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Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos

n.º 08
GENEBRA

Série de Formação Profissional


Protocolo
de Istambul

Protocolo de Istambul
MANUAL PARA A INVESTIGAÇÃO
E DOCUMENTAÇÃO EFICAZES DA TORTURA
E OUTRAS PENAS OU TRATAMENTOS CRUÉIS,
DESUMANOS OU DEGRADANTES

Procuradoria-Geral da República
Gabinete de Documentação
e Direito Comparado
Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos

n.o 08
GENEBRA

Série de Formação Profissional


Protocolo
de Istambul
MANUAL PARA A INVESTIGAÇÃO
E DOCUMENTAÇÃO EFICAZES DA TORTURA
E OUTRAS PENAS OU TRATAMENTOS CRUÉIS,
DESUMANOS OU DEGRADANTES

NAÇÕES UNIDAS
Nova Iorque e Genebra, 2001
not
a

*
Os conceitos utilizados e a apresentação do material constante da presente publi-
cação não implicam a manifestação de qualquer opinião, seja de que natureza for,
da parte do Secretariado das Nações Unidas, relativamente ao estatuto jurídico de
qualquer país, território, cidade ou região, ou das suas autoridades, ou em relação
à delimitação das suas fronteiras ou limites territoriais.

*
* *
O material constante da presente publicação pode ser livremente citado ou
reproduzido, desde que indicada a fonte e que um exemplar da publicação con-
tendo o material reproduzido seja enviado para o Alto Comissariado/Centro para
os Direitos Humanos, Nações Unidas, 1211 Genebra 10, Suíça.

HR/P/PT/8

PUBLICAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS

N.o de Venda E.01.XIV.1


ISBN 92-1-154136-0

ISSN 1020-1688

N.T.
As notas do tradutor (N.T.) constantes da presente publicação são da responsabilidade do Gabinete de Documentação
e Direito Comparado da Procuradoria-Geral da República e não responsabilizam a Organização das Nações Unidas.
Co-autores e outros participantes

Coordenadores do projecto

Dr. Vincent Iacopino, Physicians for Human Rights USA, Boston


Dr. Önder Özkalipçi, Fundação de Direitos Humanos da Turquia,
Istambul
Caroline Schlar, Action for Torture Survivors (HRFT), Genebra

Comité de redacção

Dr. Kathleen Allden, Indochinese Psychiatric Clinic, Boston, e Depar-


tamento de Psiquiatria, Faculdade de Medicina de Dartmouth,
Lebanon, New Hampshire
Dr. Türkcan Baykal, Fundação de Direitos Humanos da Turquia,
Esmirna
Dr. Vincent Iacopino, Physicians for Human Rights USA, Boston
Dr. Robert Kirschner, Physicians for Human Rights USA, Chicago
Dr. Önder Özkalipçi, Fundação de Direitos Humanos da Turquia,
Istambul
Dr. Michael Peel, The Medical Foundation for the Care of Victims of
Torture, Londres
Dr. Hernan Reyes, Center for the Study of Society and Medicine,
Universidade de Columbia, Nova Iorque
James Welsh, Amnistia Internacional, Londres

Relatores

Dr. Kathleen Allden, Indochinese Psychiatric Clinic, Boston, e Depar-


tamento de Psiquiatria, Faculdade de Medicina de Dartmouth,
Lebanon, New Hampshire
Barbara Frey, Institute for Global Studies, Universidade do Minne-
sota, Minneapolis
Dr. Robert Kirschner, Physicians for Human Rights USA, Chicago
Dr. _ebnem Korur Fincanci, Sociedade de Especialistas de Medicina
Legal, Istambul

III
Dr. Hernan Reyes, Center for the Study of Society and Medicine,
Universidade de Columbia, Nova Iorque
Ann Sommerville, British Medical Association, Londres
Dr. Numfondo Walaza, The Trauma Centre for Survivors of Violence
and Torture, Cidade do Cabo

Autores que contribuíram

Dr. Suat Alptekin, Departamento de Medicina Legal, Istambul


Dr. Zuhal Amato, Departamento de Ética, Faculdade de Medicina
Dokuz Eylül, Esmirna
Dr. Alp Ayan, Fundação de Direitos Humanos da Turquia, Esmirna
Dr. Semih Aytaçlar, Sonomed, Istambul
Dr. Metin Bakkalci, Fundação de Direitos Humanos da Turquia,
Ancara
Dr. Ümit Biçer, Sociedade de Especialistas em Medicina Legal,
Istambul
Dr. Yesim Can, Fundação de Direitos Humanos da Turquia, Istambul
|

Dr. John Chisholm, British Medical Association, Londres


Dr. Lis Danielsen, Conselho Internacional de Reabilitação para Víti-
mas de Tortura, Copenhaga
Dr. Hanan Diab, Physicians for Human Rights Palestine, Gaza
Jean-Michel Diez, Association for the Prevention of Torture, Genebra
Dr. Yusuf Doar, Fundação de Direitos Humanos da Turquia,
Istambul
Dr. Morten Ekstrom, Conselho Internacional de Reabilitação para Víti-
mas de Tortura, Copenhaga
Professor Ravindra Fernando, Department of Forensic Medicine and
Toxicology, Universidade de Colombo, Colombo
Dr. John Fitzpatrick, Cook County Hospital, Chicago
Camille Giffard, Universidade de Essex, Inglaterra
Dr. Jill Glick, Hospital Pediátrico da Universidade de Chicago,
Chicago
Dr. Emel Gökmen, Departamento de Neurologia, Universidade de
Istambul, Istambul
Dr. Norbert Gurris, Behandlungszentrum für Folteropfer, Berlim
Dr. Hakan Gürvit, Departamento de Neurologia, Universidade de
Istambul, Istambul
Dr. Karin Helweg-Larsen, Associação Médica Dinamarquesa,
Copenhaga
Dr. Gill Hinshelwood, The Medical Foundation for the Care of
Victims of Torture, Londres
Dr. Uwe Jacobs, Survivors International, São Francisco
Dr. Jim Jaranson, The Center for Victims of Torture, Minneapolis
Cecilia Jimenez, Association for the Prevention of Torture, Genebra
Karen Johansen Meeker, University of Minnesota Law School,
Minneapolis

IV
Dr. Emre Kapkin, Fundação de Direitos Humanos da Turquia,
Esmirna
Dr. Cem Kaptanolu, Departamento de Psiquiatria, Faculdade de
Medicina da Universidade Osmangazi, Eski˛ehir
Professora Ioanna Kuçuradi, Centro para a Pesquisa e Aplicação da
Filosofia e dos Direitos Humanos, Universidade de Hacettepe,
Ancara
Basem Lafi, Programa de Saúde Mental da Comunidade de Gaza, Gaza
Dr. Elizabeth Lira, Instituto Latinoamericano de Salud Mental,
Santiago
Dr. Veli Lök, Fundação de Direitos Humanos da Turquia, Esmirna
Dr. Michèle Lorand, Cook County Hospital, Chicago
Dr. Ruchama Marton, Physicians for Human Rights Israel, Tel Aviv
Elisa Massimino, Lawyers Committee for Human Rights, Nova Iorque
Carol Mottet, consultora juridica, Berna
Dr. Fikri Öztop, Departamento de Patologia, Faculdade de Medicina
da Universidade Ege, Esmirna
Alan Parra, Gabinete do Relator Especial sobre Tortura, Genebra
Dr. Beatrice Patsalides, Survivors International, São Francisco
Dr. Jean Pierre Restellini, Unidade para a Divulgação dos Direitos
Humanos, Direcção de Direitos Humanos, Conselho da Europa,
Estrasburgo
Nigel Rodley, Relator Especial sobre Tortura, Genebra
Dr. Füsun Sayek, Associação Médica Turca, Ancara
Dr. Françoise Sironi, Centre Georges Devereux, Universidade de
Paris VIII, Paris
Dr. Bent Sorensen, Conselho Internacional de Reabilitação para Víti-
mas de Tortura, Copenhaga, e Comité contra a Tortura, Genebra
Dr. Nezir Suyugül, Departamento de Medicina Legal, Istambul
Asmah Tareen, University of Minnesota Law School, Minneapolis
Dr. Henrik Klem Thomsen, Departamento de Patologia, Hospital
Bispebjerg, Copenhaga
Dr. Morris Tidball-Binz, Programa para a Prevenção da Tortura, Ins-
tituto Interamericano de Direitos Humanos, São José, Costa Rica
Dr. Nuray Türksoy, Fundação de Direitos Humanos da Turquia,
Istambul
Hülya Üçpinar, Gabinete de Direitos Humanos, Associação Izmir Bar,
Esmirna
Dr. Adriaan van Es, Fundação Johannes Wier, Amesterdão
Ralf Wiedemann, University of Minnesota Law School, Minneapolis
Dr. Mark Williams, The Center for Victims of Torture, Minneapolis

Participantes

Alessio Bruni, Comité contra a Tortura, Genebra


Dr. Eyad El Sarraj, Programa de Saúde Mental da Comunidade de Gaza,
Gaza

V
Dr. Rosa Garcia-Peltoniemi, The Center for Victims of Torture,
Minneapolis
Dr. Ole Hartling, Associação Médica Dinamarquesa, Copenhaga
Dr. Hans Petter Hougen, Associação Médica Dinamarquesa, Cope-
nhaga
Dr. Delon Human, World Medical Association, Ferney-Voltaire
Dr. Dario Lagos, Equipo Argentino de Trabajo e Investigación Psi-
cosocial, Buenos Aires
Dr. Frank Ulrich Montgomery, Associação Médica Alemã, Berlim
Daniel Prémont, Fundo Voluntário das Nações Unidas para as Víti-
mas de Tortura, Genebra
Dr. Jagdish C. Sobti, Associação Médica Indiana, Nova Deli
Trevor Stevens, Comité Europeu para a Prevenção da Tortura, Estras-
burgo
Turgut Tarhanli, Departamento de Relações Internacionais e Direi-
tos Humanos, Universidade Boazici, Istambul
Wilder Taylor, Human Rights Watch, Nova Iorque
Dr. Joergen Thomsen, Conselho Internacional de Reabilitação para
Vítimas de Tortura, Copenhaga

Este projecto foi financiado com o generoso apoio do Fundo Volun-


tário das Nações Unidas para as Vítimas de Tortura, da Divisão de Direi-
tos Humanos e Política Humanitária do Departamento Federal dos
Negócios Estrangeiros, Suíça, do Gabinete para as Instituições Demo-
cráticas e Direitos Humanos (ODIHR) da Organização para a Segu-
rança e Cooperação na Europa, da Cruz Vermelha Suiça, da Fundação
de Direitos Humanos da Turquia e da organização Physicians for
Human Rights. Concederam também o seu apoio as seguintes enti-
dades: The Center for Torture Victims, Associação Médica Turca,
Conselho Internacional de Reabilitação para Vítimas de Tortura,
Amnistia Internacional – Suíça e Associação Cristã para a Abolição
da Tortura – Suíça.

VI
Introdução

Para os efeitos do presente manual, a tortura é damente a prática da tortura 3 Amnistia Internacional,
Relatório de 1999 da
definida nos termos constantes da Convenção das em quaisquer circunstâncias Amnistia Internacional
(Londres, AIP, 1999).
Nações Unidas contra a Tortura, de 1984: (vide capítulo I), a tortura e os 4
M. Ba_o_lu, “Prevention
maus tratos acontecem em of torture and care of sur-
vivors: an integrated
“Tortura significa qualquer acto .1 O Conselho de Adminis- mais de metade dos países approach” [em português:
tração do Fundo Voluntário Prevenção da tortura e tra-
por meio do qual uma dor ou das Nações Unidas para as do mundo.3, 4 A flagrante dispari- tamento dos sobreviven-
Vítimas de Tortura decidiu tes: uma abordagem
sofrimentos agudos, físicos ou recentemente utilizar no seu dade entre a proibição absoluta integrada], The Journal of
trabalho a Declaração sobre the American Medical
mentais, são intencionalmente a Protecção de Todas as da tortura e a sua subsistência no Association (JAMA), 270
Pessoas contra a Tortura e 1993: 606-611).
causados a uma pessoa com os Outras Penas ou Tratamen- mundo contemporâneo demons-
tos Cruéis, Desumanos ou
fins de, nomeadamente, obter Degradantes. tra a necessidade de que os Estados identifiquem
dela ou de uma terceira pessoa informações ou con- e ponham em prática medidas eficazes de protec-
fissões, a punir por um acto que ela ou uma ter- ção das pessoas contra a tortura e os maus tratos.
ceira pessoa cometeu ou se suspeita que tenha O presente manual foi elaborado com o objectivo
cometido, intimidar ou pressionar essa ou uma ter- de auxiliar os Estados a dar resposta a uma das exi-
ceira pessoa, ou por qualquer outro motivo gências mais fundamentais na protecção dos indi-
baseado numa forma de discriminação, desde que víduos contra a tortura: a documentação eficaz.
essa dor ou esses sofrimentos sejam infligidos Esta documentação permite recolher provas da
por um agente público ou qualquer outra pessoa prática da tortura e maus tratos, assim possibili-
agindo a título oficial, a sua instigação ou com o tando a responsabilização dos infractores pelos
seu consentimento expresso ou tácito. Este termo seus actos e servindo os interesses da justiça.
não compreende a dor ou os sofrimentos resultantes Os métodos de documentação indicados no pre-
unicamente de sanções legítimas, inerentes a sente manual são também aplicáveis a outros con-
essas sanções ou por elas ocasionados.”1 textos, nomeadamente actividades de investigação
e supervisão em matéria de direitos humanos,
A tortura é objecto de grande 2 Vide Iacopino, “Treat- avaliação de situações de asilo político, defesa de
ment of survivors of politi-
preocupação para a comunidade cal torture: commentary” indivíduos que “confessam” a prática de crimes sob
[em português: Trata-
internacional. Visa deliberada- mento dos sobreviventes tortura e avaliação das necessidades de tratamento
de tortura política: comen-
mente destruir, não apenas o tário], The Journal of das vítimas de tortura, entre outros.
Ambulatory Care Manage-
bem-estar físico e mental do indi- ment, 21 (2), 1998,
pp. 5 a 13.
víduo, mas também, em determi- Ao longo das últimas duas décadas, muito se
nados casos, a dignidade e vontade de comunidades aprendeu a respeito da tortura e suas consequên-
inteiras. Diz respeito a todos os membros da famí- cias, mas não existiam quaisquer directrizes inter-
lia humana, uma vez que põe em causa o próprio sig- nacionais para a sua documentação antes da
nificado da nossa existência e compromete as nossas elaboração do presente manual. O Manual sobre
esperanças num futuro melhor.2 a Investigação e Documentação Eficazes da Tortura
e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desuma-
Embora as normas internacionais de direitos nos ou Degradantes (Protocolo de Istambul)
humanos e direito humanitário proíbam reitera- pretende funcionar como um documento de refe-

VII
rência internacional para a ava- 5 Os Princípios sobre a Representam antes normas mínimas elaboradas
Investigação e Documenta-
liação da situação das pessoas ção Eficazes da Tortura e com base nos Princípios acima referidos e deverão
Outras Penas ou Tratamen-
alegadamente vítimas de tor- tos Cruéis, Desumanos ou ser utilizadas tendo em conta os recursos dispo-
Degradantes foram anexa-
tura e maus tratos, para a inves- dos à resolução 55/89 da níveis. O manual e os princípios são o resultado
Assembleia Geral (4 de
tigação dos presumíveis casos Dezembro de 2000) e à de três anos de análise, pesquisa e redacção, leva-
resolução 2000/43 da
de tortura e para a comunica- Comissão dos Direitos do das a cabo por mais de 75 peritos nas áreas do
Homem, ambas adoptadas
ção dos factos apurados ao por consenso. direito, medicina e direitos humanos em repre-
poder judicial ou outros órgãos sentação de 40 organizações ou instituições de 15
com competência no domínio da investigação. países. A concepção e preparação do presente
O manual inclui os Princípios para a investigação manual resultou de um esforço conjunto de espe-
e documentação eficazes da tortura e outras penas cialistas em medicina e medicina legal, psiquiatras,
ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes psicólogos, observadores de direitos humanos e
(vide anexo I). Estes Princípios consagram nor- juristas a trabalhar na África do Sul, Alemanha,
mas mínimas a aplicar pelos Estados a fim de Chile, Costa Rica, Dinamarca, Estados Unidos da
garantir uma documentação eficaz da tortura5. América, França, Holanda, Índia, Israel, Sri
As directrizes enunciadas no presente manual não Lanka, Suíça, Reino Unido, Turquia e territórios
devem ser vistas como um protocolo rígido. palestinianos ocupados.

VIII
Índice

Página
Co-autores e outros participantes III
Introdução VII

Parágrafos
Cap. 01 Normas jurídicas internacionais aplicáveis 1-46 1

a. Direito internacional humanitário 2-6 1


b. As Nações Unidas 7-23 2
1. OBRIGAÇÕES JURÍDICAS NO DOMÍNIO DA PREVENÇÃO DA TORTURA 10 3
2. ÓRGÃOS E MECANISMOS DAS NAÇÕES UNIDAS 11-23 4
c. Organizações regionais 24-45 7
1. COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E TRIBUNAL

INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS 25-31 7


2. TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM 32-37 9
3. COMITÉ EUROPEU PARA A PREVENÇÃO DA TORTURA E DAS PENAS OU

TRATAMENTOS DESUMANOS OU DEGRADANTES 38-42 10


4. COMISSÃO AFRICANA DOS DIREITOS DO HOMEM E DOS POVOS

E TRIBUNAL AFRICANO DOS DIREITOS DO HOMEM E DOS POVOS 43-45 11


d. Tribunal Penal Internacional 46 12

Cap. 02 Códigos éticos aplicáveis 47-72 13

a. Ética dos profissionais da área da justiça 48-49 13


b. Ética médica 50-55 14
1. DECLARAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDAS APLICÁVEIS AOS PROFISSIONAIS

NA ÁREA DA SAÚDE 51-52 14


2. DECLARAÇÕES DOS ORGANISMOS PROFISSIONAIS INTERNACIONAIS 53-54 15
3. CÓDIGOS NACIONAIS DE ÉTICA MÉDICA 55 16
c. Princípios comuns a todos os códigos de ética médica 56-64 16
1. O DEVER DE ASSISTÊNCIA 57-61 16
2. CONSENTIMENTO ESCLARECIDO 62-63 17
3. SIGILO PROFISSIONAL 64 18

IX
Parágrafos Página
d. Profissionais de saúde com dualidade de obrigações 65-72 19
1. PRINCÍPIOS ORIENTADORES DE TODOS OS MÉDICOS COM DUALIDADE

DE OBRIGAÇÕES 66 19
2. DILEMAS RESULTANTES DA DUALIDADE DE OBRIGAÇÕES 67-72 19

Cap. 03 Inquéritos legais sobre a prática da tortura 73-118 23

a. Objectivos de um inquérito de tortura 76 23


b. Princípios sobre a Investigação e Documentação Eficazes da Tortura

e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes 77-83 24


c. Procedimentos a adoptar na investigação da tortura 84-105 26
1. DETERMINAÇÃO DO ORGANISMO RESPONSÁVEL PELA

REALIZAÇÃO DO INQUÉRITO 84-86 26


2. RECOLHA DE DEPOIMENTOS DA ALEGADA VÍTIMA E OUTRAS

TESTEMUNHAS 87-100 26
3. RECOLHA E PRESERVAÇÃO DAS PROVAS MATERIAIS 101-102 31
4. PROVAS MÉDICAS 103-104 31
5. FOTOGRAFIAS 105 32
d. Comissões de inquérito 106-118 32
1. DEFINIÇÃO DO ÂMBITO DO INQUÉRITO 106 32
2. COMPETÊNCIAS DA COMISSÃO 107 33
3. CRITÉRIOS PARA A SELECÇÃO DOS MEMBROS

DA COMISSÃO 108-109 33
4. PESSOAL DA COMISSÃO 110 33
5. PROTECÇÃO DAS TESTEMUNHAS 111 34
6. PROCEDIMENTO 112 34
7. DIVULGAÇÃO DO INQUÉRITO 113 34
8. RECOLHA DE PROVAS 114 34
9. DIREITOS DAS PARTES 115 34
10. AVALIAÇÃO DAS PROVAS 116 35
11. RELATÓRIO DA COMISSÃO 117-118 35

Cap. 04 Considerações gerais para as entrevistas 119-159 37

a. Objectivos do inquérito, exames e documentação 120-121 37


b. Salvaguardas processuais relativamente aos detidos 122-125 38
c. Visitas oficiais a centros de detenção 126-133 39
d. Técnicas de interrogatório 134 41
e. Documentação dos antecedentes 135-140 41
1. PERFIL PSICOSSOCIAL E SITUAÇÃO ANTERIOR À DETENÇÃO 135 41
2. RESUMO DA DETENÇÃO E DOS MAUS TRATOS 136 41
3. CIRCUNSTÂNCIAS DA DETENÇÃO 137 42
4. LOCAL E CONDIÇÕES DE DETENÇÃO 138 42
5. MÉTODOS DE TORTURA E MAUS TRATOS 139-140 42
f. Avaliação dos antecedentes 141-142 43
g. Análise dos métodos de tortura 143-144 43
h. Risco de re-traumatização das pessoas interrogadas 145-148 44
i. Utilização de intérpretes 149-152 45
j. Questões de género 153-154 46
k. Encaminhamento para outros serviços 155 47
l. Interpretação dos factos e conclusões 156-159 47

X
Parágrafos Página
Cap. 05 Indícios físicos da tortura 160-232 49

a. Estrutura das entrevistas 162-166 49


b. Historial médico 167-171 50
1. SINTOMAS AGUDOS 169 51
2. SINTOMAS CRÓNICOS 170 51
3. RESUMO DA ENTREVISTA 171 51
c. Exame físico 172-185 52
1. PELE 175 52
2. ROSTO 176-181 52
3. PEITO E ABDÓMEN 182 54
4. SISTEMA MÚSCULO-ESQUELÉTICO 183 54
5. SISTEMA GENITO-URINÁRIO 184 54
6. SISTEMAS NERVOSOS CENTRAL E PERIFÉRICO 185 55
d. Exame e avaliação subsequentes a formas específicas de tortura 186-231 55
1. ESPANCAMENTOS E OUTRAS CONTUSÕES 188-201 55
2. ESPANCAMENTO DOS PÉS 202-204 58
3. SUSPENSÃO 205-208 60
4. OUTRAS FORMAS DE TORTURA POSICIONAL 209-210 61
5. TORTURA POR CHOQUES ELÉCTRICOS 211 61
6. TORTURA DENTÁRIA 212 62
7. ASFIXIA 213 62
8. TORTURA SEXUAL, INCLUINDO A VIOLAÇÃO 214-231 62
e. Testes de diagnóstico especializados 232 67

Cap. 06 Indícios psicológicos da tortura 233-314 69

a. Considerações gerais 233-238 69


1. O PAPEL FUNDAMENTAL DA AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA 233-236 69
2. CONTEXTO DA AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA 237-238 70
b. Consequências psicológicas da tortura 239-258 71
1. ADVERTÊNCIAS 239 71
2. REACÇÕES PSICOLÓGICAS COMUNS 240-248 71
3. CLASSIFICAÇÕES DE DIAGNÓSTICO 249-258 73
c. Avaliação psicológica/psiquiátrica 259-314 76
1. CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E CLÍNICAS 259-261 76
2. PROCESSO DE ENTREVISTA 262-273 77
3. COMPONENTES DA AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA/PSIQUIÁTRICA 274-290 80
4. AVALIAÇÃO NEUROPSICOLÓGICA 291-308 84
5. CRIANÇAS E TORTURA 309-314 88

ANEXOS

I. PRINCÍPIOS SOBRE A INVESTIGAÇÃO E DOCUMENTAÇÃO EFICAZES

DA TORTURA E OUTRAS PENAS OU TRATAMENTOS CRUÉIS,

DESUMANOS OU DEGRADANTES 91
II. TESTES DE DIAGNÓSTICO 95
III. ESQUEMAS ANATÓMICOS PARA A DOCUMENTAÇÃO DA TORTURA

E DOS MAUS TRATOS 101


IV. DIRECTRIZES PARA A AVALIAÇÃO MÉDICA DA TORTURA E DOS MAUS TRATOS 109

XI
cap
ítu
lo

*01
Normas jurídicas internacionais
aplicáveis

1. A proibição da tortura encontra-se firme- para a condução dos conflitos N.T.2 A 13 de Novembro de
2002, o número de Estados
mente consagrada no direito internacional. armados internacionais e, em Partes no Protocolo I ascen-
dia a 160.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, especial, para o tratamento de N.T.3
154 até 13 de Novembro
o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e pessoas que não tomam parte de 2002.
Políticos e a Convenção contra a Tortura e Outras nas hostilidades ou deixaram
Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou de o fazer, nomeadamente feridos, prisioneiros e
Degradantes proíbem expressamente a tortura. civis. Cada uma das quatro convenções proíbe a
De forma semelhante, diversos instrumentos prática da tortura e outras formas de maus tratos.
regionais estabelecem a mesma proibição. A Con- Os dois Protocolos de 1977 Adicionais às Con-
venção Americana sobre Direitos Humanos, a venções de Genebra alargam a protecção conferida
Carta Africana dos Direitos do Homem e dos por estas convenções e o respectivo âmbito de
Povos e a Convenção para a Protecção dos Direi- aplicação. O Protocolo I (ratificado até à data por
tos do Homem e das Liberdades Fundamentais 153 EstadosN.T.2) abrange os conflitos armados
do Conselho da Europa contêm disposições que internacionais e o Protocolo II (ratificado até ao
proíbem expressamente a prática da tortura. momento por 145 EstadosN.T.3) os conflitos arma-
dos não internacionais.
a. Direito internacional humanitário
3. O chamado “Artigo 3.o comum”, que se
2. Os tratados internacionais N.T.1 A 13 de Novembro de repete nas quatro convenções, assume particular
2002, o número de Estados
que regulamentam os conflitos Partes ascendia já a 190. importância neste domínio. O artigo 3.o comum
Portugal aprovou para rati-
armados estabelecem o direito ficação as quatro Conven- aplica-se aos conflitos armados “que não apre-
ções de Genebra pelo
internacional humanitário ou Decreto-Lei n.o 42 991, de sente[m] um carácter internacional”, não sendo
26 de Maio de 1960, tendo
direito da guerra. A proibição depositado os respectivos dada qualquer outra definição. Considera-se que
instrumentos de ratificação
da tortura ao abrigo do direito a 14 de Março de 1961. estabelece as obrigações fundamentais a respeitar
Estes tratados entraram em
internacional humanitário é vigor na ordem jurídica por- em todos os conflitos armados, e não apenas nas
tuguesa a 14 de Setembro
apenas uma parte, pequena de 1961. guerras internacionais entre países. Em geral,
mas importante, da ampla protecção que estes tra- entende-se que isto significa que, seja qual for a
tados conferem a todas as vítimas da guerra. As natureza da guerra ou do conflito, existem deter-
quatro Convenções de Genebra de 1949 foram minadas regras básicas que não podem ser afas-
ratificadas por 188 EstadosN.T.1. Estabelecem regras tadas. A proibição da tortura é uma delas e

Normas jurídicas internacionais aplicáveis


* 1
representa um elemento comum ao direito inter- pessoas contra tais abusos. 8
Resolução 217 A (III) da
Assembleia Geral, de 10 de
nacional humanitário e aos direitos humanos. Entre os mais importantes des- Dezembro de 1948, artigo
5.o; vide General Assembly
tes instrumentos, contam-se: a Official Documents, Third
Session (A/810), p.71.
4. O Artigo 3.o comum estipula o seguinte: Declaração Universal dos Direi- N.T.4
A Declaração Universal
tos do Homem (DUDH)8,N.T.4, o dos Direitos do Homem foi
publicada no Diário da
[...] são e manter-se-ão proibidas, em qualquer oca- Pacto Internacional sobre os República, I Série A, n.o
57/78, de 9 de Março de
sião e lugar [...] as ofensas contra a vida e integri- Direitos Civis e Políticos 1978, mediante aviso do
Ministério dos Negócios
dade física, especialmente o homicídio sob todas (PIDCP)9,N.T.5, as Regras Míni- Estrangeiros. O seu texto
integral em português pode
as formas, as mutilações, os tratamentos cruéis, tor- mas para o Tratamento dos ser encontrado na página
INTERNET do GDDC:
turas e suplícios; [...] as ofensas à dignidade das pes- Reclusos (RMTR)10,N.T.6, a Decla- www.gddc.pt.
9
Resolução 2200 A (XXI)
soas, especialmente os tratamentos humilhantes ração das Nações Unidas sobre a da Assembleia Geral, de 16
de Dezembro de 1966,
e degradantes [...] Protecção de Todas as Pessoas anexo, artigo 7.o; vide
General Assembly Official
contra a Tortura e Outras Penas Documents, Twenty First
Session, GAOR Supple-
5. Nas palavras do Relator Especial sobre Tortura, ou Tratamentos Cruéis, Desu- ment (No. 16) (A/6316),
p.56 e United Nations
Nigel Rodley: manos ou Degradantes (Decla- Treaty Series, volume 999,
p.171. O PIDCP entrou em
ração contra a Tortura)11,N.T.7, o vigor na ordem jurídica
internacional a 23 de Março
A proibição da tortura e outros 6 N. Rodley, The Treatment Código de Conduta para os Fun- de 1976.
of Prisoners under Inter-
maus tratos dificilmente poderia national Law [em portu- cionários Responsáveis pela N.T.5
Aprovado para ratifica-
guês: “O Tratamento dos ção por Portugal pela Lei
ser formulada em termos mais Presos ao abrigo do Direito a
Aplicação da Lei (CCFRAL)12,N.T.8, n.o 29/78, de 12 de Junho,
Internacional”], 2. edição, publicada no Diário da
peremptórios. De acordo com o Oxford, Claredon Press, os Princípios de Deontologia República, I Série A,
1999, p. 58. n.o 133/78. O instrumento
comentário oficial ao texto ela- Médica aplicáveis à actuação do de ratificação foi depositado
junto do Secretário-Geral
borado pelo Comité Internacional da Cruz Ver- pessoal dos serviços de saúde, das Nações Unidas a 15 de
Junho de 1978, tendo o
melha (CICV), não existe qualquer excepção; não especialmente aos médicos, PIDCP entrado em vigor na
ordem jurídica interna por-
existem quaisquer desculpas, quaisquer circuns- para a protecção de pessoas pre- tuguesa a 15 de Setembro
de 1978. Para o texto inte-
tâncias atenuantes6. sas ou detidas contra a tortura e gral em português, consulte
a webpage do GDDC.
outras penas ou tratamentos 10
Adoptadas a 30 de
6. Uma outra ligação entre o 7 Segundo parágrafo pream- cruéis, desumanos ou degra- Agosto de 1955 pelo Pri-
bular do Protocolo II Adicio- meiro Congresso das
direito internacional humanitá- nal às Convenções de dantes (Princípios de Deontolo- Nações Unidas sobre a Pre-
Genebra de 12 de Agosto de venção do Crime e o Trata-
rio e os direitos humanos pode ser 1949. gia Médica)13,N.T.9, a Convenção mento dos Delinquentes e
aprovadas pelo Conselho
encontrada no preâmbulo do Protocolo II, que rege contra a Tortura e Outras Penas Económico e Social das
Nações Unidas através das
os conflitos armados não internacionais (tais como ou Tratamentos Cruéis, Desu- suas resoluções 663 C
(XXIV), de 31 de Julho de
as guerras civis declaradas) e onde se afirma o manos ou Degradantes (Con- 1957 e 2076 (LXII), de 13 de
Maio de 1977; vide
seguinte: “[...] os instrumentos internacionais rela- venção contra a Tortura)14,N.T.10, documento da Nações Uni-
das com a cota
tivos aos direitos do homem oferecem à pessoa o Conjunto de Princípios para a A/CONF/611, anexo I,
artigo 31.o; resolução 663 C
humana uma protecção fundamental.7” Protecção de Todas as Pessoas (XXIV), Economic and
Social Council Official
Sujeitas a Qualquer Forma de Documents, Twenty-
Fourth Session, Supple-
b. As Nações Unidas Detenção ou Prisão (Conjunto ment No. 1 (E/3048), p.12,
emendada pela resolução
de Princípios sobre Deten- 2076 (LXII), Economic and
Social Council Official
7. Para assegurar a protecção adequada de todas ção)15,N.T.11 e os Princípios Bási- Documents, Sixty-Second
Session, Supplement No.1
as pessoas contra a tortura e outras penas ou tra- cos Relativos ao Tratamento de (E/5988), p.37.

tamentos cruéis, desumanos ou degradantes, as Reclusos (PBTR)16,N.T.12. N.T.6


O texto integral em portu-
guês está também disponível
Nações Unidas trabalham desde há muitos anos na na webpage do GDDC.
11
elaboração de normas de aplicação universal. As 8. A Convenção contra a Tor- Resolução 3452 (XXX) da
Assembleia Geral, de 9 de
convenções, declarações e resoluções adoptadas tura não se aplica à dor ou aos Dezembro de 1975, anexo,
artigos 2.o e 4.o, vide Gene-
pelos Estados Membros das Nações Unidas afir- sofrimentos resultantes unica- ral Assembly Official
Documents, Thirtieth Ses-
mam claramente que não pode existir qualquer mente de sanções legítimas, sion, Supplement No. 34
(A/10034), p. 96.
excepção para a proibição da tortura e estabele- inerentes a essas sanções ou N.T.7
Para o texto em portu-
cem outras obrigações para garantir a protecção das por elas ocasionados.17 guês, consulte a página do
GDDC na INTERNET.

2
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.o 08 [ACNUDH]
9. Outros organismos e meca- 12
Resolução 34/169 da uma pessoa para um outro parágrafos 3 a 11), no qual
o Relator Especial defendeu
Assembleia Geral, de 17 de
que a aplicação de penas
nismos de direitos humanos do Dezembro de 1979, anexo, Estado quando existam motivos tais como a morte por lapi-
artigo 5.o; vide General
dação, flagelação e ampu-
sistema das Nações Unidas têm Assembly Official Docu- sérios para crer que possa ser tação de membros não
ments, Thirty-Fourth Ses-
vindo a tomar iniciativas com o sion, Supplement No. 46
(A/34/46), p. 209.
submetida a tortura (artigo 3.o da pode ser considerada legí-
tima unicamente devido ao
facto de a pena ter sido
objectivo de desenvolver normas N.T.8
Texto em português dis-
Convenção contra a Tortura); autorizada na sequência de
um procedimento formal-
para a prevenção da tortura, bem ponível na webpage do
GDDC (www.gddc.pt). mente legítimo. A interpre-
tação avançada pelo
como normas que obriguem os 13
Resolução 37/194 da
c) A criminalização de todos Relator Especial, que coin-
cide as posições do Comité
Estados a investigar os alegados Assembleia Geral, de 18 de
Dezembro de 1982, anexo,
os actos de tortura, incluindo a dos Direitos do Homem e
outros mecanismos das
casos de tortura. De entre estes princípios 2 a 5; vide Gene-
ral Assembly Official
cumplicidade ou a participação Nações Unidas, foi endos-
sada pela resolução
organismos e mecanismos, des- Documents, Thirty-
Seventh Session, Supple-
nos mesmos (artigo 4.o da Con- 1998/38 da Comissão dos
ment No. 51 (A/37/51), Direitos do Homem, a qual
tacamos o Comité contra a Tor- p 262.
venção contra a Tortura, princí- “recorda aos Governos que
os castigos corporais podem
tura, o Comité dos Direitos do N.T.9
Veja o texto em portu-
pio 7 do Conjunto de Princípios resultar em tratamentos
cruéis, desumanos ou degra-
Homem, a Comissão dos Direitos guês na página do GDDC.
sobre Detenção, artigo 7.o da dantes ou mesmo em tor-
14 tura”.
Entrada em vigor na
do Homem, o Relator Especial ordem jurídica internacional
Declaração sobre a Protecção
a 26 de Junho de 1987; vide
sobre Tortura, a Relatora Especial resolução 39/46 da Assem- contra a Tortura e parágrafos 31 a 33 das Regras
bleia Geral, de 10 de
sobre Violência contra Mulheres Dezembro de 1984, anexo, Mínimas para o Tratamento dos Reclusos);
artigo 2.o, General
e os Relatores Especiais nomeados Assembly Official Docu-
ments, Thirty-Ninth Ses-
pela Comissão dos Direitos do sion, Supplement No. 51 d) A adopção das medidas necessárias para que
(A/39/51), p. 206.
Homem para acompanhar a a tortura constitua um crime passível de extradi-
N.T.10
Aprovada para ratifi-
situação de direitos humanos de cação pela resolução da ção e a colaboração com os outros Estados Partes
Assembleia da República
determinados países. n.o 11/88, de 21 de Maio, no âmbito dos processos criminais instaurados
publicada no Diário da
República, I Série, relativamente a casos de tortura (artigos 8.o e 9.o
n.o 118/88 e ratificada pelo
1. OBRIGAÇÕES JURÍDICAS NO decreto do Presidente da da Convenção contra a Tortura);
República n.o 57/88, de 20
DOMÍNIO DA PREVENÇÃO DA de Julho, publicado no Diá-
rio da República, I Série,
TORTURA n.o 166/88. O instrumento e) Limitação do recurso à detenção em regime
de ratificação foi depositado
junto do Secretário-Geral de incomunicabilidade; garantia de que os detidos
das Nações Unidas a 9 de
10. Os instrumentos jurídicos Fevereiro de 1989, tendo são mantidos em locais oficialmente reconhecidos
esta convenção entrado em
supra citados estabelecem deter- vigor na ordem jurídica por- como locais de detenção; garantia de que os
tuguesa a 11 de Março de
minadas obrigações que os Esta- 1989. O seu texto oficial em nomes das pessoas responsáveis pela detenção
português pode ser encon-
dos devem cumprir a fim de trado na webpage do são inscritos em registos facilmente disponíveis
GDDC.
assegurar protecção contra a tor- 15
e acessíveis a todos os interessados, incluindo
Resolução 43/173 da
tura. Eis algumas: Assembleia Geral, de 9 de família e amigos; registo do local, hora e data de
Dezembro de 1998, anexo,
princípio 6; vide General todos os interrogatórios, juntamente com os
Assembly Official
a) A adopção das medidas Documents, Fourty-Third nomes de todas as pessoas presentes; e garantia
Session, Supplement
legislativas, administrativas, No. 49 (A/43/49), p. 311. de acesso aos detidos por parte de médicos, advo-
judiciais ou quaisquer outras N.T.11
Também este gados e familiares (artigo 11.o da Convenção con-
documento está disponível,
que se afigurem eficazes para em português, no endereço tra a Tortura; princípios 11 a 13, 15 a 19 e 23 do
www.gddc.pt.
impedir a ocorrência de actos 16
Conjunto de Princípios sobre Detenção; parágra-
Resolução 45/111 da
de tortura. Nenhuma circuns- Assembleia Geral, de 14 de fos 7, 22 e 37 das Regras Mínimas para o Trata-
Dezembro de 1990, anexo,
tância excepcional, incluindo a princípio 1; vide General mento dos Reclusos);
Assembly Official Docu-
guerra, poderá ser invocada ments, Fourty-Fifth Ses-
sion, Supplement No. 49
para justificar a tortura (artigo 2.o (A/45/49), p. 216. f ) Garantia de que a educação e informação
N.T.12
da Convenção contra a Tortura e Texto em português
disponível na webpage do
relativas à proibição da tortura constituam parte
artigo 3.o da Declaração sobre a GDDC. integrante da formação do pessoal (civil ou mili-
17
Protecção contra a Tortura); Para uma interpretação
acerca do que se conside-
tar) encarregado da aplicação da lei, do pessoal
ram “sanções legítimas”,
vide o relatório apresentado
médico, dos agentes da função pública e de quais-
b) A proibição de expulsar, pelo Relator Especial sobre
Tortura à Comissão dos
quer outras pessoas interessadas (artigo 10.o da Con-
entregar (refouler) ou extraditar Direitos do Homem na sua
53.a sessão (E/CN.4/1997/7,
venção contra a Tortura; artigo 5.o da Declaração

Normas jurídicas internacionais aplicáveis


* 3
sobre a Protecção contra a Tortura; parágrafo 54 das independentes “de elevado sentido moral e reco-
Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos); nhecida competência no domínio dos direitos do
homem”. Nos termos do artigo 19.o da Convenção
g) Garantia de que qualquer declaração que se contra a Tortura, os Estados Partes apresentam ao
prove ter sido obtida através da tortura não possa Comité, através do Secretário Geral, relatórios
ser invocada como elemento de prova num processo, sobre as medidas por si adoptadas para dar cum-
salvo se for utilizada contra a pessoa acusada da prá- primento às obrigações assumidas em virtude da
tica de tortura para provar que a declaração foi feita Convenção. O Comité analisa a forma como as
(artigo 15.o da Convenção contra a Tortura; artigo 12.o disposições da Convenção são incorporadas na lei
da Declaração sobre a Protecção contra a Tortura); nacional de cada Estado Parte e verifica a respec-
tiva aplicação prática. Cada relatório é examinado
h) Garantia de que as autoridades competentes pelo Comité, que poderá formular comentários
do Estado procedem imediatamente a um rigo- gerais e recomendações e incluir esta informação
roso inquérito sempre que existam motivos razoá- no seu relatório anual aos Estados Partes e à
veis para crer que foi praticado um acto de tortura Assembleia Geral. Estes procedimentos são leva-
(artigo 12.o da Convenção contra a Tortura; prin- dos a cabo no âmbito de reuniões públicas.
cípios 33 e 34 do Conjunto de Princípios sobre
Detenção; artigo 9.o da Declaração sobre a Pro- 12. Nos termos do artigo 20.o 18 Deverá salientar-se,
porém, que a aplicação do
tecção contra a Tortura); da Convenção, caso o Comité artigo 20.o pode ser limi-
tada em virtude de reserva
receba informações idóneas que do Estado Parte, caso em
que o citado artigo não se
i) Garantia de que as vítimas de tortura dis- pareçam conter indicações bem aplicará.
põem do direito de obter reparação e uma indem- fundadas de que a tortura é sis- N.T.13 Portugal não formulou
qualquer reserva ao artigo
nização adequada pelos danos sofridos (artigos tematicamente praticada no ter- 20.o da Convenção (nem a
qualquer outra disposição
13.o e 14.o da Convenção contra a Tortura; artigo 11.o ritório de um Estado parte, da mesma), pelo que se
encontra sujeito à jurisdição
da Declaração sobre a Protecção contra a Tortura; poderá convidar o referido do Comité nos termos deste
artigo.
parágrafos 35 e 36 das Regras Mínimas para o Tra- Estado a colaborar consigo na
tamento dos Reclusos); análise da informação em causa e, para este fim,
a apresentar os seus comentários relativamente à
j) Garantia de que seja instaurado processo mesma. O Comité pode, se o julgar necessário,
penal contra o presumível autor ou autores do designar um ou mais dos seus membros para pro-
acto de tortura caso um inquérito revele indícios cederem a um inquérito confidencial e apresen-
da prática de um acto deste tipo. Caso pareçam exis- tarem as suas conclusões ao Comité com a
tir indícios sólidos da aplicação de penas ou tra- máxima urgência. Com o acordo do Estado Parte
tamentos cruéis, desumanos ou degradantes, o em causa, este inquérito poderá incluir uma visita
presumível infractor ou infractores deverão ser ao respectivo território. Após examinar as conclu-
submetidos a processo penal, disciplinar ou outro sões do seu membro ou membros designados
processo adequado (artigo 7.o da Convenção con- para conduzir o inquérito, o Comité transmite-as
tra a Tortura; artigo 10.o da Declaração sobre a ao Estado Parte em questão, juntamente com
Protecção contra a Tortura). quaisquer sugestões ou comentários que lhe pare-
çam adequados face à situação. Todas as diligên-
2. ÓRGÃOS E MECANISMOS DAS NAÇÕES UNIDAS cias efectuadas ao abrigo do artigo 20.o são
confidenciais, procurando-se obter a colaboração
(a) Comité contra a tortura do Estado Parte em todas as fases do processo.
Uma vez concluídos estes trabalhos, o Comité
11. O Comité contra a Tortura controla a aplica- pode, após consultas com o Estado Parte interes-
ção da Convenção contra a Tortura e Outras Penas sado, decidir incluir um resumo dos resultados do
ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degra- inquérito no seu relatório anual aos outros Esta-
dantes. Este Comité é composto por 10 peritos dos Partes e à Assembleia Geral18,N.T.13.

4
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.o 08 [ACNUDH]
13. Em conformidade com o N.T.14 A 30 de Maio de 2002, 16. De cinco em cinco anos, os 21 Documento das Nações
já 51 Estados haviam reco- Unidas com a cota A/37/40
artigo 22.o da Convenção contra nhecido a competência do Estados Partes no Pacto deverão (1982).
Comité ao abrigo do artigo
a Tortura, um Estado Parte pode, 22.o, entre os quais Portu- apresentar relatórios nos quais indicam as medi-
gal, que apresentou declara-
a todo o momento, reconhecer a ção nesse sentido no
momento do depósito do
das por si adoptadas para tornar efectivos os
competência do Comité para instrumento de ratificação
da Convenção (9 de Feve-
direitos reconhecidos no Pacto e os progressos
receber e analisar comunicações reiro de 1999, com efeitos a
partir de 11 de Março do
alcançados no gozo destes mesmos direitos.
apresentadas por ou em nome mesmo ano) – juntamente
com declaração reconhe-
O Comité dos Direitos do Homem examina os
de particulares sujeitos à sua Comité aocompetência
cendo a do
abrigo do artigo
relatórios em diálogo com representantes do
o
jurisdição e que afirmem terem 21. (para o exame de
comunicações apresentadas
Estado Parte em causa, após o que adopta obser-
sido vítimas de violação, por um por outros Estados Partes). vações finais que resumem as suas principais
Estado Parte, das disposições da Convenção contra preocupações e contêm as sugestões e recomen-
a Tortura. O Comité considera então estas comuni- dações que considere pertinente dirigir ao Estado
cações em sessões à porta fechada e comunica as suas Parte. O Comité elabora também comentários
conclusões ao Estado Parte interessado e ao parti- gerais interpretativos de determinados artigos do
cular. Apenas 39 dos 112 Estados Partes na Convenção Pacto em particular, a fim de orientar os Estados
reconheceram já a aplicabilidade do artigo 22.oN.T.14. Partes no processo de elaboração dos relatórios, bem
como nos seus esforços para aplicar as disposições
14. Nos seus relatórios anuais 19 Vide Comunicação do PIDCP. Num desses comentários gerais, o
8/1991, parágrafo 185, rela-
apresentados à Assembleia tada no relatório do Comité Comité propôs-se clarificar o sentido do artigo 7.o
contra a Tortura à Assem-
Geral, o Comité insiste regular- bleia Geral (A/49/44) de 12 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Polí-
de Junho de 1994.
mente na necessidade de cum- 20 ticos, que declara que ninguém será submetido a
Vide Comunicação
primento, pelos Estados Partes, 6/1990, parágrafo 10.4, tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desu-
relatada no relatório do
das obrigações impostas pelos Comité contra a Tortura à manos ou degradantes. Nos seus comentários
Assembleia Geral (A/50/44)
artigos 12.o e 13.o da Convenção, de 26 de Julho de 1995. gerais ao citado artigo 7.o que constam do relató-
garantindo que todas as alega- rio do Comité, este observou especificamente que
ções de tortura são imediatamente objecto de um a proibição da tortura ou a sua criminalização não
inquérito rigoroso. Por exemplo, o Comité decla- são suficientes para garantir a plena aplicação do
rou considerar que um atraso de 15 meses na artigo 7.o21. O Comité declarou o seguinte: “[...] os
investigação de um alegado caso de tortura é Estados deverão garantir uma protecção efectiva
excessivamente longo e viola o disposto no artigo através de um qualquer mecanismo de controlo. As
12.o da Convenção19. O Comité sublinhou também denúncias de maus tratos deverão ser investigadas
que o artigo 13.o não exige a apresentação formal de forma eficaz pelas autoridades competentes.”
de uma queixa de tortura, “bastando que uma pes-
soa alegue ter sido submetida a tortura para que 17. A 10 de Abril de 1992, o NT15 Portugal aprovou este
primeiro Protocolo para
[o Estado Parte] esteja obrigado a proceder de ime- Comité adoptou um novo adesão através da Lei
n.o 13/82, de 15 de Junho,
diato ao exame rigoroso do caso”20. comentário geral ao artigo publicada no Diário da
República, I Série A,
7.o do Pacto, desenvolvendo as n.o 135/82, tendo o instru-
mento de adesão sido depo-
(b) Comité dos Direitos do Homem suas anteriores observações. sitado junto do
Secretário-Geral das Nações
O Comité reforçou a sua leitura Unidas a 3 de Maio de
1983. Este Protocolo entrou
15. O Comité dos Direitos do Homem foi insti- do artigo 7.o considerando que em vigor na ordem jurídica
portuguesa a 3 de Agosto de
tuído ao abrigo do artigo 28.o do Pacto Internacional “as denúncias deverão ser 1983.
sobre os Direitos Civis e Políticos, com a função imediatamente investigadas de
de controlar a aplicação, pelos Estados Partes, das forma imparcial pelas autoridades competentes
disposições deste instrumento. O Comité é com- de forma a garantir a eficácia do mecanismo de
posto por 18 peritos independentes que deverão ser recurso”. Caso o Estado Parte haja ratificado o pri-
pessoas de alta autoridade moral e possuidoras de meiro Protocolo Facultativo referente ao Pacto
reconhecida competência no domínio dos direitos Internacional sobre os Direitos Civis e Políti-
humanos. cosN.T.15, o particular pode apresentar uma comu-

Normas jurídicas internacionais aplicáveis


* 5
nicação ao Comité queixando-se da violação de procurar e recolher informação credível e fide-
qualquer dos seus direitos consagrados no Pacto. digna sobre questões relevantes no domínio da
Se esta comunicação for considerada admissível, tortura, e responder sem demora a tal informação.
o Comité profere decisão sobre o mérito da questão, A CDH tem vindo a renovar o mandato de Rela-
decisão essa que é tornada pública no seu relató- tor Especial em ulteriores resoluções.
rio anual.
20. A competência de controlo N.T.16 Nigel Rodley (Reino
Unido) ocupou o cargo de
(c) Comissão dos Direitos do Homem do Relator Especial abrange Relator Especial sobre Tor-
tura entre 1993 e 2001. Foi
todos os Estados Membros das substituído a 15 de Outubro
de 2001 por Theo van
18. A Comissão dos Direitos 22 Documento das Nações Nações Unidas e todos os Esta- Boven (Holanda). O man-
Unidas com a cota E/4393 dato de Relator Especial
do Homem (CDH) é o principal (1967). dos com estatuto de observador, sobre tortura foi renovado
por mais três anos pela
órgão das Nações Unidas com competência no independentemente do facto de CDH, na sua resolução
2001/62.
domínio dos direitos humanos. É composta por 53 terem ou não ratificado a Con-
Estados Membros eleitos pelo Conselho Econó- venção contra a Tortura. O Relator Especial esta-
mico e Social para mandatos de três anos. belece contacto com os Governos, solicita-lhes
A Comissão reúne anualmente durante seis sema- informação sobre medidas legislativas e adminis-
nas em Genebra para tratar de questões de direi- trativas adoptadas a fim de prevenir a tortura, con-
tos humanos, podendo iniciar estudos e missões vida-os a remediar quaisquer consequências que
de inquérito, elaborar convenções e declarações daí tenham advido e pede-lhes que respondam a
para aprovação pelos órgãos superiores das Nações informação que alegue a ocorrência de qualquer
Unidas e discutir determinadas violações de direi- caso de tortura. O Relator Especial recebe tam-
tos humanos em particular, em sessões públicas bém pedidos de acção urgente, que leva ao conhe-
ou privadas. A 6 de Junho de 1967, o Conselho Eco- cimento dos Governos interessados a fim de
nómico e Social, na resolução 1235 (XLII), autori- garantir a protecção do direito à integridade física
zou a Comissão a examinar alegações de graves e mental da pessoa. Para além disso, o Relator
violações de direitos humanos e a “proceder a um Especial reúne-se com representantes dos gover-
estudo rigoroso de situações que revelem a exis- nos que o desejem contactar e, em conformidade
tência de violações sistemáticas de direitos huma- com o seu mandato, efectua visitas ao terreno em
nos”22. Com este mandato, a Comissão tem vindo, determinadas partes do mundo. O Relator Especial
designadamente, a adoptar resoluções nas quais apresenta relatórios à Comissão dos Direitos do
manifesta preocupação pela ocorrência de violações Homem e à Assembleia Geral. Estes relatórios
de direitos humanos e a nomear relatores especiais enunciam as iniciativas tomadas pelo Relator
que se ocupam de violações de direitos humanos Especial no exercício do seu mandato e chamam
em determinados domínios temáticos específicos. reiteradamente a atenção para a importância de
A Comissão adopta também resoluções dedicadas investigar imediatamente quaisquer alegações de
ao problema da tortura e outras penas ou trata- tortura. No relatório do Relator Especial sobre Tor-
mentos cruéis, desumanos ou degradantes. Na tura de 12 de Janeiro de 1995, o Relator Especial,
sua resolução 1998/38, a CDH sublinhou que Nigel RodleyN.T.16, formulou uma série de reco-
“todas as alegações de tortura ou penas ou trata- mendações. No parágrafo 926 (g) deste relatório,
mentos cruéis, desumanos ou degradantes deve- pode ler-se o seguinte:
rão ser imediatamente examinadas, de forma
imparcial, pela autoridade nacional competente”. Quando um detido, seu familiar ou advogado apre-
sente uma queixa de tortura, deverá sempre realizar-se
(d) Relator Especial sobre Tortura um inquérito [...] Deverão ser criadas autoridades nacio-
nais independentes, como uma comissão nacional ou
19. Em 1985, a Comissão decidiu, na sua resolu- provedor de justiça com competências de investigação
ção 1985/33, criar o mandato de Relator Especial e/ou exercício de acção penal, para receber e investigar
sobre Tortura. O Relator Especial tem por função tais queixas. As queixas de tortura deverão ser tramitadas

