphy as clue
to previous torture” [em
máxima extensão normal é de cerca de 70 graus. cional deste tipo de lesões. Nos português: Cintigrafia
óssea como indício de tor-
Valores mais altos sugerem lesões nos ligamentos casos de falanga, dá-se muitas tura anterior], Lancet, 337
(8745), 1991, pp. 846 e 847.
da aponevrose83 84 85 86. Por outro lado, flexão dor- vezes a irritação de toda a apo- Vide também M. Tunca e V.
Lök, “Bone scintigraphy in
sal limitada e dor na hiper-extensão do dedo nevrose, originando uma infla- screening of torture survi-
vors” [em português: Cinti-
grande são sintomas de hallux rigidus, que resulta mação crónica. Em estudos grafia óssea no exame de
sobreviventes de tortura],
de osteófito dorsal numa ou em ambas as pri- sobre esta matéria, puderam ser p. 1859. 352 (9143), 1998,
Lancet,
60
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
c) Exame dos reflexos: a tortura por suspensão que se podem estender ao braço e zonas exterio-
pode provocar a perda, diminuição ou assimetria res do antebraço.
dos reflexos. Na suspensão “palestiniana”, embora
ambos os plexos braquiais sofram traumatismos, 4. OUTRAS FORMAS DE TORTURA POSICIONAL
pode gerar-se uma plexopatia assimétrica devido
à forma como a vítima é suspensa, dependendo do 209. Existem muitas outras formas de tortura
braço que é colocado numa posição superior ou do posicional, todas elas atando ou imobilizando a
método utilizado para atar a pessoa. Embora as pes- vítima em contorção, hiper-extensão ou outras
quisas efectuadas sugiram que as plexopatias bra- posições pouco naturais, que causam grande sofri-
quiais são geralmente unilaterais, a nossa mento e podem provocar lesões nos ligamentos,
experiência indica serem comuns as lesões bila- tendões, nervos e vasos sanguíneos. Caracteristi-
terais. camente, estas formas de tortura deixam poucas,
ou nenhumas, marcas visíveis a olho nu ou detec-
208. De todos os tecidos da região escapular, o táveis através de processos radiológicos, apesar de
plexo braquial é a estrutura mais sensível às lesões conduzirem muitas vezes a incapacidades crónicas
por tracção. A suspensão “palestiniana” dá ori- graves.
gem a lesões do plexo braquial devido à extensão
posterior forçada dos braços. Na suspensão “pales- 210. Todas as formas de tortura de posição visam
tiniana” clássica, quando o corpo é suspenso com directamente os tendões, articulações ou múscu-
os braços em hiper-extensão posterior, são tipica- los. Existem vários métodos: “suspensão de papa-
mente as fibras do plexo inferior as primeiras a gaio”, “posição de banana” ou o clássico “laço
sofrerem lesão, seguidas das fibras dos plexos banana” sobre uma cadeira ou simplesmente no
médio e superior, respectivamente, se a força apli- chão, posição de bicicleta, manutenção da pessoa
cada sobre os plexos for suficientemente grande. de pé durante longo tempo, apoiada num ou nos
Se a vítima for suspensa em cruz, mas sem hiper- dois pés ou com os braços e mãos esticados para
-extensão, serão provavelmente as fibras do plexo cima contra uma parede, manutenção da pessoa de
médio as primeiras a sofrerem lesão devido à cócoras durante longo tempo e imobilização for-
hiper-abdução. As lesões do plexo braquial podem çada numa pequena jaula. Consoante as caracte-
ser classificadas da seguinte forma: rísticas de cada uma destas posições, as vítimas
queixar-se-ão de dores em determinadas regiões do
a) Lesões do plexo inferior: as deficiências loca- corpo, limitação da mobilidade articular, dores nas
lizam-se no antebraço e músculos da mão. Podem costas, dores nas mãos ou nas zonas cervicais do
observar-se deficiências sensoriais ao nível do corpo e inchaço da parte inferior das pernas. A estas
antebraço e do quarto e quinto dedos da zona formas de tortura de posição aplicam-se os mes-
média da mão na distribuição do nervo cubital; mos princípios de exame neurológico e musco-
b) Lesões do plexo médio: são afectados o ante- esquelético indicados relativamente à tortura por
braço, cotovelo e músculos extensores dos dedos. suspensão. A ressonância magnética é o método
A pronação do antebraço e a flexão radial da mão radiológico mais recomendado para o diagnóstico
poderão estar diminuídas. Constatam-se defi- das lesões associadas a todas as formas de tortura
ciências sensoriais no antebraço e nas zonas dor- de posição.
sais do primeiro, segundo e terceiro dedos da mão
na distribuição do nervo cubital. Os reflexos tri- 5. TORTURA POR CHOQUES ELÉCTRICOS
ciptais podem ter sido perdidos;
c) Lesões do plexo superior: os músculos esca- 211. A corrente eléctrica é transmitida através de
pulares estão especialmente afectados. A abdução eléctrodos colocados em qualquer parte do corpo.
do ombro, rotação axial e pronação-supinação do As áreas mais habituais são as mãos, pés, dedos das
antebraço podem estar comprometidas. Obser- mãos e dos pés, orelhas, mamilos, boca, lábios e
vam-se deficiências sensoriais na região deltóide, zona genital. A fonte de energia pode ser um
62
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
tortura, deixando pairar a ameaça de abusos mentam, medo de perder a virgindade e medo de
sexuais, violação ou sodomia. Para além disso, as não poder ter filhos (mesmo se a violação puder
ameaças, agressões verbais e piadas com conota- ser ocultada a um eventual marido e ao resto da
ções sexuais constituem também formas de tortura sociedade).
sexual, uma vez que acentuam a humilhação a
que a pessoa é sujeita e os aspectos degradantes do 216. Se, nas situações de abuso sexual, a vítima não
caso, fazendo parte do mesmo processo. Tratando- desejar que o facto se torne conhecido, devido a
-se de mulheres, os toques no seu corpo são sem- pressões sócio-culturais ou motivos pessoais, o
pre traumatizantes e consideram-se uma forma de médico que efectua o exame clínico, as agências de
tortura. investigação e os tribunais têm a obrigação de coo-
perar a fim preservar o anonimato da pessoa. Os
215. Existem algumas diferen- 89 D. Lunde e J. Ortmann, contactos com sobreviventes de tortura que
“Sexual torture and the
ças entre a tortura sexual de treatment of its consequen- tenham sido recentemente vítimas de agressão
ces” [em português: “A tor-
homens e a tortura sexual de tura sexual e o tratamento sexual exigem formação especializada na área da
das suas consequências”],
mulheres, mas determinadas Torture and the treatment psicologia e um apoio psicológico adequado.
of its consequences,
considerações aplicam-se a Current Treatment v
Dever-se-ão evitar quaisquer tratamentos que pos-
Approaches, M. Basog lu,
|
ambos os sexos. A violação está ed., Cambridge, Cambridge sam agravar o trauma psicológico da vítima. Antes
University Press, 1992,
sempre associada ao risco de pp. 310 a 331. de iniciar o exame, dever-se-á pedir a autorização
contrair doenças sexualmente da pessoa para qualquer tipo de intervenção,
transmissíveis, particularmente o vírus da imu- devendo essa autorização ser confirmada pela
nodeficiência humana (HIV)89. Actualmente, a vítima antes das partes mais íntimas do exame. A
única profilaxia eficaz contra o HIV deverá ser pessoa deverá ser informada, de forma clara e
administrada até poucas horas depois do inci- compreensível, acerca da importância do exame e
dente, mas não está geralmente disponível nos seus possíveis resultados.
países onde a tortura acontece habitualmente. Na
maior parte dos casos, haverá um componente de (a) Inventário dos sintomas
perversão sexual, noutros visam-se directamente
os órgãos genitais. Pancadas e choques eléctricos 217. Dever-se-á registar em detalhe toda a história
são em geral aplicados nos órgãos genitais mas- da alegada agressão, conforme explicado mais acima
culinos, com ou sem tortura anal adicional. no presente manual (vide secção B, supra). Existem,
O traumatismo físico daí resultante é reforçado contudo, algumas questões específicas que só são rele-
por agressões verbais. Existem muitas vezes amea- vantes em caso de alegação de abuso sexual. Visam
ças de perda de masculinidade e consequente determinar a existência de sintomas resultantes de
perda do respeito da sociedade, no caso dos uma agressão recente, por exemplo hemorragias,
homens. Os reclusos podem ser mantidos nus em corrimentos vaginais ou anais e localização de quais-
celas juntamente com membros da sua família, quer dores, feridas ou hematomas. No caso de agres-
amigos ou completos desconhecidos, violando sões sexuais mais antigas, as perguntas deverão
tabus culturais. Este aspecto pode ser agravado incidir sobre os sintomas crónicos resultantes da
pela falta de privacidade na utilização de instala- agressão, como a frequência das micções, inconti-
ções sanitárias. Para além disso, os reclusos nência urinária ou disuria, irregularidades mens-
podem ser obrigados a abusar sexualmente de truais, história ulterior de gravidez, aborto ou
outros reclusos, o que pode ser particularmente difí- hemorragia vaginal, problemas relacionados com a
cil de enfrentar em termos emocionais. Nas actividade sexual, incluindo dores e hemorragias
mulheres, o receio de serem violadas, dado o pro- anais e registadas durante o acto sexual, outras
fundo estigma social associado à violação, pode agra- hemorragias, obstipação e incontinência.
var o trauma. Também não deve ser ignorado o
trauma resultante da ideia de uma eventual gra- 218. Em termos ideais, deveriam existir instalações
videz, que os homens obviamente não experi- apropriadas, a nível logístico e técnico, para o
64
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
tificável até cinco dias depois do acto, a partir de hepatite B e C, herpes simples e condyloma acumi-
amostras recolhidas através de espectroscopia natum (verrugas venéreas), vulvovaginites associadas
vaginal profunda, e até três dias com sonda rectal. à agressão, como a infecção por trichomonas, moni-
Devem ser tomadas todas as precauções para evi- liasis vaginitis, gardenarella vaginitis e enterobius
tar qualquer hipótese de contaminação cruzada vermicularis (lombrigas), bem como infecções do
caso tenham sido recolhidas amostras de diversas trato urinário.
