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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO (PPGD)

DO RECONHECIMENTO JURÍDICO À FALTA DE EFETIVIDADE DOS DIREITOS


HUMANOS: UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE AS TEORIAS DE JACK
DONNELLY E JOAQUÍN HERRERA FLORES

Roteiro de artigo apresentado como avaliação parcial da


disciplina Pensamento Jurídico Contemporâneo, ministrada pelo
Prof. Dr. Eduardo Moreira, pela discente Ana Luiza Pereira
Duarte, DRE n. 123017831, do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGD/UFRJ) no primeiro semestre de 2023.

Rio de Janeiro/RJ,
2023
DO RECONHECIMENTO JURÍDICO À FALTA DE EFETIVIDADE DOS DIREITOS
HUMANOS: UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE AS TEORIAS DE JACK
DONNELLY E JOAQUÍN HERRERA FLORES

Ana Luiza Pereira Duarte1

INTRODUÇÃO

A construção dos direitos humanos na era moderna representou um triunfo contra a


opressão e dominação presentes no Antigo Regime. Com a defesa dos ideais de liberdade,
igualdade e propriedade, a busca pelo reconhecimento desses direitos iniciou-se como uma luta
em defesa dos interesses liberais de uma burguesia indignada com a organização social estática
vigente à época. Os direitos humanos, então, em sua perspectiva clássica, se afirmam como um
mecanismo de limitação do poder estatal.

A teoria jurídica dos direitos humanos baseada na abordagem tradicionalista, de forte


influência kantiana, fundamentou-se em uma dignidade intrínseca à condição humana para
firmar sua base em uma linguagem universalista. Neste sentido, a promessa iluminista de um
ideal emancipatório generalizado teve como marcos históricos iniciais a Declaração de
Independência Americana (1776) e a Declaração Francesa dos Direitos do Homem (1789),
culminando, por fim, na Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) de 1948.

No entanto, a pretensa universalidade, abstração e hegemonia do discurso clássico dos


direitos humanos camufla o importante processo de construção do “humano” sujeito de direitos,
processo este capaz de revelar lógicas que excluem todos aqueles pertencentes à grupos
historicamente vulneráveis.

Apesar de se reconhecer os importantes avanços normativos no reconhecimento dos


direitos humanos no sistema internacional a partir da teoria clássica, é necessário contestar sua
capacidade de alcançar e compreender realidades que não se enquadrem no ideal masculino,
branco, cis e heteronormativo de sujeito universal construído pela luta liberal. Neste sentido,
teorias críticas de direitos humanos surgem como alternativa às propostas neutras e universais
da teoria clássica.

1
Mestranda em Teorias Jurídicas Contemporâneas pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: analuizaduarte03@hotmail.com
O presente trabalho busca tecer um quadro comparativo entre as teorias jurídicas de
direitos humanos, tradicional e crítica, tendo como paradigma os estudos de Jack Donnelly e
Joaquín Herrera Flores e como pano de fundo a discussão sobre a pouca ou nenhuma efetividade
desses direitos humanos para a população negra, pobre e periférica residente em favelas que
sofre diariamente com a violência policial.

Busca-se, com isso, refletir sobre uma possível abordagem que considere os fatores
históricos, sociais, econômicos e regionais que fragmentam a realidade social e juntos criam
sujeitos vulneráveis que reivindicam um lugar no conceito de ser humano. Partimos da hipótese
de que teorias universais de direitos humanos, por mais relativas que sejam, são insuficientes
para contemplar diferentes condições de existência e, ainda, contribuem para sua maior
exclusão e invisibilização.

1. O TRIUNFO LIBERAL

O triunfo do reconhecimento normativo dos direitos humanos, conforme dito,


contemplou ideais liberais. O homem, simplesmente por ter como valor intrínseco a
humanidade, possui um núcleo duro de direitos que devem ser respeitados contra as ameaças e
arbitrariedades do Estado. Baseados em uma igualdade formal, esses direitos seriam
inalienáveis e intransferíveis, sendo, assim, essencialmente individualistas.