6
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.o 08 [ACNUDH]
imediatamente e deverão ser inves- 23
Documento das Nações Especial insta as autoridades nacionais compe-
Unidas com a cota
tigadas por uma autoridade inde- E/CN.4/1995/34. tentes, não apenas a fornecer informação com-
pendente sem qualquer relação com a que procede ao pleta sobre o caso, mas também a levar a cabo um
inquérito ou instrução do caso contra a presumível inquérito independente e imparcial sobre o
vítima23. mesmo e a tomar medidas imediatas com vista a
assegurar que não voltem a suceder violações dos
21. O Relator Especial desta- 24 Documento das Nações direitos humanos das mulheres.
Unidas com a cota
cou esta recomendação no seu E/CN.4/1996/35.
relatório de 9 de Janeiro de 23. A Relatora Especial apresenta relatórios
199624. Referindo a sua preocupação pelas práti- anuais à Comissão dos Direitos do Homem, nos
cas de tortura, o Relator Especial lembrou no pará- quais dá conta das comunicações transmitidas aos
grafo 136 que “tanto nos termos do direito Governos e respostas recebidas. Com base na infor-
internacional geral como nos da Convenção con- mação recebida dos Governos e outras fontes fide-
tra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos dignas, a Relatora Especial formula recomendações
Cruéis, Desumanos ou Degradantes, os Estados têm dirigidas aos Estados em causa com o objectivo de
a obrigação de investigar as denúncias de tortura”. encontrar soluções duradouras para a erradicação
da violência contra mulheres em qualquer país. Caso
(e) Relatora Especial sobre Violência não receba qualquer resposta ou esta seja insufi-
contra Mulheres ciente, a Relatora Especial pode enviar nova comu-
nicação ao Governo em causa. Se, em determinado
22. O mandato de Relatora N.T.17 O cargo de Relator país, se continuar a verificar uma situação concreta
Especial é ocupado, desde a
Especial sobre Violência contra criação do mandato, pela de violência contra mulheres e a informação recebida
senhora Radhika Coomaras-
Mulheres foi criado em 1994 wamy, do Sri Lanka. Por pela Relatora Especial indicar que nenhumas medi-
este motivo, optou-se por
pela resolução 1994/45 da referir a designação do
mandato no feminino na
das foram ou estão a ser tomadas pelo Governo para
Comissão dos Direitos do língua portuguesa. Na reso-
lução 2000/45, a CDH
assegurar a protecção dos direitos humanos das
Homem e renovado pela reso- renovou este mandato por
mais três anos. No final de
mulheres, a Relatora Especial pode considerar a pos-
lução 1997/44 N.T.17
. A Relatora Coomaraswamy
Julho de 2002, Radhika
mantinha
sibilidade de pedir autorização ao Governo em causa
Especial instituiu procedimentos a titularidade do cargo. para visitar o país a fim de levar a cabo uma missão
para solicitar aos Governos, num espírito huma- de inquérito no terreno.
nitário, informações e esclarecimentos sobre casos
concretos de alegada violência, a fim de identifi- c. Organizações regionais
car e investigar situações e denúncias concretas de
violência contra mulheres em qualquer país. Estas 24. Os organismos regionais contribuem tam-
comunicações podem dizer respeito a um ou mais bém para o desenvolvimento de normas destina-
indivíduos identificados pelo nome ou a informa- das a prevenir a tortura. É o caso, entre outros, da
ção de natureza mais geral relativa a situações em Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
que a violência contra mulheres continua a ser do Tribunal Interamericano de Direitos Huma-
perpetrada ou tolerada. A Relatora Especial recorre nos, do Tribunal Europeu dos Direitos do
à definição de violência contra mulheres com base Homem, do Comité Europeu para a Prevenção da
no género, constante da Declaração das Nações Tortura e da Comissão Africana dos Direitos do
Unidas sobre a Eliminação da Violência contra Homem e dos Povos.
Mulheres, adoptada pela Assembleia Geral na sua
resolução 48/104, de 20 de Dezembro de 1993. 1. COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS
A Relatora Especial pode transmitir apelos urgen- HUMANOS E TRIBUNAL INTERAMERICANO DE
tes nos casos de violência contra mulheres com base DIREITOS HUMANOS
no género que suponham ou possam supor uma
ameaça iminente ou receio de ameaça ao direito à 25. A 22 de Novembro de 1969, a Organização de
vida ou à integridade física da pessoa. A Relatora Estados Americanos (OEA) adoptou a Convenção

Normas jurídicas internacionais aplicáveis


* 7
Americana sobre Direitos Hu- 25
Organização de Estados 27. De acordo com o artigo 1.o, os Estados Partes
Americanos, Série de Trata-
manos, que entrou em vigor a 18 dos N.o 36, e United obrigam-se a prevenir e punir a tortura, nos termos
Nations Treaty Séries, vol.
de Julho de 197825,N.T.18. O artigo 1144, p.123. O texto foi da Convenção. Os Estados Partes na Convenção
reimpresso na obra Basic
5.o desta Convenção dispõe o Documents Pertaining to
Human Rights in the
deverão investigar imediatamente e de forma ade-
seguinte: Inter-American System
[em português: “Documen-
quada quaisquer alegações de tortura ocorrida no
tos Básicos Relativos aos âmbito da sua jurisdição.
Direitos Humanos no Sis-
1. Toda a pessoa tem o direito tema Interamericano”],
OEA/Ser.L.V/II.82,
de que se respeite a sua integri- documento 6, rev.1, a pp.25
(1992).
28. O artigo 8.o estabelece que “os Estados Partes
dade física, psíquica e moral. N.T.18
O texto em português
assegurarão a qualquer pessoa que denunciar
deste instrumento está dis-
ponível no website do
haver sido submetida a tortura, no âmbito de sua
GDDC: www.gddc.pt.
2. Ninguém deve ser submetido jurisdição, o direito de que o caso seja examinado
a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou de maneira imparcial”. Da mesma forma, sempre
degradantes. Toda a pessoa privada da liberdade deve que haja qualquer denúncia ou razão fundada
ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente para supor que tenha sido cometido um acto de tor-
ao ser humano. tura no âmbito da sua jurisdição, os Estados Par-
tes deverão garantir que as suas autoridades
26. O artigo 33.o da Convenção 26 Regulamento da Comis- investiguem imediatamente o caso de forma
são Interamericana de
prevê a criação da Comissão Direitos Humanos, Organi- adequada e instaurem, se for caso disso, o cor-
zação de Estados America-
Interamericana de Direitos nos, OEA/Ser.L.V/II.92, respondente processo penal.
documento 31, revisão 3 de
Humanos e do Tribunal Intera- 3 ode Maio de 1996, artigo
1. , n.o 1.
mericano de Direitos Huma- 27 29. Num dos seus relatórios 29 Relatório da Situação de
Vide processo 10.832, Direitos Humanos no
nos. Conforme estipulado no relatório n.o 35/96, Relató- de 1998 dedicado à situação de México, 1998, Comissão
rio anual de 1997 da Comis- Interamericana de Direitos
respectivo regulamento, a são Interamericana de determinado país em concreto, Humanos, parágrafo 323.
Direitos Humanos, pará-
principal função da Comissão grafo 75. 30
a Comissão observou que um Ibid., parágrafo 324.
consiste em promover a obser- 28 Vide Série de Tratados da dos obstáculos à efectiva punição dos autores de tor-
Organização de Estados
vância e a defesa dos direitos Americanos, N.o 67. tura reside na falta de independência dos inqué-
humanos e servir de órgão consultivo da Orga- ritos, uma vez que a realização das diligências de
nização de Estados Americanos nesta área26. No investigação compete a organismos federais sus-
desempenho desta função, a Comissão tem em ceptíveis de terem ligações com os presumíveis
conta a Convenção Interamericana para Prevenir autores dos actos de tortura29. A Comissão citou
e Punir a Tortura para orientar a sua interpreta- o artigo 8.o para sublinhar a importância de um
ção de tortura ao abrigo do artigo 5.o27. A Con- “exame imparcial” de todos os casos30.
venção Interamericana para Prevenir e Punir a
Tortura foi adoptada pela OEA a 9 de Dezembro 30. O Tribunal Interamericano de Direitos Huma-
de 1985 e entrou em vigor a 28 de Fevereiro de nos tem sublinhado a necessidade de investigar
1987 28. O seu artigo 2. o define tortura nos alegadas violações da Convenção Americana sobre
seguintes termos: Direitos Humanos. Na sua sentença de 29 de Julho
de 1988 relativa ao processo Velásquez Rodrigues,
[...] todo acto pelo qual são infligidos intencionalmente o tribunal formulou as seguintes considerações:
a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais,
com fins de investigação criminal, como meio de inti- “O Estado está obrigado a investigar qualquer situação
midação, como castigo pessoal, como medida preven- de violação dos direitos protegidos pela Convenção. Se
tiva, como pena ou com qualquer outro fim. o aparelho do Estado agir de tal forma que a violação
Entender-se-á também como tortura a aplicação sobre fique impune e o pleno gozo de tais direitos por parte
uma pessoa, de métodos tendentes a anular a perso- da vítima não seja restabelecido logo que possível, o
nalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física Estado está em incumprimento do seu dever de as-
ou mental, embora não causem dor física ou angústia segurar o livre e pleno exercício desses direitos às pessoas
psíquica. sujeitas à sua jurisdição.” [parágrafo 176]

8
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.o 08 [ACNUDH]
31. O artigo 5.o da Convenção consagra a proi- ausência da qual uma questão se 33
Vide Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem,
bição da tortura. Embora o caso diga directa- coloca claramente nos termos do Recueil des arrêts et déci-
sions, 1996-VI, parágrafo
mente respeito à questão dos desaparecimentos, artigo 3.o33. 61.

um dos direitos referidos pelo Tribunal como


estando garantidos pela Convenção Americana 34. O Tribunal prosseguiu 34 Ibid., parágrafo 64.
sobre Direitos Humanos é o direito de não ser dizendo que as lesões apresen- 35 Ibid., parágrafo 98.
sujeito a tortura ou outras formas de maus tadas pelo queixoso resultavam
tratos. de tortura e que tinha havido violação do artigo 3.o34.
Para além disso o Tribunal procedeu a uma inter-
2. TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM pretação do artigo 13.o da Convenção, que estabe-
lece o direito a um recurso efectivo perante uma
32. A 4 de Novembro de 1950, 31 United Nations Treaty instância nacional, considerando que o mesmo
Series, vol. 213, p. 222.
o Conselho da Europa adoptou N.T.19 impõe a obrigação de investigar rigorosamente
Esta Convenção foi
a Convenção para a Protecção aprovada para ratificação todas as queixas de tortura. Considerando a
por Portugal pela Lei
dos Direitos do Homem e das n.o 65/78, de 13 de Outu- “importância fundamental da proibição da tor-
bro, publicada no Diário da
Liberdades Fundamentais, que República, I Série, tura” e a vulnerabilidade das vítimas de tortura, o
n.o 236/78, tendo o instru-
entrou em vigor a 3 de Setembro mento de ratificação sido Tribunal defendeu que “o artigo 13.o impõe aos
depositado junto do Secre-
de 195331N.T.19. O artigo 3.o da tário-Geral do Conselho da Estados, sem prejuízo de qualquer outra via de
Europa a 9 de Novembro
Convenção Europeia estabelece de 1978. Entrou em vigor na recurso disponível ao abrigo do direito interno, a
ordem jurídica portuguesa a
que “Ninguém pode ser sub- 9 de Novembro de 1978. obrigação de investigar de forma rigorosa e eficaz
O texto oficial em português
metido a torturas, nem a penas está disponível na página do todos os incidentes de tortura”35.
GDDC na INTERNET.
ou tratamentos desumanos ou
degradantes”. A Convenção Europeia instituiu os 35. De acordo com a interpre- 36 Ibid., parágrafo 98.
seguintes mecanismos de controlo: o Tribunal tação do Tribunal, a noção de 37 Ibid., parágrafo 100.
Europeu e a Comissão Europeia dos Direitos do “recurso efectivo” constante do
Homem. Desde a reforma que entrou em vigor artigo 13.o exige uma investigação rigorosa de qual-
a 1 de Novembro de 1998, um novo Tribunal quer “alegação verosímil” de tortura. O Tribunal
permanente substituiu o anterior Tribunal e a observou que, embora a Convenção não contenha
Comissão. O direito de apresentar queixa qualquer disposição expressa nesse sentido, como
perante o Tribunal é agora reconhecido a todos acontece com o artigo 12.o da Convenção contra a
os particulares e todas as vítimas têm acesso Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis,
directo ao Tribunal. Este último teve já a opor- Desumanos ou Degradantes, “tal exigência está
tunidade de se pronunciar sobre a necessidade implícita na noção de ‘recurso efectivo’ do artigo
de investigar quaisquer alegações de tortura a fim 13.o”36. O Tribunal considerou então que o Estado
de garantir o respeito dos direitos enunciados no havia violado o artigo 13.o ao abster-se de investi-
artigo 3.o. gar a denúncia de tortura apresentada pelo quei-
xoso37.
33. O Tribunal pronunciou-se 32
Ibid., conforme emen-
dada pelos Protocolos adi-
pela primeira vez sobre esta cionais n.os 3, 5 e 8, 36. Na sentença proferida a 28 de Outubro de
entrados em vigor a 21 de
questão na decisão do caso Aksoy Setembro de 1970, 20 de 1998 no processo Assenov e outros contra Bulgá-
Dezembro de 1971 e 1 de
contra Turquia, a 18 de Dezembro Janeiro de 1990, respectiva- ria (90/1997/874/1086), o Tribunal foi ainda
mente, Série de Tratados
de 199632. Neste caso, o Tribunal Europeus, nos 45, 46 e 118. mais longe, ao reconhecer que o Estado tem a
considerou que: obrigação de investigar as alegações de tortura,
não apenas ao abrigo do artigo 13.o, mas também
Sempre que um indivíduo está de boa saúde no momento em virtude do artigo 3.o. Neste caso, um jovem
em que fica sob custódia policial, mas aparece ferido no cigano capturado pela polícia mostrava sinais de
momento da libertação, cabe ao Estado apresentar uma espancamento, mas era impossível avaliar, com
explicação plausível para a causa dos ferimentos, na base nas provas disponíveis, se as lesões haviam

Normas jurídicas internacionais aplicáveis


* 9
sido causadas pelo seu pai ou 38 Vide Tribunal Europeu queixoso ao processo de inquérito 41
Ibid., parágrafo 117.
dos Direitos do Homem,
pela polícia. O Tribunal reco- Recueil des arrêts et déci- e o pagamento de uma indemni-
sions, 1998-VIII, parágrafo
nheceu que “a intensidade dos 95. zação quando a ela houver lugar41.
ferimentos observados pelo 39 Ibid., parágrafo 101.
médico que examinou o Senhor Assenov indica que 3. COMITÉ EUROPEU PARA A PREVENÇÃO
as lesões deste último, quer houvessem sido cau- DA TORTURA E DAS PENAS OU TRATAMENTOS
sadas pelo seu pai ou pela polícia, eram suficien- DESUMANOS OU DEGRADANTES
temente graves para serem consideradas maus
tratos ao abrigo do artigo 3.o38”. Ao contrário da 38. Em 1987, o Conselho da N.T.20 Para a versão oficial
em português, consulte a
Comissão, que considerou não ter havido violação Europa adoptou a Convenção webpage do GDDC.
do artigo 3.o, o Tribunal não ficou por aqui. Pros- Europeia para a Prevenção da 42 Série ode Tratados Euro-
peus, n. 126.
seguiu dizendo que “os factos levantam suspeitas Tortura e das Penas ou Trata- N.T.21
A 31 de Julho de 2002,
razoáveis de que as lesões tenham sido causadas mentos Desumanos ou Degra- o Conselho da Europa con-
tava já com 44 Estados
pela polícia”39. Assim, o Tribunal declarou que: dantes, que entrou em vigor Membros, na sequência das
adesões da Arménia
a 1 de Fevereiro de 1989N.T.20,42. (25.01.2001), Azerbeijão
(25.01.2001), Bósnia e Her-
Nestas circunstâncias, quando um 40 Ibid., parágrafo 102. A 1 de Março de 1999, tinha já zegovina (24.04.2002) e
Geórgia (27.04.1999), dos
indivíduo apresenta uma queixa sido ratificada por todos os 40 quais apenas esta última
procedeu à ratificação desta
verosímil de ter sido seriamente mal tratado pela polí- Estados Membros do Conselho da Convenção, que conta
assim com 41 Estados Par-
cia ou outros agentes análogos do Estado, ilegalmente EuropaN.T.21. Esta Convenção com- tes dos actuais 44 Membros
do Conselho da Europa.
e em violação do artigo 3.o, esta disposição, lida em plementa, com um mecanismo Portugal aprovou a Conven-
ção para ratificação pela
conjunto com o artigo 1.o da Convenção no qual os preventivo, o aparelho judicial resolução da Assembleia da
República n.o 3/90, de 30
Estados Partes se obrigam a reconhecer “a qualquer pes- instituído pela Convenção Euro- Diário da República,
de Janeiro, publicada no
I Série,
soa dependente da sua jurisdição os direitos e liberda- peia dos Direitos do Homem. n.medianteo
25/90 e ratificou-a
Decreto do Presi-
des definidos [na] presente Convenção”, implica a Intencionalmente, a Convenção dente o
da República,
n. 8/90, de 20 de Feve-
obrigatoriedade de levar a cabo um inquérito oficial não contém quaisquer disposi- reiro, publicado no Diário
da República, I Série,
o
eficaz. Este inquérito deverá permitir a identificação e ções substantivas. Criou o de ratificação
n. 43/90. O instrumento
foi depositado
punição dos responsáveis. A não ser assim, a interdi- Comité Europeu para a Prevenção junto do Secretário-Geral do
Conselho da Europa a 29 de
ção jurídica geral da tortura e das penas ou tratamen- da Tortura e das Penas ou Tra- Março de 1990, tendo a
Convenção entrado em
tos desumanos ou degradantes, pese embora a sua tamentos Desumanos ou De- vigor na ordem jurídica por-
tuguesa a 1 de Julho de
1990.
importância fundamental, ficaria destituída de efeito prá- gradantes, composto por um
tico e tornaria possível que, em determinados casos, os membro por cada Estado Parte. Os membros elei-
agentes do Estado violassem os direitos das pessoas à tos do Comité deverão ser pessoas de elevada con-
sua guarda com virtual impunidade40. dição moral, imparciais e independentes, e estar
disponíveis para a realização de missões no terreno.
37. Pela primeira vez, o Tribunal concluiu pela vio-
lação do artigo 3.o, não em virtude dos maus tra- 39. O Comité realiza visitas 43 Entende-se por “pessoa
privada de liberdade” qual-
tos em si mesmos, mas pelo facto de se não ter aos Estados Partes, algumas quer pessoa privada de
liberdade à ordem de uma
levado a cabo um inquérito oficial eficaz perante com carácter regular e periódico autoridade pública, como,
embora não exclusiva-
uma alegação de maus tratos. Para além disso, o e outras quando considere que mente, pessoas capturadas
ou sujeitas a qualquer
Tribunal reiterou a sua posição no caso Aksoy e con- as circunstâncias o exigem. forma de detenção, presos
preventivos ou condenados
cluiu que também tinha havido violação do artigo A delegação visitante do Comité e pessoas involuntariamente
internadas em hospitais psi-
13.o. O Tribunal considerou que: será constituída por alguns dos quiátricos.
seus membros, acompanhados
Quando uma pessoa apresenta uma queixa verosímil de de peritos nas áreas da medicina e do direito, entre
ter sido sujeita a maus tratos em violação do artigo 3.o, outras, intérpretes e elementos do Secretariado.
a noção de recurso efectivo implica, para além da rea- Estas delegações visitam pessoas privadas de liber-
lização de um inquérito rigoroso e eficaz conforme exi- dade pelas autoridades do país visitado43. Os pode-
gido também pelo artigo 3.o, o efectivo acesso do res destas delegações visitantes são bastante

10
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.o 08 [ACNUDH]
vastos: podem visitar livremente qualquer local 42. Para além disso, o Comité lembra repetida-
onde se encontrem pessoas privadas de liberdade; mente que um dos meios mais eficazes para pre-
fazer visitas sem aviso prévio a qualquer destes venir os maus tratos de detidos por parte de
locais; voltar a visitar os mesmos; falar em pri- funcionários responsáveis pela aplicação da lei
vado com as pessoas privadas de liberdade; visitar consiste no exame cuidadoso, pelas autoridades
quaisquer pessoas que se encontrem nesses locais competentes, de todas as queixas de tais abusos de
ou todas elas; e observar todas as instalações (e não que tenham conhecimento e, se for caso disso, na
apenas as celas de detenção), sem restrições. imposição da sanção adequada. Isto tem um forte
A delegação pode aceder a todos os documentos e efeito dissuasor.
ficheiros relativos às pessoas visitadas. Todo o tra-
balho do Comité se baseia nos princípios da con-
fidencialidade e da cooperação. 4. COMISSÃO AFRICANA DOS DIREITOS DO
HOMEM E DOS POVOS E TRIBUNAL AFRICANO DOS
40. Após a visita, o Comité elabora um relatório. DIREITOS DO HOMEM E DOS POVOS
Com base nos factos observados durante a visita,
o relatório comenta as condições detectadas, for- 43. Ao contrário dos sistemas 44 Documento da OUA com
a cota CAB/LEG/67/3, rev.5
mula recomendações concretas e coloca quaisquer Europeu e Interamericano, (21 I.L.M.58 (1982)).
questões que necessitem de ser esclarecidas. África não dispõe de uma con- N.T.22 Para a versão em por-
tuguês, consulte a webpage
O Estado Parte responde por escrito ao relatório, venção relativa à tortura e à sua do GDDC.
assim se estabelecendo um diálogo com o Comité prevenção. A questão da tortura
que se mantém até à visita seguinte. Os relatórios é posta no mesmo plano das restantes violações
do Comité e as respostas do Estado Parte são de direitos humanos. A tortura é abordada, em pri-
documentos confidenciais, mas o Estado Parte (e meiro lugar, na Carta Africana dos Direitos do
não o Comité) pode decidir tornar público qualquer Homem e dos Povos, adoptada pela Organização
deles. Até à data, quase todos os Estados Partes têm de Unidade Africana (OUA) a 27 de Junho de
divulgado tanto os relatórios como as respectivas 1981 e entrada em vigor a 21 de Outubro de
respostas. 198644, N.T.22. O artigo 5.o da Carta Africana dispõe
o seguinte:
41. No desenrolar das suas actividades ao
longo dos últimos dez anos, o Comité desen- Todo o indivíduo tem direito ao respeito da dignidade
volveu gradualmente um conjunto de critérios inerente à pessoa humana e ao reconhecimento da sua
para o tratamento das pessoas privadas de liber- personalidade jurídica. Todas as formas de exploração
dade que constituem normas gerais. Estas nor- e de aviltamento do homem, nomeadamente a escra-
mas dizem respeito, não apenas às condições vatura, o tráfico de pessoas, a tortura física ou moral e
materiais de detenção, mas também às garantias as penas ou os tratamentos cruéis, desumanos ou
processuais. Por exemplo, o Comité defende o degradantes são interditas.
reconhecimento, às pessoas privadas de liberdade
à ordem de autoridades policiais, dos seguintes 44. A Comissão Africana dos Direitos do
direitos: Homem e dos Povos foi estabelecida em Junho
de 1987, em conformidade com o artigo 30. o da
a) O direito de informar imediatamente uma ter- Carta Africana, com a missão de “promover os
ceira parte (membro da família) da detenção, se a direitos do homem e dos povos e de assegurar a
pessoa detida assim o desejar; respectiva protecção em África”. Nas suas sessões
b) O direito da pessoa privada de liberdade de ter regulares, a Comissão tem vindo a adoptar diver-
imediatamente acesso a um advogado; sas resoluções sobre matérias relativas à situa-
c) O direito da pessoa privada de liberdade de ter ção de direitos humanos em África, algumas das
acesso a um médico, incluindo, se assim o dese- quais abordam a questão da tortura, entre outras
jar, a médico da sua escolha. violações. Em algumas das suas resoluções

Normas jurídicas internacionais aplicáveis


* 11
sobre os direitos humanos em determinados d. Tribunal Penal Internacional
países específicos, a Comissão tem manifestado
preocupação acerca da degradação da situação de 46. O Estatuto de Roma do Tri- N.T.23 O Estatuto de Roma
do TPI (cuja versão oficial
direitos humanos, incluindo a prática da tor- bunal Penal Internacional, adop- integral está disponível na
webpage do GDDC), consi-
tura. tado a 17 de Julho de 1998, derado como o instrumento
jurídico internacional mais
estabeleceu um tribunal penal importante desde a Carta
das Nações Unidas, entrou
45. A Comissão criou novos mecanismos, como internacional permanente para em vigor no dia 1 de Julho
de 2002, 1.o dia do mês
o Relator Especial sobre as Prisões, o Relator Espe- julgar indivíduos responsáveis dias apósaoo depósito
seguinte termo de 60
do 60.o
cial sobre as Execuções Sumárias e Arbitrárias e o pela prática do genocídio, crimes instrumento de ratificação.
Até 7 de Janeiro de 2003,
Relator Especial sobre Mulheres, cujo mandato contra a Humanidade e crimes havia já sido ratificado por
87 Estados. Portugal foi o
compreende a apresentação de relatórios à Comis- de guerra (A/CONF.183/9). Este 51. o
Estado a ratificar o
Estatuto (aprovado para
são durante as sessões públicas da mesma. Estes Tribunal (TPI) tem jurisdição da Assembleia
ratificação pela Resolução
da República
mecanismos permitem que as vítimas e organi- o
sobre casos de alegada tortura n.Decreto 3/2002 e ratificado pelo
do Presidente da
zações não governamentais enviem informações que sejam elemento constitutivo ambosRepública n.o 2/2002,
publicados no Diário
directamente aos relatores especiais. Simultanea- de um crime de genocídio ou de da República I-A, n.o 15, de
18.01.2002), tendo deposi-
mente, a vítima ou a organização não governa- um crime contra a Humanidade, tado o respectivo instru-
mento de ratificação a 5 de
mental pode apresentar queixa à Comissão por caso a tortura seja cometida no Fevereiro de 2002.
actos de tortura conforme definida no artigo 5.o da quadro de um ataque generalizado ou sistemático, ou
Carta Africana. Na pendência de uma queixa indi- de um crime de guerra nos termos definidos nas
vidual perante a Comissão, a vítima ou a organi- Convenções de Genebra de 1949. O Estatuto de
zação não governamental pode enviar a mesma Roma define a tortura como o acto por meio do qual
informação aos relatores especiais para inclusão nos uma dor ou sofrimentos graves, físicos ou mentais,
relatórios públicos que estes apresentam à Comis- são intencionalmente causados a uma pessoa que
são. Com o objectivo de criar uma instância para esteja sob a custódia ou o controlo do arguido. Até 25
decidir sobre queixas de violação dos direitos de Setembro de 2000, o Estatuto de Roma havia sido
garantidos na Carta Africana, a Assembleia da assinado por 113 Estados e ratificado por 21N.T.23. O Tri-
Organização de Unidade Africana adoptou, em bunal terá a sua sede na Haia. A competência do TPI
Junho de 1998, um protocolo que visa o estabele- está limitada aos casos em que os Estados não podem
cimento do Tribunal Africano dos Direitos do ou não querem exercer acção penal contra as pessoas
Homem e dos Povos. responsáveis pelos crimes descritos no Estatuto.

12
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.o 08 [ACNUDH]
cap
ítu
lo

*02
Códigos éticos aplicáveis

47. Todas as profissões utilizam como referência cia da MagistraturaN.T.24 estabe- N.T.24 Consulte o texto inte-
gral em português na
códigos de ética profissional, que enunciam valo- lece que “os magistrados têm o página do GDDC na
INTERNET.
res comuns e reconhecem os deveres dos profis- direito e o dever de garantir que 45
Adoptados pelo Sétimo
sionais, ao mesmo tempo que definem os padrões os procedimentos judiciais são Congresso das Nações Uni-
das para a Prevenção do

morais a que estes devem obedecer. As normas éti- conduzidos em conformidade Delinquentes, realizadodosem
Crime e o Tratamento

cas são definidas sobretudo de duas maneiras: com a lei e que os direitos das par- Milão de 26 de Agosto a 6
de Setembro de 1985, e

através de instrumentos internacionais elabora- tes são respeitados”45. De forma endossados pela Assembleia
Geral das Nações Unidas

dos por órgãos como as Nações Unidas, e através semelhante, os magistrados do nas suas resoluções 40/32,
de 29 de Novembro de 1985

de códigos de princípios elaborados pelos próprios Ministério Público têm o dever bro de 1985.de 13 de Dezem-
e 40/146,

profissionais, através das associações que os repre- ético de investigar e instaurar N.T.25 Consulte o texto inte-
sentam, a nível nacional ou internacional. Os prin- acção penal relativamente a cri- gral em português na
página do GDDC na

cípios fundamentais são sempre os mesmos e mes de tortura cometidos por INTERNET.
46
Adoptados pelo Oitavo
centram-se nas obrigações dos profissionais funcionários públicos. O artigo Congresso das Nações Uni-

perante os seus clientes ou pacientes individual- 15.o dos Princípios Orientadores das para a Prevenção do
Crime e o Tratamento dos

mente considerados, perante a sociedade em geral Relativos à Função dos Magis- Delinquentes, realizado em
Havana, Cuba, de 27 de

e perante os colegas, tendo por objectivo a defesa trados do Ministério PúblicoN.T.25 Agosto
1990.
a 7 de Setembro de

da honra da classe no seu conjunto. Estas obriga- declara: “Os magistrados do


ções reflectem e complementam os direitos de Ministério Público obrigam-se em especial a ence-
que todos devem gozar ao abrigo dos instrumen- tar investigações criminais no caso de delitos come-
tos internacionais. tidos por agentes do Estado, nomeadamente actos
de corrupção, de abuso de poder, de violações gra-
ves dos direitos do homem e outras infracções reco-
a. Ética dos profissionais da área da justiça nhecidas pelo direito internacional e, quando a lei
ou a prática nacionais a isso os autoriza, a iniciar pro-
48. Enquanto árbitros supremos da justiça, os cedimento criminal por tais infracções”46.
juízes desempenham um papel especial na pro-
tecção dos direitos dos cidadãos. As normas inter- 49. As normas internacionais impõem também
nacionais impõem-lhes o dever ético de zelar pela aos advogados o dever de, no exercício das suas fun-
protecção dos direitos dos indivíduos. O Princípio ções profissionais, promover e proteger os direitos
6 dos Princípios Básicos Relativos à Independên- humanos e as liberdades fundamentais. O princí-

Códigos éticos aplicáveis


* 13
pio 14 dos Princípios Básicos N.T.26 O texto integral em 1. DECLARAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDAS
português está disponível na
Relativos à Função dos Advoga- webpage do GDDC. APLICÁVEIS AOS PROFISSIONAIS NA ÁREA DA SAÚDE
dosN.T.26 dispõe o seguinte: “Ao 47 Vide nota de rodapé 46,
supra.
protegerem os direitos dos seus 51. Os profissionais de saúde, N.T.27 O texto integral destas
Regras, em português, está
clientes e ao promoverem a causa da justiça, os como todas as outras pessoas disponível na webpage do
GDDC.
advogados devem respeitar os direitos do homem que trabalham nos estabeleci- 49 Regras Mínimas para o
e as liberdades fundamentais reconhecidas pelo mentos prisionais, deverão Tratamento dos Reclusos e
Procedimentos para a Apli-
direito nacional e internacional, e devem, em todo observar as Regras Mínimas cação Efectiva das Regras
Mínimas para o Trata-
o momento, actuar com liberdade e diligência, para o Tratamento dos Reclu- tados pelas
mento dos Reclusos, adop-
Nações Unidas
em conformidade com a lei e com as normas e sosN.T.27, que exigem que todos os em 1955.
50
regras deontológicas reconhecidas da sua profis- detidos sem discriminação bleia Adoptados pela Assem-
Geral das Nações Uni-
são.47” tenham acesso a serviços médi- das na sua resolução
37/194, de 18 de Dezembro
cos, incluindo serviços de medi- de 1982.
b. Ética médica
N.T.28
cina psiquiátrica, e que todos os disponívelTexto em português
na webpage do
detidos doentes ou que soli- GDDC.
51
50. Existem ligações muito cla- 48 Diversas associações de citem tratamento sejam exa- çãoEmUniversal particular a Declara-
dos Direitos
âmbito regional, como a
do Homem, os Pactos Inter-
ras entre os conceitos de direi- Associação Médica da Com- minados diariamente49. Estas nacionais sobre Direitos
monwealth e a Conferência
tos humanos e os enraizados Internacional das Associa- exigências reforçam a obrigação Humanos e a Declaração
sobre a Protecção de Todas
ções Médicas Islâmicas ela-
princípios de ética médica. As boram também ética dos médicos, abaixo desen- as Pessoas contra a Tortura
e Outras Penas ou Trata-
importantes declarações de
obrigações éticas dos profissio- ética médica e direitos volvida, de ministrar tratamento mentos Cruéis, Desumanos
ou Degradantes.
humanos destinadas aos
nais de saúde articulam-se a seus membros. e agir no melhor interesse do
três níveis diferentes e estão seu paciente. Para além disso, as Nações Unidas
reflectidas nos documentos das Nações Unidas, debruçaram-se especificamente sobre as obriga-
da mesma forma que as obrigações dos profissio- ções éticas dos médicos e outros profissionais de
nais na área da justiça. Encontram-se também saúde nos Princípios de Deontologia Médica apli-
consagradas em declarações proclamadas pelas cáveis à actuação do pessoal dos serviços de saúde,
organizações profissionais representativas dos especialmente aos médicos, para a protecção de
profissionais de saúde, como a Associação Médica pessoas presas ou detidas contra a tortura e outras
Mundial, a Associação Psiquiátrica Mundial e o penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degra-
Conselho Internacional de Enfermagem48. As dantes50,N.T.28. Estes Princípios estabelecem clara-
associações médicas nacionais e organizações de mente que os profissionais de saúde têm o dever
profissionais de enfermagem adoptam também moral de proteger a saúde física e mental dos deti-
códigos deontológicos que os respectivos mem- dos. Estão explicitamente proibidos de utilizar os
bros devem respeitar. O princípio básico de toda seus conhecimentos e competências médicas de
a ética médica, qualquer que seja a sua formu- qualquer forma contrária às declarações interna-
lação, consiste no dever fundamental de agir cionais de garantia dos direitos da pessoa51. Em
sempre no melhor interesse do paciente, inde- particular, constitui grave violação dos princípios de
pendentemente de quaisquer limitações, pressões ética médica a participação, activa ou passiva, em
ou obrigações contratuais. Em determinados paí- actos de tortura ou a sua tolerância seja de que
ses, os princípios de ética médica, como o sigilo forma for.
profissional entre médico e paciente, foram incor-
porados na respectiva legislação nacional. Mesmo 52. A “participação em actos de tortura” inclui a
que o não tenham sido, todos os profissionais de avaliação das capacidades do indivíduo para supor-
saúde têm o dever moral de obedecer às normas tar os maus tratos; estar presente, supervisionar ou
estabelecidas pelos respectivos organismos pro- infligir maus tratos; reanimar o indivíduo para
fissionais. Se lhes desobedecerem sem motivo que possa continuar a ser sujeito a maus tratos ou
justificado, incorrem em responsabilidade disci- ministrar-lhe tratamento médico imediatamente
plinar. antes, durante ou depois do acto de tortura no

14
* n.o 08 [ACNUDH]
Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º
seguimento de instruções dos 52 Os profissionais de saúde mesmo ponto na sua Declara- 55 Adoptada em 1981 (1401
devem, contudo, ter em no Calendário Islâmico).
presumíveis responsáveis; trans- conta o seu dever de sigilo ção do Koweit, que proíbe que 56
perante os pacientes e a Adoptada pelo Conselho
mitir conhecimentos profis- obrigação de obter consenti- os médicos permitam que os Internacional de Enferma-
mento esclarecido para a gem em 1975.
sionais ou os dados clínicos da divulgação de informação a
eles relativa, em particular
seus conhecimentos especiais
pessoa aos torcionários; ignorar quando tal divulgação
possa comportar riscos para
sejam utilizados para “lesionar, destruir ou cau-
deliberadamente as provas de aII.C.3).
pessoa (vide capítulo sar danos ao corpo, à mente ou a espírito, qual-
tortura e falsificar relatórios, quer que seja a razão política ou militar” 55.
como relatórios de autópsia ou certidões de A directiva sobre o Papel do Pessoal de Enfer-
óbito52. Os princípios das Nações Unidas incor- magem no Tratamento dos Detidos e Presos56
poram também uma das regras fundamentais de consagra disposições semelhantes em relação
deontologia médica ao sublinhar que a única rela- aos enfermeiros.
ção conforme à ética entre o recluso e o profissional
de saúde é a que se destina a avaliar, proteger e 54. Os profissionais de saúde 57 Adoptada pela Associação
Médica Mundial em 1990.
melhorar a saúde do primeiro. Assim, a avaliação têm também o dever de apoiar 58
Adoptada pela Associa-
do estado de saúde do detido com o objectivo de os colegas que se opõem às vio- ção Médica Mundial em
1997.
facilitar a sua punição ou tortura é claramente lações de direitos humanos.
contrária às normas éticas. A quebra deste dever pode implicar, não só a vio-
lação dos direitos do paciente e das Declarações
2. DECLARAÇÕES DOS ORGANISMOS acima enunciadas, mas também o descrédito da
PROFISSIONAIS INTERNACIONAIS classe médica no seu conjunto. Os atentados à
dignidade da profissão são considerados graves
53
53. Muitas declarações emana- MédicaAdoptada pela Associação
Mundial em 1975.
infracções deontológicas. A resolução da Associa-
das dos organismos profissio- 54 Adoptada em 1977. ção Médica Mundial relativa aos direitos humanos
nais internacionais articulam-se apela a todas as associações médicas nacionais
em torno de princípios relevantes no domínio da para que avaliem a situação de direitos humanos
protecção dos direitos humanos e traduzem um nos respectivos países e se assegurem de que os
claro consenso da comunidade médica interna- médicos não ocultam provas, mesmo temendo
cional sobre estas questões. As declarações da represálias57. Exige que os organismos nacionais
Associação Médica Mundial definem aspectos formulem directrizes claras, destinadas em espe-
internacionalmente acordados dos deveres cial aos médicos que trabalham no âmbito do sis-
deontológicos a que todos os médicos estão tema prisional, para a denúncia de alegadas
subordinados. A Declaração de Tóquio da As- violações de direitos humanos, e que instituam
sociação Médica Mundial reitera a proibição de mecanismos eficazes para a investigação de todas
qualquer forma de participação dos médicos em as actividades contrárias à deontologia médica
actos de tortura ou a sua assistência aos mes- com influência no domínio dos direitos huma-
mos53. Esta disposição é reforçada pelos princí- nos. Exige-lhes ainda que apoiem os médicos que
pios das Nações Unidas que se referem chamam a atenção para a ocorrência de violações
explicitamente à Declaração de Tóquio. Os médi- de direitos humanos. A posterior Declaração de
cos estão claramente proibidos de fornecer Hamburgo da Associação Médica Mundial rea-
informação ou qualquer instrumento ou subs- firma a responsabilidade individual e colectiva de
tância médica susceptível de facilitar os maus tra- todos os médicos do mundo de encorajarem os
tos. A mesma regra se aplica expressamente à seus colegas a resistir à tortura ou a qualquer
psiquiatria de acordo com a Declaração do pressão para agir contrariamente aos princípios
Hawai da Associação Psiquiátrica Mundial, que deontológicos58. Apela também a todos os médi-
proíbe a utilização indevida dos conhecimentos cos para que se manifestem contra os maus tra-
psiquiátricos para violar os direitos humanos de tos e insta as organizações médicas nacionais e
qualquer indivíduo ou grupo 54. A Conferência internacionais a apoiar os médicos que resistem
Internacional de Medicina Islâmica insistiu no às ditas pressões.

Códigos éticos aplicáveis


* 15
3. CÓDIGOS NACIONAIS DE ÉTICA MÉDICA Uma das suas decorrências é 59 Adoptado pela Associa-
ção Médica Mundial em
a obrigação dos médicos de 1949.
55. Os princípios de ética médica encontram-se dar resposta a todos quantos tenham necessidade
consagrados, a um terceiro nível, nos códigos de cuidados médicos. O Código Internacional de
nacionais. Estes reflectem os mesmos valores fun- Ética Médica da Associação Médica Mundial
damentais acima expostos, uma vez que a ética reflecte esta obrigação, ao reconhecer o dever
médica consiste na expressão dos valores comuns moral dos médicos de prestar cuidados de emer-
a todos os médicos. Em praticamente todas as cul- gência enquanto imperativo humanitário59.
turas e códigos, podemos encontrar as mesmas pre- O dever de dar resposta às necessidades e ao sofri-
missas básicas, tais como os deveres de evitar o mento dos pacientes encontra eco nas declarações
sofrimento, ajudar os doentes, proteger os vulne- tradicionais de praticamente todas as culturas.
ráveis e não discriminar entre os pacientes senão
com base na urgência das suas necessidades clí- 58. As actuais normas de ética médica baseiam-
nicas. Idênticos valores estão presentes nos códi- -se nos princípios estabelecidos nas primeiras
gos que disciplinam a enfermagem. Os princípios declarações de valores profissionais que exigiam que
éticos apresentam, contudo, o problema de não esta- os médicos prestassem assistência mesmo que
belecerem regras definitivas para todos os pro- isso comportasse alguns riscos para si próprios. Por
blemas, exigindo alguma interpretação. Ao serem exemplo, o Caraka Samhita, um código hindu
confrontados com dilemas morais, é fundamental datado do primeiro século da era cristã, ordenava
que os profissionais de saúde tenham presentes as aos médicos o seguinte: “entrega-te de corpo e
suas obrigações deontológicas fundamentais dita- alma ao alívio dos teus pacientes; não abandones
das pelos valores comuns da sua profissão, mas nem magoes os teus pacientes para salvar a tua pró-
também que as apliquem de forma a reflectir o seu pria vida ou pelo teu bem-estar”. Os primeiros
dever essencial de evitar o sofrimento dos seus códigos islâmicos contêm instruções semelhan-
pacientes. tes e a moderna Declaração do Koweit exige que
os médicos tratem dos necessitados, estejam eles
c. Princípios comuns a todos os códigos de “próximo ou longe, sejam virtuosos ou pecado-
ética médica res, amigos ou inimigos”.

56. O princípio da independência profissional 59. Os valores médicos oci- 60 Adoptada pela Associa-
ção Médica Mundial em
exige que os técnicos de saúde se concentrem dentais são fortemente influen- 1948.
sempre no objectivo fundamental da medicina, ciados pelo Juramento de
que consiste em aliviar o sofrimento e a angústia Hipócrates e outras profissões de fé semelhantes,
e evitar causar dano ao paciente, independente- como a Oração de Maimónides. O Juramento de
mente de quaisquer pressões. Vários outros prin- Hipócrates representa uma promessa solene de
cípios éticos, dada a sua importância fundamental, solidariedade para com os colegas e um com-
constam invariavelmente de quaisquer códigos e promisso de fazer o bem e assistir os pacientes,
declarações deontológicas. Os principais são as poupar-lhes o sofrimento e respeitar o sigilo pro-
obrigações de prestar assistência a quem dela fissional. Estes quatro conceitos encontram-se
necessite, de não prejudicar o paciente e de respeitar reflectidos, de diversas formas, em todos os códi-
os seus direitos. Estes são os deveres fundamen- gos de ética médica contemporâneos. A Declara-
tais de todos os profissionais de saúde. ção de Genebra da Associação Médica Mundial
representa uma reafirmação moderna dos valores
1. O DEVER DE ASSISTÊNCIA hipocráticos60. Consiste numa promessa segundo
a qual os médicos se comprometem a fazer da
57. O dever de assistência encontra-se consa- saúde dos seus pacientes a sua principal preocu-
grado de diversas formas nas declarações e códi- pação e a dedicar-se ao serviço da Humanidade com
gos adoptados a nível nacional e internacional. consciência e dignidade.

16
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
60. Diversos aspectos do dever 61 Adoptada pela Associa- pacientes deve ser garantida autonomia e justiça
ção Médica Mundial em
de assistência estão inscritos 1986. e tanto os médicos como os prestadores de cuida-
em muitas das declarações da Associação Médica dos de saúde devem defender os direitos do
Mundial, que indicam claramente que os médicos paciente. “Sempre que a legislação, a acção do
devem fazer sempre o que for melhor para os seus governo ou de qualquer outra administração ou ins-
pacientes, incluindo detidos e presumíveis crimi- tituição negue aos pacientes tais direitos, os médi-
nosos. Este dever é muitas vezes expresso através cos devem procurar formas adequadas para os
da noção de independência profissional, que exige garantir ou restabelecer”. Os indivíduos têm
que os médicos façam sempre uso das melhores direito a cuidados de saúde adequados, indepen-
práticas clínicas, independentemente de quais- dentemente de factores como a respectiva origem
quer pressões a que possam estar sujeitos. étnica, opiniões políticas, nacionalidade, sexo, reli-
O Código Internacional de Ética Médica da As- gião ou mérito pessoal. As pessoas acusadas ou con-
sociação Médica Mundial sublinha o dever do denadas pela prática de crimes têm igual direito a
médico de ministrar tratamento “em plena inde- beneficiar de cuidados médicos ou de enfermagem
pendência técnica e moral, com compaixão e res- adequados. A Declaração de Lisboa da Associação
peito pela dignidade humana”. Salienta também o Médica Mundial sublinha que o único critério de
dever de agir apenas no interesse do paciente e discriminação aceitável reside na urgência rela-
declara que os médicos devem lealdade total aos tiva das necessidades clínicas dos pacientes.
seus pacientes. A Declaração de Tóquio e a Decla-
ração sobre a Independência e Liberdade Profis- 2. CONSENTIMENTO ESCLARECIDO
sional dos Médicos, ambas adoptadas pela
63
Associação Médica Mundial, afirmam inequivo- 62. Embora todas as declara- Adoptada em 1983.
camente que os médicos devem reivindicar a liber- ções que consagram o dever de
dade de agir no melhor interesse dos seus assistência salientem a obrigação de agir no
doentes, independentemente de quaisquer outras melhor interesse do indivíduo examinado ou tra-
considerações, nomeadamente instruções de enti- tado, tal pressupõe que os profissionais de saúde
dades empregadoras, autoridades prisionais ou saibam qual é o melhor interesse do paciente. Um
forças de segurança61. A última das declarações dos preceitos absolutamente fundamentais da
exige que os médicos se assegurem de que “dis- moderna ética médica é o que considera serem os
põem da independência profissional para repre- próprios pacientes os melhores juízes dos seus
sentar e defender as necessidades de saúde dos interesses pessoais. Isto exige que os profis-
pacientes contra todos quantos pretendam negar sionais de saúde dêem normalmente prioridade aos
ou restringir os cuidados necessários aos doentes desejos de um paciente adulto e capaz, sobre as opi-
ou feridos”. Relativamente aos enfermeiros, niões de qualquer outra pessoa, por mais compe-
encontram-se consagrados princípios semelhantes tente que esta seja para se pronunciar acerca do
no Código do Conselho Internacional de Enfer- melhor interesse do paciente em causa. Caso o
magem. paciente esteja inconsciente ou por qualquer outro
motivo incapaz de prestar consentimento válido,
61. A Associação Médica Mun- 62 Adoptada pela Associa- os profissionais de saúde deverão avaliar qual a
ção Médica Mundial em
dial exprime ainda o dever 1981; alterada pela Assem- melhor forma de proteger e promover os melho-
bleia Geral da Associação
de assistência através do reco- na sua quadragésima res interesses dessa pessoa. Os médicos e enfer-
sétima sessão, em Setembro
nhecimento dos direitos do de 1995. meiros deverão actuar em defesa dos seus
paciente. Na sua Declaração de pacientes, conforme claramente indicado em
Lisboa sobre os Direitos dos Pacientes, reconhece documentos como a Declaração de Lisboa da As-
que todas as pessoas têm direito, sem discrimi- sociação Médica Mundial e a declaração sobre o
nação, a cuidados de saúde adequados e reitera que Papel dos Enfermeiros na Salvaguarda dos Direi-
o médico deve agir sempre no melhor interesse do tos Humanos, do Conselho Internacional de
paciente62. De acordo com esta declaração, aos Enfermagem63.

Códigos éticos aplicáveis


* 17
63. A Declaração de Lisboa da Associação Médica 3. SIGILO PROFISSIONAL
Mundial estabelece expressamente o dever dos
médicos de obterem o consentimento voluntário e 64. Todos os códigos de ética, 64 Excepto no caso de impe-
rativos comuns de saúde
esclarecido dos pacientes mentalmente capazes desde o Juramento de Hipócrates pública, como a comunica-
ção do nome de pessoas
para a realização de qualquer exame ou interven- até aos dias de hoje, consagram o com doenças infecciosas,
toxicodependentes ou que
ção. Isto significa que os interessados devem ter dever de sigilo profissional como sofram de doenças mentais,
entre outras.
consciência das consequências da sua concordân- um dos respectivos princípios 65
Artigo 16.o do Protocolo I
cia, bem como da sua recusa. Antes de examinarem fundamentais. As declarações da (1977) e artigo 10.o do Pro-
tocolo II (1977) adicionais
os pacientes, os médicos devem, assim, explicar Associação Médica Mundial, às Convenções de Genebra
de 1949.
francamente o objectivo do exame ou tratamento. como por exemplo a Declaração
O consentimento obtido sob coacção ou com base de Lisboa, dão também enorme destaque a este
em falsas informações prestadas ao paciente é invá- dever. Determinados sistemas jurídicos atribuem
lido, e os médicos que procedam a qualquer inter- tal importância à obrigação de sigilo profissional
venção com base nele são susceptíveis de violar as que a mesma foi incorporada nas respectivas legis-
normas deontológicas. Quanto mais graves forem lações nacionais. O dever de sigilo não é absoluto
as potenciais consequências da intervenção, mais e pode ser afastado de acordo com as normas
imperiosa será a obrigação moral de obter um con- deontológicas em determinadas circunstâncias
sentimento devidamente esclarecido. Ou seja, excepcionais, caso a sua manutenção possa previ-
quando o exame ou o tratamento apresentam bene- sivelmente dar origem a sérios danos a terceiros
fícios terapêuticos claros para a pessoa, pode ser sufi- ou graves perversões da justiça. Em geral, con-
ciente o seu consentimento implícito ao colaborar tudo, a obrigação de sigilo relativamente a dados
no processo. Nos casos em que o exame não tem clínicos pessoais e identificáveis apenas pode ser
como objectivo principal a prestação de cuidados afastada com o consentimento esclarecido do
terapêuticos, é necessário um maior cuidado para paciente64. A informação não identificável rela-
assegurar que o paciente está ciente desse facto e tiva aos pacientes pode ser livremente utilizada
concorda com a intervenção, e que ela não é de para outros fins e deverá optar-se por ela sempre
forma alguma contrária aos melhores interesses da que a revelação da identidade do paciente não seja
pessoa. Tal como dissemos anteriormente, os exa- essencial. Pode ser o caso, por exemplo, da reco-
mes que se destinam a verificar se o indivíduo está lha de dados sobre a prática sistemática da tortura
em condições de suportar a sujeição a determina- ou dos maus tratos. As dúvidas surgem quando os
dos castigos, tortura ou coacção física no decurso profissionais de saúde são obrigados por lei ou
de um interrogatório violam as normas éticas e pressionados para revelar informações identificá-
são contrários aos fins da medicina. A única ava- veis e susceptíveis de pôr os seus pacientes em risco.
liação do estado de saúde de um detido permitida Nestes casos, prevalecem os princípios éticos fun-
pelas regras deontológicas é aquela que se destina damentais de respeito da autonomia e do inte-
a manter ou melhorar esse mesmo estado de saúde resse superior do paciente e de lhe prestar
– e não a que visa facilitar o castigo. Os exames físi- assistência e evitar causar-lhe dano. Os médicos
cos para fins probatórios no âmbito de um processo deverão deixar claro ao tribunal ou à autoridade
de inquérito exigem o consentimento esclarecido requisitante da informação que estão vinculados à
do paciente, no sentido de que este compreenda, por obrigação de sigilo profissional. Os profissionais
exemplo, de que forma os elementos recolhidos de saúde que assim procedam têm direito ao apoio
por intermédio do exame vão ser utilizados e pre- da sua associação profissional e dos seus colegas.
servados, e quem terá acesso aos mesmos. Se estas Para além disso, em período de conflito armado,
e outras questões relevantes para a decisão do o direito internacional humanitário confere pro-
paciente não lhe forem explicadas antecipada- tecção específica ao sigilo entre médico e paciente,
mente de forma clara, um consentimento even- proibindo que os técnicos de saúde sejam obriga-
tualmente prestado para o exame ou registo de dos a divulgar informações sobre feridos e doen-
dados será inválido. tes que tratem ou tenham tratado65.