vítimas, particularmente se também forem reco-
lhidas amostras dos presumíveis autores. Todas as 225. Devem ser prescritos os exames laborato-
amostras devem ser plenamente protegidas, riais e o tratamento adequados em todos os casos
devendo ainda ficar registada a identificação de de abuso sexual. No caso de gonorreia e infecção
todos quantos lhes tenham tido acesso. a clamídia, deve considerar-se a possibilidade de
infecção concomitante do ânus e orofaringe, pelo
(c) Exame efectuado mais de uma semana menos para fins de exame. Nos casos de agressão
depois da agressão sexual, devem recolher-se culturas iniciais e efec-
tuar-se testes serológicos, iniciando-se a terapêu-
222. Caso a alegada agressão tenha ocorrido há tica correspondente. As disfunções sexuais são
mais de uma semana e não existam sinais de comuns nos sobreviventes de tortura, em particular,
hematomas ou lacerações, o exame pélvico é mas não exclusivamente, entre as vítimas de tor-
menos urgente. Há tempo para tentar encontrar o tura sexual e violação. Entre os sintomas, que
profissional mais qualificado para efectuar o podem ser de origem física ou psicológica, ou uma
exame e reunir as melhores condições para entre- combinação de ambas, destacam-se:
vistar a pessoa. É, contudo, aconselhável fotogra-
far quaisquer lesões residuais, se isto ainda for i) Aversão às pessoas do sexo oposto ou dimi-
possível. nuição do interesse na actividade sexual;
ii) Receio da actividade sexual porque o par-
223. O médico deverá tomar 91 G. Hinshelwood, Gender- ceiro poderá aperceber-se de que a pessoa foi
-based persecution [em
nota dos antecedentes do caso português: “Perseguição
baseada no sexo”], Toronto,
vítima de abuso sexual ou por medo de ter sofrido
conforme atrás descrito, e depois Group Meeting on
United Nations Expert
Gender-
lesões funcionais. Os torcionários podem ter feito
das observações e constatações -based Persecution, 1997. esta ameaça e instilado o medo de homossexuali-
do exame. Nas mulheres que tenham sido mães dade nos homens vítimas de sodomia. Acontece por
antes da violação, e particularmente naquelas que vezes que homens heterossexuais têm erecções, e
o tenham sido depois, não é provável que se obser- chegam mesmo a ejacular, durante relações anais
vem sinais patognomónicos, embora uma médica não consentidas. Há que tranquilizá-los, esclare-
experiente possa aperceber-se de muita coisa a cendo tratar-se apenas de uma reacção psicoló-
partir da forma como a mulher relata a sua histó- gica;
ria91. Pode levar algum tempo até que a pessoa se iii) Incapacidade de confiar num parceiro sexual;
disponha a falar sobre os aspectos da tortura que iv) Dificuldades de estimulação sexual e dis-
considera mais embaraçosos. De forma seme- função eréctil;
lhante, o paciente pode desejar deixar as partes mais v) Dispareunia (relações sexuais dolorosas para
íntimas do exame para uma consulta posterior, se a mulher) ou infertilidade resultante de doença
o tempo e as circunstâncias o permitirem. sexualmente transmissível, traumatismo directo dos
órgãos reprodutores ou abortos mal feitos na
(d) Seguimento sequência de gravidez resultante da violação.
224. As sevícias sexuais podem permitir a trans- (e) Exame genital das mulheres
missão de inúmeras doenças infecciosas, nomea-
damente doenças sexualmente transmissíveis 226. Em muitas culturas, é completamente ina-
como a gonorreia, infecção a clamídia, sífilis, HIV, ceitável penetrar a vagina de uma mulher virgem
66
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
semanas. Isto dá muitas vezes origem a obstipação, v) Corrimento purulento do ânus. Em todos os
frequentemente agravada pela dieta deficiente de casos de alegada penetração anal dever-se-ão reco-
muitos locais de detenção. Podem também regis- lher amostras para cultura em laboratório de
tar-se sintomas ao nível dos aparelhos gastroin- gonorreia e clamídia, independentemente do facto
testinal e urinário. Na fase aguda, qualquer exame de se verificar ou não corrimento.
para além da observação visual pode requerer anes-
tesia local ou geral e deve ser efectuado por um espe- e. Testes de diagnóstico especializados
cialista. Na fase crónica, podem persistir diversos
sintomas, que deverão ser investigados. A presença 232. Os testes de diagnóstico não constituem
de cicatrizes anais de tamanho ou posicionamento parte essencial da avaliação clínica de uma ale-
fora do comum deverá ser documentada. As fissuras gada vítima de tortura. Em muitos casos, o histo-
anais podem persistir durante muitos anos, mas é rial médico e exame físico são suficientes. Em
geralmente impossível distinguir as que resultam determinadas situações, contudo, tais testes cons-
da tortura das provocadas por outros factores. Ao tituem um importante elemento probatório. Por
examinar o ânus, dever-se-á prestar atenção e docu- exemplo, em caso de procedimento judicial ins-
mentar os seguintes sintomas: taurado contra as autoridades em causa ou pedido
de indemnização. Nestas situações, um teste posi-
i) Fissuras: as fissuras tendem a constituir sin- tivo pode fazer toda a diferença. Para além disso,
tomas atípicos uma vez que podem produzir-se em se forem realizados testes de diagnóstico por moti-
diversas situações “normais” (obstipação, higiene vos terapêuticos, os respectivos resultados deverão
deficiente). Contudo, se observadas numa fase ser incluídos no relatório clínico. Saliente-se que
aguda (isto é, nas 72 horas seguintes) constituem a ausência de um resultado positivo nos testes de
um sintoma mais específico e podem ser consi- diagnóstico, como no exame físico, não deve ser
deradas indício de penetração; usada para sugerir que o acto de tortura não ocor-
ii) Rasgões rectais, com ou sem hemorragia; reu. Muitas vezes, razões técnicas impedem a rea-
iii) Ruptura da superfície rugosa: pode mani- lização de testes de diagnóstico, o que não deve
festar-se sob a forma de cicatriz suave em forma jamais invalidar um relatório convenientemente ela-
de leque. A presença de cicatrizes deste tipo fora borado nos restantes aspectos. Sempre que as
da linha mediana (isto é, fora dos pontos corres- capacidades dos serviços de diagnóstico sejam
pondentes às 12 ou 6 horas) pode indiciar trau- limitadas, as necessidades clínicas devem ter sem-
matismo por penetração; pre prioridade sobre as utilizações com fins estri-
iv) Marcas na pele, que podem resultar de trau- tamente jurídicos (para mais pormenores, vide
matismos em cicatrização; anexo II).
*06
Indícios psicológicos da tortura
70
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
sociedades repressivas100. As wentM.wrong?:
100
A. Simpson, “What belecimento de diagnósticos e classificações. Em
diagnostic
limitações com que o médico se and ethical problems in termos ideais, esta atitude permitirá transmitir à
dealing with the effects of
pode deparar para a realização torture and repression in vítima a ideia de que as suas queixas e a sua dor são
South Africa” [em portu-
da entrevista não devem, con- diagnósticoquee problemas
guês: “O correu mal?:
éti-
reconhecidas como reais e normais, dadas as cir-
tudo, impedir que se procurem cos ao lidar com os efeitos
da tortura e repressão na
cunstâncias. Assim, uma atitude empática e sensí-
aplicar as directrizes enunciadas África do Sul”], Beyond
Trauma-Cultural and Socie-
vel pode atenuar o sentimento de alienação muitas
no presente manual. Em cir- tal Dynamics, R. J. Kleber,
C. R. Figley, B. P. R. Ger-
vezes experimentado pelas vítimas de tortura.
sons, eds., Nova Iorque,
cunstâncias difíceis, é parti- Plenum Press, 1995, pp. 188
cularmente importante que o a 210. 2. REACÇÕES PSICOLÓGICAS COMUNS
governo e as autoridades envolvidas respeitem
estas normas na máxima medida possível. (a) Revivência do trauma
72
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
xem ocasionalmente de ouvir gritos, de ouvir cha- 3. CLASSIFICAÇÕES DE DIAGNÓSTICO
mar o seu nome ou de ver sombras, sem manifestar
sinais ou sintomas de psicose declarada; 249. Embora as principais quei- 103 Organização Mundial de
Saúde, The ICD-10 Classi-
v) Paranóia e delírios de perseguição; xas e as observações mais impor- fication of Mental and
Behavioural Disorders and
vi) Nos indivíduos com antecedentes de doença tantes registadas entre as vítimas Diagnostic Guidelines [em
português: “A Classificação
mental, podem desenvolver-se distúrbios psicóti- de tortura sejam muito diversi- CID-10 dos Distúrbios Men-
tais e Comportamentais e
cos recorrentes ou alterações de humor com carac- ficadas e dependam em larga Directrizes para o Diagnós-
tico], Genebra, 1994.
terísticas psicóticas. As pessoas com antecedentes medida da experiência de vida 104 American Psychiatric
de distúrbios bipolares, depressão major com de cada pessoa e do contexto cul- Association, Diagnostic
and Statistical Manual of
características psicóticas, esquizofrenia ou dis- tural, social e político em que se Mental Disorders [em por-
tuguês: “Manual de Diag-
túrbios esquizo-afectivos podem manifestar estes insere, convém que as pessoas nóstico e Estatística das
Doenças Mentais”], 4.a edi-
mesmos transtornos. que realizam as avaliações se ção, Washington
D. C., 1994.
familiarizem com os distúrbios
(j) Abuso de substâncias tóxicas mais frequentemente diagnosticados a essas pessoas.
Para além disso, é relativamente frequente que as
247. Acontece frequentemente que os sobreviven- vítimas sofram cumulativamente de dois ou mais
tes de tortura comecem a utilizar abusivamente o distúrbios mentais, que podem interagir entre si.
álcool ou drogas como forma de obnubilar as suas Manifestações diversas de ansiedade e depressão
memórias traumáticas, reequilibrar os seus afec- são os sintomas mais comuns entre as vítimas de
tos e lidar com a ansiedade. tortura. Com relativa frequência, a sintomatologia
[supra] descrita é enquadrada nas categorias de
(k) Incapacidades neuropsicológicas ansiedade e alterações de humor. Os dois sistemas
de classificação mais importantes são a Classificação
248. A tortura pode provocar traumatismos físicos Internacional de Doenças (CID-10), classificação dos
que conduzem a diversos tipos de lesões cerebrais. distúrbios mentais e comportamentais, e o
Golpes na cabeça, asfixia e malnutrição prolon- Manual de Diagnóstico e Estatística das Doenças
gada podem ter consequências neurológicas e Mentais da Associação Psiquiátrica Americana
neuropsicológicas de longo prazo difíceis de detec- [Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disor-
tar no decurso do exame médico. Caso as lesões ders: DSM-IV]103 104. Para uma descrição completa
cerebrais não possam ser detectadas através de das categorias de diagnóstico, o leitor deverá con-
imagiologia cerebral ou outros procedimentos sultar a CID-10 e o DSM-IV. Limitar-nos-emos a
médicos, a avaliação e testes neuropsicológicos abordar os diagnósticos mais habitualmente asso-
podem ser a única forma fidedigna de documen- ciados a situações traumáticas: perturbação de
tar as respectivas sequelas. Muitas vezes, os sin- stress pós-traumático, depressão major e alterações
tomas que essas avaliações e testes visam detectar duradouras da personalidade.
coincidem em grande medida com a sintomatologia
da perturbação de stress pós-traumático e da (a) Distúrbios depressivos
depressão major. As flutuações ou défices ao nível
da consciência, orientação, atenção, concentração, 250. Os estados depressivos são comuns a prati-
memória ou funcionamento executivo podem camente todos os sobreviventes de tortura. Na ava-
resultar de perturbações funcionais, bem como liação das consequências da tortura, não se deve
de causas orgânicas. Assim, para fazer tais dis- partir do princípio de que a perturbação de stress
tinções são necessários conhecimentos especiali- pós-traumático e a depressão major são duas pato-
zados no domínio da avaliação neuropsicológica, logias autónomas com características etiológicas
e há que ter consciência das dimensões culturais claramente distintas. Os distúrbios depressivos
que influem na validação dos instrumentos de englobam a depressão major, de episódio único ou
avaliação neuropsicológica (vide secção C.4 do pre- recorrente (mais do que um episódio). Podem ser
sente capítulo). acompanhados ou não de sintomas psicóticos,
74
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
firmado por pelo menos dois dos seguintes indí- traumatizante. O diagnóstico exclui alterações
cios: dificuldade em dormir ou adormecer, irrita- que traduzam outra perturbação mental ou qual-
bilidade ou acessos de cólera, dificuldades de quer sintoma de distúrbio mental anterior, bem
concentração, hiper-vigilância e reacções de como alterações da personalidade e do compor-
sobressalto exagerado. tamento resultantes de doença, disfunção ou
lesão cerebral.