Uma das questões centrais da teoria liberal dos direitos humanos reside em seu
universalismo. Para a teoria, a dignidade humana, por ser fundamento último dos direitos
humanos, requer que todos sejam tratados com igual consideração e respeito. Neste sentido, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948 consolidou o ideal universal de
proteção do ser humano como tal ao afirmar em seu preâmbulo “Considerando que o
reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos
iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo [...]”.

Jack Donnelly, um teórico liberal dos direitos humanos, argumenta que há um consenso
internacional sobre o sistema de direitos humanos enraizados na DUDH e que tal consenso é
relativamente incontroverso. Em sua teoria, o autor resgata a contribuição de John Rawls e
trabalha a noção de “consenso sobreposto”, segundo o qual haveria uma convergência
normativa transnacional sobre as expectativas básicas que os cidadãos podem legitimamente
ter de suas sociedades e governos (Donnelly, 2013, p. 58).
Apesar de haver na sociedade contemporânea uma pluralidade de religiões, tradições,
costumes, etc., ela ainda seria capaz compartilhar uma visão robusta das condições para uma
vida digna, e isto estaria bem delineado na DUDH através de princípios que teriam sido
“amplamente aceitos como autoridade perante as sociedades dos Estados” (Donnelly, 2013, p.
55, tradução própria).

Jack Donnelly (2013, p. 57) nega que este consenso sobreposto se afirme no discurso
hegemônico em razão do apoio pelo poder ou força. Para o autor,

They dominate contemporary political discussions not only, or even primarily,


because of the support of materially dominant powers but rather because they respond
to some of the most important social and political aspirations of individuals, families,
and groups in most countries of the world.

Monedero (2018, p. 9) tece críticas a essa ideia de consenso sobreposto internacional


levantada por Donnelly e pontua que tal consideração apresenta os direitos humanos como algo
a ser seguido pelas pessoas de forma apolítica:

[...] se niega la existencia actual de regímenes de opresión. Parece que todo há


quedado en el pasado y, gracias al recto sentido de la moral de los hombres,
individualmente considerados, se ha acogido una normativa neutral, producida,
también neutralmente, por el sistema internacional.

Donnelly, também um universalista, ensina que a construção dos direitos humanos, desde
o momento inicial até a DUDH, foi marcada por uma expansão subjetiva e substantiva. O autor
explica que, inicialmente, esses direitos foram fruto de uma luta liberal que reivindicava
somente interesses de homens brancos e cristãos, excluindo boa parte da população. No entanto,
no pós guerra, os direitos econômicos e sociais teriam sido reconhecidos e a DUDH,
posteriormente complementada com os Pactos Internacionais de Direitos Humanos, teria
consolidado o núcleo duro essencial e universal a todos os seres humanos (Donnelly, 2013, p.
91).

Esta proposta do autor traz uma visão linear e progressiva da evolução dos direitos
humanos que se mostra problemática. Ao traçar um desenvolvimento histórico que tem como
ponto final o reconhecimento dos direitos humanos na DUDH, Donnelly parece entender que
aquele conteúdo comum é um trabalho acabado que satisfaz as concepções de todos os países
do mundo, como se todos partissem do mesmo referencial universal de direitos humanos
(universalismo de partida).

Essa linearidade também favorece uma ideia de “gerações de direitos humanos” que
desconsidera os fracassos e momentos de descontinuidade nas lutas pelo reconhecimento de
diferentes direitos. Teorias universais, no geral, desconsideram a construção dos direitos
humanos como fruto de demandas populares marcadas por rupturas e particularidades.

A teoria liberal e universalista de Jack Donnelly dá especial atenção à autonomia


individual segundo a qual os indivíduos possuem o direito de “governar” suas vidas e de fazer
escolhas importantes dentro de limites do reconhecimento mútuo de igual liberdade e
oportunidade entre os demais indivíduos (Donnelly, 2013, p. 65).