18
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
d. Profissionais de saúde com dualidade de detenção têm acesso a qualquer exame ou trata-
obrigações mento médico de que necessitem. Sempre que o
detido seja menor de idade ou um adulto vulnerável,
65. Os profissionais de saúde têm uma dupla os médicos têm obrigações acrescidas para as-
obrigação: por um lado, a obrigação primordial de segurar a sua protecção. Mantém-se o dever geral
servir da melhor forma os interesses do seu de sigilo, não devendo qualquer informação relativa
paciente; por outro, o dever geral perante a socie- ao paciente ser divulgado sem o conhecimento do
dade de garantir que se faça justiça e se impeçam mesmo. Os médicos devem zelar pela confiden-
as violações de direitos humanos. Os dilemas cialidade dos ficheiros clínicos. Sempre que, no
resultantes desta dualidade de obrigações colo- âmbito das suas funções, observem acções ou
cam-se com particular acuidade nos casos dos pro- comportamentos contrários à ética, abusivos, ina-
fissionais de saúde que trabalham para a polícia, dequados ou que coloquem em risco a saúde dos
forças armadas ou outros serviços de segurança, ou pacientes, deverão denunciá-los e tomar todas as
no âmbito do sistema prisional. Os interesses da medidas necessárias, o mais rapidamente possível,
sua entidade empregadora e dos seus colegas não uma vez que qualquer atraso poderá tornar mais
médicos podem estar em conflito com os melho- difícil o protesto. Deverão comunicar o caso às
res interesses dos detidos seus pacientes. Qualquer autoridades competentes ou a instâncias interna-
que seja a sua situação laboral, todos os profissionais cionais capazes de investigar a situação, mas sem
de saúde têm, antes de mais nada, o dever pri- expor os pacientes, as suas famílias ou a si próprios
mordial de zelar pelo bem-estar das pessoas que a qualquer risco grave e previsível. Os médicos e
são chamados a examinar ou a tratar. Não podem respectivas associações profissionais deverão
ser obrigados, por contrato ou em obediência a qual- apoiar os colegas que assim procedam com base
quer outra consideração, a comprometer a sua em provas razoáveis.
independência profissional. Deverão proceder a
uma avaliação imparcial dos interesses médicos dos 2. DILEMAS RESULTANTES DA DUALIDADE DE
seus pacientes e agir em conformidade. OBRIGAÇÕES

1. PRINCÍPIOS ORIENTADORES DE TODOS OS 67. Os dilemas podem surgir caso as normas éti-
MÉDICOS COM DUALIDADE DE OBRIGAÇÕES cas e jurídicas estejam em contradição. Pode dar-
-se o caso, por exemplo, de as regras deontológicos
66. Sempre que os médicos 66 Estes princípios são obrigarem os profissionais de saúde a desobede-
extraídos da obra Doctors
estejam ao serviço de um terceiro, with Dual Obligations [em cer a determinada disposição legal, como a obri-
português: “Médicos com
têm a obrigação de assegurar Dualidade de Obrigações”], gação legal de divulgar informação médica
publicada pela Associação
que o paciente compreende Médica Britânica em 1995. confidencial relativa aos seus pacientes. As decla-
esse facto66. Os médicos devem rações nacionais e internacionais de ética médica
identificar-se perante o paciente e explicar o objec- convergem na ideia de que nenhum imperativo,
tivo de qualquer exame ou tratamento. Mesmo incluindo os imperativos legais, pode obrigar os pro-
que sejam nomeados ou pagos por uma terceira fissionais de saúde a agir em violação das normas
parte, continuam claramente vinculados pelo de deontologia médica e contra a sua consciência.
dever de assistir qualquer paciente que lhes caiba Em tais circunstâncias, os profissionais de saúde
examinar ou tratar. Têm a obrigação de se recusar devem recusar-se a cumprir a lei ou o regula-
a fazer qualquer intervenção que cause dano ao mento em causa, em lugar de comprometer deter-
paciente ou o torne física ou psicologicamente minados preceitos éticos fundamentais ou expor
vulnerável a qualquer lesão. Os médicos devem os seus pacientes a grave perigo.
assegurar-se de que o seu contrato de trabalho
não prejudica a sua independência profissional 68. Em determinados casos, duas obrigações éti-
para formular juízos clínicos. Devem também cas podem colidir entre si. Os códigos e princípios
assegurar-se de que todas as pessoas sujeitas a éticos internacionais exigem a comunicação aos

Códigos éticos aplicáveis


* 19
organismos responsáveis de todos os incidentes de mente as suas observações. Em 67 Vide V. Iacopino et al.,
“Physician complicity in
tortura ou maus tratos. Em determinados sistemas tais situações, o paciente tem misrepresentation and
omission of evidence of tor-
jurídicos, esta é também uma exigência legal. Em menos poder e capacidade de ture in post-detention medi-
cal examinations in Turkey”
certos casos, porém, os pacientes podem recusar escolha e pode não estar em [em português: Cumplici-
dade dos médicos na falsifi-
submeter-se a exame para esse fim ou negar o condições de falar abertamente cação e omissão de provas
de tortura nos exames
consentimento para a divulgação a terceiros da sobre o que aconteceu. Antes do médicos subsequentes à
detenção, na Turquia], Jour-
informação recolhida através do exame. Isto pode início de qualquer exame, os nal of the American Medi-
cal Association ( JAMA),
suceder, por exemplo, por receio de represálias médicos legistas devem expli- 276, 1996, pp. 396 a 402.

contra si ou contra a sua família. Nestas situa- car a sua função ao paciente e deixar claro que o
ções, os profissionais de saúde têm dois tipos de sigilo médico não faz habitualmente parte das
responsabilidades: perante o paciente e perante a suas funções, como faria num contexto terapêutico.
sociedade no seu conjunto a qual tem interesse em Determinados regulamentos podem não permitir
assegurar a realização da justiça e que os autores que o paciente se recuse a ser examinado, mas
de actos de tortura seja levados a julgamento. pode optar por não divulgar a causa das lesões. Os
O princípio fundamental de evitar o dano deve ser médicos legistas não devem falsificar os seus rela-
a consideração primordial na solução destes dile- tórios mas antes incluir provas imparciais, dando
mas. Os profissionais de saúde devem procurar conta claramente da existência de quaisquer indí-
soluções que promovam a justiça sem violar o cios de maus tratos, se for caso disso67.
direito do paciente à confidencialidade dos seus
dados médicos. Deverão aconselhar-se junto orga- 71. Os médicos dos estabelecimentos prisionais
nismos fidedignos – por exemplo, a associação têm como principal função a prestação de cuida-
médica nacional ou organizações não governa- dos terapêuticos aos detidos, mas cabe-lhes tam-
mentais. É também possível que, com apoio e bém examinar os reclusos que dão entrada no
encorajamento, alguns pacientes receosos acabem estabelecimento prisional após passagem pelas
por concordar na divulgação da informação, dentro mãos da polícia. No desempenho destas funções,
de determinados limites previamente acordados. podem detectar sinais evidentes de violência ina-
ceitável que os próprios reclusos não estão realis-
69. As obrigações éticas de um médico podem ticamente em posição de denunciar. Em tais
variar de acordo com o contexto em que se esta- situações, os médicos devem tomar em conside-
belece a sua relação com o paciente e a possibili- ração o melhor interesse do paciente e o seu dever
dade de este ter ou não liberdade de escolha de sigilo perante este, mas existem também fortes
quanto à divulgação da informação. Por exemplo, argumentos morais para que o médico denuncie
quando médico e doente se encontram numa indícios manifestos de maus tratos, uma vez que
situação claramente terapêutica, como aquando o recluso não está muitas vezes em condições efec-
da prestação de cuidados médicos num hospital, tivas de o fazer. Se o recluso concorda na divulga-
sobre o médico recai um forte imperativo moral de ção, não existe qualquer conflito e cria-se uma
respeitar as habituais regras de sigilo que em geral clara obrigação moral. Contudo, se o recluso não
prevalecem nas relações terapêuticas. A revelação consente que a informação seja divulgada, o
de provas de tortura obtidas nesse contexto é, con- médico deverá avaliar os riscos reais e potenciais
tudo, inteiramente adequada desde que o paciente em que o paciente incorre, em comparação com os
o não proíba. Os médicos devem revelar essas pro- benefícios que daí advêm para a população prisional
vas caso os pacientes o solicitem ou dêem o seu con- em geral e para o interesse da sociedade em pre-
sentimento esclarecido para tal. O médico deverá venir a repetição de tais abusos.
apoiar o paciente na decisão que este tome.
72. Os profissionais de saúde devem também ter
70. Os médicos legistas têm uma relação dife- presente que a comunicação da ocorrência de abu-
rente com os indivíduos que examinam e sobre eles sos às autoridades sob cuja jurisdição se presume
impende em geral a obrigação de relatar factual- que os factos tenham tido lugar pode implicar ris-

20
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
cos para o paciente ou para terceiros, incluindo o por esta última solução, o profissional de saúde deve
próprio denunciante. Os médicos não devem, de ter em conta que será provavelmente sujeito a
forma consciente, colocar os pacientes em risco de pressões para que divulgue dados identificáveis
represálias. Não se devendo abster de tomar medi- ou que poderá ver os seus ficheiros clínicos
das, devem agir com discrição e considerar a pos- apreendidos. Embora não existam soluções fáceis,
sibilidade de comunicar o caso a uma autoridade os profissionais de saúde devem orientar-se pela
fora da jurisdição imediata da estrutura directa- premissa básica de evitar o dano, sobre quaisquer
mente em causa ou, se isto não comportar previ- outras considerações, devendo procurar aconse-
síveis riscos para o médico ou paciente, apresentar lhamento, sempre que possível, junto de organis-
uma denúncia anónima. É evidente que, se optar mos médicos nacionais ou internacionais.

Códigos éticos aplicáveis


* 21
cap
ítu
lo

*03
Inquéritos legais sobre a prática
da tortura

73. O direito internacional impõe aos Estados a tência e independência pessoal. Deverão, em par-
obrigação jurídica de investigar imediatamente e ticular, ser independentes de quaisquer suspeitos
de forma imparcial todos os alegados casos de tor- e das instituições ou agências a que estes per-
tura que ocorram em territórios sob a sua jurisdi- tençam.
ção. Sempre que os elementos de prova o
justifiquem, o Estado em cujo território se encon- 75. A secção A do presente capítulo descreve os
tra uma pessoa suspeita da prática da tortura ou objectivos gerais de um inquérito de tortura.
de participação num acto deste tipo deverá extra- A secção B enuncia os princípios fundamentais
ditar o presumível autor para outro Estado com de uma investigação e documentação eficazes da
competência para julgar o caso ou submeter o tortura e outras penas ou tratamentos cruéis,
caso às suas próprias autoridades competentes desumanos ou degradantes. A secção C sugere
para exercício da acção penal em conformidade com procedimentos para a realização dos inquéritos
o direito criminal nacional ou local. Competência, sobre alegados casos de tortura, em primeiro lugar
imparcialidade, independência, prontidão e rigor relativamente à determinação da autoridade res-
são os princípios fundamentais de qualquer ponsável pela condução do inquérito, depois
inquérito eficaz sobre incidentes de tortura. Estes quanto à recolha de testemunhos orais da presu-
elementos podem adaptar-se a qualquer sistema mível vítima e testemunhas, bem como à recolha
jurídico e deverão orientar todas as investigações de provas materiais. A secção D fornece directri-
relativas a alegados casos de tortura. zes para o estabelecimento de uma comissão de
inquérito independente. Estas directrizes foram
74. Caso os procedimentos de inquérito se reve- formuladas com base na experiência de diversos
lem inadequados devido a escassez de recursos países que procederam à criação de comissões
ou falta de capacidade técnica, possível falta de independentes para investigar alegadas violações
imparcialidade, indícios da existência de abusos sis- de direitos humanos, nomeadamente execuções
temáticos ou outros motivos relevantes, os Estados extrajudiciais, tortura e desaparecimentos forçados.
deverão garantir que as investigações sejam leva-
das a cabo por uma comissão de inquérito inde- a. Objectivos de um inquérito de tortura
pendente ou mecanismo análogo. Os membros
desta comissão deverão ser seleccionados com 76. O objectivo geral de um inquérito consiste em
base na sua reconhecida imparcialidade, compe- apurar os factos relativos a alegados casos de tor-

Inquéritos legais sobre a prática da tortura


* 23
tura, a fim de identificar os responsáveis pelos ponibilizar os meios necessários ao tratamento
mesmos e facilitar a sua acusação no âmbito de um médico e à reabilitação.
processo penal, ou para utilização no âmbito de
outros processos destinados a ressarcir as vítimas. 78. Os Estados deverão garantir que todas as
As questões abordadas na presente secção podem queixas e denúncias de tortura ou maus tratos
também ser pertinentes para outros tipos de sejam pronta e eficazmente investigadas. Mesmo
inquéritos em matéria de tortura. Para atingir tal na ausência de uma denúncia expressa, deverá ser
objectivo, as pessoas responsáveis pelo inquérito instaurado um inquérito caso existam outros indí-
deverão, no mínimo, tentar obter o depoimento da cios de que possam ter ocorrido actos de tortura ou
presumível vítima ou vítimas; recolher e conser- maus tratos. Os investigadores, que deverão ser
var os elementos de prova, nomeadamente provas independentes dos suspeitos e dos organismos a
médicas, relativos ao caso de tortura, a fim de que estes pertencem, devem ser competentes e
informar qualquer eventual processo penal que imparciais. Deverão ter acesso a perícias efectua-
venha a ser instaurado contra os responsáveis; das por médicos ou outros peritos independen-
identificar possíveis testemunhas e obter os seus tes, ou dispor da faculdade de ordenar a realização
depoimentos relativamente ao alegado caso de tor- de tais perícias. Os métodos utilizados para levar
tura; e determinar como, quando e onde se pro- a cabo o inquérito deverão respeitar as mais exi-
duziram os alegados factos, bem como quais as gentes normas profissionais, e os resultados obti-
circunstâncias ou práticas que lhes possam ter dos deverão ser tornados públicos.
dado origem.
79. A autoridade responsável 68 Em determinadas cir-
cunstâncias, a deontologia
b. Princípios sobre a Investigação e pelo inquérito deverá dispor de profissional poderá obrigar
a que a informação se man-
Documentação Eficazes da Tortura e Outras poderes para obter toda a infor- tenha confidencial, o que
deve ser respeitado.
Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos mação necessária à investigação
ou Degradantes e estar obrigada a procurá-la68. As pessoas que
conduzem a investigação deverão ter ao seu dispor
77. Os princípios que a seguir se enunciam são todos os recursos financeiros e técnicos neces-
objecto de consenso entre os indivíduos e organi- sários a uma investigação eficaz. Deverão dispor
zações com experiência na investigação da tortura. também de competência para obrigar todos os
A investigação e documentação eficazes da tortura funcionários presumivelmente implicados na prá-
e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos tica de tortura ou maus tratos a comparecer nos
ou degradantes (de ora em diante designados por interrogatórios. O mesmo se aplicará relativa-
tortura ou outros maus tratos) têm, nomeada- mente a quaisquer testemunhas. Para este fim, a
mente, os seguintes objectivos: autoridade responsável pelo inquérito deverá estar
habilitada a intimar as testemunhas, incluindo
a) Esclarecimento dos factos, bem como o esta- quaisquer funcionários alegadamente envolvidos,
belecimento e reconhecimento da responsabili- e a exigir a apresentação de provas. As alegadas víti-
dade individual e estadual perante as vítimas e mas de tortura ou maus tratos, testemunhas,
suas famílias; investigadores e suas famílias deverão ser prote-
b) Identificação das medidas necessárias para gidos contra a violência, ameaças de violência ou
evitar que os factos se repitam; qualquer outra forma de intimidação a que possam
c) Facilitar o exercício da acção penal ou, sendo estar expostos em resultado do inquérito. Os sus-
caso disso, a aplicação de sanções disciplinares, con- peitos de implicação em actos de tortura ou maus
tra as pessoas cuja responsabilidade se tenha apu- tratos deverão ser afastados de qualquer posição de
rado na sequência do inquérito, e demonstrar a controlo ou comando, directo ou indirecto, sobre
necessidade de plena reparação e ressarcimento por os queixosos, testemunhas ou suas famílias, bem
parte do Estado, incluindo a necessidade de atri- como sobre as pessoas que realizam a investi-
buir uma indemnização justa e adequada e de dis- gação.

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* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
80. As alegadas vítimas de tortura ou maus tra- particular, obter o consentimento esclarecido da pes-
tos e seus representantes legais deverão ser infor- soa em causa antes da realização de qualquer
mados da realização de qualquer audiência e ter exame. Os exames devem ser efectuados em con-
acesso a ela, bem como a toda a informação rela- formidade com as regras estabelecidas de prática
tiva ao inquérito, e dispor do direito de apresentar médica. Em particular, os exames deverão ser efec-
outras provas. tuados em privado, sob o controlo do perito
médico e nunca na presença de agentes de segu-
81. Nos casos em que os pro- 69 Vide nota 68. rança ou outros funcionários governamentais.
cedimentos de inquérito se O perito médico deverá elaborar imediatamente
revelem inadequados por falta de capacidade téc- um relatório escrito rigoroso. Este relatório deverá
nica, possível falta de imparcialidade, indícios da incluir, no mínimo, os seguintes elementos:
existência de abusos sistemáticos ou outros moti-
vos relevantes, os Estados deverão garantir que as a) As circunstâncias em que decorre o exame -
investigações sejam levadas a cabo por uma - nome da pessoa examinada e nome e função de
comissão de inquérito independente ou meca- todos quantos estejam presentes no exame; hora
nismo análogo. Os membros desta comissão e data exactas do exame; localização, natureza e
deverão ser seleccionados com base na sua reco- morada (incluindo, se necessário, a sala) da insti-
nhecida imparcialidade, competência e inde- tuição onde se realiza o exame (por exemplo, esta-
pendência pessoal. Deverão, em particular, ser belecimento prisional, clínica, casa particular);
independentes de quaisquer suspeitos e das insti- condições em que se encontra a pessoa no
tuições ou agências a que estes pertençam. A comis- momento do exame (por exemplo, natureza de
são deverá ser dotada de competência para obter quaisquer restrições que lhe tenham sido impos-
toda a informação necessária e deverá conduzir o tas aquando da chegada ao local do exame ou no
inquérito em conformidade com os Princípios decurso do mesmo, presença de forças de segurança
sobre a Investigação e Documentação Eficazes da durante o exame, comportamento das pessoas que
Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, acompanham o detido, ameaças proferidas contra
Desumanos ou Degradantes69. Num prazo razoá- a pessoa que efectua o exame) e quaisquer outros
vel, deverá ser elaborado um relatório escrito do qual factores relevantes;
conste o âmbito do inquérito instaurado, os pro- b) Historial – registo detalhado dos factos rela-
cedimentos e métodos utilizados na apreciação tados pela pessoa em causa no decurso do exame,
das provas, bem como as conclusões e recomen- incluindo os alegados métodos de tortura ou maus
dações elaboradas com base nos factos apurados tratos, momento em que se alega ter ocorrido a tor-
e no direito aplicável. Este relatório deverá ser tor- tura ou os maus tratos e todos os sintomas físicos
nado público logo que se encontre concluído. O rela- ou psicológicos que a pessoa afirme sofrer;
tório deverá também descrever em detalhe os c) Observações físicas e psicológicas – registo de
factos específicos que se provou terem acontecido todos os resultados obtidos na sequência do
e as provas com base nas quais foram apurados, exame, a nível físico e psicológico, incluindo os tes-
bem como indicar os nomes das testemunhas que tes de diagnóstico apropriados e, sempre que pos-
prestaram declarações, à excepção daquelas cuja sível, fotografias a cores de todas as lesões;
identidade não tenha sido divulgada para sua pró- d) Parecer – interpretação quanto à relação pro-
pria protecção. O Estado deverá dar resposta ao rela- vável entre os resultados do exame físico e psico-
tório num prazo razoável e, se necessário, indicar lógico e a eventual ocorrência de tortura ou maus
as medidas a adoptar na sequência do mesmo. tratos. Deverá ser formulada uma recomendação
quanto à necessidade de qualquer tratamento
82. Os peritos médicos envolvidos na investiga- médico ou psicológico ou exame ulterior;
ção da tortura ou maus tratos deverão pautar a e) Autoria – o relatório deverá identificar clara-
sua conduta, em todos os momentos, de acordo com mente as pessoas que procederam ao exame e
os princípios éticos mais rigorosos, devendo, em deverá ser assinado.

Inquéritos legais sobre a prática da tortura


* 25
83. Este relatório deverá ser confidencial e comu- b) O modus operandi ser característico dos
nicado à pessoa examinada ou seu representante métodos de tortura encorajados pelo Estado;
nomeado. A opinião da pessoa examinada ou seu c) Tentativas de obstrução ou atraso do inquérito
representante quanto ao processo de exame deverá por parte de representantes do Estado ou pessoas
ser recolhida e incluída no relatório. O relatório associadas com o Estado;
escrito deverá também ser enviado, se for caso d) O interesse público poder ser prosseguido da
disso, à autoridade responsável pela investigação melhor maneira através de um inquérito inde-
dos alegados actos de tortura ou maus tratos. Cabe pendente;
ao Estado assegurar que o relatório seja enviado em e) A investigação realizada pelos órgãos de
segurança aos seus destinatários. O relatório não inquérito habituais ser posta em causa devido a falta
deverá ser divulgado a nenhuma outra pessoa, de competência técnica, falta de imparcialidade
salvo com o consentimento do interessado ou ou outras razões, nomeadamente a importância do
autorização do tribunal competente para ordenar caso, a possível existência de um padrão de viola-
tal divulgação. Para mais detalhes quanto aos rela- ções sistemáticas, queixas da pessoa ou qualquer
tórios escritos relativos a alegados casos de tortura, outro motivo ponderoso.
vide o capítulo IV. Os capítulos V e VI descrevem
em pormenor as avaliações físicas e psicológicas, 86. O Estado deverá ter em conta diversas ques-
respectivamente. tões ao decidir estabelecer uma comissão de
inquérito independente. Em primeiro lugar, as
c. Procedimentos a adoptar na investigação pessoas sujeitas a investigação deverão beneficiar,
da tortura em todas as fases do processo de inquérito, das sal-
vaguardas processuais mínimas garantidas pelo
1. DETERMINAÇÃO DO ORGANISMO RESPONSÁVEL direito internacional. Em segundo lugar, os inves-
PELA REALIZAÇÃO DO INQUÉRITO tigadores deverão contar com o apoio de pessoal
técnico e administrativo competente, e ter acesso
84. Nos casos em que se suspeite da implicação a aconselhamento jurídico objectivo e imparcial de
de funcionários públicos na prática da tortura, forma a garantir que os elementos de prova reco-
nomeadamente por esta ter sido ordenada ou lhidos no decorrer do inquérito sejam admis-
tolerada por ministros, adjuntos ministeriais, síveis em processo penal. Em terceiro lugar, os
funcionários que actuam com o conhecimento dos investigadores deverão dispor de toda a panóplia
ministros, funcionários superiores dos departa- de recursos e competências à disposição do
mentos governamentais ou oficiais superiores Estado. Por último, os investigadores deverão ter
das forças armadas, pode não ser possível reali- a possibilidade de recorrer à ajuda de peritos inter-
zar um inquérito objectivo e imparcial a menos nacionais nas áreas do Direito e da medicina.
que seja estabelecida uma comissão de inqué-
rito especial. Pode também ser necessária uma 2. RECOLHA DE DEPOIMENTOS DA ALEGADA
comissão deste tipo caso existam dúvidas quanto VÍTIMA E OUTRAS TESTEMUNHAS
à capacidade técnica ou imparcialidade dos inves-
tigadores. 87. Devido à natureza dos casos de tortura e dos
traumas que os mesmos provocam e que incluem
85. De entre os factores que podem sugerir o muitas vezes um devastador sentimento de impo-
envolvimento do Estado em actos de tortura ou a tência, é particularmente importante dar mostras
existência de circunstâncias especiais que justifi- de sensibilidade perante as alegadas vítimas e
quem a criação de um mecanismo ad hoc de outras testemunhas. O Estado deverá proteger as
inquérito imparcial, destacam-se os seguintes: alegadas vítimas de tortura, testemunhas e suas
famílias, contra a violência, ameaças de violência
a) A vítima ter sido vista pela última vez ilesa e e qualquer outra forma de intimidação a que tais
sub custódia policial ou detida à guarda da polícia; pessoas se encontrem expostas em resultado do

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* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
inquérito. Os investigadores deverão alertar as tes- ponsável pelo interrogatório da alegada vítima de
temunhas para as consequências do seu envolvi- tortura, dever-se-á prestar particular atenção às
mento no inquérito e informá-las de quaisquer preferências manifestadas por esta quanto a um
desenvolvimentos subsequentes no caso que as interlocutor do mesmo sexo, com as mesmas ori-
possam afectar. gens culturais ou com a capacidade de comunicar
na sua língua materna. O investigador em causa
(a) Consentimento esclarecido e outras deverá ter formação ou experiência prévia na
salvaguardas da presumível vítima documentação da tortura e no trabalho com víti-
mas de traumas, nomeadamente de tortura. Caso
88. Desde o início, a alegada vítima deverá ser não seja possível designar um investigador com
informada, sempre que possível, da natureza do pro- formação ou experiência nestas áreas, a pessoa
cedimento, das razões pelas quais é solicitado o seu escolhida deverá fazer tudo quanto esteja ao seu
depoimento e da utilização que poderá eventual- alcance para se informar a respeito da tortura e res-
mente ser dada às provas apresentadas. Os inves- pectivas consequências físicas e mentais, antes de
tigadores deverão explicar à pessoa quais os proceder ao interrogatório da presumível vítima.
elementos do inquérito que serão tornados públi- Para isso, poderá recorrer a inúmeras fontes,
cos e quais permanecerão em sigilo. A vítima tem nomeadamente o presente manual, diversas obras
o direito de se recusar a cooperar na totalidade ou de formação profissional, cursos de formação e
em parte da investigação. Deverão ser feitos todos conferências profissionais. O investigador deverá
os esforços para ir ao encontro da sua disponibi- também ter acesso ao aconselhamento e à assis-
lidade e dos seus desejos. A alegada vítima de tor- tência de peritos internacionais, ao longo de todo
tura deverá ser regularmente informada acerca o inquérito.
dos progressos da investigação, devendo também
ser notificada das principais audiências que se (c) Contex to da investigação
realizem no âmbito do inquérito ou julgamento do
caso. Os investigadores deverão informar a ale- 90. Os investigadores deverão analisar cuidado-
gada vítima da detenção do presumível autor do samente o contexto em que se desenvolve o seu tra-
crime. Às alegadas vítimas deverão também ser balho, tomar as necessárias precauções e garantir
fornecidos os contactos de grupos de apoio e tra- o respeito das salvaguardas que se impõem. Ao
tamento que lhes possam ser úteis. Os investiga- interrogar pessoas que se encontram ainda detidas
dores deverão colaborar com as associações e ou em situações análogas que as tornam vulnerá-
grupos envolvidos na luta contra a tortura a nível veis a represálias, o investigador deverá ter o cui-
nacional e local, a fim de assegurar o intercâmbio dado de não as colocar em perigo. Nos casos em
recíproco de informação e experiência neste domí- que o simples facto de falar com o investigador seja
nio. susceptível colocar alguém em risco, poderá ser pre-
ferível optar por uma “entrevista de grupo” em
(b) Selecção do investigador vez de uma conversa individual. Sempre que a
entrevista se realize em privado, o investigador
89. As autoridades responsáveis pela condução do deverá escolher um local onde a pessoa se sinta à
processo de inquérito deverão designar uma pes- vontade para falar livremente.
soa como principal responsável pelo interrogató-
rio da presumível vítima. Embora esta última 91. Os inquéritos podem decorrer em contextos
possa ter necessidade de discutir o seu caso com políticos muito díspares, o que implica importan-
profissionais das áreas do Direito e da saúde, a tes diferenças na forma como as investigações
equipa de investigação deverá envidar todos os devem ser conduzidas. As normas jurídicas que
esforços para evitar que a pessoa se veja obrigada enquadram o processo de inquérito também
a repetir desnecessariamente a sua história. Ao variam em função do contexto. Por exemplo, uma
seleccionar um investigador como principal res- investigação que culmine no julgamento do alegado

Inquéritos legais sobre a prática da tortura


* 27
autor exige provas muito mais sólidas da prática O investigador deverá demonstrar sensibilidade
da tortura do que um relatório destinado a funda- no tom, formulação e sequência das perguntas,
mentar um pedido de asilo político num país ter- dado o efeito traumático que a prestação de depoi-
ceiro. As directrizes que a seguir se enunciam mento tem para a vítima de tortura. A pessoa
deverão ser adaptadas pelo investigador em função deverá ser informada do seu direito de interrom-
da situação concreta e dos objectivos do inquérito. per o interrogatório em qualquer momento, para
Eis alguns exemplos de contextos em que a vítima fazer uma pausa se assim o desejar, ou de recusar
se pode encontrar e que são susceptíveis de influir responder a qualquer questão.
no processo de investigação:
93. Serviços de assistência psicológica ou acon-
(i) Sob prisão ou detenção no seu próprio país; selhamento com experiência no trabalho com víti-
(ii) Sob prisão ou detenção num outro país; mas de tortura deverão, se possível, ser postos à
(iii) Em liberdade no seu próprio país mas num disposição destas pessoas, bem como das teste-
ambiente opressivo e hostil; munhas no processo e dos membros da equipa de
(iv) Em liberdade no seu próprio país num clima investigação. O repetido relato dos factos poderá
de paz e segurança; fazer a pessoa reviver a experiência de tortura ou
(v) Num país estrangeiro, amigável ou hostil; dar origem a outros sintomas pós-traumáticos (vide
(vi) Num campo de refugiados; capítulo IV, secção H). Escutar os pormenores do caso
(vii) Num tribunal de crimes de guerra ou comis- de tortura pode provocar nos investigadores sinto-
são de apuramento dos factos. mas de trauma secundário, devendo estas pessoas
ser encorajadas a discutir as suas reacções entre si,
92. O contexto político poderá ser hostil à vítima dentro do respeito das normas de sigilo profissio-
e ao investigador, por exemplo, caso as pessoas nal. Sempre que possível, estas discussões devem
sejam entrevistadas enquanto se encontram pre- ser feitas com a ajuda de um moderador experiente.
sas por ordem do seu próprio governo ou detidas Há que ter consciência de dois perigos muito con-
num país estrangeiro a fim de serem deportadas. cretos: em primeiro lugar, existe o risco de que o
Nos países em que os requerentes de asilo são entrevistador se identifique com a presumível
examinados para detectar indícios de tortura, a vítima e perca a objectividade na análise do caso; em
relutância em reconhecer a verdade das alegações segundo lugar, o entrevistador pode habituar-se de
de maus tratos e tortura pode ter motivações polí- tal forma a ouvir relatos de tortura que acabe por
ticas. A possibilidade de agravar a situação do menosprezar a experiência da vítima.
detido é muito real e deverá ser tida em conta em
todas as avaliações efectuadas. Mesmo que as ale- (d) Segurança das testemunhas
gadas vítimas não se encontrem em situação de
perigo iminente, os investigadores deverão usar de 94. O Estado é responsável pela protecção de
grande cuidado no seu contacto com elas. A língua todas as presumíveis vítimas, testemunhas e suas
utilizada pelo investigador e a sua atitude condi- famílias contra a violência, ameaças de violência
cionarão em larga medida a capacidade e a vontade e qualquer outra forma de intimidação a que essas
da vítima em depor. O local escolhido para a entre- pessoas possam ser expostas em resultado do
vista deverá ser tão seguro e confortável quanto pos- inquérito. Os suspeitos de implicação em actos
sível, com acesso a instalações sanitárias, devendo de tortura deverão ser afastados de qualquer posi-
também ser providenciadas algumas bebidas ção de controlo ou comando, directo ou indirecto,
refrescantes. Deverá disponibilizar-se tempo sufi- sobre os queixosos, testemunhas e suas famílias,
ciente para a recolha do depoimento da presumí- bem como sobre as pessoas que realizam a inves-
vel vítima de tortura. Os investigadores não devem tigação. Os investigadores deverão ter permanen-
esperar obter a história completa logo na primeira temente em conta as possíveis consequências do
entrevista. As perguntas sobre questões do foro inquérito sobre as presumíveis vítimas de tortura
íntimo serão traumatizantes para a pessoa. e demais testemunhas.

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* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
95. Um dos métodos que se podem utilizar para através de dispositivos de distorção da imagem ou
garantir alguma segurança às pessoas entrevista- da voz ou em circuito fechado de televisão. Estas
das, incluindo pessoas detidas em países em situa- medidas deverão ser compatíveis com os direitos
ção de conflito, consiste em registar de forma do arguido.
segura as identidades das pessoas contactadas, de
forma a que os investigadores se possam certificar (e) Utilização de intérpretes
da respectiva segurança em ulteriores visitas. Os
investigadores devem ter a possibilidade de falar 97. Trabalhar com intérpretes no âmbito de pro-
com qualquer pessoa, livremente e em privado, e cessos de investigação da tortura não é fácil,
devem poder voltar a visitar as mesmas pessoas (daí mesmo tratando-se de profissionais. Nem sempre
a necessidade de registar as respectivas identida- é possível dispor de intérpretes para todas as dife-
des) sempre que necessário. Nem todos os Estados rentes línguas e dialectos, podendo por vezes ser
aceitam estas condições e os investigadores necessário recorrer à interpretação de pessoas da
podem encontrar dificuldades para fazer valer mesma família ou grupo cultural da pessoa em
estas garantias. Caso pareça provável que a pres- causa. Esta não é a melhor solução, uma vez que
tação de depoimento coloque em perigo as teste- a pessoa pode não se sentir à-vontade para falar
munhas, o investigador deverá tentar obter meios acerca da sua experiência de tortura através de
de prova alternativos. alguém que conheça. O melhor seria que o intér-
prete pertencesse sempre à equipa de investiga-
96. Os reclusos estão potencialmente expostos a ção e estivesse familiarizado com as questões
maiores perigos do que as pessoas em liberdade relativas à tortura (vide capítulos IV, secção I, e VI,
e a sua reacção pode variar segundo as circuns- secção C.2).
tâncias. Nalguns casos, os reclusos podem colocar-
-se em perigo inadvertidamente, ao falar com (f ) Informação a obter da presumível vítima
excessiva veemência, pensando que estão protegidos
pela mera presença de um investigador “externo”, 98. O investigador deverá tentar obter, através do
o que pode não ser o caso. Noutras situações, os depoimento da presumível vítima, o máximo de ele-
investigadores podem deparar-se com um “muro mentos possível quanto aos aspectos que a seguir
de silêncio”, uma vez que o recluso está demasiado se indicam (vide capítulo IV, secção E):
assustado para confiar em qualquer pessoa,
mesmo depois de lhe terem sido dadas garantias i) Circunstâncias conducentes à tortura,
de confidencialidade. Neste último caso, pode ser nomeadamente a captura ou o rapto e a detenção;
preciso começar com “entrevistas de grupo”, para ii) Data e hora aproximada da ocorrência dos
explicar claramente o âmbito e objectivos da inves- actos de tortura, incluindo o mais recente. Pode não
tigação, oferecendo depois a oportunidade de uma ser fácil estabelecer com precisão estes elementos,
conversa em privado com as pessoas que desejem uma vez que a tortura pode ter sido perpetrada em
falar. Se o medo de represálias, justificado ou não, diversos locais e por diferentes pessoas (ou grupos
for demasiado grande, pode ser necessário entre- de pessoas). Por vezes será necessário recolher
vistar todos os reclusos de um determinado esta- depoimentos separados sobre cada um dos locais.
belecimento, para não chamar a atenção para É natural que as sequências cronológicas sejam
nenhum deles em particular. Sempre que o inqué- pouco exactas e por vezes mesmo confusas: sob tor-
rito conduzir à instauração de processo criminal tura, dificilmente se conserva a noção do tempo.
ou outra forma de divulgação pública dos factos, A recolha de depoimentos separados relativa-
o investigador deverá recomendar medidas para mente a cada um dos locais pode ajudar a obter uma
garantir a segurança da presumível vítima, por imagem global da situação. Muitas vezes, os
exemplo suprimindo o seu nome e outros ele- sobreviventes de tortura não sabem para onde
mentos de identificação pessoal dos registos públi- foram levados, pois estavam de olhos vendados
cos e dando à pessoa a oportunidade de depor ou semi-inconscientes. Reunindo depoimentos

Inquéritos legais sobre a prática da tortura


* 29
convergentes, poder-se-á facilitar a identificação de viii)Lesões físicas provocadas pela tortura;
locais concretos, métodos de tortura ou mesmo dos ix) Descrição de quaisquer armas ou outros
seus autores; objectos materiais utilizados;
iii) Descrição pormenorizada dos intervenientes x) A identidade de quaisquer testemunhas dos
na captura, detenção e actos de tortura, incluindo factos relativos à tortura. O investigador deverá
o facto de serem ou não conhecidos da vítima tomar precauções para proteger a segurança das
antes da ocorrência dos factos, vestuário que usa- testemunhas, eventualmente anotando as suas
vam, cicatrizes, marcas de nascença, tatuagens, identidades em código ou mantendo os seus
altura, peso (pode ser mais fácil à pessoa descre- nomes separados dos registos substantivos da
ver o autor do acto por comparação com seu pró- entrevista.
prio tamanho), algo de insólito na anatomia dos
autores do crime, língua falada e pronúncia, bem (g) Depoimento da presumível vítima
como quaisquer sinais de estarem sob a influên-
cia de álcool ou drogas; 99. O investigador deverá proceder à gravação do
iv) Conteúdo de quaisquer conversas mantidas depoimento detalhado da vítima e transcrevê-lo
com a pessoa, o que lhe foi dito ou perguntado. Esta em seguida. Esse depoimento dever-se-á basear
informação pode conter indícios relevantes para a em respostas a perguntas não tendenciosas. Por per-
identificação de locais de detenção secretos ou não guntas não tendenciosas entendem-se questões
reconhecidos; isentas de suposições ou conclusões e que per-
v) Descrição da rotina habitual no local de mitam à pessoa oferecer o testemunho mais
detenção e características dos maus tratos infligi- completo e objectivo possível. Por exemplo,
dos; dever-se-á perguntar “O que lhe aconteceu e
vi) Descrição dos actos de tortura, incluindo os quando?” e não “Foi torturado na prisão?”. Esta
métodos utilizados. Compreensivelmente, muitas última pergunta parte do princípio de que a pes-
vezes é difícil à vítima falar sobre isto e os inves- soa foi sujeita a tortura e limita o local dos fac-
tigadores não devem esperar obter a história com- tos a uma prisão. Evite formular perguntas de
pleta numa só entrevista. É importante recolher resposta múltipla, uma vez que podem obrigar
informação precisa, mas quaisquer questões rela- o indivíduo a dar respostas pouco precisas caso
tivas a humilhações ou sevícias íntimas serão trau- o que lhe tenha acontecido não corresponda
máticas, muitas vezes extremamente traumáticas; exactamente a nenhuma das opções. Permita
vii) Qualquer agressão sexual que a vítima tenha que a pessoa lhe conte a sua própria história, mas
sofrido. A maior parte das pessoas entende por auxilie-a, colocando questões que ajudem a tor-
agressão sexual a violação ou sodomia. Os inves- nar o relato mais preciso. A pessoa deverá ser
tigadores deverão ter consciência de que muitas encorajada a usar todos os sentidos para des-
vezes a vítima não considera agressão sexual os crever o que lhe aconteceu. Pergunte-lhe o que
insultos verbais, o desnudar do corpo, os toques ínti- viu, cheirou, ouviu e sentiu. Isto é importante,
mos, os actos obscenos ou humilhantes e por por exemplo, caso a pessoa tenha estado de
vezes mesmo os choques eléctricos nos órgãos olhos vendados ou a agressão tenha tido lugar no
genitais. Todos estes actos violam a intimidade da escuro.
pessoa e devem ser considerados agressões
sexuais. É muito frequente que as vítimas de (h) Depoimento do presumível autor do acto
abuso sexual nada digam ou neguem mesmo de tortura
terem sido submetidas a tal tipo de agressão. Mui-
tas vezes, apenas começam a revelar a história 100. Os investigadores deverão interrogar os ale-
numa segunda ou terceira visita, depois de terem gados autores da tortura, sempre que possível. É
estabelecido alguma empatia com o entrevistador importante que lhes sejam garantidas todas as sal-
e de este se ter revelado sensível à cultura ou per- vaguardas jurídicas consagradas no direito interno
sonalidade da vítima; e internacional.

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* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
3. RECOLHA E PRESERVAÇÃO DAS PROVAS que sejam encontrados, caso a alegada situação
MATERIAIS de tortura seja suficientemente recente para que
tais elementos de prova possam ser relevantes.
101. O investigador deverá recolher tantos ele- Quaisquer dispositivos que possam ter sido utili-
mentos de prova material quantos possível para zados para infligir a tortura, quer especificamente
documentar um caso ou padrão sistemático de concebidos para esse fim quer usados circuns-
tortura. Um dos aspectos mais importantes de tancialmente, deverão também ser recolhidos e
uma investigação rigorosa e imparcial é a recolha preservados. Dever-se-ão ainda recolher e preser-
e análise de provas materiais. Os investigadores var quaisquer impressões digitais encontradas no
deverão documentar todas as diligências efectua- local, caso o alegado acto de tortura seja suficien-
das na recolha e preservação das provas materiais temente recente para que as mesmas possam ser
a fim de poderem utilizar as mesmas em proces- relevantes. Deverá ser elaborada uma planta à
sos judiciais subsequentes, nomeadamente de escala das instalações ou locais onde se supõe que
índole penal. A maior parte dos casos de tortura os actos de tortura tenham ocorrido, na qual
ocorre em locais onde as pessoas se encontram devem ser assinalados todos os detalhes perti-
sujeitas a qualquer forma de detenção. É muitas nentes, tais como a localização de cada um dos
vezes difícil, senão impossível, ter inicialmente andares do edifício, salas, entradas, janelas, mobí-
acesso irrestrito a esses locais e aí proceder à reco- lia e terreno circundante. Dever-se-ão tirar foto-
lha de provas. Os investigadores deverão ser auto- grafias a cores de cada um destes elementos.
rizados pelo Estado a ter livre acesso a quaisquer Deverá ser registada a identidade de todas as pes-
locais ou instalações e a observar o local onde se soas presentes no alegado cenário de tortura,
suspeita que a tortura tenha acontecido. Todas as incluindo os seus nomes completos, moradas,
pessoas e autoridades com competência para números de telefone e outros contactos. Se pos-
investigar o caso deverão coordenar os seus esfor- sível e desde que os factos alegados sejam suficien-
ços para realizar uma inspecção cuidadosa do ale- temente recentes para o justificar, as roupas
gado local de tortura. Os investigadores deverão ter usadas pela presumível vítima aquando do acto de
livre acesso a todos os presumíveis cenários de tortura deverão ser inventariadas e testadas em
tortura. Nomeadamente, dever-lhes-á ser garan- laboratório, a fim de detectar eventuais vestígios
tido o acesso a todas as áreas abertas ou fechadas, de fluidos corporais e outras provas materiais.
por exemplo edifícios, veículos, gabinetes, celas de Dever-se-ão interrogar todas as pessoas presentes
prisão ou outras instalações onde se suspeita que nas instalações ou áreas sob investigação, a fim de
a tortura tenha tido lugar. determinar se presenciaram ou não os alegados
actos de tortura. Quaisquer papéis, registos ou
102. Qualquer área ou edifício sob investigação documentos relevantes deverão ser guardados
deverá ser encerrado a fim de evitar a destruição para utilização como prova e sujeição a análise
ou o desaparecimento de quaisquer provas mate- grafológica.
riais. Apenas os investigadores e seus auxiliares
deverão ter acesso às áreas designadas como locais 4. PROVAS MÉDICAS
sob investigação, que deverão ser cuidadosamente
examinadas a fim de recolher todas as provas 103. O investigador deverá providenciar para que
materiais existentes. Todos os elementos de prova a alegada vítima seja sujeita a exame médico. É de
deverão ser devidamente recolhidos, manuseados, particular importância que este exame se realize
embalados, etiquetados e armazenados em local atempadamente. O exame médico deverá ter sem-
seguro para evitar qualquer eventual contamina- pre lugar, independentemente do lapso de tempo
ção, alteração ou extravio. Deverão também ser decorrido desde o acto de tortura mas, se este tiver
colhidas, etiquetadas e devidamente acondiciona- supostamente ocorrido nas seis semanas anterio-
das quaisquer amostras de fluidos corporais (por res, dever-se-á proceder ao exame com a máxima
exemplo, sangue ou sémen), cabelos, fibras e fios urgência a fim de evitar o desaparecimento de

Inquéritos legais sobre a prática da tortura


* 31
eventuais sinais agudos. Este exame deverá incluir fotográfica rudimentar, uma vez que alguns indí-
uma avaliação das eventuais necessidades da cios físicos se desvanecem rapidamente ou podem
vítima em matéria de tratamento de quaisquer ser corrompidos. Deve ter-se em conta que as foto-
ferimentos ou doenças, apoio psicológico, acon- grafias de revelação instantânea têm tendência a
selhamento e seguimento (vide capítulo V para perder qualidade com o passar do tempo. São pre-
uma descrição do exame físico e avaliação médico- feríveis fotografias de qualidade mais profis-
-legal). A avaliação e exame psicológico da vítima sional, as quais devem ser tiradas logo que se
é indispensável e pode ter lugar em simultâneo com disponha do necessário equipamento. Se pos-
o exame físico ou, caso não existam sinais físicos, sível, deve utilizar-se uma máquina de 35 mm com
em separado (vide capítulo VI para uma descrição dispositivo de datação automático. Dever-se-á
da avaliação psicológica). registar pormenorizadamente toda a sequência de
pessoas e entidades com acesso aos rolos, negati-
104. Para estabelecer a existência de provas físicas vos e impressões fotográficas.
e psicológicas da prática da tortura, é necessário
colocar seis importantes questões: d. Comissões de inquérito

a) Os dados apurados na observação física e 1. DEFINIÇÃO DO ÂMBITO DO INQUÉRITO


psicológica corroboram a alegação de tortura?
b) Que condições físicas contribuem para o 106. Qualquer Estado ou organização que esta-
quadro clínico? beleça uma comissão de inquérito deverá deter-
c) As reacções observadas em sede de exame psi- minar o âmbito do inquérito a realizar através da
cológico são normais ou típicas de situações de ten- definição precisa do mandato atribuído à comissão.
são extrema no contexto cultural ou social da A definição do mandato da comissão pode contri-
pessoa? buir em muito para o êxito dos trabalhos desta, uma
d) Dado que os distúrbios psicológicos asso- vez que confere legitimidade ao processo, facilita
ciados a situações traumáticas evoluem com o pas- o consenso entre os membros da comissão quanto
sar do tempo, qual seria a cronologia dos factos ao âmbito do inquérito e permite a avaliação do res-
relativos à tortura? Em que ponto do processo de pectivo relatório final. Na definição do mandato da
recuperação se encontra o indivíduo? comissão de inquérito, deverão ser tidas em conta
e) Que outros factores de tensão afectam a pes- as seguintes recomendações:
soa (por exemplo, processo penal em curso, migra-
ção forçada, exílio, perda da família e do estatuto a) O mandato deverá ser formulado em termos
social, etc.)? Que impacto têm estas questões neutros, que não sugiram antecipadamente qual-
sobre a vítima? quer resultado. Esta exigência de neutralidade
f) O quadro clínico sugere uma falsa alegação implica que o mandato não exclua a competência
de tortura? da comissão para investigar em áreas susceptíveis
de revelar a responsabilidade do Estado pelos actos
5. FOTOGRAFIAS de tortura;
b) Deverá indicar com precisão que questões e
105. Deverão ser tiradas fotografias a cores das factos deverão ser investigados e abordados no
lesões apresentadas pela pessoa que alega ter sido relatório final da comissão;
torturada, das instalações onde a tortura tenha c) Deverá permitir alguma flexibilidade no
supostamente ocorrido (interior e exterior) e de âmbito do inquérito a fim de que a comissão possa
quaisquer outras provas materiais aí encontradas. investigar os factos com rigor, sem que o seu tra-
É essencial incluir na fotografia uma fita métrica balho seja entravado por um mandato excessiva-
ou qualquer outro dispositivo que indique a escala mente restritivo ou demasiado vago. Esta
da imagem. As fotografias devem ser tiradas logo flexibilidade pode conseguir-se, por exemplo,
que possível, mesmo utilizando uma máquina mediante a inclusão de uma cláusula que permita

32
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
à comissão alterar o seu próprio mandato con- excluir liminarmente da composição da comissão,
forme necessário. É, contudo, importante que a por exemplo, membros de grandes organizações a
comissão mantenha o público informado a res- que a vítima também pertença ou pessoas as-
peito de quaisquer alterações introduzidas no seu sociadas a organizações que se dedicam ao trata-
mandato. mento e reabilitação das vítimas de tortura;
b) Competência – os membros da comissão
2. COMPETÊNCIAS DA COMISSÃO deverão ser capazes de avaliar e ponderar os ele-
mentos de prova e de formular juízos fundamen-
107. Os Princípios sobre a Investigação e Documen- tados a respeito dos mesmos. Se possível, as
tação Eficazes da Tortura e Outras Penas ou Tra- comissões de inquérito deverão incluir na sua
tamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes composição pessoas com conhecimentos especia-
enunciam, em linhas gerais, as competências que lizados nos domínios do Direito, medicina e outras
devem ser atribuídas às comissões de inquérito. áreas relevantes;
Concretamente, estas necessitam de dispor de c) Independência – os membros da comissão
autoridade para: deverão ser reconhecidos no seio da comunidade
a que pertençam como pessoas honestas e justas.
a) Obter toda a informação necessária à inves-
tigação, incluindo autoridade para obter o depoi- 109. A objectividade da investigação e as conclu-
mento de testemunhas sob cominação legal, sões da comissão de inquérito podem depender,
ordenar a produção de prova documental, entre outros aspectos, do número de membros
incluindo dossiers oficiais e registos médicos, e pro- que compõem esta última. De forma geral, é pre-
teger testemunhas, familiares das vítimas e outras ferível que a comissão seja composta por três ou
fontes de informação; mais membros e não por apenas um ou dois. Por
b) Tornar públicas as suas conclusões; princípio, um inquérito relativo a um caso de tor-
c) Realizar todas as visitas necessárias à inves- tura não deverá ser realizado por um único inves-
tigação, incluindo aos locais onde se suspeita que tigador isolado, que não estará geralmente em
a tortura tenha ocorrido; condições de investigar o caso em profundidade.
d) Recolher provas apresentadas por testemu- Para além disso, ser-lhe-á difícil tomar decisões con-
nhas ou organizações que se encontrem fora do troversas e importantes sem qualquer tipo de
país. debate e estará particularmente vulnerável a pres-
sões exteriores, nomeadamente do Estado.
3. CRITÉRIOS PARA A SELECÇÃO DOS MEMBROS
DA COMISSÃO 4. PESSOAL DA COMISSÃO

108. Os membros da comissão deverão ser selec- 110. As comissões de inquérito deverão poder
cionados em função da sua reconhecida impar- contar com serviços de aconselhamento impar-
cialidade, competência e independência pessoal. ciais e especializados. Caso a investigação incida
Estes critérios definem-se da seguinte forma: sobre factos que impliquem a responsabilização do
Estado, poderá ser aconselhável fazer apelo a
a) Imparcialidade – os membros da comissão assessores independentes da estrutura do Minis-
não devem ter relações próximas com qualquer tério da Justiça. O principal responsável pela asses-
indivíduo, entidade pública, partido político ou soria da comissão deverá estar à margem de
outra organização potencialmente implicados na qualquer influência política, por ter vínculo sólido
prática da tortura. Não deverão também ser dema- à função pública ou ser um jurista totalmente
siado próximos de qualquer organização ou grupo independente. A investigação requer muitas vezes
de que a vítima seja membro, uma vez que isto a assessoria de peritos especializados. A comissão
poderá pôr em causa a credibilidade da comissão. deverá ter acesso aos serviços de peritos em áreas
Tal não deverá, contudo, servir de pretexto para como a patologia, medicina legal, psiquiatria, psi-

Inquéritos legais sobre a prática da tortura


* 33
cologia, ginecologia e pediatria. Para que o inqué- poderá ser feita através de jornais, revistas, rádio,
rito seja verdadeiramente imparcial e rigoroso, televisão, folhetos e cartazes.
será necessário, na maioria dos casos, que os inves-
tigadores da comissão sigam pistas e busquem ele- 8. RECOLHA DE PROVAS
mentos de prova pelos seus próprios meios. A
credibilidade do inquérito depende em grande 114. As comissões de inquérito deverão dispor de
medida do facto de a comissão se poder basear no autoridade para ordenar a prestação de depoi-
trabalho dos seus próprios investigadores. mentos e a apresentação de provas documentais,
bem como para ordenar a prestação de declarações
5. PROTECÇÃO DAS TESTEMUNHAS por parte dos funcionários alegadamente implicados
na prática da tortura. Em termos práticos, esta
111. O Estado deverá proteger todos os queixosos, autoridade poder-se-á manifestar através da com-
testemunhas, membros da equipa de investiga- petência para a imposição de multas ou outras
ção e suas famílias contra a violência, ameaças de sanções aos funcionários ou outras pessoas que se
violência ou qualquer outra forma de intimidação recusem a cooperar. A comissão de inquérito
(vide secção C.2 d), supra). Se a comissão concluir deverá começar por convidar as pessoas a prestar
que existem riscos razoáveis de perseguição, as- declarações oralmente ou por escrito. Os depoi-
sédio ou agressão a qualquer testemunha actual ou mentos escritos podem fornecer importantes ele-
potencial, pode considerar necessário ouvir a mentos de prova caso as pessoas em questão
mesma à porta fechada, manter em sigilo a iden- tenham medo de testemunhar, não possam des-
tidade da testemunha ou informador, utilizar ape- locar-se até ao local onde decorre a audição ou
nas elementos de prova que não permitam a estejam indisponíveis por qualquer outro motivo.
identificação da pessoa ou tomar outras medidas As comissões de inquérito devem considerar a
adequadas. hipótese de adoptar outro tipo de procedimentos
susceptíveis de fornecer informações relevantes.
6. PROCEDIMENTO
9. DIREITOS DAS PARTES
112. Decorre dos princípios gerais de processo
penal que as audiências sejam públicas, a menos 115. As alegadas vítimas de tortura e seus repre-
que se torne necessário realizá-las à porta fechada sentantes legais deverão ser informados da reali-
a fim de proteger a segurança das testemunhas. Os zação de qualquer audiência e ter acesso a ela,
procedimentos realizados à porta fechada deverão bem como a toda a informação relativa ao inqué-
ser gravados e selados, devendo os respectivos rito, e ter o direito de apresentar provas. Este reco-
registos confidenciais ser guardados em local nhecimento à vítima da qualidade de parte no
conhecido. Ocasionalmente, pode ser necessário processo reflecte a especial importância atribuída
garantir sigilo absoluto para encorajar a presta- à protecção dos seus interesses na condução do
ção de depoimento, podendo a comissão decidir inquérito. Contudo, todas as restantes partes inte-
ouvir as testemunhas em privado, informalmente ressadas deverão ter também a oportunidade de
ou sem registo das declarações. serem ouvidas. O organismo encarregado do
inquérito deverá dispor de competência para obri-
7. DIVULGAÇÃO DO INQUÉRITO gar as testemunhas e os funcionários suspeitos
de participação nos actos de tortura a prestar
113. Deverá ser dada ampla publicidade à criação declarações, bem como para ordenar a apresenta-
da comissão e ao objecto do inquérito. Das acções ção de provas. Todos os depoentes deverão ter a pos-
de divulgação deverá constar um convite à apre- sibilidade de obter patrocínio jurídico caso o
sentação de informações e declarações escritas inquérito seja susceptível de lesar os seus interes-
relevantes à comissão, bem como instruções para ses, por exemplo, por poder vir a fazê-los incorrer
as pessoas que desejem testemunhar. A divulgação em responsabilidade penal ou civil. As pessoas não

34
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
podem ser obrigadas a testemunhar contra si pró- seja unânime nas suas conclusões, os membros em
prias. A comissão deverá ter a oportunidade de minoria deverão fazer constar a sua opinião diver-
interrogar eficazmente todos os depoentes. As par- gente. O relatório da comissão de inquérito deverá
tes no inquérito deverão estar autorizadas a submeter conter, no mínimo, a seguinte informação:
perguntas escritas à comissão.
a) Âmbito do inquérito e mandato da comissão;
10. AVALIAÇÃO DAS PROVAS b) Procedimentos e métodos utilizados na apre-
ciação das provas;
116. A comissão deverá apreciar todas as infor- c) Lista de todas as pessoas que prestaram
mações e elementos de prova recebidos a fim de declarações, com indicação da respectiva idade e
determinar a sua fiabilidade e probidade. Na ava- sexo, à excepção daquelas cuja identidade não
liação dos testemunhos orais, a comissão deverá ter tenha sido divulgada por razões de segurança ou
em conta a atitude e credibilidade geral do que tenham prestado depoimento à porta fechada,
depoente, devendo ser sensível às questões sociais, e elementos de prova recolhidos;
culturais e de género que afectam o seu comporta- d) Momento e lugar de cada sessão (estes ele-
mento. Um elemento de prova corroborado por mentos pode constar de anexo ao relatório);
diversas fontes terá um valor probatório mais ele- e) Contexto em que se desenrola o inquérito,
vado e dará credibilidade a eventuais depoimentos nomeadamente condições sociais, políticas e eco-
indirectos. A comissão deverá avaliar cuidadosa- nómicas relevantes;
mente a fiabilidade dos depoimentos indirectos f) Factos concretos ocorridos e provas com base
antes de os aceitar como prova. Dever-se-á também nas quais foram apurados;
ter cuidado com os testemunhos não sujeitos a con- g) Legislação em que se baseia o trabalho da
tra-interrogatório. Muitas vezes, os depoimentos comissão;
feitos à porta fechada e preservados em registo h) Conclusões tiradas pela comissão com base
fechado, ou pura e simplesmente não registados, não nos factos apurados e no direito aplicável;
são sujeitos a contra-interrogatório, podendo por i) Recomendações formuladas com base nas
isso ter um valor probatório mais reduzido. conclusões da comissão.

