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Em 16 de outubro de 2019, o Supremo Tribunal Federal julgou recurso extraordinário (RE

817338/DF), em tema de repercussão geral, que fixou entendimento sobre o exercício do poder
de autotutela da Administração Pública no sentido de que ela possa revisar atos de concessão de
anistia a cabos da Aeronáutica. A decisão se fundamentou na análise da Portaria 1.104/1964, e
determinou sua inaplicabilidade nos casos em que se comprove a ausência de ato com motivação
exclusivamente política, mas assegurando ao anistiado, em procedimento administrativo, o devido
processo legal e a não devolução das verbas já recebidas. Com base nesse entendimento, em 8
de junho de 2020, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, por meio de ato da
ministra da pasta, Damares Alves, anulou a anistia política de 295 anistiados políticos.

As anistias políticas revogadas foram concedidas pela Comissão de Anistia, criada pela Lei
10.559, de 13 de novembro de 2002, com o objetivo de reparar as vítimas de atos de exceção,
ocorridos entre 1946 e 5 de outubro de 1988.  A Comissão de Anistia tem por missão examinar os
requerimentos de anistias e assessorar a Ministra de Estado da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos em suas decisões. A decisão final, caso seja de reconhecimento da condição de
anistiado político do requerente, garante o direito à reparação por danos decorrentes pela
perseguição política sofrida.

As anulações das anistias políticas foram possíveis por uma mudança de interpretação acerca da
natureza da Portaria 1.104/1964, editada no primeiro ano do regime militar. O entendimento
exposto em Súmula Administrativa 2002.07.003 (2002), expressava que: "a Portaria 1.104, de 12
de outubro de 1964, expedida pelo Senhor Ministro de Estado da Aeronáutica, é ato de exceção,
de natureza exclusivamente política". Tal entendimento corroborou a concessão de anistia a 2.500
cabos da Aeronáutica que tinham sido licenciados pela implementação do tempo de serviço militar
(oito anos). Em procedimento de revisão do Grupo de Trabalho Interministerial, instituído pela
Portaria Interministerial 134/2011, consolidou-se a alteração no entendimento manifestado pela
Súmula Administrativa, considerando a portaria como meramente administrativa. Entretanto, as
anulações das anistias políticas de 295 anistiados políticos, em 8 de junho de 2020, realizadas
pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, foram atos administrativos
genéricos, sem a devida motivação, uma vez que não foi assegurado, em procedimento
administrativo, o devido processo legal e a não devolução das verbas já recebidas.

A anistia é direito reconhecido pelo artigo 8º dos Atos das Disposições Constitucionais
Transitórias, segundo o qual é concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946
até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação
exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram
abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo
Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969. A anistia busca assegurar as promoções, na
inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço
ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos pelas leis e regulamentos
vigentes, e respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos
civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos. Esse reconhecimento da condição
de anistiado político e as consequentes reparações concretizam os objetivos da justiça de
transição, um conjunto de mecanismos que incluem, dentre outros, punições aos autores de
crimes de violação aos direitos humanos ocorridos, indenizações às vítimas e o restabelecimento
da verdade, nos processos de transição à democracia de regimes políticos.

De acordo com a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o restabelecimento da verdade é


consagrado pelo direito à verdade, que se concretiza no direito das vítimas e de seus familiares a
obterem dos órgãos competentes do Estado esclarecimento dos direitos violados e as
responsabilidades correspondentes, por meio de investigação e julgamento, previstos nos artigos
8 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Caso Bámaca Velásquez Vs. Guatemala).
O direito à verdade compreende não somente a responsabilização judicial daqueles que
cometeram crimes de violação aos direitos humanos, mas também, quando apropriado, a
aplicação da punição adequada aos responsáveis e a fixação de indenizações às vítimas pelos
danos e prejuízos sofridos (Caso Las Palmeras Vs. Colombia). Nesse contexto, as anulações das
anistias políticas de 295 anistiados políticos caracteriza mais uma violação das obrigações
internacionais em matéria de defesa e proteção dos Direitos Humanos do Estado brasileiro, que
sistematicamente descumpre decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos
estabelecidas em diversos julgamentos sobre o tema.

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