254. Os sintomas da perturbação de stress pós-
-traumático podem ser crónicos ou variar ao 256. Segundo a CID-10, para o diagnóstico de
longo de períodos de tempo prolongados. Em alteração duradoura da personalidade na
determinadas fases, o quadro clínico é dominado sequência de uma experiência catastrófica, é
por sintomas de sobreexcitação e irritabilidade. necessário que as mudanças de personalidade
Nestas alturas, a vítima costuma também queixa- estejam presentes durante pelo menos dois anos
-se de um acréscimo das memórias intrusivas, depois da exposição à situação traumatizante. A
pesadelos e flashbacks. Noutras fases, a vítima CID-10 especifica que o stress deverá ser tão
pode parecer relativamente assintomática ou extremo que “não seja necessário ter em conta
apresentar retraimento e alheamento emocional. a vulnerabilidade pessoal para explicar o seu
Dever-se-á ter presente que o facto de a vítima não profundo efeito sobre a personalidade”. Esta
preencher os requisitos para o diagnóstico da alteração da personalidade caracteriza-se por
perturbação de stress pós-traumático não signi- uma atitude hostil ou desconfiada em relação ao
fica que a tortura não tenha acontecido. De mundo, alheamento social, sentimentos de
acordo com a CID-10, uma determinada percen- vazio ou perda de esperança, sentimento cró-
tagem dos casos de perturbação de stress pós- nico de “estar no limite”, como se sob uma
-traumático podem evoluir para um cenário ameaça constante, e distanciamento.
crónico durante muitos anos, com eventual tran-
sição para uma alteração duradoura da persona- (d) Abuso de substâncias tóxicas
lidade.
257. Os médicos constataram que as vítimas de tor-
(c) Alteração duradoura da personalidade tura tornam-se muitas vezes dependentes do
álcool ou de drogas, como forma de afastar recor-
255. Depois de catástrofes ou situações de dações traumáticas, reequilibrar afectos e lidar
stress extremo prolongado, as pessoas adultas com a ansiedade. Embora seja comum a presença
podem desenvolver distúrbios de personalidade, simultânea da perturbação de stress pós-traumá-
mesmo não tendo qualquer antecedente deste tipo tico e outras patologias, o fenómeno da toxicode-
de perturbação. Entre os tipos de stress extremo pendência dos sobreviventes de tortura tem sido,
susceptíveis de originar alterações de persona- até agora, pouco estudado. As obras sobre popu-
lidade, contam-se o internamento em campos lações afectadas pela perturbação de stress pós-
de concentração, desastres, detenção prolongada -traumático debruçam-se por vezes sobre a
com a possibilidade iminente de morte, exposi- problemática dos sobreviventes de tortura, como
ção a situações que ameaçam a vida, como o ter- refugiados, prisioneiros de guerra e veteranos de
rorismo, e a tortura. De acordo com a CID-10, a conflitos armados, e podem fornecer alguns dados
alteração duradoura da personalidade só deve importantes. Os estudos sobre estes grupos reve-
ser diagnosticada quando existam indícios de lam que a incidência do abuso de substâncias tóxi-
uma mudança definitiva, significativa e persis- cas varia em função do grupo étnico ou cultural.
tente nos mecanismos de percepção, relaciona- Os antigos prisioneiros de guerra com perturbação
mento e pensamento do indivíduo relativamente de stress pós-traumático estão mais expostos ao
ao seu meio e a si próprio, associada a compor- risco da toxicodependência e os veteranos de
tamentos inflexíveis e dificuldades de adapta- guerra apresentam altas taxas de perturbação de
ção que não se verificavam antes da experiência stress pós-traumático associada ao abuso de subs-
76
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
social e formulação de juízos clínicos (vide capítulos fazer pausas, suspender a entrevista em qualquer
III, secção C e IV, secção E). Se necessário, deverá momento e interrompê-la se o stress se tornar
proceder-se a um diagnóstico psiquiátrico. Dada a insuportável, com a opção de regressar mais tarde
alta incidência de distúrbios psicológicos entre as para nova consulta. Os médicos devem dar mos-
vítimas de tortura, é altamente aconselhável que tras de sensibilidade e empatia nas perguntas que
qualquer investigação de tortura inclua a avaliação colocam, mantendo a objectividade da avaliação clí-
psicológica dessas pessoas. nica. Ao mesmo tempo, o entrevistador deve ter
consciência das suas próprias reacções pessoais
261. Na avaliação do estado psicológico da pes- perante a vítima e o relato de tortura, as quais
soa e formulação do respectivo diagnóstico clí- podem influenciar a sua percepção e o seu juízo.
nico, dever-se-á ter sempre em conta o contexto
cultural em que a mesma está inserida. O conhe- 263. O processo de entrevista poderá fazer lembrar
cimento das síndromes específicas da cultura do ao paciente os interrogatórios a que foi sujeito
paciente e das expressões idiomáticas de angústia durante a tortura. Podem, assim, desenvolver-se
que, na sua língua materna, permitem exprimir os sentimentos negativos muito fortes em relação ao
sintomas, é absolutamente fundamental para a médico, por exemplo de medo, raiva, revolta,
condução da entrevista e formulação dos juízos clí- impotência, confusão, pânico ou ódio. O médico
nicos e respectivas conclusões. Caso o entrevista- deverá permitir que o paciente manifeste e expli-
dor tenha pouco ou nenhum conhecimento da que esses sentimentos, e demonstrar compreen-
cultura da vítima, a assistência de um intérprete são pela difícil situação em que a pessoa se
é imprescindível. Em princípio, um intérprete do encontra. Para além disso, deverá ter-se em conta
país da vítima deverá conhecer a língua, costu- a possibilidade de que a vítima venha a sofrer
mes, tradições religiosas e outras crenças a ter em novas perseguições ou outras formas de opressão.
conta no decurso do inquérito. A entrevista pode Sempre que necessário, devem evitar-se perguntas
suscitar reacções de medo e desconfiança por sobre actividades proibidas. É importante considerar
parte da vítima e, eventualmente, recordar-lhe os as razões que determinaram a realização da ava-
anteriores interrogatórios. Para reduzir os riscos liação psicológica, uma vez que irão condicionar o
de re-traumatização, o médico deverá transmitir à grau de sigilo a que o perito está vinculado. Se a
pessoa a sensação de que compreende a sua expe- avaliação da credibilidade do relato de tortura é
riência e o seu ambiente cultural. Nestes casos, não requerida no âmbito de um processo judicial por
se deve adoptar uma postura de estrita “neutrali- uma autoridade pública, a pessoa objecto de ava-
dade clínica”, utilizada em outras formas de psi- liação deverá ser informada de que isto implica o
coterapia, de acordo com a qual o médico levantamento do sigilo sobre toda a informação
permanece inactivo e diz muito pouco. O médico incluída no relatório. Contudo, se for a própria
deverá dar ao paciente a ideia de que é seu aliado, vítima de tortura a solicitar a realização da avalia-
apoiando-o e abstendo-se de quaisquer juízos de ção psicológica, o perito deverá respeitar o sigilo
valor. médico.
78
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
que permanecem sob detenção, mais do que o consequências físicas e psicológicas da tortura.
facto de o entrevistador ser do mesmo sexo da Uma documentação eficaz da tortura e outras for-
vítima, importa que se trate de um médico habi- mas de maus tratos exige que sejam claramente
litado a responder às perguntas concretas que a pes- compreendidas as motivações pessoais que levam
soa deseje colocar (excepto nas sociedades os profissionais a optar por esta área de trabalho.
tradicionais mais fundamentalistas em que é É consensual a ideia de que os profissionais que
impensável que um homem entreviste uma realizam continuamente este tipo de exames
mulher, muito menos que a examine). Acontece por devem ser supervisionados e apoiados pelos seus
vezes que as vítimas de violação nada dizem a pares com experiência na mesma área. Entre as
uma investigadora sem formação clínica, mas reacções comuns de contra-transferência, con-
pedem para falar com um médico, mesmo que tam-se:
do sexo masculino, a fim de lhe poderem colocar
determinadas questões médicas concretas. As per- i) Sentimentos de evitamento, alheamento e
guntas típicas versam sobre possíveis sequelas, indiferença defensiva face à exposição a informa-
como a gravidez, problemas de fertilidade ou rela- ções perturbadoras. Isto pode levar a que a pessoa
ções sexuais futuras entre esposos. No âmbito das esqueça alguns pormenores do caso e subestime
investigações realizadas para fins legais, a neces- a gravidade das consequências físicas ou psicoló-
sária atenção aos pormenores do caso e a precisão gicas;
das perguntas relativas à história são facilmente vis- ii) Desilusão, impotência, desespero e sobre-
tas como sinais de desconfiança ou dúvida da identificação que podem provocar sintomas de
parte do examinador. depressão ou trauma indirecto, como pesadelos,
ansiedade e medo;
270. Devido às pressões psicológicas anterior- iii) Sentimentos de grandiosidade e omnipo-
mente mencionadas, as vítimas podem ser re-trau- tência, julgando-se o salvador da pessoa, o grande
matizadas e ficar arrasadas pelas recordações e, em perito no trauma ou a última esperança para a
resultado disto, erguer ou mobilizar fortes barrei- recuperação e bem-estar da vítima;
ras defensivas que se traduzem num profundo iv) Sentimentos de insegurança quanto às suas
alheamento e retracção afectiva durante o exame competências profissionais quando confrontado
ou entrevista. Para a documentação do caso, os com a gravidade da história ou sofrimento relatado.
comportamentos de alheamento e retracção Podem manifestar-se através de falta de confiança
colocam dificuldades especiais, uma vez que na sua capacidade para responder às necessidades
impedem as vítimas de tortura de comunicar efi- da vítima e preocupação irrealista com normas
cazmente a sua história e o sofrimento por que pas- médicas idealizadas;
sam, embora lhes fosse mais benéfico fazê-lo. v) Sentimentos de culpa por não partilhar a
experiência e a dor da vítima de tortura ou por ter
271. As reacções de contra-transferência são mui- consciência do que não foi feito a nível político –
tas vezes inconscientes e, se o avaliador não se aper- podem conduzir a uma abordagem excessiva-
ceber delas, tornam-se um problema. É natural mente sentimental ou idealizada do paciente;
sentir emoções ao ouvir a pessoa relatar a sua vi) Cólera e raiva perante os torcionários e per-
experiência de tortura e, embora tais emoções pos- seguidores – são normais, mas podem compro-
sam interferir na eficácia do médico, quando com- meter a objectividade profissional se orientadas por
preendidas podem orientar o seu trabalho. Os experiências pessoais não admitidas, tornando-se
médicos e psicólogos que trabalham na área da ava- assim crónicas ou excessivas;
liação e tratamento das vítimas de tortura estão de vii) Raiva ou repugnância pela vítima podem
acordo em que é fundamental ter consciência e resultar do facto de a pessoa se sentir exposta a
compreender as reacções típicas da contra-trans- níveis de ansiedade a que não está habituada.
ferência, uma vez que este fenómeno pode limi- Podem também surgir pelo facto de o avaliador se
tar a capacidade de avaliação e documentação das sentir usado pela vítima caso as experiências clí-
80
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
O entrevistador necessita de conhecer as questões (d) Situação anterior à tortura
jurídicas em causa, uma vez que as mesmas irão
determinar a natureza e quantidade de informa- 278. Se relevante, descreva a infância, adolescên-
ção necessária para a adequada documentação cia e entrada na vida adulta da vítima, anteceden-
dos factos. tes e composição familiar e doenças de família.
