Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O presente documento apresenta meras propostas de resolução das hipóteses tratadas nas aulas práticas, e
(1)
encontrando-se por isso indiciada a prática de um crime de ofensa à integridade física (artigo
143.º do Código Penal). Segundo os dados da hipótese, B não teve qualquer controlo sobre a
sua actuação, já que se encontra numa situação de coacção absoluta. Podemos, de certo modo,
afirmar que todo o processo que desembocou na sua queda lhe foi completamente alheio. Por
essa razão, dir-se-á em falta a voluntariedade exigida para a afirmação de uma acção. Como
vimos, em momento algum B teve domínio do processo causal que resultou no facto lesivo,
pelo que não poderá ter realizado um comportamento penalmente relevante.
Debruçando-nos agora sobre a conduta de A, relativamente a B, no que respeita ao
movimento do braço, estará uma vez mais indiciada a prática de um crime de ofensa à
integridade física (artigo 143.º do Código Penal). A este respeito, releva caracterizar a sua
reacção como um acto reflexo ou um automatismo. Em princípio, os actos reflexos não
constituem qualquer acção, no sentido anteriormente referido, enquanto os automatismos
podem ou não assumir-se como comportamentos penalmente relevantes.
Neste caso, A foi picado por uma abelha; nessa sequência, sacudiu o braço e,
finalmente, empurrou B contra C. Relativamente a este primeiro problema, importa recordar
as linhas de distinção entre actos reflexos e automatismos, que se traduzem
fundamentalmente na circunstância de os actos reflexos constituírem uma reacção endógena,
característica do ser humano e, como tal, comum a todas as pessoas. Configura um acto
reflexo a situação em que se levanta a perna na decorrência do estímulo, pelo médico, com
um martelo na rótula. Os automatismos, por seu turno, representam formas de reacção a
circunstâncias externas, que variam de acordo com a própria personalidade do agente. Assim,
o padrão de reacção não é universal, divergindo de acordo com as características específicas
do indivíduo.
A hipótese descrita parece aproximar-se à figura dos automatismos, uma vez que nem
todos sacudimos o braço quando somos picados por uma abelha. Ainda assim, dentro da
categoria dos automatismos vale a pena destrinçar os automatismos rotineiros (por exemplo,
conduzir) e os automatismos instintivos (tipicamente, reacções defensivas instintivas). De
A tipicidade
Desvalor e tipificação da omissão
causa não puder ser configurado como uma acção. Noutro sentido, sugeriu ROXIN que, em
algumas situações, possa prevalecer o crime omissivo(2).
Corrida toda esta tinta, o critério que se impôs, por surgir como o mais razoável, foi o
critério da ilicitude típica e de imputação objectiva. Esta proposta assenta num juízo acerca
da forma de criação do perigo para o bem jurídico protegido pela incriminação, e identifica
a acção como a criação/aumento de um risco para o bem jurídico – ou bem assim, quando o
comportamento piora a situação do bem jurídico –, e a omissão como a não diminuição de
um risco pré-existente – ou, paralelamente, quando não se melhora a situação (previamente
má) de risco para o bem jurídico.
Desta forma, haverá que considerar se o comportamento de C criou ou aumentou o
risco que se concretizou na morte de D ou se, ao invés, a atitude de C traduz a não diminuição
desse risco. Como sugerem os dados da hipótese, o que parece ter ocorrido é uma não
diminuição do risco que já tinha sido autonomamente criado pelo contexto. Nesta medida,
diremos que a actuação de C consubstancia uma omissão.
Tendo já determinado o carácter omissivo da conduta de C, importa antes de mais
analisar se existia capacidade humana de agir. Significa isto perguntar se no caso concreto,
C teria possibilidade de evitar o resultado, tal como o teria qualquer outro ser humano,
colocado na situação.
É nesta sede que a circunstância de C ter inalado cocaína poderá ter relevância, já que
poderia levar-nos a concluir que C não tinha capacidade para agir. Contudo, resulta do
enunciado da hipótese que o agente se colocou voluntariamente na situação, o que nos
legitimará a equacionar um paralelismo entre a figura da actio libera in causa e a omissio
libera in causa. De facto, a colocação neste estado configura uma omissão ilícita na causa,
pelo que não podemos afirmar que haveria uma incapacidade humana de agir.
Eventualmente, poderia discernir-se uma incapacidade individual de agir que, como vimos,
(2)
Pensamos aqui nos casos de comparticipação activa em crime omissivo, omissão livre na causa, tentativa
interrompida de salvamento (quando o processo salvador ainda não atingiu a esfera jurídica da vítima, há
omissão; caso contrário, haverá acção, aplicando o critério do risco), e interrupção técnica de tratamento.
não seria relevante para afastar a responsabilidade penal, já que o agente se tinha colocado
voluntariamente em tal situação.