Para o autor, um tipo específico de liberalismo que seria compatível com o modelo da
DUDH e que deveria abranger um amplo sistema de direitos econômicos e sociais, refletindo
uma concepção robusta de controle político democrático, seria o liberalismo igualitário, cujo
exemplo principal seria o estado de bem-estar social europeu.

O compromisso com a autonomia individual, para Donnelly (2013, p. 68), necessita do


apoio de uma neutralidade tolerante fundada em princípios liberais. Neste sentido, apesar de
os indivíduos não compartilharem das mesmas certezas e ideais, sempre deve haver respeito
entre eles, cujo fundamento parte de uma igualdade moral básica essencial para a concepção de
vida boa que respeite a igual dignidade de todos os seres humanos.

Percebe-se que o universalismo relativo defendido por Jack Donnelly reconhece a


existência de particularidades culturais no mundo, mas, baseando-se na teoria do consenso
sobreposto, entende que essas diferentes culturas compartilham da mesma visão sobre o rol
mínimo de direitos humanos necessários para assegurar uma noção essencial (também
compartilhada) de vida boa.

A cultura, para o autor, não constitui fundamento determinante para a concretização dos
direitos humanos, mas sim uma mediação para a implementação desses direitos
internacionalmente reconhecidos. Portanto, o ponto chave da teoria universal liberal de
Donnelly é sua compreensão de que o principal poder dos direitos humanos reside em sua
proteção normativa no âmbito internacional, isto é, o rol essencial tal como positivado na
DUDH.

No entanto, o discurso liberal-individualista e tecno-formal proposto pela teoria de


Donnelly, ao nosso ver, é insuficiente para compreender o abismo entre o plano normativo e a
realidade fragmentada por lutas e condições de existência particulares, principalmente aquelas
marcadas por diversos fatores de vulnerabilidade. Além de insuficiente, a teoria de Jack
Donnelly, assim como outras teorias universais, corre o risco de invisibilizar e desconsiderar as
lutas daqueles que não se encaixam no abstrato sujeito de direitos humanos construído sob
ideais liberais e sob o prisma da igualdade formal.

Um dos perigos de uma abordagem essencialista de “conciliação sobre o conteúdo


mínimo que garanta uma vida digna para todos” reside justamente na desigualdade material que
se pode gerar para grupos vulneráveis, que não têm reconhecido cada fator de desvantagem
nesse processo de construção de ser humano. Longe de ser um trabalho acabado, uma teoria de
direitos humanos deve buscar uma perspectiva dialética que considere as demandas particulares
de grupos até então silenciados.

Deve-se questionar, portanto, antes de tudo, como a construção limitada de sujeito de


direito condiciona uma visão de direitos humanos voltada somente para aqueles que se inserem
na norma, sendo incapaz de considerar os fatores de opressão que certos indivíduos acumulam.
Se é possível compreender que a formulação e positivação dos direitos humanos na DUDH
decorreram de lutas liberais, não é difícil reconhecer que este parâmetro normativo se afirmou
ao longo do tempo como discurso hegemônico em razão do poder, diferente do que acredita
Donnelly.

2. TEORIA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS COMO UM POTENCIAL


EMANCIPATÓRIO

Uma corrente teórica crítica nascida na Escola de Frankfurt em meados dos anos 1930
surge então como proposta alternativa à visão tradicional da teoria de direitos humanos. Max
Horkheimer publica em 1937 o ensaio intitulado Teoria Tradicional e Teoria Crítica e aposta
em uma base marxista para contrapor o ideal clássico de produção de conhecimento. Sua
proposta era de afastar-se da concepção cartesiana e científica do direito para aproximá-lo de
formas dialéticas que considerem a cultura como instrumento de transformação da realidade
(Berner; Lopes, 2014, p. 8).