Deverá também ser descrito o percurso escolar e
(b) Queixas psicológicas actuais profissional da pessoa, bem como quaisquer ante-
cedentes de trauma, por exemplo maus tratos
276. A avaliação do estado psi- 113 B. O. Rothbaum e durante a infância, traumas de guerra ou violên-
outros, “A prospective exa-
cológico actual da pessoa cons- mination of post-traumatic cia doméstica, e ainda o contexto cultural e religioso
stress disorder rape victims”
titui a parte fundamental da [em português: “Uma aná- em que a vítima se insere.
lise prospectiva da perturba-
avaliação. Uma vez que os pri- ção de stress pós-traumático
nas vítimas de violação”],
sioneiros de guerra severa- Journal of Traumatic Stress, 279. A descrição da situação anterior à tortura é
5, 1992, pp. 455 a 475.
mente maltratados e as vítimas 114 importante para avaliar o estado de saúde mental
P. B. Sutker, D. K. Wins-
de violação manifestam uma tead, Z. H. Galina, “Cogni- e nível de funcionamento psicossocial da pessoa
tive deficits and
incidência de perturbação de psycho-pathology among antes dos acontecimentos traumatizantes. Desta
former prisoners of war and
stress pós-traumático perma- combat veterans of the forma, o entrevistador pode comparar o estado de
Korean conflict” [em portu-
nente em cerca de 80 a 90 por guês: “Défices cognitivos e saúde mental da vítima antes e depois da tortura.
psico-patologias entre os
cento dos casos, há que for- prisioneiros de guerra e Na avaliação dos antecedentes do caso, o entre-
veteranos de combate do
mular perguntas especifica- conflito da Coreia”] Ameri- vistador deve ter em conta que a duração e gravi-
can Journal of Psychiatry,
mente incidentes sobre as três 148, 1991, pp. 62 a 72. dade das reacções ao trauma são influenciadas por
categorias de perturbação de stress pós-traumá- múltiplos factores, nomeadamente os seguintes: cir-
tico segundo a classificação do DSM-IV (reviver cunstâncias da tortura; percepção e interpretação
o acontecimento traumatizante, evitar ou repri- do sucedido pela vítima; contexto social antes,
mir as reacções, nomeadamente através da durante e depois da tortura; apoio da comunidade
amnésia, e sobreexcitação) 113 114. Os sintomas e dos colegas; valores e atitudes perante as expe-
afectivos, cognitivos e comportamentais devem ser riências traumatizantes; factores políticos e cul-
descritos em detalhe, assim como a frequência dos turais; gravidade e duração dos acontecimentos
pesadelos, alucinações e reacções de sobressalto, traumatizantes; vulnerabilidades genéticas e bio-
se possível com exemplos concretos. A ausência lógicas; maturidade e idade da vítima; traumas
de sintomas pode dever-se à natureza episódica anteriores e personalidade da pessoa. Muitas
e muitas vezes diferida da perturbação de stress vezes, devido a limitações de tempo e outros pro-
pós-traumático ou à negação dos sintomas por blemas, pode ser difícil obter toda esta informação.
vergonha. É, contudo, importante obter dados suficientes
sobre o anterior estado de saúde mental da pessoa
(c) Situação subsequente à tortura e funcionamento psicossocial, a fim de poder ava-
liar até que ponto a tortura contribuiu para os pro-
277. Esta componente da avaliação psicológica blemas psicológicos actuais.
visa obter informação sobre as actuais circuns-
tâncias de vida da pessoa. É importante inqui- (e) Historial clínico
rir a respeito de actuais causas de stress, como
a separação ou perda de entes queridos, abandono 280. O historial clínico resume as condições de
do país de origem e vida no exílio. O entrevis- saúde da pessoa anteriores ao trauma, condições
tador deverá também tentar determinar a capa- de saúde actuais, dores no corpo, queixas somáti-
cidade da pessoa para levar uma vida produtiva, cas, utilização de medicamentos e seus efeitos
garantir a sua subsistência e cuidar da sua famí- colaterais, antecedentes sexuais relevantes, inter-
lia, bem como os mecanismos de apoio social ao venções cirúrgicas a que foi submetida e outros
seu dispor. dados médicos (vide capítulo V, secção B).
82
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
ii) As constatações do exame psicológico cons- cionado. Pode ser aplicável mais do que um diag-
tituem reacções habituais ou típicas de situações nóstico. Deverá salientar-se de novo que, embora
de stress intenso dentro do contexto cultural e um diagnóstico de perturbação mental de origem
social da pessoa? traumática corrobore a alegação de tortura, o facto
iii) Dada a natureza evolutiva dos distúrbios de a pessoa não satisfazer os critérios de diag-
mentais de origem traumática, a que momento nóstico psiquiátrico não permite concluir pela
remonta a tortura? Em que ponto do processo de falsidade das alegações. A vítima pode não apre-
recuperação se encontra o indivíduo? sentar sintomas que correspondam exactamente
iv) Que factores de stress concomitantes actuam a uma das categorias mencionadas nas classifi-
simultaneamente sobre o indivíduo (por exemplo, cações DSM-IV ou CID-10. Nestes casos, como em
situação de perseguição em curso, migração forçada, todos os outros, os sintomas apresentados pela pes-
exílio, perda da família e do papel social)? Que soa e os maus tratos alegados devem ser consi-
impacto têm estes factores sobre a pessoa? derados como um todo. O grau de conformidade
v) Que problemas físicos intervêm no quadro clí- entre o relato de tortura e os sintomas de que a
nico? Preste especial atenção a lesões cranianas vítima se queixa deverão ser avaliados e descritos
sofridas durante a sessão de tortura ou período de no relatório.
detenção;
vi) O quadro clínico sugere uma falsa alegação 289. É importante reconhecer que algumas pessoas
de tortura? apresentam falsas alegações de tortura por diver-
sos motivos diferentes e que outras podem exagerar
287. Os médicos deverão pronunciar-se sobre a a gravidade do incidente por razões pessoais ou polí-
coerência das observações psicológicas e sua rela- ticas. O investigador deve ter sempre presente
ção com os alegados maus tratos. Dever-se-ão estas possibilidades e tentar identificar eventuais
descrever os seguintes parâmetros: estado emo- motivos que possam levar o sujeito a inventar ou
cional e expressão da pessoa durante a entre- exagerar a história. O médico deverá também ter
vista; seus sintomas; relato da situação de em conta, contudo, que tal invenção dos factos
detenção e tortura; história pessoal do indivíduo exige um conhecimento aprofundado dos sintomas
antes da tortura. Também deverão ser registados de origem traumática que um leigo raramente
factores como o surgimento de sintomas especí- possui. As incoerências do relato podem dever-se
ficos relacionados com o traumatismo, especifi- a uma multiplicidade de razões válidas, como pro-
cidade de quaisquer observações psicológicas em blemas de memória derivados de lesão cerebral,
concreto e padrões de funcionamento psicoló- confusão, dissociação, diferenças culturais na per-
gico. Entre os factores adicionais a ter em conta, cepção do tempo ou fragmentação e repressão das
incluem-se a migração forçada, reinstalação, difi- memórias traumatizantes. A documentação efi-
culdades de aculturação, problemas linguísticos, caz dos indícios psicológicos da tortura exige que
desemprego, perda do lar, família e estatuto o médico tenha a capacidade de avaliar as coerên-
social. Dever-se-á avaliar e descrever a relação e cias e incoerências do testemunho da vítima. Se o
coerência entre os acontecimentos e os sinto- entrevistador suspeitar de que a história foi fabri-
mas. Os problemas físicos, tais como traumatis- cada, deverá marcar novas entrevistas para escla-
mos cranianos ou lesões cerebrais, podem exigir recer os pontos que lhe suscitam dúvidas. Os
uma avaliação mais aprofundada. Pode reco- familiares e amigos podem também confirmar
mendar-se a realização de exames neurológicos determinados factos. Se, depois de todas estas dili-
ou neuropsicológicos. gências, as dúvidas quanto à veracidade da histó-
ria persistirem, o médico deverá tomar a iniciativa
288. Caso o sobrevivente de tortura apresente de encaminhar o paciente para outro médico e
sintomas que se enquadrem num dos diagnósti- pedir a opinião do colega. A suspeita de falsas ale-
cos psiquiátricos das classificações DSM-IV ou gações deverá ser documentada com o parecer de
CID-10, o diagnóstico em causa deverá ser men- dois médicos.
84
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
preenchidos, não será de todo possível realizar – TPT), vendando os olhos do paciente como é habi-
testes orais nem interpretá-los de forma adequada. tual. Para a maior parte das vítimas de tortura que
Isto significa que apenas se poderá recorrer a tes- tenham sido vendadas durante o período de deten-
tes não verbais, o que impede a comparação entre ção e tortura, e mesmo para as que o não tenham
as faculdades verbais e não verbais. Para além sido, seria muitíssimo traumatizante experimen-
disso, a análise da lateralização (ou localização) tar a sensação de impotência inerente a este pro-
dos défices torna-se mais difícil. E esta análise é cedimento. Na verdade, qualquer tipo de teste
muitas vezes importante devido à organização neuropsicológico pode ser problemático em si
assimétrica do cérebro, em que o hemisfério mesmo, independentemente do instrumento uti-
esquerdo domina tipicamente a função da fala. Se lizado. O facto de a pessoa se sentir observada, ver
não existirem normas de referência específicas do o seu tempo cronometrado e ser instada a colocar
grupo cultural e linguístico do sujeito, a validade o máximo de esforço no desempenho de uma
da avaliação neuropsicológica é também questio- tarefa que não lhe é familiar, em vez de dialogar,
nável. A estimativa do QI é um dos principais cri- pode tornar-se demasiado angustiante ou evocar a
térios que permitem aos examinadores colocar os experiência de tortura.
resultados dos testes na perspectiva correcta.