11. RELATÓRIO DA COMISSÃO 118. O Estado deverá responder publicamente ao


relatório da comissão e, se for caso disso, indicar
117. A comissão deverá produzir um relatório as medidas que pretende tomar na sequência do
público num prazo razoável. Caso a comissão não mesmo.

Inquéritos legais sobre a prática da tortura


* 35
cap
ítu
lo

*04
Considerações gerais para as entrevistas

119. Ao entrevistar uma pessoa que alega ter sido identificar as necessidades terapêuticas dos sobre-
vítima de tortura, é necessário ter em consideração viventes e documentar investigações em matéria
uma série de questões e factores práticos. Estas con- de direitos humanos.
siderações são válidas para todas as pessoas que
contactam com a vítima, sejam advogados, médicos, 121. O objectivo do depoimento escrito ou oral do
psicólogos, psiquiatras, defensores de direitos médico consiste em proporcionar um parecer
humanos ou quaisquer outros profissionais. A sec- especializado sobre até que ponto as conclusões
ção seguinte passa em revista este “terreno comum” médicas corroboram ou não as alegações de maus
e tenta situá-lo nos diversos contextos que podem tratos do paciente e transmitir eficazmente as con-
ser encontrados no âmbito da investigação da tor- clusões e interpretações do perito médico ao poder
tura e entrevista das presumíveis vítimas. judicial ou outras autoridades competentes. Para
além disso, o depoimento do médico serve muitas
a. Objectivos do inquérito, exames vezes para informar as autoridades judiciais,
e documentação outros funcionários públicos e as comunidades
local e internacional a respeito das sequelas físicas
120. O objectivo geral do inquérito consiste em e psicológicas da tortura. O médico que procede ao
apurar os factos relativos ao alegado incidente de exame deverá estar apto a fazer o seguinte:
tortura (vide capítulo III, secção D). Os exames
médicos podem fornecer importantes elementos a) Avaliar eventuais lesões e outros sintomas de
de prova utilizáveis no âmbito de processos legais, maus tratos, mesmo na ausência de denúncias
nomeadamente: concretas apresentadas por particulares ou pelas
autoridades policiais ou judiciais;
a) Identificação dos responsáveis pelo acto de tor- b) Documentar os indícios físicos e psicológicos
tura e sua apresentação à justiça; das lesões e outros sintomas de maus tratos;
b) Fundamentação de pedidos de asilo político; c) Avaliar a possível correlação entre as obser-
c) Apuramento das condições sob as quais os vações médicas e os maus tratos de que o paciente
funcionários públicos possam ter obtido falsas alega ter sido vítima;
confissões; d) Avaliar a possível correlação entre as con-
d) Averiguação de práticas de tortura regionais. clusões do exame efectuado ao paciente e as infor-
Os exames médicos podem também servir para mações disponíveis quanto aos métodos de tortura

Considerações gerais para as entrevistas


* 37
utilizados na região em causa e suas sequelas sente na sala de observação. Esta salvaguarda pro-
habituais; cessual apenas poderá ser afastada caso o próprio
e) Interpretar de forma avalizada as conclusões médico considere que existem indícios sérios de
dos exames médico-legais e dar parecer quanto às que o detido constitui uma ameaça grave à segu-
possíveis causas dos maus tratos no âmbito de rança do pessoal de saúde. Nestas circunstâncias,
processos penais, civis e de concessão de asilo; deverá ser o pessoal de segurança do estabeleci-
f) Utilizar a informação obtida de forma ade- mento de saúde, e não a polícia ou outros funcio-
quada a fim de facilitar o apuramento dos factos nários responsáveis pela aplicação da lei, a
e a recolha de provas adicionais relativas ao caso assegurar a segurança do local, se o médico o
de tortura. entender necessário. Ainda assim, o pessoal de
segurança não deverá ouvir o diálogo entre médico
b. Salvaguardas processuais relativamente e paciente (isto é, deve estar colocado de forma a
aos detidos apenas poder estabelecer contacto visual com este
último, sem ouvir o que diz). Os exames médicos
122. O exame médico-legal de um detido deverá de detidos deverão realizar-se no local que o
ser realizado na sequência de um pedido escrito ofi- médico considere mais apropriado. Em determi-
cial do Ministério Público ou outra autoridade nados casos, poderá ser preferível insistir para
competente. Os pedidos de exame médico apre- que o exame se realize em estabelecimentos de
sentados por funcionários responsáveis pela apli- saúde oficiais e não na prisão ou cela de detenção.
cação da lei deverão ser considerados inválidos a Noutras circunstâncias, os detidos podem preferir
menos que resultem de ordens escritas do Minis- ser examinados na relativa segurança da sua cela,
tério Público. Contudo, os próprios detidos, seu caso receiem, por exemplo, que as instalações
advogado ou familiares, têm o direito de requerer médicas estejam sob vigilância. A determinação do
exame médico para estabelecer a existência de pro- local mais adequado depende de diversos factores,
vas de tortura e maus tratos. O detido deverá ser mas os investigadores devem sempre certificar-
conduzido até ao local onde se realizará o exame -se de que os detidos não são obrigados a aceitar
médico por outros funcionários que não mem- um local onde não se sentem confortáveis.
bros da polícia ou das forças armadas, uma vez que
a tortura pode ter ocorrido quando o indivíduo se 124. Caso quaisquer agentes policiais, soldados,
encontrava à guarda de qualquer um destes mes- guardas prisionais ou outros funcionários res-
mos agentes, pelo que a sua presença constituiria ponsáveis pela aplicação da lei estejam presentes
um factor de pressão inaceitável sobre o detido na sala de exame, seja qual for o motivo, esse facto
ou sobre o médico para evitar uma documentação deverá constar do relatório médico oficial. A pre-
eficaz da tortura ou dos maus tratos. Os funcio- sença de agentes policiais, soldados, guardas pri-
nários que supervisionam o transporte do detido sionais ou outros funcionários responsáveis pela
deverão ser responsáveis perante o Ministério aplicação da lei durante o exame pode ser funda-
Público e não perante qualquer outra autoridade mento para desacreditar um relatório médico
pública. O advogado do detido deverá estar presente negativo. A identidade e títulos de quaisquer
aquando da apresentação do pedido de exame outras pessoas presentes na sala de exame durante
médico e durante o transporte do detido depois da a observação médica deverá também ser indicada
realização do exame. Os detidos têm o direito de no relatório. Nos exames médico-legais de deti-
ser sujeitos a um segundo exame ou contra-exame dos, dever-se-á utilizar um formulário normali-
por um médico qualificado durante e após o zado de relatório médico (vide anexo IV para
período de detenção. directrizes a utilizar na elaboração destes formu-
lários).
123. Todos os detidos deverão ser examinados em
privado. Nenhum polícia ou outro funcionário res- 125. O relatório original e completo deverá ser
ponsável pela aplicação da lei deverá estar pre- transmitido directamente à pessoa que o solici-

38
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
tou, em geral um agente do 70 Vide Regras Mínimas um estabelecimento prisional ou esquadra de polí-
para o Tratamento dos
Ministério Público. Sempre que Reclusos (capítulo I.B). cia sem saberem exactamente o que estão a fazer.
o relatório seja solicitado pelo 71 Anónimo, “Health care Arriscam-se a obter uma imagem falsa ou incom-
for prisoners: implications of
detido ou seu advogado, dever- Kalk’s refusal” [em portu-
guês: Cuidados de saúde
pleta da realidade. Arriscam-se a colocar em
-lhe-á ser fornecido. O médico dos reclusos: as implicações
da recusa de Kalk], 1991,
perigo reclusos que podem nunca mais vir a visi-
que procede ao exame deverá 337, pp.647 e 648. tar. Arriscam-se ainda a fornecer um álibi aos
guardar cópias de todos os rela- autores de tortura, que podem utilizar o argu-
tórios. As associações médicas nacionais ou mento de que pessoas do exterior visitaram a sua
comissões de inquérito podem decidir inspec- prisão e nada detectaram.
cionar os relatórios médicos a fim de verificar se os
médicos, em particular aqueles que são funcio- 127. As visitas devem ser deixadas para investi-
nários públicos, respeitam as garantias proces- gadores que as possam levar a cabo, e efectuar o
suais aplicáveis e normas relativas à recolha de respectivo seguimento, de forma profissional e
prova. Os relatórios devem ser enviados à organi- que tenham reunido algumas garantias proces-
zação em causa, desde que oferecidas as necessá- suais para o seu trabalho. A ideia de que algumas
rias garantias de independência e sigilo. Nenhuma provas são melhores do que provas nenhumas não
cópia do relatório deverá, em caso algum, ser é válida no trabalho com reclusos que podem ser
enviada a funcionários responsáveis pela aplicação colocados em risco por prestar depoimento. As
da lei. É obrigatório que o detido seja sujeito a visitas efectuadas a instalações de detenção por
exame médico no momento da detenção, bem pessoas bem intencionadas em representação de
como a novo exame e avaliação no momento em instituições públicas e não governamentais podem
que é libertado70. Deverá também ter acesso a um ser difíceis e, pior ainda, podem ser contraprodu-
advogado no momento do exame médico. Na centes. Relativamente à questão que nos interessa,
maioria das situações de detenção em estabeleci- há que distinguir entre uma visita realizada de
mento prisional, não é admitida qualquer pre- boa fé e necessária ao inquérito, que não está em
sença exterior durante o exame. Nestes casos, deve causa, e uma visita não essencial que vá além
ficar estabelecido que o médico da prisão respeita disso e que, se efectuada por não especialistas,
rigorosamente a deontologia profissional, devendo pode ter mais desvantagens do que vantagens
ser capaz de desempenhar os seus deveres pro- num país que pratica a tortura. Às comissões inde-
fissionais com independência face a quaisquer pendentes constituídas por juristas e médicos
influências de terceiros. Caso o exame médico- deverá ser garantido acesso periódico às prisões e
-legal corrobore a alegação de tortura, o detido não outros locais de detenção, para que possam efec-
deverá regressar ao local de detenção, devendo tuar visitas a tais locais.
antes comparecer perante o Ministério Público ou
o juiz para determinação da sua situação jurídica71. 128. As entrevistas com pessoas que estão ainda
detidas, e possivelmente mesmo nas mãos daque-
c. Visitas oficiais a centros de detenção les que as torturaram, são evidentemente muito
diferentes das entrevistas realizadas na privaci-
126. As visitas aos reclusos não devem efectuar- dade e segurança de um estabelecimento de saúde
-se de ânimo leve. Em determinados casos, pode externo e seguro. Nunca é demais salientar a
ser muitíssimo difícil realizá-las de forma objec- importância de ganhar a confiança da pessoa em
tiva e profissional, particularmente em países tais situações. Contudo, é ainda mais importante
onde ainda se pratica a tortura. Uma única visita, nunca trair essa confiança, mesmo involuntaria-
sem seguimento que garanta a ulterior segurança mente. Devem ser tomadas todas as precauções para
das pessoas contactadas, pode ser perigosa. Por que os detidos se não coloquem a si próprios em
vezes, uma visita não seguida pode ser mesmo perigo. Em particular, deve perguntar-se aos deti-
pior do que nenhuma visita. Investigadores bem dos vítimas de tortura se a informação obtida pode
intencionados podem cair na armadilha de visitar ser utilizada e de que maneira. Os detidos podem

Considerações gerais para as entrevistas


* 39
ter demasiado medo para autorizar a divulgação do Para além disso, é necessário conhecer as formas
seu nome, por exemplo por receio de represálias. de tortura e maus tratos praticados a nível regio-
Os investigadores, pessoal médico e intérpretes nal, uma vez que esta informação pode corroborar
são obrigados a respeitar tudo aquilo que tenham os depoimentos recolhidos. A experiência na con-
prometido à pessoa em causa. dução de entrevistas e realização de exames com
vista à recolha de indícios físicos e psicológicos de
129. Podem surgir claros dilemas, por exemplo, tortura, bem como na documentação dos resulta-
caso seja evidente que um grande número de dos destas operações, deve ser adquirida sob a
reclusos foi sujeito a tortura num determinado supervisão de pessoal médico experiente.
local, mas todos se recusam a autorizar a utiliza-
ção das suas histórias por receio de represálias. 131. Por vezes, as pessoas detidas podem mani-
Perante a opção entre trair a confiança dos reclu- festar uma confiança excessiva em situações em que
sos na tentativa de pôr fim à tortura e guardar o investigador pura e simplesmente não pode
silêncio relativamente à situação detectada, é garantir que não irão haver represálias, por exem-
necessário encontrar uma solução que permita plo porque uma nova visita não foi negociada e ple-
conciliar as diversas obrigações em presença. Con- namente aceite pelas autoridades ou porque a
frontados com uma situação em que diversos identidade da pessoa não ficou registada de forma
detidos apresentam sinais evidentes de, nomea- a permitir o acompanhamento da sua situação.
damente, espancamento, lacerações ou golpes pro- Deverão ser tomadas todas as precauções para
vocados por objectos cortantes, mas todos se assegurar que os reclusos não se exponham a ris-
recusam a deixar mencionar o seu caso por medo cos desnecessários, confiando ingenuamente na
de represálias, pode ser conveniente organizar protecção de uma pessoa do exterior.
uma “inspecção sanitária” a todo o recinto, no
pátio e à vista de todos. Desta forma, o perito 132. Em termos ideais, nas entrevistas a pessoas
médico visitante, ao recorrer as filas de reclusos e detidas os intérpretes deverão ser exteriores à comu-
observando directamente os sinais de tortura nidade local, sobretudo para evitar que eles pró-
patentes nas suas costas, pode comunicar as suas prios ou as suas famílias sejam sujeitos a eventuais
observações sem ter de citar quaisquer queixas de pressões da parte de autoridades desejosas de saber
tortura por parte das pessoas em causa. Este pri- que informação foi transmitida aos investigadores.
meiro passo permitir-lhe-á ganhar a confiança dos A questão pode ser mais complexa quando os reclu-
reclusos para as ulteriores visitas de seguimento. sos pertencem a um grupo étnico diferente do dos
seus carcereiros. Deverá o intérprete local pertencer
130. É evidente que as formas mais subtis de tor- ao mesmo grupo étnico do recluso, de forma a
tura, como por exemplo a tortura psicológica e ganhar a confiança deste, mas ser ao mesmo tempo
sexual, não podem ser tratadas da mesma forma. objecto da desconfiança das autoridades e possivel-
Em determinados casos, poderá ser necessário mente de tentativas de intimidação? Para além
que os investigadores se abstenham de qualquer disso, o intérprete poderá manifestar relutância
comentário durante uma ou duas visitas, até que quanto a trabalhar num ambiente hostil, assim se
as circunstâncias mudem e permitam ou encora- colocando potencialmente em risco. Ou deverá
jem os reclusos a autorizar a utilização das suas his- optar-se por um intérprete originário do mesmo
tórias pessoais. O médico e o intérprete devem grupo étnico dos captores, assim ganhando a con-
identificar-se e explicar o seu papel no exame. fiança destes últimos mas perdendo a do recluso, e
A documentação de provas médicas de tortura continuando o intérprete potencialmente vulnerá-
exige conhecimentos especializados de médicos vel a tentativas de intimidação das autoridades?
credenciados. Pode obter-se informação relativa à Obviamente, a solução ideal não é nenhuma das
tortura e suas consequências físicas e psicológicas duas. Os intérpretes devem ser de fora da região e
através de publicações, cursos de formação, con- considerados por todos como tão independentes
ferências profissionais e experiência profissional. quanto os investigadores.

40
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
133. Uma pessoa entrevistada N.T.29 Espancamento da gos e familiares, trabalho ou estudos, profissão, inte-
planta dos pés, vide infra.
às oito horas da tarde merece resses, planos futuros e utilização de álcool ou
tanta atenção como uma pessoa vista às oito horas drogas. Deverá também ser obtida informação que
da manhã. Os investigadores deverão assegurar-se permita estabelecer o perfil psicossocial da pessoa
de que dispõem de tempo suficiente e não se posterior à detenção. Caso a pessoa se encontre
sobrecarregam a si próprios com trabalho. É ainda detida, será suficiente fazer um historial
injusto que a entrevista à pessoa das oito da noite mais resumido do seu percurso pessoal, incidente
(que além do mais aguardou durante todo o dia para sobre a profissão e habilitações literárias. Inter-
poder contar a sua história) seja encurtada por rogue também acerca de quaisquer medicamentos
motivos de tempo. Da mesma forma, o décimo que o detido tome por receita médica; esta infor-
nono relato de falangaN.T.29 merece tanta atenção mação é particularmente importante porque o
como o primeiro. Os reclusos que raramente con- detido pode ser privado dessa medicação, com
tactam pessoas do exterior podem nunca ter tido consequências graves para a sua saúde. É impor-
a oportunidade de contar a alguém o seu caso. tante obter dados acerca das actividades políticas,
É uma ideia errada pensar que os reclusos falam convicções e opiniões da pessoa na medida em
constantemente uns com os outros acerca das que essa informação pode ajudar a explicar as cau-
suas experiências de tortura. Os reclusos que não sas da detenção ou tortura, mas será preferível
fornecem qualquer elemento novo à investigação formular questões indirectas, perguntando à pes-
merecem tanto tempo como os restantes. soa do que foi acusada ou porque pensa ter sido
detida ou torturada.
d. Técnicas de interrogatório
2. RESUMO DA DETENÇÃO E DOS MAUS TRATOS
134. Existem algumas regras básicas que deverão
ser respeitadas (vide capítulo III, secção C.2, g)). 136. Antes de entrar nos detalhes do caso, o
A obtenção de informação é certamente impor- investigador deverá procurar obter um resumo do
tante, mas a pessoa entrevistada é-o ainda mais e mesmo, incluindo datas, locais e duração da
ouvir é mais importante do que fazer perguntas. detenção, frequência e duração das sessões de
Se o entrevistador se limita a formular perguntas, tortura. Este resumo permitirá utilizar o tempo
apenas obterá respostas. Para o recluso, pode ser da forma mais eficaz. Em determinados casos
mais importante falar acerca da família do que da em que as vítimas são torturadas em diversas
tortura. Há que ter em conta este aspecto, pelo que ocasiões, podem lembrar-se do que se passou
deverá ser disponibilizado algum tempo para a mas não se conseguem recordar do local e
discussão de questões pessoais. A tortura, parti- momento exacto de cada uma das sessões de tor-
cularmente de natureza sexual, é um assunto tura. Nestas circunstâncias, pode ser aconselhá-
muito íntimo e poderá não ser abordado antes da vel solicitar uma descrição dos factos por
segunda visita ou mesmo mais tarde. Os indivíduos métodos de tortura e não a sequência de aconte-
não devem ser forçados a falar sobre qualquer cimentos durante cada um dos incidentes de
forma de tortura se não se sentirem à-vontade detenção. Da mesma forma, ao ouvir um relato
para o fazer. convém muitas vezes determinar, tanto quanto
possível, “o que aconteceu onde”. Os locais de
e. Documentação dos antecedentes detenção são administrados por diferentes forças
de segurança, corpos policiais ou forças armadas,
1. PERFIL PSICOSSOCIAL E SITUAÇÃO ANTERIOR e os acontecimentos ocorridos em cada local
À DETENÇÃO podem dar uma ideia global do sistema de tortura.
A determinação dos locais onde a tortura acon-
135. Caso a alegada vítima de tortura já não se teceu pode ajudar a reconstruir as histórias de
encontre detida, o examinador deverá interrogá-la várias pessoas diferentes, o que poderá facilitar
acerca da sua vida quotidiana, relações com ami- consideravelmente todo o inquérito.

Considerações gerais para as entrevistas


* 41
3. CIRCUNSTÂNCIAS DA DETENÇÃO os factos. A resposta negativa a perguntas sobre
diversas formas de tortura pode, contudo, ajudar
137. Podem colocar-se as seguintes questões: Que a estabelecer a credibilidade do testemunho. As
horas eram? Onde estava? O que estava a fazer? questões devem ser formuladas de forma a obter
Quem estava no local? Descreva a aparência das pes- um relato coerente do sucedido. Eis algumas
soas que efectuaram a detenção. Eram militares ou sugestões de perguntas a colocar: Onde ocorreram
civis, fardados ou à civil? Que tipo de armas trans- os maus tratos, quando e durante quanto tempo?
portavam? O que foi dito? Houve testemunhas? Foi Foi vendado? Antes de passar à descrição dos
um caso de captura oficial, detenção administra- métodos empregues, tome nota das pessoas pre-
tiva ou desaparecimento? Foi usada violência ou sentes (com os respectivos nomes e posições).
proferidas ameaças? Houve alguma interacção Descreva a sala ou outro local em causa. Que
com membros da família? Tome nota da utilização objectos viu? Se possível, descreva em detalhe
de meios de restrição de movimentos ou vendas nos cada um dos objectos de tortura; no caso de tor-
olhos, meios de transporte, local de destino e tura eléctrica, indique a voltagem, aparelho,
nomes dos funcionários, se estes elementos forem número e forma dos eléctrodos. Inquira acerca do
do conhecimento da pessoa. vestuário usado, se alguém se despiu ou mudou
de roupa. Tome nota de tudo quanto tenha sido dito
4. LOCAL E CONDIÇÕES DE DETENÇÃO durante o interrogatório, nomeadamente injúrias
e insultos à vítima e conversas dos torcionários
138. Inclua aqui o acesso da pessoa e sua descri- entre si.
ção da comida e bebidas disponíveis, instalações
sanitárias, iluminação, temperatura e ventilação. 140. Para cada forma de maus tratos, tome nota
Recolha também informação acerca de quaisquer dos seguintes pormenores: posição do corpo, imo-
contactos com a família, advogados ou profis- bilização, natureza do contacto, incluindo a
sionais de saúde, condições de sobrelotação ou deten- respectiva duração, frequência e localização ana-
ção em regime de isolamento, dimensões do local tómica, bem como a zona do corpo afectada.
de detenção e quaisquer pessoas que possam con- Houve alguma hemorragia, traumatismo craniano
firmar a situação de detenção. Pode perguntar-se ou perda de consciência? Em caso de perda de
o seguinte: o que aconteceu em primeiro lugar? Para consciência, deveu-se a traumatismo craniano,
onde foi levado? Houve algum processo de iden- asfixia ou dor? Deve-se perguntar também à pes-
tificação (registo de dados pessoais, recolha de soa como se sentia no fim da “sessão”. Podia
impressões digitais, fotografias)? Foi-lhe pedido andar? Foi preciso ajudá-lo ou carregá-lo de volta
que assinasse alguma coisa? Descreva as condições à cela? Conseguia levantar-se no dia seguinte?
da cela ou quarto (tome nota do respectivo tama- Durante quanto tempo ficaram os pés inchados?
nho, presença de outras pessoas, iluminação, ven- Este género de perguntas permite obter uma
tilação, temperatura, presença de insectos ou noção mais completa do acto de tortura do que o
roedores, descrição da cama e acesso a comida, água simples enunciado de métodos de tortura even-
e casas de banho). O que ouviu, viu e cheirou? Teve tualmente utilizados. O testemunho deverá dar
algum contacto com pessoas do exterior ou acesso conta da data da tortura posicional, quantas vezes
a cuidados de saúde? Qual era a disposição física e durante quantos dias foi a pessoa sujeita a tor-
do local onde ficou detido? tura, duração de cada uma das sessões e tipo de sus-
pensão (linear-invertida, coberto com uma manta
5. MÉTODOS DE TORTURA E MAUS TRATOS ou pano grosso, ou atado directamente com uma
corda, com peso sobre as pernas ou em estira-
139. Ao recolher informação sobre tortura e maus mento) ou posição utilizada. Nos casos de tortura
tratos, deve ter-se cuidado ao sugerir formas de por suspensão, há que apurar também o tipo de
maus tratos a que a pessoa possa ter sido sujeita, material usado (corda, arame e tecido deixam mar-
uma vez que a pessoa pode ser tentada a distorcer cas diferentes na pele, ou mesmo nenhumas,

42
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
depois da suspensão). O examinador deverá ter 142. As incongruências no relato da pessoa
presente que tudo quanto a vítima diga acerca da podem dever-se a qualquer destes factores ou a
duração da sessão de tortura é subjectivo e pode não todos eles. Se possível, o investigador deve pedir
estar correcto, uma vez que a sujeição a tortura faz novos esclarecimentos. Se isto não for possível,
geralmente perder a noção do tempo e do espaço. deverá procurar outras provas que confirmem ou
Foi a pessoa sexualmente molestada de qualquer infirmem a história. Um conjunto de elementos
forma? Tente saber o que foi dito no decorrer da coerentes em apoio das alegações da pessoa pode
sessão de tortura. Por exemplo, ao torturar a corroborar e esclarecer a história. Embora o indi-
vítima com choques eléctricos nos órgãos genitais, víduo possa não estar em condições de fornecer
os autores do acto dizem muitas vezes à vítima que todos os pormenores pretendidos pelo investiga-
ela nunca mais vai poder ter relações sexuais nor- dor, como a data, hora e frequência dos actos de
mais ou algo semelhante. Para mais pormenores tortura, e a exacta identidade dos seus autores, ao
quanto às avaliações de casos de alegada tortura longo do tempo do seu testemunho acabarão por
sexual, incluindo a violação, vide capítulo V, sec- emergir e articular-se os elementos essenciais do
ção D.8. caso.

f. Avaliação dos antecedentes g. Análise dos métodos de tortura

141. Os sobreviventes de actos de tortura podem 143. Depois de ouvido o relato detalhado dos
ter dificuldade em contar os detalhes específicos acontecimentos, é aconselhável passar em revista
do seu caso por diversos motivos importantes, outros métodos de tortura a que a pessoa possa ter
nomeadamente os seguintes: sido sujeita. É fundamental conhecer os métodos
de tortura utilizados na região em causa e, em
a) Factores que operaram durante o próprio função deles, adaptar as directivas locais. O inter-
acto de tortura, tais como o facto de a vítima ter tido rogatório a respeito de determinadas formas espe-
os olhos vendados, estar drogada ou ter sofrido per- cíficas de tortura pode ser útil caso:
das de consciência;
b) Receio de se colocar a si própria ou a outros a) Os sintomas psicológicos toldem a memória;
em perigo; b) Exista uma diminuição das capacidades sen-
c) Falta de confiança no clínico que procede ao soriais associada ao trauma;
exame ou no intérprete; c) Possam ter ocorrido lesões cerebrais orgâni-
d) Impacto psicológico da tortura e trauma – por cas;
exemplo, crises de hiperemotividade e perdas de d) O testemunho esteja limitado por factores
memória provocadas por perturbações mentais educacionais ou culturais.
relacionadas com o trauma, como a depressão ou
perturbação de stress pós-traumático; 144. A distinção entre tortura física e psicológica
e) Perdas de memória de origem neuropsi- é artificial. Por exemplo, a tortura sexual causa
quiátrica provocadas por pancadas na cabeça, sufo- geralmente sintomas físicos e psicológicos,
cação, situações de quase afogamento ou privação mesmo que não tenha havido agressão física. A lista
de alimentos; de métodos de tortura que se segue foi elaborada
f) Mecanismos de defesa psicológica, como a a fim de exemplificar alguns tipos possíveis de
negação dos acontecimentos ou 72 R.F. Mollica e Y. Caspi- maus tratos. Não deverá ser utilizada pelos inves-
-Yavin, “Overview: the
o evitar falar deles; assessment and diagnosis of tigadores como lista de controlo ou formulário
torture events and
g) Sanções impostas por tra- symptoms” [Em português: para a listagem de métodos de tortura num rela-
Visão geral. a avaliação e o
dições culturais que só permitem diagnóstico de incidentes e tório. O método de fazer listas pode ser contra-
sintomas de tortura], Tor-
que as situações traumáticas ture and Its Consequen- producente, uma vez que o quadro clínico global
ces, Current Treatment
sejam reveladas em ambientes Approaches, M. Basog lu, |
v
resultante da tortura é muito mais complexo do que
Cambridge, Cambridge Uni-
de absoluta confidencialidade72. versity Press, 1992, pp. 38 a 55. a mera soma de lesões produzidas pelos métodos

Considerações gerais para as entrevistas


* 43
constantes de uma lista. De facto, a experiência manipulação da iluminação da cela, abuso de
demonstra que, quando confrontados com essa necessidades fisiológicas, restrições ao sono, ali-
forma de proceder, os autores de actos de tortura mentos, água, instalações sanitárias, banhos, acti-
tendem a concentrar-se num dos métodos indica- vidades motoras, cuidados de saúde, contactos
dos e a discutir se o mesmo constitui ou não uma sociais, isolamento dentro da prisão, perda de con-
forma de tortura. Eis apenas alguns dos métodos tacto com o mundo exterior (as vítimas de tortura
de tortura a ter em conta: são muitas vezes isoladas para evitar o estabeleci-
mento de laços com outras pessoas e a identifica-
a) Traumatismos provocados por contusões, ção recíproca, bem como para fomentar os
tais como socos, pontapés, bofetadas, golpes, aba- vínculos traumáticos com os torcionários);
nões e agressões com arames ou objectos con- o) Humilhações, tais como maus tratos verbais
tundentes, bem como a queda da vítima; e desempenho de actos humilhantes;
b) Tortura posicional, com utilização da sus- p) Ameaças de morte, violência contra a famí-
pensão, estiramento dos membros, imobilização lia, novos actos de tortura, prisão e simulação de
prolongada ou posturas forçadas; execuções;
c) Queimaduras com cigarros, instrumentos q) Ameaças de ataques por animais, tais como
em brasa, líquidos a ferver ou substâncias cáusticas; cães, gatos, ratos ou escorpiões;
d) Choques eléctricos; r) Técnicas psicológicas que visam destruir a per-
e) Asfixia, com utilização de métodos húmidos sonalidade do indivíduo, incluindo traições força-
ou secos, tais como o afogamento, sufocação, das, consciencialização da sua impotência,
estrangulamento ou uso de substâncias químicas; exposição a situações ambíguas ou mensagens
f) Tortura por pressão, como o esmagamento contraditórias;
dos dedos ou a utilização de rolos pesados para s) Violação de tabus;
magoar as coxas ou as costas; t) Coacção comportamental, nomeadamente
g) Lesões perfurantes, como punhaladas, feridas através da imposição de práticas contrárias à reli-
de bala ou a introdução de arames debaixo das gião da pessoa (por exemplo, obrigar um muçul-
unhas; mano a comer carne de porco) ou do facto de
h) Exposição química ao sal, pimenta e gasolina, obrigar o indivíduo a infligir tortura ou outros
entre outras substâncias (em feridas ou cavidades maus tratos a terceiros, a destruir bens ou a trair
corporais); alguém, colocando essa pessoa em risco;
i) Violência sexual sobre os órgãos genitais, u) Obrigar a pessoa a assistir a actos de tortura
abusos sexuais, introdução de objectos, violação; ou outras atrocidades cometidas contra outro indi-
j) Fracturas ou remoção traumática de extre- víduo.
midades ou membros;
k) Amputação cirúrgica de extremidades ou h. Risco de re-traumatização das pessoas
membros, remoção cirúrgica de órgãos; interrogadas
l) Tortura farmacológica por administração de
doses tóxicas de sedativos, neurolépticos e subs- 145. Tendo em consideração que a natureza e gra-
tâncias paralisantes, entre outras; vidade das lesões pode variar em função dos méto-
m) Condições de detenção cruéis ou degradan- dos de tortura utilizados, os dados recolhidos na
tes, por exemplo celas pequenas ou sobrelotadas, sequência da definição do historial clínico e obser-
regime de isolamento, higiene deficiente, negação vação do indivíduo devem ser avaliados junta-
do acesso a instalações sanitárias, alimentação e mente com os resultados dos exames laboratoriais
bebidas insuficientes ou contaminadas, exposição e radiológicos adequados. É fundamental infor-
a temperaturas extremas, ausência de privacidade mar a pessoa e explicar-lhe cada uma das etapas
e nudez forçada; do exame médico, bem como dar-lhe a conhecer
n) Privação dos estímulos sensoriais normais, em detalhe os métodos laboratoriais utilizados
tais como o som, luz, noção do tempo, isolamento, (vide capítulo VI, secção B. a)).

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* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
146. A presença de sequelas psicológicas nos insultuoso. Caso a tortura sexual seja um dos abu-
sobreviventes de tortura, em particular diversas sos sofridos, a vítima pode sentir-se irremedia-
manifestações de stress pós-traumático, pode levar velmente estigmatizada e manchada na sua
a que a vítima receie reviver a sua experiência de integridade moral, religiosa, social ou psicológica.
tortura durante a entrevista, exame médico ou tes- A manifestação de um conhecimento respeitoso
tes laboratoriais. É importante explicar à pessoa destes condicionalismos, bem como o esclareci-
antecipadamente o que se vai fazer e o que espe- mento quanto às garantias de confidencialidade e
rar do exame. As pessoas que sobrevivem à tortura seus limites é, assim, de importância fundamen-
e permanecem no seu país podem ser muito des- tal para que a entrevista seja bem conduzida.
confiadas e ter grande receio de voltar a ser cap- O entrevistador deverá avaliar até que ponto será
turadas, sendo muitas vezes forçadas a passar à necessário continuar a insistir no fornecimento de
clandestinidade para evitar nova detenção. Aque- mais pormenores sobre o caso para que o relató-
les que se exilam ou refugiam noutro país podem rio seja eficaz em tribunal, sobretudo quando a
deixar para trás todas as suas raízes: língua vítima mostra sinais evidentes de tensão durante
materna, cultura, família, amigos, trabalho e tudo a entrevista.
o que lhes é familiar.
i. Utilização de intérpretes
147. As reacções pessoais da vítima ao entrevis-
tador (e ao intérprete, caso seja utilizado) podem 149. Em muitos casos, é necessário recorrer a um
influenciar o interrogatório e, consequentemente, intérprete para que o entrevistador possa com-
os resultados do inquérito. Da mesma forma, as preender as declarações da testemunha. Ainda que
reacções pessoais do entrevistador perante a entrevistador e entrevistado possam entender-se,
vítima podem influenciar o interrogatório e os com limitações, numa língua comum, a informa-
resultados do inquérito. É importante analisar as ção procurada é frequentemente demasiado
barreiras que estas reacções pessoais colocam a uma importante para que se possa arriscar incorrer nos
comunicação eficaz e à compreensão dos factos no erros inerentes a uma compreensão incompleta do
âmbito do inquérito. O investigador deve manter que é dito por qualquer um deles. Os intérpretes
os processos de entrevista e investigação sob aná- devem ser alertados de que tudo quanto oiçam e
lise permanente, em consulta e discussão com a cuja interpretação procedam nas entrevistas é
colegas possuidores de experiência sólida nas estritamente confidencial. São os intérpretes que
áreas da avaliação psicológica e do tratamento de obtêm toda a informação em primeira mão, sem
vítimas de tortura. Este tipo de supervisão pelos qualquer censura. Por isso, devem ser dadas
pares pode ser eficaz para evitar a interferência de garantias aos depoentes de que nem o investiga-
preconceitos e barreiras à comunicação nos pro- dor nem o intérprete utilizarão a informação
cessos de entrevista e investigação, bem como obtida de forma indevida, de qualquer forma (vide
para garantir a obtenção de informação precisa capítulo VI, secção C.2).
(vide capítulo VI, secção C.2).
150. Quando os intérpretes não são profissionais,
148. Apesar de todas as precauções, os exames existe sempre o risco de que o investigador perca
físicos e psicológicos, pela sua própria natureza, o controlo do interrogatório. Os indivíduos podem
podem provocar novos traumas na vítima, cau- embrenhar-se numa conversa com alguém que
sando ou exacerbando sintomas de stress pós-trau- fala a sua língua, e a entrevista afastar-se do seu
mático ao evocar sensações e memórias dolorosas objecto principal. Há também o perigo de um
(vide capítulo VI, secção B.2). As perguntas rela- intérprete tendencioso poder influenciar as res-
tivas a distúrbios psíquicos e, especialmente, ques- postas da pessoa ou distorcer as mesmas. A utili-
tões sexuais, são consideradas tabus na maioria das zação de intérpretes implica inevitavelmente a
sociedades tradicionais, sendo o interrogatório perda de alguma informação, por vezes impor-
sobre tais matérias considerado desrespeitoso ou tante, outras não. Em casos extremos, pode

Considerações gerais para as entrevistas


* 45
mesmo ser necessário que o investigador se abs- lhidos pelo detido por serem alguém da sua con-
tenha de tomar notas durante a entrevista e divida fiança. Nos casos de pessoas em liberdade, aplicam-
a mesma em diversas sessões de curta duração, a -se muitas destas regras, mas poderá ser mais fácil
fim de ter tempo para transcrever os aspectos mais levar alguém (uma pessoa local) do exterior, o que
significativos do que foi dito no intervalo entre raramente é possível em ambientes prisionais.
sessões.
j. Questões de género
151. Os investigadores devem sempre lembrar-
-se de falar para a pessoa e manter contacto visual 153. Em termos ideais, a equipa de investigação
com ela, mesmo se esta tiver uma tendência natu- deverá incluir especialistas de ambos os sexos,
ral para falar para o intérprete. É conveniente uti- permitindo que a alegada vítima de tortura esco-
lizar a segunda pessoa no enunciado das questões lha o sexo do seu entrevistador e, se necessário, do
(por exemplo, “o que fez a seguir”) e não a terceira intérprete. Este aspecto é particularmente impor-
(“pergunte-lhe o que aconteceu a seguir”). Acon- tante caso se trate de mulheres detidas em contextos
tece com demasiada frequência que os inves- onde se sabe que a violação acontece, mesmo que
tigadores aproveitem os momentos em que o a mulher em causa não se tenha, até àquele
intérprete está a traduzir as perguntas ou o entre- momento, queixado de tal abuso. Mesmo que não
vistado a responder, para tirar notas. Alguns inves- tenha ocorrido qualquer agressão de natureza
tigadores não parecem estar a ouvir, uma vez que sexual, a maior parte das formas de tortura tem uma
o diálogo decorre numa língua que não com- dimensão sexual (vide capítulo V, secção D.8).
preendem. Isto deve ser evitado, porque é funda- O trauma sofrido poderá ser reavivado caso a mulher
mental, não apenas ouvir o que é dito, mas se veja na contingência de ter de descrever o que
também observar a linguagem corporal, expressões se passou a uma pessoa fisicamente semelhante aos
faciais, tom de voz e gestos do entrevistado para seus torcionários, que serão inevitavelmente, na sua
obter uma percepção completa do caso. Os inves- maioria ou totalidade, homens. Em determinadas
tigadores deverão familiarizar-se com o vocabulá- culturas, será impensável que um investigador do
rio relativo à tortura na língua da pessoa para sexo masculino interrogue uma vítima do sexo
demonstrar que conhecem o assunto. A credibili- feminino, e isto deve ser respeitado. Contudo, na
dade do investigador sairá reforçada se, ao ouvir um maior parte das culturas, caso exista apenas um
termo relativo a tortura, como submarino ou dar- médico do sexo masculino disponível, muitas
mashakra, reagir em vez de permanecer impassível. mulheres acharão preferível falar com ele do que
com uma mulher de outra área, a fim de obter os
152. Nas visitas a reclusos, é preferível nunca uti- conselhos e a informação médica de que necessi-
lizar intérpretes locais se existir a possibilidade tam. Nestas situações, é indispensável que o intér-
de que possam suscitar a desconfiança dos entre- prete, se necessário, seja uma mulher. Algumas
vistados. Pode também ser injusto para os intér- pessoas podem também preferir que o intérprete
pretes locais, susceptíveis de vir a ser interrogados não pertença à comunidade local, tanto para que
pelas autoridades locais depois da visita ou sub- a sua presença não venha a relembrar o caso de tor-
metidos a outro tipo de pressão, o seu envolvi- tura como por eventuais receios de quebra de
mento com presos políticos. É sempre preferível sigilo (vide capítulo IV, secção I). Se não for neces-
recorrer a intérpretes independentes, claramente sário recorrer a um intérprete, um elemento do sexo
vindos de fora, sem vínculos à comunidade local. feminino da equipa de investigação deverá estar pre-
A segunda melhor solução, depois do domínio da sente, pelo menos durante o exame físico e, se a
língua local, é trabalhar com um intérprete expe- paciente assim o desejar, durante toda a entre-
riente e competente, sensível ao problema da tor- vista.
tura e à cultura local. Em regra, não deve
recorrer-se a outros reclusos para fazer interpre- 154. Caso a vítima seja um homem vítima de
tação, a menos que seja óbvio que tenham sido esco- abuso sexual, a situação é mais complexa porque,

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* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
também ele, terá sido abusado maioritária ou prisão podem provocar síndromes de carência
exclusivamente por homens. Assim, alguns vitamínica.
homens preferirão relatar as suas experiências a
mulheres devido ao temor que têm de outros 157. Certas formas de tortura estão fortemente
homens, ao passo que outros não quererão discu- associadas a determinadas sequelas em particular.
tir questões tão pessoais à frente de uma mulher. Por exemplo, as pancadas na cabeça com perda de
conhecimento são extremamente importantes
k. Encaminhamento para outros serviços para o diagnóstico clínico de disfunções cerebrais
orgânicas. As sevícias sexuais estão frequente-
155. Sempre que possível, os exames médico- mente associadas a disfunções sexuais.
-legais com vista à documentação da tortura deve-
rão ser acompanhados pela avaliação de outras 158. É importante não esquecer que os torcioná-
necessidades que a pessoa possa sentir, daí a con- rios podem tentar esconder os seus actos. Para
veniência de a encaminhar para outros serviços, evitar as marcas físicas dos espancamentos, a tor-
nomeadamente de medicina especializada, psico- tura é muitas vezes praticada com objectos largos
logia, fisioterapia ou aconselhamento e apoio e contundentes, sendo as vítimas cobertas com
social. Os investigadores devem conhecer os ser- tapetes ou calçadas, no caso da falanga, para dis-
viços de reabilitação e apoio existentes a nível tribuir a força dos golpes. A tortura por estira-
local. O médico não deve hesitar em insistir na rea- mento, pressão ou asfixia tem também por
lização de qualquer consulta ou exame que consi- objectivo causar a máxima dor e sofrimento com
dere necessário no âmbito da avaliação clínica. Na o mínimo de vestígios. Pela mesma razão, por
recolha de provas médicas de tortura e maus tra- vezes utilizam-se toalhas molhadas na tortura por
tos, os médicos continuam vinculados às suas choques eléctricos.
obrigações éticas e deontológicas. As pessoas que
pareçam necessitadas de cuidados médicos ou psi- 159. Do relatório deverão constar as qualificações
cológicos adicionais devem ser encaminhadas e a experiência do investigador. Sempre que pos-
para os serviços competentes. sível, deverá ser indicado o nome da testemunha
ou paciente. Se isto implicar um risco significativo
l. Interpretação dos factos e conclusões para a pessoa em causa, deverá ser usado um sis-
tema de identificação que permita à equipa de
156. Os sintomas físicos da tortura podem variar investigação, e só a ela, relacionar a pessoa com os
em função da intensidade, frequência e duração dos factos enunciados. O relatório deverá também
maus tratos, capacidade da vítima para se proteger identificar quaisquer pessoas presentes na sala
a si própria e condições físicas da pessoa antes do durante toda a entrevista ou parte dela. Deverá
caso. Algumas formas de tortura não deixam ves- descrever em detalhe toda a história, evitando os
tígios físicos, mas podem dar origem a sintomas depoimentos indirectos e incluir, se necessário,
associados a outros processos. Por exemplo, as as conclusões da equipa de investigação. O relatório
pancadas na cabeça que provoquem perda de deverá impreterivelmente ser assinado e datado,
conhecimento podem causar epilepsia pós-trau- nele devendo também ser incluída qualquer decla-
mática ou disfunções cerebrais orgânicas. Condi- ração exigida pela jurisdição a que é destinado
ções deficientes de alimentação e higiene na (vide anexo IV).

Considerações gerais para as entrevistas


* 47
cap
ítu
lo

*05
Indícios físicos da tortura

160. Os depoimentos da vítima e de testemunhas a realização do exame médico-legal relata todos


são elementos essenciais à documentação da tor- os factos materiais. Constitui responsabilidade do
tura. A existirem inícios físicos, estes constituem médico detectar e relatar quaisquer indícios mate-
dados importantes para a confirmação de tais riais que considere relevantes, mesmo que tais
depoimentos. Contudo, mesmo na ausência de indícios possam ser considerados irrelevantes ou
indícios físicos, não deve presumir-se que a tortura contrários aos interesses da parte que requer o
não ocorreu, uma vez que determinados actos de exame. Os elementos indicativos da prática da tor-
violência contra pessoas muitas vezes não deixam tura ou outras formas de maus tratos não devem
quaisquer marcas ou cicatrizes permanentes. jamais ser omitidos do relatório médico-legal,
sejam quais forem as circunstâncias.
161. Uma avaliação médica para fins legais deverá
ser conduzida com objectividade e imparcialidade, a. Estrutura das entrevistas
com base nos conhecimentos clínicos e experiên-
cia profissional do médico em causa. A obrigação 162. Os comentários seguintes aplicam-se sobre-
ética de fazer o bem exige que o médico dê provas tudo às entrevistas a pessoas que já não se encon-
do maior rigor e imparcialidade, assim promo- tram detidas. O local escolhido para a entrevista e
vendo e consolidando a reputação de toda a classe. exame deve ser tão seguro e confortável quanto pos-
Sempre que possível, o pessoal clínico que examina sível. Deve ser disponibilizado tempo suficiente para
os detidos deve receber formação específica no uma entrevista e exame aprofundados. Uma con-
domínio da documentação legal da tortura e sulta de duas a quatro horas pode ser insuficiente
outras formas de maus tratos físicos e psicológi- para a avaliação dos indícios físicos e psicológicos
cos. Deverão conhecer as condições prisionais e os da tortura. Para além disso, determinadas variáveis
métodos de tortura utilizados na região onde o específicas da situação, com a dinâmica da entre-
paciente esteve detido, bem como as sequelas vista, sensação de impotência face à devassa da sua
habituais da tortura. O relatório médico deve ser intimidade, medo de novas perseguições, vergonha
factual e cuidadosamente redigido, devendo evitar- pelo sucedido e sentimentos de culpa do sobrevi-
-se a gíria médica. Toda a terminologia médica vente podem, em qualquer momento da entrevista,
deverá ser definida em termos que permitam a sua simular as circunstâncias da experiência de tortura.
compreensão por leigos. O médico não deverá par- Este fenómeno pode aumentar a ansiedade do
tir do princípio de que o funcionário que solicita paciente e a sua resistência quanto a revelar a

Indícios físicos da tortura


* 49
informação pertinente. Pode ser necessário mar- a pessoa se encontrar detida, o relatório deverá
car uma segunda, e mesmo uma terceira, con- ser assinado pelo seu advogado e por outro pro-
sulta para completar a avaliação. fissional de saúde.