A nova concepção de direitos humanos a partir do pensamento crítico vai buscar rechaçar
o idealismo, a abstração e a pretensa universalidade da proposta teórica liberal e reformular a
constituição dos direitos humanos como fruto de práticas sociais reais e de lutas políticas. Nas
palavras de Gándara Carballido (2014),

Sendo os direitos, e o Direito em geral, configurados em função do conjunto de


condições sócio-históricas, não se pode compreendê-los à margem das correlações de
poder que surgem e às quais reagem, bem servindo para legitimar a ordem
hegemônica, ou ainda para forjar e consolidar processos que permitam lutar por uma
vida digna a quem suporta práticas de dominação e exclusão em tal configuração de
poder.

Joaquín Herrera Flores, seguindo essa linha de pensamento crítico, escreve A Reinvenção
dos Direitos Humanos (2009), onde defende uma nova cultura de direitos humanos a partir de
um universalismo de chegada fruto de conflito e diálogo, lutas e processos interculturais, se
contrapondo ao universalismo de partida, à pretensa neutralidade e à ilusão do acordo absoluto
presente na teoria liberal (e, ainda, na de Donnelly).

A concepção de Herrera Flores, ao enxergar os direitos como “resultados provisórios de


lutas sociais por dignidade” (2009, p. 14), dá voz e desvenda o processo mascarado pela
universalidade das teorias liberais, que é justamente as diferentes realidades fragmentadas e
marcadas por fatores de opressão buscando condições materiais e imateriais para uma vida
digna e um reconhecimento como ser humano sujeito de direitos. Além de crítica, sua teoria é,
sobretudo, emancipatória.

Emancipar-se significa, em um sentido, romper com o discurso hegemônico apolítico,


formalista e abstrato dos direitos humanos. Nas palavras do autor espanhol (Herrera Flores,
2009, p. 18),

Apesar da enorme importância das normas que buscam garantir a efetividade dos
direitos no âmbito internacional, os direitos não podem reduzir-se às normas. Tal
redução supõe, em primeiro lugar, uma falsa concepção da natureza do jurídico e, em
segundo lugar, uma tautologia lógica de graves consequências sociais, econômicas,
culturais e políticas. O direito, nacional ou internacional, não é mais que uma técnica
procedimental que estabelece formas para ter acesso aos bens por parte da sociedade.
É óbvio que essas formas não são neutras nem assépticas. Os sistemas de valores
dominantes e os processos de divisão do fazer humano (que colocam indivíduos e
grupos em situações de desigualdade em relação a tais acessos) impõem “condições”
às normas jurídicas, sacralizando ou deslegitimando as posições que uns e outros
ocupam nos sistemas sociais. O direito não é, consequentemente, uma técnica neutra
que funciona por si mesma.

Negar a neutralidade do direito é um importante contraponto entre a teoria de Herrera


Flores e a de Jack Donnelly. Para este último autor, para que haja um acordo sobreposto sobre
o conteúdo mínimo dos direitos humanos, é necessária uma neutralidade tolerante com a
autonomia dos indivíduos. Já Herrera Flores rechaça a possibilidade de uma neutralidade na
constituição de direitos humanos e enfatiza que estes advêm de processos marcados por relações
assimétricas de poder e interesses ideológicos.
Os direitos humanos deixam de ser vistos como um trabalho finalizado que teve como
ponto mais alto o reconhecimento jurídico na DUDH e são redescobertos através de “processos
institucionais e sociais que possibilitem a abertura e a consolidação de espaços de luta pela
dignidade humana.” (Herrera Flores, 2009, p. 19). Não se trata mais, portanto, de reduzir as
práticas sociais pelos direitos como uma luta jurídica2, mas reconhecer a historicidade e o
compromisso com um constante fazer humano a partir de relações sociais plurais e dos conflitos
que as atravessam.

É a partir deste paradigma crítico que pensamos ser mais adequada uma teoria de direitos
humanos que permita refletir sobre o abismo existente entre o plano normativo e a realidade de
sujeitos marcados por diversos fatores de vulnerabilidade, como é o caso de pessoas negras e
pobres vítimas da violência policial de Estado em favelas.