Chegados à conclusão de que não se verificava qualquer circunstância que obstasse à
afirmação da capacidade humana de agir, importa averiguar se nos encontramos perante uma
omissão pura (p.e., artigo 200.º do Código Penal) ou impura (artigo 10.º do Código Penal,
conjugado com o correspondente preceito da parte especial).
Como se sabe, as omissões puras encontram uma previsão de tipicidade directa,
reconduzível a um concreto preceito da parte especial (p.e., artigo 200.º do Código Penal), e
referem-se, na maioria dos casos, a crimes formais. Aqui, ao agente impõe-se um mero dever
de agir, sem vinculação a evitar o resultado. Diferentemente, as omissões impuras conhecem
um processo de tipificação indirecta (artigo 10.º do Código Penal, conjugado com a norma
da parte especial), reflectindo os crimes materiais ou de resultado. Nestes casos, sobre o
agente recai o dever de evitar o resultado típico, na decorrência de assumir uma posição de
garante sobre o bem jurídico em causa. Deste modo, estabelece-se entre os dois tipos de
omissão uma relação de subsidiariedade, prevalecendo, porque mais grave, o regime da
omissão impura.
Importa então verificar se estamos perante uma omissão impura. Para tal, revela-se
conveniente recordar os tipos de crime em causa. Tendo em atenção que da queda resultou a
morte de C, poderemos estar perante um homicídio por omissão (artigos 131.º e 10.º do
Código Penal) ou, simplesmente, tratando-se de uma omissão pura, perante a violação do
dever de auxílio configurado pelo artigo 200.º do Código Penal. Verifiquemos, então, se C
detinha alguma posição de garante em relação a D, de forma a determinar a que título poderá
ser punido.
A este respeito, inicialmente propugnava-se a chamada tese formal das fontes de
posição de garante, de acordo com a qual se configuravam como fontes apenas a lei, o
contrato e a ingerência. Tal concepção preocupava-se sobretudo com a imposição de certeza
decorrente do princípio da legalidade, esquecendo algumas situações em que materialmente
se justificava a afirmação de uma posição de garante. Mesmo no que respeita à lei enquanto
fonte de posição de garante, obstava-se a tal concepção afirmando que o Código Civil – de
onde se retiravam os deveres de garante no seio familiar – não se assume como lei penal,
sendo tal responsabilidade meramente civil. Em relação ao contrato, compreende-se a
respectiva configuração enquanto fonte de posição de garante, já que tal assunção de
protecção de bens jurídicos resultaria de um consenso entre as partes, manifestação da
vontade daqueles que se vinculavam. No entanto, se interpretada rigidamente, tal perspectiva
sustentaria soluções inexplicáveis: pense-se no caso da baby sitter contratada para vigiar a
criança entre as 9h e as 12h, e que não evita que a criança caia da janela porque o acidente
ocorreu às 12h30. No que concerne à ingerência, tal figura permaneceu nas agora chamadas
teorias materiais, já que assenta na ideia de que quem cria um perigo para um bem jurídico
deve ficar vinculado a evitar posteriores agravações do perigo criado. Deste modo, faz
sentido que quem tenha interferido ilegitimamente na esfera de liberdade de outrem se
assuma responsável pelas consequências de tal intervenção.
Como se disse, tal concepção esquecia a vinculação pessoal e a materialidade inerente
a cada situação, conduzindo a resultados insatisfatórios. Por esse motivo, surge a chamada
teoria das funções, que considera que os deveres de garantia se distinguem em duas funções:
função de guarda de um bem jurídico concreto, gerando deveres de protecção e de
assistência – enquadrando-se neste grupo as situações de protecção familiar ou análogas;
comunidade de risco e o próprio contrato, de uma forma imaterializada –; e a função de
vigilância de uma fonte de perigo, gerando deveres de segurança e de controlo –
enquadrando-se aqui as situações de garantia face à actuação de terceiros, a ingerência e o
dever de fiscalização de fontes de perigo no âmbito de domínio próprio.
No caso em estudo, releva apenas considerar a comunidade de risco, já que C e D se
propuseram a encetar o que à partida se apresenta como uma actividade arriscada. O
fundamento desta figura como fonte de posição de garante reconduz-se às relações de
confiança e dependência mútuas que se estabelecem entre os participantes, e ao próprio
carácter perigoso do empreendimento conjuntamente reconhecido e aceite, que funda em
cada um dos intervenientes um dever de garantia face a todos os restantes. De acordo com
10
a morte do seu companheiro, vinculando-se a tal dever. Como se compreende, tal conclusão
afigura-se excessiva, desde já porque C e D eram amigos recentes. Para além disso, afirmar
que alguém se vincula a evitar a morte de quem com ele faz montanhismo equivale a impor,
sem substrato fáctico bastante, e de forma implícita, uma excessiva oneração a quem apenas
se dispôs a fazer montanhismo. Por este motivo, dir-se-á que para MARIA FERNANDA PALMA
não haveria uma posição de garante e, como tal, C só seria punido por omissão de auxílio,
nos termos do artigo 200.º do Código Penal.
Março 2020.
11