163. A confiança é fundamental para se conse- 165. Os pacientes podem temer que a informação
guir obter um relato fidedigno de uma experiên- revelada no âmbito de um exame médico não
cia de tortura. Para ganhar a confiança de alguém possa ser mantida fora do alcance das autoridades
que foi vítima de tortura ou outras formas de que os perseguem. A desconfiança e o medo
maus tratos, há que saber escutar de forma activa podem ser particularmente agudos nos casos em
e demonstrar rigor na comunicação e cortesia, que médicos ou outros profissionais de saúde
bem como uma empatia e honestidade genuínas. tenham participado nos actos de tortura. Em mui-
Os médicos deverão ser capazes de criar um clima tas circunstâncias, o médico que procede ao exame
de confiança que permita a revelação de factos será membro da etnia ou cultura maioritária, ao
cruciais, se bem que por vezes muito dolorosos e passo que o paciente, na situação e local da entre-
humilhantes. É importante ter consciência de que vista, pertencerá provavelmente a um grupo ou
estes factos constituem por vezes segredos íntimos cultura minoritária. Esta dinâmica de desigual-
que a pessoa pode estar a revelar naquele dade pode reforçar a sensação, real ou imaginária,
momento pela primeira vez. Para além de provi- de desequilíbrio de poder e acentuar a eventual sen-
denciar por um ambiente confortável, tempo sufi- sação de medo, desconfiança e submissão forçada
ciente para a consulta, bebidas refrescantes e do paciente.
acesso a instalações sanitárias, os médicos devem
explicar aos pacientes aquilo que estes devem 166. A empatia e o contacto humano podem ser
esperar da avaliação. O clínico deve ter cuidado com aquilo que de mais importante o recluso recebe do
o tom, formulação e sequência das questões (as per- investigador. A investigação em si mesma pode não
guntas sobre temas sensíveis apenas devem ser trazer qualquer benefício específico para a pessoa
colocadas depois de estabelecido um certo grau de entrevistada, uma vez que, na maior parte dos
confiança) e devem reconhecer ao paciente o casos, a tortura terá já terminado. A parca conso-
direito de fazer uma pausa se assim o desejar ou lação de saber que a informação pode servir para
de se recusar a responder a qualquer questão. evitar casos futuros poderá, contudo, ser grande-
mente reforçada caso o investigador estabeleça
164. Os médicos e intérpretes têm a obrigação de uma sincera empatia com a vítima. Embora este
guardar sigilo quanto à informação recolhida e de aspecto pareça óbvio, muitas vezes os investigadores
a revelar apenas com o consentimento do paciente no terreno, ao visitar estabelecimentos prisionais,
(vide capítulo III, secção C). Cada pessoa deve ser estão tão preocupados em obter informação que se
examinada individualmente e em privado. Deve ser esquecem de estabelecer empatia com as pessoas
informada de quaisquer limites à confidenciali- entrevistadas.
dade do exame eventualmente impostos pelas
autoridades administrativas ou judiciais. O objec- b. Historial médico
tivo da entrevista deve ser claramente explicado à
pessoa. Os médicos devem assegurar-se de que o 167. Obtenha um historial médico completo,
consentimento se baseia numa informação cor- incluindo informação sobre quaisquer problemas
recta e na clara compreensão das potenciais con- médicos, cirúrgicos e psiquiátricos anteriores.
sequências positivas e negativas da avaliação Certifique-se de que regista todas as lesões sofri-
médica, e é prestado voluntariamente, sem qual- das pela pessoa antes da detenção e suas possíveis
quer coacção de terceiros, em particular autorida- sequelas. Evite perguntas tendenciosas. Estruture
des policiais ou judiciais. A pessoa tem o direito as perguntas de forma a conseguir obter um relato
de recusar a avaliação. Neste caso, o clínico deverá aberto e cronológico das experiências vividas
apurar o motivo de tal recusa. Para além disso, se durante o período de detenção.

50
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
168. Para estabelecer uma correlação entre as prá- sidade, frequência e duração de cada sintoma.
ticas regionais de tortura e as alegações concretas Deverá ser descrito o desenvolvimento de quaisquer
de maus tratos, pode ser útil obter dados históri- lesões cutâneas subsequentes, e indicado o facto de
cos específicos. Por exemplo, convém conhecer terem ou não deixado cicatrizes. Pergunte qual o
descrições de instrumentos de tortura, posições estado de saúde do paciente no momento da liber-
corporais, métodos de imobilização e lesões ou tação: podia andar ou estava acamado? Se estava aca-
incapacidades agudas ou crónicas, bem como mado, por quanto tempo? Quanto tempo levaram
qualquer informação susceptível de identificar os as feridas a cicatrizar? Estavam infectadas? Que
autores dos actos e os locais de detenção. Embora tratamento recebeu? Foi receitado por um médico
seja essencial obter informação precisa acerca das ou curandeiro tradicional? Lembre-se de que a pró-
experiências vividas pelo sobrevivente de tortura, pria capacidade da pessoa para responder a estas per-
este deve exprimir-se livremente, usando as suas guntas pode ter sido comprometida pelo acto de
próprias palavras e evocando os acontecimentos à tortura ou suas sequelas, devendo registar-se este
sua maneira. Uma pessoa que sobreviva a uma facto.
experiência de tortura pode ter dificuldades em
exprimir por palavras as suas próprias experiências 2. SINTOMAS CRÓNICOS
e sintomas. Em certos casos, pode ser conveniente
recorrer a listagens ou questionários enunciati- 170. Peça informação sobre eventuais distúrbios
vos de acontecimentos traumáticos e sintomas. físicos que o indivíduo acredite estarem associados
Se o investigador considerar necessário recorrer a à tortura ou aos maus tratos. Tome nota da gravi-
estas listagens ou questionários enunciativos de dade, frequência e duração de cada sintoma e de
acontecimentos traumáticos e sintomas, existem qualquer tipo de incapacidade que lhe possa estar
diversos modelos disponíveis, embora nenhum associada, bem como da necessidade de tratamento
especificamente destinado a vítimas de tortura. médico ou psicológico. Mesmo que, decorridos
Todas as queixas de um sobrevivente de tortura são meses ou anos, já não se observem sintomas das
significativas e devem ser incluídas no relatório, lesões agudas, podem subsistir algumas sequelas
mesmo que não revelem qualquer ligação com os físicas, como cicatrizes resultantes de queimaduras
indícios físicos observados. As incapacidades e eléctricas ou térmicas, deformidades ósseas, cica-
sintomas crónicos e agudos associados a formas trização incorrecta de fracturas, lesões dentárias,
específicas de maus tratos, e subsequentes pro- perda de cabelo e miofibroses. Entre as queixas
cessos de cura, devem ser documentados. somáticas mais frequentes contam-se as dores de
cabeça, dores nas costas, problemas gastrointesti-
1. SINTOMAS AGUDOS nais, disfunções sexuais e dores musculares. São sin-
tomas psicológicos comuns, por exemplo, os
169. Deve ser pedido ao indivíduo que descreva estados depressivos, ansiedade, insónias, pesadelos,
quaisquer lesões que possam ter resultado dos ataques de pânico e dificuldades de memória (vide
métodos específicos utilizados para infligir os ale- capítulo VI, secção B.2).
gados maus tratos. Por exemplo, hemorragias,
escoriações, tumefacções, feridas abertas, lacerações, 3. RESUMO DA ENTREVISTA
fracturas, deslocações de membros, distensões
musculares, hemoptises, pneumotórax, perfura- 171. As vítimas de tortura podem apresentar
ções do tímpano, lesões do sistema genito-urinário, lesões substancialmente diferentes das resultantes
queimaduras (cor, bolhas e necroses conforme o de outros tipos de trauma. Embora algumas lesões
grau da queimadura), lesões causadas por choques agudas possam ser típicas de certos tipos de tor-
eléctricos (tamanho e número de lesões, respectiva tura, a maioria delas cicatriza num período de seis
cor e características superficiais), lesões químicas semanas após o acto, não deixando quaisquer mar-
(cor, sinais de necrose), dor, entorpecimento, obs- cas ou, no máximo, deixando marcas atípicas. Isto
tipação e vómitos. Deverá tomar-se nota da inten- acontece frequentemente quando são utilizadas

Indícios físicos da tortura


* 51
técnicas destinadas a evitar ou limitar os sinais quer insuficiências deverão ser indicadas no rela-
detectáveis da tortura. Nestas circunstâncias, o tório. O examinador deverá tomar nota de todas as
exame físico poderá revelar um quadro clínico observações positivas e negativas relevantes,
aparentemente normal, mas este facto não nega de utilizando diagramas corporais para registar a
forma alguma as alegações de maus tratos. Um localização e natureza de todas as lesões (vide
relato pormenorizado das lesões agudas observa- anexo III). Algumas formas de tortura, como os cho-
das pelo paciente e subsequente processo de cica- ques eléctricos e as contusões, poderão ser no iní-
trização representa muitas vezes uma importante cio indetectáveis, mas tornar-se-ão patentes num
fonte de provas para corroborar alegações concre- segundo exame realizado mais tarde. Embora rara-
tas de tortura ou maus tratos. mente seja possível fotografar as lesões dos reclu-
sos em poder dos seus torcionários, a fotografia
c. Exame físico deverá fazer parte da rotina de qualquer exame
médico. Caso exista alguma máquina fotográfica
172. Depois de conhecidos os antecedentes do disponível, será sempre preferível tirar fotogra-
caso e obtido o consentimento esclarecido do fias de baixa qualidade a não tirar nenhumas.
paciente, deverá ser levado a cabo um exame físico Depois, fotografias de qualidade profissional deve-
completo por um médico qualificado. Sempre que rão ser realizadas logo que possível (vide capí-
possível, deve ser dada ao paciente a possibilidade tulo III, secção C.5).
de escolher o sexo do médico e, se necessário, do
intérprete. Caso o médico não seja do mesmo sexo 1. PELE
que o paciente, uma pessoa do mesmo sexo deste
deverá estar presente aquando do exame, a menos 175. O exame deverá incidir 73 O.V. Rasmussen, “Medi-
cal aspects of torture” [em
que a pessoa se oponha. O paciente deverá dar-se sobre a toda a superfície corpo- português: Aspectos médi-
cos da tortura], Danish
conta de que controla a situação e de que tem o ral, a fim de detectar sinais de Medical Bulletin, 1990, 37
Suplemento 1, pp. 1 a 88.
direito de limitar a observação ou de a interrom- patologias cutâneas generaliza- 74
R.Bunting, “Clinical exa-
per a todo o momento (vide capítulo IV, secção J). das, nomeadamente sintomas minations in the police con-
text” [em português:
de carência das vitaminas A, B Exames clínicos em con-
texto policial], Clinical
173. Na presente secção, existem numerosas refe- e C, lesões anteriores à tortura Forensic Medicine, W.D.S.
McLay, ed., Londres, Green-
rências ao encaminhamento para especialistas e à ou lesões resultantes desta, wich Medical Media, 1996,
pp. 59 a 73.
necessidade de exames complementares. A menos como abrasões, contusões, lace-
que o paciente se encontre detido, é importante que rações, perfurações, queimaduras de cigarros ou ins-
os médicos tenham acesso a serviços de trata- trumentos aquecidos, choques eléctricos, alopecia
mento médico e psicológico, para que todas as e remoção de unhas. As lesões de tortura deverão
necessidades identificadas possam ser acompa- ser descritas em função da respectiva localização,
nhadas. Muitas vezes, não estarão disponíveis simetria, forma, tamanho, cor e superfície (por
determinados meios de diagnóstico, o que não exemplo, descamativa, ulcerosa ou com crosta),
deverá de forma alguma invalidar o relatório (vide bem como da sua demarcação e profundidade em
anexo II para mais detalhes quanto a possíveis relação à pele circundante. A fotografia é essencial,
testes de diagnóstico). sempre que possível. Por último, o examinador
deverá dar o seu parecer quanto à origem das
174. Caso o alegado acto de tortura seja recente e lesões: infligidas por terceiros ou provocadas pelo
o paciente esteja ainda a usar as roupas que ves- próprio, acidentais ou resultantes de um processo
tia no momento da prática do acto, essas roupas patológico73 74.
deverão ser levadas para exame sem serem lavadas,
devendo ser providenciadas roupas limpas para a 2. ROSTO
pessoa vestir. Sempre que possível, a sala onde
decorre o exame deverá dispor da iluminação e 176. Deve proceder-se à palpação dos tecidos
do equipamento suficientes para o mesmo. Quais- faciais para detectar indícios de fractura, crepita-

52
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
ção, tumefacção ou dor. Deverão ser examinadas fim de conseguir detectar rupturas do tímpano
as componentes motora e sensorial, incluindo com menos de dois milímetros de diâmetro, que
olfacto e gosto, de todos os nervos cranianos. A podem sarar no prazo de dez dias. Podem even-
tomografia computorizada (TC) – e não a simples tualmente observar-se secreções no ouvido médio
radiografia – constitui o melhor meio para diag- ou externo. Caso a otorreia seja confirmada por aná-
nosticar e caracterizar as fracturas faciais, deter- lises laboratoriais, o paciente deverá ser submetido
minar o alinhamento ósseo e diagnosticar lesões a ressonância magnética ou tomografia computo-
e complicações associadas nos tecidos moles. rizada a fim de determinar a localização da fractura.
Lesões intracranianas e da coluna cervical apare- Deverá verificar-se se a pessoa sofre de perda de
cem muitas vezes associadas aos traumatismos audição, utilizando métodos simples de avaliação.
faciais. Se necessário, deverão realizar-se testes audio-
métricos sob a direcção de um técnico de audio-
(a) Olhos metria qualificado. A melhor forma de proceder ao
exame radiográfico de fracturas do osso temporal
177. Existem muitas formas diferentes de trau- ou rupturas da cadeia ossicular consiste em
matismos oculares, incluindo hemorragias da submeter o paciente, de preferência, a uma tomo-
membrana conjuntiva, deslocação do cristalino, grafia computorizada, depois a tomografia hipo-
hemorragias subhialóides, retro-oculares e reti- ciclóidal e, por último, a tomografia linear.
nianas e perda de campo visual. Dadas as graves
consequências da falta de tratamento ou trata- (c) Nariz
mento inadequado, deverá providenciar-se pela
realização de uma consulta oftalmológica sempre 179. No exame do nariz, deverá ter-se em atenção
que existam quaisquer suspeitas de traumatismo o respectivo alinhamento, crepitação e desvio do
ou doença ocular. A tomografia computorizada é septo nasal. No caso de fracturas nasais simples,
o melhor meio de diagnóstico de fracturas orbitais as radiografias nasais normais deverão ser sufi-
e lesões dos tecidos moles com implicações ao cientes. Para fracturas nasais complexas e sempre
nível do globo ocular e tecidos retro-oculares. A ima- que o septo cartilagíneo esteja deslocado, deverá rea-
gem obtida por ressonância magnética nuclear lizar-se uma tomografia computorizada. Caso o
(RMN) pode ser um complemento importante paciente apresente sintomas de rinorreia, reco-
para identificar lesões nos tecidos moles. Os ultra- menda-se a realização de uma tomografia com-
sons de alta resolução constituem um método putorizada ou ressonância magnética.
alternativo para a avaliação de traumatismos do
globo ocular. (d) Queixo, orofaringe e pescoço

(b) Ouvidos 180. Os espancamentos podem dar origem a


fracturas ou deslocações maxilares. A síndrome
178. Os traumatismos do aparelho auditivo, em da articulação temporo-maxilar é uma conse-
especial a ruptura da membrana do tímpano, são quência frequente de pancadas na parte inferior
consequências frequentes de golpes violentos. Os da face e no pescoço. Dever-se-ão procurar indí-
canais auditivos e a membrana do tímpano devem cios de crepitação do osso hióide ou das cartila-
ser examinados com um otoscópio, após o que se gens laríngeas em resultado de pancadas no
descreverão as lesões detectadas. Uma forma pescoço. As observações relativas à orofaringe
comum de tortura, conhecida na América Latina deverão ser registadas com todo o pormenor,
como “telefone” consiste em esbofetear com força incluindo a detecção de lesões eventualmente
uma ou ambas as orelhas, o que provoca um resultantes de queimaduras por choques eléctri-
rápido aumento da pressão sobre o canal auditivo, cos ou outros traumatismos. A hemorragia gen-
levando a uma ruptura do tambor. É necessário que gival e o estado das gengivas deverão também ser
o exame se faça o mais rapidamente possível a registados.

Indícios físicos da tortura


* 53
(e) Cavidade oral e dentes detenção e é frequente que se desenvolvam novos
distúrbios respiratórios.
181. Os detidos deverão ser periodicamente exa-
minados por um médico dentista, no âmbito dos 4. SISTEMA MÚSCULO-ESQUELÉTICO
controlos sanitários regulares a que devem ser
submetidos. Os exames dentários são muitas 183. As queixas de dores mús- 75 O.V. Rasmussen, “Medi-
cal Aspects of torture” [em
vezes negligenciados, mas constituem uma parte culo-esqueléticas são muito português: “Aspectos Médi-
cos da Tortura”], Danish
importante do exame físico. Os cuidados de saúde comuns nos sobreviventes de Medical Bulletin, 37 Suple-
mento 1, 1990, pp. 1 a 88
dentária podem ser propositadamente negados a tortura75. Podem ser causadas (vide nota 73, supra).
fim de permitir o agravamento de cáries, gengivi- por espancamentos sucessivos, 76 D. Forrest, “Examination
for the late physical after
tes e abcessos dentários. Deverá ser solicitado o his- suspensão, outras formas de effects of torture” [em por-
tuguês: “Exame para detec-
torial odontológico completo da pessoa e tortura posicional ou resulta- ção das sequelas tardias de
tortura”], Journal of Clini-
requerida a apresentação dos registos dentários, rem das condições gerais de cal Forensic Medicine, 6,
1999, pp. 4 a 13.
caso existam. As pancadas directas ou a tortura à detenção76. Podem também ter 77 Vide nota 75, supra.
base de choques eléctricos podem arrancar ou par- origem psicossomática (vide
tir dentes, deslocar os produtos de obturação den- capítulo VI, secção B.2). Embora constituam sin-
tária ou partir próteses. Dever-se-á tomar nota da tomas atípicos, deverão ser documentadas e em
presença de cáries e gengivites. Uma dentição de geral respondem bem à fisioterapia adequada77.
má qualidade pode resultar de condições de deten- O exame físico do esqueleto deverá incluir testes
ção deficientes ou ser anterior à detenção. A cavi- à mobilidade das articulações, coluna vertebral e
dade oral deverá ser cuidadosamente examinada. extremidades. Dever-se-á tomar nota da presença
Durante uma sessão de tortura eléctrica, a vítima de qualquer sensação de dor associada ao movi-
pode morder a língua, gengivas ou lábios. As mento, contracção e pressão, bem como de indí-
lesões podem ter sido causadas pela introdução for- cios de síndromes localizadas, fracturas com ou sem
çada de objectos e materiais na boca, bem como pela deformação e deslocações. As suspeitas de deslo-
aplicação da corrente eléctrica. Sugere-se a utilização cações, fracturas e osteomielites deverão ser con-
de Raios-X e ressonâncias magnéticas para deter- firmadas mediante o recurso a radiografias. Caso
minar a extensão das lesões nos tecidos moles, se suspeite de osteomielite, às radiografias de
maxilares e dentes. rotina dever-se-á seguir uma cintigrafia óssea em
três fases. Para a avaliação das lesões nos tendões,
3. PEITO E ABDÓMEN ligamentos e músculos, o melhor método é a res-
sonância magnética, mas pode também efectuar-
182. A observação do tronco deverá ter por objec- -se uma artrografia. Na fase aguda, poder-se-ão
tivos, para além da verificação da existência de detectar eventuais hemorragias e rupturas muscu-
lesões na pele, a detecção de zonas doridas, sen- lares. Em geral, os músculos saram completamente
sibilizadas ou desconfortáveis que tenham subja- sem deixar cicatrizes; por isso, quaisquer estudos ima-
centes lesões nos músculos, costelas ou órgãos giológicos tardios darão resultados negativos. Na
abdominais. O examinador deverá ter presente a ressonância magnética e tomografia computori-
possibilidade de existirem hematomas intramus- zada, os músculos desvitalizados e síndromes loca-
culares, retroperitoneais e intra-abdominais, bem lizadas crónicas surgem como fibroses musculares.
como de laceração ou ruptura de qualquer órgão As lesões ósseas podem ser detectadas através de res-
interno. Deverá recorrer-se à ultra-sonografia, sonância magnética ou cintigrafia. Em geral, as
tomografia computorizada e cintigrafia óssea, se lesões ósseas saram sem deixar vestígios.
disponíveis na prática, para confirmar este tipo
de lesões. Devem realizar-se os exames de rotina 5. SISTEMA GENITO-URINÁRIO
do sistema cardiovascular, pulmões e abdómen, da
forma habitual. As patologias respiratórias pré- 184. O exame ginecológico deverá realizar-se ape-
existentes tendem a agravar-se nas situações de nas com o consentimento expresso do paciente

54
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
para esse fim em concreto e, se necessário, deverá deverá indicar, relativamente a cada lesão e a todo
ser adiado para uma sessão posterior. Caso médico o conjunto de lesões, o grau de correspondência
e paciente pertençam a sexos diferentes, uma pes- entre a mesma e a causa indicada pelo paciente.
soa do mesmo sexo do último deverá estar presente. Em geral, utiliza-se a seguinte terminologia:
Para mais informação, vide o capítulo IV, secção J.
Vide a secção D.8 para mais informação relativa ao a) Não correspondente: a lesão não pode ter
exame das vítimas de agressão sexual. Para a sido causada pelo traumatismo descrito;
detecção de traumatismos genito-urinários, pode b) Correspondente: a lesão pode ter sido cau-
recorrer-se à ultra-sonografia ou cintigrafia dinâ- sada pelo traumatismo descrito mas, sendo uma
mica. lesão atípica, existem outras causas possíveis;
c) Correspondência altamente provável: a lesão
6. SISTEMAS NERVOSOS CENTRAL E PERIFÉRICO pode ter sido causada pelo traumatismo descrito
e existem poucas causas possíveis alternativas;
185. O exame neurológico deverá avaliar os d) Correspondência típica: o sintoma aparece
nervos craneanos, órgãos sensoriais e sistema ner- geralmente associado ao tipo de traumatismo des-
voso periférico, procurando indícios de neuropa- crito, mas existem outras causas possíveis;
tias motoras e sensoriais associadas ao possível e) Diagnóstico de: o sintoma não pode ter sido
traumatismo, carências vitamínicas ou doenças. causado de qualquer outra forma senão a descrita.
Dever-se-á também avaliar a capacidade cognitiva
e o estado mental da pessoa (vide capítulo VI, sec- 187. Em última análise, o que importa fazer para
ção C). No caso de pacientes que alegam terem sido confirmar a veracidade de um relato de tortura é
sujeitos a tortura por suspensão, há que prestar a avaliação geral de todas as lesões, e não a cor-
especial atenção aos sintomas de lesão do plexo bra- respondência de cada lesão com determinada
quial (assimetria na força manual, paralisia da forma de tortura em particular (vide capítulo IV,
mão, fraqueza nos braços acompanhada de varia- secção G para uma listagem dos métodos de tor-
ções nos reflexos sensoriais e tendinosos). Os trau- tura).
matismos associados à tortura podem provocar
radiculopatias e outras neuropatias, deficiências nos 1. ESPANCAMENTOS E OUTRAS CONTUSÕES
nervos cranianos, hiperalgesia, parestesia, hipe-
restesia e alterações da postura, sensibilidade ao (a) Lesões cutâneas
calor, função motora, marcha e coordenação. Os
pacientes com sintomas de vertigens e vómitos 188. Lesões agudas são frequentemente caracte-
deverão ser sujeitos a exame vestibular a fim de rísticas da tortura, porque se apresentam sob for-
detectar indícios de nistagmo. A avaliação radio- mas particulares que as distinguem das lesões
lógica deverá incluir a realização de ressonância acidentais, por exemplo devido à sua forma, repe-
magnética ou tomografia computorizada. A res- tição e distribuição ao longo do corpo. Uma vez que
sonância magnética é preferível à tomografia com- a maioria das lesões sara num período de seis
putorizada para fins de avaliação radiológica do semanas, não deixando quaisquer marcas ou dei-
cérebro e fossas posteriores. xando apenas marcas não específicas, um relato
típico de lesões agudas e sua evolução até à cura
d. Exame e avaliação subsequentes total poderá ser o único elemento confirmativo de
a formas específicas de tortura uma alegação de tortura. As alterações perma-
nentes na pele provocadas por contusões são
186. As considerações que se seguem não pre- pouco frequentes, atípicas e geralmente sem sig-
tendem analisar exaustivamente todas as formas nificado para fins de diagnóstico. Uma zona linear
de tortura, destinando-se antes a descrever em que se estende em círculos em torno dos braços ou
mais pormenor os aspectos médicos de muitas das pernas, em geral nos pulsos ou tornozelos, é
das formas de tortura mais comuns. O médico geralmente uma sequela de violência contundente

Indícios físicos da tortura


* 55
e indica a aplicação prolongada de ligaduras aper- que finalmente o hematoma 78 S. Gürpinar e S. Korur
Fincanci, “Insan Haklari
tadas. Esta zona aparece quase desprovida de pêlos desaparece. É, contudo, muito Ihlalleri ve Hekim
Sorumlulgu” [Violações de
ou folículos pilosos e será provavelmente uma difícil estabelecer com exactidão Direitos Humanos e
Responsabilidade do
forma de alopecia cicatricial. Não existe qualquer a data da ocorrência das contu- Médico], Birinci Basamak
Için Adli Tip El Kitabi
diagnóstico alternativo de patologia cutânea espon- sões. Em determinados tipos de [Manual de Medicina Legal
para Médicos de Clínica
tânea e é difícil imaginar que um traumatismo pele, podem dar origem a hiper- Geral], Ankara, Associação
Médica Turca, 1999.
desta natureza possa ocorrer na vida quotidiana. -pigmentação, que pode durar
anos. Os hematomas que se formam nos tecidos
189. No que concerne às lesões agudas, as abra- subcutâneos podem demorar dias a manifestar-se,
sões resultantes de lesões provocadas pela raspa- até que o sangue derramado atinja a superfície. Caso
gem superficial da pele podem apresentar-se sob a vítima alegue ter sido torturada mas não apresente
a forma de arranhões, queimaduras por contacto sinais de contusão, deve voltar a ser examinada pas-
ou escoriações de maior dimensão. Por vezes, sados alguns dias. Dever-se-á ter em consideração
as abrasões podem apresentar um padrão que que a posição final e o formato dos hematomas não
reflecte os contornos do objecto ou superfície que guardam necessariamente relação com o trauma-
provocou a lesão. As abrasões repetidas ou pro- tismo original e que algumas lesões podem ter-se
fundas podem criar áreas de hipo ou hiper-pig- desvanecido na altura do novo exame78.
mentação, dependendo do tipo de pele. Isto
acontece no interior dos pulsos se as mãos tiverem 191. As lacerações, rasgões ou 79 O.V. Rasmussen,
“Medical Aspects of
sido atadas com força. esmagamentos da pele e tecidos Torture” [Em português:
“Aspectos Médicos da
moles subjacentes, pela pressão Tortura”], Danish Medical
Bulletin, 37 Suplemento 1,
190. As contusões e hematomas revelam hemor- de pancadas violentas, apare- 1990, pp. 1 a 88 (vide
nota 73).
ragias nos tecidos internos devido à ruptura dos cem sobretudo nas partes pro-
vasos sanguíneos resultante de um traumatismo. tuberantes do corpo, uma vez que a pele é
A extensão e gravidade de uma contusão dependem, comprimida entre o objecto contundente e a
não apenas da força aplicada, mas também da superfície do osso debaixo dos tecidos subcutâ-
estrutura e vascularização do tecido atingido. As neos. Contudo, se for aplicada força suficiente a pele
contusões ocorrem com maior facilidade nas áreas pode arrancar-se em qualquer parte do corpo.
onde a pele é mais fina e recobre um osso ou em Cicatrizes assimétricas ou em locais pouco habi-
zonas de tecido gordo. Muitos problemas de tuais, assim como uma extensão difusa de cicatrizes,
saúde, nomeadamente carências vitamínicas e indicam lesões deliberadas79.
nutricionais, podem facilitar o aparecimento de
hematomas ou nódoas negras. As contusões e 192. As cicatrizes resultantes 80 L. Danielsen, “Skin chan-
ges after torture” [em portu-
abrasões indicam que uma violenta pressão foi de chicotadas representam lace- guês: Alterações cutâneas
subsequentes à tortura],
exercida sobre a área lesionada, mas a sua ausên- rações saradas. Estas cicatrizes Torture, Suplemento 1,
1992, pp. 27 e 28.
cia não significa, contudo, que não tenha havido são despigmentadas e muitas
violência. As contusões podem apresentar um vezes hipertróficas, rodeadas por listas estreitas e
padrão definido que reflecte os contornos do hiper-pigmentadas. O único diagnóstico alternativo
objecto utilizado. Por exemplo, os paus ou bas- é a dermatite plantar, mas nela domina a hiper-pig-
tões deixam em geral uma série de marcas de mentação e as cicatrizes são mais curtas. Pelo con-
forma alongada. A forma do objecto pode tam- trário, as marcas lineares simétricas, atróficas e
bém ser inferida a partir do formato da lesão. À despigmentadas no abdómen, axilas e pernas, que
medida que os hematomas regridem, vão apre- muitas vezes se alegam serem sequelas de tor-
sentando uma série de cambiantes de cor. A maior tura, representam estrias de distensão e não estão
parte começa por apresentar uma cor azul escura, normalmente relacionadas com a tortura80.
púrpura ou carmim. Conforme a hemoglobina
desaparece, a cor vai mudando gradualmente para 193. As queimaduras são a forma de tortura que
violeta, verde, amarelo escuro ou amarelo claro, até com mais frequência deixa marcas permanentes na

56
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
pele. Por vezes, tais marcas têm 81 Vide nota 80. das, incisões ou cortes, bem 82 D. Forrest, “Examination
for the late physical after
valor de diagnóstico. As quei- como lesões perfurantes. Em effects of torture” [Em por-
tuguês: “Exame para detec-
maduras de cigarro deixam muitas vezes cicatrizes geral, a sua aparência no estado ção das sequelas físicas
tardias da tortura”], Journal
maculares com 5 a 10 milímetros de diâmetro, agudo distingue-se facilmente of Clinical Forensic Medi-
cine, 6, 1999, pp. 4 a 13
circulares ou ovais, caracterizadas por um centro do aspecto rasgado e irregular de (vide nota 76).
hiper ou hipo-pigmentado e periferia hiper-pig- lacerações e cicatrizes encon-
mentada e relativamente indistinta. Surgem tam- tradas mais tarde e que podem ser distintas. Caso
bém denúncias de tentativas de apagar tatuagens surjam padrões regulares de pequenas cicatrizes
com cigarros em cenários de tortura. A forma de incisão, estas podem ter sido provocadas por
característica da cicatriz daí resultante, bem como curandeiros tradicionais82. Se, em feridas abertas,
quaisquer vestígios da tatuagem que permane- forem aplicadas substâncias nocivas, como a
çam, auxiliarão no diagnóstico81. As queimaduras pimenta, as cicatrizes podem tornar-se hiper-tró-
com objectos quentes provocam cicatrizes marca- ficas. Um conjunto de cicatrizes assimétricas e de
damente atróficas que reflectem a forma do ins- diferentes tamanhos constitui um indício provável
trumento utilizado e se apresentam claramente de tortura.
demarcadas por zonas marginais estreitas hiper-
-tróficas ou hiper-pigmentadas que correspondem (b) Fracturas
a uma zona de inflamação inicial. Estes sintomas
podem, por exemplo, ser observados depois de 196. As fracturas provocam uma perda da inte-
queimaduras infligidas com uma barra de metal gridade óssea devido à acção de força mecânica con-
electricamente aquecida ou isqueiro a gás. A pre- tundente sobre diversos planos vectoriais. As
sença de um grande número de cicatrizes deste tipo fracturas directas produzem-se no local do
tende a confirmar o diagnóstico de tortura. Os impacto ou no local onde a força é aplicada. A
processos inflamatórios espontâneos não apre- localização, contorno e outras características da
sentam a zona marginal característica e raramente fractura reflectem a natureza e direcção da força
ocasionam uma perda significativa de tecido. As aplicada. Por vezes, é possível distinguir a fractura
queimaduras podem dar origem a cicatrizes hiper- acidental da provocada pela sua imagem radioló-
-tróficas ou quelóides, nomeadamente se infligidas gica. Para determinar a antiguidade de uma frac-
com borracha a ferver. tura relativamente recente, dever-se-á recorrer a um
radiologista especializado em traumatologia.
194. Quando a matriz da unha é queimada, a Deverão evitar-se os juízos especulativos na ava-
unha que depois cresce vem estriada, fina e defor- liação da natureza e antiguidade das lesões trau-
mada, por vezes partida em segmentos longitudi- máticas, uma vez que estas podem variar em
nais. Caso a unha tenha sido arrancada, pode função da idade, sexo, características dos tecidos,
acontecer um crescimento excessivo dos tecidos em situação e estado de saúde da pessoa, bem como
redor que dá origem à formação de um pterígio. da gravidade do traumatismo. Por exemplo, as
As alterações da unha causadas por lichen planus pessoas jovens, bem constituídas e de musculatura
constituem o único diagnóstico alternativo, mas sur- robusta são mais resistentes aos golpes do que os
gem geralmente acompanhadas de lesões cutâ- indivíduos mais velhos e frágeis.
neas generalizadas. Por outro lado, as infecções por
fungos caracterizam-se por unhas mais grossas, (c) Traumatismos cranianos
amareladas e quebradiças, diferentes das alterações
acima referidas. 197. Os traumatismos cranianos constituem uma
das mais comuns formas de tortura. Em caso de
195. As lesões traumáticas penetrantes aconte- traumatismos cranianos recorrentes, mesmo que
cem quando a pele é cortada com um objecto nem todos sejam de grande intensidade, é de
afiado, por exemplo uma faca, baioneta ou vidro esperar que se produza atrofia cortical e lesões
partido, e incluem lesões resultantes de punhala- axonais difusas. Nos casos de traumatismos pro-

Indícios físicos da tortura


* 57
vocados por quedas, podem por vezes observar-se (d) Traumatismos torácicos e abdominais
lesões por contra-golpe (localizadas na zona oposta
à do choque). Pelo contrário, nos traumatismos 200. As fracturas de costelas são uma conse-
directos as lesões verificam-se directamente quência frequente das pancadas no peito. A des-
debaixo da zona atingida. Os hematomas no couro locação das costelas pode provocar a laceração dos
cabeludo são frequentemente invisíveis a olho nu pulmões e eventual pneumotórax. A fractura dos
a menos que haja formação de edema. Os hema- pedículos vertebrais pode resultar da aplicação
tomas podem ser difíceis de observar em pessoas directa dos golpes.
de pele escura, mas serão sensíveis à palpação.
201. Nos casos de traumatismo abdominal agudo,
198. As pessoas expostas a pancadas na cabeça o exame físico deverá procurar indícios de lesões
podem queixar-se de cefaleias constantes. Estas nos órgãos abdominais e sistema urinário. Contudo,
são frequentemente somáticas mas podem também os resultados são em geral negativos. Uma hema-
ter uma origem cervical (vide secção C, supra). túria abundante constitui o sintoma mais signifi-
A vítima pode queixar-se de dores quando tocada cativo de contusão renal. Uma lavagem peritoneal
nessa área, podendo também detectar-se um pode detectar hemorragias abdominais ocultas.
inchaço difuso ou localizado, ou um aumento de Os derrames abdominais detectados por tomo-
rigidez, através da palpação do couro cabeludo. grafia computorizada após a lavagem peritoneal
As cicatrizes estarão presentes caso tenham ocor- podem resultar da própria lavagem ou de hemor-
rido lacerações no couro cabeludo. As cefaleias ragia, o que invalida o diagnóstico. Na tomografia
poderão ser um sintoma inicial de hematoma sub- computorizada, a hemorragia abdominal aguda é
dural em expansão. Poderão estar associadas à geralmente iso-intensa ou apresenta densidade
alteração súbita do estado de saúde mental, aquosa, ao contrário da hemorragia do sistema
devendo por isso submeter-se o paciente a tomo- nervoso central, que é hiper-intensa. As lesões
grafia computorizada com a máxima urgência. orgânicas podem manifestar-se através da pre-
Em geral, os edemas e hemorragias nos tecidos sença de ar, fluído extra-luminar ou zonas de baixa
moles são detectáveis através de tomografia com- atenuação, que representam edemas, contusões,
putorizada ou ressonância magnética. Pode tam- hemorragias ou lacerações. O edema peripan-
bém ser conveniente providenciar pela realização creático é um dos sintomas de pancreatite aguda
de uma avaliação psicológica ou neuro-psíquica de origem traumática e não traumática. Os ultra-
(vide capítulo VI, secção C.4). sons são particularmente indicados para a detec-
ção de hematomas sub capsulares do baço. Os
199. Os abanões fortes utilizados como forma de espancamentos graves podem provocar insufi-
tortura podem provocar danos cerebrais sem dei- ciência renal aguda em consequência da síndrome
xar quaisquer marcas externas, embora se possa de esmagamento. A hipertensão renal pode ser
registar a presença de escoriações na parte supe- uma complicação tardia das lesões renais.
rior do tórax ou nos ombros, nos locais onde a
vítima ou o seu vestuário tenha sido agarrado. Nos 2. ESPANCAMENTO DOS PÉS
casos mais extremos, os abanões podem produzir
lesões semelhantes às observadas na “síndrome do 202. “Falanga” é o termo mais utilizado para
bebé sacudido”: edemas cerebrais, hematomas designar o espancamento repetido dos pés (ou,
subdurais e hemorragias retinianas. Nos casos mais raramente, das mãos ou ancas), em geral
mais comuns, as vítimas queixam-se de cefaleias aplicado com um bastão, pedaço de cano ou arma
contínuas, desorientação ou alterações mentais. semelhante. A mais grave complicação da falanga
As sessões de tortura por abanão são em geral é a síndrome compartimental, que pode causar
breves, durando apenas alguns minutos ou menos necrose muscular, obstrução vascular ou gangrena
que isso, mas podem repetir-se muitas vezes ao da porção distal do pé ou dedos dos pés. As defor-
longo de dias ou semanas. midades permanentes dos pés são raras mas acon-

58
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
tecem, assim como as fracturas 83 G. Sklyv, “Physical seque- dedos. É geralmente diagnosticado através da
lae of torture” [em portu-
do tarso, metatarso e falanges. guês: Sequelas físicas da medição das pressões no compartimento;
tortura], Torture and its
Uma vez que, em geral, as consequences, current b) Esmagamento do calcanhar e almofadas
treatment approaches, M.
lesões atingem apenas os tecidos Ba_o_lu, ed., Cambridge,
Cambridge University Press,
anteriores: as almofadas elásticas sob o calcâneo
moles, a tomografia computo- 1992, pp. 38 a 55. e falanges proximais são esmagadas durante a
84
rizada ou ressonância magné- forD.theForrest, “Examination
late physical after
falanga, quer directamente quer em resultado de
tica são as melhores técnicas de effects of torture” [Em por-
tuguês: “Exame para detec-
edema associado ao traumatismo. Para além
exame radiológico, mas deve tardias dasequelas
ção das físicas
tortura”], Journal
disso, dá-se uma ruptura das faixas de tecido con-
salientar-se que, durante a fase of Clinical Forensic Medi-
cine, 6, 1999, pp. 4 a 13
juntivo que se estendem pelo tecido adiposo e
aguda da doença, o exame físico (vide nota 76). ligam o osso à pele. O tecido adiposo vê-se privado
85
deverá permitir um diagnóstico ten,K.Physiotherapy
Prip, L. Tived, N. Hol-
for Tor-
de irrigação sanguínea e atrofia. Perde-se o efeito
ture Survivors: A Basic
claro. A falanga pode originar Introduction [em portu- de almofada e os pés deixam de conseguir absor-
incapacidade crónica. Pode tor- guês: “Fisioterapia para
Sobreviventes de Tortura:
ver os choques provocados pela marcha;
nar a marcha dolorosa e difícil. Introdução Básica”], Cope-
nhaga, IRCT, 1995.
c) Cicatrizes rígidas e irregulares na pele e teci-
Os ossos do tarso podem ficar 86 F. Bojsen-Moller e K.E. dos subcutâneos do pé depois da aplicação da
fixos (espásticos) ou exagerada- Flagstad, “Plantar aponeu-
rosis and plantar architec- falanga: num pé normal, os tecidos dérmicos e
mente móveis. A pressão sobre ture of the ball of the foot”
[em português: Aponevrose subdérmicos encontram-se ligados à aponevrose
a planta (sola) do pé e a flexão plantar e arquitectura plan-
tar da bola do pé], Journal plantar através de bandas apertadas de tecido con-
Anatomy, 121, 1996,
dorsal do dedo grande do pé of pp. 599 a 611. juntivo. Estas bandas podem, contudo, ser parcial
podem causar dor. À palpação, a ou completamente destruídas devido a edema que
aponevrose plantar pode revelar-se anormalmente as rompe após exposição à falanga;
mole e haver ruptura dos ligamentos distais da d) Ruptura da aponevrose plantar e tendões do
aponevrose, parcialmente na base das falanges pé: um edema que se produza no período poste-
proximais e parcialmente na pele. Nesta situação, rior à falanga pode provocar rupturas nestas estru-
a aponevrose perde a sua flexibilidade normal, tor- turas. Quando desaparece a função de suporte
nando o andar difícil e podendo originar fadiga necessária à manutenção do arco do pé, o andar
muscular. A extensão passiva do dedo grande do torna-se muito difícil e os músculos do pé, em
pé pode revelar se houve ou não ruptura da apo- especial o quadratus plantaris longus, são exces-
nevrose. Se estiver intacta, sentir-se-á o início da sivamente forçados;
tensão na aponevrose mediante palpação com o e) Fasciite plantar: pode 87 V. Lök, M. Tunca, K.
Kumanlioglu e outros,
dedo grande em flexão dorsal a 20 graus; a ocorrer como complicação adi- “Bone scintigraphy as clue
to previous torture” [em
máxima extensão normal é de cerca de 70 graus. cional deste tipo de lesões. Nos português: Cintigrafia
óssea como indício de tor-
Valores mais altos sugerem lesões nos ligamentos casos de falanga, dá-se muitas tura anterior], Lancet, 337
(8745), 1991, pp. 846 e 847.
da aponevrose83 84 85 86. Por outro lado, flexão dor- vezes a irritação de toda a apo- Vide também M. Tunca e V.
Lök, “Bone scintigraphy in
sal limitada e dor na hiper-extensão do dedo nevrose, originando uma infla- screening of torture survi-
vors” [em português: Cinti-
grande são sintomas de hallux rigidus, que resulta mação crónica. Em estudos grafia óssea no exame de
sobreviventes de tortura],
de osteófito dorsal numa ou em ambas as pri- sobre esta matéria, puderam ser p. 1859. 352 (9143), 1998,
Lancet,

meiras cabeças do primeiro metatarso ou na base observadas zonas de hiper-acti-


da falange proximal. vidade no calcâneo ou metatarso de prisioneiros
libertados há mais de 15 anos que alegavam terem
203. Podem ocorrer numerosas complicações e sido submetidos a falanga no momento da sua
síndromes: captura87.

a) Síndrome compartimental: é a complicação 204. Métodos radiológicos como a ressonância


mais grave. Um edema num compartimento magnética, tomografia computorizada e ultra-sons
fechado provoca obstrução vascular e necrose conseguem muitas vezes confirmar a existência de
muscular, o que pode dar origem a fibroses, con- traumatismos resultantes da aplicação da falanga.
tracção ou gangrena na parte distal do pé ou nos Mas as observações radiológicas positivas podem

Indícios físicos da tortura


* 59
também dever-se a outros tipos 88 Vide notas 76 e 83, supra espancadas ou sujeitas a outros maus tratos
e V. Lök e outros, “Bone
de doenças ou traumatismos. scintigraphy as an evidence durante a suspensão. Na fase crónica, é habitual
of previous torture” [em
Recomenda-se a realização de português: Cintigrafia que persistam as dores e a sensibilização em torno
óssea como prova de tor-
radiografias de rotina no exame tura anterior], Treatment
and Rehabilitation Center
das articulações dos ombros, uma vez que o
inicial. A ressonância magné- Report of HRFT, Ancara,
1994, pp. 91 a 96.
excesso de peso e a rotação, especialmente interna,
tica é o melhor meio para detec- irão causar fortes dores muitos anos depois. As
tar lesões nos tecidos moles. A ressonância complicações do período agudo subsequente à
magnética ou a cintigrafia podem detectar lesões suspensão incluem a perda de força nos braços ou
ósseas traumáticas que passem eventualmente mãos, dores e parestesias, entorpecimento, insen-
despercebidas nas radiografias de rotina ou na sibilidade ao toque, dores superficiais e perda dos
tomografia computorizada88. reflexos tendinosos. As dores intensas e profun-
das podem indiciar adinamia susceptível de per-
3. SUSPENSÃO sistir na fase crónica e evoluir para atrofia
muscular. Regista-se entorpecimento e, com
205. A suspensão é uma forma comum de tortura maior frequência, parestesia. Erguer os braços ou
que pode causar dor extrema, mas deixa poucas, levantar pesos pode provocar dores, entorpeci-
ou nenhumas, marcas de lesões. Uma pessoa que mento ou adinamia. Para além de lesões neuro-
se encontre ainda detida pode resistir a admitir que lógicas, podem dar-se rupturas dos ligamentos
está a ser torturada, mas a observação de défices das articulações dos ombros, luxação do ombro e
neurológicos periféricos indicativos de um diag- lesões musculares na região escapular. A obser-
nóstico de plexopatia braquial constitui um indí- vação visual das costas permitirá detectar uma
cio muito provável de tortura por suspensão. “omoplata em asa” (com bordo vertebral proemi-
A suspensão pode ser aplicada de diferentes formas: nente) com lesão do nervo torácico longo ou des-
locação da escápula.
a) Suspensão em cruz: aplica-se esticando os bra-
ços e atando-os a uma barra horizontal; 207. As lesões neurológicas são geralmente as-
b) Suspensão de carniceiro: aplica-se fixando simétricas nos braços. As lesões do plexo braquial
as mãos para cima, juntas ou separadamente; manifestam-se através de disfunções motoras,
c) Suspensão de carniceiro invertida: aplica-se sensoriais e dos reflexos.
fixando os pés para cima e a cabeça para baixo;
d) Suspensão “palestiniana”: aplica-se suspen- a) Exame motor: o sintoma mais comum é a fra-
dendo a vítima com os antebraços atados juntos queza muscular assimétrica, mais acentuada na
atrás das costas, cotovelos flectidos a 90 graus e região distal. As dores agudas podem dificultar a
antebraços atados a uma barra horizontal. Em interpretação dos testes de força muscular. Se a lesão
alternativa, a vítima pode ser suspensa de uma for grave, na fase crónica pode detectar-se uma atro-
ligadura atada à volta dos cotovelos ou pulsos com fia muscular;
os braços atrás das costas; b) Exame sensorial: é comum registar-se uma
e) Suspensão em cabide: aplica-se suspen- perda total de sensibilidade ou parestesia ao longo
dendo a vitima com os joelhos flectidos atados a do percurso dos nervos sensitivos. Dever-se-á tes-
uma barra que passa abaixo da região poplítea, tar a percepção postural, discriminação de dois
em geral com os pulsos atados aos tornozelos. pontos, reacção à sensação de picada e percepção
do calor e do frio. Se, pelo menos três semanas
206. A suspensão pode durar desde 15 a 20 minu- depois da data dos maus tratos, se constatar insu-
tos até várias horas. A suspensão “palestiniana” ficiência, perda ou diminuição dos reflexos, dever-
pode causar lesões permanentes do plexo braquial se-á providenciar pela realização dos exames
num curto período de tempo. A suspensão em electrofisiológicos adequados por um neurologista
cabide pode provocar rupturas dos ligamentos cru- com experiência na utilização e interpretação des-
zados dos joelhos. As vítimas são frequentemente tas técnicas de diagnóstico;

60
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
c) Exame dos reflexos: a tortura por suspensão que se podem estender ao braço e zonas exterio-
pode provocar a perda, diminuição ou assimetria res do antebraço.
dos reflexos. Na suspensão “palestiniana”, embora
ambos os plexos braquiais sofram traumatismos, 4. OUTRAS FORMAS DE TORTURA POSICIONAL
pode gerar-se uma plexopatia assimétrica devido
à forma como a vítima é suspensa, dependendo do 209. Existem muitas outras formas de tortura
braço que é colocado numa posição superior ou do posicional, todas elas atando ou imobilizando a
método utilizado para atar a pessoa. Embora as pes- vítima em contorção, hiper-extensão ou outras
quisas efectuadas sugiram que as plexopatias bra- posições pouco naturais, que causam grande sofri-
quiais são geralmente unilaterais, a nossa mento e podem provocar lesões nos ligamentos,
experiência indica serem comuns as lesões bila- tendões, nervos e vasos sanguíneos. Caracteristi-
terais. camente, estas formas de tortura deixam poucas,
ou nenhumas, marcas visíveis a olho nu ou detec-
208. De todos os tecidos da região escapular, o táveis através de processos radiológicos, apesar de
plexo braquial é a estrutura mais sensível às lesões conduzirem muitas vezes a incapacidades crónicas
por tracção. A suspensão “palestiniana” dá ori- graves.
gem a lesões do plexo braquial devido à extensão
posterior forçada dos braços. Na suspensão “pales- 210. Todas as formas de tortura de posição visam
tiniana” clássica, quando o corpo é suspenso com directamente os tendões, articulações ou múscu-
os braços em hiper-extensão posterior, são tipica- los. Existem vários métodos: “suspensão de papa-
mente as fibras do plexo inferior as primeiras a gaio”, “posição de banana” ou o clássico “laço
sofrerem lesão, seguidas das fibras dos plexos banana” sobre uma cadeira ou simplesmente no
médio e superior, respectivamente, se a força apli- chão, posição de bicicleta, manutenção da pessoa
cada sobre os plexos for suficientemente grande. de pé durante longo tempo, apoiada num ou nos
Se a vítima for suspensa em cruz, mas sem hiper- dois pés ou com os braços e mãos esticados para
-extensão, serão provavelmente as fibras do plexo cima contra uma parede, manutenção da pessoa de
médio as primeiras a sofrerem lesão devido à cócoras durante longo tempo e imobilização for-
hiper-abdução. As lesões do plexo braquial podem çada numa pequena jaula. Consoante as caracte-
ser classificadas da seguinte forma: rísticas de cada uma destas posições, as vítimas
queixar-se-ão de dores em determinadas regiões do
a) Lesões do plexo inferior: as deficiências loca- corpo, limitação da mobilidade articular, dores nas
lizam-se no antebraço e músculos da mão. Podem costas, dores nas mãos ou nas zonas cervicais do
observar-se deficiências sensoriais ao nível do corpo e inchaço da parte inferior das pernas. A estas
antebraço e do quarto e quinto dedos da zona formas de tortura de posição aplicam-se os mes-
média da mão na distribuição do nervo cubital; mos princípios de exame neurológico e musco-
b) Lesões do plexo médio: são afectados o ante- esquelético indicados relativamente à tortura por
braço, cotovelo e músculos extensores dos dedos. suspensão. A ressonância magnética é o método
A pronação do antebraço e a flexão radial da mão radiológico mais recomendado para o diagnóstico
poderão estar diminuídas. Constatam-se defi- das lesões associadas a todas as formas de tortura
ciências sensoriais no antebraço e nas zonas dor- de posição.
sais do primeiro, segundo e terceiro dedos da mão
na distribuição do nervo cubital. Os reflexos tri- 5. TORTURA POR CHOQUES ELÉCTRICOS
ciptais podem ter sido perdidos;
c) Lesões do plexo superior: os músculos esca- 211. A corrente eléctrica é transmitida através de
pulares estão especialmente afectados. A abdução eléctrodos colocados em qualquer parte do corpo.
do ombro, rotação axial e pronação-supinação do As áreas mais habituais são as mãos, pés, dedos das
antebraço podem estar comprometidas. Obser- mãos e dos pés, orelhas, mamilos, boca, lábios e
vam-se deficiências sensoriais na região deltóide, zona genital. A fonte de energia pode ser um