No Rio de Janeiro, a política de segurança pública é historicamente marcada pelo


enfrentamento bélico e estímulo ao uso letal da força policial em operações em comunidades.
A estratégia adotada se utiliza de invasões a domicílios, abuso de autoridade, agressões físicas
e verbais, além de resultar em inúmeros civis mortos por agentes do Estado. Pautadas em uma
lógica de guerra, as autoridades policiais enxergam as comunidades como território inimigo e
atuam totalmente dissociadas dos limites constitucionais.

Apesar de a Constituição Federal de 1988 trazer um extenso rol de direitos e garantias


fundamentais e haver no sistema internacional diversos tratados protegendo esses direitos sob
o fundamento da dignidade humana, a dinâmica social aponta para uma dificuldade na
efetividade desses direitos para a população residente em favelas. A violência policial nas
comunidades é, portanto, um fenômeno social que denuncia a pouca ou nenhuma eficácia dos
direitos humanos para esses grupos vulneráveis.

Neste sentido, necessário questionarmos como um Estado Democrático de Direito


consegue conviver com altos índices de mortes provocadas por intervenções policiais e, indo
além, como conseguimos conviver com o descompasso entre direitos humanos positivados em
inúmeros tratados e convenções internacionais e uma realidade marcada pela violação maciça

2
“Por mais importante que seja essa luta, dada a função de garantia que o direito pode e deve cumprir, reduzir a
prática dos mesmos ao âmbito da norma nos levaria a aceitar como princípio válido a contradição entre
racionalidade interna e irracionalidade nas premissas, a qual é a base em todo formalismo.” (Herrera Flores, 2009,
p. 155).
desses direitos para grupos vulneráveis residentes em favelas não inseridos no ideal de sujeito
de direito3.

Nos parece óbvio, pelos motivos aqui já expostos, que não é possível entender esse
fenômeno a partir do paradigma clássico das teorias de direitos humanos. Tentar fazer isso seria
o mesmo que realizar uma análise superficial, acrítica, insuficiente e, o que é mais preocupante,
legitimaria e invisibilizaria essa realidade marcada por fatores de opressão e violações de
direitos, negando-se a enxergá-la tal como é e, consequentemente, inviabilizando as chances de
mudá-la.

Herrera Flores explica bem que a prescrição de um direito, no plano normativo, se limita
ao “dever ser”, não tendo necessariamente uma correspondência com o “ser” complexo do
mundo empírico. A aplicabilidade prática desse direito, portanto, vai depender “da situação que
cada um ocupe nos processos que facilita ou dificultam o acesso aos bens materiais e imateriais
exigíveis em cada contexto cultural para se alcançar a dignidade.” (Herrera Flores, 2009, p. 38).

Assim, vemos uma necessidade urgente de se repensar uma nova cultura de direitos
humanos que supere os pressupostos formalistas e universalistas. Consideremos, então, partir
de quatro condições e cinco deveres básicos para uma teoria realista e crítica dos direitos
humanos, tal como proposto por Herrera Flores (2009, p. 61), a fim de construir “zonas de
contato emancipadoras, isto é, zonas em que aqueles que nelas se encontrem ocupem posições
de igualdade no acesso aos bens necessários para uma vida digna”.

Como condições básicas, temos que: (i) assumir uma postura realista no sentido de ter
consciência das falhas e problemas de acesso aos bens e propor caminhos para transformar essa
realidade; (ii) adquirir um pensamento de combate visando a mobilização; (iii) reforçar os
direitos e garantias formal e juridicamente reconhecidos ao mesmo tempo em que se almeja
lutar por novas formas de acesso aos bens protegidos; e (iv) estar sempre aberto à capacidade
de indignação buscando distanciar-se ao máximo do marco hegemônico de ideias e valores.