Assim, por exemplo, na população dos Estados (b) Indicações para a avaliação neuropsicológica
Unidos estas estimativas calculam-se em geral a par-
tir de subgrupos de testes verbais que utilizam as 297. Na avaliação dos problemas comportamentais
escalas de Wechsler, em particular a sub-escala de das presumíveis vítimas de tortura, a avaliação
informação, porque, na presença de lesão cere- neuropsicológica está indicada sobretudo em duas
bral orgânica, os conhecimentos factuais adquiri- situações: lesões cerebrais e perturbação de stress
dos são menos susceptíveis de sofrer deterioração pós-traumático e lesões afins. Embora ambos os
do que as restantes funções e mais representativos problemas tenham aspectos em comum, e muitas
da anterior capacidade de aprendizagem do que vezes coincidentes, apenas o primeiro constitui
outros padrões de medida. As medições podem tam- uma aplicação típica e tradicional da neuropsico-
bém basear-se nos antecedentes escolares e pro- logia clínica, ao passo que o segundo é uma área
fissionais, e nos dados demográficos. Obviamente, relativamente nova, pouco estudada e bastante
nenhuma destas considerações é aplicável às pes- problemática.
soas pertencentes a grupos relativamente aos
quais não tenham sido determinadas normas de 298. As lesões do cérebro e danos cerebrais daí
referência. Por isso, nestes casos só podem ser resultantes podem derivar de diversos tipos de
feitas estimativas muito grosseiras do funciona- traumatismos cranianos e distúrbios metabólicos
mento intelectual anterior ao trauma. Conse- infligidos durante os períodos de perseguição,
quentemente, as incapacidades neuropsicológicas detenção e tortura. Aqui se incluem feridas de
que não cheguem a ser graves ou moderadas bala, sequelas de envenenamento, malnutrição
podem ser difíceis de interpretar. resultante de privação de alimentos ou ingestão for-
çada de substâncias nocivas, sequelas de hipoxia
296. As avaliações neuropsicológicas podem pro- ou anoxia resultantes de asfixia ou quase afoga-
vocar novos traumas às vítimas de tortura. Devem mento e, mais frequentemente, de pancadas na
ser tomadas todas as precauções com os procedi- cabeça aplicadas durante sessões de espanca-
mentos de diagnóstico empregues para minimizar mento. As pancadas na cabeça são uma prática
este risco (vide capítulo IV, secção H). Para dar ape- corrente em situações de detenção e tortura. Por
nas um exemplo óbvio e específico da avaliação exemplo, um estudo realizado junto de uma amos-
neuropsicológica, seria potencialmente muito pre- tra de vítimas de tortura revelou que as pancadas
judicial submeter a pessoa ao processo normal da na cabeça eram indicadas como a segunda forma
bateria Halstead-Reitan, e em particular ao Teste mais frequente de violência física (45 por cento),
de Desempenho Táctil (Tactual Performance Test logo depois das pancadas no corpo (58 por
86
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
303. A questão complica-se 118 D. M. Jacobs e outros, referência aplicáveis à popula- 120 J. A. Knight, “Neurops-
”Cross-cultural neurops- ychological assessment in
ainda mais pelo facto de se ychological assessment: a ção a que pertencem as vítimas post-traumatic stress disor-
comparison of randomly der” [em português: “Avalia-
registarem diferenças significa- selected, demographically em causa, colocam-se grandes ção neuropsicológica na
matched cohorts of English perturbação de stress pós-
tivas nos resultados dos testes and Spanish-speaking older
adults” [em português:
dificuldades. A perturbação de -traumático”], Assessing
Psychological Trauma and
não verbais aplicados a grupos “Avaliação neuropsicológica
inter-cultural: uma compa-
stress pós-traumático constitui PTSD, J. P. Wilson e T. M.
Keane, eds., Nova Iorque,
pertencentes a culturas relativa- ração de grupos de idosos
de língua inglesa e língua
um distúrbio psiquiátrico que Guilford, 1997.
mente próximas. Por exemplo, espanhola escolhidos ao
acaso entre populações
não é tradicionalmente objecto de avaliação neu-
foram comparados os resulta- res”], Journal of Clinical
demograficamente simila- ropsicológica. Para além disso, a perturbação de
dos de uma pequena bateria de and Experimental Neu-
ropsychology, 19 (3), 1997,
stress pós-traumático não se presta à aplicação do
testes neuropsicológicos apli- pp. 331 a 339. modelo clássico de análise das lesões cerebrais
cada a duas amostras popula- identificáveis e susceptíveis de confirmação atra-
cionais de 118 idosos cada, sendo um dos grupos vés de técnicas médicas. Recentemente, os para-
composto por pessoas de língua inglesa e outro por digmas neuropsicológicos têm vindo a ser
pessoas de língua espanhola118. As amostras foram invocados com mais frequência do que no pas-
seleccionadas ao acaso entre populações demo- sado, devido ao interesse acrescido pelos meca-
graficamente similares. E, no entanto, embora os nismos biológicos associados aos distúrbios
resultados dos testes verbais tenham sido análogos, psiquiátricos em geral, e progressos alcançados
as pessoas de língua espanhola obtiveram resultados na compreensão dos mesmos. Contudo, como já
significativamente mais baixos em quase todos os foi dito: “[...] até à data, pouco se escreveu sobre a
testes não verbais. Estes resultados sugerem a perturbação de stress pós-traumático sob uma
necessidade de tomar as maiores precauções na apli- perspectiva neuropsicológica”120.
cação de testes verbais e não verbais elaborados por
sujeitos anglófonos a pessoas não anglófonas. 306. As amostras utilizadas no estudo das medi-
ções neuropsicológicas da perturbação de stress
304. A escolha dos instrumen- 119 O. Spreen e E. Strauss, pós-traumático variam bastante, o que pode con-
A Compendium of Neu-
tos e procedimentos de avaliação ropsychological Tests [em tribuir para a variação dos problemas cognitivos
português: Compêndio de
neuropsicológica das alegadas Testes Neuropsicológi- identificados por tais estudos. Alguns autores con-
cos], Nova Iorque, Oxford
vítimas de tortura deve ser dei- University Press. sideraram que “as observações clínicas sugerem que
xado ao critério do médico, que os sintomas da perturbação de stress pós-traumá-
fará a sua opção em função das exigências e con- tico coincidem na sua maioria com os domínios
dicionalismos da situação. A utilização eficaz de neurocognitivos da atenção, memória e funciona-
testes neuropsicológicos exige experiência e mento executivo”. Isto está de acordo com as
conhecimentos aprofundados das relações entre queixas frequentemente manifestadas pelos sobre-
o cérebro e o comportamento. Podem encontrar- viventes de tortura. Estas pessoas queixam-se de difi-
-se listas completas dos procedimentos e testes de culdades de concentração e de se sentirem
avaliação neuropsicológica e formas de os uti- incapazes de reter informação e de desenvolve-
lizar correctamente na bibliografia de referên- rem actividades planeadas e orientadas para objec-
cia119. tivos concretos.
88
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
ocupam depois dos aconteci- 124 Ottino S. von Overbeck, dever-se-á basear mais na obser- 128 L. C. Terr, “Childhood
“Familles victimes de violen- traumas: an outline and
mentos124. No caso de crianças ces collectives et en exil: vação do comportamento da overview” [em português:
quelle urgence, quel modèle “Traumas de infância:
com idade inferior a três anos de soins? Le point de vue criança do que na sua expressão resumo e panorâmica
d’une pédopsychiatre” [em geral”], American Journal
que tenham experimentado ou português: “Famílias víti-
mas de violências colectivas
verbal128 129 130 131. Por exemplo, of Psychiatry, 148, 1991,
pp. 10 a 20.
sido testemunhas de tortura, as equeemmodeloexílio: que urgência,
de tratamento?
a criança pode revelar sintomas 129 National Center for
pessoas em seu redor desem- Opedopsiquiatra”],
ponto de vista de uma
La Revue
de estar a reviver o trauma, o Infants, Toddlers and Fami-
lies, Zero to Three, 1994.
penham um papel fundamental Française de Psychiatrie et
de Psychologie Médicale,
que se manifesta através de 130 F. Sironi, “On torture un
de protecção e tranquilização125. 14, 1998, pp. 35 a 39. brincadeiras monótonas e repe- enfant, ou les avatars de
l’ethnocentrisme psychologi-
125
As reacções das crianças muito en M. Grappe, “La guerre
ex-Yougoslavie: un regard
titivas que representam aspectos que” [em português: Tortura
de crianças, ou as doenças
jovens às experiências traumati- sur les enfants réfugiés” [em
português: “A guerra na ex-
do acontecimento traumático, do etnocentrismo psicoló-
gico], Enfances, 4, 1995,
zantes passam frequentemente -Jugoslávia: um olhar sobre
as crianças refugiadas”],
memórias visuais dos factos pp. 205 a 215.
131
Psychiatrie humanitaire en
pela sobreexcitação, manifes- ex-Yougoslavie et en durante ou fora das brincadei- phesL. etBailly, “Les catastro-
leurs conséquences
tada através de agitação, pertur- Arménie. Face au trauma-
tisme, M. R. Moro e S.
ras, perguntas ou declarações psychotraumatiques cez
l’enfant” [em português:
bações do sono, irritabilidade e Lebovici
1995.
eds., Paris, PUF,
repetitivas sobre o aconteci- As catástrofes e suas con-
sequências psicotraumáti-
na criança], Paris, ESF,
reacções de hipervigilância e 126 J. Piaget, La naissance mento traumatizante e pesade- cas 1996.
evitamento. As crianças com de l’intelligence chez l’en-
fant [em português: O Nas- los. A criança pode desenvolver
cimento da inteligência na
idade superior a três anos ten- criança ], Neuchâtel, Dela- enurese nocturna, perda de controlo das funções
dem frequentemente a alhear-se chaux e Niestlé, 1977. intestinais, alheamento social e afectivo, mudan-
127
Vide nota 125.
e recusar-se a falar directa- ças de atitude perante ela própria e perante os
mente sobre as experiências traumatizantes. outros e sentimentos de que não existe qualquer
A capacidade de expressão verbal aumenta em futuro. Pode também ser afectada por sobreexci-
função do grau de desenvolvimento. Uma evolu- tação e terrores nocturnos, problemas em ir para
ção acentuada regista-se quando a criança atinge a cama, perturbações do sono, hiper-vigilância,
a fase operativa concreta (por volta dos 8-9 anos de irritabilidade e transtornos significativos de aten-
idade), altura em que desenvolve a capacidade de ção e concentração. Temores e comportamentos
fornecer uma cronologia fidedigna dos aconteci- agressivos que não se verificavam antes do acon-
mentos. Durante esta fase, desenvolvem-se as tecimento traumatizante podem manifestar-se sob
capacidades operativas concretas, temporais e a forma de agressividade para com as outras crian-
espaciais126. Estas novas competências são ainda ças, adultos ou animais, medo do escuro, medo de
frágeis e, em geral, as crianças só desenvolvem a ir à casa de banho e fobias. A criança pode revelar
capacidade de construir constantemente uma nar- um comportamento sexual pouco adequado à sua
rativa coerente por volta dos 12 anos de idade, ao idade e desenvolver reacções somáticas. Podem
atingir a fase operativa formal. A adolescência também surgir sintomas de ansiedade, como um
representa um período de desenvolvimento tur- medo exagerado de estranhos ou de ser separado
bulento, durante o qual as consequências da tor- de familiares próximos, pânico, agitação, acessos
tura podem variar consideravelmente de pessoa para de cólera e choro incontrolável, bem como dis-
pessoa. Em determinados casos, as experiências de túrbios de ordem alimentar.