Indícios físicos da tortura


* 61
dínamo manual ou gerador de combustão, tomada A síndrome da articulação temporo-maxilar pro-
eléctrica, arma atordoante, agulha eléctrica para vocará dores na articulação temporomandibular,
punção de animais ou outro aparelho eléctrico. limitação dos movimentos da mandíbula e, em
A corrente eléctrica segue o caminho mais curto certos casos, uma sub-luxação da articulação em vir-
entre dois eléctrodos, o que se reflecte nos sinto- tude dos espasmos musculares que ocorrem em
mas observados. Por exemplo, se os eléctrodos resultado da corrente eléctrica ou pancadas na
forem colocados num dedo do pé direito e na face.
região genital, haverá dor, contracção muscular e
cãibras nos músculos da coxa e gémeos do lado 7. ASFIXIA
direito. Sentir-se-ão dores lancinantes na região
genital. Uma vez que todos músculos ao longo da 213. A quase asfixia por sufocação é um método
zona por onde passa a corrente eléctrica são teta- de tortura cada vez mais comum. Em geral não
nicamente contraídos, uma descarga de intensidade deixa quaisquer vestígios e a recuperação é rápida.
média poderá provocar deslocações do ombro e Este método de tortura foi tão utilizado na Amé-
radiculopatias lombares e cervicais. Contudo, a rica Latina que a sua designação em espanhol,
partir do exame físico da vítima não é possível submarino, se tornou parte do vocabulário dos
determinar com precisão o tipo, tempo de aplica- direitos humanos. A respiração normal pode ser
ção, corrente e voltagem da energia utilizada. Os impedida, por exemplo, cobrindo a cabeça com
torcionários utilizam muitas vezes água ou gel um saco de plástico, obstruindo a boca e o nariz,
para aumentar a intensidade da tortura, expandir comprimindo ou ligando a zona em redor do pes-
o ponto de entrada no corpo da corrente eléctrica coço ou obrigando a vítima a aspirar pó, cimento,
e evitar o aparecimento de marcas visíveis dos pimenta ou substâncias análogas. Estas modali-
choques. As queimaduras eléctricas provocam em dades de tortura são também conhecidas como
geral lesões circulares de um castanho averme- “submarino a seco”. Podem causar diversas
lhado com 1 a 3 milímetros de diâmetro, em regra complicações, como as petéquias na pele, hemor-
sem inflamação, que podem provocar uma cicatriz ragias nasais, hemorragias dos ouvidos, conges-
hiper-pigmentada. A superfície cutânea deverá ser tionamento da face, infecções na boca e problemas
cuidadosamente examinada, uma vez que as respiratórios agudos ou crónicos. A imersão for-
lesões são muitas vezes difíceis de distinguir. çada da cabeça em água, muitas vezes contaminada
O recurso à biopsia para determinar a origem de com urina, fezes, vómitos ou outras impurezas,
lesões recentes é muito controverso. As queima- pode dar origem a um quase afogamento ou afo-
duras eléctricas podem produzir alterações histo- gamento. A entrada de água nos pulmões pode pro-
lógicas específicas, mas estas nem sempre estão vocar pneumonia. Esta forma de tortura é
presentes, o que de forma alguma afasta a hipótese conhecida como “submarino molhado”. No enfor-
de queimadura eléctrica. A decisão deve ser camento ou outras formas de asfixia através de
tomada caso a caso, ponderando se a dor e o des- ligaduras, podem frequentemente observar-se
conforto associados a uma biopsia cutânea se jus- abrasões ou contusões no pescoço. O osso hióide
tificam ou não pelos eventuais resultados da e as cartilagens laríngeas podem sofrer fracturas
intervenção (vide anexo II, secção II). em resultado de um estrangulamento parcial ou
pancadas no pescoço.
6. TORTURA DENTÁRIA
8. TORTURA SEXUAL, INCLUINDO A VIOLAÇÃO
212. A tortura dentária pode consistir na fractura
ou extracção de dentes, ou na aplicação de cor- 214. A tortura sexual começa com a nudez forçada,
rente eléctrica aos mesmos. Pode resultar na perda que em muitos países é um factor constante em
ou quebra dos dentes, tumefacção das gengivas, situações de tortura. Ninguém fica tão vulnerável
hemorragias, dores, gengivites, estomatites, frac- como quando está despido e impotente. A nudez
turas mandibulares ou perda de massa dentária. exacerba o terror provocado por todas as formas de

62
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
tortura, deixando pairar a ameaça de abusos mentam, medo de perder a virgindade e medo de
sexuais, violação ou sodomia. Para além disso, as não poder ter filhos (mesmo se a violação puder
ameaças, agressões verbais e piadas com conota- ser ocultada a um eventual marido e ao resto da
ções sexuais constituem também formas de tortura sociedade).
sexual, uma vez que acentuam a humilhação a
que a pessoa é sujeita e os aspectos degradantes do 216. Se, nas situações de abuso sexual, a vítima não
caso, fazendo parte do mesmo processo. Tratando- desejar que o facto se torne conhecido, devido a
-se de mulheres, os toques no seu corpo são sem- pressões sócio-culturais ou motivos pessoais, o
pre traumatizantes e consideram-se uma forma de médico que efectua o exame clínico, as agências de
tortura. investigação e os tribunais têm a obrigação de coo-
perar a fim preservar o anonimato da pessoa. Os
215. Existem algumas diferen- 89 D. Lunde e J. Ortmann, contactos com sobreviventes de tortura que
“Sexual torture and the
ças entre a tortura sexual de treatment of its consequen- tenham sido recentemente vítimas de agressão
ces” [em português: “A tor-
homens e a tortura sexual de tura sexual e o tratamento sexual exigem formação especializada na área da
das suas consequências”],
mulheres, mas determinadas Torture and the treatment psicologia e um apoio psicológico adequado.
of its consequences,
considerações aplicam-se a Current Treatment v
Dever-se-ão evitar quaisquer tratamentos que pos-
Approaches, M. Basog lu,
|

ambos os sexos. A violação está ed., Cambridge, Cambridge sam agravar o trauma psicológico da vítima. Antes
University Press, 1992,
sempre associada ao risco de pp. 310 a 331. de iniciar o exame, dever-se-á pedir a autorização
contrair doenças sexualmente da pessoa para qualquer tipo de intervenção,
transmissíveis, particularmente o vírus da imu- devendo essa autorização ser confirmada pela
nodeficiência humana (HIV)89. Actualmente, a vítima antes das partes mais íntimas do exame. A
única profilaxia eficaz contra o HIV deverá ser pessoa deverá ser informada, de forma clara e
administrada até poucas horas depois do inci- compreensível, acerca da importância do exame e
dente, mas não está geralmente disponível nos seus possíveis resultados.
países onde a tortura acontece habitualmente. Na
maior parte dos casos, haverá um componente de (a) Inventário dos sintomas
perversão sexual, noutros visam-se directamente
os órgãos genitais. Pancadas e choques eléctricos 217. Dever-se-á registar em detalhe toda a história
são em geral aplicados nos órgãos genitais mas- da alegada agressão, conforme explicado mais acima
culinos, com ou sem tortura anal adicional. no presente manual (vide secção B, supra). Existem,
O traumatismo físico daí resultante é reforçado contudo, algumas questões específicas que só são rele-
por agressões verbais. Existem muitas vezes amea- vantes em caso de alegação de abuso sexual. Visam
ças de perda de masculinidade e consequente determinar a existência de sintomas resultantes de
perda do respeito da sociedade, no caso dos uma agressão recente, por exemplo hemorragias,
homens. Os reclusos podem ser mantidos nus em corrimentos vaginais ou anais e localização de quais-
celas juntamente com membros da sua família, quer dores, feridas ou hematomas. No caso de agres-
amigos ou completos desconhecidos, violando sões sexuais mais antigas, as perguntas deverão
tabus culturais. Este aspecto pode ser agravado incidir sobre os sintomas crónicos resultantes da
pela falta de privacidade na utilização de instala- agressão, como a frequência das micções, inconti-
ções sanitárias. Para além disso, os reclusos nência urinária ou disuria, irregularidades mens-
podem ser obrigados a abusar sexualmente de truais, história ulterior de gravidez, aborto ou
outros reclusos, o que pode ser particularmente difí- hemorragia vaginal, problemas relacionados com a
cil de enfrentar em termos emocionais. Nas actividade sexual, incluindo dores e hemorragias
mulheres, o receio de serem violadas, dado o pro- anais e registadas durante o acto sexual, outras
fundo estigma social associado à violação, pode agra- hemorragias, obstipação e incontinência.
var o trauma. Também não deve ser ignorado o
trauma resultante da ideia de uma eventual gra- 218. Em termos ideais, deveriam existir instalações
videz, que os homens obviamente não experi- apropriadas, a nível logístico e técnico, para o

Indícios físicos da tortura


* 63
exame adequado das vítimas de violação por uma acompanhante. Contudo, dada a natureza sensível
equipa de psiquiatras, psicólogos, ginecologistas e das investigações de agressão sexual, um familiar
enfermeiros experientes e com formação específica da vítima é geralmente a pessoa ideal para desem-
no domínio do tratamento de vítimas de tortura. penhar o papel de acompanhante. O paciente
Um dos objectivos da consulta subsequente a uma deverá sentir-se confortável e descontraído
agressão sexual consiste em oferecer apoio e acon- durante o exame. Dever-se-á proceder a um exame
selhamento e, se for caso disso, tranquilizar a físico rigoroso e registar cuidadosamente todos
vítima. Devem abordar-se aspectos como as doen- os indícios detectados, com indicação do respectivo
ças sexualmente transmissíveis, infecção pelo tamanho, localização e cor. Sempre que possível,
HIV, gravidez – se a vítima for mulher – e lesões estes indícios deverão ser fotografados, devendo
físicas permanentes. Isto porque, muitas vezes, também ser recolhidas amostras para fins de
os torcionários dizem às suas vítimas que elas não prova e exame laboratorial.
voltarão jamais a ter uma vida sexual normal, o que
pode tornar-se verdade por auto-sugestão. 220. O exame físico não deverá começar por se cen-
trar na zona genital. Dever-se-á tomar nota de
(b) Exame subsequente a uma agressão recente todas as deformações observadas. Deverá ser dada
particular atenção ao exame cuidadoso da pele,
219. É raro que a vítima de vio- 90 Vide J. Howitt e procurando detectar quaisquer lesões cutâneas
D. Rogers, “Adult Sexual
lação durante uma sessão de Offences and Related que possam ter resultado de agressão, nomeada-
Matters” [em português:
tortura seja libertada enquanto “Crimes Sexuais sobre mente hematomas, lacerações, equimoses e peté-
Adultos e Matérias Cone-
é ainda possível identificar xas”], Clinical Forensic quias originadas por sucções ou mordeduras. Esta
Medicine, W.D.S. McLay
sinais agudos da agressão. Nes- ed., Londres, Greenwich
Medical Media, 1996,
fase inicial pode ajudar a descontrair o paciente para
tes casos, há que ter presentes pp. 193 a 218. o resto do exame. Por outro lado, caso as lesões geni-
diversas questões que podem tais sejam mínimas, as lesões localizadas em
dificultar o diagnóstico. As vítimas recentes de outras partes do corpo podem constituir os indí-
agressão sexual podem estar perturbadas ou con- cios mais significativos da agressão. Mesmo que
fusas, resistindo a procurar ajuda médica ou apoio o exame dos órgãos genitais femininos tenha
jurídico devido aos seus terrores, preocupações lugar imediatamente depois de uma violação, só são
sócio-culturais ou natureza destrutiva das sevícias detectadas lesões em menos de 50% dos casos.
a que foram sujeitas. Nestes casos, o médico O exame do ânus de homens e mulheres depois de
deverá explicar à vítima todas as possíveis opções uma violação anal permite detectar lesões em
existentes no plano médico e jurídico e actuar de menos de 30% dos casos. Evidentemente, se
acordo com a vontade da pessoa. Os deveres do forem utilizados objectos relativamente grandes
médico incluem a obtenção de consentimento para penetrar a vagina ou o ânus, a probabilidade
voluntário e esclarecido para a realização do de observar lesões é muito maior.
exame, registo de todos os indícios de maus tratos
detectados e a recolha de amostras para exames 221. Caso exista a possibilidade de recorrer a um
laboratoriais. Sempre que possível, o exame laboratório de medicina legal, os seus técnicos
deverá ser conduzido por um perito na documen- devem ser contactados antes do exame, para dis-
tação de agressões sexuais. Se assim não for, o cutir que tipos de espécimes podem ser testados
médico que efectua o exame deverá aconselhar-se e, consequentemente, que amostras devem ser
junto de um perito ou consultar a bibliografia recolhidas e como. Muitos laboratórios fornecem
essencial em matéria de medicina legal90. Se kits para facilitar a recolha de todas as amostras
médico e vítima pertencerem a sexos diferentes, necessárias em caso de alegada agressão sexual.
a esta deverá ser dada a oportunidade de ter um Caso não exista qualquer laboratório disponível,
acompanhante do seu sexo presente na sala dever-se-ão, mesmo assim, recolher amostras
durante o exame. Se for necessário recorrer a um húmidas e depois deixá-las secar ao ar, para mais
intérprete, este poderá desempenhar o papel de tarde efectuar testes de DNA. O esperma é iden-

64
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
tificável até cinco dias depois do acto, a partir de hepatite B e C, herpes simples e condyloma acumi-
amostras recolhidas através de espectroscopia natum (verrugas venéreas), vulvovaginites associadas
vaginal profunda, e até três dias com sonda rectal. à agressão, como a infecção por trichomonas, moni-
Devem ser tomadas todas as precauções para evi- liasis vaginitis, gardenarella vaginitis e enterobius
tar qualquer hipótese de contaminação cruzada vermicularis (lombrigas), bem como infecções do
caso tenham sido recolhidas amostras de diversas trato urinário.
vítimas, particularmente se também forem reco-
lhidas amostras dos presumíveis autores. Todas as 225. Devem ser prescritos os exames laborato-
amostras devem ser plenamente protegidas, riais e o tratamento adequados em todos os casos
devendo ainda ficar registada a identificação de de abuso sexual. No caso de gonorreia e infecção
todos quantos lhes tenham tido acesso. a clamídia, deve considerar-se a possibilidade de
infecção concomitante do ânus e orofaringe, pelo
(c) Exame efectuado mais de uma semana menos para fins de exame. Nos casos de agressão
depois da agressão sexual, devem recolher-se culturas iniciais e efec-
tuar-se testes serológicos, iniciando-se a terapêu-
222. Caso a alegada agressão tenha ocorrido há tica correspondente. As disfunções sexuais são
mais de uma semana e não existam sinais de comuns nos sobreviventes de tortura, em particular,
hematomas ou lacerações, o exame pélvico é mas não exclusivamente, entre as vítimas de tor-
menos urgente. Há tempo para tentar encontrar o tura sexual e violação. Entre os sintomas, que
profissional mais qualificado para efectuar o podem ser de origem física ou psicológica, ou uma
exame e reunir as melhores condições para entre- combinação de ambas, destacam-se:
vistar a pessoa. É, contudo, aconselhável fotogra-
far quaisquer lesões residuais, se isto ainda for i) Aversão às pessoas do sexo oposto ou dimi-
possível. nuição do interesse na actividade sexual;
ii) Receio da actividade sexual porque o par-
223. O médico deverá tomar 91 G. Hinshelwood, Gender- ceiro poderá aperceber-se de que a pessoa foi
-based persecution [em
nota dos antecedentes do caso português: “Perseguição
baseada no sexo”], Toronto,
vítima de abuso sexual ou por medo de ter sofrido
conforme atrás descrito, e depois Group Meeting on
United Nations Expert
Gender-
lesões funcionais. Os torcionários podem ter feito
das observações e constatações -based Persecution, 1997. esta ameaça e instilado o medo de homossexuali-
do exame. Nas mulheres que tenham sido mães dade nos homens vítimas de sodomia. Acontece por
antes da violação, e particularmente naquelas que vezes que homens heterossexuais têm erecções, e
o tenham sido depois, não é provável que se obser- chegam mesmo a ejacular, durante relações anais
vem sinais patognomónicos, embora uma médica não consentidas. Há que tranquilizá-los, esclare-
experiente possa aperceber-se de muita coisa a cendo tratar-se apenas de uma reacção psicoló-
partir da forma como a mulher relata a sua histó- gica;
ria91. Pode levar algum tempo até que a pessoa se iii) Incapacidade de confiar num parceiro sexual;
disponha a falar sobre os aspectos da tortura que iv) Dificuldades de estimulação sexual e dis-
considera mais embaraçosos. De forma seme- função eréctil;
lhante, o paciente pode desejar deixar as partes mais v) Dispareunia (relações sexuais dolorosas para
íntimas do exame para uma consulta posterior, se a mulher) ou infertilidade resultante de doença
o tempo e as circunstâncias o permitirem. sexualmente transmissível, traumatismo directo dos
órgãos reprodutores ou abortos mal feitos na
(d) Seguimento sequência de gravidez resultante da violação.

224. As sevícias sexuais podem permitir a trans- (e) Exame genital das mulheres
missão de inúmeras doenças infecciosas, nomea-
damente doenças sexualmente transmissíveis 226. Em muitas culturas, é completamente ina-
como a gonorreia, infecção a clamídia, sífilis, HIV, ceitável penetrar a vagina de uma mulher virgem

Indícios físicos da tortura


* 65
com qualquer objecto, incluindo um espéculo, malmente sentir o cordão espermático sobreposto
dedo ou tampão absorvente. Caso a mulher evi- à massa, o que não acontece nas situações de hér-
dencie claros sinais de violação na observação nia inguinal. O hidrocelo resulta da excessiva acu-
externa, pode ser desnecessário proceder ao exame mulação de líquido na túnica vaginal devido à
pélvico interno. Entre os sintomas detectados no inflamação dos testículos e seus anexos ou à dimi-
exame genital, podem contar-se: nuição da drenagem em resultado de obstrução
linfática ou venosa no cordão ou espaço retrope-
i) Pequenas lacerações ou rasgões na vulva. ritoneal. O hematocelo consiste na acumulação
Podem ser agudos e resultam do estiramento de sangue na túnica vaginal, em resultado do trau-
excessivo dos tecidos. Em geral, saram completa- matismo. Ao contrário do hidrocelo, não apresenta
mente mas, se repetidos, podem deixar cicatrizes; transiluminação.
ii) Abrasões dos órgãos genitais femininos.
Podem ser provocadas pelo contacto de objectos 229. Os traumatismos do escroto podem também
ásperos, por exemplo unhas ou anéis; causar torção testicular. Com esta lesão, os testículos
iii) Lacerações vaginais. São raras mas, se exis- retorcem-se na base, obstruindo o fluxo sanguíneo
tirem, podem estar associadas a uma atrofia dos no seu interior, o que provoca fortes dores e
tecidos ou cirurgia anterior. Não se distinguem grande inflamação e constitui uma emergência
das incisões causadas pela inserção de objectos cirúrgica. Se a torção não for imediatamente redu-
cortantes. zida, conduz a enfarte testicular. Em situações de
detenção, quando os cuidados médicos são por
227. Raramente se encontram provas físicas nos vezes negados, podem observar-se sequelas tar-
exames dos genitais femininos efectuados mais de dias desta lesão.
uma semana depois da alegada agressão. Mais
tarde, caso a mulher tenha prosseguido a sua acti- 230. Os indivíduos que tenham sido sujeitos a
vidade sexual, consentida ou não, ou dado à luz, tortura escrotal sofrem por vezes de infecções cró-
pode ser praticamente impossível associar qualquer nicas do aparelho urinário, disfunção eréctil ou
lesão observada a um incidente específico de ale- atrofia dos testículos. Os sintomas de stress pós-
gados maus tratos. Nestes casos, a componente -traumático são relativamente frequentes. Na fase
mais significativa de um exame clínico pode ser a crónica, pode ser impossível distinguir as patolo-
avaliação que o médico faz dos antecedentes do caso gias escrotais resultantes da tortura das provoca-
(por exemplo, a correlação entre os factos alegados das por outros processos patológicos. Caso o
e as lesões agudas que a pessoa afirma ter sofrido) exame urológico completo não revele quaisquer
bem como o comportamento da mulher, tendo anormalidades fisiológicas, quaisquer sintomas
em conta o contexto cultural em que se insere. ao nível do trato urinário, impotência ou outros pro-
blemas sexuais serão provavelmente de origem
(f ) Exame genital do homem psicológica. As cicatrizes na pele do escroto e
pénis podem ser muito difíceis de detectar. Por esta
228. Os homens sujeitos a tortura na zona geni- razão, a ausência de cicatrizes nestas áreas espe-
tal, nomeadamente esmagamento, torção ou esti- cíficas não infirma as alegações de tortura. Por
cões do escroto ou traumatismos directos nessa outro lado, a presença de cicatrizes visíveis indica
região, queixam-se geralmente de dores e sensi- em geral que a vítima sofreu um traumatismo
bilização durante o período agudo. Os sintomas importante.
mais frequentes são a hiperemia, tumefacções
pronunciadas e equimoses. A urina pode conter um (g) Exame da região anal
número elevado de eritrócitos e leucócitos. Se for
detectada uma massa, convém apurar se se trata 231. Depois de violação anal ou introdução de
de um hidrocelo, hematocelo ou hérnia inguinal. objectos no ânus, a vítima de qualquer dos sexos
Nos dois primeiros casos, a palpação permite nor- pode sofrer dores e hemorragias durante dias ou

66
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
semanas. Isto dá muitas vezes origem a obstipação, v) Corrimento purulento do ânus. Em todos os
frequentemente agravada pela dieta deficiente de casos de alegada penetração anal dever-se-ão reco-
muitos locais de detenção. Podem também regis- lher amostras para cultura em laboratório de
tar-se sintomas ao nível dos aparelhos gastroin- gonorreia e clamídia, independentemente do facto
testinal e urinário. Na fase aguda, qualquer exame de se verificar ou não corrimento.
para além da observação visual pode requerer anes-
tesia local ou geral e deve ser efectuado por um espe- e. Testes de diagnóstico especializados
cialista. Na fase crónica, podem persistir diversos
sintomas, que deverão ser investigados. A presença 232. Os testes de diagnóstico não constituem
de cicatrizes anais de tamanho ou posicionamento parte essencial da avaliação clínica de uma ale-
fora do comum deverá ser documentada. As fissuras gada vítima de tortura. Em muitos casos, o histo-
anais podem persistir durante muitos anos, mas é rial médico e exame físico são suficientes. Em
geralmente impossível distinguir as que resultam determinadas situações, contudo, tais testes cons-
da tortura das provocadas por outros factores. Ao tituem um importante elemento probatório. Por
examinar o ânus, dever-se-á prestar atenção e docu- exemplo, em caso de procedimento judicial ins-
mentar os seguintes sintomas: taurado contra as autoridades em causa ou pedido
de indemnização. Nestas situações, um teste posi-
i) Fissuras: as fissuras tendem a constituir sin- tivo pode fazer toda a diferença. Para além disso,
tomas atípicos uma vez que podem produzir-se em se forem realizados testes de diagnóstico por moti-
diversas situações “normais” (obstipação, higiene vos terapêuticos, os respectivos resultados deverão
deficiente). Contudo, se observadas numa fase ser incluídos no relatório clínico. Saliente-se que
aguda (isto é, nas 72 horas seguintes) constituem a ausência de um resultado positivo nos testes de
um sintoma mais específico e podem ser consi- diagnóstico, como no exame físico, não deve ser
deradas indício de penetração; usada para sugerir que o acto de tortura não ocor-
ii) Rasgões rectais, com ou sem hemorragia; reu. Muitas vezes, razões técnicas impedem a rea-
iii) Ruptura da superfície rugosa: pode mani- lização de testes de diagnóstico, o que não deve
festar-se sob a forma de cicatriz suave em forma jamais invalidar um relatório convenientemente ela-
de leque. A presença de cicatrizes deste tipo fora borado nos restantes aspectos. Sempre que as
da linha mediana (isto é, fora dos pontos corres- capacidades dos serviços de diagnóstico sejam
pondentes às 12 ou 6 horas) pode indiciar trau- limitadas, as necessidades clínicas devem ter sem-
matismo por penetração; pre prioridade sobre as utilizações com fins estri-
iv) Marcas na pele, que podem resultar de trau- tamente jurídicos (para mais pormenores, vide
matismos em cicatrização; anexo II).

Indícios físicos da tortura


* 67
cap
ítu
lo

*06
Indícios psicológicos da tortura

a. Considerações gerais 234. Os autores de tortura ten- 92 G. Fischer e N. F. Gurris,


“Grenzverletzungen: Folter
tam muitas vezes justificar os und sexuelle Traumatisie-
rung”, Praxis der Psycho-
1. O PAPEL FUNDAMENTAL DA AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA seus actos com a necessidade therapie-Ein integratives
Lehrbuch für Psychoa-
de obter informação. Estas nalyse und Verhaltensthe-
rapie, W. Senf W. Broda
233. A tortura é geralmente reconhecida como ideias escondem os verdadeiros ed., Estugarda, Thieme,
1996.
uma experiência limite, susceptível de causar inú- objectivos da tortura e efeitos
meros tipos de sofrimentos físicos e mentais. visados. Um dos principais objectivos da tortura
A maioria dos médicos e investigadores concordam consiste em reduzir a vítima a uma condição de
que a natureza extrema da experiência de tortura absoluta impotência e angústia que pode levar à
é suficientemente forte para gerar, por si só, con- deterioração das funções cognitivas, emocionais e
sequências mentais e emocionais, independente- comportamentais92. Assim, a tortura constitui um
mente da condição psíquica anterior da vítima. ataque aos mecanismos fundamentais de funcio-
Contudo, as consequências psicológicas da tor- namento psicológico e social da pessoa. Nestas
tura dependem também do significado que a circunstâncias, o torcionário tenta, não apenas
vítima atribui ao sucedido, do desenvolvimento da incapacitar a vítima em termos psicológicos, mas
sua personalidade e de factores sociais, políticos também desintegrar a personalidade da pessoa
e culturais. Por esta razão, não deve partir-se do em causa. O torcionário procura destruir os vínculos
princípio de que todas as formas de tortura que a vítima mantém com a família e com a socie-
têm as mesmas consequências. Por exemplo, o dade, enquanto ser humano com sonhos, espe-
impacto psicológico de um simulacro de execução ranças e aspirações para o futuro. Ao desumanizar
não é igual ao de uma agressão sexual, ao passo o indivíduo e fazer ceder a sua vontade, os auto-
que o isolamento e a detenção solitária não têm res de tortura comprometem gravemente as rela-
o mesmo efeito da tortura física. Da mesma ções a estabelecer no futuro entre a vítima e as
forma, as consequências da detenção e tortura pessoas que a rodeiam. Desta forma, a tortura
serão provavelmente diferentes consoante a pode destruir ou comprometer a vontade e coesão
vítima seja um adulto ou uma criança. De qual- de comunidades inteiras. Para além disso, a tortura
quer forma, existem conjuntos de sintomas e pode provocar danos irreparáveis no relaciona-
reacções psicológicas que se observam e docu- mento íntimo entre cônjuges, pais, filhos e outros
mentam com alguma regularidade nos sobrevi- membros da família e na relação das vítimas com
ventes de tortura. as suas comunidades.

Indícios psicológicos da tortura


* 69
235. É importante reconhecer 93 A. Kleimann, “Antropo- gens étnicas e culturais muito 96
R. F. Mollica, K. Done-
logy and psychiatry: the role lan, S. Tor e outros, “The
que nem todas as vítimas de of culture in cross-cultural diversas96 97 98. O estudo inter- effect of trauma and confi-
research on illness and care” nement on the functional
tortura desenvolvem doenças [em português: “Antropolo- cultural da Organização Mun- health and mental health
gia e psiquiatria: o papel da status of Cambodians living
mentais diagnosticáveis. Muitas cultura na pesquisa inter-
-cultural sobre doença e tra-
dial de Saúde sobre a depressão in Thailand-Cambodia bor-
der camps” [em português:
vítimas experimentam, contudo, tamento”], estudo
apresentado no simpósio
fornece dados úteis99. Embora “Consequências do trauma
e isolamento sobre a saúde
profundas reacções emocionais regional sobre psiquiatria e
disciplinas conexas da
alguns sintomas possam estar funcional e estado de saúde
mental dos cambojanos
e sintomas psicológicos. Os Associação Mundial
de Psiquiatria, 1986.
presentes em todas as culturas, residentes em campos junto
à fronteira entre a Tailândia
principais distúrbios psicológi- 94 H. T. Engelhardt, “The não são necessariamente esses e o Camboja”], Journal of
the American Medical
cos associados à tortura são o concepts of health and
disease” [em português:
os que mais afligem o indiví- Association (JAMA), 270,
1993, pp. 581 a 586.
síndrome de stress pós-trau- “Os conceitos de saúde e
doença”], Evaluation and
duo. 97
J. D. Kinzie e outros,
“The prevalence of post-
mático e a depressão major. Explanation in the Biome-
dical Sciences, H. T. Enge- traumatic stress disorder
lhardt e S. F. Spicker, eds.,
Embora estas perturbações este- Dordrecht: D. Reidel Publis- 2. CONTEXTO DA AVALIAÇÃO and its clinical significance
among Southeast Asian
jam presentes na população em hing 141.
Co., 1975, pp. 125 a
PSICOLÓGICA refugees” [em português: “A
prevalência da perturbação
de stress pós-traumático e
geral, a sua incidência é muito 95 J. Westermeyer, “Psychia- seu significado clínico entre
maior nas populações traumati- tric diagnosis across cultural
boundaries” [em português: 237. As avaliações têm lugar em os refugiados do sudeste
asiático”], American Jour-
“O diagnóstico psiquiátrico nal of Psychiatry, 147 (7),
zadas. As particulares repercus- através das fronteiras cultu- contextos políticos muito diver- 1990, pp. 913 a 917.
sões culturais, sociais e políticas rais”], American Journal of
Psychiatry, 142 (7), 1985, sos, de onde resultam importan- 98
K. Allden e outros, “Bur-
que a tortura tem sobre cada pp. 798 a 805. tes diferenças na forma como o mese political dissidents in
Thailand: trauma and survi-
val among young adults in
indivíduo influenciam a sua capacidade para des- processo de avaliação deve ser exile” [em português: “Dissi-
dentes políticos birmaneses
crever a experiência e falar sobre a mesma. Estes conduzido. O médico ou psicó- na Tailândia: trauma e
sobrevivência entre jovens
são factores importantes que contribuem para o logo deve adaptar as directrizes adultos no exílio”], Ameri-
can Journal of Public
impacto psicológico e social da tortura e que que a seguir se enunciam à Health, 86, 1996, pp. 1561
a 1569.
devem ser considerados na avaliação de pessoas per- situação concreta e finalidade
99
N. Sartirius, “Cross-cul-
tencentes a culturas diferentes. A pesquisa inter- específica da avaliação que rea- tural research on depres-
sion” [em português:
cultural revela que os métodos fenomenológicos ou liza (vide capítulo III, secção Pesquisa inter-cultural sobre
a depressão”] , Psychopa-
descritivos constituem as abordagens mais racio- C.2). thology, 19 (2), 1987, pp. 6
a 11.
nais para tentar avaliar distúrbios psicológicos ou
psiquiátricos. Aquilo que se considera desordem 238. A possibilidade de colocar ou não determinadas
comportamental ou doença numa dada cultura questões em segurança varia bastante e depende
pode não ser visto como patologia numa outra93 94 das condições de sigilo e segurança que seja pos-
95. Desde a II Guerra Mundial, foram feitos pro- sível garantir. Por exemplo, um exame efectuado
gressos na compreensão das consequências psi- numa prisão por um médico do exterior, limitado
cológicas da violência, nomeadamente graças à à duração máxima de 15 minutos, não pode ser rea-
observação e documentação de determinados sin- lizado da mesma forma que um exame médico-legal
tomas e conjuntos de sintomas psicológicos entre efectuado num consultório privado, que pode
os sobreviventes de tortura e de outros tipos de vio- demorar várias horas. Problemas acrescidos se
lência. colocam ao tentar avaliar a natureza patológica ou
adaptativa de determinados sintomas psicológi-
236. Nos últimos anos, o diagnóstico de sín- cos ou comportamentos. Caso a pessoa examinada
drome de stress pós-traumático tem vindo a ser se encontre detida ou viva num ambiente consi-
aplicado a uma diversidade cada vez maior de deravelmente ameaçador ou opressivo, determi-
indivíduos que sofrem as consequências de tipos nados sintomas podem ser adaptativos. Por
muito diferentes de violência. Contudo, a utilidade exemplo, a diminuição do interesse por diversas
deste diagnóstico nas culturas não ocidentais não actividades e sintomas de alheamento e indife-
foi ainda estabelecida. Os indícios sugerem, de rença são compreensíveis numa pessoa detida em
qualquer forma, uma alta incidência de stress regime de isolamento. Da mesma maneira, com-
pós-traumático e sintomas de depressão em portamentos de hiper-vigilância e negação podem
populações refugiadas traumatizadas com ori- tornar-se necessários para pessoas que vivam em

70
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
sociedades repressivas100. As wentM.wrong?:
100
A. Simpson, “What belecimento de diagnósticos e classificações. Em
diagnostic
limitações com que o médico se and ethical problems in termos ideais, esta atitude permitirá transmitir à
dealing with the effects of
pode deparar para a realização torture and repression in vítima a ideia de que as suas queixas e a sua dor são
South Africa” [em portu-
da entrevista não devem, con- diagnósticoquee problemas
guês: “O correu mal?:
éti-
reconhecidas como reais e normais, dadas as cir-
tudo, impedir que se procurem cos ao lidar com os efeitos
da tortura e repressão na
cunstâncias. Assim, uma atitude empática e sensí-
aplicar as directrizes enunciadas África do Sul”], Beyond
Trauma-Cultural and Socie-
vel pode atenuar o sentimento de alienação muitas
no presente manual. Em cir- tal Dynamics, R. J. Kleber,
C. R. Figley, B. P. R. Ger-
vezes experimentado pelas vítimas de tortura.
sons, eds., Nova Iorque,
cunstâncias difíceis, é parti- Plenum Press, 1995, pp. 188
cularmente importante que o a 210. 2. REACÇÕES PSICOLÓGICAS COMUNS
governo e as autoridades envolvidas respeitem
estas normas na máxima medida possível. (a) Revivência do trauma

b. Consequências psicológicas da tortura 240. A vítima pode sofrer visões ou recordações


intrusivas que a fazem reviver a experiência trau-
1. ADVERTÊNCIAS matizante, mesmo quando acordada e consciente, bem
como pesadelos recorrentes, que incluem elementos
239. Antes de entrar na descri- son,101
M. Friedman e J. Jaran- do acontecimento traumático na sua forma original
“The applicability of
ção técnica dos sintomas e clas- the post-traumatic concept
to refugees” [em português:
ou simbólica. O sentimento de angústia perante tudo
sificações psiquiátricas, deve “A aplicabilidade do con-
ceito pós-traumático aos
quanto possa simbolizar ou assemelhar-se ao trauma
referir-se que as classificações refugiados”], Amidst Peril
and Pain: The Mental
manifesta-se frequentemente através de falta de con-
psiquiátricas são geralmente Health and Well-being of
the World’s Refugees,
fiança e medo de todos quantos estejam numa posi-
consideradas conceitos médicos T.Washington,
Marsella e outros, ed.,
D. C., Ameri-
ção de autoridade, incluindo médicos e psicólogos.
can Psychological associa-
ocidentais e que a sua aplicação tion Press, 1994, pp. 207 a Nos países ou situações em que as autoridades este-
a populações não ocidentais 227. jam implicadas em violações de direitos humanos, a
coloca, implícita ou explicitamente, certas dificul- falta de confiança e receio das figuras de autoridade
dades. Pode argumentar-se que as culturas oci- não deve ser considerada patológica.
dentais sofrem de uma indevida medicalização
dos processos psicológicos. A ideia de que o sofri- (b) Negação e alheamento emocional
mento mental representa um distúrbio para a pes-
soa e é identificável a partir de um conjunto de i) Evitação de qualquer pensamento, conversa,
sintomas característicos pode ser inaceitável para actividade, local ou pessoa que desperte recorda-
muitos membros de sociedades não ocidentais. De ções do trauma;
qualquer forma, existem indícios consideráveis de ii) Profundo retraimento emocional;
alterações biológicas associadas a situações de stress iii) Profundo desinteresse pessoal e alheamento
pós-traumático pelo que, desta perspectiva, a per- social;
turbação de stress pós-traumático constitui uma iv) Incapacidade para recordar um aspecto
doença diagnosticável e susceptível de tratamento bio- importante do trauma.
lógico e psicológico101. Tanto quanto possível, o
médico ou psicólogo responsável pela avaliação (c) Sobreexcitação
deverá tentar situar o sofrimento mental no contexto
das convicções da pessoa e normas culturais que i) Dificuldade em dormir ou adormecer;
regem o seu comportamento, o que implica res- ii) Irritabilidade ou acessos de cólera;
peitar o contexto político, bem como as crenças cul- iii) Dificuldades de concentração;
turais e religiosas em causa. Dada a gravidade da iv) Hiper-vigilância, reacção exagerada de sobres-
tortura e suas consequências, ao efectuar uma ava- salto;
liação psicológica o médico deve adoptar uma atitude v) Ansiedade generalizada;
aberta, dialogando com o paciente e ouvindo o que vi) Falta de ar, suores, boca seca ou enjoos e dis-
este tem para dizer, e não se precipitando no esta- túrbios gastrointestinais.

Indícios psicológicos da tortura


* 71
(d) Sintomas de depressão objectivas confirmadas no exame físico, são pro-
blemas comuns entre as vítimas de tortura. A dor
241. Podem estar presentes os seguintes sinto- é por vezes a única queixa da pessoa, podendo
mas de depressão: falta de ânimo, anedonia (acen- variar na sua localização e intensidade. Os sinto-
tuada diminuição do interesse ou prazer em actos mas somáticos podem resultar directamente das
que normalmente o proporcionam), distúrbios de sequelas físicas da tortura ou terem origem psi-
apetite ou perda de peso, insónia ou hipersónia, agi- cológica. Por exemplo, qualquer tipo de dor pode
tação ou lentidão psicomotora, fadiga e perda de ser uma consequência física directa da tortura ou
energia, sentimentos de inutilidade e culpa exces- ter origem psicológica. Entre as queixas somáticas
siva, dificuldades de concentração ou memória, mais comuns, incluem-se as dores nas costas,
pensamentos de morte, ideias de suicídio ou ten- dores nos músculos e ossos e dores de cabeça, fre-
tativas de suicídio. quentemente resultantes de traumatismos cra-
nianos. As dores de cabeça são muito comuns
(e) Perda de auto-estima e falta de perspectivas entre os sobreviventes de tortura e tornam-se mui-
futuras tas vezes crónicas, podendo ser causadas ou agra-
vadas pela tensão e pelo stress.
242. A vítima tem um senti- 102 N. R. Holtan, “How
medical assessment of vic-
mento subjectivo de ter sofrido tims of torture relates to (h) Disfunção sexual
psychiatric care” [em portu-
um dano irreparável e uma alte- guês: “Como a avaliação
médica das vítimas de tor-
ração de personalidade irrever- tura se relaciona com o tra- 245. A disfunção sexual é comum nos sobrevi-
tamento psiquiátrico”],
sível102. A pessoa sente que as Caring for Victims of Tor-
ture, J. M. Jaranson e M. K.
ventes de tortura, particularmente entre aqueles
suas perspectivas futuras estão C., American
Popkin, eds., Washington D.
Psychiatric
que são vítimas de tortura sexual ou violação, mas
irremediavelmente comprome- Press, 1998, pp. 107 a 113. não apenas entre eles (vide capítulo V, secção
tidas, não tendo expectativas em termos de carreira, D.8).
casamento, filhos ou uma vida normal.
(i) Psicoses

(f ) Dissociação, despersonalização e compor- 246. As diferenças culturais e linguísticas podem


tamento atípico ser confundidas com sintomas de psicose. Antes
de rotular alguém de psicótico, há que avaliar os
243. A dissociação consiste numa ruptura ao nível sintomas tendo em conta o contexto cultural pró-
da integração da consciência, auto-percepção, prio do indivíduo. As reacções psicóticas podem ser
memória e acções. A pessoa pode não ter cons- breves ou prolongadas, e os sintomas podem
ciência de certas acções que pratica ou sentir-se manifestar-se durante o período de detenção e tor-
dividida em dois, como se se observasse a si tura, ou mais tarde. Eis alguns dos sintomas mais
mesma à distância. A despersonalização consiste habituais:
em sentir-se separado de si próprio ou do seu
corpo. A dificuldade de controlar certos impulsos i) Delírios;
origina comportamentos que a vítima considera ii) Alucinações auditivas, visuais, tácteis e olfac-
altamente atípicos relativamente à sua personali- tivas;
dade antes do trauma. Um indivíduo anterior- iii) Ideias e comportamentos bizarros;
mente cauteloso pode envolver-se em iv) Ilusões ou distorções perceptivas que podem
comportamentos de alto risco. assumir a forma de pseudo-alucinações e estados
aproximados de verdadeira psicose. As falsas per-
(g) Queixas somáticas cepções e alucinações que ocorrem ao adormecer
ou ao acordar são comuns na população em geral
244. Os sintomas somáticos, como as dores, cefa- e não traduzem um estado psicótico. É relativa-
leias ou outras queixas físicas, com ou sem causas mente habitual que as vítimas de tortura se quei-

72
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
xem ocasionalmente de ouvir gritos, de ouvir cha- 3. CLASSIFICAÇÕES DE DIAGNÓSTICO
mar o seu nome ou de ver sombras, sem manifestar
sinais ou sintomas de psicose declarada; 249. Embora as principais quei- 103 Organização Mundial de
Saúde, The ICD-10 Classi-
v) Paranóia e delírios de perseguição; xas e as observações mais impor- fication of Mental and
Behavioural Disorders and
vi) Nos indivíduos com antecedentes de doença tantes registadas entre as vítimas Diagnostic Guidelines [em
português: “A Classificação
mental, podem desenvolver-se distúrbios psicóti- de tortura sejam muito diversi- CID-10 dos Distúrbios Men-
tais e Comportamentais e
cos recorrentes ou alterações de humor com carac- ficadas e dependam em larga Directrizes para o Diagnós-
tico], Genebra, 1994.
terísticas psicóticas. As pessoas com antecedentes medida da experiência de vida 104 American Psychiatric
de distúrbios bipolares, depressão major com de cada pessoa e do contexto cul- Association, Diagnostic
and Statistical Manual of
características psicóticas, esquizofrenia ou dis- tural, social e político em que se Mental Disorders [em por-
tuguês: “Manual de Diag-
túrbios esquizo-afectivos podem manifestar estes insere, convém que as pessoas nóstico e Estatística das
Doenças Mentais”], 4.a edi-
mesmos transtornos. que realizam as avaliações se ção, Washington
D. C., 1994.
familiarizem com os distúrbios
(j) Abuso de substâncias tóxicas mais frequentemente diagnosticados a essas pessoas.
Para além disso, é relativamente frequente que as
247. Acontece frequentemente que os sobreviven- vítimas sofram cumulativamente de dois ou mais
tes de tortura comecem a utilizar abusivamente o distúrbios mentais, que podem interagir entre si.
álcool ou drogas como forma de obnubilar as suas Manifestações diversas de ansiedade e depressão
memórias traumáticas, reequilibrar os seus afec- são os sintomas mais comuns entre as vítimas de
tos e lidar com a ansiedade. tortura. Com relativa frequência, a sintomatologia
[supra] descrita é enquadrada nas categorias de
(k) Incapacidades neuropsicológicas ansiedade e alterações de humor. Os dois sistemas
de classificação mais importantes são a Classificação
248. A tortura pode provocar traumatismos físicos Internacional de Doenças (CID-10), classificação dos
que conduzem a diversos tipos de lesões cerebrais. distúrbios mentais e comportamentais, e o
Golpes na cabeça, asfixia e malnutrição prolon- Manual de Diagnóstico e Estatística das Doenças
gada podem ter consequências neurológicas e Mentais da Associação Psiquiátrica Americana
neuropsicológicas de longo prazo difíceis de detec- [Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disor-
tar no decurso do exame médico. Caso as lesões ders: DSM-IV]103 104. Para uma descrição completa
cerebrais não possam ser detectadas através de das categorias de diagnóstico, o leitor deverá con-
imagiologia cerebral ou outros procedimentos sultar a CID-10 e o DSM-IV. Limitar-nos-emos a
médicos, a avaliação e testes neuropsicológicos abordar os diagnósticos mais habitualmente asso-
podem ser a única forma fidedigna de documen- ciados a situações traumáticas: perturbação de
tar as respectivas sequelas. Muitas vezes, os sin- stress pós-traumático, depressão major e alterações
tomas que essas avaliações e testes visam detectar duradouras da personalidade.
coincidem em grande medida com a sintomatologia
da perturbação de stress pós-traumático e da (a) Distúrbios depressivos
depressão major. As flutuações ou défices ao nível
da consciência, orientação, atenção, concentração, 250. Os estados depressivos são comuns a prati-
memória ou funcionamento executivo podem camente todos os sobreviventes de tortura. Na ava-
resultar de perturbações funcionais, bem como liação das consequências da tortura, não se deve
de causas orgânicas. Assim, para fazer tais dis- partir do princípio de que a perturbação de stress
tinções são necessários conhecimentos especiali- pós-traumático e a depressão major são duas pato-
zados no domínio da avaliação neuropsicológica, logias autónomas com características etiológicas
e há que ter consciência das dimensões culturais claramente distintas. Os distúrbios depressivos
que influem na validação dos instrumentos de englobam a depressão major, de episódio único ou
avaliação neuropsicológica (vide secção C.4 do pre- recorrente (mais do que um episódio). Podem ser
sente capítulo). acompanhados ou não de sintomas psicóticos,

Indícios psicológicos da tortura


* 73
catatónicos, melancólicos ou atípicos. De acordo conseguir recordar as datas e locais exactos em que
com o DSM-IV, para que possa ser diagnosticado tal aconteceu, nem fornecer pormenores quanto aos
um episódio de depressão major, é necessário que autores do acto. Nestas circunstâncias, a incapa-
cinco ou mais dos seguintes sintomas estejam cidade para recordar detalhes concretos confirma
presentes em simultâneo durante um período de a credibilidade da história da vítima, ao invés de
duas semanas e representem uma alteração do a desmentir. As linhas gerais do relato da pessoa
estado anterior do paciente (pelo menos um dos mantêm-se nas entrevistas subsequentes. O diag-
sintomas deve ser um ânimo depressivo ou perda nóstico da PTSD segundo a CID-10 é muito
de interesse ou prazer): (1) ânimo depressivo; (2) semelhante ao do DSM-IV. De acordo com a clas-
diminuição acentuada do interesse ou do prazer em sificação do DSM-IV, a perturbação de stress pós-
todas ou quase todas as actividades; (3) perda de -traumático pode ser aguda, crónica ou diferida. Os
peso ou alterações de apetite; (4) insónia ou hiper- sintomas devem estar presentes durante mais de
sónia; (5) agitação ou atraso psicomotor; (6) fadiga um mês e o distúrbio deve causar significativa
ou perda de energia; (7) sentimentos de inutilidade angústia ou disfunção funcional. Para um diag-
ou culpabilidade excessiva ou inadequada; (8) nóstico de perturbação de stress pós-traumático, é
redução da capacidade de reflexão ou concentração; necessário que a pessoa tenha estado exposta a
(9) pensamentos recorrentes de morte ou suicídio. um acontecimento traumatizante que haja amea-
Para um diagnóstico de depressão, é necessário que çado a sua vida ou a de terceiros e provocado
os sintomas causem angústia significativa ou dis- medo, impotência ou horror intenso. A vítima
função social ou ocupacional, não tenham origem deve reviver recorrentemente o acontecimento, de
numa perturbação psicológica e não sejam expli- uma das seguintes formas: surgem-lhe recordações
cáveis por outro diagnóstico de acordo com a clas- intrusivas e angustiantes do sucedido; tem sonhos
sificação DSM-IV. angustiantes recorrentes que evocam o aconteci-
mento; sente que tudo está a acontecer de novo ou
(b) Perturbação de stress pós-traumático age como se o estivesse, nomeadamente através de
alucinações, flashbacks e ilusões; experimenta
251. O diagnóstico mais habitualmente associado intensa tensão psicológica perante algo que lhe
com as consequências psicológicas da tortura é a recorde o evento e reacções psicológicas quando
perturbação de stress pós-traumático (post-trau- exposto a algo que evoque ou simbolize qualquer
matic stress disorder – PTSD). A associação entre aspecto do mesmo.
a tortura e este diagnóstico está hoje em dia muito
presente no espírito dos profissionais de saúde, 253. A pessoa deve evitar persistentemente os
autoridades de imigração e público informado, o estímulos associados ao acontecimento traumá-
que cria a impressão errada e simplista de que a tico ou demonstrar alheamento geral, apresen-
PTSD é a principal consequência psicológica da tor- tando pelo menos três dos seguintes sintomas:
tura. (1) tentativa de evitar pensamentos, sentimentos ou
conversas relacionadas com o acontecimento;
252. A definição da PTSD segundo o DSM-IV (2) tentativa de evitar actividades, locais ou pessoas
baseia-se em grande medida na presença de dis- que lhe lembrem o acontecimento; (3) incapacidade
túrbios de memória relacionados com o trauma, tais para recordar um aspecto importante do sucedido;
como recordações intrusivas, pesadelos e incapa- (4) diminuição do interesse por actividades impor-
cidade para recordar aspectos importantes do tantes; (5) alheamento ou afastamento dos outros;
acontecimento traumatizante. A pessoa pode não (6) repressão dos afectos; (7) falta de perspectivas
conseguir recordar-se de forma precisa de por- futuras. Segundo a classificação DSM-IV, um
menores específicos do caso de tortura, mas lem- outro factor que permite o diagnóstico da pertur-
brar-se-á dos aspectos mais marcantes da bação de stress pós-traumático consiste na per-
experiência. Por exemplo, a vítima pode lembrar- sistência de sintomas de sobreexcitação que não
-se de ter sido violada em diversas ocasiões, mas não estavam presentes antes do trauma, o que é con-

74
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
firmado por pelo menos dois dos seguintes indí- traumatizante. O diagnóstico exclui alterações
cios: dificuldade em dormir ou adormecer, irrita- que traduzam outra perturbação mental ou qual-
bilidade ou acessos de cólera, dificuldades de quer sintoma de distúrbio mental anterior, bem
concentração, hiper-vigilância e reacções de como alterações da personalidade e do compor-
sobressalto exagerado. tamento resultantes de doença, disfunção ou
lesão cerebral.
254. Os sintomas da perturbação de stress pós-
-traumático podem ser crónicos ou variar ao 256. Segundo a CID-10, para o diagnóstico de
longo de períodos de tempo prolongados. Em alteração duradoura da personalidade na
determinadas fases, o quadro clínico é dominado sequência de uma experiência catastrófica, é
por sintomas de sobreexcitação e irritabilidade. necessário que as mudanças de personalidade
Nestas alturas, a vítima costuma também queixa- estejam presentes durante pelo menos dois anos
-se de um acréscimo das memórias intrusivas, depois da exposição à situação traumatizante. A
pesadelos e flashbacks. Noutras fases, a vítima CID-10 especifica que o stress deverá ser tão
pode parecer relativamente assintomática ou extremo que “não seja necessário ter em conta
apresentar retraimento e alheamento emocional. a vulnerabilidade pessoal para explicar o seu
Dever-se-á ter presente que o facto de a vítima não profundo efeito sobre a personalidade”. Esta
preencher os requisitos para o diagnóstico da alteração da personalidade caracteriza-se por
perturbação de stress pós-traumático não signi- uma atitude hostil ou desconfiada em relação ao
fica que a tortura não tenha acontecido. De mundo, alheamento social, sentimentos de
acordo com a CID-10, uma determinada percen- vazio ou perda de esperança, sentimento cró-
tagem dos casos de perturbação de stress pós- nico de “estar no limite”, como se sob uma
-traumático podem evoluir para um cenário ameaça constante, e distanciamento.
crónico durante muitos anos, com eventual tran-
sição para uma alteração duradoura da persona- (d) Abuso de substâncias tóxicas
lidade.
257. Os médicos constataram que as vítimas de tor-
(c) Alteração duradoura da personalidade tura tornam-se muitas vezes dependentes do
álcool ou de drogas, como forma de afastar recor-
255. Depois de catástrofes ou situações de dações traumáticas, reequilibrar afectos e lidar
stress extremo prolongado, as pessoas adultas com a ansiedade. Embora seja comum a presença
podem desenvolver distúrbios de personalidade, simultânea da perturbação de stress pós-traumá-
mesmo não tendo qualquer antecedente deste tipo tico e outras patologias, o fenómeno da toxicode-
de perturbação. Entre os tipos de stress extremo pendência dos sobreviventes de tortura tem sido,
susceptíveis de originar alterações de persona- até agora, pouco estudado. As obras sobre popu-
lidade, contam-se o internamento em campos lações afectadas pela perturbação de stress pós-
de concentração, desastres, detenção prolongada -traumático debruçam-se por vezes sobre a
com a possibilidade iminente de morte, exposi- problemática dos sobreviventes de tortura, como
ção a situações que ameaçam a vida, como o ter- refugiados, prisioneiros de guerra e veteranos de
rorismo, e a tortura. De acordo com a CID-10, a conflitos armados, e podem fornecer alguns dados
alteração duradoura da personalidade só deve importantes. Os estudos sobre estes grupos reve-
ser diagnosticada quando existam indícios de lam que a incidência do abuso de substâncias tóxi-
uma mudança definitiva, significativa e persis- cas varia em função do grupo étnico ou cultural.
tente nos mecanismos de percepção, relaciona- Os antigos prisioneiros de guerra com perturbação
mento e pensamento do indivíduo relativamente de stress pós-traumático estão mais expostos ao
ao seu meio e a si próprio, associada a compor- risco da toxicodependência e os veteranos de
tamentos inflexíveis e dificuldades de adapta- guerra apresentam altas taxas de perturbação de
ção que não se verificavam antes da experiência stress pós-traumático associada ao abuso de subs-