Os deveres e compromissos, segundo Herrera Flores (2009, p. 61), devem considerar: (i)
o reconhecimento de que podemos reagir culturalmente em relação ao entorno; (ii) o respeito
como forma de reconhecimento; (iii) a reciprocidade a fim de devolver aos outros o que
tomamos para construir nossas vantagens e privilégios pessoais; (iv) responsabilidade pelas

3
Essa reflexão torna-se importante sobretudo quando pensamos que a construção desse sujeito de direitos nasce
de um processo marcado por fatores e interesses sociais, econômicos, ideológicos, políticos e culturais do
Ocidente.
relações de subordinação dos outros e por exigir responsabilidade de quem trouxe prejuízo às
condições de vida dos demais; e (v) a redistribuição para estabelecer medidas jurídicas,
econômicas, institucionais e políticas que garantam a todos a possiblidade de satisfazer suas
necessidades vitais e, mais ainda, ter uma vida digna não submetida aos processos depredadores
impostos por um sistema baseado no capital.

Assim, reposicionar os direitos humanos a partir de um olhar crítico e emancipador nos


ajudaria a questionar o problema da falta de efetividade de desses direitos para grupos
historicamente excluídos da sociedade e propor novos caminhos a fim de alterar essa realidade
cultivando resistência e fomentando a indignação com relação aos ideais abstratos e universais
de sujeitos de direitos que não reconhecem as especificidades dos outros.

A partir de uma visão complexa dos direitos humanos, a teoria de Herrera Flores supera
a dicotomia entre um pretenso universalismo de direitos e uma aparente particularidade das
culturas para inaugurar uma racionalidade de resistência que rejeita um ideal universal de
partida e busca um universalismo de chegada ou de confluência, construído a partir de um
processo dialógico em que todas as culturas se entrecruzam e oferecem suas propostas e
contribuições. Segundo leciona o autor (Herrera Flores, 2009, p. 158),

Falamos de um universalismo que não se imponha, de um modo ou outro, à existência


e à convivência, mas sim que se descubra no transcorrer da convivência interpessoal
e intercultural. Se a universalidade não se impuser, a diferença não se inibe. Sai à luz.
Encontramo-nos com o outro e os outros com suas pretensões de reconhecimento e de
respeito. Nesse processo – que denominamos “multiculturalismo critico ou de
resistência” –, ao mesmo tempo em que rechaçamos os essencialismos universalistas
e particularistas, damos forma ao único essencialismo válido para uma visão
complexa do real: aquele que cria condições para o desenvolvimento das
potencialidades humanas, de um poder constituinte difuso que se componha não de
imposições ou exclusões, mas sim de generalidades compartilhadas às quais
chegamos, não das quais partimos.

Partindo, portando, do impulso que resiste e rejeita uma aderência prévia e acrítica aos
discursos hegemônicos e mobiliza suas forças para construir direitos humanos a partir de
diálogos interculturais considerando as demandas e lutas sociais por dignidade humana é que
podemos contemplar as especificidades de diferentes realidades não inseridas em um padrão
universal e abstrato de ser humano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o fim das barbáries cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, o triunfo dos
valores e ideais de liberdade, igualdade e justiça encontrou seu reconhecimento jurídico na
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, um dos marcos históricos na luta por
esses direitos. Tendo como fundamento central a dignidade da pessoa humana, a Declaração
afirma que os direitos humanos devem ser vistos “como o ideal comum a ser atingido por todos
os povos e todas as nações” (ONU, 1948).

No Brasil, após longos anos marcados pelo autoritarismo que caracterizou a ditadura
militar brasileira (1964 – 1985), o novo contexto de redemocratização criou um terreno apto à
elaboração de uma ordem constitucional compatível com os elementos essenciais da nova
realidade. Promulgada em 1988, a nova Constituição passou a ser conhecida como a
“Constituição cidadã” e consagrou não apenas valores liberais e individuais, mas também
valores sociais pautados em uma concepção igualitária, transformadora e de justiça social.

Além de trazer um extenso rol de direitos e garantias fundamentais, pela primeira vez no
constitucionalismo brasileiro invocou-se a dignidade da pessoa humana como fundamento da
República (art. 1º, III, CRFB/88). Apesar da importância do reconhecimento jurídico desses
direitos, tanto no sistema internacional como no plano constitucional interno, a complexidade
da dinâmica social aponta para uma grande dificuldade em sua efetividade, principalmente para
grupos historicamente vulneráveis.