tortura podem causar profundas alterações de per-
sonalidade nos adolescentes, que se traduzem em (c) Papel da família
comportamentos anti-sociais127. Noutros, o
impacto poderá ser similar ao observado em crian- 314. A família desempenha um importante papel
ças mais jovens. dinamizador na persistência da sintomatologia
nas crianças. Para preservar a coesão familiar,
(b) Considerações clínicas podem surgir comportamentos disfuncionais e
fenómenos de delegação de papéis. A determina-
313. As crianças podem apresentar sintomas da dos membros da família, frequentemente crianças,
perturbação de stress pós-traumático, similares pode ser atribuído o papel de paciente com o
aos observados nos adultos. Porém, o médico desenvolvimento de perturbações graves. Por
90
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
Anexo I
1. Entre os objectivos de uma 132 A Comissão dos Direitos independentes dos suspeitos e dos organismos a
do Homem, na sua
investigação e documentação resolução 2000/43, e a que estes pertencem, devem ser competentes e
Assembleia Geral, na sua
eficazes da tortura e outras resolução 55/89, chamaram imparciais. Deverão ter acesso a perícias efectua-
a atenção dos Governos
penas ou tratamentos cruéis, para os Princípios e
encorajaram fortemente os
das por médicos ou outros peritos independen-
desumanos ou degradantes (de Governos a reflectirem sobre
os mesmos enquanto
tes, ou dispor da faculdade de ordenar a realização
ora em diante designados por instrumento útil nos
esforços para combater a
de tais perícias. Os métodos utilizados para levar
tortura ou outros maus tratos), tortura. a cabo o inquérito deverão respeitar as mais exi-
contam-se os seguintes: gentes normas profissionais e os resultados obti-
a) esclarecimento dos factos e estabelecimento dos deverão ser tornados públicos.
e reconhecimento da responsabilidade individual
e estadual perante as vítimas e suas famílias; 3. a) A autoridade responsá- 133 Em determinadas
circunstâncias, a deontolo-
b) identificação das medidas necessárias para vel pelo inquérito deverá dispor gia profissional poderá
obrigar a que a informação
prevenir que os factos se repitam; de poderes para obter toda a se mantenha confidencial,
o que deve ser respeitado.
c) facilitação do exercício da acção penal ou, informação necessária à inves-
sendo caso disso, da aplicação de sanções disci- tigação e estar obrigada a procurá-la133. As pessoas
plinares, contra as pessoas cuja responsabilidade que conduzem a investigação deverão ter ao seu dis-
se tenha apurado na sequência do inquérito; e por todos os recursos financeiros e técnicos neces-
demonstrar a necessidade de plena reparação e sários a uma investigação eficaz. Deverão dispor
ressarcimento por parte do Estado, incluindo a também de competência para obrigar todos os
necessidade de atribuir uma indemnização justa funcionários presumivelmente implicados na prá-
e adequada e de disponibilizar os meios necessá- tica de tortura ou maus tratos a comparecer nos
rios ao tratamento médico e à reabilitação. interrogatórios. O mesmo se aplicara relativa-
mente a quaisquer testemunhas. Para este fim, a
2. Os Estados deverão garantir que todas as autoridade responsável pelo inquérito deverá estar
queixas e denúncias de tortura ou maus tratos habilitada a intimar as testemunhas, incluindo
sejam pronta e eficazmente investigadas. Mesmo quaisquer funcionários alegadamente envolvidos,
na ausência de uma denúncia expressa, deverá ser e a exigir a apresentação de provas.
instaurado um inquérito caso existam outros indí- b) As alegadas vítimas de tortura ou maus tra-
cios de que possam ter ocorrido actos de tortura ou tos, testemunhas, investigadores e suas famílias
maus tratos. Os investigadores, que deverão ser deverão ser protegidos contra a violência, ameaças
Princípios sobre a Investigação e Documentação Eficazes da Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes
* 91
de violência ou qualquer outra forma de intimidação sido divulgada para sua própria protecção.
a que possam estar expostos em resultado do O Estado deverá dar resposta ao relatório num
inquérito. Os suspeitos de implicação em actos prazo razoável e, se necessário, indicar as medidas
de tortura ou maus tratos deverão ser afastados de a adoptar na sequência do mesmo.
qualquer posição de controlo ou comando, directo
ou indirecto, sobre os queixosos, testemunhas e 6. a) Os peritos médicos envolvidos na inves-
suas famílias, bem como sobre as pessoas que tigação da tortura ou dos maus tratos deverão
realizam a investigação. pautar a sua conduta, em todos os momentos, de
acordo com os princípios éticos mais rigorosos,
4. As alegadas vítimas de tortura ou maus tra- devendo, em particular, obter o consentimento
tos e seus representantes legais deverão ser infor- esclarecido da pessoa em causa antes da realiza-
mados da realização de qualquer audiência e ter ção de qualquer exame. Os exames deverão ser
acesso a ela, bem como a toda a informação rela- efectuados em conformidade com as regras esta-
tiva ao inquérito, e dispor do direito de apresentar belecidas de prática médica. Em particular, os
outras provas. exames deverão ser efectuados em privado, sob
o controlo do perito médico e nunca na presença
5. a) Nos casos em que os 134 Vide nota de rodapé de agentes de segurança ou outros funcionários
supra.
procedimentos de inquérito se governamentais.
revelem inadequados por falta de capacidade téc-
nica, possível falta de imparcialidade, indícios da b) O perito médico deverá elaborar imediata-
existência de abusos sistemáticos ou outros moti- mente um relatório escrito rigoroso. Este relatório
vos relevantes, os Estados deverão garantir que as deverá incluir, no mínimo, os seguintes elementos:
investigações sejam levadas a cabo por uma
comissão de inquérito independente ou meca- i) Circunstâncias da entrevista: nome da pessoa
nismo análogo. Os membros desta comissão examinada e nome e função de todos quantos este-
deverão ser seleccionados com base na sua reco- jam presentes no exame; hora e data exactas do
nhecida imparcialidade, competência e indepen- exame; localização, natureza e morada (incluindo,
dência pessoal. Deverão, em particular, ser se necessário, a sala) da instituição onde se realiza
independentes de quaisquer suspeitos e das ins- o exame (por exemplo, estabelecimento prisional,
tituições ou agências a que estes pertençam. clínica, casa particular); condições em que se
A comissão deverá ser dotada de competência para encontra a pessoa no momento do exame (por
obter toda a informação necessária e deverá con- exemplo, natureza de quaisquer restrições que lhe
duzir o inquérito em conformidade com os pre- tenham sido impostas aquando da chegada ao
sentes Princípios134. local do exame ou no decurso do mesmo, pre-
sença de forças de segurança durante o exame,
b) Num prazo razoável, deverá ser elaborado comportamento das pessoas que acompanham o
um relatório escrito do qual conste o âmbito do detido, ameaças proferidas contra a pessoa que
inquérito instaurado, os procedimentos e métodos efectua o exame) e quaisquer outros factores rele-
utilizados na apreciação das provas, bem como as vantes;
conclusões e recomendações elaboradas com base ii) Antecedentes: registo detalhado dos factos
nos factos apurados e no direito aplicável. Este relatados pela pessoa em causa no decurso do
relatório deverá ser tornado público logo que se exame, incluindo os alegados métodos de tortura
encontre concluído. O relatório deverá também ou maus tratos, momento em que se alega ter
descrever em detalhe os factos concretos que se pro- ocorrido a tortura ou os maus tratos e todos os sin-
vou terem acontecido e as provas com base nas tomas físicos ou psicológicos que a pessoa afirme
quais foram apurados, bem como indicar os sofrer;
nomes das testemunhas que prestaram declarações, iii) Exame físico e psicológico: registo de todos
à excepção daquelas cuja identidade não tenha os resultados obtidos na sequência do exame, a nível
92
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
físico e psicológico, incluindo os testes de diag- c) Este relatório deverá ser confidencial e comu-
nóstico apropriados e, sempre que possível, foto- nicado à pessoa examinada ou seu representante
grafias a cores de todas as lesões; nomeado. A opinião da pessoa examinada ou seu
iv) Parecer: interpretação quanto à relação representante quanto ao processo de exame deverá
provável entre os resultados do exame físico e psi- ser recolhida e incluída no relatório. O relatório
cológico e a eventual ocorrência de tortura ou escrito deverá também ser enviado, se for caso disso,
maus tratos. Deverá ser formulada uma reco- à autoridade responsável pela investigação dos ale-
mendação quanto à necessidade de qualquer tra- gados actos de tortura ou maus tratos. Cabe ao
tamento médico ou psicológico ou exame Estado assegurar que o relatório seja enviado em
ulterior; segurança aos seus destinatários. O relatório não
v) Autoria: o relatório deverá identificar clara- deverá ser divulgado a nenhuma outra pessoa, salvo
mente as pessoas que procederam ao exame e com o consentimento do interessado ou autorização
deverá ser assinado. do tribunal competente para ordenar tal divulgação.
Princípios sobre a Investigação e Documentação Eficazes da Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes
* 93
Anexo II
Testes de diagnóstico
Os testes de diagnóstico evoluem e são constan- tecnológicos mais sofisticados e dispendiosos nem
temente objecto de avaliação. Os testes de diag- sempre estão disponíveis, sobretudo no caso de pes-
nóstico a seguir enunciados foram considerados soas detidas.
válidos no momento da elaboração do presente
manual. Contudo, caso se torne necessário encon- Os exames de diagnóstico radiológicos e ima-
trar elementos de prova suplementares, os inves- giológicos compreendem as radiografias con-
tigadores devem procurar fontes de informação vencionais (raios-x), cintigrafia rádio-isotópica,
actualizada, por exemplo contactando um dos cen- tomografia computorizada (TC), ressonância mag-
tros especializados na área da documentação da tor- nética nuclear (RMN) e ultrassonografia (US). Cada
tura (vide capítulo V, secção E). um destes métodos apresenta vantagens e desvan-
tagens. Os raios-x, a cintigrafia e a tomografia com-
putorizada utilizam radiação ionizante, que pode
1. IMAGIOLOGIA RADIOLÓGICA ser contra-indicada no caso de mulheres grávidas e
crianças. A ressonância magnética utiliza um campo
Na fase aguda das lesões, diversos métodos de magnético, com potenciais efeitos biológicos,
imagiologia podem ser de grande utilidade na embora se pense que mínimos, sobre fetos e crian-
recolha de informação adicional sobre as lesões do ças. A ultrassonografia utiliza ondas sonoras, não apre-
esqueleto e tecidos moles. Contudo, uma vez sara- sentando quaisquer riscos biológicos conhecidos.
das as feridas físicas resultantes da tortura, as res-
pectivas sequelas residuais não são, em geral, Os raios-x estão amplamente difundidos. À excep-
detectáveis através dos mesmos métodos imagio- ção do crânio, todas as áreas lesionadas deverão ser
lógicos. Isto acontece muitas vezes, mesmo nos submetidas a radiografias de rotina no exame ini-
casos em que a vítima continua a sentir dores sig- cial. Enquanto que as radiografias convencionais
nificativas ou incapacidades resultantes das lesões revelam as fracturas faciais, a tomografia compu-
sofridas. Já foi feita referência a diversos estudos torizada constitui uma técnica de diagnóstico
radiológicos aquando da discussão das questões superior, pois permite detectar outras fracturas, des-
relativas ao exame dos pacientes ou a propósito da locações dos fragmentos ósseos, bem como lesões
descrição das diversas formas de tortura. As con- e complicações nos tecidos moles associadas às frac-
siderações que se seguem são um resumo da apli- turas. Quando se suspeite da existência de lesões
cação de tais métodos. Contudo, os recursos do periósteo ou fracturas mínimas, deve recorrer-
Testes de diagnóstico
* 95
-se à cintigrafia óssea como complemento dos no segundo sugerem que a pes- 135 Vide notas 82 a 84; para
mais informações, consulte
raios-x. Uma determinada percentagem dos raios- soa foi sujeita à falanga poucos os textos de referência nas
áreas da radiologia e medi-
-x apresentará resultados negativos mesmo na pre- dias antes do primeiro exame. cina nuclear.
sença de fracturas agudas ou osteomielite inicial. Nas situações agudas, dois resultados negativos
As fracturas podem sarar sem deixar quaisquer obtidos com uma semana de intervalo não signi-
indícios detectáveis através dos métodos radioló- ficam necessariamente que a falanga não tenha
gicos, o que acontece sobretudo no caso de crian- ocorrido, mas antes que a gravidade das lesões
ças. As radiografias de rotina não são o melhor está abaixo do nível de sensibilidade da cintigra-
método para o exame dos tecidos moles. fia. Se for seguido o processo trifásico, um
aumento inicial da resposta nas fases arterial e
A cintigrafia constitui um método de exame de alta venosa, mas não na fase óssea, sugerem uma
sensibilidade, mas baixa especificidade. Trata-se de hiperemia compatível com lesão dos tecidos
um meio pouco dispendioso e eficaz no exame de moles. Os traumatismos nos ossos e tecidos moles
todo o esqueleto para detectar eventuais processos dos pés podem também ser detectados através de
patológicos, como osteomielites ou traumatismos. ressonância magnética135.