Indícios psicológicos da tortura


* 75
tâncias tóxicas105 106 107 108 109 110
105
P. J. Farias, “Emotional iv) Distúrbios de natureza so- “Perturbação de stress pós-
-traumático: co-morbosidade
distress and its sócio-politi-
111 112. Em resumo, o estudo de somática e tolerância ao
cal correlates in Salvadoran mática, com sintomas físicos esforço”], Psychosomatics,
refugees: analysis of a clini-
outras populações em risco de cal sample” [em português: que não se explicam por nenhu- 31 (2), 1990, pp. 197 a 203.
“Tensão emocional e suas
perturbação de stress pós-trau- correlações sócio-políticas
nos refugiados salvadore-
ma patologia clínica;
mático demonstra a existência nhos: análise de uma amos-
tra clínica”], Culture,
v) Distúrbios bipolares, caracterizados por epi-
de indícios consideráveis de Medicine and Psychiatry,
15, 1991, pp. 167 a 192.
sódios maníacos ou hipomaníacos acompanhados
que o abuso de substâncias 106
A. Dadfar, “The Afg-
de humor exaltado, expansivo ou irritável, ideias
tóxicas pode estar presente nos hans: bearing the scars of a
forgotten war” [em portu-
de grandeza, diminuição da necessidade de dormir,
sobreviventes de tortura, em guês: Os afegãos: portado-
res das cicatrizes de uma
fuga de ideias, agitação psicomotora e fenómenos
guerra esquecida], Amidst psicóticos associados;
simultâneo com outros distúr- peril and pain, A. Marsella
e outros, Washington D. C.,
bios. American Psychological
vi) Distúrbios resultantes de patologia clínica
Association, 1994.
geral, muitas vezes sob a forma de disfunção cere-
107
G. W. Beebe, “Follow-up
(e) Outros diagnósticos studies of World War II and
bral e consequentes flutuações ou défices ao nível
Korean war prisoners, II:
morbidity, disability and
da consciência, orientação, atenção, concentração,
maladjustments” [em por-
258. Como resulta claramente tuguês: “Estudos de acom- memória e funcionamento executivo;
panhamento dos
do catálogo de sintomas descri- prisioneiros de guerra da vii) Fobias, nomeadamente fobia social e agora-
Segunda Guerra Mundial e
tos na presente secção, existem Guerra da Coreia: morbosi- fobia.
dade, deficiência e desajus-
outros diagnósticos a conside- tamentos”], American

rar para além da perturbação de


Journal of Epidemiology,
101, 1975, pp. 400 a 422. c. Avaliação psicológica/psiquiátrica
stress pós-traumático, como a 108
B E. Engdahl e outros,
“The comorbidity and
depressão grave e a alteração course of psychiatric disor- 1. CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E CLÍNICAS
ders in a community sample
duradoura da personalidade. of former prisoners of war”
[em português: “A co-mor-
Outros diagnósticos possíveis bosidade e evolução dos dis- 259. As avaliações psicológicas podem fornecer
túrbios psiquiátricos numa
são ainda, e designadamente, os comunidade representativa provas fundamentais dos abusos cometidos con-
de antigos prisioneiros de
seguintes: guerra”], em revisão. tra as vítimas de tortura, por diversas razões: a
109
T. M. Keane e J. Wolfe, tortura provoca por vezes problemas psicológicos
“Comorbidity in post-trau-
i) Ansiedade generalizada, matic stress disorder: an devastadores, os métodos de tortura são frequen-
analysis of community and
que se caracteriza por uma clinical studies” [em portu- temente concebidos de forma a não provocar
guês. “Co-morbosidade na
ansiedade e preocupação exces- perturbação de stress pós- quaisquer lesões físicas e a tortura física pode ori-
-traumático: uma análise de
sivas perante diversos aconteci- estudos clínicos de âmbito ginar sintomas físicos que desaparecem ou não são
local”], Journal of Applied
mentos e actividades, tensão Social Psychology, 20 (21, suficientemente característicos.
1), 1990, pp. 1776 a 1788.
motora e acréscimo da activi- 110
R. A. Kulka e outros,
dade neurovegetativa; Trauma in the Vietnam 260. As avaliações psicológicas permitem obter
War Generation: Report of
ii) Síndrome de pânico, que Findings from the National elementos de prova importantes para os exames
Vietnam Veterans Read-
se manifesta através de ataques justment Study [em portu- médico-legais, instrução de pedidos de asilo polí-
guês: “Trauma na Geração
inesperados e recorrentes de da Guerra do Vietname: tico, apuramento das condições sob as quais
Relatório das Conclusões do
medo ou desconforto intenso, Estudo Nacional sobre o podem ter sido obtidas falsas confissões, com-
Reajustamento dos Vetera-
incluindo sintomas como os nos do Vietname”], Nova preensão dos métodos de tortura utilizados a nível
Iorque, Brunner/Mazel,
suores, asfixia, tremores, acele- 1990. regional, identificação das necessidades terapêu-
111
ração do ritmo cardíaco, verti- K. Jordan e outros, “Life- ticas das vítimas e instrução dos inquéritos em
time and current prevalence
gens, náuseas, arrepios de frio e of specific psychiatric disor- matéria de direitos humanos. O objectivo geral da
ders among Vietnam vete-
acessos de calor; rans and controls” [em
português: “Duração e inci-
avaliação psicológica consiste em determinar o
iii) Perturbação de stress pós- dência actual de distúrbios
psiquiátricos específicos
grau de conformidade entre o testemunho da ale-
-traumático aguda, que apresenta entre veteranos do Viet-
name e controlos”], Archi-
gada vítima de tortura e os factos observados no
essencialmente os mesmos sin- ves of General Psychiatry,
48 (3), 1991, pp. 207 a 215.
decorrer da avaliação. Para este fim, a avaliação
tomas da PTSD mas é diagnos- 112
A. Y. Shalev, A. Bleich,
deverá proporcionar uma descrição detalhada da his-
ticada no mês seguinte ao R. J. Ursano, “Post-trauma-
tic stress disorder: somatic
tória pessoal da vítima, exame do respectivo estado
coomorbidity and effort
acontecimento traumático; tolerance” [em português:
mental, avaliação do respectivo funcionamento

76
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
social e formulação de juízos clínicos (vide capítulos fazer pausas, suspender a entrevista em qualquer
III, secção C e IV, secção E). Se necessário, deverá momento e interrompê-la se o stress se tornar
proceder-se a um diagnóstico psiquiátrico. Dada a insuportável, com a opção de regressar mais tarde
alta incidência de distúrbios psicológicos entre as para nova consulta. Os médicos devem dar mos-
vítimas de tortura, é altamente aconselhável que tras de sensibilidade e empatia nas perguntas que
qualquer investigação de tortura inclua a avaliação colocam, mantendo a objectividade da avaliação clí-
psicológica dessas pessoas. nica. Ao mesmo tempo, o entrevistador deve ter
consciência das suas próprias reacções pessoais
261. Na avaliação do estado psicológico da pes- perante a vítima e o relato de tortura, as quais
soa e formulação do respectivo diagnóstico clí- podem influenciar a sua percepção e o seu juízo.
nico, dever-se-á ter sempre em conta o contexto
cultural em que a mesma está inserida. O conhe- 263. O processo de entrevista poderá fazer lembrar
cimento das síndromes específicas da cultura do ao paciente os interrogatórios a que foi sujeito
paciente e das expressões idiomáticas de angústia durante a tortura. Podem, assim, desenvolver-se
que, na sua língua materna, permitem exprimir os sentimentos negativos muito fortes em relação ao
sintomas, é absolutamente fundamental para a médico, por exemplo de medo, raiva, revolta,
condução da entrevista e formulação dos juízos clí- impotência, confusão, pânico ou ódio. O médico
nicos e respectivas conclusões. Caso o entrevista- deverá permitir que o paciente manifeste e expli-
dor tenha pouco ou nenhum conhecimento da que esses sentimentos, e demonstrar compreen-
cultura da vítima, a assistência de um intérprete são pela difícil situação em que a pessoa se
é imprescindível. Em princípio, um intérprete do encontra. Para além disso, deverá ter-se em conta
país da vítima deverá conhecer a língua, costu- a possibilidade de que a vítima venha a sofrer
mes, tradições religiosas e outras crenças a ter em novas perseguições ou outras formas de opressão.
conta no decurso do inquérito. A entrevista pode Sempre que necessário, devem evitar-se perguntas
suscitar reacções de medo e desconfiança por sobre actividades proibidas. É importante considerar
parte da vítima e, eventualmente, recordar-lhe os as razões que determinaram a realização da ava-
anteriores interrogatórios. Para reduzir os riscos liação psicológica, uma vez que irão condicionar o
de re-traumatização, o médico deverá transmitir à grau de sigilo a que o perito está vinculado. Se a
pessoa a sensação de que compreende a sua expe- avaliação da credibilidade do relato de tortura é
riência e o seu ambiente cultural. Nestes casos, não requerida no âmbito de um processo judicial por
se deve adoptar uma postura de estrita “neutrali- uma autoridade pública, a pessoa objecto de ava-
dade clínica”, utilizada em outras formas de psi- liação deverá ser informada de que isto implica o
coterapia, de acordo com a qual o médico levantamento do sigilo sobre toda a informação
permanece inactivo e diz muito pouco. O médico incluída no relatório. Contudo, se for a própria
deverá dar ao paciente a ideia de que é seu aliado, vítima de tortura a solicitar a realização da avalia-
apoiando-o e abstendo-se de quaisquer juízos de ção psicológica, o perito deverá respeitar o sigilo
valor. médico.

2. PROCESSO DE ENTREVISTA 264. Os médicos que realizam avaliações físicas ou


psicológicas devem ter consciência das reacções
262. O médico deverá começar por apresentar o emocionais que as avaliações de traumatismos
processo de entrevista de forma a explicar em graves podem provocar neles próprios e no
detalhe os procedimentos a seguir (perguntas paciente. Estas reacções emocionais são denomi-
sobre os antecedentes psicossociais, incluindo o nadas de fenómenos de transferência e contra-
relato da experiência de tortura e estado psicoló- transferência. Desconfiança, medo, vergonha,
gico actual) e preparar o indivíduo para as difíceis raiva e culpa são algumas das reacções típicas dos
reacções emocionais que as perguntas podem pro- sobreviventes de tortura, em particular quando
vocar. O paciente deverá ter a possibilidade de lhes é pedido que relatem a sua história de tortura

Indícios psicológicos da tortura


* 77
ou recordem pormenores da mesma. A transfe- vítimas se encontram detidas. Devem ser tomadas
rência diz respeito aos sentimentos do paciente para todas as precauções para garantir que os reclusos
com o médico, que se relacionam com experiên- não se expõem a riscos desnecessários, confiando
cias passadas mas são erradamente entendidos ingenuamente em alguém do exterior para os pro-
como dirigidos contra a pessoa do médico. Para teger. As vítimas de tortura podem recear que não
além disso, a reacção emocional do médico se consiga impedir o acesso dos agentes do
perante a vítima de tortura, designada por contra- governo que as persegue à informação revelada no
transferência, pode influenciar o juízo clínico. âmbito da avaliação. O medo e a desconfiança
A transferência e contra-transferência são inter- podem ser particularmente agudos nos casos em
dependentes e interagem entre si. que médicos ou outros profissionais de saúde
tenham participado nos actos de tortura.
265. O potencial impacto das reacções de trans-
ferência sobre o processo de avaliação torna-se 268. Em muitas circunstâncias, o avaliador será
evidente quando se considera que uma entrevista membro da etnia ou grupo cultural dominante, ao
ou avaliação que suponha o relato ou a recordação passo que a pessoa objecto de avaliação, na situa-
de pormenores de uma experiência traumatizante ção e local da entrevista, pertencerá à etnia ou
se tornará angustiante e evocará memórias, pen- grupo cultural minoritário. Esta dinâmica de desi-
samentos e sentimentos indesejados. Assim, gualdade pode reforçar a sensação, real ou imagi-
embora a vítima de tortura possa consentir na ava- nária, de desequilíbrio de poder e acentuar os
liação com a esperança de daí tirar benefícios, a eventuais sentimentos de medo, desconfiança e
exposição a que é sujeita poderá fazê-la reviver a submissão forçada do paciente. Em determinadas
própria experiência traumatizante. Podem desen- situações, particularmente nos casos que envolvem
cadear-se os fenómenos que a seguir se descrevem. reclusos, este antagonismo sócio-cultural tem
mais a ver com o intérprete do que com o avalia-
266. As perguntas do avaliador podem ser senti- dor. Por isso, convém que o intérprete venha do
das como uma exposição forçada equivalente a exterior e não seja recrutado na comunidade local,
um interrogatório. O paciente pode suspeitar que para que seja considerado por todos como tão
o médico tem motivações voyeuristas ou sádicas e independente quanto o investigador. Como é evi-
colocar a si próprio as seguintes questões: “Porque dente, um membro da família sobre quem as auto-
tem ele de me fazer revelar os mais ínfimos por- ridades possam vir a exercer pressão para
menores de todas as coisas terríveis que me acon- descobrir o que foi dito no decorrer do exame não
teceram? Porque é que uma pessoa normal deverá ser utilizado como intérprete.
escolheu ganhar a vida a ouvir histórias como a
minha? O avaliador deve ter qualquer tipo de 269. Se o avaliador for do mesmo sexo que o autor
motivação estranha”. A vítima pode também ter pre- do acto de tortura, a entrevista pode ser mais facil-
conceitos face ao avaliador devido ao facto de este mente assimilada a uma situação semelhante à
não ter sido preso nem torturado, acabando por con- tortura do que se pertencerem a sexos diferentes.
cluir que o médico se encontra do lado do ini- Por exemplo, uma mulher que tenha sido violada
migo. ou torturada na prisão por um guarda do sexo
masculino sentirá provavelmente uma maior
267. O avaliador é visto como alguém que está angústia, desconfiança e medo perante um avaliador
numa posição de autoridade, o que é muitas vezes do sexo masculino do que perante uma mulher.
verdade, e por esta razão a vítima pode ocultar-lhe O inverso é também verdade no caso dos homens
alguns aspectos da sua história. Noutros casos, a vítimas de agressão sexual, que podem ter vergo-
vítima pode revelar-se demasiado confiante em nha de contar os pormenores da sua história de tor-
situações em que o entrevistador não está em con- tura a uma avaliadora do sexo feminino. Nos casos
dições de garantir que não irão haver represálias, de violação, a experiência demonstra contudo
como acontece muitas vezes nos casos em que as que, sobretudo quando estão em causa vítimas

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* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
que permanecem sob detenção, mais do que o consequências físicas e psicológicas da tortura.
facto de o entrevistador ser do mesmo sexo da Uma documentação eficaz da tortura e outras for-
vítima, importa que se trate de um médico habi- mas de maus tratos exige que sejam claramente
litado a responder às perguntas concretas que a pes- compreendidas as motivações pessoais que levam
soa deseje colocar (excepto nas sociedades os profissionais a optar por esta área de trabalho.
tradicionais mais fundamentalistas em que é É consensual a ideia de que os profissionais que
impensável que um homem entreviste uma realizam continuamente este tipo de exames
mulher, muito menos que a examine). Acontece por devem ser supervisionados e apoiados pelos seus
vezes que as vítimas de violação nada dizem a pares com experiência na mesma área. Entre as
uma investigadora sem formação clínica, mas reacções comuns de contra-transferência, con-
pedem para falar com um médico, mesmo que tam-se:
do sexo masculino, a fim de lhe poderem colocar
determinadas questões médicas concretas. As per- i) Sentimentos de evitamento, alheamento e
guntas típicas versam sobre possíveis sequelas, indiferença defensiva face à exposição a informa-
como a gravidez, problemas de fertilidade ou rela- ções perturbadoras. Isto pode levar a que a pessoa
ções sexuais futuras entre esposos. No âmbito das esqueça alguns pormenores do caso e subestime
investigações realizadas para fins legais, a neces- a gravidade das consequências físicas ou psicoló-
sária atenção aos pormenores do caso e a precisão gicas;
das perguntas relativas à história são facilmente vis- ii) Desilusão, impotência, desespero e sobre-
tas como sinais de desconfiança ou dúvida da identificação que podem provocar sintomas de
parte do examinador. depressão ou trauma indirecto, como pesadelos,
ansiedade e medo;
270. Devido às pressões psicológicas anterior- iii) Sentimentos de grandiosidade e omnipo-
mente mencionadas, as vítimas podem ser re-trau- tência, julgando-se o salvador da pessoa, o grande
matizadas e ficar arrasadas pelas recordações e, em perito no trauma ou a última esperança para a
resultado disto, erguer ou mobilizar fortes barrei- recuperação e bem-estar da vítima;
ras defensivas que se traduzem num profundo iv) Sentimentos de insegurança quanto às suas
alheamento e retracção afectiva durante o exame competências profissionais quando confrontado
ou entrevista. Para a documentação do caso, os com a gravidade da história ou sofrimento relatado.
comportamentos de alheamento e retracção Podem manifestar-se através de falta de confiança
colocam dificuldades especiais, uma vez que na sua capacidade para responder às necessidades
impedem as vítimas de tortura de comunicar efi- da vítima e preocupação irrealista com normas
cazmente a sua história e o sofrimento por que pas- médicas idealizadas;
sam, embora lhes fosse mais benéfico fazê-lo. v) Sentimentos de culpa por não partilhar a
experiência e a dor da vítima de tortura ou por ter
271. As reacções de contra-transferência são mui- consciência do que não foi feito a nível político –
tas vezes inconscientes e, se o avaliador não se aper- podem conduzir a uma abordagem excessiva-
ceber delas, tornam-se um problema. É natural mente sentimental ou idealizada do paciente;
sentir emoções ao ouvir a pessoa relatar a sua vi) Cólera e raiva perante os torcionários e per-
experiência de tortura e, embora tais emoções pos- seguidores – são normais, mas podem compro-
sam interferir na eficácia do médico, quando com- meter a objectividade profissional se orientadas por
preendidas podem orientar o seu trabalho. Os experiências pessoais não admitidas, tornando-se
médicos e psicólogos que trabalham na área da ava- assim crónicas ou excessivas;
liação e tratamento das vítimas de tortura estão de vii) Raiva ou repugnância pela vítima podem
acordo em que é fundamental ter consciência e resultar do facto de a pessoa se sentir exposta a
compreender as reacções típicas da contra-trans- níveis de ansiedade a que não está habituada.
ferência, uma vez que este fenómeno pode limi- Podem também surgir pelo facto de o avaliador se
tar a capacidade de avaliação e documentação das sentir usado pela vítima caso as experiências clí-

Indícios psicológicos da tortura


* 79
nicas permitam duvidar da veracidade do relato de numa interpretação literal e textual das palavras do
tortura e a vítima tente obter uma avaliação que con- paciente, não terá acesso a este tipo de interpretação
firme as consequências do alegado incidente; aprofundada da informação. Por outro lado, se aos
viii) Diferenças significativas entre os sistemas intérpretes for pedido que chamem a atenção do
de valores culturais do médico e da presumível médico para os factores culturais, religiosos e
vítima – podem englobar a crença em mitos rela- sociais relevantes, é fundamental que não tentem
tivos a determinados grupos étnicos, atitudes con- influenciar de qualquer forma as respostas da
descendentes e subestimação do estado de vítima às perguntas que lhe são colocadas. Caso não
desenvolvimento do paciente ou da sua capaci- seja utilizada a tradução literal, o médico dever-se-á
dade de análise. Ao invés, os médicos pertencen- assegurar de que as respostas do paciente, conforme
tes ao mesmo grupo étnico da vítima podem traduzidas pelo intérprete, representam unica-
estabelecer com ela elos não verbalizados, sus- mente aquilo que a pessoa disse sem quaisquer
ceptíveis de comprometer também a objectividade adições ou supressões feitas pelo intérprete. Inde-
da avaliação. pendentemente da abordagem escolhida, na selec-
ção do intérprete dever-se-á ter em conta a
272. A maioria dos médicos concorda que muitas respectiva identidade, origem étnica e cultural e
reacções de contra-transferência não constituem filiação politica. A vítima de tortura tem de confiar
meros exemplos de distorção, sendo antes impor- que o intérprete compreende o que diz e o comu-
tantes fontes de informação quanto ao estado psi- nica correctamente ao médico investigador.
cológico da vítima de tortura. A eficácia do médico O intérprete não deverá, em circunstância alguma,
pode ficar comprometida quando, ao invés de ser um funcionário responsável pela aplicação da
reflectir sobre as sensações de contra-transferência, lei ou agente do Estado. Também não deve recor-
reage às mesmas. Aconselha-se ao pessoal clínico rer-se a membros da família da vítima para proceder
que trabalha na área da avaliação e tratamento das à interpretação, por questões de privacidade.
vítimas de tortura que analise os fenómenos de A equipa de investigação deverá escolher um
contra-transferência e, se possível, que procure a intérprete independente.
supervisão e o aconselhamento dos colegas.
3. COMPONENTES DA AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA/
273. As circunstâncias podem exigir que a entre- /PSIQUIÁTRICA
vista seja conduzida por um médico pertencente
a um grupo cultural ou linguístico diferente do da 274. A introdução deverá indicar a fonte de refe-
vítima. Nestes casos, podem adoptar-se duas abor- rência principal, um resumo das fontes colaterais
dagens diferentes, cada uma delas com vantagens (tais como ficheiros clínicos, psiquiátricos e legais)
e desvantagens. O entrevistador pode recorrer à tra- e uma descrição dos métodos de avaliação utiliza-
dução literal e textual de um intérprete (vide capí- dos (entrevistas, inventários de sintomas, listas
tulo IV, secção I). Em alternativa, pode optar-se por de verificação e testes neuropsicológicos).
uma abordagem bicultural. Esta abordagem con-
siste na utilização de uma equipa de entrevistadores (a) Relato da tortura e maus tratos
composta pelo médico e por um intérprete, a
quem cabe fazer a interpretação linguística e faci- 275. Deverão ser feitos todos os esforços para
litar a compreensão dos significados culturais documentar todo o relato de tortura, perseguição
atribuídos aos acontecimentos, experiências, sin- e outras experiências traumáticas relevantes
tomas e idiomas. Uma vez que o médico muitas (vide capítulo IV, secção E). Esta parte da avalia-
vezes não reconhece os factores culturais, religio- ção é muitas vezes extenuante para a pessoa ava-
sos e sociais relevantes, um intérprete competente liada. Por isso, pode ser necessário levá-la a cabo
deverá ser capaz de chamar a atenção do médico em diversas sessões. A entrevista deverá começar
para os mesmos e explicar-lhe as questões em com um resumo geral dos acontecimentos, antes
causa. Se o entrevistador se basear estritamente de entrar nos detalhes da experiência de tortura.

80
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
O entrevistador necessita de conhecer as questões (d) Situação anterior à tortura
jurídicas em causa, uma vez que as mesmas irão
determinar a natureza e quantidade de informa- 278. Se relevante, descreva a infância, adolescên-
ção necessária para a adequada documentação cia e entrada na vida adulta da vítima, anteceden-
dos factos. tes e composição familiar e doenças de família.
Deverá também ser descrito o percurso escolar e
(b) Queixas psicológicas actuais profissional da pessoa, bem como quaisquer ante-
cedentes de trauma, por exemplo maus tratos
276. A avaliação do estado psi- 113 B. O. Rothbaum e durante a infância, traumas de guerra ou violên-
outros, “A prospective exa-
cológico actual da pessoa cons- mination of post-traumatic cia doméstica, e ainda o contexto cultural e religioso
stress disorder rape victims”
titui a parte fundamental da [em português: “Uma aná- em que a vítima se insere.
lise prospectiva da perturba-
avaliação. Uma vez que os pri- ção de stress pós-traumático
nas vítimas de violação”],
sioneiros de guerra severa- Journal of Traumatic Stress, 279. A descrição da situação anterior à tortura é
5, 1992, pp. 455 a 475.
mente maltratados e as vítimas 114 importante para avaliar o estado de saúde mental
P. B. Sutker, D. K. Wins-
de violação manifestam uma tead, Z. H. Galina, “Cogni- e nível de funcionamento psicossocial da pessoa
tive deficits and
incidência de perturbação de psycho-pathology among antes dos acontecimentos traumatizantes. Desta
former prisoners of war and
stress pós-traumático perma- combat veterans of the forma, o entrevistador pode comparar o estado de
Korean conflict” [em portu-
nente em cerca de 80 a 90 por guês: “Défices cognitivos e saúde mental da vítima antes e depois da tortura.
psico-patologias entre os
cento dos casos, há que for- prisioneiros de guerra e Na avaliação dos antecedentes do caso, o entre-
veteranos de combate do
mular perguntas especifica- conflito da Coreia”] Ameri- vistador deve ter em conta que a duração e gravi-
can Journal of Psychiatry,
mente incidentes sobre as três 148, 1991, pp. 62 a 72. dade das reacções ao trauma são influenciadas por
categorias de perturbação de stress pós-traumá- múltiplos factores, nomeadamente os seguintes: cir-
tico segundo a classificação do DSM-IV (reviver cunstâncias da tortura; percepção e interpretação
o acontecimento traumatizante, evitar ou repri- do sucedido pela vítima; contexto social antes,
mir as reacções, nomeadamente através da durante e depois da tortura; apoio da comunidade
amnésia, e sobreexcitação) 113 114. Os sintomas e dos colegas; valores e atitudes perante as expe-
afectivos, cognitivos e comportamentais devem ser riências traumatizantes; factores políticos e cul-
descritos em detalhe, assim como a frequência dos turais; gravidade e duração dos acontecimentos
pesadelos, alucinações e reacções de sobressalto, traumatizantes; vulnerabilidades genéticas e bio-
se possível com exemplos concretos. A ausência lógicas; maturidade e idade da vítima; traumas
de sintomas pode dever-se à natureza episódica anteriores e personalidade da pessoa. Muitas
e muitas vezes diferida da perturbação de stress vezes, devido a limitações de tempo e outros pro-
pós-traumático ou à negação dos sintomas por blemas, pode ser difícil obter toda esta informação.
vergonha. É, contudo, importante obter dados suficientes
sobre o anterior estado de saúde mental da pessoa
(c) Situação subsequente à tortura e funcionamento psicossocial, a fim de poder ava-
liar até que ponto a tortura contribuiu para os pro-
277. Esta componente da avaliação psicológica blemas psicológicos actuais.
visa obter informação sobre as actuais circuns-
tâncias de vida da pessoa. É importante inqui- (e) Historial clínico
rir a respeito de actuais causas de stress, como
a separação ou perda de entes queridos, abandono 280. O historial clínico resume as condições de
do país de origem e vida no exílio. O entrevis- saúde da pessoa anteriores ao trauma, condições
tador deverá também tentar determinar a capa- de saúde actuais, dores no corpo, queixas somáti-
cidade da pessoa para levar uma vida produtiva, cas, utilização de medicamentos e seus efeitos
garantir a sua subsistência e cuidar da sua famí- colaterais, antecedentes sexuais relevantes, inter-
lia, bem como os mecanismos de apoio social ao venções cirúrgicas a que foi submetida e outros
seu dispor. dados médicos (vide capítulo V, secção B).

Indícios psicológicos da tortura


* 81
(f ) Historial psiquiátrico mento e provocar incapacidades, caso as conse-
quências psicológicas da experiência limitem as
281. Devem tentar apurar-se quaisquer antece- capacidades da pessoa para tomar conta de si
dentes de distúrbios mentais ou psicológicos, mesma, ganhar o seu sustento, manter uma famí-
natureza dos problemas e tratamento seguido ou lia ou prosseguir os estudos. O médico deverá ava-
necessidade de internamento em hospital psi- liar o actual nível de funcionamento da pessoa,
quiátrico. O inquérito deverá também abranger a inquirindo-a a respeito das suas actividades quoti-
anterior utilização terapêutica de substâncias psi- dianas, papel social (como dona de casa, estudante,
cotrópicas. trabalhador), actividades sociais e recreativas e per-
cepção do respectivo estado de saúde. O entrevis-
(g) Uso e abuso de substâncias tóxicas tador deverá pedir ao paciente que avalie o seu
próprio estado de saúde, indique a presença ou
282. O médico deverá interrogar o paciente sobre ausência de sensações de fadiga crónica e assinale
o uso de substâncias tóxicas antes e depois da tor- quaisquer alterações de que se tenha eventual-
tura, alterações no padrão de consumo e motivos mente apercebido no seu funcionamento geral.
que as justificam (por exemplo, para combater a
insónia ou problemas psicológicos/psiquiátricos). (j) Testes psicológicos e utilização de listas
Consideram-se substâncias tóxicas, não apenas o de controlo e questionários
álcool, cannabis e ópio, mas também substâncias
de utilização regional, como a noz de bétele e mui- 285. Pouco está publicado a respeito da utilização
tas outras. de testes psicológicos (testes de personalidade pro-
jectivos e objectivos) na avaliação dos sobrevi-
(h) Exame do estado mental ventes de tortura. Para além disso, os testes
psicológicos de personalidade não têm validade
283. O exame do estado mental inicia-se no inter-cultural. A combinação destes factores limita
momento em que o médico entra em contacto em grande medida a utilidade dos testes psicoló-
com o sujeito. O entrevistador deverá tomar nota gicos na avaliação das vítimas de tortura. Os tes-
da aparência da pessoa, nomeadamente de quais- tes neuropsicológicos podem, contudo, revestir-se
quer sinais de má nutrição, falta de limpeza, alte- de utilidade na avaliação dos casos de lesão cere-
rações da actividade motora durante a entrevista, bral resultante de tortura (vide secção C.4, infra).
utilização da linguagem, contacto visual, capacidade Um sobrevivente de uma experiência de tortura
de estabelecer relação com o entrevistador e meios poderá ter dificuldade em exprimir por palavras as
utilizados pela pessoa para comunicar. No relató- suas próprias experiências e sintomas. Em deter-
rio da avaliação psicológica dever-se-ão incluir minados casos, pode ser conveniente utilizar listas
todos os aspectos do exame do estado mental, de controlo ou questionários sobre experiências
abrangendo os seguintes componentes: aparên- traumatizantes e sintomas. Existem inúmeros
cia geral, actividade motora, discurso, humor e modelos disponíveis, embora nenhum específico
afectividade, conteúdo e processo de raciocínio, para vítimas de tortura.
ideias de suicídio e homicídio e exame cognitivo
(orientação e memória de longo, médio e curto (k) Impressão clínica
prazo).
286. Na formulação de uma impressão clínica
(i) Avaliação do funcionamento social para a documentação de indícios psicológicos de
tortura, dever-se-ão colocar as seguintes questões
284. A tortura e outras experiências traumatizan- importantes:
tes podem afectar directa e indirectamente a capa-
cidade funcional da pessoa. Indirectamente, a i) As constatações do exame psicológico são
tortura pode também comprometer o funciona- conformes aos factos de tortura alegados?

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* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
ii) As constatações do exame psicológico cons- cionado. Pode ser aplicável mais do que um diag-
tituem reacções habituais ou típicas de situações nóstico. Deverá salientar-se de novo que, embora
de stress intenso dentro do contexto cultural e um diagnóstico de perturbação mental de origem
social da pessoa? traumática corrobore a alegação de tortura, o facto
iii) Dada a natureza evolutiva dos distúrbios de a pessoa não satisfazer os critérios de diag-
mentais de origem traumática, a que momento nóstico psiquiátrico não permite concluir pela
remonta a tortura? Em que ponto do processo de falsidade das alegações. A vítima pode não apre-
recuperação se encontra o indivíduo? sentar sintomas que correspondam exactamente
iv) Que factores de stress concomitantes actuam a uma das categorias mencionadas nas classifi-
simultaneamente sobre o indivíduo (por exemplo, cações DSM-IV ou CID-10. Nestes casos, como em
situação de perseguição em curso, migração forçada, todos os outros, os sintomas apresentados pela pes-
exílio, perda da família e do papel social)? Que soa e os maus tratos alegados devem ser consi-
impacto têm estes factores sobre a pessoa? derados como um todo. O grau de conformidade
v) Que problemas físicos intervêm no quadro clí- entre o relato de tortura e os sintomas de que a
nico? Preste especial atenção a lesões cranianas vítima se queixa deverão ser avaliados e descritos
sofridas durante a sessão de tortura ou período de no relatório.
detenção;
vi) O quadro clínico sugere uma falsa alegação 289. É importante reconhecer que algumas pessoas
de tortura? apresentam falsas alegações de tortura por diver-
sos motivos diferentes e que outras podem exagerar
287. Os médicos deverão pronunciar-se sobre a a gravidade do incidente por razões pessoais ou polí-
coerência das observações psicológicas e sua rela- ticas. O investigador deve ter sempre presente
ção com os alegados maus tratos. Dever-se-ão estas possibilidades e tentar identificar eventuais
descrever os seguintes parâmetros: estado emo- motivos que possam levar o sujeito a inventar ou
cional e expressão da pessoa durante a entre- exagerar a história. O médico deverá também ter
vista; seus sintomas; relato da situação de em conta, contudo, que tal invenção dos factos
detenção e tortura; história pessoal do indivíduo exige um conhecimento aprofundado dos sintomas
antes da tortura. Também deverão ser registados de origem traumática que um leigo raramente
factores como o surgimento de sintomas especí- possui. As incoerências do relato podem dever-se
ficos relacionados com o traumatismo, especifi- a uma multiplicidade de razões válidas, como pro-
cidade de quaisquer observações psicológicas em blemas de memória derivados de lesão cerebral,
concreto e padrões de funcionamento psicoló- confusão, dissociação, diferenças culturais na per-
gico. Entre os factores adicionais a ter em conta, cepção do tempo ou fragmentação e repressão das
incluem-se a migração forçada, reinstalação, difi- memórias traumatizantes. A documentação efi-
culdades de aculturação, problemas linguísticos, caz dos indícios psicológicos da tortura exige que
desemprego, perda do lar, família e estatuto o médico tenha a capacidade de avaliar as coerên-
social. Dever-se-á avaliar e descrever a relação e cias e incoerências do testemunho da vítima. Se o
coerência entre os acontecimentos e os sinto- entrevistador suspeitar de que a história foi fabri-
mas. Os problemas físicos, tais como traumatis- cada, deverá marcar novas entrevistas para escla-
mos cranianos ou lesões cerebrais, podem exigir recer os pontos que lhe suscitam dúvidas. Os
uma avaliação mais aprofundada. Pode reco- familiares e amigos podem também confirmar
mendar-se a realização de exames neurológicos determinados factos. Se, depois de todas estas dili-
ou neuropsicológicos. gências, as dúvidas quanto à veracidade da histó-
ria persistirem, o médico deverá tomar a iniciativa
288. Caso o sobrevivente de tortura apresente de encaminhar o paciente para outro médico e
sintomas que se enquadrem num dos diagnósti- pedir a opinião do colega. A suspeita de falsas ale-
cos psiquiátricos das classificações DSM-IV ou gações deverá ser documentada com o parecer de
CID-10, o diagnóstico em causa deverá ser men- dois médicos.

Indícios psicológicos da tortura


* 83
(l) Recomendações cionais, incluindo a falta de estudos específicos
sobre as vítimas de tortura, a utilização de normas
290. As recomendações resultantes da avaliação de referência elaboradas para determinados grupos
psicológica dependem da questão colocada em particular, as diferenças culturais e linguísti-
aquando do pedido de realização do exame. As cas e o risco de re-traumatização das vítimas.
questões em causa podem ter a ver com questões
jurídicas e judiciais, pedidos de asilo, reinstalação 293. Conforme supra referido, encontram-se
ou necessidade de tratamento. Pode recomendar- muito poucas referências específicas à avaliação
-se a realização de avaliações mais aprofundadas, neuropsicológica das vítimas de tortura na litera-
como testes neuropsicológicos, sujeição a trata- tura existente. Os únicos documentos pertinentes
mento médico ou psiquiátrico, ou a concessão de na matéria versam sobre os diversos tipos de trau-
asilo ou medidas de segurança. matismos cranianos e a avaliação neuropsicoló-
gica da perturbação de stress pós-traumático em
4. AVALIAÇÃO NEUROPSICOLÓGICA geral. Por isso, as considerações seguintes e sua
interpretação baseiam-se necessariamente na apli-
291. A neuropsicologia clínica é uma ciência cação de princípios gerais utilizados com outros gru-
aplicada que se ocupa das expressões comporta- pos de pacientes.
mentais das disfunções cerebrais. A avaliação neu-
ropsicológica, em particular, ocupa-se da medição 294. A avaliação neuropsicoló- 115 A. R. Luria e L. V.
Majovski, “Basic approa-
e classificação dos distúrbios comportamentais gica, tal como tem sido desen- ches used in American and
Soviet clinical neuropsycho-
associados às lesões orgânicas do cérebro. Esta volvida e praticada nos países logy” [em português: “Abor-
dagens básicas utilizadas na
disciplina é desde há muito considerada útil para ocidentais, baseia-se sobretudo neuropsicologia clínica ame-
ricana e soviética”], Ameri-
fazer a distinção entre os problemas neurológicos numa metodologia actuarial. can Psychologist, 32 (11),
1977, pp. 959 a 968.
e psicológicos e orientar o tratamento e a reabili- Trata-se essencialmente de 116
R. J. Ivnik, “Overstate-
tação dos pacientes que sofrem as consequências comparar os resultados de uma ment of differences” [em
português: “Sobrevaloriza-
de diversos tipos de lesões cerebrais. As avalia- série de testes estandardizados ção das diferenças”], Ameri-
can Psychologist, 33 (8),
ções neuropsicológicas das vítimas de tortura não com as normas vigentes numa 1978, pp. 766 a 767.
são frequentes e, até à data, não existem quaisquer determinada população-tipo.
estudos neuropsicológicos publicados sobre este Embora as interpretações da avaliação neuropsi-
grupo de pessoas em concreto. As observações cológica realizadas com base em normas possam
que se seguem limitam-se, assim, a invocar os ser completadas com uma análise qualitativa dos
princípios gerais nos quais os profissionais de resultados, em particular quando a situação clínica
saúde se podem apoiar para compreender a utili- o exige, a abordagem actuarial continua a ser pre-
dade e as indicações de avaliação neuropsicoló- dominante115 116. Para além disso, o trabalho com
gica de uma presumível vítima de tortura. Antes base em resultados de testes faz-se sobretudo nos
de entrar na discussão da utilidade e indicações da casos de lesões cerebrais ligeiras a moderadas, e
avaliação neuropsicológica, é fundamental reco- não nas situações de lesão grave, ou quando se julga
nhecer as limitações do processo nesta população. que os défices neuropsicológicos são consequên-
cia de distúrbios psiquiátricos.
(a) Limitações da avaliação neuropsicológica
295. As diferenças culturais e linguísticas podem
292. Existem diversos factores que dificultam de limitar significativamente a utilidade e aplicabili-
forma geral a avaliação das vítimas de tortura e que dade da avaliação neuropsicológica às presumíveis
são referidos noutras partes do presente manual. vítimas de tortura. As avaliações neuropsicológicas
Estes factores aplicam-se à avaliação neuropsico- têm uma validade muito questionável quando não
lógica da mesma forma que aos exames médicos existem traduções normalizadas dos testes e o
ou psicológicos. As avaliações neuropsicológicas médico examinador não domina a língua do
podem ser condicionadas por vários factores adi- paciente. Se estes dois requisitos não estiverem

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* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
preenchidos, não será de todo possível realizar – TPT), vendando os olhos do paciente como é habi-
testes orais nem interpretá-los de forma adequada. tual. Para a maior parte das vítimas de tortura que
Isto significa que apenas se poderá recorrer a tes- tenham sido vendadas durante o período de deten-
tes não verbais, o que impede a comparação entre ção e tortura, e mesmo para as que o não tenham
as faculdades verbais e não verbais. Para além sido, seria muitíssimo traumatizante experimen-
disso, a análise da lateralização (ou localização) tar a sensação de impotência inerente a este pro-
dos défices torna-se mais difícil. E esta análise é cedimento. Na verdade, qualquer tipo de teste
muitas vezes importante devido à organização neuropsicológico pode ser problemático em si
assimétrica do cérebro, em que o hemisfério mesmo, independentemente do instrumento uti-
esquerdo domina tipicamente a função da fala. Se lizado. O facto de a pessoa se sentir observada, ver
não existirem normas de referência específicas do o seu tempo cronometrado e ser instada a colocar
grupo cultural e linguístico do sujeito, a validade o máximo de esforço no desempenho de uma
da avaliação neuropsicológica é também questio- tarefa que não lhe é familiar, em vez de dialogar,
nável. A estimativa do QI é um dos principais cri- pode tornar-se demasiado angustiante ou evocar a
térios que permitem aos examinadores colocar os experiência de tortura.
resultados dos testes na perspectiva correcta.
Assim, por exemplo, na população dos Estados (b) Indicações para a avaliação neuropsicológica
Unidos estas estimativas calculam-se em geral a par-
tir de subgrupos de testes verbais que utilizam as 297. Na avaliação dos problemas comportamentais
escalas de Wechsler, em particular a sub-escala de das presumíveis vítimas de tortura, a avaliação
informação, porque, na presença de lesão cere- neuropsicológica está indicada sobretudo em duas
bral orgânica, os conhecimentos factuais adquiri- situações: lesões cerebrais e perturbação de stress
dos são menos susceptíveis de sofrer deterioração pós-traumático e lesões afins. Embora ambos os
do que as restantes funções e mais representativos problemas tenham aspectos em comum, e muitas
da anterior capacidade de aprendizagem do que vezes coincidentes, apenas o primeiro constitui
outros padrões de medida. As medições podem tam- uma aplicação típica e tradicional da neuropsico-
bém basear-se nos antecedentes escolares e pro- logia clínica, ao passo que o segundo é uma área
fissionais, e nos dados demográficos. Obviamente, relativamente nova, pouco estudada e bastante
nenhuma destas considerações é aplicável às pes- problemática.
soas pertencentes a grupos relativamente aos
quais não tenham sido determinadas normas de 298. As lesões do cérebro e danos cerebrais daí
referência. Por isso, nestes casos só podem ser resultantes podem derivar de diversos tipos de
feitas estimativas muito grosseiras do funciona- traumatismos cranianos e distúrbios metabólicos
mento intelectual anterior ao trauma. Conse- infligidos durante os períodos de perseguição,
quentemente, as incapacidades neuropsicológicas detenção e tortura. Aqui se incluem feridas de
que não cheguem a ser graves ou moderadas bala, sequelas de envenenamento, malnutrição
podem ser difíceis de interpretar. resultante de privação de alimentos ou ingestão for-
çada de substâncias nocivas, sequelas de hipoxia
296. As avaliações neuropsicológicas podem pro- ou anoxia resultantes de asfixia ou quase afoga-
vocar novos traumas às vítimas de tortura. Devem mento e, mais frequentemente, de pancadas na
ser tomadas todas as precauções com os procedi- cabeça aplicadas durante sessões de espanca-
mentos de diagnóstico empregues para minimizar mento. As pancadas na cabeça são uma prática
este risco (vide capítulo IV, secção H). Para dar ape- corrente em situações de detenção e tortura. Por
nas um exemplo óbvio e específico da avaliação exemplo, um estudo realizado junto de uma amos-
neuropsicológica, seria potencialmente muito pre- tra de vítimas de tortura revelou que as pancadas
judicial submeter a pessoa ao processo normal da na cabeça eram indicadas como a segunda forma
bateria Halstead-Reitan, e em particular ao Teste mais frequente de violência física (45 por cento),
de Desempenho Táctil (Tactual Performance Test logo depois das pancadas no corpo (58 por

Indícios psicológicos da tortura


* 85
cento)117. A incidência de lesões
117
H. C. Traue, G. Schwarz-
-Langer, N. F. Gurris,
trário, se os distúrbios parecem ser crónicos, não
cerebrais é elevada entre as víti- “Extremtraumatisierung
durch Folter. Die psychothe-
apresentam flutuações e são confirmados por
mas de tortura. rapeutische Arbeit der
Behandlungszentren für Fol-
membros da família, deve colocar-se a hipótese de
teropfer”, Verhaltensthera-
pie und
disfunção orgânica, mesmo que, num primeiro
299. As lesões cerebrais inter- Verhaltensmedizin, 1,
1997, pp. 41 a 62.
momento, não haja alegação clara de traumatismo
nas causadoras de incapacida- craniano.
des permanentes ligeiras a moderadas são
porventura a causa mais frequentemente observada 301. Havendo suspeita de lesão orgânica do cére-
de distúrbios neuropsicológicos. Embora os feri- bro, o profissional de saúde mental deverá, em
mentos possam deixar cicatrizes na cabeça, em primeiro lugar, considerar a possibilidade de enca-
geral as lesões cerebrais não são detectáveis atra- minhar a pessoa para um médico a fim de que este
vés das técnicas de imagiologia cerebral. As lesões proceda a um exame neurológico mais detalhado.
cerebrais de grau ligeiro a moderado podem pas- Em função das suas observações iniciais, o médico
sar despercebidas ou ser subestimadas pelos pro- poderá então consultar um neurologista ou pres-
fissionais de saúde mental devido ao facto de os crever a realização de testes de diagnóstico. Entre
sintomas de depressão ou perturbação de stress pós- as opções a considerar, incluem-se a realização de
-traumático dominarem o quadro clínico, o que check-up médico completo, consulta neurológica
leva a que seja prestada menos atenção às eventuais específica e avaliação neuropsicológica. O recurso
consequências de um traumatismo craniano. As aos métodos de avaliação neuropsicológica é geral-
vítimas de tortura queixam-se frequentemente de mente indicado caso não existam indícios de per-
dificuldades de atenção, concentração e memória turbação neurológica grave, se os sintomas
a curto prazo, que tanto podem resultar de lesões observados forem de natureza predominante-
cerebrais como de perturbação de stress pós-trau- mente cognitiva ou se houver necessidade de esta-
mático. O facto de estas serem queixas comuns belecer um diagnóstico diferencial entre lesão
entre as vítimas afectadas pela perturbação de cerebral e perturbação de stress pós-traumático.
stress pós-traumático pode levar a que o clínico nem
chegue a colocar a hipótese de lesão cerebral. 302. A selecção dos testes e procedimentos neu-
ropsicológicos está sujeita às limitações acima
300. Na fase inicial do exame, o diagnóstico indicadas e não pode, por isso, utilizar-se uma
deverá basear-se no relato que a pessoa faz dos bateria de testes normalizada, devendo antes
traumatismos sofridos e evolução da sintomatologia. optar-se por uma abordagem individualizada e
Como acontece geralmente com as pessoas que adaptada às características do paciente. A flexi-
sofrem de lesões cerebrais, a informação prestada bilidade necessária na selecção de testes e pro-
por terceiras partes, em particular familiares, pode cedimentos exige considerável experiência,
revelar-se importante. Deve recordar-se que as conhecimentos e cuidado por parte do examinador.
pessoas afectadas por lesões cerebrais têm muitas Tal como acima referido, o conjunto de instru-
vezes grandes dificuldades em verbalizar ou mentos a utilizar ver-se-á frequentemente limi-
mesmo constatar as suas limitações uma vez que tado a provas não orais, sendo provável que as
estão, por assim dizer, “dentro” do problema. características psicométricas de quaisquer testes
A determinação do carácter crónico dos sintomas normalizados sejam afectadas caso não existam
pode ser um ponto de partida útil para tentar esta- normas de referência aplicáveis à pessoa em
belecer se os mesmos resultam de lesões orgâni- causa. A ausência de avaliação oral constitui um
cas do cérebro ou de uma perturbação de stress sério obstáculo. Muitas áreas do funcionamento
pós-traumático. Se os problemas de atenção, con- cognitivo são mediadas através da linguagem e
centração e memória flutuam ao longo do tempo recorre-se tipicamente à comparação sistemática
em função dos níveis de ansiedade e depressão, pro- entre os diversos parâmetros verbais e não verbais
vavelmente estar-se-á em presença de um caso de para chegar a conclusões quanto à natureza dos
perturbação de stress pós-traumático. Pelo con- défices.

86
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
303. A questão complica-se 118 D. M. Jacobs e outros, referência aplicáveis à popula- 120 J. A. Knight, “Neurops-
”Cross-cultural neurops- ychological assessment in
ainda mais pelo facto de se ychological assessment: a ção a que pertencem as vítimas post-traumatic stress disor-
comparison of randomly der” [em português: “Avalia-
registarem diferenças significa- selected, demographically em causa, colocam-se grandes ção neuropsicológica na
matched cohorts of English perturbação de stress pós-
tivas nos resultados dos testes and Spanish-speaking older
adults” [em português:
dificuldades. A perturbação de -traumático”], Assessing
Psychological Trauma and
não verbais aplicados a grupos “Avaliação neuropsicológica
inter-cultural: uma compa-
stress pós-traumático constitui PTSD, J. P. Wilson e T. M.
Keane, eds., Nova Iorque,
pertencentes a culturas relativa- ração de grupos de idosos
de língua inglesa e língua
um distúrbio psiquiátrico que Guilford, 1997.
mente próximas. Por exemplo, espanhola escolhidos ao
acaso entre populações
não é tradicionalmente objecto de avaliação neu-
foram comparados os resulta- res”], Journal of Clinical
demograficamente simila- ropsicológica. Para além disso, a perturbação de
dos de uma pequena bateria de and Experimental Neu-
ropsychology, 19 (3), 1997,
stress pós-traumático não se presta à aplicação do
testes neuropsicológicos apli- pp. 331 a 339. modelo clássico de análise das lesões cerebrais
cada a duas amostras popula- identificáveis e susceptíveis de confirmação atra-
cionais de 118 idosos cada, sendo um dos grupos vés de técnicas médicas. Recentemente, os para-
composto por pessoas de língua inglesa e outro por digmas neuropsicológicos têm vindo a ser
pessoas de língua espanhola118. As amostras foram invocados com mais frequência do que no pas-
seleccionadas ao acaso entre populações demo- sado, devido ao interesse acrescido pelos meca-
graficamente similares. E, no entanto, embora os nismos biológicos associados aos distúrbios
resultados dos testes verbais tenham sido análogos, psiquiátricos em geral, e progressos alcançados
as pessoas de língua espanhola obtiveram resultados na compreensão dos mesmos. Contudo, como já
significativamente mais baixos em quase todos os foi dito: “[...] até à data, pouco se escreveu sobre a
testes não verbais. Estes resultados sugerem a perturbação de stress pós-traumático sob uma
necessidade de tomar as maiores precauções na apli- perspectiva neuropsicológica”120.
cação de testes verbais e não verbais elaborados por
sujeitos anglófonos a pessoas não anglófonas. 306. As amostras utilizadas no estudo das medi-
ções neuropsicológicas da perturbação de stress
304. A escolha dos instrumen- 119 O. Spreen e E. Strauss, pós-traumático variam bastante, o que pode con-
A Compendium of Neu-
tos e procedimentos de avaliação ropsychological Tests [em tribuir para a variação dos problemas cognitivos
português: Compêndio de
neuropsicológica das alegadas Testes Neuropsicológi- identificados por tais estudos. Alguns autores con-
cos], Nova Iorque, Oxford
vítimas de tortura deve ser dei- University Press. sideraram que “as observações clínicas sugerem que
xado ao critério do médico, que os sintomas da perturbação de stress pós-traumá-
fará a sua opção em função das exigências e con- tico coincidem na sua maioria com os domínios
dicionalismos da situação. A utilização eficaz de neurocognitivos da atenção, memória e funciona-
testes neuropsicológicos exige experiência e mento executivo”. Isto está de acordo com as
conhecimentos aprofundados das relações entre queixas frequentemente manifestadas pelos sobre-
o cérebro e o comportamento. Podem encontrar- viventes de tortura. Estas pessoas queixam-se de difi-
-se listas completas dos procedimentos e testes de culdades de concentração e de se sentirem
avaliação neuropsicológica e formas de os uti- incapazes de reter informação e de desenvolve-
lizar correctamente na bibliografia de referên- rem actividades planeadas e orientadas para objec-
cia119. tivos concretos.