O presente trabalho buscou trazer reflexões acerca das teorias jurídicas de direitos
humanos tendo como pano de fundo o fenômeno social da letalidade policial em favelas do Rio
de Janeiro. Mais uma vez, não tentamos aqui reduzir a importância do reconhecimento jurídico
desses direitos. No entanto, observamos que, para compreender a pouca ou nenhuma
efetividade desses direitos para esses grupos vulneráveis, é necessário partir de um olhar crítico
sobre essa realidade.

Apontamos que a teoria jurídica tradicional/clássica de direitos humanos, marcada pela


luta histórica de um ideal ético individual burguês, é insuficiente para compreender as
dinâmicas concretas de realidades que não se encaixam no ideal abstrato de direitos e na própria
concepção limitada de sujeito de direitos.

O quadro teórico proposto por Jack Donnelly em “Universal Human Rights in Theory
and Practice”, apesar de fugir de um universalismo extremo, ainda incide sobre as mesmas
premissas que inviabilizam uma discussão mais aprofundada sobre a complexidade que é a
eficácia dos direitos humanos no mundo real.

De que forma podemos entender como um Estado Democrático de Direito convive com
altos índices de letalidade policial nas favelas? Quais são os argumentos que as microestruturas
do sistema de justiça utilizam para lidar com esse problema social? Como ocorre a negociação
da efetividade dos direitos humanos para moradores de favelas? A resposta para essas perguntas,
ao que nos parece, não pode partir de uma teoria abstrata, universal e acrítica como é a teoria
tradicional de direitos humanos e, ainda, a de Donnelly.

Partir do pressuposto de que há um consenso entre todas as culturas acerca das condições
para uma vida digna é insuficiente para entender por que essas condições não se impõem a todas
as realidades. Ter a DUDH como marco final de um “consenso internacional sobreposto” não
vê que partimos de referenciais distintos e desconsidera que direitos humanos são um processo
de luta constante.

Desse modo, propomos renunciar a uma pretensão abstrata e absoluta de direitos humanos
e repensá-los desde as lutas sociais, aproximando-os da realidade. Teorias dissociadas da
realidade empírica não fornecem instrumentos para mudá-la. Não nos interessamos, portanto,
em prescrever um rol ideal de direitos que não poderão ser aplicados na prática pois foram
positivados sem uma análise que considera as diferentes realidades.

Neste sentido, a teoria crítica de Herrera Flores assume papel fundamental na


compreensão da complexidade de fenômenos tais como o apresentado neste trabalho.
Aproximar os direitos humanos do mundo real pode nos ajudar a sofisticar teorias e
argumentações jurídicas em torno desse mundo e contribuir para a construção de um discurso
contra hegemônico sobre a matéria.

Assim, como proposto por Herrera Flores, buscamos situar os direitos humanos para além
das prescrições jurídicas, enxergando-os a partir de práticas interculturais dialógicas que
transpassam processos sociais cotidianos e que reivindicam um lugar no reconhecimento e luta
pela dignidade humana.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


Brasília, DF: Presidente da República, [2016]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 01 de agosto
de 2023.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos,
1948. Disponível em: https://www.unicef.org. Acesso em: 15 jul 2023.
DONNELLY, Jack. Universal Human Rights in Theory and Practice. Nova York, Estados
Unidos: Cornell University Press.
MONEDERO, Liliam Fiallo. Derechos Humanos y Justicia Social: Crítica a Jack Donelly.
RedPensar, 7(1), 1-16. DOI: https://doi.org/10.31906/redpensar.v7i1.158. Acesso em: 20 jul
2023.
BERNER, Vanessa Oliveira Batista; LOPES, Raphaela de Araújo Lima. Direitos Humanos: o
embate entre teoria tradicional e teoria crítica. In: CONPEDI/UFPB. (Org.). Filosofia do
direito. 1ed.Florianópolis: CONPEDI, 2014, v. III, p. 128‐144.
HERRERA FLORES, Joaquín. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2009.

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