Pode também avaliar a torção testicular, embora a
ultrassonografia seja mais adequada nestes casos. (b) Ultra-sons
A cintigrafia não permite observar as lesões nos teci-
dos moles. Pode permitir a detecção de fracturas Os ultra-sons são pouco dispendiosos e não apre-
agudas nas primeiras 24 horas, mas é geralmente sentam contra-indicações biológicas. A qualidade
necessário aguardar dois ou três dias, ou mesmo do exame depende da competência do técnico.
mais de uma semana, em especial no caso das Sempre que não exista a possibilidade de recorrer
pessoas idosas. A imagem volta habitualmente ao à tomografia computorizada, os ultra-sons são uti-
normal decorridos dois anos, embora possa per- lizados para avaliar traumatismos abdominais
manecer positiva durante anos no caso de fractu- agudos. Os ultra-sons permitem também diag-
ras ou de osteomielites saradas. A utilização da nosticar as tendinopatias e são o método de elei-
cintigrafia óssea para detectar fracturas da epífise ção no caso de anomalias testiculares. Podem
ou metadiáfise (extremidades dos ossos longos) nas também servir para o exame da zona escapular
crianças é muito difícil devido à normal absorção nas fases aguda e crónica após um caso de tortura
dos radiofármacos na epífise. A cintigrafia é mui- por suspensão. Na fase aguda, os ultra-sons per-
tas vezes capaz de detectar fracturas das costelas mitem detectar edemas e concentrações de fluido
que passam despercebidas nas radiografias con- no interior e em torno das articulações escapula-
vencionais. res, bem como lacerações e hematomas nas bainhas
dos rotatores. O desaparecimento destes sintomas
(a) Aplicação da cintigrafia óssea em nova ultrassonografia posteriormente reali-
no diagnóstico da falanga zada tende a confirmar o diagnóstico. Neste caso,
o paciente deve ser submetido conjuntamente a res-
A cintigrafia pode ser efectuada de duas formas: sonância magnética, cintigrafia e outros exames
com imagens diferidas em cerca de três horas ou radiológicos, comparando-se os resultados obti-
através de um processo trifásico. Compreende as dos em todos estes exames. Ainda que os demais
três fases seguintes: angiograma por radionúclido exames não apresentem resultados positivos, os
(fase arterial), imagens de amostras sanguíneas ultra-sons, por si mesmos, são suficientes para
(fase venosa, dos tecidos moles) e fase retardada provar a tortura por suspensão.
(fase óssea). No caso de pacientes examinados
pouco tempo depois de terem sido submetidos à (c) Tomografia computorizada
falanga, dever-se-ão realizar duas cintigrafias com
uma semana de intervalo entre si. Um resultado A tomografia computorizada constitui um excelente
negativo no primeiro exame retardado e positivo método de observação dos tecidos moles e da
96
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
estrutura óssea. A ressonância magnética é mais nológica das hemorragias no sistema nervoso cen-
adequada para os tecidos moles do que para os tral compreende as fases imediata, hiper-aguda,
ossos. A ressonância magnética pode detectar frac- aguda, sub-aguda e crónica, cada uma delas apre-
turas ocultas antes que as mesmas se tornem sentando características específicas detectáveis no
visíveis nas radiografias convencionais ou cinti- exame. Assim, os resultados obtidos podem per-
grafias. A utilização de scanners abertos e a seda- mitir calcular o momento em que ocorreu a lesão
ção do paciente podem ajudar a aliviar a ansiedade e sua correlação com os factos alegados. As
e a claustrofobia, habituais nos sobreviventes de tor- hemorragias do sistema nervoso central podem
tura. A tomografia computorizada é também exce- sarar completamente ou originar depósitos de
lente para o diagnóstico e avaliação de fracturas, hemossiderina em quantidade suficiente para per-
em especial dos ossos temporais e faciais. Apresenta mitir a obtenção de resultados positivos em tomo-
também vantagens na detecção de anomalias no ali- grafia computorizada realizada anos depois da
nhamento e deslocações de fragmentos ósseos, ocorrência dos factos. As hemorragias nos teci-
sobretudo no caso de fracturas espinais, pélvicas, dos moles, sobretudo músculos, em geral saram
escapulares e acetabulares. Não permite identifi- completamente, não deixando vestígios mas, em
car contusões ósseas. A tomografia computori- casos raros, podem ossificar. Este fenómeno
zada com ou sem introdução de contraste deverá designa-se por ossificação heterotrópica ou myo-
ser o primeiro meio de diagnóstico utilizado no caso sitis ossificans e é detectável através de tomogra-
de quaisquer lesões agudas, sub-agudas ou cróni- fia computorizada.
cas do sistema nervoso central (SNC). Caso os
resultados obtidos sejam negativos, equívocos ou 2. BIOPSIA DAS LESÕES POR CHOQUE ELÉCTRICO
não expliquem as queixas ou sintomas do paciente
relativas ao SNC, deverá recorrer-se à ressonância As lesões resultantes de choques eléctricos
magnética. A tomografia computorizada com podem, embora tal nem sempre aconteça, apre-
janela óssea e exame pré e pós contraste deverá ser sentar alterações microscópicas específicas da apli-
o primeiro meio de diagnóstico utilizado no caso cação da corrente eléctrica, de grande valor para fins
de fracturas dos ossos temporais. A janela óssea de diagnóstico. A ausência destas alterações espe-
pode revelar fracturas e rupturas ossiculares. cíficas numa amostra de biopsia não exclui o diag-
O exame pré contraste pode detectar a presença de nóstico de tortura por choques eléctricos e não
fluidos e colesteatomas. O contraste é recomendado deve permitir-se que as autoridades judiciais tirem
devido às anomalias vasculares que são comuns semelhante conclusão. Infelizmente, quando o tri-
nesta área. No caso de otorráquia, a injecção de um bunal exige que uma presumível vítima de tor-
agente de contraste no canal medular poderá diag- tura por choque eléctrico se submeta a uma
nosticar uma fractura do osso temporal. A res- biopsia para confirmação dos factos alegados, a
sonância magnética poderá também detectar a recusa em submeter-se à intervenção ou um resul-
ruptura responsável pelo derrame de fluido. Caso tado negativo são susceptíveis de ter uma influên-
se suspeite de rinorráquia, deverá realizar-se uma cia negativa sobre o tribunal. Para além disso,
tomografia computorizada da face com janela para dispõe-se ainda de escassa experiência clínica na
os tecidos moles e ossos. Dever-se-á então proce- utilização de biopsias para o diagnóstico das lesões
der a nova tomografia computorizada depois da eléctricas relacionadas com a tortura, podendo
injecção de um agente de contraste no canal geralmente fazer-se tal diagnóstico com bastante
medular. segurança com base unicamente no relato e exame
físico do paciente.
(d) Ressonância magnética
Esta intervenção deverá, assim, ser decidida no
A ressonância magnética é mais sensível do que âmbito do exame clínico e não promovida
a tomografia computorizada na detecção de ano- enquanto meio habitual de diagnóstico. Para que
malias no sistema nervoso central. A evolução cro- a pessoa possa prestar o seu consentimento escla-
Testes de diagnóstico
* 97
recido para a realização da biopsia, deve ser infor- depois do alegado incidente de cription of a case” [em por-
tuguês: “Diagnóstico de
lesões eléctricas da pele:
mada previamente da incerteza dos resultados a fim tortura por choque eléctrico reve- análise e descrição de um
de que possa ponderar os even- 136 Thomsen e outros, laram alterações segmentares e caso”], American Journal
of Forensic Medical Patho-
“Early epidermal changes in
12, 1991, pp. 222 a
tuais benefícios da intervenção heat and electrically injured depósitos de sais de cálcio nas logy,
226.
pig skin: a light microscopic
por confronto com os riscos que study” [em português: “Alte- estruturas celulares, altamente 143 F. Öztop e outros, “Signs
rações epidérmicas iniciais
implica para o seu estado men- em pele de suíno aquecida e
com lesões eléctricas: um
compatíveis com a aplicação de ofskin” electrical torture on the
[em português: “Sinais
tal já perturbado. estudo com microscópio
luminoso”], Forensic
corrente eléctrica, embora sem de tortura eléctrica na
pele”], Treatment and
Science International, 17,
1981, pp. 133 a 143.
valor de diagnóstico, uma vez Rehabilitation Centers
Report 1994, Fundação de
(a) Explicação dos 137
Thomsen e outros, “The
que não foram observados depó- Direitos Humanos da Tur-
quia, Publicação HRFT, 11,
1994, pp. 97 a 104.
resultados da biopsia effect of direct current,
sodium hydroxide, and
sitos de sais de cálcio nas fibras
144
L. Danielsen, T. Karls-
hydrochloric acid on pig epi-
dermis: a light microscopic
dérmicas. Uma biopsia efec- mark, H. K. Thomsen,
Têm sido realizados importantes and electron microscopic
study” [em português: “O
tuada um mês após o alegado “Diagnosis of skin lesions
following electrical torture”
efeito da corrente directa, [em português: “Diagnós-
estudos laboratoriais para avaliar hidróxido de sódio e ácido
incidente de tortura eléctrica tico de lesões cutâneas sub-
clorídrico sobre a epiderme sequentes à tortura
os efeitos dos choques eléctri- dos suínos: um estudo com
revelou uma cicatriz cónica, de eléctrica”], Rom J. Leg.
microscópio luminoso e Med, 5, 1997, pp. 15 a 20.
cos na pele de suínos aneste- microscópio electrónico”],
cerca de 1 a 2 milímetros de diâ-
145
H. Jacobsen, “Electrically
siados136 137 138 139 140 141. Este Acta path microbial.