(c) Perturbação de stress pós-traumático 307. Os métodos de avaliação neuropsicológica


permitem, em princípio, detectar défices neuro-
305. Das considerações acima expostas, resulta cognitivos associados à perturbação de stress pós-
claramente que deverão ser tomadas as maiores pre- -traumático, embora a especificidade destes défices
cauções na avaliação de disfunções cerebrais das seja mais difícil de determinar. Alguns estudos
alegadas vítimas de tortura. Estas precauções são confirmaram a presença de tais défices em pessoas
ainda mais necessárias no diagnóstico da pertur- afectadas pela perturbação de stress pós-traumático,
bação de stress pós-traumático através da avaliação por comparação com os exames gerais, mas as
neuropsicológica. Mesmo que existam normas de observações não puderam ser confirmadas por

Indícios psicológicos da tortura


* 87
exames psiquiátricos equipara- 121 J. E. Dalton, S. L. Peder- 310. Em primeiro lugar, ao 123 C. Schlar, “Evaluation
son, J. J. Ryan, “Effects of and documentation of
dos121 122. Por outras palavras, é post-traumatic stress disor- examinar uma criança que psychological evidence of
der on neuropsychological torture” [em português:
provável que os testes neuro- test performance” [em por- se suspeita tenha sido vítima “Avaliação e documentação
tuguês: “Consequências da dos indícios psicológicos da
psicológicos detectem os défices perturbação de stress pós-
-traumático no desempenho
ou testemunha de tortura, o tortura”], documento não
publicado, 1999.
neurocognitivos associados ao em testes neuropsicológi-
cos”], International Journal
médico dever-se-á assegurar de
stress pós-traumático, mas sejam of Clinical Neuropsycho-
logy, 11 (3), 1989, pp. 121 a
que a criança recebe o apoio adequado e se sente
insuficientes para diagnosticar a 124. segura durante o exame. Isto pode exigir a presença
122
perturbação de stress pós-trau- tiveT.functioning
Gil e outros, “Cogni-
in post-
de um dos progenitores ou pessoa de confiança
mático em si mesma. Como -traumatic stress disorder”
[em português: “Funciona-
durante a avaliação. Em segundo lugar, o médico
acontece com muitos outros mento cognitivo na pertur-
bação de stress
deverá ter presente que as crianças muitas vezes
tipos de avaliação, a interpreta- pós-traumático”], Journal
of Traumatic Stress, 3 (1),
não exprimem verbalmente as suas emoções e
1990, pp. 29 a 45.
ção dos resultados dos testes pensamentos relacionados com o trauma,
deverá ter em conta as informações recolhidas nas fazendo-o antes através do respectivo comporta-
entrevistas e eventuais testes de personalidade. mento123. O grau de verbalização dos pensamen-
Neste sentido, os métodos específicos de avaliação tos e sentimentos depende da idade da criança, do
neuropsicológica podem contribuir para o diag- seu nível de desenvolvimento e de outros factores,
nóstico da perturbação de stress pós-traumático da tais como a dinâmica familiar, características de per-
mesma forma que o fazem no caso de outros dis- sonalidade e normas culturais.
túrbios psiquiátricos associados a défices neuro-
cognitivos conhecidos. 311. Caso a criança tenha sido vítima de abuso
sexual ou agressão física, é importante que, sem-
308. Apesar das suas significativas limitações, a pre que possível, seja observada por um especia-
avaliação neuropsicológica poderá ser útil para lista em maus tratos infantis. O exame genital de
avaliar os indivíduos que se suspeite padecerem de crianças, susceptível de provocar traumas, deverá
lesões cerebrais e para distinguir as lesões cerebrais ser realizado por médicos com experiência na
da perturbação de stress pós-traumático. Poderá interpretação dos resultados da observação. Por
também recorrer-se à avaliação neuropsicológica vezes convém gravar em vídeo o exame, a fim de
para avaliar sintomas específicos, tais como pro- que outros peritos possam dar o seu parecer sobre
blemas de memória resultantes da perturbação de os indícios físicos detectados sem que a criança
stress pós-traumático e distúrbios associados. tenha de ser submetida a novo exame. Se for
necessário levar a cabo um exame genital ou anal
5. CRIANÇAS E TORTURA completo, pode ser preferível submeter a criança
a anestesia geral. Para além disto, o examinador
309. A tortura pode afectar as crianças directa ou deve ter presente que o próprio exame pode evo-
indirectamente. O impacto pode fazer-se sentir car reminiscências da agressão e é possível que a
devido ao facto de a própria criança ter sido tor- criança passe por um processo de descompensa-
turada ou detida, ter testemunhado actos de tortura ção psicológica ou tenha reacções violentas no
ou violência ou de os seus pais ou familiares pró- decorrer do mesmo.
ximos terem sido vítimas de tortura. Quando as pes-
soas em torno da criança são torturadas, este facto (a) Considerações relativas ao nível
repercute-se sobre a criança, pelo menos indirec- de desenvolvimento
tamente, uma vez que a tortura afecta toda a famí-
lia e comunidade em que as vítimas se inserem. 312. A reacção da criança perante a tortura
O estudo aprofundado do impacto da tortura sobre depende da respectiva idade, estado de desenvol-
as crianças e orientações completas para a avalia- vimento e capacidades cognitivas. Quanto mais
ção de crianças sujeitas a tortura está para além do jovem for a criança, mais a sua experiência e com-
âmbito do presente manual. No entanto, podem preensão dos factos será influenciada pelas reac-
resumir-se alguns pontos essenciais. ções e atitudes imediatas das pessoas que dela se

88
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
ocupam depois dos aconteci- 124 Ottino S. von Overbeck, dever-se-á basear mais na obser- 128 L. C. Terr, “Childhood
“Familles victimes de violen- traumas: an outline and
mentos124. No caso de crianças ces collectives et en exil: vação do comportamento da overview” [em português:
quelle urgence, quel modèle “Traumas de infância:
com idade inferior a três anos de soins? Le point de vue criança do que na sua expressão resumo e panorâmica
d’une pédopsychiatre” [em geral”], American Journal
que tenham experimentado ou português: “Famílias víti-
mas de violências colectivas
verbal128 129 130 131. Por exemplo, of Psychiatry, 148, 1991,
pp. 10 a 20.
sido testemunhas de tortura, as equeemmodeloexílio: que urgência,
de tratamento?
a criança pode revelar sintomas 129 National Center for
pessoas em seu redor desem- Opedopsiquiatra”],
ponto de vista de uma
La Revue
de estar a reviver o trauma, o Infants, Toddlers and Fami-
lies, Zero to Three, 1994.
penham um papel fundamental Française de Psychiatrie et
de Psychologie Médicale,
que se manifesta através de 130 F. Sironi, “On torture un
de protecção e tranquilização125. 14, 1998, pp. 35 a 39. brincadeiras monótonas e repe- enfant, ou les avatars de
l’ethnocentrisme psychologi-
125
As reacções das crianças muito en M. Grappe, “La guerre
ex-Yougoslavie: un regard
titivas que representam aspectos que” [em português: Tortura
de crianças, ou as doenças
jovens às experiências traumati- sur les enfants réfugiés” [em
português: “A guerra na ex-
do acontecimento traumático, do etnocentrismo psicoló-
gico], Enfances, 4, 1995,
zantes passam frequentemente -Jugoslávia: um olhar sobre
as crianças refugiadas”],
memórias visuais dos factos pp. 205 a 215.
131
Psychiatrie humanitaire en
pela sobreexcitação, manifes- ex-Yougoslavie et en durante ou fora das brincadei- phesL. etBailly, “Les catastro-
leurs conséquences
tada através de agitação, pertur- Arménie. Face au trauma-
tisme, M. R. Moro e S.
ras, perguntas ou declarações psychotraumatiques cez
l’enfant” [em português:
bações do sono, irritabilidade e Lebovici
1995.
eds., Paris, PUF,
repetitivas sobre o aconteci- As catástrofes e suas con-
sequências psicotraumáti-
na criança], Paris, ESF,
reacções de hipervigilância e 126 J. Piaget, La naissance mento traumatizante e pesade- cas 1996.
evitamento. As crianças com de l’intelligence chez l’en-
fant [em português: O Nas- los. A criança pode desenvolver
cimento da inteligência na
idade superior a três anos ten- criança ], Neuchâtel, Dela- enurese nocturna, perda de controlo das funções
dem frequentemente a alhear-se chaux e Niestlé, 1977. intestinais, alheamento social e afectivo, mudan-
127
Vide nota 125.
e recusar-se a falar directa- ças de atitude perante ela própria e perante os
mente sobre as experiências traumatizantes. outros e sentimentos de que não existe qualquer
A capacidade de expressão verbal aumenta em futuro. Pode também ser afectada por sobreexci-
função do grau de desenvolvimento. Uma evolu- tação e terrores nocturnos, problemas em ir para
ção acentuada regista-se quando a criança atinge a cama, perturbações do sono, hiper-vigilância,
a fase operativa concreta (por volta dos 8-9 anos de irritabilidade e transtornos significativos de aten-
idade), altura em que desenvolve a capacidade de ção e concentração. Temores e comportamentos
fornecer uma cronologia fidedigna dos aconteci- agressivos que não se verificavam antes do acon-
mentos. Durante esta fase, desenvolvem-se as tecimento traumatizante podem manifestar-se sob
capacidades operativas concretas, temporais e a forma de agressividade para com as outras crian-
espaciais126. Estas novas competências são ainda ças, adultos ou animais, medo do escuro, medo de
frágeis e, em geral, as crianças só desenvolvem a ir à casa de banho e fobias. A criança pode revelar
capacidade de construir constantemente uma nar- um comportamento sexual pouco adequado à sua
rativa coerente por volta dos 12 anos de idade, ao idade e desenvolver reacções somáticas. Podem
atingir a fase operativa formal. A adolescência também surgir sintomas de ansiedade, como um
representa um período de desenvolvimento tur- medo exagerado de estranhos ou de ser separado
bulento, durante o qual as consequências da tor- de familiares próximos, pânico, agitação, acessos
tura podem variar consideravelmente de pessoa para de cólera e choro incontrolável, bem como dis-
pessoa. Em determinados casos, as experiências de túrbios de ordem alimentar.
tortura podem causar profundas alterações de per-
sonalidade nos adolescentes, que se traduzem em (c) Papel da família
comportamentos anti-sociais127. Noutros, o
impacto poderá ser similar ao observado em crian- 314. A família desempenha um importante papel
ças mais jovens. dinamizador na persistência da sintomatologia
nas crianças. Para preservar a coesão familiar,
(b) Considerações clínicas podem surgir comportamentos disfuncionais e
fenómenos de delegação de papéis. A determina-
313. As crianças podem apresentar sintomas da dos membros da família, frequentemente crianças,
perturbação de stress pós-traumático, similares pode ser atribuído o papel de paciente com o
aos observados nos adultos. Porém, o médico desenvolvimento de perturbações graves. Por

Indícios psicológicos da tortura


* 89
vezes, pode haver tendência a super proteger a turados, ou que testemunhe actos de tortura ou
criança ou a ocultar-lhe factos importantes rela- outros acontecimentos altamente traumatizan-
tivos ao trauma. Noutros casos, pode atribuir-se tes, pode desenvolver ideias disfuncionais, como
à criança um papel parental ou esperar-se que ela a convicção de que é responsável pelo sucedido
cuide dos pais. Caso a criança não seja vítima ou de que tem de suportar o fardo dos seus pais.
directa da tortura, mas se veja apenas indirecta- Este tipo de ideias pode originar problemas dura-
mente afectada, os adultos tendem muitas vezes douros como sentimentos de culpa, conflitos de
a subestimar as consequências sobre a psique e lealdade e problemas de desenvolvimento e de
o desenvolvimento da criança. Uma criança cujos amadurecimento até à idade adulta indepen-
entes queridos sejam perseguidos, violados, tor- dente.

90
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
Anexo I

Princípios sobre a Investigação


e Documentação Eficazes da Tortura
e Outras penas ou Tratamentos Cruéis,
Desumanos ou Degradantes 132

1. Entre os objectivos de uma 132 A Comissão dos Direitos independentes dos suspeitos e dos organismos a
do Homem, na sua
investigação e documentação resolução 2000/43, e a que estes pertencem, devem ser competentes e
Assembleia Geral, na sua
eficazes da tortura e outras resolução 55/89, chamaram imparciais. Deverão ter acesso a perícias efectua-
a atenção dos Governos
penas ou tratamentos cruéis, para os Princípios e
encorajaram fortemente os
das por médicos ou outros peritos independen-
desumanos ou degradantes (de Governos a reflectirem sobre
os mesmos enquanto
tes, ou dispor da faculdade de ordenar a realização
ora em diante designados por instrumento útil nos
esforços para combater a
de tais perícias. Os métodos utilizados para levar
tortura ou outros maus tratos), tortura. a cabo o inquérito deverão respeitar as mais exi-
contam-se os seguintes: gentes normas profissionais e os resultados obti-
a) esclarecimento dos factos e estabelecimento dos deverão ser tornados públicos.
e reconhecimento da responsabilidade individual
e estadual perante as vítimas e suas famílias; 3. a) A autoridade responsá- 133 Em determinadas
circunstâncias, a deontolo-
b) identificação das medidas necessárias para vel pelo inquérito deverá dispor gia profissional poderá
obrigar a que a informação
prevenir que os factos se repitam; de poderes para obter toda a se mantenha confidencial,
o que deve ser respeitado.
c) facilitação do exercício da acção penal ou, informação necessária à inves-
sendo caso disso, da aplicação de sanções disci- tigação e estar obrigada a procurá-la133. As pessoas
plinares, contra as pessoas cuja responsabilidade que conduzem a investigação deverão ter ao seu dis-
se tenha apurado na sequência do inquérito; e por todos os recursos financeiros e técnicos neces-
demonstrar a necessidade de plena reparação e sários a uma investigação eficaz. Deverão dispor
ressarcimento por parte do Estado, incluindo a também de competência para obrigar todos os
necessidade de atribuir uma indemnização justa funcionários presumivelmente implicados na prá-
e adequada e de disponibilizar os meios necessá- tica de tortura ou maus tratos a comparecer nos
rios ao tratamento médico e à reabilitação. interrogatórios. O mesmo se aplicara relativa-
mente a quaisquer testemunhas. Para este fim, a
2. Os Estados deverão garantir que todas as autoridade responsável pelo inquérito deverá estar
queixas e denúncias de tortura ou maus tratos habilitada a intimar as testemunhas, incluindo
sejam pronta e eficazmente investigadas. Mesmo quaisquer funcionários alegadamente envolvidos,
na ausência de uma denúncia expressa, deverá ser e a exigir a apresentação de provas.
instaurado um inquérito caso existam outros indí- b) As alegadas vítimas de tortura ou maus tra-
cios de que possam ter ocorrido actos de tortura ou tos, testemunhas, investigadores e suas famílias
maus tratos. Os investigadores, que deverão ser deverão ser protegidos contra a violência, ameaças

Princípios sobre a Investigação e Documentação Eficazes da Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes
* 91
de violência ou qualquer outra forma de intimidação sido divulgada para sua própria protecção.
a que possam estar expostos em resultado do O Estado deverá dar resposta ao relatório num
inquérito. Os suspeitos de implicação em actos prazo razoável e, se necessário, indicar as medidas
de tortura ou maus tratos deverão ser afastados de a adoptar na sequência do mesmo.
qualquer posição de controlo ou comando, directo
ou indirecto, sobre os queixosos, testemunhas e 6. a) Os peritos médicos envolvidos na inves-
suas famílias, bem como sobre as pessoas que tigação da tortura ou dos maus tratos deverão
realizam a investigação. pautar a sua conduta, em todos os momentos, de
acordo com os princípios éticos mais rigorosos,
4. As alegadas vítimas de tortura ou maus tra- devendo, em particular, obter o consentimento
tos e seus representantes legais deverão ser infor- esclarecido da pessoa em causa antes da realiza-
mados da realização de qualquer audiência e ter ção de qualquer exame. Os exames deverão ser
acesso a ela, bem como a toda a informação rela- efectuados em conformidade com as regras esta-
tiva ao inquérito, e dispor do direito de apresentar belecidas de prática médica. Em particular, os
outras provas. exames deverão ser efectuados em privado, sob
o controlo do perito médico e nunca na presença
5. a) Nos casos em que os 134 Vide nota de rodapé de agentes de segurança ou outros funcionários
supra.
procedimentos de inquérito se governamentais.
revelem inadequados por falta de capacidade téc-
nica, possível falta de imparcialidade, indícios da b) O perito médico deverá elaborar imediata-
existência de abusos sistemáticos ou outros moti- mente um relatório escrito rigoroso. Este relatório
vos relevantes, os Estados deverão garantir que as deverá incluir, no mínimo, os seguintes elementos:
investigações sejam levadas a cabo por uma
comissão de inquérito independente ou meca- i) Circunstâncias da entrevista: nome da pessoa
nismo análogo. Os membros desta comissão examinada e nome e função de todos quantos este-
deverão ser seleccionados com base na sua reco- jam presentes no exame; hora e data exactas do
nhecida imparcialidade, competência e indepen- exame; localização, natureza e morada (incluindo,
dência pessoal. Deverão, em particular, ser se necessário, a sala) da instituição onde se realiza
independentes de quaisquer suspeitos e das ins- o exame (por exemplo, estabelecimento prisional,
tituições ou agências a que estes pertençam. clínica, casa particular); condições em que se
A comissão deverá ser dotada de competência para encontra a pessoa no momento do exame (por
obter toda a informação necessária e deverá con- exemplo, natureza de quaisquer restrições que lhe
duzir o inquérito em conformidade com os pre- tenham sido impostas aquando da chegada ao
sentes Princípios134. local do exame ou no decurso do mesmo, pre-
sença de forças de segurança durante o exame,
b) Num prazo razoável, deverá ser elaborado comportamento das pessoas que acompanham o
um relatório escrito do qual conste o âmbito do detido, ameaças proferidas contra a pessoa que
inquérito instaurado, os procedimentos e métodos efectua o exame) e quaisquer outros factores rele-
utilizados na apreciação das provas, bem como as vantes;
conclusões e recomendações elaboradas com base ii) Antecedentes: registo detalhado dos factos
nos factos apurados e no direito aplicável. Este relatados pela pessoa em causa no decurso do
relatório deverá ser tornado público logo que se exame, incluindo os alegados métodos de tortura
encontre concluído. O relatório deverá também ou maus tratos, momento em que se alega ter
descrever em detalhe os factos concretos que se pro- ocorrido a tortura ou os maus tratos e todos os sin-
vou terem acontecido e as provas com base nas tomas físicos ou psicológicos que a pessoa afirme
quais foram apurados, bem como indicar os sofrer;
nomes das testemunhas que prestaram declarações, iii) Exame físico e psicológico: registo de todos
à excepção daquelas cuja identidade não tenha os resultados obtidos na sequência do exame, a nível

92
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
físico e psicológico, incluindo os testes de diag- c) Este relatório deverá ser confidencial e comu-
nóstico apropriados e, sempre que possível, foto- nicado à pessoa examinada ou seu representante
grafias a cores de todas as lesões; nomeado. A opinião da pessoa examinada ou seu
iv) Parecer: interpretação quanto à relação representante quanto ao processo de exame deverá
provável entre os resultados do exame físico e psi- ser recolhida e incluída no relatório. O relatório
cológico e a eventual ocorrência de tortura ou escrito deverá também ser enviado, se for caso disso,
maus tratos. Deverá ser formulada uma reco- à autoridade responsável pela investigação dos ale-
mendação quanto à necessidade de qualquer tra- gados actos de tortura ou maus tratos. Cabe ao
tamento médico ou psicológico ou exame Estado assegurar que o relatório seja enviado em
ulterior; segurança aos seus destinatários. O relatório não
v) Autoria: o relatório deverá identificar clara- deverá ser divulgado a nenhuma outra pessoa, salvo
mente as pessoas que procederam ao exame e com o consentimento do interessado ou autorização
deverá ser assinado. do tribunal competente para ordenar tal divulgação.

Princípios sobre a Investigação e Documentação Eficazes da Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes
* 93
Anexo II

Testes de diagnóstico

Os testes de diagnóstico evoluem e são constan- tecnológicos mais sofisticados e dispendiosos nem
temente objecto de avaliação. Os testes de diag- sempre estão disponíveis, sobretudo no caso de pes-
nóstico a seguir enunciados foram considerados soas detidas.
válidos no momento da elaboração do presente
manual. Contudo, caso se torne necessário encon- Os exames de diagnóstico radiológicos e ima-
trar elementos de prova suplementares, os inves- giológicos compreendem as radiografias con-
tigadores devem procurar fontes de informação vencionais (raios-x), cintigrafia rádio-isotópica,
actualizada, por exemplo contactando um dos cen- tomografia computorizada (TC), ressonância mag-
tros especializados na área da documentação da tor- nética nuclear (RMN) e ultrassonografia (US). Cada
tura (vide capítulo V, secção E). um destes métodos apresenta vantagens e desvan-
tagens. Os raios-x, a cintigrafia e a tomografia com-
putorizada utilizam radiação ionizante, que pode
1. IMAGIOLOGIA RADIOLÓGICA ser contra-indicada no caso de mulheres grávidas e
crianças. A ressonância magnética utiliza um campo
Na fase aguda das lesões, diversos métodos de magnético, com potenciais efeitos biológicos,
imagiologia podem ser de grande utilidade na embora se pense que mínimos, sobre fetos e crian-
recolha de informação adicional sobre as lesões do ças. A ultrassonografia utiliza ondas sonoras, não apre-
esqueleto e tecidos moles. Contudo, uma vez sara- sentando quaisquer riscos biológicos conhecidos.
das as feridas físicas resultantes da tortura, as res-
pectivas sequelas residuais não são, em geral, Os raios-x estão amplamente difundidos. À excep-
detectáveis através dos mesmos métodos imagio- ção do crânio, todas as áreas lesionadas deverão ser
lógicos. Isto acontece muitas vezes, mesmo nos submetidas a radiografias de rotina no exame ini-
casos em que a vítima continua a sentir dores sig- cial. Enquanto que as radiografias convencionais
nificativas ou incapacidades resultantes das lesões revelam as fracturas faciais, a tomografia compu-
sofridas. Já foi feita referência a diversos estudos torizada constitui uma técnica de diagnóstico
radiológicos aquando da discussão das questões superior, pois permite detectar outras fracturas, des-
relativas ao exame dos pacientes ou a propósito da locações dos fragmentos ósseos, bem como lesões
descrição das diversas formas de tortura. As con- e complicações nos tecidos moles associadas às frac-
siderações que se seguem são um resumo da apli- turas. Quando se suspeite da existência de lesões
cação de tais métodos. Contudo, os recursos do periósteo ou fracturas mínimas, deve recorrer-

Testes de diagnóstico
* 95
-se à cintigrafia óssea como complemento dos no segundo sugerem que a pes- 135 Vide notas 82 a 84; para
mais informações, consulte
raios-x. Uma determinada percentagem dos raios- soa foi sujeita à falanga poucos os textos de referência nas
áreas da radiologia e medi-
-x apresentará resultados negativos mesmo na pre- dias antes do primeiro exame. cina nuclear.
sença de fracturas agudas ou osteomielite inicial. Nas situações agudas, dois resultados negativos
As fracturas podem sarar sem deixar quaisquer obtidos com uma semana de intervalo não signi-
indícios detectáveis através dos métodos radioló- ficam necessariamente que a falanga não tenha
gicos, o que acontece sobretudo no caso de crian- ocorrido, mas antes que a gravidade das lesões
ças. As radiografias de rotina não são o melhor está abaixo do nível de sensibilidade da cintigra-
método para o exame dos tecidos moles. fia. Se for seguido o processo trifásico, um
aumento inicial da resposta nas fases arterial e
A cintigrafia constitui um método de exame de alta venosa, mas não na fase óssea, sugerem uma
sensibilidade, mas baixa especificidade. Trata-se de hiperemia compatível com lesão dos tecidos
um meio pouco dispendioso e eficaz no exame de moles. Os traumatismos nos ossos e tecidos moles
todo o esqueleto para detectar eventuais processos dos pés podem também ser detectados através de
patológicos, como osteomielites ou traumatismos. ressonância magnética135.
Pode também avaliar a torção testicular, embora a
ultrassonografia seja mais adequada nestes casos. (b) Ultra-sons
A cintigrafia não permite observar as lesões nos teci-
dos moles. Pode permitir a detecção de fracturas Os ultra-sons são pouco dispendiosos e não apre-
agudas nas primeiras 24 horas, mas é geralmente sentam contra-indicações biológicas. A qualidade
necessário aguardar dois ou três dias, ou mesmo do exame depende da competência do técnico.
mais de uma semana, em especial no caso das Sempre que não exista a possibilidade de recorrer
pessoas idosas. A imagem volta habitualmente ao à tomografia computorizada, os ultra-sons são uti-
normal decorridos dois anos, embora possa per- lizados para avaliar traumatismos abdominais
manecer positiva durante anos no caso de fractu- agudos. Os ultra-sons permitem também diag-
ras ou de osteomielites saradas. A utilização da nosticar as tendinopatias e são o método de elei-
cintigrafia óssea para detectar fracturas da epífise ção no caso de anomalias testiculares. Podem
ou metadiáfise (extremidades dos ossos longos) nas também servir para o exame da zona escapular
crianças é muito difícil devido à normal absorção nas fases aguda e crónica após um caso de tortura
dos radiofármacos na epífise. A cintigrafia é mui- por suspensão. Na fase aguda, os ultra-sons per-
tas vezes capaz de detectar fracturas das costelas mitem detectar edemas e concentrações de fluido
que passam despercebidas nas radiografias con- no interior e em torno das articulações escapula-
vencionais. res, bem como lacerações e hematomas nas bainhas
dos rotatores. O desaparecimento destes sintomas
(a) Aplicação da cintigrafia óssea em nova ultrassonografia posteriormente reali-
no diagnóstico da falanga zada tende a confirmar o diagnóstico. Neste caso,
o paciente deve ser submetido conjuntamente a res-
A cintigrafia pode ser efectuada de duas formas: sonância magnética, cintigrafia e outros exames
com imagens diferidas em cerca de três horas ou radiológicos, comparando-se os resultados obti-
através de um processo trifásico. Compreende as dos em todos estes exames. Ainda que os demais
três fases seguintes: angiograma por radionúclido exames não apresentem resultados positivos, os
(fase arterial), imagens de amostras sanguíneas ultra-sons, por si mesmos, são suficientes para
(fase venosa, dos tecidos moles) e fase retardada provar a tortura por suspensão.
(fase óssea). No caso de pacientes examinados
pouco tempo depois de terem sido submetidos à (c) Tomografia computorizada
falanga, dever-se-ão realizar duas cintigrafias com
uma semana de intervalo entre si. Um resultado A tomografia computorizada constitui um excelente
negativo no primeiro exame retardado e positivo método de observação dos tecidos moles e da

96
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
estrutura óssea. A ressonância magnética é mais nológica das hemorragias no sistema nervoso cen-
adequada para os tecidos moles do que para os tral compreende as fases imediata, hiper-aguda,
ossos. A ressonância magnética pode detectar frac- aguda, sub-aguda e crónica, cada uma delas apre-
turas ocultas antes que as mesmas se tornem sentando características específicas detectáveis no
visíveis nas radiografias convencionais ou cinti- exame. Assim, os resultados obtidos podem per-
grafias. A utilização de scanners abertos e a seda- mitir calcular o momento em que ocorreu a lesão
ção do paciente podem ajudar a aliviar a ansiedade e sua correlação com os factos alegados. As
e a claustrofobia, habituais nos sobreviventes de tor- hemorragias do sistema nervoso central podem
tura. A tomografia computorizada é também exce- sarar completamente ou originar depósitos de
lente para o diagnóstico e avaliação de fracturas, hemossiderina em quantidade suficiente para per-
em especial dos ossos temporais e faciais. Apresenta mitir a obtenção de resultados positivos em tomo-
também vantagens na detecção de anomalias no ali- grafia computorizada realizada anos depois da
nhamento e deslocações de fragmentos ósseos, ocorrência dos factos. As hemorragias nos teci-
sobretudo no caso de fracturas espinais, pélvicas, dos moles, sobretudo músculos, em geral saram
escapulares e acetabulares. Não permite identifi- completamente, não deixando vestígios mas, em
car contusões ósseas. A tomografia computori- casos raros, podem ossificar. Este fenómeno
zada com ou sem introdução de contraste deverá designa-se por ossificação heterotrópica ou myo-
ser o primeiro meio de diagnóstico utilizado no caso sitis ossificans e é detectável através de tomogra-
de quaisquer lesões agudas, sub-agudas ou cróni- fia computorizada.
cas do sistema nervoso central (SNC). Caso os
resultados obtidos sejam negativos, equívocos ou 2. BIOPSIA DAS LESÕES POR CHOQUE ELÉCTRICO
não expliquem as queixas ou sintomas do paciente
relativas ao SNC, deverá recorrer-se à ressonância As lesões resultantes de choques eléctricos
magnética. A tomografia computorizada com podem, embora tal nem sempre aconteça, apre-
janela óssea e exame pré e pós contraste deverá ser sentar alterações microscópicas específicas da apli-
o primeiro meio de diagnóstico utilizado no caso cação da corrente eléctrica, de grande valor para fins
de fracturas dos ossos temporais. A janela óssea de diagnóstico. A ausência destas alterações espe-
pode revelar fracturas e rupturas ossiculares. cíficas numa amostra de biopsia não exclui o diag-
O exame pré contraste pode detectar a presença de nóstico de tortura por choques eléctricos e não
fluidos e colesteatomas. O contraste é recomendado deve permitir-se que as autoridades judiciais tirem
devido às anomalias vasculares que são comuns semelhante conclusão. Infelizmente, quando o tri-
nesta área. No caso de otorráquia, a injecção de um bunal exige que uma presumível vítima de tor-
agente de contraste no canal medular poderá diag- tura por choque eléctrico se submeta a uma
nosticar uma fractura do osso temporal. A res- biopsia para confirmação dos factos alegados, a
sonância magnética poderá também detectar a recusa em submeter-se à intervenção ou um resul-
ruptura responsável pelo derrame de fluido. Caso tado negativo são susceptíveis de ter uma influên-
se suspeite de rinorráquia, deverá realizar-se uma cia negativa sobre o tribunal. Para além disso,
tomografia computorizada da face com janela para dispõe-se ainda de escassa experiência clínica na
os tecidos moles e ossos. Dever-se-á então proce- utilização de biopsias para o diagnóstico das lesões
der a nova tomografia computorizada depois da eléctricas relacionadas com a tortura, podendo
injecção de um agente de contraste no canal geralmente fazer-se tal diagnóstico com bastante
medular. segurança com base unicamente no relato e exame
físico do paciente.
(d) Ressonância magnética
Esta intervenção deverá, assim, ser decidida no
A ressonância magnética é mais sensível do que âmbito do exame clínico e não promovida
a tomografia computorizada na detecção de ano- enquanto meio habitual de diagnóstico. Para que
malias no sistema nervoso central. A evolução cro- a pessoa possa prestar o seu consentimento escla-

Testes de diagnóstico
* 97
recido para a realização da biopsia, deve ser infor- depois do alegado incidente de cription of a case” [em por-
tuguês: “Diagnóstico de
lesões eléctricas da pele:
mada previamente da incerteza dos resultados a fim tortura por choque eléctrico reve- análise e descrição de um
de que possa ponderar os even- 136 Thomsen e outros, laram alterações segmentares e caso”], American Journal
of Forensic Medical Patho-
“Early epidermal changes in
12, 1991, pp. 222 a
tuais benefícios da intervenção heat and electrically injured depósitos de sais de cálcio nas logy,
226.
pig skin: a light microscopic
por confronto com os riscos que study” [em português: “Alte- estruturas celulares, altamente 143 F. Öztop e outros, “Signs
rações epidérmicas iniciais
implica para o seu estado men- em pele de suíno aquecida e
com lesões eléctricas: um
compatíveis com a aplicação de ofskin” electrical torture on the
[em português: “Sinais
tal já perturbado. estudo com microscópio
luminoso”], Forensic
corrente eléctrica, embora sem de tortura eléctrica na
pele”], Treatment and
Science International, 17,
1981, pp. 133 a 143.
valor de diagnóstico, uma vez Rehabilitation Centers
Report 1994, Fundação de
(a) Explicação dos 137
Thomsen e outros, “The
que não foram observados depó- Direitos Humanos da Tur-
quia, Publicação HRFT, 11,
1994, pp. 97 a 104.
resultados da biopsia effect of direct current,
sodium hydroxide, and
sitos de sais de cálcio nas fibras
144
L. Danielsen, T. Karls-
hydrochloric acid on pig epi-
dermis: a light microscopic
dérmicas. Uma biopsia efec- mark, H. K. Thomsen,
Têm sido realizados importantes and electron microscopic
study” [em português: “O
tuada um mês após o alegado “Diagnosis of skin lesions
following electrical torture”
efeito da corrente directa, [em português: “Diagnós-
estudos laboratoriais para avaliar hidróxido de sódio e ácido
incidente de tortura eléctrica tico de lesões cutâneas sub-
clorídrico sobre a epiderme sequentes à tortura
os efeitos dos choques eléctri- dos suínos: um estudo com
revelou uma cicatriz cónica, de eléctrica”], Rom J. Leg.
microscópio luminoso e Med, 5, 1997, pp. 15 a 20.
cos na pele de suínos aneste- microscópio electrónico”],
cerca de 1 a 2 milímetros de diâ-
145
H. Jacobsen, “Electrically
siados136 137 138 139 140 141. Este Acta path microbial.
Immunol. Scand, sect.
metro, com aumento do número induced deposition of metal
A 91, 1983, p. 307 a 316. on the human skin” [em
trabalho demonstra que exis- de fibroblastos e fibras de cola- português: “Depósito de
138
H. K. Thomsen, “Electri- metal electricamente indu-
tem alterações histológicas cally induced epidermal génio estreitamente aglutinadas zido na pele humana”],
changes: a morphological Forensic Science Interna-
específicas das lesões eléctricas study of porcine skin after e finas, dispostas em paralelo à tional, 90, 1997, pp. 85 a
transfer of low-moderate 92.
que podem ser detectadas atra- amounts of electrical superfície, compatíveis com as
energy” [em português:
vés da observação microscópica “Alterações epidérmicas lesões eléctricas mas sem valor de diagnóstico.
electricamente induzidas:
de biopsias por punção da área estudo morfológico da pele
de suínos depois da transfe-
lesionada. Contudo, uma aná- rência de quantidades bai- (b) Método
xas a moderadas de energia
lise mais aprofundada destes eléctrica”], dissertação, Uni-
versidade de Copenhaga,
estudos, que podem ter aplica- F.A.D.L., 1984, pp. 1 a 78. Uma vez obtido o consenti- 146 S. Gürpinar e S. Korur
Fincanci, “Insan Haklari
ções clínicas importantes, está 139
T. Karlsmark e outros, mento esclarecido do paciente, e Ihlalleri ve Hekim
“Tracing the use of torture: Sorumlulgu” [Violações de
fora do âmbito da presente electrically induced calcifica- antes da biopsia, a lesão deverá Direitos Humanos e
tion of collagen in pig skin” Responsabilidade do
publicação. O leitor deverá con- [em português: “Detectando ser fotografada em conformi- Médico], Birinci Basamak
a utilização da tortura: Için Adli Tip El Kitabi
sultar as referências bibliográ- calcificação de colagénio dade com os métodos estabele- [Manual de Medicina Legal
electricamente induzida na para Médicos de Clínica
ficas supra citadas para mais pele de suínos”], Nature, cidos de medicina legal. Sob Geral], Ankara, Associação
301, 1983, pp. 75 a 78. Médica Turca, 1999.
informação. 140
anestesia local, obtém-se uma
T. Karlsmark e outros,
“Electrically-induced colla- biopsia por punção que se conserva em solução de
gen calcification in pig skin.
Poucos casos de tortura de seres A histopathologic and formol vedada ou fixador análogo. A biopsia cutâ-
histochemical study” [em
humanos por choques eléctri- português: “Calcificação de nea deverá ser realizada o mais depressa possível
colagénio electricamente
cos foram objecto de estudos induzida na pele de suínos. depois da lesão. Uma vez que os traumatismos
Um estudo histopatológico
histológicos142 143 144 145. Apenas e histoquímico”], Forensic resultantes de choques eléctricos se confinam geral-
Science International, 39,
numa das situações, em que se 1988, pp. 163 a 174. mente à epiderme e camadas superficiais da derme,
procedeu a uma excisão das 141
T. Karlsmark, “Electri- as lesões podem desaparecer rapidamente. Podem
cally induced dermal chan-
lesões provavelmente sete dias ges: a morphological study ser recolhidas amostras de mais do que uma lesão,
of porcine skin after transfer
depois do traumatismo, foram as of low to moderate embora se deva ter em conta a potencial angústia que
amounts of electrical
alterações observadas na pele energy” [em português: tal poderá causar ao paciente146. As amostras deve-
Alterações dérmicas electri-
imputadas directamente aos camente induzidas: estudo rão ser examinadas por um patologista com expe-
morfológico da pele de suí-
choques eléctricos (depósito de nos depois da transferência riência na área da dermatopatologia.
de quantidades baixas a
sais de cálcio nas fibras dérmi- moderadas de energia eléc-
trica”], dissertação, Univer-
cas em tecidos viáveis loca- sidade de Copenhaga,
Danish Medical Bulletin,
(c) Sinais diagnósticos dos choques eléctricos
lizados em torno do tecido 37, 1990, pp. 507 a 520.
142
necrótico). Nos restantes casos, L. Danielsen e outros,
“Diagnosis of electrical skin
Entre os sinais diagnósticos das lesões por choques
as lesões extraídas poucos dias injuries: a review and a des- eléctricos, incluem-se os seguintes: núcleos vesi-

98
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
culares na epiderme, glândulas 147 Danielsen e outros, 1991. São típicos sinais de choque eléctrico, embora não
sudoríparas e paredes vasculares tenham valor de diagnóstico, as lesões que se apre-
(existe apenas um diagnóstico diferencial: lesões sentam em segmentos cónicos, frequentemente
provocadas por substâncias alcalinas) e depósitos com 1 a 2 milímetros de diâmetro, os depósitos de
de sais de cálcio claramente localizados nas fibras ferro ou cobre na epiderme (provenientes do eléc-
colagénicas e elásticas (o diagnóstico diferencial, trodo) e o citoplasma homogéneo na epiderme,
calcinosis cutis, é uma doença rara, observada ape- glândulas sudoríparas e paredes vasculares.
nas 75 vezes em 220 000 biopsias consecutivas à Podem também existir depósitos de sais de cálcio
pele humana, sendo os depósitos de cálcio em nas estruturas celulares das lesões segmentares ou
geral maciços e sem localização clara nas fibras cola- não se observarem quaisquer anomalias histoló-
génicas e elásticas)147. gicas.

Testes de diagnóstico
* 99
Anexo III

Esquemas anatómicos
para a documentação da tortura
e dos maus tratos
Nome

CORPO INTEIRO, MULHER – PLANOS ANTERIOR E POSTERIOR


Data

Caso n.o
Nome

CORPO INTEIRO, MULHER – PLANO LATERAL


ESQUERDO
BRAÇO
Data

Caso n.o

DIREITO
BRAÇO

Esquemas anatómicos para a documentação da tortura e dos maus t ratos


* 101
TÓRAX E ABDÓMEN, MULHER – PLANOS ANTERIOR E POSTERIOR

PERÍNEO – MULHER

Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


Nome Caso n.o Nome Caso n.o

*
Data Data

102
103
CORPO INTEIRO, HOMEM – PLANOS ANTERIOR E POSTERIOR CORPO INTEIRO, HOMEM – PLANO LATERAL

*
(VENTRAL E DORSAL)

Esquemas anatómicos para a documentação da tortura e dos maus t ratos


BRAÇO BRAÇO
ESQUERDO DIREITO

Nome Caso n.o Nome Caso n.o

Data Data
TÓRAX E ABDÓMEN, HOMEM – PLANOS ANTERIOR E POSTERIOR PÉS – SUPERFÍCIES PLANTARES ESQUERDA E DIREITA

Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


Nome Caso n.o Nome Caso n.o

*
Data Data

104
105
MÃO DIREITA – PLANOS PALMAR E DORSAL MÃO ESQUERDA – PLANOS PALMAR E DORSAL

*Esquemas anatómicos para a documentação da tortura e dos maus t ratos


Nome Caso n.o Nome Caso n.o

Data Data
CABEÇA – SUPERFÍCIE E ANATOMIA ESQUELÉTICA, PLANO SUPERIOR – PLANO CABEÇA – SUPERFÍCIE E ANATOMIA ESQUELÉTICA, PLANO LATERAL
INFERIOR DO PESCOÇO

Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]


Nome Caso n.o Nome Caso n.o

*
Data Data

106
ESQUELETO – PLANOS ANTERIOR E POSTERIOR

Nome Caso n.o

Data

Esquemas anatómicos para a documentação da tortura e dos maus t ratos


* 107
ASSINALE NESTE QUADRO TODOS OS DENTES RESTAURADOS E EM FALTA Estimativa Idade
Sexo
Raça

Assinale com um círculo as opções


pretendidas

Próteses presentes

Dentição completa
Maxilar
superior Dentição parcial
Ponte fixa

ESQUERDA
DIREITA

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
32 31 30 29 28 27 26 25 24 23 22 21 20 19 18 17 Dentição completa
Maxilar
inferior Dentição parcial
Ponte fixa

Descreva em detalhe todos os aparelhos de prótese ou pontes fixas

Manchas nos dentes


Ligeiras
Moderadas
Pronunciadas

Assinale com um
ASSINALE NESTE QUADRO TODAS AS CÁRIES círculo as opções
pretendidas
Assinale todas as cáries e marque com “X” todos os dentes em falta
Alinhamento
Normal
Saliente em cima
Saliente em baixo

Condição peridental
Excelente
Média
Deficiente
ESQUERDA
DIREITA

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
32 31 30 29 28 27 26 25 24 23 22 21 20 19 18 17
Depósitos calcários
Ligeiros
Moderados
Importantes

108
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
Anexo IV

Directrizes para a avaliação médica


da tortura e dos maus tratos

As directrizes seguintes baseiam-se no Proto- conta os objectivos da avaliação e depois de con-


colo de Istambul: Manual para a Investigação e siderados os recursos disponíveis. A avaliação dos
Documentação Eficazes da Tortura e Outras Penas indícios físicos e psicológicos da tortura e dos
ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degra- maus tratos pode ser efectuada por um ou mais
dantes . Não se destinam a servir de modelo médicos, consoante as respectivas qualifica-
rígido, devendo antes ser aplicadas tendo em ções.

I. INFORMAÇÃO RELATIVA AO CASO

Data do exame: ___________________________ Exame solicitado por (nome/posição): _______________________________

Processo ou relatório n.o: ______________________ Duração da avaliação: _____________ horas, _____________ minutos

Nome próprio da pessoa: ___________________ Data de nascimento: _____________ Local de nascimento: _______________

Apelido da pessoa: _________________________________________________________________ Sexo: masculino/feminino

Motivos do exame: __________________________________ N.o do documento de identificação da pessoa: _______________

Nome do médico: _________________________________ Intérprete (sim/não), nome: ________________________________

Consentimento esclarecido: sim/não Se não houve consentimento esclarecido, porquê?: ________________________

Pessoa acompanhada por (nome/posição): _____________________________________________________________________

Pessoas presente durante o exame (nome/posição): ______________________________________________________________

A pessoa foi sujeita a restrições durante o exame: sim/não Se “sim”, como/porquê?: ____________________________

Relatório médico transmitido a (nome/posição/documento de identificação n.o): ____________________________________

Data da transmissão: ________________________________ Hora da transmissão: _______________________________

Avaliação/investigação médica realizada sem restrições (no caso de pessoas detidas): sim/não

Especifique quaisquer restrições: ________________________________________________________________________

Directrizes para a avaliação médica da tortura e dos maus t ratos


* 109
II. QUALIFICAÇÕES DO MÉDICO 1. Incapacidades e sintomas agudos
(para testemunho em juízo) 2. Incapacidades e sintomas crónicos

Estudos médicos e formação clínica VII. EXAME FÍSICO


Formação em psicologia/psiquiatria
Experiência na documentação da tortura e dos 1. Aspecto geral
maus tratos 2. Pele
Experiência na área dos direitos humanos a nível 3. Face e cabeça
regional com relevância para a investigação 4. Olhos, ouvidos, nariz e garganta
Publicações, apresentações e cursos de formação 5. Cavidade oral e dentes
relevantes 6. Tórax e abdómen (incluindo sinais vitais)
Curriculum Vitae 7. Sistema genital e urinário
8. Sistema muscular e ósseo
III. DECLARAÇÃO RELATIVA À VERACIDADE DO 9. Sistema nervoso central e periférico
TESTEMUNHO (para testemunho em juízo)
VIII. PERFIL E EXAME PSICOLÓGICO
Por exemplo: “Tenho conhecimento pessoal dos fac-
tos abaixo descritos, à excepção dos que se indica 1. Métodos de avaliação
serem baseados em informações fornecidas por ter- 2. Queixas psicológicas actuais
ceiros ou em convicções, e que acredito serem ver- 3. Perfil posterior à tortura
dadeiros. Estou disposto a testemunhar sobre os 4. Perfil anterior à tortura
factos acima referidos com base no meu conheci- 5. Antecedentes psicológicos e psiquiátricos
mento e convicções pessoais.” 6. Antecedentes de uso e abuso de substâncias
tóxicas
IV. ANTECEDENTES DA PESSOA 7. Exame do estado mental
8. Avaliação do funcionamento social
Informação geral (idade, profissão, educação, agre- 9. Testes psicológicos (vide capítulo VI, secção
gado familiar, etc.) C.1 quanto às indicações e limitações)
Antecedentes médicos 10. Testes neuropsicológicos (vide capítulo VI,
Descrição de anteriores avaliações médicas de tor- secção C.4 quanto às indicações e limitações)
tura e maus tratos
Perfil psicossocial anterior à detenção IX. FOTOGRAFIAS

V. ALEGAÇÕES DE TORTURA E MAUS TRATOS X. RESULTADOS DOS TESTES DE DIAGNÓSTICO


(vide anexo II quanto às indicações e limitações)
1. Resumo da situação de detenção e maus tratos
2. Circunstâncias da captura e detenção XI. CONSULTAS
3. Local de detenção inicial e locais subsequentes
(cronologia, transportes e condições de detenção) XII. INTERPRETAÇÃO DOS RESULTADOS
4. Relato dos maus tratos ou tortura (em cada
local de detenção) 1. Indícios físicos
5. Descrição dos métodos de tortura
a) Estabeleça o grau de conformidade entre as
VI. SINTOMAS E INCAPACIDADES FÍSICAS incapacidades e os sintomas físicos agudos e cró-
nicos relatados e os maus tratos alegados
Descreva a evolução de incapacidades ou sinto- b) Estabeleça o grau de conformidade entre os
mas agudos ou crónicos e posteriores processos de resultados do exame físico e os maus tratos alegados
recuperação (Nota: a ausência de sintomas físicos não exclui a

110
* Protocolo de Istambul • Série de Formação Profissional n.º 08 [ACNUDH]
possibilidade de a pessoa ter sido vítima de tortura 2. Recorde os sintomas e incapacidades que
ou maus tratos) continuam a afectar o paciente em resultado dos
c) Estabeleça o grau de conformidade entre os maus tratos alegados
resultados do exame individual e o conhecimento 3. Formule recomendações quanto à neces-
dos métodos de tortura utilizados na região em sidade de exames e tratamentos complementares
causa e suas sequelas habituais
XIV. DECLARAÇÃO DE BOA FÉ (para testemunho
2. Indícios psicológicos em juízo)

a) Estabeleça o grau de conformidade entre os Por exemplo: “Declaro, sob pena de perjúrio, em con-
resultados do exame psicológico e o relato do ale- formidade com a legislação de _____________ (país),
gado caso de tortura que os factos acima descritos são verdadeiros
b) Dê o seu parecer quanto ao facto de as obser- e correctos. Feito a ____________________ (data) em
vações do exame psicológico constituírem ou não _________________ (localidade), ________________
reacções naturais ou típicas de situações de stress (estado ou distrito)”.
intenso no contexto cultural e social da pessoa
c) Indique o estado da pessoa no percurso evo- XV. DECLARAÇÃO SOBRE AS RESTRIÇÕES
lutivo temporal dos distúrbios mentais associados IMPOSTAS À AVALIAÇÃO/INVESTIGAÇÃO
ao traumatismo, isto é, a situação no tempo em rela- MÉDICA (no caso de pessoas detidas)
ção aos factos e em que ponto do processo de recu-
peração se encontra a pessoa Por exemplo: “Os médicos abaixo assinados cer-
d) Identifique quaisquer factores de stress con- tificam pessoalmente que puderam trabalhar de
comitantes que actuem sobre o sujeito (por exem- forma livre e independente e lhes foi permitido
plo, perseguições de que é vítima, migração falar com a pessoa e examiná-la em privado, sem
forçada, exílio, perda da família e do papel social, qualquer restrição ou reserva e sem que qualquer
etc.) e seu potencial impacto sobre a pessoa forma de coacção tenha sido utilizada pelas auto-
e) Mencione quaisquer problemas que possam ridades de detenção”; ou “O(s) médico(s) abaixo
contribuir para o quadro clínico, especialmente assinado(s) viu(ram)-se obrigado(s) a conduzir a
no que diz respeito a eventuais indícios de lesões sua avaliação com as seguintes restrições:
cerebrais infligidas durante a tortura ou detenção _____________________________________________”.

XIII. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES XVI. ASSINATURA DO MÉDICO, DATA E LOCAL


1. Formule um parecer sobre a concordância de XVII. ANEXOS RELEVANTES
todas as fontes de informação supra citadas (resul-
tados dos exames físicos e psicológicos, antece- Um exemplar do curriculum vitae do médico,
dentes do caso, fotografias, resultados dos testes esquemas anatómicos para identificação da tor-
de diagnóstico, conhecimento das práticas de tor- tura e dos maus tratos, fotografias, relatórios de con-
tura a nível regional, relatórios de consultas, etc.) sultas e resultados dos testes de diagnóstico, entre
com as alegações de tortura e maus tratos outros.

Directrizes para a avaliação médica da tortura e dos maus t ratos


* 111
Como obter as publicações das Nações Unidas As publicações das Nações Unidas estão
à venda em livrarias e agências distribui-
doras em todo o mundo.

Consulte o seu livreiro ou dirija-se à Secção de Vendas das Nações Unidas,


em Nova Iorque ou Genebra.

Para mais informação relativa ao sistema internacional de protecção dos


direitos humanos e instrumentos jurídicos aplicáveis, consulte a web page
do Gabinete de Documentação e Direito Comparado, www.gddc.pt

Relativamente à presente edição em língua portuguesa, os interessados pode-


rão contactar o Gabinete de Documentação e Direito Comparado, Rua do
Vale de Pereiro, 2, 1269-113 Lisboa.

EDIÇÃO ORIGINAL IMPRESSA NAS NAÇÕES UNIDAS


GENEBRA

GE.01-41146
Junho de 2001-8 150
Editor
Comissão Nacional para as Comemorações do 50.o Aniversário da Declaração
Universal dos Direitos do Homem e Década das Nações Unidas
para a Educação em matéria de Direitos Humanos

Gabinete de Documentação e Direito Comparado


Procuradoria-Geral da República
Rua do Vale de Pereiro, 2, 1269-113 Lisboa
www.gddc.pt

Tradução
Raquel Tavares
Gabinete de Documentação e Direito Comparado
Procuradoria-Geral da República

Revisão técnica da tradução


CarlDra. Natália Madureira
Especialista em Medicina Interna
Hospital Curry Cabral

Revisão
Manuel Dias
Gabinete de Documentação e Direito Comparado
Procuradoria-Geral da República

Título original
The Istanbul Protocol: Manual on the Effective Investigation and Documentation of Torture and Other Cruel,
Inhuman or Degrading Treatment or Puninshment. Professional Training Series n.o 8 – United Nations

Design gráfico
José Brandão | Paulo Falardo
[Atelier B2]

Impressão
Textype

Tiragem
1500 exemplares

isbn
972-8707-20-7

Depósito legal
224 793/05

Primeira edição
Agosto de 2002
Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos

n.º 08
GENEBRA

Série de Formação Profissional


Protocolo
de Istambul

Protocolo de Istambul
MANUAL PARA A INVESTIGAÇÃO
E DOCUMENTAÇÃO EFICAZES DA TORTURA
E OUTRAS PENAS OU TRATAMENTOS CRUÉIS,
DESUMANOS OU DEGRADANTES

Procuradoria-Geral da República
Gabinete de Documentação
e Direito Comparado

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