Immunol. Scand, sect.
metro, com aumento do número induced deposition of metal
A 91, 1983, p. 307 a 316. on the human skin” [em
trabalho demonstra que exis- de fibroblastos e fibras de cola- português: “Depósito de
138
H. K. Thomsen, “Electri- metal electricamente indu-
tem alterações histológicas cally induced epidermal génio estreitamente aglutinadas zido na pele humana”],
changes: a morphological Forensic Science Interna-
específicas das lesões eléctricas study of porcine skin after e finas, dispostas em paralelo à tional, 90, 1997, pp. 85 a
transfer of low-moderate 92.
que podem ser detectadas atra- amounts of electrical superfície, compatíveis com as
energy” [em português:
vés da observação microscópica “Alterações epidérmicas lesões eléctricas mas sem valor de diagnóstico.
electricamente induzidas:
de biopsias por punção da área estudo morfológico da pele
de suínos depois da transfe-
lesionada. Contudo, uma aná- rência de quantidades bai- (b) Método
xas a moderadas de energia
lise mais aprofundada destes eléctrica”], dissertação, Uni-
versidade de Copenhaga,
estudos, que podem ter aplica- F.A.D.L., 1984, pp. 1 a 78. Uma vez obtido o consenti- 146 S. Gürpinar e S. Korur
Fincanci, “Insan Haklari
ções clínicas importantes, está 139
T. Karlsmark e outros, mento esclarecido do paciente, e Ihlalleri ve Hekim
“Tracing the use of torture: Sorumlulgu” [Violações de
fora do âmbito da presente electrically induced calcifica- antes da biopsia, a lesão deverá Direitos Humanos e
tion of collagen in pig skin” Responsabilidade do
publicação. O leitor deverá con- [em português: “Detectando ser fotografada em conformi- Médico], Birinci Basamak
a utilização da tortura: Için Adli Tip El Kitabi
sultar as referências bibliográ- calcificação de colagénio dade com os métodos estabele- [Manual de Medicina Legal
electricamente induzida na para Médicos de Clínica
ficas supra citadas para mais pele de suínos”], Nature, cidos de medicina legal. Sob Geral], Ankara, Associação
301, 1983, pp. 75 a 78. Médica Turca, 1999.
informação. 140
anestesia local, obtém-se uma
T. Karlsmark e outros,
“Electrically-induced colla- biopsia por punção que se conserva em solução de
gen calcification in pig skin.
Poucos casos de tortura de seres A histopathologic and formol vedada ou fixador análogo. A biopsia cutâ-
histochemical study” [em
humanos por choques eléctri- português: “Calcificação de nea deverá ser realizada o mais depressa possível
colagénio electricamente
cos foram objecto de estudos induzida na pele de suínos. depois da lesão. Uma vez que os traumatismos
Um estudo histopatológico
histológicos142 143 144 145. Apenas e histoquímico”], Forensic resultantes de choques eléctricos se confinam geral-
Science International, 39,
numa das situações, em que se 1988, pp. 163 a 174. mente à epiderme e camadas superficiais da derme,
procedeu a uma excisão das 141
T. Karlsmark, “Electri- as lesões podem desaparecer rapidamente. Podem
cally induced dermal chan-
lesões provavelmente sete dias ges: a morphological study ser recolhidas amostras de mais do que uma lesão,
of porcine skin after transfer
depois do traumatismo, foram as of low to moderate embora se deva ter em conta a potencial angústia que
amounts of electrical
alterações observadas na pele energy” [em português: tal poderá causar ao paciente146. As amostras deve-
Alterações dérmicas electri-
imputadas directamente aos camente induzidas: estudo rão ser examinadas por um patologista com expe-
morfológico da pele de suí-
choques eléctricos (depósito de nos depois da transferência riência na área da dermatopatologia.
de quantidades baixas a
sais de cálcio nas fibras dérmi- moderadas de energia eléc-
trica”], dissertação, Univer-
cas em tecidos viáveis loca- sidade de Copenhaga,
Danish Medical Bulletin,
(c) Sinais diagnósticos dos choques eléctricos
lizados em torno do tecido 37, 1990, pp. 507 a 520.
142
necrótico). Nos restantes casos, L. Danielsen e outros,
“Diagnosis of electrical skin
Entre os sinais diagnósticos das lesões por choques
as lesões extraídas poucos dias injuries: a review and a des- eléctricos, incluem-se os seguintes: núcleos vesi-
98
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
culares na epiderme, glândulas 147 Danielsen e outros, 1991. São típicos sinais de choque eléctrico, embora não
sudoríparas e paredes vasculares tenham valor de diagnóstico, as lesões que se apre-
(existe apenas um diagnóstico diferencial: lesões sentam em segmentos cónicos, frequentemente
provocadas por substâncias alcalinas) e depósitos com 1 a 2 milímetros de diâmetro, os depósitos de
de sais de cálcio claramente localizados nas fibras ferro ou cobre na epiderme (provenientes do eléc-
colagénicas e elásticas (o diagnóstico diferencial, trodo) e o citoplasma homogéneo na epiderme,
calcinosis cutis, é uma doença rara, observada ape- glândulas sudoríparas e paredes vasculares.
nas 75 vezes em 220 000 biopsias consecutivas à Podem também existir depósitos de sais de cálcio
pele humana, sendo os depósitos de cálcio em nas estruturas celulares das lesões segmentares ou
geral maciços e sem localização clara nas fibras cola- não se observarem quaisquer anomalias histoló-
génicas e elásticas)147. gicas.
Testes de diagnóstico
* 99
Anexo III
Esquemas anatómicos
para a documentação da tortura
e dos maus tratos
Nome
Caso n.o
Nome
Caso n.o
DIREITO
BRAÇO
PERÍNEO – MULHER
*
Data Data
102
103
CORPO INTEIRO, HOMEM – PLANOS ANTERIOR E POSTERIOR CORPO INTEIRO, HOMEM – PLANO LATERAL
*
(VENTRAL E DORSAL)
Data Data
TÓRAX E ABDÓMEN, HOMEM – PLANOS ANTERIOR E POSTERIOR PÉS – SUPERFÍCIES PLANTARES ESQUERDA E DIREITA
*
Data Data
104
105
MÃO DIREITA – PLANOS PALMAR E DORSAL MÃO ESQUERDA – PLANOS PALMAR E DORSAL
Data Data
CABEÇA – SUPERFÍCIE E ANATOMIA ESQUELÉTICA, PLANO SUPERIOR – PLANO CABEÇA – SUPERFÍCIE E ANATOMIA ESQUELÉTICA, PLANO LATERAL
INFERIOR DO PESCOÇO
*
Data Data
106
ESQUELETO – PLANOS ANTERIOR E POSTERIOR
Data
Próteses presentes
Dentição completa
Maxilar
superior Dentição parcial
Ponte fixa
ESQUERDA
DIREITA
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
32 31 30 29 28 27 26 25 24 23 22 21 20 19 18 17 Dentição completa
Maxilar
inferior Dentição parcial
Ponte fixa
Assinale com um
ASSINALE NESTE QUADRO TODAS AS CÁRIES círculo as opções
pretendidas
Assinale todas as cáries e marque com “X” todos os dentes em falta
Alinhamento
Normal
Saliente em cima
Saliente em baixo
Condição peridental
Excelente
Média
Deficiente
ESQUERDA
DIREITA
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
32 31 30 29 28 27 26 25 24 23 22 21 20 19 18 17
Depósitos calcários
Ligeiros
Moderados
Importantes
108
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
Anexo IV
Processo ou relatório n.o: ______________________ Duração da avaliação: _____________ horas, _____________ minutos
Nome próprio da pessoa: ___________________ Data de nascimento: _____________ Local de nascimento: _______________
A pessoa foi sujeita a restrições durante o exame: sim/não Se “sim”, como/porquê?: ____________________________
Avaliação/investigação médica realizada sem restrições (no caso de pessoas detidas): sim/não
110
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
possibilidade de a pessoa ter sido vítima de tortura 2. Recorde os sintomas e incapacidades que
ou maus tratos) continuam a afectar o paciente em resultado dos
c) Estabeleça o grau de conformidade entre os maus tratos alegados
resultados do exame individual e o conhecimento 3. Formule recomendações quanto à neces-
dos métodos de tortura utilizados na região em sidade de exames e tratamentos complementares
causa e suas sequelas habituais
XIV. DECLARAÇÃO DE BOA FÉ (para testemunho
2. Indícios psicológicos em juízo)
a) Estabeleça o grau de conformidade entre os Por exemplo: “Declaro, sob pena de perjúrio, em con-
resultados do exame psicológico e o relato do ale- formidade com a legislação de _____________ (país),
gado caso de tortura que os factos acima descritos são verdadeiros
b) Dê o seu parecer quanto ao facto de as obser- e correctos. Feito a ____________________ (data) em
vações do exame psicológico constituírem ou não _________________ (localidade), ________________
reacções naturais ou típicas de situações de stress (estado ou distrito)”.
intenso no contexto cultural e social da pessoa
c) Indique o estado da pessoa no percurso evo- XV. DECLARAÇÃO SOBRE AS RESTRIÇÕES
lutivo temporal dos distúrbios mentais associados IMPOSTAS À AVALIAÇÃO/INVESTIGAÇÃO
ao traumatismo, isto é, a situação no tempo em rela- MÉDICA (no caso de pessoas detidas)
ção aos factos e em que ponto do processo de recu-
peração se encontra a pessoa Por exemplo: “Os médicos abaixo assinados cer-
d) Identifique quaisquer factores de stress con- tificam pessoalmente que puderam trabalhar de
comitantes que actuem sobre o sujeito (por exem- forma livre e independente e lhes foi permitido
plo, perseguições de que é vítima, migração falar com a pessoa e examiná-la em privado, sem
forçada, exílio, perda da família e do papel social, qualquer restrição ou reserva e sem que qualquer
etc.) e seu potencial impacto sobre a pessoa forma de coacção tenha sido utilizada pelas auto-
e) Mencione quaisquer problemas que possam ridades de detenção”; ou “O(s) médico(s) abaixo
contribuir para o quadro clínico, especialmente assinado(s) viu(ram)-se obrigado(s) a conduzir a
no que diz respeito a eventuais indícios de lesões sua avaliação com as seguintes restrições:
cerebrais infligidas durante a tortura ou detenção _____________________________________________”.
GE.01-41146
Junho de 2001-8 150
Editor
Comissão Nacional para as Comemorações do 50.o Aniversário da Declaração
Universal dos Direitos do Homem e Década das Nações Unidas
para a Educação em matéria de Direitos Humanos
Tradução
Raquel Tavares
Gabinete de Documentação e Direito Comparado
Procuradoria-Geral da República
Revisão
Manuel Dias
Gabinete de Documentação e Direito Comparado
Procuradoria-Geral da República
Título original
The Istanbul Protocol: Manual on the Effective Investigation and Documentation of Torture and Other Cruel,
Inhuman or Degrading Treatment or Puninshment. Professional Training Series n.o 8 – United Nations
Design gráfico
José Brandão | Paulo Falardo
[Atelier B2]
Impressão
Textype
Tiragem
1500 exemplares
isbn
972-8707-20-7
Depósito legal
224 793/05
Primeira edição
Agosto de 2002
Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos
n.º 08
GENEBRA
Protocolo de Istambul
MANUAL PARA A INVESTIGAÇÃO
E DOCUMENTAÇÃO EFICAZES DA TORTURA
E OUTRAS PENAS OU TRATAMENTOS CRUÉIS,
DESUMANOS OU DEGRADANTES
Procuradoria-Geral da República
Gabinete de Documentação
e Direito Comparado